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Universidade Metodista de Sªo Paulo CRISTOLOGIA ANGELOMRFICA DE HEBREUS Estudo Scio-Retrico e Histria das Religiıes Comparadas em Hebreus 1.1-14; 2.5-18; 7.1-10 Por JOS ROBERTO CORR˚A CARDOSO Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduaªo em CiŒncias da Religiªo da Universidade Metodista de Sªo Paulo como requisito para a obtenªo do ttulo de Doutor em CiŒncias da Religiªo. Sªo Bernardo do Campo 2005

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Universidade Metodista de São Paulo

CRISTOLOGIA ANGELOMÓRFICA DE HEBREUS

Estudo Sócio-Retórico e História das Religiões Comparadas

em Hebreus 1.1-14; 2.5-18; 7.1-10

Por

JOSÉ ROBERTO CORRÊA CARDOSO

Orientador:

Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo como requisito para a obtenção do título de

Doutor em Ciências da Religião.

São Bernardo do Campo

2005

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ii

Para Raquel,

por seu amor devotado,

e para o Davi,

meu primogênito amado.

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iii

Quem, pois, esteve presente no conselho de Yahweh, para ver e ouvir

a sua palavra?

Quem prestou atenção à sua palavra

e a ouviu?

(Jeremias 23.18)

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AGRADECIMENTOS

Foram muitos amigos e amigas que cooperaram para a gestação e parto deste material.

Entre estes, alguns serão destacados, num ato temerário, mas necessário, por justo:

Rosi Santos (a imprescindível)

Breno (pela amizade)

Joéde e Loyde (hospitaleiros como quem hospeda anjos)

Jacqueline Ziroldo (por sua leitura perspicaz)

C. Rowland (por suas intuições)

David Maxwell e Sherron K. George (por sua generosidade)

José Adriano, (por seu coleguismo exemplar)

Marcelo Smargiasse (por sua fineza)

Ronaldo (pela amizade nas horas difíceis)

Munir (meu amigo de infância)

John e Renée Sidenstricker (pela �torcida�)

Alunos do SPS e EST - Mackenzie (por sua compreensão)

Paulo Nogueira (por sua maestria)

Em termos institucionais, a realização desta tarefa deve muito a Presbyterian Church

USA (USA), ao Seminário Presbiteriano do Sul (Campinas-SP) e à Universidade Metodista de

São Paulo (S. Bernardo do Campo-SP).

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RESUMO

A Epístola aos Hebreus apresenta já em seus primeiros versos Jesus Cristo assentado à destra

de Deus (Hebreus 1,1-4). Assim, desde o princípio a Carta aos Hebreus revela a estratégia de

seu autor ao expressar Jesus Cristo em termos honrosos. Tais indícios sugerem o meio

ambiente cultural típico do mundo mediterrâneo do século I E.C., em que honra e vergonha

exerciam uma função pivô nessa sociedade. A estratégia de Hebreus apresenta a dignidade

de Jesus Cristo e sustenta o controle social de seus leitores diante de uma eminente evasão do

grupo religioso. Para isso, o autor de Hebreus lança mão de tradições angelológicas

amplamente conhecidas do entorno religioso judaico do período do segundo templo.

Caracterizam principalmente essas tradições elementos gloriosos desenvolvidos pela religião

judaica (anjos, figuras hipostáticas, Melquisedec), que contribuíram para a confissão do

Cristo exaltado de Hebreus. Fazemos um estudo da História das Religiões Comparadas das

figuras mediadoras nos escritos do AT e da literatura pseudepígrafa, entendendo que essas

figuras foram adquirindo cada vez mais características divinizadas possibilitando a

elaboração da Cristologia angelomórfica de Hebreus 1.1-14; 2.5-18; 7.1-10. Além disso, uma

aproximação sócio-retórica à Hebreus garante resultados mais claros no que diz respeito à

estratégia pretendida por seu autor.

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ABSTRACT The Epistle to the Hebrews presents in its very first verses Jesus Christ sat at the right side of

God (Hebrews 1.1-4). Thus, since the beginning, Hebrews reveals the strategy of its author in

expressing Jesus Christ in honorable terms. Such indications suggest the cultural

environment typical of 1st century C.E. Mediterranean world, in that honor and shame exerts

a pivot function in this society. The strategy of Hebrews presents the dignity of Jesus Christ

and supports his readers� social control before an eminent escape of the religious group. For

this, the author of Hebrews makes uses of angelologic traditions widely known of the Jewish

religious context of second temple period. These traditions characterize principally the

glorious elements developed by Jewish religion (angels, hypostatic figures, Melchizedek),

that contributed for the confession of the exalted Christ of Hebrews. We have elaborated a

study of History of the Compared Religions of the mediatory figures in Old Testament and

Pseudepigrapha Literature writings, perceiving that these figures got more and more divine

characteristics allowing the angelomorphic Christology elaboration in Hebrews 1.1-14; 2.5-

18; 7.1-10. Besides, a social rhetorical approach to Hebrews guarantees clearer results

concerning to the intended strategy by its author.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 001

1. ESTADO ATUAL DA QUESTÃO 009

2. ANÁLISE SÓCIO-RETÓRICA DE HEBREUS 027

2.1. Intertextura sócio-cultural 028

2.2. Situação retórica 031

2.2.1. A Cidade no mundo Mediterrâneo do 1º século 031

2.2.1.1. O aspecto físico da Cidade 031

2.2.1.2. A coletivide 032

2.2.1.3. Cargos públicos 034

2.2.1.4. O Príncips 035

2.2.1.5. O direito à cidadania 037

2.2.1.6. Patronato e clientelismo 039

2.2.1.7. O excluídos: Peregrinos, escravos, libertos, artesãos e operários 041

2.2.1.8. Honra e vergonha 046

2.2.2. Auditório e orador 049

2.3. Gênero discursivo da Carta aos Hebreus 051

2.4. Disposição 055

2.4.1. Exórdio (Hebreus 1. 1-4) 055

2.4.2. Narração (Hebreus 1. 5-2.18) 056

2.4.3. Argumentação (3.1-5.10; 5.11-10.39; 11.1-12.13) 058

2.4.4. Peroração (Hebreus 13.1-19) 060

2.5. Invenção 061

2.5.1. Provas extrínsecas 061

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2.5.2. Provas intrínsecas 061

2.6. Eclesiologia política 063

2.7. Conclusão 073

3. ANJOS, FIGURAS HIPOSTÁTICAS E JESUS 075

3.1. O herói greco-romano como modelo 075

3.2. Tradições fundantes do mediador angelomórfico 077

3.2.1. Dois motivos paradigmáticos: �O Anjo do Senhor� e

�A Assembléia Divina� 078

3.2.1.1. O Anjo do Senhor 078

3.2.1.2. A Assembléia Divina 084

3.3. Configuração de Hebreus 1.1-4 088

3.3.1. O Filho, o mensageiro dos últimos dias (Hb 1.1-2b) 089

3.3.2. Papel angelomórfico dos profetas 090

3.3.3. O Filho de Deus, herdeiro de todas as coisas (Hb 1.2c) 091

3.3.4. Filho Primogênito 092

3.3.5. Papel demiúrgico do Filho (Hb 1.3c) 094

3.3.5.1. A Sabedoria hipóstasi de Deus 094

3.3.5.2. A Sabedoria pré-existênte 095

3.3.5.3. A Sabedoria na Assembléia Divina e no Templo 096

3.3.5.4. Sabedoria angelomórfica 097

3.3.6. O Filho, efúlgencia da Glória Divina 097

3.3.6.1. Teofania e Glória Divina 098

3.3.6.2. A Glória e mediação 099

3.3.6.3. A Glória Divina e o Culto 100

3.3.6.4. AGlória e Yahweh angelomórfico entronizado 100

3.4. Configuração de Hebreus 1.5-14 102

3.4.1 O Filho de Deus é superior aos anjos (Hb 1.14) 103

3.4.2. Vice-regência do Filho de Deus (Hb 1.3e) 104

3.4.3. O Filho de Deus como detentor do Nome superior ao dos anjos 105

3.5. A estruturação de Hebreus 2.5-18 108

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3.6. Jesus, paradigma do homem primordial (Urmemsch) 109

EXCURSO I: O Filho do Homem em Daniel 7.13s 110

3.7. A Irmandade do Filho de Deus (Hb 2.10-16) 113

3.7.1. A humanidade e os anjos 115

3.7.2. A restauração da imagem do homem primordial (urmemsch) 115

3.8. Avaliação 119

3.9. Conclusão 121

4. JESUS E MELQUISEDEC (Hebreus 7.1-10) 122

4.1. Santuário e sacerdócio 123

4.1.1. Santuário Terrestre espelho do Santuário Celeste 124

EXCURSO II: O Sacerdócio cívico da Religião Imperial 127

4.1.2. O sumo sacerdote celeste 128

4.1.3. O Santuário celeste na carta aos Hebreus 135

4.2. Melquisedec e o Jesus sumo sacerdote celestial 136

4.2.1. Melquisedec em Gênesis 14.17-20 136

4.2.2. Melquisedec no Salmo 110.4 139

4.3. Melquisedec em 2 Enoc 140

4.4. Melquisedec em 11Qmelquisedec 142

4.4.1. Melquisedec multifacetário 145

4.4.1.1. Melquisedec como redentor celeste 145

4.4.1.2. Melquisedec na Assembléia Divina 146

4.4.1.3. Melquisedec Belial 147

4.4.1.4. Melquisedec como Messias celestial 148

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4.4.1.5. Sumário: Melquisedec angelomórfico 150

4.4.2. Melquisedec, O Filho do Homem e Jesus: O sumo sacerdócio

angelomórfico 151

4.4.3. O Filho do Homem como sumo sacerdote 152

4.5. Síntese de Hebreus 7.1-29 155

4.5.1. Texto grego e tradução de Hebreus 7.1-10 158

4.5.2. Sumário histórico (Hb 7.1-2) 159

4.5.3. Natureza do sacerdócio e Melquisedec 160

4.5.4. Dízimos de Abraão e benção de Melquisedec (Hb 7.4-10) 164

4.5.5. Jesus, sumo sacerdote angelomórfico 166

4.6. Conclusão 170

CONCLUSÃO 172

BIBLIOGRAFIA 176

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Introdução

Caríssimos, este é o caminho no qual encontramos a nossa salvação: Jesus Cristo, o sumo sacerdote de nossas

ofertas, o protetor e o auxílio da nossa fraqueza. Por meio dele, fixamos nosso olhar nas alturas dos céus; por meio dele, contemplamos, como em espelho, sua face imaculada e incomparável; por meio dele, abriram-se os olhos do

nosso coração; mediante ele, nossa mente obtusa e obscura refloresce para a luz; mediante ele, o Senhor quis fazer-nos experimentar o conhecimento imortal. �De fato, sendo ele, o resplendor de sua majestade, é tanto superior aos

anjos quanto o nome que herdou é mais excelente� Assim está escrito: �Ele fez dos ventos mensageiros seus e de chama de fogo os seus servidores.� Assim diz o Senhor a respeito de seu Filho: �Tu és o meu filho, eu hoje te gerei.

Pede-me, e eu te darei as nações como tua herança, e teus serão os confins da terra.� E lhe diz ainda; �Senta-te à minha direita, até que eu coloque os teus inimigos como estrado para teus pés.� Quais são os inimigos? São os

malfeitores e aqueles que se opõem à sua vontade (Clemente aos Coríntios 36.1-6).

O texto acima nos remete ao final do 1º século da E.C., algo em torno de 95-96, mostrando o

temário da Carta aos Hebreus que prova que a sua divulgação já se estende de Roma a

Corinto. Clemente revela familiaridade com a Carta aos Hebreus e assume os seus conteúdos

Cristológicos. Nota contínua em seu texto é a da mediação,1 Jesus Cristo é o mediador por

excelência, o sumo sacerdote que efetua a experiência da salvação.

A ousadia (parrhsi,a) de sua declaração surpreende quando vista a partir do meio-

ambiente sócio-cultural do mundo Mediterrâneo do século I. Não se podia imaginar a

divindade de um homem como Jesus que recebera a sua pena. A morte trágica e vergonhosa

na cruz era a punição típica de escravos ou de criminosos acusados de alta traição, por conta

disto, Jesus deixa de ser um bom candidato para a filiação divina, mesmo para o meio-

ambiente cultural dos gentios. Da contraparte judaica propriamente dita, mutatis mutandis,

um Messias crucificado receberia uma forte resistência, muito mais se o pretenso Messias

fosse confessado com atributos divinos, como aconteceu com Jesus. Todavia, apesar desses

entraves, o Cristianismo prosperou confessando que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,

crucificado e exaltado à destra de Deus.

Filiação divina, vice-regência e sacerdócio celestial são os motivos componentes da

Cristologia expressa pelo autor de Hebreus aos seus leitores em suas próprias circunstâncias.

O autor da Carta aos Hebreus faz uso de todos esses conteúdos em sua exposição. Sua

mensagem é a interpretação mais abrangente possível do evento do Cristo crucificado e

exaltado. Ao conjugar atributos divinos com terrenos, fatos desairosos com discurso

laudatório, o autor de Hebreus descreve Jesus digno da veneração angélica, superando-os e o

colocando ao lado de Deus (Hb 1.9). Disto levanta-se uma questão: Como uma vertente do

1 Note-se a freqüência de �por meio dele�.

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Judaísmo do Período do Segundo Templo pode fazer tão ousada asseveração de considerar

um ser humano divino sem incorrer no risco de macular sua herança de fé monoteísta? E

outra: Que tradições fundamentariam essa expressão messiânica?

Defendemos a tese que o autor de Hebreus teria às mãos antecedentes expressivos em

anjos, figuras exaltadas e atributos divinos nas tradições da literatura bíblica vétero-

testamentária e do judaísmo contemporâneo. Que essas tradições, denominadas de

angelomórficas pela pesquisa bíblica recente e assumidas aqui, são perceptíveis em Hebreus.

Assim, a denominação Cristologia Angelomórfica é concordante com o que podemos aferir

da Carta aos Hebreus.

Esta tese é um temático a respeito das tradições contemporâneas que o autor teria

para expressar sua Cristologia exaltada. Nossa atenção para a aplicação desta tese se

concentrará nos textos de Hebreus 1.1-14; 2.5-18 e 7.1-10.

Para reconstruir a cosmovisão do autor e dos leitores da Epístola aos Hebreus

levamos em conta a obra de Peter L. Berger e Thomas Luckmann2 sobre a sociologia do

conhecimento. Ainda que não se consiga situar geograficamente com certeza a referida

comunidade, isso não nos impede de conhecermos o mundo da vida cotidiana dos mesmos.

Pois é possível detectar a teia de relações sociais impressas no documento. A zona da vida

cotidiana retratada em Hebreus contém muito do mundo da vida cotidiana de seus leitores e

que tais atores atuam numa realidade compartilhada na comunicação que exercitam. �A

atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a

um mundo comum que é comum a muitos homens�.3 Nossa pesquisa deve levar em conta a

interação de significados do mundo espelhado na epístola. Essa preocupação também é

expressa por Bruce J. Malina:

O conjunto de significados típicos de um dado grupo social forma os cenários que as pessoas do grupo carregam em suas cabeças e/ou corações. E é nos termos desses cenários que as pessoas interpretam sua experiência e as dos outros. Para compreender qualquer tipo de comunicação, tanto o emissor quanto o receptor da mensagem devem partilhar algum cenário social; do contrário, o resultado é confuso ou pode colocar palavras na boca do emissor; isto é, o resultado é uma mensagem distorcida.4

Além disso, as obras �A interpretação das culturas� e �Saber local� de Clifford Geertz

servem-nos para o pressuposto de que a Epístola aos Hebreus apresenta uma textura rica e

2 A construção social da realidade, p. 40. 3 Ibid., p. 40. 4 O Evangelho social de Jesus, p. 22.

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3

espessa que é configurada em diversas camadas que recebem contributos de elementos

históricos, sócio-culturais e ideológicos.5 De modo que é importante situar nosso texto em

seu ambiente da cultura dominante (mundo Mediterrâneo do I século da E.C.), da sub-

cultura a que pertence (judaísmo; talvez já como sub-cultura concorrente), da contra-cultura

diante tanto da cultura dominante como da sub-cultura ou cultura concorrente. Quanto à

cultura dominante, B. Malina esclarece:

Os significados partilhados pelo povo do primeiro século (...) do Mediterrâneo, estavam codificados em padrões de linguagem e comportamento derivados de sistemas sociais, similares, mas variados, que constituíam o Império Romano. (...). Se nós não partilhamos nada dos cenários sociais que moldaram as perspectivas dos autores bíblicos, nossa leitura da Bíblia e subseqüente teologia serão uma confusão ou nossas idéias e valores impor-se-ão aos dos autores e seus textos.6

A Epístola aos Hebreus nos apresenta um Cristianismo cuja identidade própria difere

de outras abordagens no Novo Testamento. O arcabouço cultual levítico é reinterpretado

mediante o evento Jesus Cristo. Ao usar desse expediente na carta, o autor nos apresenta sua

estratégia e ao construir a identidade da comunidade (ou identidade pretendida) a fim de

dinamizar sua existência e significado. C. Geertz define que a religião é:

(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.

Ao adotar essa definição e ao analisar a Cristologia do Cristo exaltado em Hebreus não

entendemos que a auto-compreensão do autor e da comunidade seja considerada redutora.

No caso específico de Hebreus parece-nos expressar um modelo em resposta aos modelos

apresentados pela cultura dominante ou concorrente. Mas mesmo quando constrói tal

identidade simbólica, Hebreus também reinterpreta valores, concepções e visão de mundo

herdados do judaísmo para uma configuração do Cristianismo das origens. Em outras

palavras, os conteúdos de Hebreus são desenvolvidos com base nas tradições bíblicas do

Antigo Testamento e extra-bíblicas, os documentos do período do segundo templo. Como

nossa pesquisa se dá sobre esse material, a importância de uma abordagem da História das

5 Vernon K. ROBBINS, The tapestry of early Christian discourse, p. 2. 6 Ibid., pp. 22, 28.

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4

Religiões Comparadas. Esta abordagem visa angariar um entendimento de maior clareza no

trato de textos bíblicos.7 Para essa abordagem Klaus Berger diz que:

Mediante tal estudo comparativo, o exegeta coloca um texto em relação a outros materiais e aprende a olhar o próprio texto em diferentes e novas perspectivas. Assim, o exegeta estabelece ou descobre relacionamentos que dão ao texto bíblico um certo perfil. Tal estudo comparativo pode também ser um dos meios de impedir de lidar com texto num monólogo ou eisegeticamente pelo intérprete. (...) experimentará, assim, certo estranhamento vantajoso e essencial do texto bíblico, um estranhamento que pode se tornar ocasião de um ouvir mais paciente e mais atento. Ao reconstruir o relacionamento entre o texto bíblico e textos de seu meio-ambiente, o exegeta tenta desempenhar o papel de mediador entre o passado e o presente.8

Ao aplicar a abordagem referida, não nos orientamos por motivos apologéticos (a

originalidade e superioridade do Cristianismo) e nem com a finalidade destrutiva da

historicidade, mas pelo modo dialógico mediante o qual o Cristianismo das origens foi

dando formas à sua expressão Cristológica.9 Isso deve nos levar a desenvolver estratégias

para analisar e interpretar de maneira que o texto possa exibir a teia de significados que as

suas palavras comportam.

Assim, para alcançar nosso objetivo, propomo-nos a estudar essa temática e

apresentá-la a partir da abordagem da História das Religiões Comparadas. Os textos que

servirão de comparação são os dos livros apócrifos/dêutero-canônicos, pseudepígrafos e dos

manuscritos do Mar Morto, diga-se de passagem, textos seletos. As tradições angelomórficas

aí descritas têm antecedentes nas próprias Escrituras Sagradas na figura do Anjo do Senhor.

Se bem que podemos compartilhar os resultados com um dos autores revisores desse campo

de pesquisa como Larry Hurtado, que segue a classificação tripartida �anjos�, �figuras

hipostáticas� e �patriarcas exaltados� de tais tradições, seguimos a proposta de Charles A.

Gieschen, que as considera em um feixe como angelomórficas. A base disto é que todas elas

possuem características angelomórficas em alguma medida e não há necessidade de uma

classificação em modelos. Anjos, atributos hipostáticos e patriarcas exaltados não são

categorizações, mas concebidos como angelomórficas, uns mais, outros menos, mas de todo

angelomórficas.

Cabe dizer que adotamos o termo �angelomórfico� como mais abrangente e mais

fielmente descritível que �angélico�, e que mesmo onde aparece algum patriarca

7 Vernon K. ROBBINS, The tapestry of early christian discouse, p. 9. 8 M. Eugene BORING/Klaus BERGER/Carsten COLPE. Hellenistic commentary to the New Testament, p. 19. 9 M. Eugene BORING/Klaus BERGER/Carsten COLPE. Hellenistic commentary to the New Testament, p. 21.

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transfigurado ou atributo divino, os termos anjo, angélico são entendidos como

angelomórficos. Com isto, não queremos dizer que Jesus é um anjo, mas que sua divindade é

descrita com elementos angélicos sem comprometer sua humanidade ou divindade.

Os critérios morfológicos a fim de discernir os atributos angelomórficos que

usaremos, com algumas modificações, são expressos pela vice-regência angelomórfica

adotada por Paul Deutsch,10 quais sejam: (1) Função Demiúrgica: Atribui-se funções na

Criação ao vice-regente angelomórfico. Este participa como agente de Deus na confecção do

universo, e em alguns momentos confunde-se com o próprio Criador e por isso é entendido

ser pré-existente. A atribuição criadora na Escritura, outrora, exclusiva de Deus, é agora

compartilhada com seu agente, evidenciando-se como um mistério revelado no fim dos

tempos; (2) Guardião do Portal: Cabe ao vice-regente permitir ou não a entrada dos seres

humanos e/ou celestiais à presença imediata de Deus; (3) Senhorio: O vice-regente

angelomórfico exerce governo sobre seres humanos e/ou seres angélicos. As hostes celestiais

são designadas a submeterem-se ao seu comando, bem como os seres humanos obedecerem

à sua voz como representante de Deus; (4) Juiz: Devido à sua justiça pessoal, o vice-regente é

comissionado por Deus para fazer os julgamentos sobre suas criaturas e pronunciar

sentenças. O papel de juiz fora exercido na pessoa do rei (Sl 72) e posteriormente na do sumo

sacerdote, no período pós-exílico (Zc 3.7); (5) Sacerdote: O vice-regente angelomórfico,

devido a sua proximidade de Deus, opera no âmbito do culto divino. Por sua intercessão e

mediação os seres humanos têm acesso a Deus. A atividade sacerdotal terrena prefigura a

celestial. Daí sua aparência, vestuário, gestos e falar, lembrarem a do sumo sacerdote; (6)

Forma hipostática do homem primordial: O vice-regente angelomórfico encarna o Urmensch,

isto é, a humanidade primeva idealizada no Adão pré-lapsariano, �a imagem de Deus�. Sua

principal característica é a submissão à divindade, isto é, a obediência, justamente a que

faltou em Adão conforme a narrativa bíblica, e, consequentemente, sua pureza de coração;

(7) Ontologia compósita: Este critério atende ao fato de que o vice-regente angelomórfico não

ser um anjo ou um ser humano apenas. Mas possuir tanto a natureza divina e humana, e ao

mesmo tempo ser descrito em termos angelomórficos, ou seja, de mediador glorificado. Essa

ontologia compósita pode ser adquirida ou predicada desde o início. Caso seja este, o vice-

regente é então pré-existente, caso seja aquela, alcançou a imortalidade.

10 The guardians of the gates, p. 14.

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6

Outro passo que adotamos é o da Análise Retórica a fim de apreendermos a estratégia

discursiva do autor diante da situação vivenciada por seus leitores, e também para obter o

sentido que tem a aparente desconsideração aos anjos em Hebreus 1.1-14; 2.5-18. Na

abordagem retórica utilizaremos principalmente três clássicos: Arte Retórica de Aristóteles;

Ad Herennium (anônimo) e Instituições Oratórias de Quintiliano, mediante os quais

determinaremos o gênero retórico de Hebreus (Epidíctico/Deliberativo), bem como seu

enquadramento sócio-cultural são importantes para a pesquisa para testar a hipótese de

Cristologia Angelomórfica.

Os procedimentos nesta pesquisa podem ser listados da seguinte maneira: (1)

Determinação do gênero retórico da Epístola aos Hebreus. Seu gênero retórico leva em conta

e, ao mesmo tempo, se configura a partir de (2) um quadro sócio-cultural que dá sentido ao

seu discurso bem como aos valores partilhados por seu autor e seus leitores. (3)

Considerações estruturais quanto aos seus conteúdos serão seguidas de (4) uma comparação

histórico-religiosa com textos do Judaísmo do Período Segundo Templo e (5) os resultados

conseqüentes possibilitam uma melhor compreensão da Cristologia da Epístola aos Hebreus.

O Capítulo 1 apresenta o Estado da Questão (Status Quaestionis) da Cristologia

Angelomórfica na pesquisa. Apresentamos uma resenha dos autores mais destacados e a sua

obra proeminente a respeito do tema. Com isso, pretendemos situar o leitor dentro da linha

temática em que se insere nossa pesquisa. Serão destacados aí, as contribuições e desafios

postos ao nosso trabalho.

No Capítulo 2 estudamos o entorno sócio-cultural no qual podemos situar a Carta aos

Hebreus. Para uma re-construção desse meio-ambiente social utilizamos os indícios e sinais

que percebemos no próprio texto de Hebreus. Os dados levantados são lidos a partir do que

sabemos do mundo Mediterrâneo por volta do século I. Em seguida, fazemos a Análise

Retórica da Carta aos Hebreus. Determinaremos o gênero retórico, sua estrutura, estilo etc.

Obtida a classificação do gênero retórico podemos enquadrar sua mensagem e estratégia

retórica para a resolução da questão do enfrentamento do autor quanto à angelologia da

Carta. Que, apesar de expor a primazia de Cristo em relação aos anjos, isto não significa que

o autor desconsidere as contribuições para a composição de sua Cristologia exaltada. Mesmo

que expresse a exaltação de Jesus em comparação aos anjos em Hebreus 1-2, isto não

significa que ditas tradições sejam refugadas pelo autor, mas bem ao contrário, nosso autor

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as recebe, modifica e adapta aos seus objetivos. E aquilo que parece ser a rejeição de uma

angelologia é na verdade uma re-configuração quando comparadas às tradições correntes em

seu meio ambiente judaico.

Portanto, a Análise Retórica nos possibilita perceber que o autor não tem em mente

uma polêmica a respeito de uma angelologia, que seria um risco aos conteúdos de sua

Cristologia, mas que a referência aos anjos em Hebreus 1.1-14; 2.5-18 atende a princípios

retóricos bem definidos em sua época, que não se pode entender a menção de anjos nesses

capítulos a parte de seu gênero retórico.

O Capítulo 3 se ocupa de estudar os conteúdos angelomórficos implícitos

propriamente em Hebreus 1.1-14; 2.5-18. Fazemos uma leitura da subcamada da Carta aos

Hebreus tomando em consideração as tradições angelomórficas da literatura contemporânea

do autor. Este passo é feito a partir da abordagem da História das Religiões Comparadas.

Objetivamos perscrutar as similaridades e disparidades dos motivos angelomorfismos

presentes em outros textos que nos ajudam a ver com mais intensidade a Cristologia de

Hebreus em seu próprio milieu de reflexões a respeito de mediadores celestiais. Pela ótica

retórica, este passo é entendido como o levantamento do conteúdo inventariado pelo autor

para sua Cristologia, o seja, a inventio.

O Capítulo 4 se ocupa da figura de Melquisedec que aparece em Hb 7.1-10 e sua

relação com a Cristologia de Hebreus. Começamos a apresentação situando a figura

mediadora do sumo sacerdote dentro das concepções da História das Religiões. Depois

passamos nossa atenção aos textos fundantes que apresentam Melquisedec no A.T. e que

deram origem a certa especulação de sua figura. Como expressão sui generis está a figura de

Melquisedec (Hb 7.1-10), que recebe tonalidades angelomórficas em algumas tradições. Os

Targumim, 2 Enoc 70-71 e 11QMelquisedec recebem nossa detida atenção, nas quais buscamos

as feições angelomórficas ali presentes. Essas tradições serão contempladas a partir de Gn

14.17-20; Sl 110.4 e depois de estudada a passagem de Hb 7.1-10, são com esta comparadas a

fim de nos resultarem as similaridades e disparidades. Focamos especificamente em

Melquisedec descrito em Hb 7.1-10, visto ser aí que encontramos a maior referência a sua

figura para construção do sumo sacerdócio de Jesus, enquanto que na perícope posterior (Hb

7.11-29) seu foco é no próprio Jesus, deixando Melquisedec em segundo plano, ou melhor,

como sua fundamentação. A apresentação dos textos têm o foco na figura sacerdotal de

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Melquisedec e a comparação com Melquisedec e o Jesus de Hebreus. Com isso pretendemos

mostrar que apesar de paralelas, tais reflexões possuem um fio condutor que tanto pode

aproximar, como distinguir seus resultados.

Concluímos com uma avaliação dos resultados colhidos e as contribuições para um

melhor entendimento das origens da Cristologia na literatura de Hebreus. Na realidade, o

autor, de forma deliberada, lança mão das tradições angelomórficas resultantes das reflexões

anteriores e contemporâneas suas, pode recebê-las, re-configurá-las e re-contextualizá-las

para os seus próprios propósitos. É o que pretendemos ter mostrado com o nosso estudo.

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Capítulo 1

ESTADO ATUAL DA QUESTÃO

E ao introduzir o Primogênito no mundo, diz novamente: Adorem-no todos os anjos de Deus... (Hebreus 1.7).

O tema mais importante da nossa exposição é este: temos um tal sacerdote que se assentou à direita do trono da Majestade nos céus. Ele é ministro do Santuário e da Tenda verdadeira, armada pelo Senhor, e não por homem (Hebreus 8.1-2).

Os textos bíblicos acima apresentam Jesus numa Cristologia exaltada explícita. Ele (Jesus) é

ao mesmo tempo superior aos anjos e sumo sacerdote celestial assentado à direita de Deus.

As questões subjacentes aqui são: Que elementos o Cristianismo das origens possuía para fazer tão

ousada asseveração? Ou em outros termos: Como um grupo procedente do judaísmo do segundo

templo, que confessava a unicidade de Deus, podia sustentar tranqüilamente uma figura exaltada ao

lado desse mesmo Deus a ponto de exigir a adoração dos anjos?

O autor de Hebreus não está sozinho ao confessar o Cristo exaltado em outros lugares

do Novo Testamento se apresentam muitas evidências dessa compreensão. Por exemplo, no

primeiro documento cristão neotestamentário, a 1 Tessalonicenses, o apóstolo Paulo escreve:

Pois eles mesmos contam qual acolhimento que da vossa parte tivemos, e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos: Jesus que nos livra da ira futura (1.9-10).

O texto acima mostra os conteúdos proclamados por Paulo aos cristãos de Tessalônica. Nota-

se claramente que a conversão de seus ouvintes exigia (1) o abandono de suas antigas

deidades, (2) a recepção do Deus dos judeus, confessado como �o Deus vivo e verdadeiro� e

(3) a expectativa da parousia do Cristo ressuscitado. O abandono dos ídolos e a recepção do

�Deus vivo e verdadeiro� são conteúdos tipicamente judaicos. Faziam parte da pregação

sinagogal que possuía como típica a profissão de fé em Deuteronômio 6.4, a Shemá: �Ouve

Israel, o Senhor (yhwh ), nosso Deus (´élöhêºnû), é o único Senhor (yhwh ´eHäd )�. Esses itens

distinguiam os judeus de outras expressões religiosas: A unicidade de Deus e a sua

conseqüente exclusividade. Ser judeu antes de tudo era fazer de tal profissão de fé um

compromisso pela exclusividade.

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A respeito da exclusividade religiosa dos gentios, Bart Ehrman escreveu:

(...) praticamente ninguém no mundo pagão argumentaria que se você cultuasse um deus, você não poderia também cultuar a outro: adesão exclusiva a um culto era praticamente desconhecida. (...). Para as pessoas da antiguidade, contudo, isto não fazia sentido. Todos sabiam que havia muitos deuses, de todos os tipos e descrições, de todas as funções: deuses do campo e da floresta, deuses dos rios e riachos, deuses do lar e do pátio, deuses da colheita e da riqueza, deus da cura, deuses da fertilidade, deuses da guerra, deuses do amor.11

Assim, Paulo estava em perfeita consonância com seus patrícios. O acréscimo surge no item

três: a expectativa da parousia do Cristo ressuscitado. Esse aspecto da proclamação aos

tessalonicenses é ampliado em 1 Ts 4.13-18 e aludido em várias partes da carta (cf., 2.19; 3.13;

5.24). Paulo chega mesmo a apresentar Deus e Jesus lado a lado como receptores de sua

oração em 1 Ts 3.11-12.

Um texto ainda mais revelador que esse é o de 1 Coríntios 8.4-6. Lê-se:

(...), sabemos que um ídolo nada é no mundo e não há outro Deus a não ser o Deus único. Se bem que existam aqueles que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra � e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores � para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos.

Aqui Paulo é bem mais explícito que em 1 Ts. Sua argumentação é a de que os muitos deuses

disponíveis no contexto de seus leitores nada eram. O apóstolo além de declarar a

exclusividade de Deus, eliminou praticamente a existência de qualquer outro pretenso

concorrente. Mas essa unicidade de Deus comporta a existência de Jesus Cristo, que é Senhor

sobre tudo, que faz mediação de tudo e todos. Percebe-se o paralelismo:

Deuses � um só Deus (o Pai � Origem de tudo) Senhores � um só Senhor (Jesus Cristo � Mediador de tudo)

A relação �Deus-Pai� com �Senhor Jesus Cristo� (v.6) se faz melhor percebida no texto grego:

avllV h`mi/n ei-j qeo.j o` path.r evx ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j eivj auvto,n(

kai. ei-j ku,rioj VIhsou/j Cristo.j diV ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j diV auvtou/Å

A diferença entre Deus e Jesus Cristo está basicamente no uso das preposições indicando

origem (evk) e finalidade (eivj) usadas para Deus e mediação (dia,) usada para Jesus Cristo.

11 Bart EHRMAN. The New Testament, A Historical Introduction to the Early Christian Writings. p. 22.

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Um é Pai (Criador) e o outro é Senhor (Redentor). O termo �Pai� descreve �Deus não como

Pai de Jesus Cristo, mas como o Criador. Isto é claro mediante as duas cláusulas

explicativas�.12 As palavras �Deus� e �Senhor� aparecem em Dt 10.17, neste, os dois termos

são usados como sinônimos: �Pois o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos

senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita

suborno�.

No texto de 1 Co 8.6, notamos um dado adicional, a Pré-existência do

Senhor/Mediador de todas as coisas. Portanto, Larry Hurtado está certo ao dizer que:

Paulo considerava o Jesus ressuscitado como ocupante de uma posição única de autoridade e honra celestiais e que ele escreveu do Cristo exaltado o reverenciando de modo que nos parece requerer a

conclusão de que Paulo o tratava como divino.13

Outros textos podem ser aventados a respeito da compreensão que os autores do Novo

Testamento possuíam do status exaltado de Jesus Cristo. Trata-se de textos classificados

como �Formas Pré-literárias�: Hinos e fragmentos hínicos, doxologias, aleluias, práticas de

oração sob a mediação de Jesus Cristo (Rm 1.8-10; 1 Co 1.4; 2 Co 1.3-4; Fp 1.3-5; 1 Ts 1,2-3; Fm

4); o Batismo em Cristo ou em nome do Senhor (Gl 3.27); a ordenança e prescrições para

celebrar a Ceia do Senhor (1 Coríntios 11,23-26); a Profissão de Fé em Jesus Cristo (Rm 10.9).14

Portanto, a evidência paulina, uma das mais antigas do NT, é a de que o Cristianismo

das origens bem cedo expressou sua fé em Jesus Cristo em termos divinos, sendo superado

somente por Deus, o Pai, somente, sem contudo incorrer no risco de lesa-majestade do Deus

único de Israel.

Dito isso, o estudo pelas origens da Cristologia tem encontrado respostas no campo

das figuras mediadoras dentro do Judaísmo do Período do Segundo Templo, a fim de

responder as questões levantadas no início deste capítulo. Essas figuras mediadoras

apresentam atributos emprestados de Deus aos anjos. Por conseguinte, os mediadores

exaltados em tais tradições foram pintados com os caracteres derivados da angelologia

judaica do século I da E.C.

A seguir, elecamos os principais autores dos últimos três decênios e suas

contribuições para a pesquisa de mediadores celestiais. 12 Hans CONZELMANN, 1 Corinthians, p.144. 13 One God, One Lord, p.3. 14 cf. tb. HURTADO, One God, One Lord, p.100.

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Em 1977 Alan F. Segal trouxe a lume uma obra que chamou a atenção para a questão

especulativa acerca de mediadores celestiais15. Tratou do estudo da heresia conhecida pelos

rabinos como �Dois Poderes nos Céus�. Seu trabalho explorou alguns relacionamentos entre

o Judaísmo rabínico, o misticismo da Merkavah, o Cristianismo primitivo e o Gnosticismo.16

A heresia dos �dois poderes nos céus� foi percebida como contrária ao monoteísmo estrito

das tradições rabínicas. Segal disse que além da relevância de tal estudo para a compreensão

do Judaísmo Rabínico, se acrescentaria o interesse dos historiadores cristãos em duas

importantes áreas: �(1) o desenvolvimento da Cristologia e (2) o surgimento do

Gnosticismo.�17 Com respeito à Cristologia, Segal afirma:

O caráter do debate rabínico faz possível ver a Cristologia construída mediante a exegese ao invés de títulos hipotéticos pré-cristãos. Os cristãos criam que em sua trasladação aos céus, poderia ter aplicado a Jesus um número de passagens descrevendo um anjo principal de Deus ou algum outro ser divino cuja descrição seria uma manifestação antropomórfica nas Escrituras de Israel.18

Alan F. Segal apresentou os pontos de vista dos escritos rabínicos dentro da polêmica

com os grupos hereges. Nos textos coletados por A. Segal não apareceram os nomes dos

grupos com os quais o rabinismo polemizava. Talvez isso fosse uma estratégia de não

incentivar a curiosidade ou interesse em seus próprios grupos. Seja como for, Segal percebeu

pelos próprios textos que os grupos candidatos atacados possivelmente seriam os cristãos, os

gnósticos e os místicos da Merkavah. Este último grupo foi considerado negativamente pelos

rabinos que entendiam suas práticas como perigosas.19 Desde que �as tradições

sobreviveram dentro do judaísmo só em conventículos secretos de conhecimentos esotéricos

colecionados e redigidos mais tarde em documentos do misticismo da Merkavah.�20

A hostilidade aos grupos que sustentavam a heresia dos �Dois Poderes� só aumentou

durante os séculos II a IV da Era Comum. Os textos rabínicos são reveladores nesse aspecto.21

À conclusão que A. Segal chegou foi a de que a preocupação dos rabinos, até onde se pode

datar com precisão, tradições postas por escrito, com respeito à heresia dos �dois poderes

15 Alan F. SEGAL, Two Powers in Heaven. 16 p.ix. 17 p.x. 18 p.xii. 19 p.73. 20 p.73. 21 A. SEGAL coletou textos apresentando-os em sete capítulos na segunda parte de seu livro: (II) Conflicting Appearences of God; (III) Aher, Metatron, and Angel of YHWH; (VI) A Controversy between Ishmael and Akiba; (V) Midrashic Warnings against �Two Powers�; (VI) Mishnaic Prohibitions against Unorthodox Prayer; (VII) �Many Powers in Heaven� and Miscellaneous Reports; (VIII) Divine Powers and Angels.

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nos céus�, tiveram que lidar primeiramente com os textos das Escrituras Hebraicas que

deram margem para reflexões a respeito de uma figura humana divinizada e exaltada ao

lado de Deus. Os textos mais importantes e que se tornaram alvos das investidas rabínicas

foram: (período Tanaítico) Gn 1.1; 1.26; 2.7; 4.1; 19.24; 21.20; Êx 15.3; 24.1s, 10s; Dt 22.6; 32.39;

Am 4.13; Dn 7.9s; Sl 22.2; 23.21; 37.25; 104.31; (período Amoraíta) Gn 1.1,26; 2.4; 11.7; 35.7; Dt

4.7; Js 22.22; 24.19; 2 Sm 7.23; Sl 50.1; Dn 4.7; 7.9. Esses textos foram lidos, interpretados e

reinterpretados principalmente no judaísmo do segundo templo favorecendo a crença de tal

figura humana exaltada ao lado de Deus no céu.22 Ainda, digna de nota no estudo de A.

Segal foi a reflexão desenvolvida por Filo de Alexandria: �Algumas tradições que se

tornaram parte da controvérsia dos �dois poderes� eram conhecidas por Filo, que utilizou o

termo �segundo deus� (deuteros theos) para descrever o logos�.23 Não se sabe como os fariseus

teriam reagido a essa terminologia. No entanto, parece não haver dúvidas com respeito a um

segmento do cristianismo que abertamente refletiu sobre o logos pré-existente, ou seja, a

comunidade do discípulo amado. Suas declarações Cristológicas eram claramente heréticas

e um dos temas básicos que fomentou a separação do judaísmo.24

Faz-se conveniente dizer que Alan Segal escreveu um capítulo muito importante

acerca de textos sectários judaicos.25 Nesse capítulo apresenta a literatura conhecida por

Pseudepígrafa e como seus conteúdos trabalham o tema de mediadores celestes, enfatizando

que �nem sempre é possível definir crenças sectárias como heréticas�.26 Para nós é

importante saber que tal literatura, ainda que diversa em sua apresentação, testemunhou a

insistência numa figura humana divinizada ao lado de Deus, mas quanto ao período da

formação do NT, poderia ter havido graus diversos de rejeição dessa expressão religiosa do

Cristianismo. Porém, a ampla evidência é a de que um mediador angelomórfico não era tão

rejeitada assim, e que apesar de unânimes na expressão da unicidade de Deus, os judaísmos

eram mais complacentes com a presença de um vizir exaltado ao lado de Deus.

Martin Hengel é outro autor a constar nesta pesquisa sobre Cristologia. Texto curto,

mas influente é El Hijo de Dios, El Origen de la Cristologia y la Historia de la Religion Judeo-

Helenistica. O problema a ser elucidado tem como ponto de partida Fp 2.6-8 como confissão

22 p. 260. 23 p. 261. 24 p. 262. 25 pp. 182-204. 26 p. 186.

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de fé em Jesus como �figura divina pré-existente que se faz homem e se rebaixa até padecer

uma morte própria de escravos, ilustra o enigma das origens da Cristologia paleo-cristã�.27

Hengel mostrou como o ponto de vista do protestantismo liberal europeu a respeito de Paulo

moldou negativamente a apreciação da Cristologia do Novo Testamento.28 Seu livro começa

por questionar as teses da velha Escola Histórico-Religiosa:

Bultmann, seus mestres Bousset e Heitmüller e seus seguidores vêm repetindo até o esgotamento esta tese;29 bem é verdade que sem extraí-la suficientemente das fontes antigas. E se tivessem razão? Então se teria produzido realmente e poucos anos depois da morte de Jesus, uma �aguda helenização� ou, para ser mais exato, uma paganização sincrética do Cristianismo primitivo sob a direção espiritual de Judeus Cristãos como Barnabé; e conseqüentemente na própria Palestina ou na vizinha Síria (quiçá em Damasco ou em Antioquia).30

Hengel desmontou as teses dessa escola a respeito do título cristológico �Filho de Deus�. A

partir de Paulo, procurou retroceder à Comunidade Cristã Primitiva e às raízes Judaico-

Palestinenses. Seu estudo passou pelos testemunhos do Antigo Testamento, pelos paralelos

gregos e do helenismo (mistérios, filhos de deuses que morrem e ressuscitam e o culto ao soberano;

theios aner; o mito gnóstico do redentor; o envio de um redentor ao mundo e outras concepções

análogas), pelo Judaísmo antigo abarcando uma grande gama de textos do Judaísmo do

Período do Segundo Templo (pseudepígrafos, textos de Qumran, etc.).31 O autor afirmou que

os defensores das teses esboçadas pela velha Escola Histórico-Religiosa32 eram pouco

informados acerca do meio-ambiente religioso helenístico do século I, e, portanto, fizeram

muitas asseverações anacrônicas e parcamente fundamentadas nas fontes:

Consideremos ademais que até os séculos II e III E.C., não possuímos notícias mais amplas sobre os deuses mistéricos propriamente �orientais�, nem sequer sobre seus respectivos cultos esotéricos. Em princípio os mistérios foram uma forma de religiosidade tipicamente grega, que até a época do helenismo não seria �exportada� aos territórios orientais submetidos à Grécia. As investigações mais

27 El Hijo de Dios, p.12. 28 Ibid., p.18. 29 A tese citada por Martin HENGEL é expressa por R. BULTMANN em seu livro Crer e Compreender, p.105: �Não só os mistérios pagãos conhecem a figura do Deus redentor que morre, mas principalmente a mitologia gnóstico-pagã conhece aquela figura da divindade pré-existente, e que, obedecendo à vontade do pai, veste a roupagem deste mundo e toma sobre si miséria e aflição, ódio e perseguição, a fim de abrir para os seus o caminho rumo ao mundo celestial�. 30 El Hijo de Dios, p.34. 31 p.34-80. 32 M. HENGEL escreveu: �Se por exemplo Rudolf BULTMANN postula em sua Teologia do Novo Testamento uma dependência de Paulo com respeito às �comunidades gnósticas, que se achavam organizadas como comunidades mistéricas e nas quais haviam confluído, por exemplo, a figura do redentor gnóstico e o deus mistérico Attis�, isso constitui uma construção ideológica fantástica que não ilumina � ao contrário, obscurece � o transfundo histórico-religioso das comunidades primitivas sírias�. p.46.

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recentes sobre a �religião mistérica� mais importante que existia precisamente no Oriente de fala grega � refiro-me ao culto de Ísis -, expostas por F. Dunand e L. Vidman, afirmam o que já sabíamos há muito tempo, pontuando com uma multidão de provas documentais e com a clareza necessária. 33

Martin Hengel defendeu quase que exclusivamente os antecedentes Judaicos para a

composição da Cristologia do Filho de Deus.34 Quanto à angelologia, Hengel fez observações

interessantes ao terceiro livro de Enoc, em que este é transformado no anjo Metatron e

colocado num trono junto a Deus para exercer o domínio geral sobre todos os anjos e

potestades. O texto apesar de ser provavelmente tardio, apresenta tradições bastante

antigas, que expressam paralelos conhecidos dos enunciados do Novo Testamento sobre o

Jesus exaltado.35 A contribuição de Hengel tem motivado muitos estudos dessa linha de

pesquisa a partir dos seus postulados; nosso enfoque também recai exclusivamente na

literatura do Judaísmo. Contudo, apesar de o Cristianismo das origens utilizar-se de

tradições do Judaísmo para a expressão de sua Cristologia, há de se lembrar que a partir da

interlocução judaica com os povos do mundo Mediterrâneo (praticada anteriormente) a

partir do exílio babilônico só aumentou, provendo muitos elementos para uma influência e

reflexão em suas crenças religiosas.

Outro autor importante para a pesquisa de figuras exaltadas dentro da literatura do

Judaísmo do Segundo Templo e sua pertinência ao estudo da Cristologia é Christopher

Rowland. Em seu livro Open Heaven, Rowland dedicou um espaço importante à figura de um

anjo exaltado na Apocalíptica.36 Ele escreve:

Embora não possa ser dito que seja um traço típico de todos os apocalipses em estudo, contudo, parece haver evidências de que uma angelologia tenha produzido uma figura de status considerável, cuja posição na hierarquia celestial colocou-a aparte do resto dos anjos. (...). Embora poucos detalhes existam acerca dessas angelofanias, parece que havia um ser angélico que em algum sentido era considerado comunicando a aparência de Deus mesmo e que às vezes aparecia em forma humana (Gênesis 18,2). (...). O que a maioria das discussões modernas da cristologia primitiva falha é em não incluir a extensão da influência de uma Cristologia angélica sobre a doutrina cristã primitiva. Não é apenas uma questão aí da rejeição de uma cristologia angélica como um fator importante no desenvolvimento cristológico; há uma quase total ausência de tal tópico.37

33 El Hijo de Dios, p.45. 34 Na p.93 lemos as palavras de consternação de M. HENGEL: �Os foram sempre o elemento ideológico ativo e determinante da linha teológica a seguir. No fundo foram eles quem puseram influência em toda a igreja do século I. Por desgraça, a Escola da História das Religiões prestou pouquíssima atenção a este ponto, tão decisivo�. 35 p.68. 36 Open Heaven, p.94-113. 37 Ibid., p.112.

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Rowland apresentou um estudo cuidadoso do desenvolvimento da angelologia nas

Escrituras Hebraicas, na literatura Pseudepígrafa, nos escritos de Qumran e finalmente no

Novo Testamento, enfatizando que as tradições judaicas são as fontes em que se deve

procurar pelas origens cristãs.38 Deve-se enfatizar ainda que Rowland apresentou vários

textos do Novo Testamento em que há indícios angelomórficos que contribuíram para a

Cristologia do Novo Testamento.39 Suas considerações despertaram a atenção de outros

estudiosos que passariam a dar mais atenção a esse aspecto da Cristologia.

Larry W. Hurtado é o próximo autor relevante para a pesquisa de mediadores

celestes e sua aplicação à Cristologia do Novo Testamento. Seu livro One God, One Lord se

tornou referência para esse estudo. Sua investigação recaiu sobre as evidências do culto a

Jesus Cristo nas páginas do Novo Testamento e de como esse grupo, proveniente do

Judaísmo monoteísta, se acreditou fiel às suas tradições ao exercitar tal culto.40 Em suas

palavras:

(...) o problema a ser investigado neste livro é precisamente este: Como os judeus cristãos acomodaram a veneração do Jesus exaltado ao lado de Deus, enquanto continuavam a ver a si mesmos como leais à ênfase fundamental de sua tradição ancestral sobre um Deus, e sem o benefício de quatro séculos sucessivos de discussão teológica que conduziu à Doutrina Cristã da Trindade?41

Hurtado colheu as evidências do culto a Jesus Cristo em parte nas práticas cristãs de

piedade, aludidas no Novo Testamento, e no resultado da Crítica das Formas, ou seja, �As

Formas Pré-Literárias�.42 Hurtado chama essas evidências de �seis traços da mutação�. São:

(1) práticas hínicas, (2) oração e práticas relacionadas, (3) o uso do nome de Cristo, (4) a Ceia

do Senhor, (5) Confissão de Fé em Jesus, e (6) pronunciamentos proféticos do Cristo

ressurreto.43 Aliás, a tese de Hurtado é a de que no Cristianismo das origens se fez evidente

uma mutação de tradições judaicas em torno de mediadores celestes, que foi

38 Open Heaven, p.95. 39 Christopher ROWLAND defende o uso do termo �angelomórfico�. 40 One God, One Lord, p.2. 41 One God, One Lord, p.2. 42 Philipp VIELHAUER, Historia de la Literatura Cristiana Primitiva, p.25: �A produção escrita do cristianismo primitivo teve sua configuração literária fundamentalmente em quatro gêneros: as cartas, o apocalipse, os evangelhos e os atos dos apóstolos. Porém antes destes documentos já existia uma abundante tradição cristã, que surgiu de determinadas necessidades da comunidade. Esta tradição se acunhou em formas fixas na transmissão oral de peças particulares, foi assumida em grande parte na literatura cristã primitiva e se nos há conservado assim. A estes fragmentos fixos da tradição chamamos de �Formas Pré-Literárias��. 43 One God, One Lord, p.100.

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convenientemente acomodada ao culto de Cristo.44 Tal mutação teve início com as

similaridades entre os títulos e funções dados a outros agentes divinos e a Cristo; em

segundo lugar envolveu fazer do Jesus exaltado objeto de devoção e que ao fazer isso, os

primeiros cristãos não faziam de Jesus um competidor de Deus, antes, estavam convictos de

que com tal prática glorificavam a Deus; em terceiro lugar, remodelaram a piedade

monoteísta para incluir um segundo objeto de devoção, fazendo de Jesus o principal agente

de Deus; e finalmente, que tal Cristologia não foi fruto de um estágio tardio, mas que desde o

início, a partir das tradições cristãs palestinenses (não influxos de um pano de fundo pagão),

mas que tal compreensão já existia no Cristianismo das origens.45 Sua pesquisa é feita nas

mesmas fontes de C. Rowland, citadas acima. Como a atenção de Hurtado fixa-se nas

tradições que foram explicitamente utilizadas pelos autores antigos, deixou de focar sobre os

Escritos de Qumran em busca de paralelos. O objetivo maior de Hurtado é demonstrar a

novidade expressa pelo Cristianismo das origens e da antiguidade da crença no Jesus Cristo

divino. Porém, devemos nos lembrar que as expectativas eram muito fortes em Qumran, cujo

paradigma disso pode ser achado em Melquisedec em 11QMelquisedec, como veremos.

O próximo autor que listamos aqui é William Horbury, especializado em estudos

sobre messianismo.46 Em seu livro Jewish Messianism and the Cult of Christ, Horbury se ocupou

da questão do culto devotado a Jesus Cristo como apresentado nas páginas do Novo

Testamento. Os dois temas de fundo foram: O messianismo Judaico durante o período do Segundo

Templo e o Messianismo Judaico e Cristão na época do surgimento do Cristianismo.47 O autor

questionou as explicações dadas para o surgimento do culto ao Cristo que entende apenas

que este �traz uma semelhança próxima dos cultos contemporâneos de heróis, soberanos e

divindades. (...) a visão de que o culto de Cristo era essencialmente uma manifestação

gentilizada de Cristianismo�.48 Sua intenção é mostrar que o culto a Cristo possui muitos

elementos judaicos e que se originou principalmente do Judaísmo, no mínimo da

Comunidade Judaico-Cristã. Assim, nas seguintes linhas:

44 Ibid., p.99. 45 Ibid., p.100. 46 William HORBURY possui muitos títulos relativos ao tema do �messianismo� (cf. a bibliografia da obra em questão). 47 Jewsih Messianism and the Cult of Christ, p.1. 48 Ibid., p.3.

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O reconhecimento do culto de Cristo como rei messiânico, começando no ministério de Jesus e intensificado na comunidade Cristã primitiva, modelou o enfoque a Cristo de acordo como a tradição de homenagem assim notada, e conduziu às aclamações e títulos preservados no Novo Testamento. O Cristianismo primitivo também oferece sinais de continuidade com o desenvolvimento da expectativa messiânica do antigo Judaísmo, especialmente com respeito de ligações conceituais entre espírito e messias, e aquelas narrativas de advento e reino que produziram um tipo de mito messiânico. Estes desenvolvimentos de um messianismo herdado foram encorajados por paralelos em continuidade com a comunidade Judaica por todo o período das origens Cristãs, e pela importância do culto ao governante sob o governo Grego e Romano. Dentro do Cristianismo o culto ao Cristo se desenvolveu lado a lado com os cultos dos anjos e dos santos.49

O estudo de Horbury revisitou a pesquisa a respeito do Messias no Antigo Testamento, nos

textos pseudepígrafos, em textos de Qumran e nos Padres Apostólicos. Por todo o caminho

mostrou uma riqueza de informações no âmbito da pesquisa sobre o Messias. Ainda que

Horbury se ocupe principalmente de buscar traços de um culto do governante para legitimar

suas teses. Para nós interessa principalmente alguns insights do autor a respeito da

contribuição de textos de especulação angelomórfica para a compreensão do Cristo exaltado.

Para Horbury muitas expressões de invocação e reverência �sugerem que a honra aos anjos

estava entre as práticas herdadas por Judeus e Cristãos do Judaísmo do período do segundo

templo. É sugerido que essas concepções de Deus em um grande anjo ofereceram uma

possível chave para a exaltação de Cristo manifestada no Novo Testamento e em seu culto�.50

Concordamos com ele.

Charles A. Gieschen, em seu livro Angelomorphic Christology, Antecedents and Early

Evidence, apresentou os préstimos da Angelologia Judaica para a Cristologia do Cristianismo

das origens. Esse autor mostrou a importância do estudo de mediadores celestes para o

entendimento da Cristologia das origens. Assim, a Cristologia não deveria ter como ponto de

partida primariamente as páginas do Novo Testamento, mas as tradições angelomórficas

pré-cristãs provenientes da angelologia do Judaísmo adotadas pelos cristãos a fim de

expressar sua Cristologia exaltada.51 Seu livro apresentou um estudo bastante abrangente

das figuras hipostáticas do Antigo Testamento e do Judaísmo do segundo templo, de sua

angelologia e de seres humanos angelomórficos sob o título �Antecedents�.52 A seguir

começando pelos testemunhos dos Padres Apostólicos53 retrocedeu até as Cartas Paulinas e

49 Ibid., p.4. 50 Ibid., pp.121-122. 51 Charles A. Gieschen, Angelomorphic Christology, p.5. 52 ibid., pp.51-183. 53 pp.187-346.

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encerrou ao apresentar os resultados para o estudo da Cristologia primitiva.54 Quatro foram

as implicações propostas por esse autor: (1) Que na Cristologia Primitiva foram empregadas

muitas tradições angelomórficas em sua composição; (2) a importância das tradições do Anjo

do Senhor para a Cristologia Primitiva; (3) a inter-relação das várias tradições judaicas a

respeito de mediadores celestes e (4) a contribuição da invisibilidade de Deus para o

desenvolvimento das tradições angelomórficas.55 No encerramento de sua obra, Charles A.

Gieschen expressou a opinião a respeito da importância de tal pesquisa:

As sementes que precisavam expressar uma sofisticada Cristologia foram semeadas nos textos Israelitas e Judaicos dos quais o Cristianismo Primitivo objetivou entender a Jesus como Senhor. Continuamente se demonstrou que as tradições angelomórficas dessa literatura, entre as quais as do Anjo do Senhor são fundamentais, foram algumas das mais antigas e mais significantes tradições que inspiraram a Cristologia que agora encontramos na literatura Cristã Primitiva, incluindo o Novo Testamento.56

O trabalho de C. A. Gieschen tem se mostrado enciclopédico quanto ao tema. Por se propor a

uma varredura muito ampla em termos espaciais, seu texto deixou de contemplar as

tradições acerca das narrativas da Transfiguração de Jesus. Nosso objetivo é mais modesto,

tomaremos por base a Carta aos Hebreus, e a partir de seus indícios, procuraremos as suas

possíveis tradições angelomórficas subjacentes e paralelas. Mas diga-se de passagem que, a

obra de Gieschen foi altamente motivadora para o nosso estudo.

Dentro da mesma temática, mas muito mais específico que Gieschen, está o livro

Michael and Christ: Michael Traditions and Angel Christology in Early Christianity de Darrell D.

Hannah. Como o próprio título e subtítulo indicam, sua preocupação fora com as tradições

acerca do Arcanjo Miguel. Hannah teve uma preocupação revisionista, ou seja, retornar às

pressuposições da Cristologia Angélica feitas por Wilhelm Lueken sob orientação de

Wilhelm Boussett.57 Para estes autores, o retrato judaico de Miguel e a crença no Cristo

exaltado estavam relacionados diretamente, pois ambos são apresentados como advogados

celestiais para Israel/Igreja, como sumo-sacerdotes, e como o comandantes das hostes

celestiais.58 A crítica de Hannah recaiu nas falhas metodológicas de Lueken, com respeito às

fontes, pois além de uso heterogêneo das tais, isto é, a ponto de construir um retrato

unificado de Miguel inexistente no antigo judaísmo, pouca atenção ou quase nenhuma dera 54 pp.349-350. 55 p.349. 56 Angelomorphic Christology, p.351. 57 Michael and Christ, p.12. 58 Ibid., p.2.

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às suas datas. Sem contar que não apreendeu as diferenças entre as tradições de Miguel e a

Cristologia Primitiva.59

Hannah difere de Gieschen na terminologia. Enquanto este utilizou o termo

�Cristologia Angelomórfica� de modo abrangente, aquele em contrapartida apresentou

quatro termos objetivando maior especificidade: �, Angelo-Cristologia� como um termo

abrangente para Cristologias influenciadas por idéias angelológicas; �Cristologia Angélica�

define Cristo como um ser angélico; �Cristologia Angelomórfica� refere-se unicamente aos

retratos visuais de Cristo; finalmente �Cristologia Angélico-Teofânica�, que denota a

identificação patrística de Cristo com o Anjo do Senhor no Antigo Testamento.60 A literatura

estudada por Hannah vai de 200 A.E.C. a 200 E.C. Sua obra e a C. Gieschen são sem dúvida

referências valiosas para o nosso estudo da Cristologia Angelomórfica.

Destacamos Crispin H.T. Fletcher-Louis que enviou-nos gentilmente um ensaio seu

de 43 páginas ainda não publicado. Sob o título The Revelation of the Sacral Son of Man: The

Genre, History of Religions Context and The Meaning of the Transfiguration, Fletcher-Louis se

propôs a definir o lugar histórico e o significado da Transfiguração de Jesus nos Evangelhos

Sinóticos. É prioritariamente um estudo dos traços angelomórficos da Transfiguração, mas

citamos aqui devido ao seu valor de compreender o relato da Transfiguração apresentando

Jesus, o Filho do Homem como Sumo-Sacerdote Celestial, e para o nosso estudo em

particular, de sua importância como outro texto que testifica das implicações de tal assertiva.

Seu ensaio consta de quatro partes: (1) O estado da questão, (2) O ciclo da Transfiguração em

Cesaréia de Filipe e o Filho do Homem, (3) O ciclo CPT (�The Caeserea Philippi-

Transfiguration Cycle�), o Ano Novo e Hermon, e (4) Jesus, o Verdadeiro Sumo-Sacerdote e

o Novo Culto.61 Fletcher-Louis questionou a postura representada por Howard C. Kee de

que a narrativa da Transfiguração de Jesus nos Evangelhos Sinóticos seja definida pela

crença Judaica numa identidade futura, escatológica da transformação dos justos (cf. Daniel

12,3; 1 Enoc 38,4; 39,7; 4 Esdras 7,97).62 Portanto, a cena da transfiguração de Jesus seria uma

representação proléptica da glorificação pós-ressurreição dos justos e não a descrição de

�divindade� daquele. A partir das tradições angelomórficas de Enoc (2 Enoc 22,8-10; 3 Enoc

59 Ibid. 60 Ibid.p.12. 61 Os títulos orginais são: The State of Question (p.1); The Caesarea Philippi-Transfiguration Cycle and the Son of Man (p.7); The CPT cycle, the New Year and Hermon (p.13) & Jesus the True High Priest and the New Cult (p.21). 62 The Revelation of the Sacral Son of Man, p.1.

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9-15 e das Similitudes) e de Moisés (Exagoge de Ezequiel, o Trágico, linhas 68-89; Êxodo 24,16;

4Q374 e outros), o autor apresenta as lacunas da posição sustentada por Kee.63 Disso resulta

que �a Transfiguração não é fundamentalmente proléptica em sua orientação Cristológica,

mas está preocupada com a presença real de um indivíduo que já em vida carrega alguma

coisa da identidade de Deus�.64

Na segunda parte de seu ensaio duas questões são apresentadas, que dizem respeito

à (1) identidade do Filho do Homem e seu relacionamento com Enoc e Moisés transformados

e (2) se há algo mais em termos de informação a esse respeito além daquilo que a pesquisa

tem intuído.65 Seu ensaio seguiu apresentando indícios de tradições de cunho sacerdotal a

respeito de Enoc e Moisés. Destacou a importância da identidade tríplice do Sumo-Sarcedote

possuindo traços divinos ou angélicos e de representar o povo eleito.66 Na terceira parte o

autor procurou indícios nas tradições relacionadas ao Monte Hermon (como por exemplo, a

queda dos Vigilantes em 1 Enoc) e conectou com o poder de Jesus sobre as forças

demoníacas. Outras conexões foram feitas com a Festa dos Tabernáculos, o Dia da Expiação,

o bode expiatório, a confissão de Pedro e outros detalhes da cena nos Sinóticos. Na quarta

parte, o autor fez as conexões necessárias com o texto sinótico da Transfiguração como

resposta às duas perguntas iniciais de seu ensaio. O autor entendeu que é importante ter as

tradições da transformação do Justo, bem como cabe ainda explorar outras facetas ligadas a

essas tais. Enfim, o ensaio de Fletcher-Louis é um excelente exemplo metodológico da busca

do contexto da História das Religiões que enfatiza os indícios de tradições interligadas num

texto bíblico para obter tal resultado.

Em 1992, Maxwell J. Davidson publicou Angels at Qumran, A Comparative Study of 1

Enoch 1-36, 72-18 and Sectarian Writings from Qumran. Trata-se de um estudo cuidadoso da

angelologia dos conteúdos de 1 Enoc, ou seja, do Livro dos Vigilantes (1-36), do Livro

Astronômico (72-82), do Livro dos Sonhos (83-90), da Epistola de Enoc (91-108), e da

literatura de Qumran, até então publicada e pertinente ao seu tema (1QS, CD, 1QH,

1QM,4Q400-407, 11QShirSabb e outros documentos menores). Davidson teve o cuidado de

estudar texto após texto, indicando data, gênero literário, tradições e conteúdo da literatura

63 Ibid., p.4. 64 Ibid., p.6. 65 The Revelation of the Sacral Son of Man, p.7. 66 Ibid.., p.9.

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em questão. Finalmente, apresentou a comparação de ambas e as respectivas conclusões. Seu

livro deixa uma porta aberta para futuros estudos. Como ele mesmo escreve:

Este (estudo) provoca algumas observações, ainda que breves, referentes a outras áreas para pesquisa ulterior, a fim de fornecer um quadro mais completo da angelologia do mundo Judaico e Cristão primitivos. Por exemplo, deveria se mostrar proveitoso considerar a angelologia do livro canônico de Daniel em relação à literatura Enóquica e outras relacionadas provenientes do período do Judaísmo do segundo templo. Tal estudo lançaria luz sobre a questão de se a angelologia de Daniel é mais parecida a do Antigo Testamento, ou se é mais como a dos livros Enóquicos estudados aqui. Uma similar investigação poderia ser feita em relação à literatura de Qumran. (...). Parece também valioso que os resultados deveriam ser feitos num estudo comparativo da angelologia do Novo Testamento com a literatura de Qumran e 1 Enoc. Seria o caso de comprovar quais elementos contrastantes descobertos em nossa pesquisa podem ser encontrados no Novo Testamento? E os Pais da Igreja? O seu entendimento acerca de anjos e seus papéis seriam modelados apenas pelos escritos do Novo Testamento ou poderiam ter recebido também influências de outros lugares?67

Procuramos fazer bom proveito dessas observações em nosso estudo.

A próxima autora, Martha Himmelfarb, foi muito importante para este trabalho,

ainda que não trate propriamente de Cristologia Angelomórfica e muito menos de uma

Cristologia exaltada, mas por apresentar um excelente estudo sobre a �transformação dos

justos� nos apocalipses de ascensão em seu livro Ascent to Heaven in Jewish and Christian

Apocalipses. Julgamos que a referida transformação é um fator importante na composição de

uma Cristologia Angelomórfica. Himmelfarb lidou com os seguintes textos: o Livro dos

Vigilantes, o Testamento de Levi, 2 Enoc, as Similitudes de Enoc 91, Enoc 37-71, o Apocalipse

de Sofonias, o Apocalipse de Abraão, a Ascensão de Isaías e 3 Baruc.68 Sua preocupação é

apresentar os indícios da transformação de seres humanos em anjos, ou de status angélico.

Para tanto, a autora buscou evidências nos temas principais dessa literatura, tais como

configuração do céu, paralelismo entre o templo celeste e o terrestre, a função dos

mediadores, proximidade de Deus, figuras exemplares da tradição judaica e a existência pós-

morte. Como ela mesma escreveu:

A transformação de seres humanos em anjos, implicitamente ou explicitamente, depois da morte, ou antes, não é incomum nos apocalipses (...). Em muitos dos apocalipses de ascensão, a idéia de anjos como sacerdotes celestiais atua um importante papel na descrição da transformação.69

67 Angels at Qumran, p.323. 68 Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses, p.7. 69 Ibid., p.46.

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Destaca-se ainda, a sua preocupação em apresentar toda configuração do céu em moldes de

santuário, a de apontar para a importância do sacerdócio celestial, do ritual e da santidade,

tudo isso é digno de nota.

Numa linha de pesquisa inversa a dos autores aqui apresentados está à tese doutoral

de Kevin P. Sullivan, Wrestling with Angels: A Study of the Relationship between Angels and

Humans in Late Second Temple Judaism and Christianity.70 Sullivan se propôs a estudar o

relacionamento entre anjos e seres humanos. Para isso o autor examinou: a similaridade das

aparências entre seres humanos e anjos e vice-versa, o contato entre ambos, a hospitalidade a

anjos por seres humanos (e a possibilidade de anjos partilharem a refeição com seres

humanos), a existência híbrida do intercurso anjos-mulheres de Gênesis 6 com suas

respectivas interpretações e concluiu com as implicações resultantes de seu estudo para a

pesquisa corrente.71As duas principais contribuições que Sullivan procurou fazer, foram: (1)

aprofundar o conhecimento das idéias a respeito de anjos, e (2) apresentar as distinções entre

anjos e seres humanos no período estudado.72 Seu estudo, ainda que não seja sobre

Cristologia propriamente, apresentou resultados que percebemos não se sustentarem para o

nosso estudo ao tratar de uma série de justos que apresentam traços angelomórficos. Sua

atenção aos indícios, que acreditou serem os pontos fracos de uma abordagem

angelomórfica, foi muito econômica. Discutiremos sua conclusão a respeito de

11QMelquisedec em nosso capítulo 4.

Após a esta resenha dos autores, podemos esboçar algumas contribuições resultantes

para nossa pesquisa.

Em primeiro lugar, percebemos que o tema da Cristologia Angelomórfica, ainda que

não com este título, estava presente em considerações muito antigas como as de Justino, o

mártir, como mostrou C. A. Gieschen em vários lugares de sua obra.

Em segundo lugar, a expectativa de uma existência angelomórfica é atestada em uma

literatura bastante diversificada no Judaísmo do Período do 2º Templo. E que os autores do

NT se encontravam dentro de uma tradição bem fixada, e que havia certa familiaridade com

70 Tese apresentada na Faculdade de Teologia da Universidade de Oxford para obtenção do Grau de Doutor em Filosofia (PhD.), 2002. Seu estudo deve ser em breve publicado pela E.J. Brill em sua série Arbeiten zur Geschichte des Antiken Judentums und des Urchristentums. 71 Ibid., p.i. 72 Wrestling with Angels, p.i.

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o assunto tanto na Palestina como na Diáspora, com paralelos no meio ambiente cultural do

mundo Mediterrâneo do século I, sendo que, sua base estava nas próprias Escrituras de

Israel, como pretende mostrar o autor da Carta aos Hebreus.

Em terceiro lugar, a Cristologia Angelomórfica de escritos na linha de Hebreus são

repletas da expressão de anelos de uma nova humanidade, encontrando paralelos na

literatura de Qumran e no Judaísmo posterior, como por exemplo no Enoc transformado no

anjo Metatron no 3 Enoc. E que a figura do sumo sacerdote e do Templo foram fontes de

muito mais interlocução para o Cristianismo primitivo do que se tem estado em voga nos

estudos bíblicos. A releitura de Fletcher-Louis e Martha Himmelfarb tem sido bem sucedida

nesse campo, despertando uma maior atenção à temática.

Do que resulta principalmente que precisamos repensar os conceitos a respeito da

convicção monoteísta no próprio Judaísmo. Isto é, houve épocas em que seu monoteísmo

permitiu a expressão de um mediador glorificado em certa medida nos moldes de Jesus

Cristo, e que forneceu tradições para ter lugar a sua própria cosmovisão.

Dito isso, ocupar-nos-emos, inicialmente de estudar o meio ambiente sócio cultural

perceptível na Carta aos Hebreus, com o qual se dá sua interlocução, bem como a estratégia

retórica usada pelo autor a fim de situarmos o mais concretamente possível a comunidade de

Hebreus. É o que faremos a seguir.

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Capítulo 2

ANÁLISE SÓCIO-RETÓRICA DA CARTA AOS HEBREUS

Neste capítulo nos ocupamos de compreender o pano de fundo sócio-cultural dos leitores e

do autor de Hebreus e de sua estratégia retórica para alcançar seus objetivos. 73 Pretendemos

mostrar ao leitor que o autor ao mesmo tempo em que revela suas convicções cristológicas,

constrói uma eclesiologia adequada resultante. Feito isto, teremos um quadro referencial

para a importância da Cristologia de Hebreus, e ao qual precisaremos retornar na conclusão

desta tese.

Começamos com uma pergunta: A comparação de Jesus e os anjos em Hebreus

seria a resposta contra uma �Angelo-Cristologia� sustentada pelos membros

(ou uma parcela deles) da comunidade? Loren T. Stuckenbruck74 listou as cinco hipóteses

levantadas por uma parte da pesquisa a respeito de uma possível especulação angelológica

no seio da comunidade dos Hebreus:

() a comunidade endereçada estava de algum modo atraída por uma veneração de anjos; () a comunidade endereçada percebia a Cristo como um intermediário a quem eles entendem como uma figura Angélica; () a comunidade estava interessada em culto com os anjos; () o autor e/ou leitores eram conscientes de tradições angelológicas judaicas contemporâneas, e o autor tenta desencorajar seus leitores de mostrar um interesse em tais idéias; e () a inferioridade dos anjos ao Cristo é um realce retórico ou literário mediante o qual o autor argumenta pela superioridade da Nova Aliança sobre a Antiga.

As quatro primeiras respostas pressupõem uma polêmica angelológica que preocupava o

autor de Hebreus. Entendemos que quaisquer polêmicas representadas por essas quatro

alternativas não fundamentam o fato de o autor fazer a comparação entre Jesus e os anjos; e

que a alternativa (), isto é, uma estratégia retórica é a razão da referência a anjos em

Hebreus . Com efeito, trata-se de um recurso retórico que deve ser

contemplado na configuração global do gênero do discurso utilizado pelo autor. Em sua

configuração global, a Carta aos Hebreus é destituída de tonalidades polêmicas; a referência

à superioridade de Jesus aos anjos é antes axiomática, bem como a sua exaltação à direita de

73 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 11 chama nossa atenção para não se fazer uma mera �história das idéias� no estudo da Carta aos Hebreus. 74 Angel veneration & Christology, p.124.

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Deus Pai. Portanto, não se tratava de uma renúncia à alguma tradição angelológica que

prejudicaria a realidade exaltada do Filho de Deus.

Por um lado, nossa proposição é que a profissão de fé no Jesus Cristo exaltado à mão

direita de Deus era um valor estabelecido, não questionado. Por outro lado, a confissão de

que o Cristo foi crucificado, isto sim, causava um embaraço aos leitores em seu ambiente

social. Somava-se às vicissitudes enfrentadas a conseqüente �tentação� (: pepeira,smenoj)

de abandonar a �caminhada� da fé. O autor se defrontou com o desafio de legitimar a morte

de Jesus mediante o recurso interpretativo da Cristologia Sumo Sacerdotal expressa na carta.

Mas sua escolha relaciona-se à temática da �caminhada� para a Cidade do Deus vivo, a

Jerusalém celeste (Hb ), resposta a situação vivida por seus leitores. Por conta disso, a

estratégia de nosso autor era a proposta e ao mesmo tempo o espelho da realidade da

comunidade dos leitores. Espelho porque refletia a sociedade com suas instituições, valores,

preconceitos em que estava inserida. Ainda que a linguagem usada pelo autor seja tirada das

tradições de Israel, autor e destinatários reconheciam a sua realidade cotidiana no Mundo

Mediterrâneo dos fins do I séc. E.C., e que desse espelho, o autor apresentou a alternativa

para os leitores superarem as contradições do momento, contemplando uma realidade ao

mesmo tempo presente e futura, a cidadania celeste.

Outrossim, procuramos desvelar a função dos anjos em Hebreus . A

resposta deve se tornar evidente dentro da configuração retórica e estratégica do autor. Para

tanto, atentamos à estrutura do gênero discursivo da Carta ao Hebreu e à sua função

retórica.

Intertextura sócio-cultural

Neste item exploramos outras possibilidades do texto da Carta aos Hebreus. Adotamos as

definições dadas por Vernon K. Robbins:

Intertextura é uma representação de um texto, com referência a, e uso de fenômenos no �mundo� externo do texto que está sendo interpretado. Em outras palavras, a intertextura de um texto é a interação da linguagem no texto com o material �externo� e �objetos� físicos, eventos históricos, textos, costumes, valores, papéis, instituições e sistemas. O texto �configura� fenômenos externos ao texto numa linguagem particular do meio ambiente. Este meio ambiente de linguagem reclama, implicitamente ou explicitamente, seja para �representar� acuradamente fenômenos externos ou para ser uma aventura, implicitamente ou explicitamente, ao �criar� fenômenos que se relacionam de algum modo provocativo aos fenômenos externos ao texto. Uma das metas principais da análise intertextual é verificar a natureza e resultado do processo de configuração e re-configuração dos fenômenos no mundo externo ao texto. Algumas vezes o texto imita outro texto, mas coloca pessoas diferentes nele. Algumas vezes reestrutura uma tradição bem conhecida de modo que encerra diferentemente ou tem muitas implicações diferentes

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para a crença e ação. Outras vezes inverte uma tradição, convertendo-se de uma prévia situação retórica para criar uma nova e distinta tradição dramática. Em cada instância, o resultado é um texto com uma rica configuração de textos, culturas e fenômenos histórico-sociais.75

Tem-se por princípio que um texto interage com seus leitores em seu mundo interno e

externo. Em outras palavras, o texto, especificamente o de Hebreus, interagia com os leitores

tendo como pano de fundo sua experiência religiosa e seu cotidiano. O autor lançou mão de

tradições normativas, no caso as Escrituras Judaicas, reinterpretou essas tradições frente ao

cotidiano dos leitores, transparecendo instituições implícitas e análogas às tradições do

conteúdo do texto. Propôs uma interpretação com base numa releitura das tradições das

Escrituras, levando em conta a experiência religiosa dos leitores e ao mesmo tempo

apresentando uma alternativa de contra-cultura ao seu meio ambiente vital. A própria Carta

aos Hebreus apresenta os indícios do tecido cultural vivenciado pelos leitores. Mas se faz

necessário um passo a mais, deslindar as possibilidades percebidas pelo autor e sua proposta

implícita no texto.

Destarte, levamos em conta os princípios elementares para a comunicação: emissor

(autor), mensagem (Carta aos Hebreus) e receptor (leitores/ouvintes). Emissor, mensagem e

receptores estão inseridos no mundo Mediterrâneo do I séc. E.C., compartilhavam essa

realidade, e a cultura produzida por esse mundo formava a moldura do seu cotidiano.

Assim, a Carta aos Hebreus foi configurada dentro dos moldes que regiam a expressão

discursiva desse ambiente e tempo. Entretanto, não era um instrumento servil, mas sofreu

alterações criativas de seu autor a fim de adaptar à sua própria cosmovisão. Comunicavam-

se dentro de um mundo representado: a construção comum da realidade mediante a mútua

experiência religiosa. Essa construção social da realidade levava em conta tanto as tradições

que formavam e legitimavam sua experiência religiosa, bem como o seu meio-ambiente

sócio-cultural pleno de desafios e coerções sobre seus leitores.

Portanto, o texto apresenta uma proposta muito mais ampla do que uma leitura de

superfície pode mostrar. Explicamos. É necessário procurar indícios e sinais de uma proposta

implícita nos procedimentos do autor, para se descortinar um algo mais, uma reserva de

sentido perceptível aos leitores, mas não totalmente evidente ao leitor de hoje. Esse conteúdo

implícito é a arena da pesquisa da intertextura sócio-cultural.

75Exploring the texture of texts, p. 40.

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A intertextura sócio-cultural contempla duas modalidades: () Referência ou Alusão e

() Eco.76 �Uma Referência é uma palavra ou frase que aponta para um personagem ou uma

tradição conhecida do povo na base da tradição.�77 Quanto a Alusão, esta �é uma declaração

que pressupõe uma tradição que existe em forma textual, mas o texto que está sendo

interpretado não está tentando �recitar� o texto�.78 Por sua vez o ��Eco� é uma palavra ou frase

que evoca, ou potencialmente evoca, um conceito de tradição cultural�.79 Para ser mais claro,

�o eco não contém seja uma palavra ou frase que é �indiscutivelmente� de uma única tradição

cultural. O eco é sutil e indireto�.80 Um bom exemplo disso foi apresentado por Abraham J.

Malherbe em seus estudos a respeito de Paulo. Neles, A. J. Malherbe advogou o

procedimento da necessidade de se estar atento ao milieu filosófico do mundo Mediterrâneo

do I séc. Fundamentou sua postura da seguinte maneira:

Platônicos, Peripatéticos, Cínicos, Estóicos, Epicureus e Pitagóricos (...) objetivavam uma reforma moral. Eles partilhavam não somente essa meta, mas muito da substância de sua instrução moral e muitos dos seus conselhos e métodos... Isto tem contribuído para uma visão de sincretismo koinê filosófico em que o Estoicismo era maior de idade importância. Tal compreensão parece ser inadequada. (...). O sincretismo não é mais considerado como um processo de homogeneização em que elementos contribuintes perdem sua individualidade. Pelo contrário, o compromisso pode muito bem conduzir a uma acentuação da unicidade. Isto era claramente tanto quanto as escolas filosóficas discutiam uma com a outra e os membros da mesma escola debatiam suas próprias doutrinas.81

É lugar comum comparar a Carta aos Hebreus aos escritos de Filo. A linguagem, os

motivos e o enfoque platônico eram comuns aos dois autores. Mas a tendência predominante

prioriza os elementos judaicos aparentes no texto. Nem todos pensam na possibilidade de o

autor também utilizar-se de elementos de uma cosmovisão greco-romana para os seus

interesses. Contudo, o autor de Hebreus tanto usou (visivelmente) elementos da tradição

judaica, articulou uma resposta para a esperança messiânica do ponto de vista sumo

sacerdotal, mas também deu uma resposta (latente) ao imaginário coletivo greco-romano,

ambos confluindo na sua expressão de Cristianismo como resposta superior às duas visões.

76 Vernon K. ROBBINS, Exploring the texture of text, p. 58. 77 Ibid., p. 58. 78 Ibid., p. 58. 79 Ibid., p. 60. 80 Ibid., p. 60. 81 Paul and the popular philosophers, p. 5.

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Situação retórica

Os leitores de Hebreus eram habitantes da cidade, em cujo milieu se dava a sua dialética

existencial. Daí apresentamos, em linhas gerais, uma descrição da Cidade-Estado que

formava o meio ambiente social do qual podemos tirar proveito para compreender a Carta

aos Hebreus. Posteriormente apresentaremos o perfil do auditório e do autor a partir dos

conteúdos do escrito. Neste procuraremos o Sitz im Leben dos leitores a fim de definir sua

estratégia retórica adequada a tal situação.

A Cidade no mundo Mediterrâneo do 1º século

A Cidade era de importância fundamental para o mundo Mediterrâneo do I séc. E.C. Uma

verdadeira existência só era possível dentro do Estado que recebia a máxima prioridade na

vida do cidadão. Visto que o homem é um animal político, destinado a viver em sociedade, a

Cidade, então, faz parte da sua natureza (Aristóteles, A Política, ). Pois,

a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos sua debilidade do que certo instinto de sociabilidade em todos inato (...), o homem não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum (Cícero, Da República, 1.25).

O aspecto físico da Cidade

Em termos materiais, um povoamento para ser considerado uma cidade precisava de

edificações que atendessem certas necessidades básicas da vida cidadã. A Cidade-Estado,

antes de tudo possuía um espaço físico em que se materializava o espaço público.

Constituíam este espaço urbano os templos, o mercado (em que poderia funcionar a

assembléia), o teatro, o estádio, o porto (quando cidade costeira) e a acrópole, muitas vezes

amuralhada.82 Localizada, idealmente, em terreno de difícil acesso ao inimigo, ao mesmo

tempo em que deveria ser bem localizada em terra e diante do mar (Aristóteles, A Política,

). As muralhas eram um fator importante, seja de embelezamento, seja de defesa, visto

que �não circundar a cidade de muralhas é criar um país fácil de ser invadido� (Aristóteles,

A Política, ).

Os templos deviam ser majestosos e se situarem no mesmo lugar em que se

realizavam os banquetes, salvo quando houvesse alguma palavra oracular para outra

82 Norberto Luiz GUARINELLO, Cidades-Estado na antiguidade clássica, in: J. PINSKY/C. B. PINSKY, História da cidadania, p. 34.

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localização (Aristóteles, A Política, ). Aí também deveria se situar a praça pública,

desembaraçada de todo tipo de comércio e prática de exercícios. Para o comércio, o mercado

era o lugar designado (Aristóteles, A Política, ).

A Cidade tornava-se então, além de uma necessidade, a expressão vital da

humanidade a ponto de ser considerada como ocupando o primeiro lugar numa escala de

três: Cidade, família, indivíduo (Aristóteles, A Política, ). Pois �o individuo, proprietário

autônomo de seus meios de subsistência e de riqueza, só existia e era possível no quadro de

uma comunidade concreta � que possuía, por assim dizer, de modo virtual o território

agrícola.�83 Para os gregos, a Cidade era um estado soberano composto de cidade, campo e

alguns aldeamentos das circunvizinhanças.84 Já sob a dominação romana, a extensão da

Cidade se ampliava abarcando o império. A Cidade era o Mundo.

A coletividade

O povo (de/moj) era a coletividade de todos os cidadãos. Devido a isso, os cidadãos eram

chamados à responsabilidade de participar �em comum de tudo ou de nada, de certas coisas

e não de outras. Participar de nada é impossível sem dúvida; porque a sociedade política é

uma espécie de comunidade� (Aristóteles A Política, ). A esta comunidade se dava o

nome de assembléia (evkklhsi,a), que se reunia a fim de registrar sua opinião às propostas do

conselho (boulh,), cujos membros eram provenientes das antigas famílias.85 Os chefes destas

famílias eram chamados de pais (pate,rej) e foram inicialmente os ancestrais das aristocracias,

pois miticamente fundada por um herói, a cidade tinha seu passado rememorado no

presente pelos cultos devidos. Destarte, Rômulo, o benfeitor de Roma, �tem algo de divino

pelo seu engenho e pelo seu berço� (Cícero, Da República, ).

Ainda quanto à assembléia, não se tratava da reunião de quaisquer homens, mas da

que tinha seu fundamento no seu consentimento �jurídico e na utilidade comum� (Cícero,

Da República, ). Os cidadãos eram aqueles que tinham os seus nomes inscritos nos

registros públicos; filhos de pais cidadãos, filhos legítimos:

E, depois, no terceiro ano, sob o arcontado de Antídoto, por uma proposição de Péricles motivada pela enormidade de cidadãos, decretou-se que participariam da cidadania apenas os que fossem filhos de

83 Noberto L. GUARINELLO, Cidades-Estado na antiguidade clássica, p. 33. 84 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p. 25. 85 John E. STAMBAUGH, Cities, in: ABD, vol. I, p. 1044.

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ambos os pais cidadãos (e;gnwsan mh. mete,cein th/j po,lewj o]j a]n mh. ex amfoi/n aspoi/n h=| gegonw,j, Aristóteles A Constituição de Atenas, 26.4).

Ser cidadão era motivo de orgulho e plena realização da existência humana. Por isso

faltar das assembléias ou atrasar-se incorreria, muitas vezes, em multa (Aristóteles. A

Constituição de Atenas, ). Entretanto, uma ressalva deve ser feita quanto à assembléia

romana no século I E.C. Não eram contados os votos na assembléia dos cidadãos individuais,

mas das tribos. Cada tribo manifesta detinha um voto que exprimia a opinião de sua maioria

interna.86 O historiador Políbios mesmo quando teceu elogios desbragados à sua constituição

que, do seu ponto de vista, era a fusão das três fontes de autoridade política: autocracia,

aristocracia e democracia, ilustrou que mesmo um romano se confundiria ao descrever o

modelo de governo (em vigência no período imperial, fazendo vistas grossas à defasagem da

democracia grega), disse que a autoridade política no todo possuía características dos três

modelos.87 Em sua obra Da República, Cícero apresentou um conclave de amigos para

filosofar, temos aí uma descrição da engrenagem política de Roma e seu funcionamento.88

O governo romano suscitou um Imperador legitimado por um grupo de notáveis, que

eram eleitos e dependiam em muita coisa do voto popular. Esse modelo decorria de uma

sociedade que era essencialmente estratificada, que por um lado lhe dava sustentação e por

outro dele se nutria. Uma Sociedade de classes em que cada pessoa deveria saber qual era o

seu lugar e conseqüentemente pautar o seu cotidiano. No entanto, havia algumas

possibilidades das pessoas ascender socialmente, o que sustentava a vigência do patronato e

clientelismo.

Agora, devemos nos referir ao exercício da �Retórica� como expressão sublime da

cidadania. Com efeito, principalmente devido à necessidade de deliberar nas assembléias, o

cidadão era treinado na arte retórica a fim de poder melhor se expressar em público, bem

como persuadir os outros a respeito de sua opinião. Herdada dos gregos, os cidadãos do

império romano (ainda que na maioria não fosse praticante) eram fiéis entusiastas da arte de

falar. Os que não se arvoraram em oradores, por sua vez, a apreciavam. Desde os gregos,

foram se desenvolvendo técnicas e recursos para promover um bom discurso. Ainda que

nem todos se sentissem aptos a utilizá-la, o que conseqüentemente deixava o espaço somente 86 André AYMARD/Jeannine AYBOYER, Roma e seu império, p. 168. 87 História. 88 Cícero procura seus personagens na história recente de Roma: Cipião, Q. Tuberão, L. Fúrio, P. Rutílio, Filão, Lélio, Espúrio Múmio, C. Fânio, Quinto Cévola e M. Manílio.

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para os menos tímidos e ousados fizessem suas proposições, levando as assembléias a

oscilarem de uma opinião para outra, conforme as habilidades dos oradores.

Seja como for, o fato é que toda a expressão oral e literária tinha como linhas

orientadoras a retórica. Os livros de história, de biografias, de poesia, de sátira, de odes, de

dramas, de comédias, tratados e cartas, para referir somente algumas possibilidades, eram

norteados pela arte retórica. O cidadão pleno (no mínimo rico), deveria ser treinado para

falar ao público. Para isto, o treinamento do futuro cidadão começava aos sete anos de idade

(Quintiliano, Instituciones Oratórias, ); aprendia-se gramática e outras disciplinas normais

à educação; mas um traço proposital era que o estudante muito cedo familiarizava com as

tradições e mitologias gregas e romanas, principalmente com Homero. Exercícios com as

figuras de retórica eram desde cedo praticados, bem como apreciar os bons oradores. Neste

viés, os futuros oradores eram estimulados a imitar estilos, a elaborar panegíricos, a escrever

cartas, a honrar e a censurar. E de fato, mesmo o louvor e a censura faziam parte das aulas.89

Já numa fase mais adiantada, no que corresponderia ao nosso ensino superior, eram

ministradas aulas de retórica pura. Nas aulas, os estudantes aprendiam pela teoria, imitação

e prática (Ad Herennium, ).90

A cultura do mundo mediterrâneo possuía uma noção muito forte da expressão

verbal, tratava-se de um verdadeiro poder em ação:

Pois não é à persuasão, mas ao êxtase que a natureza sublime conduz os ouvintes. Seguramente por toda parte, acompanhado do choque, o maravilhoso sempre supera aquele que visa a persuadir e a agradar, já que o ser persuadido, na maior parte do tempo depende de nós, enquanto aquilo de que falamos aqui, trazendo um domínio e uma força irresistíveis, coloca-se bem acima do ouvinte (Longino, Do Sublime, 2.4)

2.2.1.3.Cargos públicos

Dava-se ao cidadão o poder de ascender aos cargos públicos e de desfrutar outros

privilégios. A grande aspiração do cidadão era ser nomeado para um cargo público. Os

cidadãos detentores de tais cargos eram responsáveis por prestar serviços ao povo, eram os

leitourgoi, benfeitores da comunidade (Aristóteles, A Constituição de Atenas, ). Mas para

exercer bem qualquer função pública, idealmente, o cidadão devia saber obedecer para

89 �Em grande medida, é lícito aplicar uma repreensão moderada, porém firme, a fim de parecermos severos e decididos e evitar os ultrajes. Devemos também mostrar que a própria aspereza da censura atende ao interesse do censurado� (Cícero, Dos Deveres, 1.137). 90 Mais tarde Santo Agostinho expressaria sua aprovação daqueles autodidatas que imitam os pregadores cristãos a fim de aprender falar às comunidades (Agostinho, Princípios Fundamentais da Arte Oratória 3.5).

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mandar alternativamente, pois a liberdade dos cidadãos dependia disso (Aristóteles, A

Política, 3.7.13; 7.1.6).

Aqui também os romanos fizeram uma alteração quanto à designação dos cargos

públicos. Estes foram denominados de magistraturas. O termo magistratus designava

concomitantemente a magistratura e o homem a que se lhe outorgou; magister era o �mestre�

oposto ao minister, o servidor (minister = leitou,rgoj).91 Detentor de um poder autônomo,

mesmo independente da comunidade e acima dela, era �a encarnação do Estado no seu

representante e no utilizador de sua autoridade.�92

Chamado de potestas, os magistrados eram os intermediários entre a cidade e os

deuses executando sacrifícios, interpretação de presságios, consagração de santuários,

organizando celebrações festivas e o privilégio de presidi-las.93 A este poder religioso se

anexou o poder de chefe de exército e o direito de convocar o povo e o senado.94 E nesse

mister dispensava editos à justiça, castigava e aplicava penas severas.95

A deferência à sua posição se revelava na disposição dos cidadãos em pé diante dele,

que sentado durante as cerimônias se vestia com uma toga distinta e ornamentada, o que

revela que Roma fez pouco caso da igualdade dos cidadãos.96 O magistrado tornara-se assim

a caricatura da cidadania:

O poder e o procedimento monárquicos do magistrado são, de direito como de fato, muito mais incontestáveis fora do que no interior de Roma e do território propriamente romano.(...). O magistrado representa Roma, dispõe de força material confiada pela cidade, o que aumenta a força moral encarnada em sua pessoa; não seria humano se nunca cedesse à tentação de abusar dessa situação. Os próprios romanos reconheciam que o governador, isto é, o magistrado, era um rei na sua província; (...) esse fato não contribuiu para a felicidade das províncias nem de Roma.97

2.2.1.4. O Princeps

Dentre os cidadãos, estava o princips, o primeiro cidadão, o Imperador, que segundo Políbios

fazia a parte do monarca na simbiose de governos de Roma (Políbios, História, 6.11). Do

tempo de Otaviano em diante, o princips foi chamado de Imperator, título honorífico dado

pelo exército. O título unido ao nome acrescentado de Caio Júlio César, passou a ser um

91 A. AYMARD/J. AYBOYER, Roma e seu império, p. 155. 92 Ibid., p. 155. 93 Ibid., p. 157. 94 Ibid., p. 157. 95 Ibid., p. 157. 96 Ibid., p. 169. 97 Ibid., p. 160.

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nome.98 Por ser �filho� adotivo de Júlio César, que fora divinizado por ocasião de sua morte,

Otaviano recebeu o nome habitual de Imperator Caesar Divi filius, acrescido posteriormente

pelo senado do título �Augusto�, antes aplicado a certos deuses para �assinalar que eram

�aumentadores�, criadores de algo diferente e melhor � a mesma idéia que está na raiz da

crença romana da essência religiosa do gênio individual... restaurador e �aumentador do

Estado.�� 99 A mais alta honra atribuída a um homem e como o homem investido da mais

elevada autoridade.

Na mentalidade de Aristóteles isso era impossível, humanamente falando:

Se um cidadão tem tal superioridade de mérito, ou se vários cidadãos, não muito numerosos, no entanto, para formarem por si sós uma cidade são de tal modo superiores que não se possa comparar nem o mérito nem a influência de tal ou tais cidadãos ao mérito ou à influência política dos demais, não será mais preciso considerá-los como fazendo parte da cidade. Colocá-los num pé de igualdade, a eles que sobressaem aos outros pelo seu próprio mérito e influência política, seria prejudicá-los. Parece, com efeito, que um ser dessa espécie deve ser considerado como um deus entre os homens. Por outro lado, já se não poderá submetê-lo à autoridade. Seria o mesmo querer mandar em Júpiter e com ele repartir o poder (A Política, 3.8.1,7).

Otaviano este tentou minorar a impressão de seu autoritarismo consultando o senado e

deixando-se eleger anualmente pela assembléia.100

O Soberano em Roma era o Senhor (dominus, ku,rioj) e Patrono e ao mesmo tempo o

Pai da Pátria (Suetônio, A vida de Otávio César Augusto). Decorria disto que �o que agrada ao

príncipe tem força de lei.�101 Nessa linguagem, o imperador como Senhor-Patrão possuía

todo o império como clientela, cabia a ele, portanto, o que antes de tudo era tarefa de todos

os cidadãos, a Salvação do comunidade (peri. th/j swthri,ajAristóteles, A Política,3.2.2; A

Constituição de Atenas, 29.2 ).

A morte do imperador era a sua apoteose. Suetônio não economizou as palavras ao

listar os sinais autenticadores da proximidade da partida de Otaviano ao céu:

Sua apoteose foi anunciada pelos prodígios mais evidentes. Ao ocupar-se do encerramento de uma festa lustral, no Campo de Marte, perante grande afluência popular, uma águia voou várias vezes em seu derredor e, dirigindo-se em seguida ao templo vizinho, pousou em cima da primeira letra da gravação do nome Agripa. Impressionado com este espetáculo, Augusto encarregou seu colega Tibério de pronunciar os votos costumeiros para o lustro futuro. (...). Na mesma ocasião caiu um raio sobre a sua estátua, apagando a primeira letra do seu nome. O oráculo respondeu que ele não viveria mais do que cem dias, número marcado pela letra C, e que seria colocado na categoria dos deuses, porque �aesar�,

98 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 164. 99 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 164. 165. 100 Ibid., p. 165. 101 Pedro P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, p. 65.

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que era o resto do nome de �Caesar�, significa �deus� em língua etrusca. (...). Morreu no mesmo quarto em que morrera seu pai, Otávio... (...). Fizeram-lhe o elogio fúnebre em dois lugares: diante do templo do divino Júlio, por Tibério, e diante dos antigos Rostros, por Druso, filho de Tibério. (...). Ali um antigo pretor jurou que vira a imagem de Augusto incinerada subir ao céu (A vida de Otaviano Augusto).

Verdade era que imperadores como Tibério César, com na morte, fizeram mais pelo povo do

que em vida, a ponto de sua maior contribuição para o povo foi a de ter morrido. Muitos

fizeram orações à Mãe Terra e aos espíritos para que não recebessem nem a sua sombra de

Tibério; outros queriam trucidar seu cadáver e queimá-lo no anfiteatro (Suetônio, A Vida de

Tibério César). Entretanto, a rigor, a morte do soberano de Roma implicava em benefícios, seja

em dinheiro ou não, aos cidadãos, à cidade, aos soldados, aos escravos, aos libertos e mesmo

aos prisioneiros. Estes recebiam o perdão se estavam agendados para serem supliciados no

dia da morte do imperador.

O direito à cidadania

Grosso modo, a sociedade romana imperial era classificada em patrícios, plebeus, libertos e

escravos. Os das duas primeiras eram os cidadãos romanos, os das terceira poderiam vir a ser,

ocasionado pelo senhor; a última não. Os patrícios (�aqueles com pais�, também chamados

de gentes) provinham das antigas famílias ricas, proprietárias de terra e privilegiadas, sem

antepassados que foram escravos.102 Na Roma antiga somente os patrícios podiam ter os

cargos de cônsul, senador e sacerdote; eram os cidadãos romanos por excelência, os de pleno

direito (optimo iure).103 Os plebeus por sua vez eram os nascidos livres, protegidos ou

endividados e explorados pelos patrícios que �governavam a cidade (Roma) principalmente

em benefício próprio, aplicando as leis conforme seus interesses pessoais e procurando

reduzir à servidão plebeus camponeses que não conseguiam pagar suas dívidas�.104 Após

muitas lutas contra os patrícios e ameaças de abandonar a cidade, os plebeus conseguiram o

perdão das dívidas, a libertação dos outros escravizados e paulatinamente o direito de acesso

a todos os cargos do estado. No século I, um bom número de plebeus ocupavam os quadros

políticos, apesar de a grande maioria continuar de fora.105 Forma-se assim uma aristocracia

102 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 34. 103 Claude NICOLET, O cidadão e o político, in: Andréa GIARDINA(org.), O homem romano, p. 22. 104 P. P. FUNARI, Grécia e Roma, p. 83. 105 Devemos lembrar que para ocupar cargos públicos, os cidadãos precisavam ser ricos, pois as ocupações públicas não eram remuneradas. Mas uma vez lá, muitos privilégios poderiam ser alcançados e conseqüentemente outros rendimentos.

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mista (plebéia-patrícia). Mas isso não exprime o retrato exato da sociedade romana; ela era

muito mais fragmentada no interior de seus quadros:

Por conseguinte, dentro da cidade, haverá �tribos� que são, ao mesmo tempo, quadros territoriais (uma propriedade encontra-se na posse de �uma tribo�) e humanos, porque neles estão reagrupados os indivíduos e as famílias, de acordo com a sua origem ou com a vontade do legislador ou do magistrado. Ter-se-á classes censitárias que reúnem todos aqueles que têm um patrimônio equivalente a um dado valor. No seio das classes cujos efetivos são muito desiguais (os pobres são em muito maior número de �centúrias�, de acordo com a sua idade (ou seja, segundo um critério militar). De início (a situação durará até a segunda guerra púnica, aproximadamente), as mesmas classes censitárias (que acabaram por ser fixadas em cinco) estabeleciam o armamento e portanto o posto de cada um no campo de batalha. Entre os ricos, por exemplo, os mais ricos (e os �melhores�) eram destinados ao serviço eqüestre: as 18 �centúrias� dos cavaleiros juntavam-se às 175 dos infantes (e dos �operários�). A dado momento houve uma relação entre o número desta 193 centúrias e os efetivos do exército (a legio) realmente recrutados. Mas essa relação desapareceu em breve, vindo a formar-se unidades que, embora com o mesmo nome, eram de dimensões bastante variáveis; Cícero assegura que havia mais gente na última centúria �sem classe� composta por proletarii, do que em todas as outras; por conseguinte, mais da metade do povo em das centúrias.106

Como se vê o sistema se complicara a ponto de ficar quase ininteligível. Todavia, os objetivos

de tal fragmentação visavam o recrutamento, a cobrança de impostos e sem dúvida, o voto.

A citação acima menciona os proletarii. Estes eram os que só podiam contribuir ao

estado devido a sua capacitação de gerar filhos. Aristóteles via que tanto no regime da

oligarquia ou da democracia haveria pobres. E que a verdadeira diferença entre oligarquia e

democracia estava �na pobreza e na riqueza; é preciso que todas as vezes que a riqueza

ocupa o poder, com ou sem maioria haja oligarquia; e democracia quando os pobres é que

ocupam o poder� (A Política,3.5.7) Para sobreviver, os proletarii dependiam de seus parcos

salários como pequenos artesãos, bem como da espórtula. Este benefício era direito somente

dos cidadãos romanos pobres, oferecido pelos cidadãos mais ricos.

Todavia, esse afluxo de beneficiários da espórtula, e depois das distribuições de trigo pelo Estado, torna o abastecimento de Roma cada vez mais aleatório. Os que vivem de favor tornam-se numerosos, numa cidade onde a alimentação sempre foi um problema crucial. Durante sua ditadura, César fez um censo dos beneficiários de distribuições: encarregou da operação os proprietários de insulae, o que � supunha ele � permitiria descobrir mais facilmente os fraudadores. A operação é interessante para as finanças do Estado: com efeito, de um total de 320.000 plebeus que recebem trigo de graça do Estado, 150.000, não têm nenhum direito aos favores públicos!107

Apesar dos pesares, qual seria o interesse dos cidadãos ricos em inscrever os nomes dos

cidadãos pobres, seria amor à humanidade (filadelfi,a)? Na verdade, os proletarii ainda que

pobres, detinham o direito de voto nas assembléias. E sua à necessidade de sobrevivência 106 C. NICOLET, O cidadão e o político, p. 29. 107 C. SALLES, Nos submundos da Antiguidade, p. 204.

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aliava-se a gana de privilégios dos cidadãos ricos, originando-se daí a relação patrono-

cliente.

2.2.1.6. Patronato e clientelismo

Karl Kautsky atentou nos seguintes termos para esse diferencial da sociedade romana que

outorgava a cidadania aos pobres:

Claramente não é uma completa cidadania, porque os antigos cidadãos que ostentam esse grau são os que governam a cidade e o Estado por meio de suas assembléias, senão a uma cidadania de segunda classe, que desfruta de toda liberdade e de toda a proteção legal do Estado, porém sem nenhuma participação em seu governo. Estes novos cidadãos eram necessários à cidade à medida que aumentava sua riqueza e crescia o peso da guerra, posto que as famílias dos antigos cidadãos não podiam subministrar já o necessário número de cidadãos soldados.108

Assim, as categorias intermediárias de cidadãos, conforme sua capacidade de aquisição,

uniam-se a protetores chamados de patronos que tanto podiam garantir certa sobrevivência

e abrir as portas para se galgar uma ascensão social. Possuir muitos clientes (uma espécie de

afilhados) era sinal de prestígio e riqueza. Há de fato nesse relacionamento uma troca de

favores, o patrono precisava dos votos e dos serviços de seus clientes, e estes por sua vez

precisavam das oportunidades e proteção de seus patronos (padrinhos). �Na verdade, a

exploração dessas circunstâncias pelos patronos com o objetivo de obtenção de vantagens

pessoais foi a precondição do sistema do patronato.�109 Muitos escravos foram tornados

forros por seus senhores a fim de que estes pudessem aumentar o número de clientes e

garantir votos às suas propostas e elegibilidade aos cargos administrativos. De posse da

liberdade os libertos de cidadãos romanos, cidadãos romanos eles próprios, eram integrados

no sistema dos comícios centuriados, ocupando neles um lugar correspondente ao

patrimônio que possuíam e com direito de voto.�110

Os benefícios concedidos pelos patronos eram tomados como favores pessoais,

embora fossem de origem pública, cabia-lhes distribuir tais adjutórias conforme seus

interesses. Por sua vez, muitos clientes eram também patronos de outros cidadãos mais

pobres, o que aumentava uma rede de relacionamentos e interesses. Entretanto, havia

aqueles que foram à bancarrota por não saberem administrar seu patronato:

108 El Cristianismo, sus orígenes y fundamentos, p. 99. 109 Richard A. HORSLEY, Paulo e o império, p. 99. 110 Jean ANDREAU, O liberto, in: A. GIARDINA (org.), O homem romano, p. 153.

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As antigas famílias nobres, ou as que ao depois se ilustraram por briosas ações, arruinavam-se todas pela sua grande magnificência, porque então não se levava a mal o dar festas brilhantes ao povo, aos aliados aos reis, nem o ser obsequiado por eles; de sorte que, segundo cada um se fazia mais notável pelas suas riquezas, pela sua bela casa, e pelo imenso número de clientes, de tanto maior nome, e mais amizades gozava (Tácito, Anais, )

Cícero, possuidor de muitos clientes, escreveu ao seu filho Marco a respeito da importância

de discernir os benefícios que devia-se dar aos seus clientes:

Às larguezas geradas pela liberalidade, não devemos ficar apegados do mesmo modo em circunstâncias diferentes. Um é o caso daquele que é premido por uma calamidade e outro o daquele que procura coisas melhores, sem que nada lhe seja contrário. A benignidade deverá privilegiar aqueles que estão sujeitos à calamidade, a não ser que, por acaso, sejam merecedores dessa mesma calamidade. Todavia, em relação àqueles que desejam ser auxiliados, não para evitar a aflição, mas para ascender a um posto mais elevado, de nenhum modo devemos ficar totalmente surdos a eles, mas aplicar julgamento e diligência para discernir os idôneos. Disse brilhantemente Ênio: Coisas bem-feitas, mal colocadas, julgo malfeitas (Dos Deveres, ).

Era dever dos clientes saudar matinalmente seus patronos (salutatio), acompanhá-los

em suas andanças, aplaudi-los quando discursavam e até serem convidados para jantar.111

Negar-se a isso era demonstração de ingratidão por parte dos clientes: �Certamente aquele

pobre, sendo bom, mesmo que não possa devolver o favor, pode ser grato� (Dos Deveres,

). Mesmo que um determinado cliente não tivesse sido alvo de favoritismo pessoal em

relação aos outros, aquele não podia deixar de cumprir a salutio, quer gostasse ou não.

Assim, dezenas, e as vezes centenas de pessoas:

a cada amanhecer vão desfilar na antecâmara de seu protetor ou �patrono� para lhe fazer uma rápida visita de homenagem. (...).Tal é a multidão que todas as manhãs faz fila diante da porta do patrono, na hora em que cantam os galos e os romanos se levantam. (...). Celebridades locais também são assediadas, embora por grupos mais reduzidos; longe de Roma, através das cidades, os mais poderosos notáveis também têm sua clientela. 112

A prática do clientelismo não se limitava às pessoas, mas também era também estendida às

cidades do império romano. Ao lado do imperador, patrono por excelência e por dever de

ofício, outros cidadãos locais tornaram-se patronos das cidades. Isso envolvia fazer grandes

contribuições para construções, reformas, festividades, exército e outros empreendimentos.

Com isso, o patrono garantia seu nome anexado à cidade, dando longa vida ao seu nome e a

outras honrarias públicas.

111 Peter GARNSEY/Richard SALLER, Relações patronais de poder, in: R. A. HORSLEY (org.), Paulo e o império, p. 106. 112 Paul VEYNE, O Império romano, in: P. ARIÈS/C. DUBY, História da vida privada, vol. 1, p. 81; 99.

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Em suma, patronato e clientelismo eram práticas que asseguravam a �solidariedade�

entre os cidadãos dos mais altos estratos com aqueles dos mais baixos. Tudo por amor à

cidade e ao interesse mútuo, seja prestígio, seja subsistência, que se baseavam em �honra e

vergonha�, tema que discutiremos mais abaixo. No entanto, devemos por ora apresentar

aqueles que não eram considerados cidadãos.

2.2.1.7. Os excluídos: Peregrinos, escravos, libertos, artesãos e operários

José Adriano Filho estudou a forte presença do motivo do peregrino por toda a extensão da

Carta aos Hebreus, o que pode ser a mais efetiva descrição da identidade dos recipientes.113

Em Hb 11.13lemos: �estrangeiros e peregrinos nesta terra� (xe,noi kai. parepi,dhmoi, eivsin

evpi. th/j gh/j; ou em Latim: �peregrini et hospites sunt supra terram�). Com efeito, a expressão e

outras que pertencem ao mesmo campo semântico (�transviar�, �caminhos�, �conduzir�,

etc.) estão esparsas por todo o texto. A temática foi tirada das tradições do povo hebreu, que

é apresentado sempre por essa ótica. Essa temática, dos �estrangeiros e peregrinos�, também

é o fio condutor da Primeira Carta de Pedro (cf. 1 Pe 1.1; 2.11) Mas peregrino no Mundo

Mediterrâneo do I séc. era:

Um estrangeiro, um estranho, um cidadão de um Estado que não Roma. A grande maioria da população de Roma era constituída de peregrinos, tornados súditos de Roma após a conquista de seu país pelos romanos. Com o crescer do Estado romano, o número de peregrinos cresceu constantemente, sem que fosse compensado pelo crescimento do número de cidadãos, aos quais se concedia a cidadania romana. No seio do território romano, os peregrinos fruíam dos direitos de pessoas livres, a não ser que um tratado entre Roma e seu país de origem lhes concedesse direitos específicos. De modo geral, a legislação da República, tanto os estatutos como os senatusconsulta, se aplicava a peregrinos somente quando provisão particular estendesse a eles a validade. Os peregrinos não gozavam de nenhum direito político, não podiam participar das assembléias populares e eram excluídos do serviço militar. Um peregrinus só podia contrair matrimônio válido (iustae nuptiae) quando gozava do ius connubii... a ele pessoalmente concedido ou adquirido por cidadania em uma civitas que obtivera este direito de Roma. Um peregrino não podia exarar testamento na forma reservada aos cidadãos romanos nem agir como testemunha neste caso. Não podia constituir-se herdeiro de um cidadão romano nem receber delegação (delegatum), exceto no testamento de um soldado. Podia realizar transação comercial com um cidadão romano se possuía o ius commercii que se concedia da mesma forma que o ius connubii. Embora excluído dos procedimentos por legis actio, o peregrino tinha o benefício da proteção dos tribunais, em particular perante o pretor, que possuía jurisdição inter peregrinos... a partir de meados do séc. III a.C. ... Estrangeiros no mesmo Estado concluíam transações segundo as leis daquele Estado, e os litígios entre eles eram superados de acordo com suas próprias leis. 114

113 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p.11. 114 Adolf BERGER, citado por John H. ELLIOTT, Um lar para quem não tem casa. Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro, p. 41.

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Apesar de algumas prerrogativas alcançadas, a vida de um peregrino era muito

difícil. Tratava-se de gente desarraigada, errante, considerada não residente, sem teto e sem

pátria (Hb 3-4; 11.13), o que gerava a xenofobia nos indígenas. Nos tratados sobre Política,

em que o indivíduo e sua família tinham função apenas utilitarista em relação à Cidade-

Estado (Aristóteles, Política, 1.1.11), o estrangeiro era o estranho, ao qual não se dava direitos,

o inexistente, por vezes comparado ao escravo, ao bastardo (Aristóteles, Política, 3.3.4-6). O

estrangeiro era o inverso do cidadão (Cícero, Da República,1.43). A presença do grande

número de estrangeiros em Roma, por exemplo, foi motivo de desdém para Sêneca:

Onde se poderá encontrar um rochedo mais desguarnecido do que este? Ou mais pobre para quem procure riqueza? Ou mais selvagem para quem dê mais atenção aos homens? Ou mais horrível pela posição? Ou mais inclemente pelo clima? Apesar de tudo, também aqui moram mais estrangeiros do que indígenas (Consolação a minha mãe Hélvia, 6.5).

Somos informados que em Roma havia nesse período uma grande população

estrangeira, principalmente judaica, residente num dos bairros mais pobres e ao mesmo

tempo mais perigosos da cidade, o Trastevere. �Sua insegurança faz dele um refúgio para os

mais miseráveis dentre os miseráveis. Todo um mundo agitado e inquietante, composto de

estrangeiros, de fora-da-lei que desafiam a autoridade�.115 Juvenal escreveu: �À noite. A

sacra fonte, o bosque, e o templo aluga-se aos Judeus, cujas riquezas de feno num cestinho se

limitam, pagando por cada árvore um tributo� (Sátiras ).

Não era só em Roma que a xenofobia estava presente, pode-se dizer que Roma era

paradigmática como cidade, o que acontecia aí, se reproduzia em outros lugares. Em

Alexandria também se apresentava o mesmo sentimento xenófobo ao perseguir, aprisionar,

torturar e saquear as propriedades dos judeus residentes, ainda que e porque, neste caso,

fossem estrangeiros ricos (Fílon, In Flaccum, ). Riqueza por si só não tornava o

indivíduo um notável, pelo contrário, gerava a inveja dos que se sentiam lesados pelo o

sucesso do outro, visto que tais oportunidades lhe pertenciam por direito: �São (...) invejosos

aqueles há quem pouco falta para possuírem tudo (...), pois crêem que todos tentam

arrebatar o que lhes pertence (pa,ntaj ga.r oi;ontai ta. au`tw/n fe,rein, Aristóteles, Retórica das

paixões, 10.21).� Plauto expressou sua xenofobia para com os gregos com as seguintes

palavras:

115 C. SALLES, Nos submundos da antiguidade, p. 160.

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Esses tipos gregalhões, que andam com a cabeça encapuzada e vivem carregados de livros e de cestas para a espórtula, param no meio da rua, conversam entre si. Esses escravos fugitivos bloqueiam o caminho e te impedem de passar, enquanto vão andando e fazendo belos discursos. Pode-se sempre vê-los na taberna, quando conseguiram algumas moedas; e, depois de terem bebido vinho quente, voltam para casa, enrolados em seus capuzes e ruminando sombrios pensamentos.116

Cícero também opinou um dever para os estrangeiros no quadro maior da vida do Estado:

Não é fora de propósito falar aqui a respeito dos deveres dos magistrados, dos particulares, dos cidadãos e dos estrangeiros. Do magistrado, a função é apresentar-se como representante da cidade, defender a honra e a decência desta, salvaguardar as leis, definir os direitos e lembrar-se de que tudo isso está confiado à sua boa-fé. O simples particular viverá com os seus cidadãos em igualdade e paridade de direito: não se submeterá, não se aviltará nem se exaltará, mas desejará na república a paz e a honestidade. Este é, com efeito, aquele que julgamos e dizemos ser um bom cidadão. O dever dos estrangeiros residentes e de passagem é não ir além de seus negócios, não se meter com os dos outros e mostrar-se o mínimo possível curioso a respeito dos assuntos da república alheia (Dos Deveres, ).

Igualados aos estrangeiros e peregrinos estavam também os pobres. Hebreus nos

conta que alguns dos recipientes, fossem judeu-cristãos, fossem gentio-cristãos, e até mesmos

indígena-cristãos, tiveram seus bens confiscados (Hb 12.34), o que se pode inferir daí que

procediam de um nível mais alto, talvez da classe média, mas que então foram rebaixados a

um patamar em que só lhes era garantido a subsistência (Hb 13.5). Quanto ao assunto, J. D.

Crossan escreve:

A palavra grega penhj significa �pobre� e ptwcoj significa �destituído�. A primeira descreve o status de uma família camponês que tem uma pequena forma de subsistência de ano para ano; a segunda indica o status de uma família (...) levada por doença ou dívida, imposição ou morte, a sair da terra e à penúria e mendicância.117

O termo �pobre� não aparece em Hebreus, mas com certeza muitos eram (se

tornaram) os empobrecidos:

Que o amor ao dinheiro não inspire a vossa conduta. Contentai-vos com o que tendes, porque ele próprio disse: Eu nunca te deixarei, jamais te abandonarei. De modo que podemos dizer com ousadia: O Senhor é meu auxílio, jamais temerei; que poderá fazer-me o homem?(13.5s)

Este texto abre outras possibilidades, levando-se ainda em conta que muitos pequenos

camponeses endividados ou cujas colheitas foram desastrosas migravam para as cidades, e

116 Citado por Catherine SALLES, p. 168. 117 Jesus, p. 76; igualmente Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p. 130.

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não sabendo fazer outra coisa acabavam na mendicância ou na pirataria.118 Ainda que haja

pessoas com mentalidade mais filosóficas e altaneiras de pensamento, transcendentes à sua

sociedade, o pão, pão, queijo, queijo eram diferentes. A título de exemplo, Sêneca escreveu à

sua mãe a respeito da oportunidade feliz da pobreza:

Por isso a pobreza não traz nenhum dano ao desterrado; porque lugar algum de exílio é tão pobre que não seja bastante fértil para alimentar um homem. (...). Mas se desejar vestes de púrpura repletas de conchas, ou tecidas de ouro, ou bordadas com várias cores e pontos, ele é pobre por culpa não da sorte mas sua. (...). Quem, portanto, permanece contente entre os limites marcados pela natureza, não conhece a pobreza: quem sair desses limites é pobre mesmo entre as maiores riquezas. Às necessidades provêm suficientemente também os lugares de exílio; às coisas supérfluas não bastam os reinos. (...). A fim de que tu não creias que para aliviar os aborrecimentos da pobreza (que é grave só para os homens que a crêem tal) eu me sirva unicamente de preceitos dos sábios, observa como são mais numerosos os pobres; nem poderás dizer que eles são mais tristes ou mais preocupados do que os ricos, porque até se diria que são mais felizes quanto menos possuem objetos que possam magoá-los (Consolação a minha mãe Hélvia, 11.1-5).

Apesar da sabedoria aparente das palavras de Sêneca, suas atitudes demonstraram que tudo

não passava de demagogia. Pois Sêneca, movido por simpatia pela pobreza �decidiu viver

durante dois dias como um camponês pobre, impressiona-nos muito pouco quando lemos

que levou consigo um número reduzido de escravos � apenas um carro! � e que sua comida

era tão simples que se preparava em uma hora.�119 A verdade é que a pobreza era

vergonhosa, motivo de sátiras:

Se ele tem suja, e esfarrapada a capa! Se anda de toga imunda, e rota, e porca? Se um sapato arreganha a larga boca! Se de uma nova tomba, as cicatrizes, de curada ferida as linhas mostram! Nada há tão duro na infeliz pobreza, quanto é tornar ridículos os homens! �Fora deste lugar, aos Nobres dado! Se algum pudor conserva, rua, rua!� Na pobreza a virtude a custo vive (Juvenal, Sátira 3). Juntava-se a essas categorias menosprezadas a dos trabalhadores manuais. Estes eram

os operários ou artesãos, recebiam o desdém da elite a exemplo de Sêneca:

Desejas saber o que penso dos estudos liberais (...). ... por que foram chamados estudos liberais: porque são para o homem livre. (...). Neste ponto permitir-me-ás não seguir o convencionado. Ninguém me leva a admitir no número dos que cultivam as artes liberais os pintores, nem os escultores ou os marmoristas, nem os demais servidores do luxo. Também excluo dos estudos liberais os lutadores e sua ciência de misturar óleo e lama e excluo-os porque, se não o fizesse, teria de admitir igualmente os perfumistas, e os cozinheiros, e todos os outros que põem sua habilidade ao serviço de nossos deleites. (...). Posidônio diz que são quatro as espécies das artes: as vulgares e humildes, as recreativas, as didáticas, as liberais. As vulgares são as dos obreiros manuais, que se ocupam em prover às necessidades da vida, e em que não há nada que se assemelhe a honra ou virtude (Aprendendo a viver; carta 88).

118 C. R. WHITAKER, O pobre. In: O homem romano, p. 232. 119 Ibid., p. 242.

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Para Sêneca a arte liberal por excelência era a filosofia. Destarte, trabalhar com as próprias

mãos não era virtude, pois era impossível praticar a virtude quando se é artesão (Política

3.3.3) As atividades de operários e artesãos foram vilipendiadas pela nobreza:

Quanto às ocupações e ganhos, dispomos dos seguintes preceitos para avaliar quais devam ser considerados dignos de homens livres e quais são sórdidos. Em primeiro lugar, desaprovamos os ganhos que suscitam ódio nos homens, como o dos recebedores de impostos e dos usurários. São ignóbeis e sórdidas as remunerações de todos os trabalhadores pagos pelo esforço e não pela habilidade. Com efeito, neles, o próprio salário é o penhor da servidão. Devem ser tidos como vis os que compram dos mercadores para vender em seguida: nada ganham a não ser se mentirem de algum modo, e nada é mais torpe que a fraude. Todos os operários praticam uma arte abjeta: não haver engenho algum na oficina, sendo ainda mais reprováveis as funções que se põem a serviço dos prazeres: Peixeiros, carniceiros, cozinheiros, salsicheiros, pescadores, como diz Terêncio; acrescenta à lista, se te agradar, perfumistas, dançarinos e profissionais do espetáculo (Cícero, Dos Deveres, 1.42.150).

Por isso, a oratória lhes foi vedada:

Primeiramente (...), é preciso tomar isso como princípio: o verdadeiro orador não deve ter pensamento baixo e ignóbil. Pois não é possível que pessoas que destinam seus pensamentos e seus cuidados a preocupações vis e próprias de escravos, ao longo da vida, produzam alguma coisa espantosa e digna de qualquer época (Longino, Do Sublime, 9.3).120

Apesar desta opinião muito difundida, o artesão alcançou o direito de cidadania por ser

imprescindível ao estado (Aristóteles, Política ). Mas este seria sempre um cidadão de

segunda categoria, motivo de sátiras que tentavam disfarçar a inveja de não poder fazer

igual, além de que muitos artesãos enriqueceram com suas habilidades. Chama a atenção o

fato de o arquiteto também fosse excluído dos trabalhos honrados, justamente quem

projetava e coordenava as edificações citadinas. Era por causa disso que as obras de arte não

eram assinadas nem levavam quaisquer marcas de seu feitor, e quando atribuídas a alguém,

este alguém era o que encomendou a peça ou obra: Partenon de Fídias, a Coluna de Marco

Aurélio, o Arco de Constantino.121 Afetações à parte, muitos aristocratas possuíam

empreendimentos que empregavam operários, sejam livres ou escravos. O próprio Cícero

que torceu o nariz para essas categorias, possuía uma olaria e se servia de muita gente para o

trabalho.122 Os ricos investiram pesado nesse filão, multiplicando suas rendas.

120 Texto de um Longino ou desconhecido ou não identificável. Se ele visse quantas obras de artesãos permaneceram, encontradas nos sítios arqueológicos do tempo do Império romano, sentiria vergonha de ter dito isso. 121 Jean Paul MOREL, O artesão, in: A. CARDINI (org.), p. 184. 122 Ibid., p. 187.

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Todavia, os préstimos de muitos trabalhadores manuais podiam ser descartados

devido à concorrência provocada pela utilização massiva de mão de obra escrava que

acabava sendo mais barata. Assim:

Nas manufaturas, a nova organização do trabalho converte-o (o escravo) numa simples engrenagem de um processo produtivo que lhe escapa completamente. Um exame atento da cerâmica envernizada a negro e a que se chamou campaniana permitiu ter uma idéia precisa acerca do modo como é organizado o trabalho nesse setor, onde desde o início se constata uma simplificação sistemática. Assim, o verniz deixa de ser aplicado com um pincel e passa a sê-lo por imersão, o que leva a que o produto não tenha um acabamento tão perfeito e impede que a base, por onde o operário segura o vaso para o imergir no líquido, fique totalmente envernizada. Todavia, estes defeitos deviam acabar por não ter grande importância, tendo em conta o tempo que se ganhava.123

Uma automatização humana que Aristóteles imaginara como hipotética:

Com efeito, se cada instrumento pudesse, a uma ordem dada ou apenas prevista, executar sua tarefa (conforme se diz das estátuas de Dédalo ou das tripeças de Vulcano, que iam sozinhas, como disse o poeta, às reuniões dos deuses), se as lançadeiras tecessem as toalhas por si, se o plectro tirasse espontaneamente sons da cítara, então os arquitetos não teriam necessidade de trabalhadores, nem os senhores de escravos (Política, 1.2.5).

Era o escravo, ainda que involuntariamente, em competição com os trabalhadores

empobrecidos.124 O escravo deve ser levado em conta na re-construção do auditório de

Hebreus. A utilização feita pelo autor de Hebreus da tradição do êxodo dos hebreus é

sintomática (3.1-4.12; 11.23-29). Pois, ainda quando aqueles que podiam se tornar �os

libertos�,125 o estigma permanecia, seja na relação contínua com seus senhores imposta por

lei, seja diante dos cidadãos. Libertos eram cidadãos, mas cidadãos não por completo, pois

não detinham o direito de serem eleitos para muitas funções de direção administrativa.

2.2.1.8. Honra e vergonha

Anterior à prática institucionalizada, ainda que informalmente, estava o conceito de

�honra/louvor e vergonha/censura�. Os gregos já consideravam em alta estima tais valores e,

por conseguinte, toda a vida cotidiana era regulada por eles. Mesmo os discursos proferidos

nos tribunais, nas assembléias e nas cerimônias tinham como motivo pivô os valores honra e

123 Yvon THÉBERT, O escravo. In: O homem romano, p. 126. cf. tb. Catherine SALLES, Nos submundos da antiguidade., p. 166. 124 Aristóteles era de opinião de que os artesãos igualados aos escravos, ou seja, gente que precisava trabalhar para viver, não deveria ser considerada cidadã (Política, 3.3.2). 125 �Libertos� não se liga automaticamente a pobres, pois podia ocorrer de libertos se tornarem ricos e às vezes até mais ricos que seus antigos senhores.

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vergonha.126 Destarte, o mundo Mediterrâneo do I séc. E.C. também foi amplamente

condicionado por esses fatores. Um leitor atento perceberá que desde o primeiro Evangelho

até o Apocalipse de João, os escritos do NT são pontilhados pelos motivos honra e

vergonha.127

Arthur Schopenhauer definiu honra como a opinião que os outros fazem de nós, �a

opinião geral que aqueles que nos conhecem têm sobre o nosso valor sob um aspecto

qualquer a ser seriamente considerado, e que determina as diferentes espécies de honra.�128

O valor pessoal tido no pensamento dos outros. Todo o prestígio, e mais, a eternização de

uma pessoa tinha por base a manutenção da honra. O homem honrado vivia o seu �hoje�

respeitosamente na prática da virtude enquanto rejeitava todo vício que lhe era ofertado. Por

isso, honravam-se os deuses, os homens, os ancestrais, as autoridades, as edificações, as

nações, a literatura, a vida tranqüila e pacífica.

À pergunta da distinção entre vícios e virtudes respondeu Aristóteles da seguinte

maneira:

As coisas excelentes são os objetos de louvor, as coisas vis de censura; e no topo da excelência ficam as virtudes, no topo das vis os vícios; conseqüentemente as virtudes são objetos de louvor, e também as causas das virtudes são objetos de louvor, e as causas das virtudes são objetos de louvor, e as coisas que acompanham as virtudes e que resultam deles, e suas obras, enquanto que os opostos são objetos de censura (Vícios e Virtudes, 1.1-2).

No seu tratado sobre os deveres, Cícero constantemente recordou a seu filho Marco

as escolhas e deveres dignos de um cidadão romano honrado:

Quanto aos que se adaptaram ao serviço da comunidade política e à realização de grandes tarefas, sem dúvida sua existência é mais frutífera para o gênero humano, como também mais propícia à fama e à grandeza (Dos Deveres, 1.70). Assim, a justiça deve ser cultivada e preservada de qualquer modo, tanto por si mesma (pois, de outra forma, não seria justiça), quanto para aumentar a honra e a glória (Dos Deveres, 2.42). Entretanto, debater em público freqüentemente provoca uma glória geral. Grande é, de fato, a admiração por aquele que fala copiosa e sabiamente; os ouvintes julgam que ele compreende e sabe mais que os restantes. E se há no discurso gravidade de mistura com modéstia, nada será mais admirável, principalmente quando tais qualidades se encontram num adolescente (Dos Deveres, 2.48).

126 Jerome NEYREY, 2 Peter, Jude, p. 3. 127 Note-se o fato de Mateus começar com uma genealogia davídica de Jesus, sua concepção milagrosa, a admoestação do anjo a José para que não se envergonhe da gravidez de sua esposa e o encerramento com a declaração do ressurreto de possuir todo o poder sobre terra e céus (Mt 28.18). Note-se também a freqüência de hinos cristológicos por todo o texto de Apocalipse; por exemplo: �Digno é o cordeiro imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor� (Ap 5.13). 128 A arte de se fazer respeitar, ou tratado sobre a honra, máxima 1.

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O alicerce da recomendação e da fama pública é a justiça, sem a qual nada pode ser louvável (Dos Deveres, 2.71).

A vida era entretecida por elogios ao ser e ao fazer. Quaisquer que fossem os

assuntos, adjetivações honrosas e/ou censuráveis se achavam entretecidas nos mesmos.

Todavia, o excesso de ênfase em honrar, louvor poderia virar adulação. E isto era notada

pelas pessoas a ponto de Plutarco escrever uma obra para diferençar o verdadeiro amigo do

bajulador, pois o bajulador era um �verdadeiro camaleão, que pode assumir todas as cores

exceto a branca; e, se não lhe é possível chegar a uma parecença nos domínios dignos de sua

obstinação, não deixa de imitar tudo o que é vil� (Da Maneira de Distinguir o Bajulador do

Amigo, 9). Não somente a opinião dos indivíduos era importante para a promoção da honra,

mas também a opinião pública, o que o povo pensava de alguém:

A própria palavra opinião é de origem latina (opinio). Embora no mundo antigo não houvesse comunicação em massa e, menos ainda, pesquisas de opinião pública, foi naquele ambiente que surgiu o conceito de �opinião�. Cícero referia-se a populis opinio, e opinio tanto termo usado para traduzir o grego doxa, por oposição a episteme (ciência), como, mais prosaicamente, para designar �impressão�, verdadeira ou falas. �Impressão� que corresponde bem à raiz de dokeo (�parecer, pensar, imaginar�) e, ainda que não saibamos a origem de opinio, transmite a sensação de falta de certeza, imprecisão. Este é o sentido do termo em outra frase de Cícero, apud homines bárbaros opinio plus ualet saepe quam res ipsa (�entre os homens bárbaros, a impressão vale, muitas vezes, mais do que a própria realidade�). Expressões como opinio est (�considera-se�) e opiniones omnium (�todos acham�), bem como o sentido de �boato� que a palavra possui, conduzem-nos à percepção de um espaço público que permitia a existência não apenas do sentido individual da opinião (ut mea opinio est, �em minha opinião�), como da impressão tornada coletiva.129

As inscrições tumulares, os monumentos testemunham a honra ou a vergonha

atribuída aos seres. Assuntos privados eram levados ao conhecimento público, fosse para

enaltecer, fosse para vituperar como o seguinte grafito:

Já desempenhou oito, superará 16. Trabalhou como taberneiro, ceramista, salsicheiro, padeiro, agricultor, bronzista de quinquilharias, vendedor de rua; agora é ceramista de pequenos vasos. Para completar, só falta praticar o cunilíngua.130

Começando pelas coisas mais triviais e chegando até as mais nobres, tudo era filtrado

pelo princípio avaliador de honra e vergonha. Portanto, o relacionamento patrono-cliente se

achava eivado de expressões do tipo.

129 P. P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, in: J. PINSKY/C. PINSKY, História da Cidadania, p. 68. 130 Grafito em Pompéia, citado in: P. P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, p. 70.

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2.2.2. Auditório e orador

Este passo da análise retórica visa fazer uma re-construção verossímil do auditório intentado

pelo autor. �Re-construção� porque todo orador faz uma �construção� de seu auditório a fim

de deliberar uma mensagem adequada, ou seja, um auditório presumido mais próximo da

sua realidade.131 Com efeito, os elementos transparecem em certa medida nos discursos �de

tal maneira que é, em larga medida, desses próprios discursos que nos julgamos autorizados

a tirar alguma informação a respeito de civilizações passadas�.132 Preocupado com o assunto,

Aristóteles desenvolveu o tópico dos auditórios presumidos, dedicando ao tema os capítulos

12-17 do segundo livro de sua Retórica ao que chamou de �caracteres� segundo as paixões,

disposições, idades e diferenças de fortuna.133

O autor de Hebreus não nomeou pessoas da comunidade na carta, a única exceção foi

Timóteo (13.23), e mesmo assim não era um destinatário. Portanto, o que se pode coletar de

seus conteúdos para compor um perfil dos recipientes deve ser das referências diretas aos

ouvintes leitores, possíveis alusões e indícios.

A carta apresenta um uso muito elegante da língua grega, que é a de estilo mais

elevado de todo o Novo Testamento,134 o que também pressupôs um auditório capaz de

compreender sua linguagem. Uma mensagem visa persuadir, se o orador falar em um nível

diferente do de seu auditório pode não ser compreendido ou mesmo encontrar resistência.

Em outras palavras, �como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige,

131 Chaïm PERELMAN/Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Tratado da argumentação, p. 22. 132 Ibid., p. 23. 133 Retórica 12.2,7; 13.1,2,16; 15.3; 16.1,2; 17.1.3,4: Quanto aos jovens: Os jovens, mercê do caráter, são propensos aos desejos e capazes de fazer o que desejam. A índole deles é antes boa do que má, por não terem ainda presenciado muitas ações más. Quanto aos velhos: Como viveram muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas faltas... têm opiniões, mas nunca certezas. Irresolutos como são, nunca deixam de acrescentar ao que dizem: �talvez�, �provavelmente�. Quanto à nobreza:Ora, a nobreza consiste na virtude da estirpe e uma pessoa é de boa estirpe, quando não perde suas qualidades naturais. Mas esta condição só raramente se realiza, visto que muitos nobres não se distinguem do vulgo. Quanto aos ricos: Os ricos são insolentes e intumescidos de orgulho, resultado lastimável da posse das riquezas. Quanto aos homens de poder: Têm mais dignidade do que gravidade, porque a elevada situação que ocupam os põe em destaque (...). Quanto às injustiças que cometem, não são faltas de pequena monta, mas de importância considerável. E quanto aos favorecidos pela sorte: A sorte dá a seus favoritos uma parte dos caracteres que indicamos, pois as maiores probabilidades de sucesso tendem a conferir riqueza e poder. Uma só conseqüência feliz deriva da sorte; tornar-nos piedosos para com os deuses e criar em nós uma peculiar disposição perante a divindade. 134 Hans CONZELMANN, Interpreting the New Testament, p. 265.

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ela é, por inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar.�135 Contudo, convém notar

que apesar da elegância gramatical, sua retórica não é algo empolado, e se há familiaridade

com as tradições das Escrituras, tem-se uma boa compreensão de sua mensagem.136

Outro dado a favor disso é o de seu cotidiano ligar-se aos �discursos usados nos

mercados, sinagogas, teatros de forma bastante eficiente à arte de persuasão presentes nestas

formas de comunicação.�137 Além do mais, há indícios de que o autor de Hebreus escreveu

para sua própria comunidade (13.19). Os leitores por conta da linguagem de Hebreus

podiam ser oriundos de níveis econômicos medianos, com certa educação formal.

A Carta aos Hebreus nos dá a entender que seus leitores já possuíam algum tempo de

conversão (5.11-6.3), expressaram isto numa profissão de fé (3.1), experimentaram a

iluminação do Espírito Santo (6.4-5), quando ouviram a mensagem entregue por evangelistas

presenciaram sinais e prodígios e tiveram experiências carismáticas (2.4), dando a entender

que fizeram parte da segunda geração de cristãos, assim como o autor. Seus primeiros

pastores já haviam falecido (13.7) e outros careciam de seu respeito (13.17). Tratava-se de

uma comunidade mista, isto é, composta tanto judaico-cristãos (de fala grega) devido ao

massivo conteúdo das Escrituras, como também poderiam ser gentílico-cristãos, constatação

devida à expressão �o arrependimento de obras mortas�, que caracterizaria sua procedência

(para expressões análogas cf. Ef 4.17-23; 1 Pe 1.13-14).

Mas o mais preocupante é que o auditório atravessava um período de crise de fé,

conquanto foram lembrados que em nos primeiros tempos de sua experiência religiosa

suportaram muitas tribulações dolorosas (13.32), foram ridicularizados publicamente,

injuriados (13.33), outros foram aprisionados (13.34), e sem perder a solidariedade (13.34)

tiveram seus bens confiscados (13.34). Mas então necessitavam de perseverança (13.35).

Algumas pessoas já não eram tão assíduas às reuniões da comunidade (10.25), o que dá o

perfil de um auditório formado de pessoas que desanimavam fatigadas (12.12-13), e o que

era pior, desistirem da fé cristã (6.4-7), pois foram envergonhados publicamente: �Éreis às

vezes apresentados como espetáculo (qeatrizovmenoi), debaixo de injúrias e tribulações,

outras vezes vos tornáveis solidários daqueles que tais coisas sofriam� (Hb 10.33).

135 C. PERELMAN, Tratado da argumentação, p. 21. 136 Cícero postula às qualidades do orador: �falar de forma conveniente, clara e elegante� (Dos Deveres, 1.2; 37.133). 137 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 12.

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Todo esse quadro fez o autor estimulá-los com insistência: �... permaneçamos firmes

na profissão de fé� (), �continuemos a afirmar nossa esperança, porque é fiel quem fez a

promessa� (), e �Nós não somos desertores, para a perdição. Somos de fé, para a

conservação da nossa vida� (). Essas exortações foram todas alinhavadas dentro das

estratégias do autor para reverter esse quadro: O motivo da Cristologia e o do peregrino.

3. Gênero discursivo da Carta aos Hebreus

Três eram os gêneros discursivos da retórica greco-romana: Demonstrativo, deliberativo e

judicial.138 O discurso demonstrativo (epidíctico/laudatório) visava o louvor ou censura de

alguém ou alguma coisa. O deliberativo consistia em aconselhar ou desaconselhar o

auditório. Já o discurso judicial objetivava acusar ou defender alguém ou algo. Mas em que

gênero de discurso classificaremos a Carta aos Hebreus?

Para começar a responder essa pergunta, voltemos nossa atenção para próprio

conteúdo do texto. Tomando por base as delimitações em grandes blocos literários oferecidas

por Albert Vanhoye139, contudo sem nos preocupar com os títulos por ele sugeridos às

unidades, além de que, por fugir ao nosso interesse aqui, omitimos as suas subdivisões. Pelo

que temos o seguinte resultado:

Exórdio ou proêmio,

Peroração,

Nesta estrutura, cada bloco literário é constituído ora de �exposição� (1.1-14; 2.5-3.6; 4.12-13;

5.1-10; 6.13-10.18; 11), ora de �parêneses� (2.1-4; 3.7-4.11; 4.14-16; 5.11-6.12; 10.19-39; 12.1-

13.17). As parêneses dão um perfil da necessidade de perseverança dos leitores, eis alguns

exemplos:

138�Tria genera sunt causarum quae recipere debet orator: demonstrativum, deliberativum, iudiciale� (Ad Herennium, 1.1.2.1). 139 A mensagem da Epístola aos Hebreus, p. 39.

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�Pelo que, importa observemos tanto mais cuidadosamente os ensinamentos

que ouvimos para que não nos transviemos� ().

�Vede, irmãos, que não haja entre vós quem tenha coração mau e infiel que se

afaste do Deus vivo� ().

�Ora, sendo que ainda continua a promessa de entrar no seu repouso...,

tenhamos os cuidado de não encontrar entre vós quem chegue atrasado� ().

�Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso, para que este mesmo

exemplo de desobediência não leve ninguém a cair� ().

�Tendo, portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus,

o Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão de fé� ().

�Por isso, deixando de lado, o ensinamento elementar sobre Cristo, elevemo-

nos à perfeição adulta, sem ter que voltar aos artigos fundamentais...� ().

�Sem esmorecer, continuemos a afirma a nossa esperança, porque é fiel quem

fez a promessa� ().

�Considerai, pois, aquele que suportou tal contradição por parte dos

pecadores, para não vos deixardes fatigar pelo desânimo� ().

�Por isso, reerguei as mãos enfraquecidas e os joelhos trôpegos; endireitai os caminhos

para os vossos pés, a fim de que o que é manco, não se extravie, mas antes seja

curado� ().

Todas as exortações se encaixam no objetivo do discurso deliberativo, visto que este buscava

aconselhar e/ou desaconselhar, persuadir e/ou dissuadir os ouvintes de fazerem alguma

coisa. É prospectiva: Delibera-se �sobre aquelas coisas que podem ou não acontecer�

(Aristóteles, Arte Retórica, ). Norteia-se dentro das possibilidades humanas:

�Deliberamos sobre coisas que estão ao nosso alcance e podem ser feitas (...). (...) tudo que

depende do homem (...). sobre coisas que podem ser feitas graças aos seus próprios esforços�

(Aristóteles, Ética a Nicômaco, ). Ademais, em Hb lemos: �Irmãos, eu vos peço que

acolhais esta palavra de exortação� (avne,cesqe tou/ lo,gou th/j paraklh,sewj). Assim, a exortação

de um discurso deliberativo pretendia alcançar a obediência de seus ouvintes ao mesmo

tempo em que propõe garantir a sua segurança (Ad Herennium, ): �A esperança, com

efeito, é para nós qual âncora da alma, segura e firme...� (). Sua meta final era a felicidade

das pessoas (Aristóteles, Arte Retórica, ).

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Porém, quanto às partes expositivas, devemos ter em mente uma outra possibilidade,

a do gênero demonstrativo (panegírico). Como foi dito, este tipo discursivo se ocupava de

louvar e/ou censurar, honrar e/ou vituperar. Uma nova leitura do texto se apresenta

reveladora. Desta vez observaremos os vocábulos e expressões que pertencem ao mesmo

campo semântico dos termos �honra� e �vergonha�:

�Resplendor da glória� (avpau,gasma th/j do,xhj), ;

�glória e honra� (do,xh| kai. timh/|), ;

�a honra� (th.n timh.n), ;

�O Cristo não se glorificou� (o` Cristo.j ouvc e`auto.n evdo,xasen), ;

�grandeza deste homem� (phli,koj ou-toj), ;

�por isso Deus não se envergonha� (dio. ouvk evpaiscu,netai auvtou.j o` qeo.j),

�a humilhação de Cristo� (to.n ovneidismo.n tou/ Cristou/), ;

�desprezando a vergonha� (aivscu,nhj katafronh,saj), ;

�Digno de honra o matrimônio� (Ti,mioj o` ga,moj), ;

�carregando a sua humilhação� (to.n ovneidismo.n auvtou/ fe,rontej), ;

�ofereçamos continuamente um sacrifício de louvor� (diV auvtou/ Îou=nÐ

avnafe,rwmen qusi,an aivne,sewj), ;

�mediante Jesus Cristo, ao qual seja a glória para os séculos� (dia. VIhsou/ Cristou/(

w-| h` do,xa eivj tou.j aivw/naj), .

No discurso demonstrativo (=Epidíctico) louvavam-se pessoas, objetos e deuses (Aristóteles,

Retórica, ). Tanto os heróis como as cidades também eram assuntos dos discursos

epidícticos (Quintiliano, Instituciones Oratórias, ). Quanto ao louvor dos deuses:

Nos deuses, geralmente falando, veneraremos a majestade de sua natureza e a virtude própria de cada um, por terem inventado coisas úteis ao gênero humano. Em Júpiter a virtude com que governa o mundo, em Marte o poder da guerra, em Netuno o império do mar. A invenção das artes em Minerva, das letras em Mercúrio, da medicina em Apolo, de cultivar as colheitas em Ceres e o vinho em Baco, trazendo também à memória as ações ilustres que deles contam a antiguidade. Adiciona-se honra aos deuses pais, de que tiveram princípio, como ser um filho de Júpiter. A antiguidade, como o haver nascido imortais, em outros o haver conseguido a imortalidade com a força de seu braço... (Quintiliano, Inst. Or. 3.7.2).

Como se nota, a orientação de Quintiliano e a descrição de Políbios são percebidas

nas partes expositivas da Carta aos Hebreus, haja vista, por exemplo, a passagem de .

Entretanto, honrar uma pessoa com tais discursos, vez por outra, poder-se-ia fixar nos

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contrários, ou seja, enfatizar-se-ia a vergonha, a fim de salientar a virtude, ou o que seria

digno de louvor.140 Em vários momentos encontramos tais paradoxos em seu texto

(). E a própria situação de humilhação, sofrimento dos leitores corroborou

para que o texto contemplasse também um discurso que elevasse o seu moral, um panegírico

ao seu Salvador.

Cabe dizer que isso de modo algum exigia uma exclusividade em um ou outro

gênero. Poderia acontecer de a peça oratória ser classificada como pertencente ao gênero

demonstrativo e apresentar partes do gênero deliberativo, ou vice-versa:

O elogio e os conselhos pertencem a uma espécie comum. O que podemos inserir num discurso, quando damos conselhos, torna-se matéria de panegírico, se lhe mudarmos a forma (Aristóteles Arte da Retórica, ).

Considerado todo ele (demonstrativo), tem algo de semelhante aos discursos do deliberativo, pois por comum o mesmo que neste aconselhamos, louvamos no primeiro (Quintiliano, Instituciones Oratorias ).

O �Panegírico de Trajano� escrito e pronunciado por Plínio, o moço, serve de

ilustração dos motivos componentes deste gênero. Vejamos:

Que presente dos deuses pode ser mais excelente ou mais formoso que um príncipe piedoso, irrepreensível e cuja aparência com os deuses seja extraordinária? (...). É evidente que nosso príncipe foi estabelecido pela vontade divina (). Porém tua moderação é muito mais louvável, porque, alimentado na glória das armas, amas a paz, e porque, apesar do merecido triunfo de teu pai e do laurel consagrado a Júpiter Capitolino o dia de tua adoção não tratas de aproveitar qualquer ocasião para conseguir as honras do triunfo (16). E que direi da doce severidade e da clemência isenta de debilidade que mostras em todos os juízos. Não te assentas no tribunal com a preocupação de enriquecer o fisco, e o único benefício que tiras de tua sentença é a consciência de haver operado justamente. Oh! Tarefa digna de um príncipe e inclusive de um deus: reconciliar as cidades rivais; aplacar os povos alvoroçados (...). Imagino como o pai do universo o rege tudo com um aceno de sua cabeça lança sobre a terra seu olhar e se digna contar os destinos dos homens entre as tarefas da divindade (...). Desempenhas, pois, teu compromisso e te mostras digno de quem te confiou, posto que todos os teus dias empregas em procurar nossa maior utilidade e tua maior glória (80).

Exposto isso, uma última observação se requer quanto ao gênero judicial. Expressões

deste tipo discursivo não se apresentam no texto de Hebreus. Sua linguagem é tranqüila, sem

altercações, e mesmo onde adverte seus leitores dos riscos de abandonar sua confissão, não

parte de algum ensino desviante, mas da própria situação dos leitores, ou seja, o que estava

140 Há casos em que o panegírico tem um efeito às avessas, uma sátira aviltando uma figura pública, como por exemplo, o texto de Sêneca �Apocoloquintosis (transformação em abóbora) do Divino Cláudio� (1.2-5): �Eu sei que me tornei livre no mesmo instante em que acabou os seus dias aquele que tinha demonstrado a verdade do provérbio: Um homem nasce ou rei ou idiota. (...). Mas se for preciso apresentar uma testemunha, dirija-se o leitor a quem viu subir Drusila aos céus: ele confirmará ter visto também Cláudio percorrer o mesmo itinerário �passinho por passinho�. Queira ou não, ele deve ver tudo o que acontece nos céus: é inspetor da Via Ápia.�

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em questão não eram opiniões doutrinais diferentes que estariam em discussão, mas o

desconhecimento das implicações das aceitas. Até a menção em parece ser mais uma

advertência a uma prática ascética e que nem foi tocada no decorrer do texto.141 Portanto, a

Carta aos Hebreus é um discurso do gênero demonstrativo com variações para o gênero

deliberativo.

Disposição

Neste passo, procuraremos apresentar como o autor estruturou as partes do discurso. Em

geral, o esquema padronizado consistia de () um exórdio (prooimion, exordium), () uma

declaração do caso (diegesis, narratio), () argumentação (pistis, confirmatio) e () uma

conclusão (epílogos, conclusio).142 Para tanto, levamos em conta que a Carta aos Hebreus

pertence tanto ao gênero Demonstrativo, ou seja, um panegírico a Cristo Jesus, com partes do

gênero Deliberativo.

Exórdio (Hebreus )

O exórdio é o começo do discurso. Aristóteles comparava o exórdio do gênero demonstrativo

ao prelúdio de uma ária; em outras palavras, o exórdio dava o �tom� do discurso (Arte

Retórica, ). Sua função era apresentar de entrada o que se pretendia dizer, a causa em

questão. Se esta pertencesse ao gênero demonstrativo ela seria honorável (Ad Herennium,

). Outra função do exórdio era captar a simpatia do auditório (captatio benevolentiae) para

que, dado o �tom�, os ouvintes mantivessem-se propícios desde o início, �isto se alcança

fazendo-lhes atentos, dóceis e benévolos� (Quintiliano, Instituciones Oratórias, 4.1.1).

Poder-se-ia fazer o exórdio de modo sutil (e;fodoj) e ou de modo direto (prooi/mion). O

modo direto agarrava a atenção dos ouvintes (ex abrupto). Hebreus é um exórdio deste

tipo, direto, ou seja, faz uma abordagem sem volteios, sem vocativos à audiência. O exemplo

de Isócrates:

Muitas vezes (polla,kij) fico assombrado com aqueles que primeiramente convocaram as assembléias nacionais e estabeleceram os jogos atléticos (gumnikou,jagw,naj), maravilho-me de que tenham visado as proezas dos corpos dos homens para merecerem tão grandes recompensas, enquanto aqueles que se afanaram da vida particular para o bem público e treinaram suas próprias mentes de modo que sejam aptas para também auxiliar seus companheiros sem receber recompensa (timh,) de qualquer tipo;

141 Aristóteles adverte quanto aos ensinos e práticas perniciosas que podem fazer perder os cidadãos nos vícios, prejudicando o Estado (A Política 4.15.9). 142 Burton L. MACK, Rhetoric and the New Testament, p. 41.

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quando, com toda razão, podiam ter feito provisões para o futuro; pois se todos os atletas adquirissem duas vezes a força que possuem agora, o resto do mundo não seria melhor; mas permita-se que um único homem retenha o saber e todos os outros comungarão dos benefícios favorecidos por discernimento daquele (Panegírico, ).

Compare-se a Hb :

Muitas vezes e de modos diversos (Polumerw/j kai. polutro,pwj) falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, neste dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. Ele é o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância; sustenta o universo com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade, tão superior aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles.

Os dois autores optaram por uma abordagem direta, salientando desde o início o caráter

superior das personagens que tiveram em mente. Note-se ainda que, tanto num como noutro

exórdio, o orador não se apresentou. Fizeram isso para que o foco estivesse na(s) pessoa(s) de

que se ocuparam em louvar. A propósito, Chaïm Perelmann afirmou que o orador dos

discursos demonstrativos é �um orador solitário que, com freqüência, nem sequer aparecia

perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava

um discurso ao qual ninguém se opunha.�143 Isso torna desnecessária a busca por um nome

para o autor de Hebreus, basta o que se pode cotejar dele no próprio discurso.

Narração (Hebreus )

A narração deveria se ater aos fatos conhecidos e que formariam o fundo para o discurso, ou

seja, não dizer nem mais nem menos do que convém (Aristóteles, Arte Retórica, ).

Muitas vezes poder-se-ia omitir este item dos discursos, mas nem todos os retóricos

concordavam com isto pela a possibilidade de adicionar informações úteis à causa

(Quintiliano, Instituciones. Oratorias, 3.2.1). Por conta disso, não era recomendado se estender

demais; brevidade, clareza e verossimilhança eram os atributos de uma boa narração (�Tre

res convenit habere narrationem: ut brevis, ut dilucida, ut veri similis sit�, Ad Herennium, ).

Nossa proposta de delimitação da narração é que se leve em conta a declaração de

Jesus como Sumo-sacerdote (arci,ereuj). A expressão aparece em ;

; . Em sua importância é explícita: �Ora o tema

mais importante da nossa exposição é este: temos tal sumo-sacerdote, que se assentou à

direita do trono da Majestade nos céus�. Embora não seja expressa em , o motivo do 143 Tratado da argumentação, p. 53.

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�sumo sacerdote� está presente: �e depois de ter realizado a purificação dos pecados�

(kaqari,smontw/n amarti,wnpoihsa,menoj. Já na primeira vez que aparece explícita () é

seguida de uma oração causal enunciada pela partícula ga,r em . Além disso, o conteúdo

desse bloco literário refere-se expressamente à encarnação de Jesus Cristo, cujos sofrimentos

culminam em sua morte, deixando antever que o seguirá é a interpretação de seu suplício

como obra salvífica de seus �irmãos� (). Por fixar-se nos sofrimentos e morte dolorosa

de Jesus, o autor enunciou aquilo que poderia ser considerado o ponto mais questionável da

fé cristã: O Messias crucificado. Com efeito, a narração, que atendeu aos três requisitos

(brevidade, clareza e verossimilhança), se ocupou somente de relembrar os fatos passados

mais pertinentes a respeito de Jesus, provocantes de censura e de vergonha pública. Dessa

maneira, ainda que se inicie retrocedendo até a sua pré-existência, o objetivo foi buscar uma

justificativa para a necessidade de sua morte e o papel de sumo sacerdote exaltado que Jesus

exerce a partir dela.

Mas de capital interesse é o artifício retórico utilizado pelo autor para fazer sobressair

o status de Jesus Cristo. Mediante a comparação aos anjos, o autor enfatizou a superioridade

do Filho (). Esse artifício também ocorre nas comparações de Jesus e Moisés (),

de Jesus e o sacerdócio levítico (5ss), etc. Tal recurso utilizado foi chamado de amplificação:

Devemos nos servir de muitos meios de amplificação (...). Acrescentaremos tudo o que se possa tirar das circunstâncias e das ocasiões, pois isso independe do que legitimamente seria de esperar. (...). Não omitiremos os incitamentos nem os distintivos encontrados e instituídos para ele (...). Haverá, porém, o cuidado de o por em paralelo com pessoas de renome: há muita matéria de amplificação em mostrar que um homem é superior às pessoas de bem. A amplificação enquadra-se logicamente no elogio, porque estriba na superioridade e a superioridade está no número das coisas boas. (...) a superioridade parece revelar o mérito. Entre as formas comuns a todos os discursos, a amplificação é, em geral, a que melhor se presta aos discursos demonstrativos, porque nela o orador toma os fatos aceites e só lhes resta revesti-los de grandeza e de beleza (Aristóteles. Da Arte Retórica, 1.6.38-40).

Desta forma, a temática dos anjos em atenderia a menção já expressa em 1.4: �tão

superior aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles�. A função do recurso seria

�revestir de grandeza e de beleza�, fazer brilhar a figura-chave que é Jesus. Por isso, o autor

não se preocupou em apresentar categorias das figuras angélicas e nem nomear anjos (ex.:

anjos, arcanjos, [serafins, querubins]; Miguel, Gabriel, Rafael). Se levarmos em conta que os

deuses seriam o paralelo de anjos numa assembléia divina (cf. Ovídio, Metamorfosis,

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),144 mais uma vez reforçaria a concepção das magistraturas; mas como o autor quis

incutir a idéia de cidadania sem paralelos do império, ele evitou a categorização. Não se trata

de uma redução, mas de não projetar os anjos além do necessário a fim de marcar a sobre-

excelência do Cristo. Diante do quadro apresentado do Mundo Mediterrâneo, os anjos

seriam a contraparte da dimensão espacial humana. Já em outros textos do Novo

Testamento, em especial da literatura paulina, encontramos classificações angélicas (Rm

; Ef ; Cl ). Potestas é o designativo, como vimos, dos magistrados (magisters).

Por sua vez, o autor o evitou e utilizou leitourgoi, ministros servidores (). No novo mundo

proposto pelo cristianismo, as criaturas celestes estão ao serviço dos que são objeto da

salvação, ainda que sejam menores que os anjos ().

Outrossim, a Cristologia apresenta um caminho a ser percorrido por Jesus, ou seja, o

mesmo que foi apresentado em Fp : Pré-existência (Hb a), encarnação (), cruz

() e exaltação (b; ).

Portanto, não foi movido por uma polêmica angelológica que o autor mencionou a

superioridade de Jesus Cristo frente aos anjos, mas como recurso retórico cuja finalidade foi

prover elementos para uma Cristologia Sacerdotal exaltada.

2.4.3. Argumentação (Hebreus )

A argumentação alterna partes do gênero deliberativo com partes do demonstrativo.

Seguiremos aqui a proposta de Lauri Thúren145com algumas alterações, esquematizamos da

seguinte maneira:

I. Deliberativo ()

i. Excurso Epidíctico ()

Transição ()

ii. Deliberativo (

Transição ()

II. Epidíctico ()

iii. Excurso Deliberativo ()

144 Comparar �e todas as coisas puseste debaixo dos seus pés...� (Hb 2.8) com a função do magistrado assentado na assembléia () como foi visto acima. 145 The general New Testaments writings, p. 589-592 in: Stanley E. PORTER (ed.), Handbook of classical rhetoric in the hellenistic period (330 B.C.-A.D. 400).

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Transição ()

iv. Epidíctico � retomada ()

Transição ()

III. Deliberativo ()

Transição ()

v. Excurso Epidíctico � Encômio dos Heróis da Fé ()

Transição ()

vi. Deliberativo ()

As alterações que propomos são primeiramente identificar os textos conectivos dos

blocos como �transição� (3.6; 4.14-16; 6.19-20; 10.19-22; 10.39; 11.39-40). A razão para isso está

no fato desses versículos funcionarem como uma espécie de �gancho� que unem as partes

laudatórias (epidíctico) às exortativas (deliberativo), e por vezes apresentar traços híbridos

(epidíctico-deliberativo; deliberativo-epidíctico), vejamos como isso se dá:

Hb Cristo, porém, na qualidade de filho, está acima de sua casa (epidíctico). Esta casa somos nós, se mantivermos a confiança e o motivo altaneiro da esperança (deliberativo). Hb Tendo, portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus, o Filho de Deus (epidíctico), Permaneçamos firmes na profissão de fé. Com efeito, não temos um sumo sacerdotes incapaz de se compadecer das nossas fraquezas... aproximemos, com segurança do trono da graça ...(deliberativo) Hb A esperança, com efeito, é para nós ancora da alma, segura e firme, penetrando além do véu (deliberativo), Onde Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para o éon, segundo a ordem de Melquisedec (epidíctico) Hb Sendo assim, irmãos, temos toda a liberdade de entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus. Nele temos um caminho novo e vivo... (deliberativo). Temos um sumo sacerdote eminente constituído sobre a casa de Deus (epidíctico). Aproximemo-nos, então reto e cheios de fé... (deliberativo) Hb Não somos desertores, para a perdição. Somos homens da fé, para a conservação da nossa vida (epidíctico)... Hb E não obstante, todos eles, se bem que pela fé tenham recebido um testemunho, apesar disso não se beneficiaram da realização da promessa. Pois Deus previa para nós algo de melhor, para que sem nós não chegassem à plena realização (epidíctico).

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Só não são híbridos os textos de 10.39 e 11.39-40. Quanto a este último, pode-se encontrar

alguma dificuldade em relação a para se identificar qual seria o texto de transição. No

entanto, optamos por , pois desde percebemos uma unidade.

Outra alteração da proposta de Thúren é de classificarmos textos como �excursos�

(3.1-5; 5.11-6.18; 11.1-38).146 Entendemos que esses textos funcionam como o outro prato da

balança; ora pendem para o deliberativo, ora para o epidíctico. Explicamos: Excurso (ou

digressão) não deve ser entendido como despropósito, como se o autor estivesse forçando o

discurso, mas como previsto pelos manuais. Quintiliano afirmou que a digressão era o

�tratar extraordinariamente de coisa distinta do assunto, porém que tem com ele alguma

relação� e pode aparecer em diversos lugares (Instituciones Oratórias, ). Já Aristóteles

aconselhou a salpicar o discurso com louvores (ou censuras) a cada momento em que se

fizesse menção de um personagem novo (Arte Retórica, ).

Peroração (Hebreus

O tipo dominante na �conclusão� é o deliberativo. Mas mesmo aí percebemos a presença do

gênero demonstrativo: o matrimônio é digno de �honra� (v. ), os dirigentes são dignos de

imitação (v. ), a imutabilidade de Jesus Cristo (v. ), um altar santo (v. ), sacrifício de

louvor (v. ), uma palavra de doxologia (vv. ). Nisso tudo se percebe como os dois

gêneros discursivos eram aparentados (Aristóteles Arte Retórica, ).

A conclusão (ou peroração) se poderia escolher entre quatro possibilidades: (1)

recapitulação; (2) buscar a simpatia do público; (3) provocar as paixões (cólera, ódio, inveja) e

(4) amplificação ou atenuação. Nosso autor não fez uso da recapitulação. Por outro lado,

buscou a simpatia de seu auditório ao pedir suas orações () e ao transmitir saudações e

notícias de Timóteo (). Mas, digna de atenção é passagem de : �Irmãos, eu vos peço

que acolhais esta palavra de exortação. Aliás, eu vos envio apenas algumas palavras�. Trata-

se da quarta possibilidade, atenuação. Percebe-se que disso se trata ao compará-la às

expressões mais fortes no decorrer do texto e como o autor veio amenizando suas frases,

mesmo quando usou de imperativos. Ao fazer isso, seguiu sugerindo que o fim do discurso

se aproximava. Suas últimas palavras estariam num tom muito fraternal e menos

altissonante que as de , mais próximas aos leitores.

146 Deve-se lembrar que o primeiro excurso aparece já na �narração� em 2.1-4.

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Invenção

Sob o título de invenção, os retóricos antigos compreendiam a coleta do material, verdadeiro

ou plausível que possibilitaria persuadir (Ad Herennium, ), ou seja, para que o discurso

fizesse sentido. O material coletado era classificado para (a) as provas intrínsecas e (b) as

provas extrínsecas. A matéria que comporiam as provas intrínsecas dependeria dos recursos

da própria retórica como as figuras de retórica. A matéria para as provas extrínsecas

proviriam de fora da retórica como por exemplo documentos, narrativas etc.

.1 Provas extrínsecas

O texto da Carta aos Hebreus revela que o autor buscou o material para o seu discurso

preferentemente na tradição das Escrituras Hebraicas (). Não obstante, o autor

expressou que �nestes dias que são os últimos, falou-nos por seu Filho�, não apresentou as

palavras do �Filho�, mas sua interpretação de quem ele é e fez (faz). Tratava-se de um

recurso retórico, pois pretendia que sua palavra fosse aceitável como fiel a Jesus.147 Sua

argumentação partiu assim de um repositório conhecido de seus ouvintes/leitores. Estamos

diante de material familiarizado aos que saberiam sua procedência (). Entretanto, isso

não impediu de que o autor o utilizasse criativamente, e é o que ele fez.

2.5.2. Provas intrínsecas

Como foi expresso acima, as provas intrínsecas eram aquelas que dependeriam

exclusivamente da arte retórica. A título de exemplo, nosso autor empregou as seguintes

figuras:

Aliteração: Polumerw/j kai. polutro,pwj pa,lai o` qeo.j lalh,saj toi/j patra,sin evn toi/j

profh,taij (1.1).

Endiadis (duas palavras que dão um único sentido): Polumerw/j kai.

polutro,pwj(1.1).

Esquematização comparativa:

Hb 148

Moisés Cristo

147 Quanto ao recurso retórico, Paulo faz algo similar em 1 Ts 4.9s, ou seja, diz uma coisa, faz outra: �Não precisamos vos escrever sobre o amor fraterno... Nós, porém, vos exortamos...� 148 Cf. Paul ELLINGWORTH, The Epistle to the Hebrews, 28.

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(a) era fiel é fiel

(b) em toda a casa (de Deus) como filho

(c) como um servo sobre a casa (de Deus)

Hb comparar com 149

(a) Temos sumo sacerdote eminente

(b) Que entrou nos céus (novo e vivo caminho)

(c) Jesus, o Filho de Deus (no sangue de Jesus)

(d) Acheguemo-nos com intrepidez (com o coração verdadeiro).

Etimologia (Aristóteles Arte Retórica ):

�Melquisedec... rei de Salém... E seu nome significa, em primeiro lugar, �Rei de Justiça�; e, depois, �Rei de Salém�, o que quer dizer �Rei da Paz�� (Hb ).

Imperativos retóricos: �Considerai atentamente� ( katanoh,sate); �Vede�

( ble,pete; qewrei/te); �Lembrai-vos� ( avnamimnh,|skesqe).

Perguntas retóricas dramáticas duplas: �De fato, a qual dos anjos disse Deus: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? Ou ainda: Eu lhe serei pai, e ele me será filho? (); triplas: �Quais foram os que ouviram, e fizeram a provocação? Não foram todos os que saíram do Egito graças a Moisés? E contra quem se indignou ele durante quarenta anos? Não foi acaso contra os que pecaram, e cujos cadáveres caíram no deserto? E a quem, senão aos rebeldes, jurou ele que não entrariam no seu repouso?� ().

Palavras compostas sonoras: misqapodosia, (2.2; 10.35; 11.26) euperi,statoj(12.1).

Perífrase (1.14; ).

Interposição de diversas palavras entre o artigo ou pronome e o substantivo:

diaforwteronpar� autou.j keklhro,nomken o;noma()

ouvk a;n peri. a;llhj evla,lei meta. tau/ta hme,raj()

ta.j auta.j polla,kij prosfe,rwn qusi,aj()

mi,an upe.r amartiw/n prosene,gkaj qusi,aj()

Poliptotos:150 �Que mais devo dizer? Não teria tempo de falar com pormenores de Gideão, Barac, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas. Estes,

149 Cf. J. ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 102. 150 Poliptotos são acumulações, variações e gradações que produzem ornamento e animam o debate: ��Pois nem Pélopes, nem Cadmos, nem Egitos, nem Dânaos, nem outros bárbaros de nascimento que habitam conosco, mas nós mesmos, gregos sem mistura com bárbaros, habitamos aqui...� Pois, naturalmente, os fatos nos chegam ao ouvido com mais pompa, quando os nomes são assim amontoados como um rebanho. Mas certamente, deve-se reservar esse

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pela fé, conquistaram reinos, exerceram a justiça, viram se realizar as promessas, amordaçaram a boca de leões, extinguiram o poder do fogo, escaparam do fio da espada, recobraram saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra, repeliram exércitos estrangeiros...� (Hb )

Dramaticidade (Hb ).151

Dramaticidade produzida pela mudança de pessoas, a fim de fazer o ouvinte pensar quase estar em meio dos perigos narrados:152 �Vós não vos aproximastes de realidade palpável: o fogo ardente, a escuridão, as trevas, a tempestade, o som da trombeta e o clamor das palavras cujos ouvintes suplicaram não se lhes falasse mais� (; cf. )

Amplificação por comparação (Quintiliano, Instituciones Oratórias. 8.4.1-2):

�Quem transgride a Lei de Moisés é condenado à morte, sem piedade, com base em duas ou três testemunhas. Podeis, então, imaginar que castigo mais severo ainda merecerá aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança no qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça?� (; entre outros textos).

2.6.Eclesiologia política

Após ter inventariado o material da composição retórica de Hebreus, ficamos convencidos

de que o autor de Hebreus apresenta uma Eclesiologia orgânica e bem elaborada, em que o

modelo Cidade-Estado foi o seu referencial, por isso propomos o nome de �Eclesiologia

Política�. Deve-se enfatizar que essa temática apresentava um desafio à cidadania celestial de

seus leitores a fim de viver o �hoje� sem desligar-se do que viria. Organizamos os conteúdos

de uma �Eclesiologia Política� conforme os resultados colhidos em nosso estudo até aqui.

Tomamos Hb 11.8-9 como texto inicial. A figura de Abraão era modelar para os

leitores, pois ele também foi peregrino, sem cidadania, habitando em tendas juntamente com

seus descendentes, patriarcas do povo de Deus (11.8-9). Os termos �peregrino�, �estrangeiro�,

�morando em tendas� eram altamente eloqüentes (para usar um termo retórico) e calaria

profundamente no coração dos leitores, os pais (já mencionados em 1.1) foram como eles,

sem cidadania, sem residência fixa. Também habitaram em moradias (em certa medida)

procedimento aos casos em que o assunto admite a jactância, ou a abundância, ou a hipérbole, ou a paixão, ou um ou vários desses procedimentos; pois pendurar sinos por toda parte é coisa de sofista� (Longino, Do Sublime, 13.1,4). 151�Quando representas fatos pertencentes ao passado como atuais e presentes, teu discurso não será uma narração, mas uma ação dramática� (Longino, Do Sublime, 25). 152 Longino, Do Sublime 16.1,2.

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provisórias já pelo caráter de �sem-terras� � a terra, como vimos, era o aspecto importante

para os aristocratas. O pai Abraão �esperava a cidade sem fundamentos, cujo arquiteto e

construtor é o próprio Deus� (11.8). Digna de nota e quase despercebida (a Bíblia de

Jerusalém remete o leitor a Ap 21.10-20), a cidade da esperança de Abraão, da qual o autor

declarou, foi fundada pelo próprio Deus. Lembremos que Cícero entendia que Rômulo,

fundador de Roma, possuía algo de divino.153 O autor pretenderia sobrepujar os autores seus

contemporâneos com sua cidade ideal ao mencionar o caráter singular da mesma. Uma

edificação foi de especial menção, tratava-se da �casa� arquitetada por Deus, cujo servo,

mordomo fiel se destacaria, Moisés, e cuja �casa somos nós, se mantivermos a confiança�

(Hb 3.6). O arquiteto dessa casa é o arquiteto do universo (3.4).

A Carta aos Hebreus tomou os lugares públicos (espaços e edificações) ora

positivamente, ora negativamente. Tais espaços eram necessários para a constituição de um

povoamento digno de ser chamado de cidade:

Querônea está a vinte estádios de Panopeu, cidade dos fócios, se é que é lícito atribuir o nome de cidade a quem não possui escritórios de governo, nem ginásio, nem teatro, nem agora, nem água canalizada numa fonte; eles vivem em casas despojadas, mais parecidas com os barracos plantados às margens dos pricipícios (Pausânias, Descrição da Grécia 10.4.1).

Usou de metáforas envolvendo os lugares públicos em vários momentos da carta. Em

10.32 fez alusão ao ginásio quando disse que seus leitores suportaram �um combate

doloroso� (pollh,n aqlesin) e um �certame que nos é proposto� (trecwmen ton prokeimenon hmin

agwna) em 12.4. Aludira também ao teatro em 11.33, quando disse que os crentes foram

�apresentados como espetáculo� (qeatrizo,menoi) no tribunal em que alguns foram injuriados

(oneidismoij); a praça em que suportaram as �tribulações� (qli,yeij) dos filósofos itinerantes, e

prisão (toi/j de,smioij), conforme 10.33-34. Em todos esses textos, Hebreus apresentou a

negatividade das experiências dos leitores transformadas positivamente.

O Pomerion era o nome do espaço em que se situava a cidade. Espaço sagrado. Por

isso, os suplícios e combates aconteciam extra-muros: �Jesus, para santificar o povo por seu

próprio sangue, sofreu do lado de fora da porta� (13.12). Aliás, com referência aos combates,

153 Aqui cabe uma nota de destaque quanto a Hb 11.4. Aí, Abel é mencionado e louvado por ter oferecido sacrifício melhor que Caim. O leitor lembraria que este assassinou aquele (Gn 4.8) e posteriormente fundou uma cidade (Gn 4.17), levando a maldição consigo, que se revela na falta de lei e a crescente violência em seu descendente representativo Lamec: �Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caím é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes� (Gn 4.24). Uma comparação entre os dois irmãos Rômulo e Remo e o assassinato deste por aquele provavelmente não escaparia da mente do leitor.

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a metáfora apareceu em 12.4: �Vós ainda não resististes até o sangue em vosso combate

contra o pecado!�

À função de magistrados se aludira na forma contrária, isto é, servidores ()

em 1.7 quando mencionou os anjos,154 bem como os dirigentes e guias em 13.7,17. Orígenes

observaria mais tarde:

Da mesma forma, comparando o conselho da Igreja de Deus com o senado de cada cidade, verificaremos que certos membros do Conselho da Igreja, se for uma cidade de Deus no universo, merecem nele exercer o poder, ao passo que os senadores de toda parte nada apresentam em seus costumes que os torne dignos da autoridade maior pela qual eles parecem dominar os cidadãos. Da mesma forma enfim, devemos comparar o chefe da igreja de cada cidade com o governante político, para observarmos que até entre os membros do conselho e os chefes da igreja que, por sua vida indolente, são inferiores aos mais ativos, podemos discernir em geral um progresso em direção das virtudes que supera os costumes dos senadores e governantes das cidades (Orígenes, Contra Celso, 3.30).

Em Hb 12.22-24, o autor recorreu a uma série de orações coordenadas sindéticas:

Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da Cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembléia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Jesus, mediador de nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloqüente que o de Abel.

Nestes três versos, o autor expusera à realidade supra-terrena da qual os leitores

experimentariam desde então, a expressão verbal �aproximastes� (proselhlu,qate) que se

encontra no perfeito do indicativo ativo, e como verbo principal apresenta os efeitos

resultantes de sua confissão, isto é, as declarações que se seguem.

Mas, o mais importante para nós é o fato de que as declarações eram típicas das

instituições cívicas da Cidade-Estado, ainda que expressas em vocabulário judaico: Cidade,

anjos, assembléia, aliança, juiz, sacerdócio e sacrifício. Retoricamente o autor falou de duas

dimensões (terreno-celeste), usando o vocabulário judaico (Sião, Jerusalém) numa tela greco-

romana (assembléia, censo). A Jerusalém celeste é a cidade �que tem fundamentos�, à qual

pertenciam os leitores da Carta aos Hebreus (Hb 11.8). Tratava-se de �uma pátria melhor�

(11.16-17), um �reino inabalável� (11.28). Mas ainda por realizar-se completamente (11.39).

Os leitores viviam numa cidade que não lhes dá acesso aos direitos de cidadania, ao

contrário, eram �peregrinos�, �estrangeiros� (11.13), descendentes de Abraão, o arameu

errante (2.16). A cidade celeste seria a grandeza que esperavam, conforme o autor, os fiéis

destinatários de Hebreus.

154 Estudaremos com mais vagar o termo aplicado aos anjos no capítulo seguinte.

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Entretanto, os recipientes enfrentavam a coerção de seu meio-ambiente social: desistir

da fé cristã (10.36). Esta coerção foi expressa em atos concretos: Os destinatários foram

ridicularizados como num espetáculo teatral (10.33), no despojamento de seus bens e no

encarceramento (10.33-34). Outros foram afligidos porque foram �companheiros� do Cristo

humilhado (3.14; 11.26).

Embora aproximados da cidade de Deus, e conquanto sua concretização esteja no

futuro, já se propôs uma Eclesiologia baseada nas associações típicas do mundo

Mediterrâneo de seu tempo. A respeito de tais agremiações Adolph Harnack diz:

O sistema de associações, naturalizada entre os gregos alguns séculos antes, desenvolveu-se sob a pressão social e política do império, e foi grandemente estendida pela troca de idéias morais e religiosas. As uniões livres, que, como regra, tinham um elemento religioso e foram estabelecidas para auxílio mútuo, apoio, ou edificação, sustentavam-se em certa medida devido a fenda social prevalente por uma organização democrática livre. Elas davam a muitos indivíduos em pequeno círculo os direitos que não possuíam no mundo maior, e freqüentemente serviam para estabelecer novos cultos.155

Os cidadãos possuíam inicialmente o direito de se reunir em agremiações (collegia) de

categorias tanto da mesma profissão bem como de caráter religioso, até escravos, libertos e

estrangeiros participavam. Podiam constituir um patrono, um deus protetor, reunir-se

freqüentemente para um banquete comum.

Em geral, eram os mais pobres que se organizavam assim, buscando um patrono que

seria homenageado pela categoria para patrocinar os banquetes e outras atividades. Por sua

vez, o patrono seria homenageado, saudado e suprido de votos necessários para o seu

interesse. Ambos, a agremiação e o clientelismo resultante disto não teriam a aprovação de

Aristóteles, que via certo perigo no ajuntamento de trabalhadores manuais (A Política, ).

Com o tempo o próprio imperador passou a desconfiar de tais confrarias devido aos

possíveis motivos para a formação de núcleos de poder.156 Tal fenômeno participativo se

explica devido a necessidade das pessoas sentirem calor humano, trocar idéias e sendo da

mesma profissão, os assuntos por si só já eram um tema para conversar (Cícero, Dos Deveres,

). A amizade era muito considerada no mundo greco-romano e o próprio Cícero escreve

a respeito do tema: �A mim parece, com efeito, que a natureza nos moldou para viver em

sociedade e tais laços se estreitam na medida em que estamos mais próximos dos outros� (Da

Amizade, ).

155 History of Dogma, vol. 1, p. 121. 156 Paul VEYNE, O império romano, in: P. ARIÈS/G. DUBY, A história da vida privada, vol. 1, p. 184.

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Outrossim, as associações também podiam hospedar viajantes do mesmo ofício e até

estrangeiros, caso os associados fossem de poucos recursos. As pessoas que eram boas

hospedeiras são bem lembradas como diz Teofastro citado por Cícero:

Corretamente, também a hospitalidade foi elogiada por Teofrasto, pois é muito decoroso, segundo me parece, abrir as casas de homens ilustres a homens ilustres, e também um ornamento para a república que estrangeiros, graças a esse tipo de liberalidade, não passem privações entre nós. E é ainda mais útil, para aqueles que desejam honestamente obter recursos e favor, recorrer a hóspedes escolhidos entre os povos estrangeiros. Na verdade, Teofrasto escreve que Címon, em Atenas, hospedou todos os seus compatriotas da Lácia; dispôs e instruiu seus caseiros a que tudo aprestassem para qualquer deles que se dirigisse à sua casa de campo (Cícero, Dos Deveres, )

As associações tinham por referencial a �assembléia dos homens livres� (cidadãos),

uma miniatura da instituição citadina em seus próprios termos capaz de fornecer um lenitivo

num mundo excludente. Encontramos tal modelo perpassando toda a Carta aos Hebreus

apesar do termo aparecer somente duas vezes (2.12; 12.23). Nesta �assembléia� o

primogênito de Deus não se envergonha de seus membros, ao contrário, chama-lhes de

�irmãos� (2.11-13). Os recipientes foram contados no rol de primogênitos inscritos nos céus

(12.23). Lembremos que as listas censitárias dos primogênitos eram feitas para fins de

cobrança de impostos, fins eleitoreiros, para distribuição de benefícios, para verificação do

número de cidadãos e exclusão dos fraudadores. Por sua vez, os membros da assembléia dos

destinatários de Hebreus foram contados pelo próprio Deus. Nela, os pequenos, os

excluídos do mundo Mediterrâneo, os fiéis seguidores do Cristo humilhado se tornaram

aspirantes de uma �pátria melhor� (11.16), neutralizando diante �do seu Deus� a opinião

pública corrente, pois se tratava de gente da qual �o mundo não era digno� (11.38). Como

outras associações, ela possuía um rito de iniciação (6.2), cujos membros receberiam a

iluminação espiritual (6.4). Participavam de doutrinação educativa (5.11-6.1; 12.5).

Cultuavam a Deus mediante os méritos de seu patrono, Jesus (13.15,20-21). Ofereceriam

sacrifícios e fidelidade a Deus ao confessar o seu nome (13.15).

Chama atenção o fato da Carta aos Hebreus mencionar diversas vezes no texto os

vocábulos �morte� (qa,natoj, ), �morrer� (avpoqnh,skw, 7.8;

9.27; 10.28; 11.4,13,21,37), �mortos� (nekro,j, 6.1,2; 9.14,17; 11.19,35; 13.20). Ora, discursos do

gênero demonstrativo, os panegíricos também eram pronunciados, como foi dito, não

somente em solenidades festivas, mas também por ocasião das cerimônias fúnebres. Algum

membro da família ou algum amigo fazia o discurso diante da imagem do falecido a fim de

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evocar os mais nobres sentimentos e exercitar a memória de outros. Vejamos alguns

exemplos em Hebreus:

Vemos, todavia, Jesus que foi feito, por um pouco menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte... provou a morte em favor de todos os homens. (2.9) (...) a fim de destruir pela morte o dominador da morte... e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte. (2.14-15) É ele que, nos dias de sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte... (5.7) E como é fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento... (9.27)

A nota constante se encaixa muito bem no gênero retórico epidíctico. Somado a isto, e

por causa disto, as associações eram também organizadas tendo em vista prover um funeral

digno para seus membros. Veja-se o seguinte estatuto:

Seja esta (Deusa Diana) propícia, [dando] felicidade e saúde ao Imperador César Trajano Adriano Augusto e à toda casa imperial, a nós, aos nossos e à nossa sociedade, e que possamos ter feito os preparativos apropriados e cuidadosos para fornecer obséquios na partida da morte. Portanto, precisamos todos concordar contribuir fielmente, de modo que nossa sociedade seja apta a continuar existindo por um longo tempo. Tu, que desejas entrar para esta sociedade como um novo membro, primeiro leia o estatuto cuidadosamente antes de entrar, de modo que não aches razão para queixas mais tarde ou então legar um litígio para teu herdeiro. 157

O autor de Hebreus teve o cuidado de confortar seus leitores continuamente, o que

poderia indicar um possível martírio: �Vós ainda não resististes até o sangue em vosso

combate contra o pecado!� (12.4). De fato, tais palavras enquadram-se numa moldura

martirológica, e se não for assim, ainda possuía força devido à natureza de tais associações.

Hebreus também pode ainda exercer a força de �estatuto� para a comunidade (2.1),

fazendo-a lembrar-se de que a vitória sobre a morte mediante o �iniciador� de sua salvação

(Hb 12.14) requeria fidelidade e perseverança:

De fato, é de perseverança que tendes necessidade, para cumprirdes a vontade de Deus e alcançardes o que ele prometeu. Porque ainda um pouco, muito pouco tempo, e aquele que vem, chegara e ele não tardará. O meu justo viverá pela fé, mas se esmorecer, nele não encontrarei mais nenhuma satisfação. Nós não somos desertores, para a perdição. Somos homens da fé, para a conservação da nossa vida (Hb 10.36-37).

157 Robert L. WILKEN, The Christians as the Romans saw them, p. 37.

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De modo que, negligenciar tão grande salvação seria incorrer na retribuição mais fatal que à

da antiga aliança (2.3; 12.25). Tais pessoas ficariam sem possibilidade de uma nova

conversão, de retorno ao status adquirido pela salvação (6.6).

A hora crítica pela qual passavam os leitores levou o autor a exortá-los a buscar

socorro junto a Jesus (2.18). A hora crítica era semelhante a que Jesus suportou. �É ele que,

nos dias de sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e

lágrimas, àquele que o podia salvar da morte; e foi atendido� (5.7). A permanência na fé

Cristã lhes garantia a recompensa (10.35; 11.1).

Outrossim, os panegíricos eram pronunciados diante das imagens de outros heróis.

Políbios escreve:

Por ocasião da morte de qualquer homem ilustre ele é levado em seu funeral com toda a pompa até o Fórum, perto dos chamados Rostros, algumas vezes bem à vista em posição vertical, e mais raramente reclinado. Ali, com todo o povo de pé em volta, um filho crescido, se ele deixou algum que esteja presente em Roma, ou se não outro parente, sobe aos Rostros e pronuncia um discurso alusivo às suas qualidades e aos seus sucessos e feitos ao longo da vida. Conseqüentemente toda a multidão, e não apenas quem teve alguma participação nesses feitos mas também quem não teve, quando os fatos são relembrados e postos diante de seus olhos comove-se e é levada a tal estado e empatia que a perda parece não se limitar somente a quem chora o morto e ser extensiva a todo o povo. Em seguida, após o enterro e a realização das cerimônias usuais, coloca-se uma imagem do defunto no lugar mais visível de sua casa, numa espécie de tabernáculo de madeira. Essa imagem consiste numa máscara reproduzindo com notável fidelidade a tez e as feições do morto. (...). Além disso, o orador incumbido de falar sobre o homem prestes a ser enterrado, após pronunciar-se a respeito do defunto evoca os sucessos e feitos dos outros... (Polibios, História, ).

Diante isto, entendemos o �encômio� de Hb 11. Elogio aos antepassados já apareceu em

Eclesiástico 44-50. Não obstante, no elogio aí feito não há referências à morte. Por sua vez em

Hb 11 a menção da morte é contínua:

[Abel] depois de morto, ainda fala! (v. 3) [Abraão] marcado pela morte... (v. 12) [Abraão, Isaac e Jacó] todos estes morreram... (v. 13) Ofereceu Isaac ... Deus é capaz de ressuscitar os mortos (v. 19) [José] deu ordens a respeito de seus restos mortais (v. 22) Algumas mulheres reencontram seus mortos pela ressurreição (v. 35) Outros foram torturados, recusaram o resgate para chegar a uma ressurreição melhor (v. 35) Outros (...) foram serrados e morreram assassinados com golpes de espada (v. 37)

Sofrimento, provação e morte se entrelaçavam no enfrentamento diário da gente fiel,

incluindo Jesus (12.2-4). Desta gente os leitores eram co-participantes (12.1).

Na assembléia dos destinatários diferentemente da assembléia da Cidade-Estado,

participavam homens, mulheres (11.35), idosos (11.11-12), muitos anti-heróis (11.36-38),

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escravos (José; os descendentes de Jacó no Egito, 11.23; Jesus, o crucificado, 12.2), libertos

(2.15; 11.27-29), trabalhadores manuais (o povo, força trabalhadora do Egito; Barac, que era

lavrador), peregrinos e estrangeiros, ainda que todos os seus membros fossem assim

considerados (11.13).

Além destes, duas figuras merecem destaque: Raab e Jefté (11.31-32). Raab era

�prostituta� e Jefté, bastardo, filho de prostituta (Jz 11.1). Categorias sem qualquer honra nas

cidades do mundo Mediterrâneo. As prostitutas surgiam como vítimas da miséria, o que

forçou muitas mães a propor a atividade às filhas:

Crobila: Escuta-me, vou te dizer o que deves fazer e como te comportar com os homens. Pois não temos outros meios para viver, filhinha, e tu não podes saber como vivemos miseravelmente desde que teu pai � que os deuses cuidem de sua alma! � morreu há dois anos. Quando ele vivia, tínhamos tudo o que necessitávamos. Era ferreiro e muito reputado no Pireu; ainda hoje, todo mundo diz que não haverá jamais melhor ferreiro que Filinos. Depois de sua morte, comecei por vender por duas minas suas ferramentas, sua bigorna, seu martelo; e isso bastou para vivermos sete meses. Depois, evitei com dificuldade que morrêssemos de fome, tecendo e fiando. Alimentei-te, minha filha, aguardando que minha que minha esperança se realizasse... Calculei que, quando tivesses a idade que tens agora, te seria fácil me alimentar e proporcionar a ti mesma a fortuna, as vestes de púrpura e servas. Corina: Como? O que queres dizer? Crobila: Indo ao encontro de jovens, bebendo com eles e com eles dormindo em troca de dinheiro. Corina: Tal como Lira, a filha de Dáfnis? Crobila: Sim. Corina: Mas ela é uma prostituta! Crobila: E daí? Isso não é nada terrível! Serás rica como ela e terás muitos amantes. Por que choras, Corina? Tu não vês como as prostitutas são muito procuradas, e como ganham dinheiro? Que Nêmese me proteja, vi essa filha de Dáfnis coberta de andrajos, quando era pequenina; e vê agora o ar que ela tem, com suas jóias, suas vestes de várias cores e suas quatro servas (Luciano, Diálogo das cortesãs, 6).

Este exemplo mostra a dura realidade de tais pessoas. Quanto aos bastardos, estes podiam

até ser filhos de nobres com escravas, ou libertas, contudo, não eram reconhecidos como

filhos por seus pais. A menção das figuras bíblicas Raab e Jefté, exibiria a continuidade

histórica da grandeza acolhedora do povo de Deus.

Relacionado à morte de um patrício, como já vimos, estava a leitura do testamento.

Este é outro tema desenvolvido em Hebreus. Em Hb 9.17 lemos: �O testamento, de fato, só

tinha valor no caso de morte. Nada valia enquanto o testador estiver vivo�. No mundo

Mediterrâneo a herança era o marco para uma vida mais livre, sem as injunções e diretivas

paternas. E no desejo de antecipar a sua aquisição, certos filhos também antecipavam a morte

de seus pais.158 Como um manifesto, o testamento era a declaração dos desejos do defunto, a

oportunidade para se expressar como benfeitor da cidade, dos cidadãos, dos filhos, dos

158 Paul VEYNE, História da vida privada, vol. 1, p. 42.

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libertos e dos escravos. Cada qual recompensado com uma fração da herança, o que fazia

crescer sua estima entre os nomeados.159 O momento também era próprio para o insulto �post

mortem aqueles a quem havia detestado secretamente�.160 Oportunidade social, a leitura do

testamento era um evento grandioso, �do qual todos se orgulhavam tanto, que muitos

dificilmente resistiam ao desejo de iniciar a leitura depois de beber, para agradar de antemão

os legatários e se fazer estimar�.161 Hebreus descreveu a promulgação da primeira aliança

por Moisés mediante o sangue de novilhos e a segunda por Jesus, herdeiro de todas as coisas

(1.2), mediante seu próprio sangue (9.18-24), legando assim a salvação aos que abraçaram a

fé (10.1). Tal salvação se concretizaria plenamente num futuro muito próximo (10.25,35-39;

11.39-40). A linguagem de herança continuou em outros textos:

Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram (11.6) [Noé] condenou o mundo, tornando-se o herdeiro da justiça que se obtém pela fé (11.7) [Abraão] obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança... (11.8) [Moisés] considerou a humilhação de Cristo uma riqueza maior do que os tesouros do Egito, por ter os olhos fixos na recompensa (11.26)

Esta herança recebida era da mesma medida que recebeu o primogênito das famílias (1.6;

11.28). Por isso, a apostasia equivaleria a desprezar o valor da primogenitura, como fez Esaú

(12.16-17).

A cidadania no mundo Mediterrâneo dava acesso ao privilégio do �ócio�, um

repouso digno do cidadão. É verdade que somente os cidadãos ricos podiam desfrutar desse

repouso enquanto que aos escravos e aos pobres cabia-lhes a luta diária sem descanso por

sua sobrevivência.

A economia romana comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em que um credor seqüestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do Fisco (ou seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas; muitos cristãos conheceram tal destino.162

159 Ibid., p. 43. 160 Ibid., p. 43. 161 Ibid., p. 43. 162 P. VEYNE, História da vida privada, vol. 1, p. 124.

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Já uma cidade romana era reconhecida como tal pela presença de uma �classe ociosa�, a dos

notáveis.163 Cícero manifesta a sua opinião sobre o ócio nos seguintes termos:

Muitos há e houve que, buscando a serenidade de que falo, retiraram-se dos negócios públicos e refugiaram-se no ócio. Cito entre eles os nobilíssimos filósofos � de longe, os primeiros � e alguns homens severos e graves que não puderam suportar os costumes nem do povo nem dos dignitários, a isso preferindo viver no campo e fruir seu patrimônio. Esses acalentaram o mesmo propósito que os reis: não carecer de nada, não obedecer a ninguém e gozar de completa liberdade, isto é, viver como queira. Semelhante atitude é própria dos que cobiçam o poder tanto quanto, como eu disse, se entregam ao ócio; uns se julgam capazes de alcançar essa tranqüilidade se possuírem riquezas, outros se contentarem não só com o seu, mas com o seu pouco (Cícero, Dos deveres, 1.69-70)

Como se vê, somente os abastados podiam usufruir do repouso, chamado de �ócio�. A Carta

aos Hebreus explora a temática do �repouso� como recompensa dos migrantes escravizados

do Egito (3.7-4.11), a contraparte do ócio romano. Desta vez, os destinatários fiéis seriam os

que desfrutariam do repouso de Deus: �Nós, porém que abraçamos a fé, entraremos no

repouso...� (4.3), contanto que ouvissem a sua voz (4.11).

Citamos ainda outro tema, o do governo desta �assembléia de Deus�. Enquanto os

dignitários eram chamados de magistrados, em Hb 13.7,17 os líderes comunitários eram os

�dirigentes� (oi` hgou,menoi) como Aristóteles na Constituição de Atenas, 12.2:

E ainda, [Sólon] ao revelar o modo por que se deve lidar com a multidão: O povo assim melhor seguiria os seus chefes () nem demasiadamente solto nem forçado, pois o excesso gera insolência quando grande prosperidade alcança homens que têm mentes ajustadas.

No texto acima, Sólon aconselhou como os governantes deveriam dirigir o povo. Em

Hebreus, o autor ao exortar seus leitores mencionou a tarefa de seus líderes: �porque velam

pessoalmente sobre as vossas almas� (11.17). O verbo agrupne,wexpressa a idéia de pastoreio

do rebanho, do qual Jesus é o �grande pastor� (13.20).

Finalmente, a pertença à cidade ou à associação exigia certos deveres de seus

membros, a cidade celeste ou sua assembléia também exigia os seus. Baseado no binômio

�honra e vergonha� apresentou-se uma lista de deveres para seus recipientes. Como nas

assembléias públicas e associativas, os membros deveriam ser fiéis participantes, assíduos e

pontuais (4.1,11; 10.25). Deveriam praticar o serviço mútuo (6.9), o estímulo às boas obras e o

pastoreio mútuo (10.24). Deveriam manter a unidade interna da assembléia (12.14-15), dar

atenção à palavra de Deus (12.25). O amor fraterno, que já era praticado (6.10), deveria ser

163 Ibid., p. 124.

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constante (13.1); a castidade e a fidelidade eram virtudes honradas (13.4). A liderança

merecia respeito e deveria ser modelar (13.7,17). Os prisioneiros não foram esquecidos, pois

sofriam pelo �Nome� (10.32-34; 13.3). Nem deveria ser esquecido que Deus e o Benfeitor da

comunidade fossem louvados (13.15, 20-21). A hospitalidade foi comparada à recepção de

anjos (13.2), e como bons cidadãos não deviam omitir a beneficência (13.16). Em suma, estes e

outros seriam os deveres de cidadãos que estavam à �procura da cidade que está por vir�

(13.14).

2.7. Conclusão

Os resultados da análise retórica e da leitura da intertextura cultural de Hebreus nos

auxiliam a perceber o quadro ambiental em que se inseria a sua mensagem. Autor e

recipientes se moviam numa sociedade estratificada que não lhes dava direito à cidadania,

pelo contrário perseguia, infringia seqüestro de bens, aprisionava, ridicularizava e os cobria

de injúrias. Somava-se a isto tudo, o mais grave, isto é, o desprezo a Jesus, o crucificado,

fazendo pouco do apóstolo de Deus, mediador da criação e da salvação. Que, além disso,

haveria pouca probabilidade de uma polêmica em torno da angelologia bíblica ou extra-

bíblica no seio da comunidade, mas que, as menções aos anjos no escrito funcionaram antes

como referencial para a amplificação do Filho de Deus entronizado, superior a toda a

Criação. O próprio lugar das referências aos anjos na estrutura do discurso Epidíctico não

caberia polêmica alguma; se houvesse, esta deveria vir no centro, ou seja, na �prova�

(Probatio). A exaltação de Jesus tanto acima dos anjos e de quaisquer outros personagens

objetivou fundamentar todas as assertivas da argumentação central feita pelo autor de

Hebreus, e não de uma polêmica per se.

O autor revelou grandes habilidades retóricas das quais destacamos a inventio, ou

seja, o inventário de temas, materiais e estratégias concernentes ao objetivo de sua persuasão:

Enaltecer a Jesus e exortar seus leitores a manter a fidelidade na provação (figurada na

caminhada no �deserto�, mas que levaria à Cidade de Deus, a Jerusalém Celeste). Com

efeito, o autor de Hebreus explorou as instituições da Cidade-Estado e transformando-as

positivamente em benefício dos recipientes. Estes temas entrelaçados (cidadania,

peregrinação, escravismo, liberdade, sacerdócio etc...) faz com que a carta se harmonize com

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o título que recebeu: �Hebreus�164. Hebreus são todos aqueles crentes em Jesus Cristo que

estão de passagem por este éon, buscando uma cidadania superior, cujo arquiteto é o mesmo

que fez o universo.

Contra este pano de fundo, o discurso da Carta aos Hebreus funcionaria como uma

constituição de uma sociedade alternativa, ideal, à que estava aí. Destarte, Atributos dos

cidadãos de pleno direito, dos magistrados, do imperador, negados ao ser humano

�comum�, anônimo e sem berço, foram dados tanto ao Cristo crucificado, como ao ser

humano que confiou em seu nome. Tal �manifesto cristão� por si mesmo constituía uma

agressão ao sistema opressor do império que nivelava os outros sempre para baixo, como

servos �inúteis� frente à bazófia dos �inscritos� pela Cidade-Estado do mundo greco-

romano. Este pano de fundo cultural fornece uma chave de compreensão do porque o Jesus

confessado pela comunidade de Hebreus não poderia ser menos que divino, pois se assim

fosse, não seria o Salvador do povo.

O que tratamos aqui ajuda-nos a perceber que o autor escreve dialogicamente com o

seu meio-ambiente sócio-cultural e de seus destinatários. A proposta da Cidade, bem como o

tecido sobre o qual se entrelaçaram os seus fios, requer a presença e participação do primeiro

cidadão, isto é, o princeps entronizado. Jesus é o primeiro cidadão desta cidade, cuja casa

(assembléia) seria (é) a comunidade dos leitores (3.6).

Dito isto, nossa próxima tarefa será descortinar as tradições judaicas que

possibilitaram a expressão da Cristologia desse exemplar do Cristianismo primitivo.

Abordaremos os textos de Hb 1-14; 2.5-18, uma Cristologia Exaltada que entendeu a Jesus

como divino, sem contudo lesar a confissão do monoteísmo de Israel. No próximo capítulo

trataremos da contribuição das tradições angelomórficas fizeram para a referida Cristologia.

164 Descuramos o título �Hebreus� não pela origem étnica de seus leitores, mas do teor da mensagem em si.

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Capítulo 3

ANJOS, FIGURAS HIPOSTÁTICAS E JESUS

(Hebreus 1.1-14; 2.5-18)

No capítulo anterior estudamos o plano retórico da Carta aos Hebreus a fim de reconstruir o

seu auditório diante do seu meio ambiente sócio-cultural ao mesmo tempo em que buscamos

identificar o gênero do discurso empregado pelo autor. Os resultados colhidos nos ajudaram

a reconstruir a sua proposta eclesiológica.

Diante disto surge à necessidade de se buscar uma abordagem cristológica coerente

com sua eclesiologia. Propomos que o autor trabalhou sua Cristologia de duas maneiras

interdependentes: (1) impulsionado pelo motivo da trajetória do herói do mundo greco-

romano, retirou os seus conteúdos fundantes da confissão cristã e das Escrituras de Israel

que lhe foram outorgadas; e (2) que subjazendo a expressão do Cristo exaltado estariam

presentes tradições angelomórficas muito similares às encontradas nos escritos

pseudepígrafos dos quais recebeu influência. Tais tradições angelomórficas foram colhidas e

remodeladas de acordo com seus objetivos cristológicos. Cabe aqui a observação de que

embora não houvesse uma polêmica angelológica na comunidade de Hebreus, isto não o

impediu de lançar mão de seus elementos, mas ao contrário, o autor se valera seletivamente

dos conteúdos angelomórficos do povo judeu, modificando-os conforme seus postulados.

Neste capítulo, estudaremos o texto de Hb 1-2 em seu contexto e em seguida sob a

ótica da História Comparada das Religiões. Neste caso, delimitamos os motivos

angelomórficos que se apresentam em Hb 1.1-4 para o nosso estudo, ainda que nem todos

sejam contemplados neste capítulo, ou seja, os temas do sacerdócio e da salvação ficam para

o próximo capítulo.

3.1. O herói greco-romano como modelo

O discurso do gênero epidíctico, como vimos, atendia aos propósitos de louvar/censurar,

sendo comumente utilizado para enaltecer os deuses, os heróis, os soberanos e para

homenagear os defuntos nos ofícios fúnebres. Quanto ao discurso que celebrava um herói,

Quintiliano diz:

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Adiciona-se honra aos deuses os pais de que tiveram origem, como ser um filho de Júpiter. A antiguidade, como o haver tido princípio do caos. Os filhos, como Diana e Apolo, que foram filhos de Latona. Em alguns se deve louvar os de terem nascidos imortais, em outros o haver conseguido a imortalidade pelos próprios méritos, como a conseguiu a piedade de nosso príncipe do século presente (Inst. Or. 3.7.2).

A comparação de Jesus aos heróis do panteão greco-romano seria mencionada por

Justino de Roma em sua Apologia 1.21.1-3:

Também quando dizemos que o Verbo, primeiro rebento de Deus, nasceu sem relação carnal, isto é, Jesus Cristo, nosso Mestre, e que ele foi crucificado, morreu e, depois de ressuscitado, subiu ao céu, não apresentamos nada de novo se se levam em conta os que chamais de filhos de Zeus (ênfase minha). De fato, sabeis bem a quantidade que os vossos estimados escritores atribuem a Zeus: Hermes, o Verbo intérprete e mestre de todos; Asclépio, que foi médico e que, depois de ter sido fulminado, subiu ao céu; Dioniso, depois que foi esquartejado; Heracles, depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos; os Dióscoros, filhos de Leda, Perseu de Dânae e Belerofonte, nascido de homens, sobre o cavalo Pégaso. Para que ainda falar de Ariadne e dos que, semelhante a ela, se diz que são colocados nas estrelas? Passo por alto também vossos imperadores mortos, aos quais tendes sempre como dignos da imortalidade e nos apresentais algum infeliz que jura ter visto César incinerado subir da pira ao céu.

Hebreus apresentaria Jesus mediante o modelo heróico.165 A seqüência deste modelo

�é ritmado pela alternância nascimento-morte-renascimento/apoteose.�166 Grosso modo, o

herói era de natureza divina, isto é, filho de um deus e uma mulher humana. Surgiria

publicamente depois de um período de ocultação, então realizaria diversos trabalhos

maravilhosos.167 Depois chegaria o dia em que enfrentaria a morte, devido a sua

humanidade, mediante a qual subiria aos céus, ou seja, sua apoteose.168 Apolodoro descreveu

a apoteose de Héracles:169

Quando Dejanira soube o que ocorreu, enforcou-se. Heracles, logo encomendou a Hilo, o filho mais velho que tivera com Dejanira, que quando se fez homem se casara com Yole; foi ao monte Eta, que pertence aos traquinios e ali fez uma pira, subiu nela e ordenou que a incendiassem. Porém como ninguém queria fazê-lo, Peante, que passava procurando seus rebanhos, ateou fogo; por isso Heracles lhe presenteou com seu arco. Enquanto se consumia a pira, conta-se que uma nuvem se pôs debaixo e trovejando o levou ao céu. Desde então, alcançou a imortalidade e se reconciliou com Hera, casando-se com sua filha Hebe, da qual lhe nasceram Alexiares e Aniceto.

165 David E. AUNE, Heracles and Christ: Heracles imagery in the Christology of early Christianity, in: David L. BALCH (Ed.), Greeks, Romans, and Christians, p. 3.; Adele Yarbro COLLINS, Apotheosis and resurrection, in: Peder BORGEN/Sören GIVERSEN (Ed.), The New Testament and hellenistic judaism, p. 96. 166 Philippe SELLIER, Heroísmo, o modelo � da imaginação, in: Pierre BRUNEL (org.), Dicionário de mitos literários, p. 468. 167 Ibid., p. 468. 168 Ibid., p. 468. 169 Biblioteca Mitológica, 2.159-160. O envenenamento de Héracles.

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Em Hebreus, Jesus é pré-existente e seu pai é o Deus de Israel (1.1-4). Por ocasião de

sua introdução ao mundo é declarado filho de Deus (1.5-6). Nada é dito de seus pais carnais.

Quanto à sua palavra, esta foi acompanhada de sinais, prodígios e vários milagres (2.3-4).

Nos dias de sua humanidade foi provado por várias tentações, mas manteve-se obediente até

o fim (5.7-9). Foram dois os seus trabalhos: �... destruir pela morte o dominador da morte,

isto é, o diabo; e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da

morte� (2.14-15). Jesus cumpriu estas funções mediante sua morte, que o fez a um só tempo

sacrifício e sacerdote (9.28). Não se fala de sua ressurreição, mas de sua ascensão ao céu (9.24;

13.20), onde, entronizado, realiza contínua intercessão pelos fiéis (10.19).170

Mas o autor, ainda que use do modelo heróico, partiu da tradição cristã que professa

a morte e ascensão de Jesus Cristo. Dependeu também das tradições angelomórficas, apesar

de não explicitá-la, para apresentar o Jesus exaltado à direita de Deus.

A seguir apresentamos os motivos angelomórficos que servirão de fator norteador de

nosso estudo.

3.2. Tradições fundantes do mediador angelomórfico

Em geral, as características angelomórficas de um mediador seriam adquiridas em sua

ascensão ao céu, como recompensa por uma vida justa e exemplar.171 O mediador em questão

se encontraria no limiar de duas existências, de duas dimensões distintas, da terrena e da

celeste. No caso do Cristianismo das origens, sua convicção é a de que Jesus é o mediador

definitivo entre Deus e a humanidade. Como mediador divino, a confissão proposta por

Hebreus é uma Cristologia sacerdotal e angelomórfica, isto é, que tem no sofrimento e

exaltação de Jesus sua maior expressão.

Hebreus 1.1-14; 2.5-18 forneceu-nos os elementos para o estudo dos aspectos

angelomórficos da Cristologia da carta. Elencamos mais uma vez os motivos típicos da

morfologia de vice-regência angelomórfica propostos por Nathaniel Deutsch:172 (1) Função

demiúrgica, (2) Guardião do portal (a habitação de Deus), (3) Governante (de seres humanos

e ou angélicos), (4) Juiz, (5) Sacerdote, (6) Forma paradigmática do homem primordial, (7)

170 A ascensão em uma nuvem tem seus paralelos na literatura do Judaísmo do período do Segundo Templo. 171 Martha HIMMELFARB, Revelation and rapture, in: John J. COLLINS/James H. CHARLESWORTH (Ed.), Mysteries and revelations, p. 85. 172 Guardians of the gate, Angelic vice regency in late antiquity, p. 14.

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Ontologia compósita (tem a uma só vez características de Deus, de seres humanos e de

anjos). Tais motivos são ligados entre si pela �colagem� do tema da mediação.173

3.2.1. Dois motivos paradigmáticos: �O Anjo do Senhor� e �A Assembléia Divina�

Os anjos174 não são estranhos à literatura do Antigo Testamento. O termo $lm (mal´ak) ocorre

213 vezes no AT e pode se referir tanto a mensageiros humanos como divinos175. A LXX usa o

termo a;ggeloj para ambos. Já a Vulgata preferiu fazer distinção entre mensageiro humano e

mensageiro divino. Para tanto usou o termo angelus para este e nuntius para aquele176.

Os mensageiros humanos podiam ser pessoais, no entanto, estes aparecem somente 4

vezes (Gn 32,3.6; Jó 1,14; Pr 13,7; Is 18,2). Além de que o termo mal´ak também é encontrado

referindo-se a enviados políticos177 (cf. Js 7.22; Jz 11,17), e enviados divinos que podem ser

profetas178 (cf. 2 Cr 36,15s; Is 44,26), sacerdotes179 (Ml 2,6s; Ec 5,1-7) e anjos. Para esta última

categoria se usa denominar mal´ak yhwh (´ädönäy) e mal´ak ´élöhîm.180 Estas duas expressões é

que nos interessam. Inicialmente veremos os conteúdos bíblicos referentes ao mal´ak yhwh

(Anjo do Senhor), um anjo totalmente distinto de todos os outros. Posteriormente,

apresentaremos o tema da Assembléia Divina que, juntamente com aquele, são

paradigmáticos e recorreremos a ambos muitas vezes nesta pesquisa.

3.2.1.1. O Anjo do Senhor

Onde aparece o mal´ak yhwh no AT, ele se torna o foco da atenção. Há consenso de que as

tradições de sua figura são bastante antigas.181 Chama a atenção o fato de algumas vezes o

mal´ak yhwh ser identificado com o próprio Deus e outras vezes ser distinto dele. Quando

identificado com Deus passa a ser não somente um mensageiro, mas uma manifestação da

173 Ibid., p. 14. 174 Charles A. GIESCHEN define assim a palavra �anjo�: �Mensageiro, significa um espírito ou ser celestial que faz mediação entre as esferas humanas e divinas�. In: Angelomorphic Christology, Antecedents and Early Evidence, p. 27. 175 Ialm FREEDMAN-WILLOUGHBY. Ialm in: TDOT, vol. VII, p. 308. 176 Ibid., p. 309. 177 cf. 1 Sm 23,27; 2 Sm 11,19.22.23.25; 1 Rs 20,2; 2 Rs 16,7; 17,4; 19,9 etc. 178 cf. Jr 1,4-10; Ez 30,9; Ag 1,3; 13. 179 Ialm FREEDMAN-WILLOUGHBY, p. 316s. 180 Ibid.,, p. 317. 181 Gerhard von RAD escreve: �Até onde os materiais permitem, em Gênesis 16,7ss; 21,17ss; 22,11ss; 31;11ss; Êxodo 3 2ss; Juizes 11,1ss, nós temos tradições muito antigas (isto é, pré Javistas e pré-Israelitas), que registram a aparição de um numen. Elas foram absorvidas para o estoque de tradições de Israel e adaptadas à sua fé pela formação de histórias contadas de uma aparição do anjo de Javé da deidade estrangeira (Canaanita)�. In: Old Testament Theology, vol. 1, p. 286.

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deidade, uma hipóstase de Deus. Para isso, há alternância entre os termos �Deus� e �Anjo do

Senhor� como em Gn 21.17-18 e Jz 6.11s,14. Vejamos, por exemplo, a comparação desses

textos.

Gênesis 21.17-18 Deus (´élöhîm) porém, ouviu a voz do menino; e o anjo de Deus (mal´ak ´élöhîm) chamou do céu a Hagar e lhe disse: Que tens Hagar? Não temas; porque Deus (´élöhîm) ouviu a voz do menino, daí onde está. Ergue-te, levanta o rapaz, segure-o pela mão, porque eu farei dele um grande povo.

Juizes 6.11s.14 Então veio o Anjo do Senhor (mal´ak yhwh) e assentou debaixo do carvalho, que está em Ofra, que pertencia a Joás, abiezrita; e Gideão, seu filho, estava malhando o trigo no lagar, para o por a salvo dos midianitas. Então o Anjo do Senhor (hwhy ialm) lhe apareceu e lhe disse: O Senhor é contigo (yhwh), homem valente. (...). Então se virou o Senhor (yhwh) para ele e disse: Já que estou contigo, ferirás os midianitas; por ventura eu não te enviei?

Observe-se que em Gn 21.17-18 a alternância se dá entre mal´ak ´élöhîm e ´élöhîm. Mas em

Juizes 6.11s,14 é mal´ak yhwh e yhwh. O importante nisso é que os textos são considerados,

nessas porções, unitários, sem glosas ou coisa do tipo. A coerência se caracteriza no fato de

que, se inicialmente aparecer o termo ´élöhîm, o Anjo será designado de mal´ak ´élöhîm. E se o

termo é yhwh, o Anjo é designado de mal´ak yhwh .

Também é digno de nota que o Anjo do Senhor se manifeste em forma humana. Isto

se infere claramente do texto de Juizes. Não há surpresa alguma, inicialmente, de Gedeão

diante da figura do Anjo (v. 13); ao se referir ao Senhor o faz como se fosse uma terceira

pessoa (v. 13). Em dúvida, pede ao interlocutor que o espere enquanto prepara um cabrito

para dar de comer ao Anjo (v. 18s). Gedeão percebe que se trata do Anjo do Senhor quando

este tocou com o cajado na carne e nos bolos, que são consumidos (v.21s). Então o medo se

apoderou de Gedeão que exclama como Isaías diante de sua visão-vocação:

Viu Gedeão que era o Anjo do Senhor, e disse: Ai de mim, Senhor Deus, pois vi o Anjo do Senhor face a face (Kî|-`al-Kën rä´îºtî mal´ak yhwh Pänîm ´el-Pänîm). (Juizes 6,22) Então disse eu: Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio dum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos! (hammeºlek yhwh(´ädönäy)

cübä´ôt) (Isaías 6,5)

Numa cena e noutra, a sensação da morte é decorrente e imediata. Quem vê o Senhor,

morrerá. Por isso, Deus conforta Gedeão: �Não temas! Não morrerás!� (Jz 6,23). Em Isaías 6 é

um Serafim que conforta o profeta: �A tua iniqüidade foi tirada e perdoado o teu pecado� (v.

7). Também há diferenças de lugar. Gedeão vê o Anjo de Yahweh no campo, isto é, o anjo

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vem ao seu encontro. Isaías vê, num êxtase, Yahweh entronizado como rei em seu santuário.

A impressão de Isaías é mais imediata da que de Gedeão por se achar no ambiente de Deus e

sua visão ser gloriosa. Gedeão está no campo, o Senhor parece indistinto de qualquer ser

humano. Mas para nossos propósitos é bom salientar que a identificação do Anjo do Senhor

com o Senhor nos textos de Gênesis e Juizes se torna evidente.182

Outra passagem importante da manifestação do mal´ak yhwh é a de Gn 18,1-19,1-20, a

aparição dos seres celestes anunciando e levando a cabo a destruição de Sodoma e Gomorra.

O texto inicia dizendo que yhwh apareceu a Abraão (18,1), e na continuação diz que Abraão

viu �três homens de pé� (18,2). Dos três, um é claramente distinguido dos outros dois como

yhwh (18,20.26). Os outros dois são chamados de ´élöhîm (Gn 19,1) e se declaram enviados

por yhwh (19,13). No entanto, surpreende que na conversa com os anjos, Ló se expresse

como se estivesse falando ao próprio yhwh (19,18-19), todavia, paira a incerteza. A esse

respeito Gordon Wenham escreve:

�Não, Senhor� (´al-nä´ ´ádönäy) (...) adonai é a maneira própria de se dirigir a Deus (cf. 18,3), e a subseqüente intercessão de Ló é dirigida a Deus. Se a narrativa está sugerindo que o Senhor se reuniu aos anjos fora da cidade, ou se Ló está apenas sendo muito polido, é obscuro. Poderia ele saber realmente a quem falava na escuridão antes da alvorada? O mistério é provavelmente deliberado183.

Gerhard von Rad entende que o conteúdo das palavras de Ló diz respeito a Deus: �Quando

um homem recebe livramento do juízo, trata-se de assunto de Deus somente�184.

Em Gn 22.11, o mal´ak yhwh do céu chama a Abraão. Sua fala, uma vez mais é

entendida como a do próprio Deus, e é assim entendido por Abraão (22,14). Já os versos 15 e

16 desse mesmo capítulo poderiam deixar dúvidas se agora o anjo é o próprio yhwh ou se

distingue dele, mas jurar por si mesmo parece ser um indicativo de que a afirmação é feita

por Deus. Tanto em Gn 18.1-19.20 e 22.11, o relacionamento de Abraão e Yahweh é sem

qualquer cerimonial. Abraão não teme diante de Yahweh (seu anjo) e nem precisa fazer

confissão de pecados. Isto influiria na literatura pos-exílica a seu respeito.

Na narrativa da busca de uma noiva para Isaque, em Gn 24,7, o anjo se distingue de

yhwh : �O Senhor, Deus do céu, ... ele enviará o seu anjo, que te há de preceder�. De igual

modo os mal´ak hä´élöhîm da visão Jacó em Betel se distinguem de Deus (Gn 28,12s), sendo

182 cf. tb. Gn 16,7-14 183 Gordon WENHAM, Genesis 16-50, p. 58. 184 G. von RAD, Gehrard von. Genesis, p. 220.

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que, mais adiante, quem fala dessa visão é o mal´ak yhwh (Gn 31,11ss): �E o Anjo de Deus

(mal´ak hä´élöhîm) me disse... Eu sou o Deus (´él) de Betel...�

Em Gn 32, à noite, Jacó luta com um homem (´î�, v. 25). Este é revelado ser o próprio

Deus (´élöhîm, v. 28), e disso Jacó, agora de nome novo (Israel), passa a ter certeza, pois viu a

Deus (la, v. 30). Aqui o termo mal´ak não está expresso, mas parece lhe dizer respeito. O

relato enfatiza os nomes Israel (yiSrä´ël) e Peniel (Pünî´ël). O primeiro significa �Deus luta� e o

segundo �Face de Deus�,185 deveras uma teofania etiológica. A respeito desse evento, da luta

de Jacó com Deus, o livro de Os 12,3-4 diz: �... no vigor de sua idade lutou com Deus

(´élöhîm), lutou com o anjo (mal´ak), e prevaleceu; chorou, e lhe pediu mercê; em Betel achou

a Deus (lit.: �o achou�) e ali falou conosco�. Na primeira parte é dito que Jacó lutou com

Deus, na segunda que lutou com o anjo (i.é., um parallelismus membrorum), faz-se evidente a

compreensão do autor a respeito de tal tradição186, declarando como �anjo� o homem que

lutou com Jacó, dado que falta na narrativa do Gênesis.

No cena de seu testamento, Jacó abençoa seus filhos em Gn 48,15s com as palavras:

... O Deus, em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes...

Novamente se percebe o paralelismo dos vocativos que colocam as expressões no mesmo

nível (�O Deus...�, �o Deus�, �o Anjo�), para depois apresentar a súplica (�abençoe estes

rapazes...�). Não fazendo distinção entre Deus e o Anjo.

O mal´ak yhwh também aparece a Moisés. Em Ex 3,2 o Anjo do Senhor está �numa

chama de fogo do meio duma sarça�. Da sarça sai uma voz �Moisés, Moisés� (3,4), da mesma

maneira que Abraão foi chamado pelo Anjo (Gn 22,11: �Abraão, Abraão�), a resposta de

Moisés também é análoga: �Eis-me aqui!� (Gn 22,1.11, cf. 1 Sm 3,4; Is 6,8). Parece ser a típica

resposta à teofania. E novamente o mal´ak se apresenta: �...Eu sou o Deus...� (´élöhîm, Ex 3,6)

e apresenta o tetragrama sagrado yhwh em 3,15. Não há distinção nessa perícope entre o Anjo

e o Senhor.

Na saída do Egito, em Ex 13, 21, é o próprio yhwh que segue adiante do povo na

coluna de nuvem de dia, e na coluna de fogo à noite. Então em Ex 14,19 é dito que o mal´ak

está na coluna de nuvem e no verso 24 faz menção de yhwh novamente. À promessa da terra,

185 Gordon WENHAM, Gênesis 16-50, p. 295 186 É sobremodo importante que Oséias cite essa tradição visto endereçar seus discursos ao reino do Norte.

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Deus envia �um anjo� diante do povo (Ex 23,20). Chama o povo à obediência a esse anjo,

pois seu nome estaria sobre ele (Ex 23,21). John I. Durham nota que:

A referência ao mensageiro a quem Yahweh envia, aqui como em outros lugares no AT, é uma referência a uma extensão da própria pessoa e da Presença de Yahweh. É de fato uma reafirmação da promessa e prova do tema da Presença que domina a narrativa de Êxodo 1-20. O �assistente� ou o �mensageiro� (mal´ak) exercerá a direção, protegendo, instruindo, introduzindo funções que as colunas da nuvem e do fogo de Yahweh e do assistente de Yahweh, e providenciando a Presença que tem sido realizada nos textos mais antigos. (...). Eles não precisavam �se ressentir� ou �se magoar� contra a direção e conselho do �mensageiro�, porque fazer assim traria punição autorizada por Yahweh, cujo �nome� (�üm

�Presença�) está �sobre ele� (BüqirBô). Esta última declaração é virtualmente uma declaração de equivalência: o �mensageiro� = Yahweh.187

Surpreendentemente é feita uma clara distinção entre Deus e seu anjo em Êxodo 32 em

diante, depois da idolatria ao bezerro de ouro. Deus só estaria no meio de seu povo por meio

de seu Anjo (cf. Ex 33,3.4). Só a Moisés seria permitida a sua presença (33,14).

Provavelmente seja o próprio Deus como mal´ak Pänäyw (Anjo da Presença) descrito em Is

63,9.

Na literatura deuteronomista pode acontecer que o Anjo do Senhor não seja referido,

como no caso de Deuteronômio. As passagens que nos livros anteriores o Anjo do Senhor é

nomeado, aí são apresentadas como ações de yhwh (exemplo: Dt 4,37). No livro de Josué

aparece uma figura guerreira, o Príncipe do Exército do Senhor (Sar-cübä´ yhwh, Js 5,13-15),

que repete as mesmas palavras referidas a Moisés na visão da sarça ardente: �Descalça as

sandálias de teus pés, porque o lugar em que estás é santo� (Js 5,15; cf. 3,5), e de modo algum

rejeita a adoração que Josué lhe presta (v. 14). Pode suceder também que o Anjo do Senhor

seja referido do mesmo modo que nos textos do tetrateuco acima citados (ex: Jz 2,1-5; 6,11-14,

já contemplado anteriormente).

Finalmente, Zc 1,12-13 em que há clara distinção entre o mal´ak yhwh e yhwh mesmo:

�Então o Anjo do Senhor respondeu: Ó Senhor dos Exércitos, até quando não terás

compaixão de Jerusalém e das cidades de Judá...�. �Respondeu o Senhor com palavras boas,

palavras consoladoras, ao anjo que estava comigo�. Inicialmente parece tratar-se de um anjo,

angelus interpres (anjo intérprete), distinto de Deus, mas no capítulo 3 lemos:

Depois, o Senhor me fez ver Josué, o sumo sacerdote, de pé diante do anjo do Senhor: à sua direita postava-se o Satã para acusá-lo. O anjo do Senhor disse ao Satã: �Que o Senhor te reduza ao silêncio, Satã: sim, que o Senhor te reduza ao silêncio, ele que escolheu Jerusalém�. (Zc 3,1-2)

187 John I. DURHAM, Exodus, p. 335.

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E em seguida:

Josué, de pé, diante do anjo, estava vestido com vestes sujas. Tornou o anjo e disse aos que estavam diante dele: �Tirai-lhe as vestes sujas.� Em seguida disse a Josué: �Vê, desembaracei-te do teu pecado e revestir-te-ão de trajes de festa.� E prosseguiu: �Que lhe ponham na cabeça um turbante limpo�. Puseram-lhe na cabeça um turbante limpo e revestiram-no com vestes. O anjo do Senhor mantinha-se ali. (3,3-5)

No primeiro texto Josué está diante do anjo do Senhor e não ao seu lado. Do lado direito

estava o Satã (haSSä�än). O Satã atua como advogado de acusação, mas o anjo faz o papel de

juiz. Ele declara Josué absolvido no texto seguinte quando diz: �Desembaracei-te do teu

pecado� (v.4). É verdade que é uma função de mediador, mas no segundo texto lemos o anjo

sempre falando de moto próprio, dando a entender que se trata do próprio Senhor que dirige

a palavra. David L. Petersen escreve:

O mal�ak é quem está claramente no controle do conselho divino, responde à situação anterior ao usar a linguagem padrão de �resposta� como as que ocorrem nas outras visões (1,10.11; 4,4). E expressa um comando para aqueles que estão diante dele, a terceira vez que esta frase particular �diante dele� é usada, um uso sem dúvida desenhado para escorar a autoridade do mal�ak no conselho. Aqueles que se colocam diante dele, deidades menores do conselho divino, são encarregados de remover a vestes sujas que Josué vestia188.

O anjo do Senhor também exerce uma autoridade muito clara na assembléia divina.

Por enquanto basta frisar que sua autoridade é indistinta da de yhwh (cf. Salmo 82).

Resta ainda dizer que o mal´ak yhwh encontra várias explicações na pesquisa bíblica

de quem ele é e de sua atuação. Cito inicialmente a (1) teoria do Logos (já abandonada), que

�vê no o mal´ak yhwh uma revelação do Logos, isto é, do Filho de Deus preexistente (autores

cristãos antigos)�189. (2) A teoria da Interpolação que �assevera que a figura do mal´ak yhwh

foi adicionada pelos redatores para suavizar os antropomorfismos ousados de muitas das

antigas tradições textuais que apresentava Deus aparecendo em forma de um homem�190. (3)

A teoria da Identidade que �afirma que o mal´ak yhwh é uma manifestação de Deus, isto é,

Deus mesmo que, sendo invisível, se apresenta visivelmente e age em certas circunstâncias

no seu anjo�191. (4) A teoria da Hipóstase, �liderada por Helmer Ringgren, sustenta que o

anjo de o mal´ak yhwh é um aspecto da personalidade de Deus que é apresentada numa

188 David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 194. 189 J. MICHL, Anjo In: Dicionário de Teologia Bíblica, p. 69. 190 Chales A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 54. 191 J. MICHL, Anjo, In: Dicionário de Teologia Bíblica p. 69.

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identidade distinta, mas não separada�192. A resolução de uma teoria definitiva ainda está

por vir. O que fica claro de todas as elaborações sugeridas por esses quatro pontos de vista é

a complexidade da figura do mal´ak yhwh . Mas uma coisa é fato: As teofanias de Yahweh

nas tradições mais antigas do Antigo Testamento apresentam-no com �traços

angelomórficos�, ou seja, Deus como um anjo, o Anjo.

3.2.1.2. A Assembléia Divina

Para se ter uma idéia do desenvolvimento da crença em anjos, há de se tomar conhecimento

da noção de Assembléia Divina que lhe subjaz. Lemos no Salmo 82.1.6s:

Deus (´é|löhîm) levantou-se na assembléia divina (`ádat-´ël), no meio dos deuses (Büqeºreb ´élöhîm), ele julga: Até quando julgareis injustamente favorecendo os culpados? (...). Eu o declaro: vós sois deuses (´élöhîm), sois todos filhos do Altíssimo (bünê `elyôn), e no entanto morrereis como humanos, caíreis exatamente como os príncipes.

As expressões-chave do texto acima são: Deus (´é|löhîm) assembléia divina (`ádat-´ël), deuses

(´élöhîm) e filhos do Altísimo (bünê `elyôn). Esse é o mundo de Yahweh, um mundo repleto de

poderes celestes. As figuras celestes elencadas no Salmo 82 têm a função de administrar a

justiça, mas elas que eram promotoras de justiça, se tornam agora, rés e culpadas (cf. Salmo

82,6s). Claramente se percebe a soberania de Deus sobre esses entes divinos. Estes devem

prestar contas de seus atos. De onde vem essa noção? No texto em tela se expressa a

representação de um Conselho de Deuses. Esta concepção pode ser devida às influências do

entorno religioso-mitológico sírio-cananeu193. Tal conselho se reunia para determinar os

destinos do cosmos194. Ao mencionar o conselho, o AT objetiva apresentar o poder e a

autoridade de Yahweh195. Nos materiais ugaríticos, os membros do conselho são designados

como deuses196. O épico Keret, El é descrito à frente da assembléia divina e se reporta aos

deuses por sete vezes se endereça aos deuses, chama-os de deuses e meus filhos, pedindo que

curem Keret:197

192 C. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 55. 193 Hans JOACHIM-KRAUS, Teologia de Los Salmos, p. 62; Christopher ROWLAND, Open Heaven, p. 79. 194 E. Theodore MULLEN Jr., Divine Assembly, in: ABD, vol. II, p.214. 195 Ibid., p. 214. 196 Ibid., p. 215. 197 James B. PRITCHARD (Ed.), ANET, p. 148.

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Uma segunda vez [...] , uma terceira vez [... Então falou] o Benevolente, [El benigno: �Quem] entre os deuses pode [remover a doença], extirpando a m[oléstia?� Ninguém entre os deuses] lhe respondeu. [Uma quarta vez El] disse: �Quem entre [os deuses pode remover] a doença, ex[tirpando a moléstia]?� Ninguém entre os deuses l[he respondeu]. Uma quinta vez ele disse: �[Quem entre os deuses] pode remover a doença, ex[tirpando a moléstia]?� Ninguém entre os deuses lh[e respondeu]. Uma sexta, uma sétima vez ele diz: �[Quem] entre os deuses pode remover a doença, extirpando a moléstia?� Nenhum dos deuses lhe responde. Então falou o Benevolente, El Benigno: �Assentai-vos, meus filhos, sobre vossos lugare[s], sobre vos[sos] tronos de principados. Eu farei uma mágica e certamente alcançarei a remoção da doença, extirpando a moléstia.�- Com argila [sua mão] enche, com vistosa argila [seus dedos]. Ele...

Em suma, nos materiais de Ugarit as divindades maiores e menores do panteão se reúnem

sob a presidência de El para deliberarem a respeito dos destinos do cosmos. Os temas mais

recorrentes são os de soberania, templo e progenitura concernente ao conselho.198 Tércio

Machado Siqueira em seu estudo do Salmo 82, escreve:

O Salmo 82 reflete o entendimento que os povos do Antigo Oriente Médio possuíam a respeito da ordem do mundo. Para eles, havia uma ordem no mundo que foi criada e, desde então, sustentada pelos deuses. As antigas mitologias politeístas do Oriente Médio sustentavam, ainda que com algumas variações, a idéia da existência de um panteão cujo líder era conhecido sob o nome de �o deus altíssimo�. Na Suméria, ele era chamado Anu. Na Babilônia, Marduk. El, entre os cananeus. Atum, Rê, no Egito. E Taru, entre os hititas. (...). Embora Israel seja considerado um grande assimilador de costumes, a verdade é que todo processo de agregação de idéias ou costumes, à tradição javista, passava pelo crivo da fé israelita. Decididamente, o Salmo 82 descreve o momento da transição dessa concepção politeísta para a perspectiva monoteísta199.

Em Israel sucede algo análogo. As referências a seres divinos constituintes de uma

assembléia ou conselho divino são várias. Veja-se por exemplo o Sl 89.6-9:200

6 O céu celebra a tua maravilha, Yahweh, por tua verdade, na assembléia dos santos.(Biqhal qüdö�îm) 7 E quem, sobre as nuvens, é como Yahweh ? Dentre os filhos dos deuses (Bibnê ´ëlîm), quem é como Yahweh? 8 Deus é terrível no conselho dos santos (Büsôd-qüdö�îm), grande e terrível com todos os que o cercam. 9 Yahweh, Deus dos Exércitos (yhwh ´élöhê cübä´ôt), quem é como tu? És poderoso, Yahweh, e tua verdade te envolve!

O texto acima apresenta várias expressões com o mesmo significado: �assembléia dos

santos�; �filhos dos deuses�, �conselho dos deuses� e �Deus dos exércitos�. Esse material do

AT descreve Yahweh rodeado de sua corte celeste, ou seja, as deidades menores de seu

séqüito. Apesar de todas as referências à corte celeste, no entanto, não se apresenta

desenvolvimento algum na expressão de figuras individuais. Outro texto chamativo nesse

sentido é o 1 Reis 22.19-23:

198 Ibid., p. 215. 199 O Salmo 82, in: Estudos Bíblicos, n. 2, p. 12. 200 cf. Sl 29.1; 97.7.

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Miquéias lhe disse: �Pois bem! escuta a palavra do Senhor. Vi o Senhor sentado em seu trono e todo o exército celeste (`al-Kis´ô wükol-cübä´) de pé junto dele, à sua direita e à sua esquerda. O Senhor disse: �Quem seduzirá Acab, para que ele suba e pereça em Ramot-de-Guilead?� Um falava de um modo, outro de modo diferente. Então um espírito (rûªH) adiantou-se, apresentou-se diante do Senhor e disse: �Eu o seduzirei�. Perguntou o Senhor: �De que maneira?� Ele respondeu: �Irei e serei um espírito de mentira (rûªH

�eºqer) na boca de todos os seus profetas�. O Senhor lhe disse: �Tu o seduzirás; aliás, tens poder para tanto. Vai, e faze assim�. Portanto, se o Senhor pôs um espírito de mentira (rûªH �eºqer) na boca de todos os teus profetas, é porque ele próprio decretou a tua perda�.

O texto em tela é deveras esclarecedor a respeito da concepção de um conselho celeste como

parte do arcabouço de crenças de Israel. Ao profeta Miquéias é concedido o privilégio de

vislumbrar o que acontece atrás dos bastidores dos eventos terrestres. Ele vê a Yahweh

rodeado de divindades menores, chamadas aqui de exército, e um componente individual

chamado de espírito. Yahweh é apresentado sentado sobre um trono e seu exército em pé

diante dele, demonstra-se com isso sua superioridade sobre os que o rodeiam. Além disso,

seu séqüito está a seu serviço a ponto de surgir um voluntário para agir em prol dos

interesses do conselho.201 A descrição do que acontece na sala do trono celeste encontra sua

contraparte na descrição do ambiente dos tronos terrestres (uma espécie de paródia do que

há encima) que aparece nos versículos 10-12 do mesmo capítulo:

O rei de Israel e Josafat, rei de Judá, em trajes de grande cerimônia, sentaram cada um no seu trono, na esplanada, à entrada da porta de Samaria, e todos os profetas entraram em transe para profetizar diante deles. Sedecias, filho de Canaãá, tendo feito para si chifres de ferro, disse: �Assim fala o Senhor: Com estes chifres derrotarás Aram até exterminá-lo�!� Todos os profetas profetizavam do mesmo modo, dizendo: �Sobe a Ramot-de-Guilead, e vencerás! O Senhor entregará a cidade nas mãos do rei�.

Outro dado importante é o fato de o destino de Acab já estar traçado no conselho divino. É lá

que é decretada a sua derrocada. O mesmo profeta diz: �Portanto, se o Senhor pôs um

espírito de mentira na boca de todos os teus profetas, é porque ele próprio decretou a tua

perda� (1 Reis 22,23). O conceito de as coisas terrenas serem determinadas nas regiões

celestes será amplamente utilizado pela literatura intertestamentária e pela do Novo

Testamento (exemplo: Efésios 1.3-6). Ao seu modo, as Escrituras do AT apresentam as coisas

sendo decididas e determinadas no ambiente celeste, fazendo com que o patamar de cima

seja superior ao debaixo.

201 cf. tb. Jó 1.6; 2.1.

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Georg Fohrer apresenta a seguinte explicação da concepção de uma corte celeste

tomando parte nas crenças veterotestamentárias202:

A noção de Yahweh como o Deus do céu está ligada àquela de figuras que pertencem ao mundo celestial (...). Na condição de grupo, elas fazem alusão ao adat el, �o conselho divino� (Salmo 82,1) (...). Originalmente, deuses estranhos ao javismo foram, pouco a pouco, dentro do javismo, tornando-se seres totalmente subordinados a Yahweh, constituindo parte de sua corte e de seus exércitos.

Segundo Christopher Rowland: �Assim, desde os inícios da religião israelita, a

habitação dos deuses e o conhecimento das discussões que acontecem nela, tiveram sua

parcela de atuação no desenvolvimento da religião israelita�203. Seja como for, a crença numa

corte celeste criaria as bases para a desenvoltura da compreensão religiosa de tempos

posteriores.

Listemos os caracteres angelomórficos que coletamos da exposição acima. Em

primeiro lugar, o Anjo do Senhor é paradigmático para as descrições de seres angélicos nas

Escrituras e na literatura do Judaísmo do Período do Segundo Templo. Mesmo que seja em

grau menor, o Anjo do Senhor é o referencial para o imaginário angelológico. Em segundo

lugar, o Anjo do Senhor é identificado com a própria pessoa de Yahweh, e ao mesmo tempo

distinto dele. Fazendo-o um prolongamento de sua personalidade, uma hipóstase divina.

Como figura hipostática, ainda que gloriosa, é por intermédio dele que Deus se revela

visualmente, como um ser humano. E apesar do temor que muitas vezes sucede aos seus

interlocutores, estes não sofrem dano físico algum ou a morte. Quanto ao temor, pode variar

de interlocutor para interlocutor. Pode acontecer que o destinatário da visão não seja capaz

de discernir a divindade do Anjo, como no caso de Gedeão e Hagar. Para outro, há uma

nítida necessidade de ser informado de sua sacralidade, como no caso do encontro do Anjo e

Josué. Nesses episódios elencados, o Anjo do Senhor assume visivelmente a figura de um

homem, o que provoca certa confusão nos interlocutores. Abraão tem familiaridade com o

Anjo e nada é dito de qualquer sentimento de temor. Abraão é um amigo de Deus. A

representação do Anjo do Senhor com traços humanos é uma acomodação da Divindade à

capacidade do ser humano de suportar a sua visão e contato. A natureza compósita do Anjo

do Senhor de anjo e homem coloca-o na intersecção que será idealizada posteriormente

fundamentando as expectativas de uma transformação celestial do justo. Em terceiro lugar, o

202 G. FOHRER, História da religião de Israel,, p. 210. 203 C. ROWLAND, Open heaven, p. 79.

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Anjo do Senhor pode se apresentar em fenômenos meteorológicos ou naturais, na coluna de

nuvem, na coluna de fogo, na chama da sarça ardente. Este imaginário que em outros

panteões é distribuído em diversas divindades, inicialmente atribuído ao Anjo do Senhor,

será atribuído aos anjos posteriormente. Em quarto lugar, o Anjo do Senhor é o detentor do

Nome Sagrado de Deus, o que representa a própria divindade no meio do povo. Esta

informação é muito importante para a função do sumo sacerdote, que o faz o equivalente do

mediador divino. Em quinto lugar, o Anjo do Senhor preside a Assembléia Divina. Esta

presidência do Anjo deixa campo aberto para sua identificação ora como um anjo específico,

ora como um ser humano angelomórfico.

Nosso próximo passo é vislumbrar o texto de Hebreus em seus próprios termos,

inventariar os indícios de angelomorfismos e depois buscar as tradições que os perfazem.

3.3. Configuração de Hebreus 1.1-4

A primeira parte do proêmio começa solenemente (Hb 1.1). De estilo elegante, comparável

ao hino do Evangelho de João 1.1-18, Hebreus, desde o início, mostra o seu caráter

laudatório. A respeito do gênero epidíctico, C. Perelman diz que �é o único gênero que,

imediatamente faz pensar na literatura, o único que poderíamos comparar com o libreto de

uma cantata�.204 Não se inicia com um vocativo, próprio das homilias dos padres

apostólicos,205 mas com três advérbios. Aliás, quanto ao vocativo típico �avdelfoi,.�, o

primeiro de quatro só aparecerá em 3.1 (cf. 3.12; 10.19; 13.22).206 Quanto ao seu final, o que

parece ser uma ampla opinião, as edições da GNT4 e NTG27 propõem que se delimite em

1.4.207 Difere disto Raymond E. Brown, que faz uma cesura em 1.3, porque estrutura o texto

tematicamente, apesar de entender que 1.1-4 formam uma unidade gramatical.208 Nossa

proposta de delimitação entende que 1.4 não pode ser desligado de 1.3 por ser uma oração

subordinada, percebe-se isto com mais clareza na estrutura.

204 Chaïm PERELMAN/Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Tratado da argumentação, p. 57. 205 Ver, por exemplo, os sermões de Leão Magno, in: Patrística, vol. 6. 206 Paulo o emprega bastante e a Epístola de Tiago pode ser um demarcador das perícopes (ex.: Tiago 1,2.16; 2,1.14). 207 Segue esta proposta entre outros: Barnabas LINDARS, The Theology of the Letter to the Hebrews, p. 29; William L. LANE, Hebrews, p. 3. 208 An Introduction to the New Testament, p. 684.

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O tema da �Mediação� perfaz todo o proêmio (1.1-4). No entanto, esse tema é

subjacente ao da �Filiação Divina�, o fator organizador deste pequeno bloco literário.209 Aí

vemos a comparação entre os profetas e o Filho (1.1), (filho) herdeiro (1.2b), agente pré-

existente e sustentador da criação (1.2c, 1.3b), imagem perfeita de Deus (1.3a), vice-regente

(função sacerdotal e real; 1.3de) e superior aos anjos e detentor de um nome inefável (1.4).

3.3.1. O Filho, o mensageiro dos últimos dias (Hebreus 1.1-2b)

Muitas vezes e de muitas maneiras, havendo Deus falado, antigamente, aos Pais mediante os profetas; neste final dos tempos, falou-nos mediante (o) Filho... (Hb 1.1-2b)

A primeira atividade mediadora do Filho é de portador da Palavra de Deus, que se dá na

esfera terrena dos ouvintes. �Deus falou� mediante visões, sonhos, símbolos, urim thummim,

anjos, eventos naturais, êxtases, a coluna de nuvem ou fogo, e ocasionalmente face a face.210

No entanto, o v. 1 ao registrar a mediação dos profetas infunde a continuidade das tradições

de Israel. Esta continuidade visa legitimar a identidade de seu auditório, seja este formado

de judeus cristãos ou de gentios cristãos. Se formado só destes, o autor transfere-lhes as

tradições de Israel, dando-lhes uma nova identidade. Assim, as constantes citações do

Antigo Testamento, as referências às narrativas históricas e as atualizações apropriadas às

parêneses são estratégicas desse ponto de vista. Supondo que parte de sua audiência seja de

judeus cristãos (ou só destes), o v. 1 alinhavado ao v. 2 procura persuadi-los de que não há

rompimento das antigas tradições, mas completude, cumprimento (cf. Hb 11). Também para

isto serve o arcabouço escriturístico usado pelo autor.

Uma comparação entre Hb 1.1 e 1.2b ajuda-nos a captar melhor o artifício usado pelo

autor para salientar a superioridade do Filho diante dos profetas:211

209 W. R. G. LOADER, The apocaliptic model of sonship, JBL 97, p. 543. 210 George W. BUCHANAN, To the Hebrews, p. 3. 211 Os advérbios modificadores do particípio lalh,saj enfatizam a quantidade (polumerw/j �Muitas vezes�), variedade (polutro,pwj �de muitas maneiras�), e o tempo (pa,lai �antigamente�). Por sua vez, os substantivos complementam a ação verbal com dativo, ou seja, a quem (toi/j patra,sin �aos pais�); e o dativo instrumental preposicionado, por quem (evn toi/j profh,taij �pelos profetas�). Sujeito do ato de falar é Deus (o` qeo,j). Deus falou, esta obviedade resultante, no entanto, funciona como uma confissão de fé e ao mesmo tempo sugere continuidade com a tradição de povo eleito. Por um lado, mais adiante, dirá que a palavra de Deus é afiada e cortante, capaz de proezas cirúrgicas (4,12 �divide alma e espírito, juntas e medulas�). Por outro lado, ao longo de todo o discurso citará trechos da tradição da palavra de Deus. Tem por assentado sua plena autoridade. O autor não quer somente o deleite de seus ouvintes para um bom discurso, mas apresenta bem cedo a gravidade da mensagem. No entanto, deixa claro que a palavra divina foi expressa anteriormente e com parcimônia. O advérbio pa,lai dá impressão de tempos antanho ao modificar o particípio aoristo. Trata-se de um falar pulverizado e acabado (note a ação pontual do aoristo). Para fazer frente a isso, compõe o contraste: �neste final

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v. 1 v. 2b Muitas vezes, de muitas maneiras, Neste final dos tempos

Antigamente,

Havendo Deus falado (Deus) falou

Aos pais212 a nós

Mediante os profetas mediante o Filho

A declaração �No fim destes dias Deus falou mediante o Filho� pode sugerir o tema

do Profeta Escatológico. Sua base é a Dt 18.18: �Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de seus

irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará em meu

nome tudo o que eu ordenar.� Devemos atentar à expressão semelhante a ti, ou seja,

semelhante a Moisés. Em 1 Macabeus 4.46 e em 14.41 menciona-se a espera de um profeta

fiel. Em Sirácida 48.10s, a idéia centra-se em Elias. É uma tradição aparente nos Evangelhos.213

Em IV Esdras 6.26 lemos: �E eles verão os homens que foram tomados, que desde o seu

nascimento não provaram a morte...�, provavelmente alusão a Elias (ou a Enoc) e, em certa

medida, a Moisés.

3.3.2. Papel angelomórfico dos profetas:

Os profetas são os anjos terrenos de Deus (cf. 2 Cr 36.15s; Is 44.26). Um detalhe não se deve

deixar nos escapar, trata-se da evidência de que profetas puderam contemplar uma reunião

da Assembléia Divina. Claramente Micaías em 1 Rs 22.13-28, Isaías em Is 6.1-13, e Ezequiel

em Ez 1; 10. Nestes três textos um mesmo esquema de motivos constituintes pode ser visto:214

(1) Yahweh como rei, sentado sobre um trono, (2) criaturas celestes ao seu redor, (3) o profeta

viu �Deus�, (4) o profeta ouviu (um debate; uma interpelação), e (5) um tempo determinado.

Outros profetas como Amós (Am 9.1s), Jeremias (Jr 26.2,4) e o profeta anônimo do Dêutero-

dos tempos nos falou pelo filho� (v. 2). É um falar escatológico, definitivo. O verbo evlalh,sen é um aoristo constativo e contempla na sua totalidade no passado sem nenhuma referência ao seu início ou fim. 212 cf. Hebreus 11. 213 As duas figuras �Moisés e Elias� são apresentadas nos relatos da transfiguração (Mc 9.2-8 e paralelos), sendo que a voz proveniente da nuvem enfatiza a superioridade a respeito de Jesus: �... a ele ouvi� (Mc 9.7). Raymond E. BROWN afirma: �Os Samaritanos não esperavam um Messias no sentido de um rei ungido da casa Davídica. Esperavam um Taheb, pelo que aparenta o Profeta como Moisés (...). Um mestre da Lei, mesmo que apesar da designação judaica mais familiar ser colocada na boca da mulher. The Gospel according to John I-XI, p.172. 214 The prophets and the council of Yahweh, in: JBL, p. 281-283.

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Isaías (Is 40.1,6) não apresentam todos os motivos listados acima, mas (3) o profeta viu

�Deus�; (4) o profeta ouviu; (5) um tempo determinado, o que indica o acesso à Assembléia

Divina. Conforme Edwin Kingsbury:215

Uma experiência no conselho de Yahweh poderia ter dado o surgimento a todos os �Assim disse Yahweh� dos profetas. Talvez essa experiência se repetisse. No mínimo, os profetas reivindicavam partilhar uma experiência no conselho de Yahweh; reivindicavam ouvi-lo decidir os destinos, reivindicavam que retransmitiam o que ouviram dele dizer.

Deste modo, os profetas podiam ouvir e mesmo serem colocados no papel de mensageiros

da parte de Yahweh e serem igualados a algum enviado celestial (1 Rs 22.21). O acesso ao

conselho celeste faria do profeta um ser humano privilegiado que na qualidade de

mensageiro apresentava de algum modo traços angelomórficos (cf. Ml 3.1). Corrobora com

isto o texto de 2 Cr 36.15s em que os profetas são equivalentes dos anjos diante de Yahweh:216

Yahweh, Deus de seus pais, enviou-lhes sem cessar mensageiros (mal´äkäyw), pois queria poupar seu povo e sua Habitação. Mas eles zombavam dos enviados de Deus (Bümal´ákê hä´élöhîm), desprezavam suas palavras, caçoavam dos profetas (Binbì´äyw), até que a ira de Yahweh contra o povo chegou a tal ponto que já não havia mais remédio.

Os profetas como mediadores seriam assim, a contraparte terrestre dos anjos nos céus,

mensageiros de Yahweh a serviço do seu povo (cf. Hb 1.13). Portanto, Hb 1.1 ao mencionar a

palavra anunciada pelos profetas, parte de uma instituição iniciada com Moisés (Ex 3.14s) e

que é superada pelo envio do Filho de Deus (avpo,stoloj: Hb 3.1). Mas vale recordar que os

profetas apresentavam em certa medida caracteres angelomórficos, e poderiam como Moisés,

contemplar a Glória de Deus e por vezes, participar do Conselho Divino e refletir o

resplendor da divindade, como Moisés.

O próximo atributo que veremos do Filho é o de herdeiro de todas as coisas.

3.3.3. O Filho de Deus, herdeiro de todas as coisas (Hebreus 1.2c)

O substantivo �herdeiro� (klhrono,moj) e seus derivados, em suas 47 ocorrências no Novo

Testamento, 09 estão em Hebreus.217 Mas é somente em Hb 1.2 que �herdeiro� se refere a

Jesus enquanto que as outras vezes o termo (ou derivados) é usado para expressar uma

215 Ibid., p. 286. 216 Charles A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 161. 217 Klhronome,w (1,4.14; 6,12; 12,17); klhronomi,a (9,15; 11,8); klhrono,moj (1,2; 6,17; 11,7).

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herança prometida; para o Filho, como o mais velho de entre os muitos irmãos (Hb 2.10),218 a

herança já está em vigor.

No Antigo Testamento, �herdeiro� se refere à possessão permanente da terra

prometida a Abraão (Ex 32.13; Nm 26.52-56; cf. Hb 6.17; 11.8). Durante o período do Exílio a

promessa é expandida para a retomada da terra (Ez 47.14; Dt 30.5). Expande-se mais ainda e

no período pós-exílico se torna escatológica (Dn 12.13), possuída somente pelos justos (Sl

37.9) como lemos em 1 Enoc 39.7-8:

Vi sua morada sob a égide do Senhor dos espíritos, e todos os justos e escolhidos resplandeciam diante dele como luz de fogo, e suas bocas estavam cheias de bênção e seus lábios louvavam o nome do Senhor dos espíritos. A justiça diante dele não se esgotava, nem a verdade cessava junto dele. Ali eu quis morar, e desejou meu espírito tal mansão, onde já tinha parte, pois assim me foi designada ante o Senhor dos espíritos.

Hebreus adota esse significado e se refere a ele como �herança prometida�, eterna é a

salvação como herança (6.12; 9.15; 1.14). O Filho, contudo, é quem possibilita a posse de tal

herança dos crentes (5.9). Mas em que sentido, então, ele é herdeiro? Hebreus 1.3 diz que o

Filho é herdeiro �de todas as coisas� (pa,ntwn). Texto que guarda semelhanças com Hb 1.2b é

o de Cl 1.15. Mas o termo é outro, �primogênito� como em Hb 1.6 (prwto,tokoj; no qual lemos

�prwto,tokoj pa,shj kti,sewj�). Assim, em Hb 1.2b o Filho está sobre todas as coisas criadas.

Em Dn 7.13s, o Filho do Homem se apresenta ao Ancião e recebe a herança, ou seja,

aquilo que é formalmente do domínio de Deus:

Ele adiantou-se até ao Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o poder, a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é império eterno que jamais passará, e seu reino jamais será destruído.219

Na qualidade de Filho gerado de Deus (1.5), Jesus também é o Primogênito. A Oração

de José é muito evidente a respeito do Primogênito como uma figura angelomórfica:

Eu, Jacó, que fala contigo, também sou Israel, um anjo de Deus e um espírito regente. Abraão e Isaac foram criados antes de qualquer obra. Mas, eu, Jacó, a quem os homens chamam Jacó, mas cujo nome é Israel, sou aquele a quem Deus chamou Israel que significa, um homem que vê a Deus, pois eu sou o primogênito de todas coisas viventes às quais Deus dá vida. E quando eu estava subindo da Síria Mesopotâmia, Uriel, o anjo de Deus, chegou e disse que �Eu [Jacó-Israel] havia descido à terra e que havia tabernaculado entre os homens e que eu havia sido chamado pelo nome de Jacó.� Ele me enviou e lutou comigo e

218 Em Gn 32.5, 18-22, Jacó chama a Esaú, o irmão mais velho de �Senhor� (´dönî lü`ëSäw); cf. G. W. BUCHANAN, To the Hebrews, p. 5. 219 Mais a frente verificaremos os traços angelomórficos contidos nesta passagem.

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contendeu comigo dizendo que seu nome e o nome que está diante de todo anjo devia estar acima do meu. Eu lhe perguntei seu nome e de qual posição ele se encontrava entre os filhos de Deus. �Não és tu Uriel, o oitavo depois de mim? E eu, Israel, o arcanjo do poder de Deus e o principal capitão de entre os filhos de Deus. Não sou Israel, o primeiro ministro diante da face de Deus?� E eu fui chamado por meu Deus pelo nome inextinguível.

Os atributos de Israel (Jacó) descritos acima são impressionantes: �anjo de Deus�, �espírito

regente�, �homem que vê a Deus�, �primogênito�220 da criação, que desceu ``a terra�, �o

arcanjo do poder de Deus�,�primeiro no ranking angélico�, �principal capitão� angélico, �o

primeiro ministro diante da face de Deus�, e �portador do nome� de Deus. O texto expressa

que Jacó é a encarnação do anjo Israel. Baseado no episódio da luta de Jacó com o anjo (Gn

32.24-31), desenvolve-se uma querela entre Israel e o anjo Uriel a respeito da posição no rank

angelical.221 O nome Israel é portado pela natureza angélica, já o nome Jacó é portado pela

humana.222

Filo em De Confusione Linguarum 146 também escreve a respeito do �Primogênito� em

termos angelomórficos:

E mesmo se não houvesse alguém que fosse digno de ser chamado filho de Deus, todavia, pelo seu labor veemente deve ser adornado de acordo com seu logos primogênito, o mais velho de seus anjos, como o grande arcanjo de muitos nomes; pois ele é chamado, a autoridade, e o nome de Deus, e o Logos, e o homem conforme a imagem de Deus, e aquele que vê Israel. 223

Filo entrelaça expressões angelomórficas uma após outra: �Filho de Deus�, �Primogênito�,

�Presbítero Angélico�, �Grande Arcanjo�, �Nome de Deus�, �Logos�, �Imagem de Deus�,

�Aquele que vê Israel�. Entre outras expressões, digno de nota é �Primogênito� (prwto,gonoj)

que se situa dentro do mesmo campo de significado de Hb 1.6 (prwtotoko,j).

Jarl Fossum opina que não há relação de prwtotoko,j ao de Cl 1.15, conseqüentemente

também de Hb 1.6, com o prwto,gonoj de Filo.224 Mas deve-se levar em conta que Filo conhecia

bem a LXX, e sua base é a mesma para o autor da Oração de José, isto é, Ex 4.22, em que se lê:

�Porém, tu dirás a Faraó: Assim diz o Senhor: Meu filho primogênito é Israel� (su. de. evrei/j

tw/| Faraw ta,de le,gei ku,rioj ui`o.j prwto,toko,j mou Israhl). Portanto, se Filo escolhe prwto,gonoj

220 Em 4 Esdras 6.58 a nação de Israel é o primogênito. 221 J. Z. SMITH, Prayer of Joseph, in: OTP, v. 2, p. 699. 222 Ibid., p. 701. 223 The Works of Philo, trad. C. D. YONGE, p. 247. 224 The image of the invisible God, p. 25.

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ao invés de prwtotoko,j, não se deve à razão de falar de outra idéia distinta de Hb 1.6, mas

talvez por uma questão de estilo.

O autor também afirma a participação do Filho de Deus na Criação, isto é, seu papel

demiúrgico.

3.3.4. Papel demiúrgico do Filho (Hb 1.3c)

O autor de Hebreus declara em Hb 1.3 que o Filho (Jesus) possui o papel de mediador da

Criação e que sua palavra é sustentadora do universo (cf. Hb 11.3; Sl 33.4-7). Ao fazer isto,

enfatiza seu aspecto divino e pré-existente. Sua assertiva encontra fundamentação na

Sabedoria como hipóstase divina.

3.3.4.1. A Sabedoria, hipóstase de Deus

A declaração de o Filho como mediador da criação nos remete aos textos da �sabedoria

hipostatizada�. Em textos como os de Provérbios 8.22-31; Sirácida 1.1; 24.3, 9, a Sabedoria se

se apresenta como extensão de Deus. A ela é atribuída função ativa na Criação. Visto que a

literatura de Sabedoria ultrapassa os limites geográficos de Israel (já era cultivada na

Mesopotâmia e Egito no terceiro milênio A.E.C.)225, ao personificá-la com papel criador,

atribui-se a Yahweh o senhorio das nações. O profeta Jeremias, quando enviado ao rei de

Moabe, Amom, Tiro e Sidom, usando correias e canzis, pronuncia a palavra de que deveriam

se submeter ao rei Nabucodonosor, porque Yahweh seu criador assim decretou:

Eu fiz a terra, o homem e os animais que estão sobre a face da terra, com o meu grande poder e com o meu braço estendido, e os dou àquele a quem for justo. Agora, eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei da Babilônia, meu servo; e também lhe dei os animais do campo para que o sirvam. Todas as nações o servirão a ele, a seu filho e o filho de seu filho, até que também chegue a vez da sua própria terra, quando muitas nações e grandes reis o fizerem seu escravo (Jr 27.5-7).

Este texto expressa o princípio norteador que capacita o profeta a dirigir a palavra a nações

estrangeiras. Não sobre a base da aliança com Israel, mas na apresentação de Yahweh como

criador da terra. Por sua vez, a Sabedoria, que tem seus inícios na interlocução com as(Hb

3.1-6) nações estrangeiras (por ex.: Egito), passa a ser hipóstase do Deus de Israel. Conforme

se expressa William Holladay:

225 Anthony R. CERESKO, A Sabedoria no Antigo Testamento, p. 14; cf. tb. William McKANE, Proverbs, p. 351.

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Criação, conseqüentemente, é uma categoria teológica que pode cruzar fronteiras. Nós podemos ligar a sabedoria com a criação e com um alcance internacional: se a sabedoria era a busca de como o mundo de Deus funciona, então haverá fortes laços entre sabedoria e criação; e a sabedoria era a categoria de material religioso no Antigo Testamento mais aberta à partilha internacional.226

Além disso, nessa partilha internacional está o aspecto apologético, ou seja, defender a

soberania de Yahweh sobre o cosmos. Em tempo, pede a nossa atenção o fato de a

hipostatização da Sabedoria ser enunciada no período pós-exílico (Is 51.9; Pr 1-9; Sirácida 24;

Baruc 3.9-4.4; Sabedoria 7-9), que deu expressão a pré-existência.

3.3.4.2. A Sabedoria pré-existente

Começamos com Provérbios 8.22-31. Podemos estruturá-lo do seguinte modo:

A. A preeminência da Sabedoria (vv. 22-23)

B. Sua antiguidade sobre a criação (vv. 24-26)

B�. Sua participação na criação (vv. 27-30a)

A�. A intimidade da Sabedoria com o Criador (vv. 30b-31)

Os temas da estrutura são característicos de sua hipostatização: Preeminência, antiguidade,

participação e intimidade. O v. 22 já fora motivo de debates acirrados na Grande Igreja.

Jerônimo traduz �O Senhor criou-me� (ku,rioj e;ktise,n me) por �O Senhor adquiriu-me�

(Dominus possedit me), evitando assim o desconforto resultante quando atribuída a Cristo

como criatura de Deus. Com efeito, a Sabedoria foi criada, adquirida ou gerada? Ainda que

pareça ser criada, ela possui uma pré-existência diante da criação, e mesmo esta foi

organizada e cujo funcionamento é efetuado pela Sabedoria.227 Na opinião de Von Rad:

No tempo de Provérbios 3.19 e 8.22ss, e mesmo no de Jesus ben Sirac, o assunto ainda poderia ser abordado de várias maneiras e com a ajuda de diferentes conceitos, e em cada uma dessas expressões ainda seria um aventura corajosa. Assim, até mesmo o conceito de Sabedoria como uma pessoa, e de que tomá-la como um �princípio,� lado a lado. Contudo, parece que se as coisas mais profundas que Israel disse acerca da Criação de Deus foram dadas em Pr 8.22ss � o mundo e o homem são alegremente abarcados pela Sabedoria. Talvez possamos captar algum significado se dissermos que por sua grandiosidade e sabedoria de seu design de toda a Criação, transcende a si mesma apontando na direção de Deus.228

226 Long ago God spoke, p. 234. 227 Raymond C. VAN LEEUWEN, The book of Proverbs, in: NIB, vol. 5, p. 92. 228 Old Testament theology, vol. 1, p. 448.

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O autor de Provérbios 8.22-31 enaltece a Sabedoria ao afirmar a sua pré-existência em

relação a Criação. O tradutor do texto grego refere-se à antiguidade da Sabedoria mediante

uma série de �antes de�:

Antes da eternidade (pro. tou/ aivw/noj) me estabeleceu no princípio, antes da terra existir (pro. tou/ th.n gh/n poih/sai) e antes dos abismos existirem (pro. tou/ ta.j avbu,ssouj poih/sai), antes de brotarem os mananciais de água (pro. tou/ proelqei/n ta.j phga.j tw/n u`da,twn), antes da montanha ser assentada (pro. tou/ o;rh e`drasqh/nai), e antes de todas as colinas, eu fui gerada (pro. de. pa,ntwn bounw/n genna/| me).

Destarte, a discussão de Provérbios 8.22 deve levar em conta o dado de que a Sabedoria �foi

gerada� antes de toda a Criação (v. 25). Sua presença se dá em cada ato criativo de Deus (v.

27-29); era seu �mestre-de-obras� (v. 30a), nada é feito sem sua participação. A perícope

termina referindo-se à intimidade da Sabedoria com Deus, que é descrita como um pai

orgulhoso de seu rebento (v. 30b). Ela brinca em sua presença e na Criação alegrando os

homens (v. 30-31) além participar na Assembléia divina e no Templo.

3.3.4.3. A Sabedoria na Assembléia Divina e no Templo

Em Sirácida 24, a Sabedoria tece o seu próprio elogio. Ao se descrever, apresenta-se como

participante da assembléia divina e ao mesmo tempo em que se destaca ao fazer seu

relatório: �Na assembléia do Altíssimo abre a boca, ela se exalta diante do seu poder�

(Sirácida 24.2). Descreve-se como emanação de Deus (24.3); é pré-existente e eterna (24.9).

Difícil é não pensar na glória (Kübôd) que sai do templo e pousa sobre os exilados (Ez 10.18-

22). Só que em Sirácida, a Sabedoria não vai para o estrangeiro, mas pousa sobre o templo em

Jerusalém (24.11). Ali faz as vezes de sacerdote: �Na Tenda santa, em sua presença, oficiei

(evn skhnh/| a`gi,a| evnw,pion auvtou/ evleitou,rghsa), deste modo, estabeleci-me em Sião�

(24.10). Cumpre funções de sacerdote e regente: �Armei a minha tenda nas alturas e meu

trono era coluna de nuvens� (24.4), e exerce seu domínio em Jerusalém (24.12). Obediente,

recebe Israel por herança dada pelo próprio Criador (24.8,12). Sua permanência sobre

Jerusalém é comparada a uma árvore bem enraizada; recorre-se às plantas dos melhores

lugares para compará-la: cedro do Líbano, cipreste do Hermon, palmeira de Engadi, roseira

de Jericó, oliveira da planície, canela, plátano, mirra (24.12-17).

Trataremos a seguir do atributo angelomórfico da Sabedoria.

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3.3.4.4. Sabedoria angelomórfica

Com o intuito de salientar a procedência e o caráter divinos da Sabedoria, o autor de

Sabedoria de Salomão lança mão do angelomorfismo:

Tudo conheço, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou! (Sabedoria 7.21s) A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente (avpo,rroia th/j tou/ pantokra,toroj do,xhj), pelo que nada de impuro nela se introduz. Ela é reflexo da luz eterna (avpau,gasma ga,r evstin fwto.j avi?di,ou), espelho nítido da atividade de Deus e imagem de sua bondade (eivkw.n th/j avgaqo,thtoj auvtou/) (...). Ela é mais bela que o sol, supera todas as constelações: comparada à luz do dia, sai ganhando, pois a luz cede lugar à noite ao passo que sobre a Sabedoria não prevalece o mal. Ela se estende com vigor de um extremo ao outro do mundo e governa o universo com bondade. Ela é iniciada na ciência de Deus, ela é quem decide o que ele faz (Sabedoria 7.24-8.1,4). Foi ela que protegeu o primeiro modelado, pai do mundo, que fora criado em solidão; levantou-o de sua queda e lhe deu o poder de tudo dominar (Sabedoria 10.1). Aos santos deu a paga de suas penas, guiou-os por um caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de sombra e à noite, de luz de astros (Sabedoria 10.17).

Os textos grifados indicam sua atividade demiúrgica, de regência, de reflexo da imagem de

Deus, a emanação da glória e seu poder de decisão. As ações da Sabedoria são as de Deus. A

sombra da nuvem e a luz da coluna de fogo (Ex 13.21-22). Além disso, a Sabedoria atribui a si

papel salvífico (Sabedoria 9.18).

De Sabedoria 11 até o final, o autor enuncia as obras de Deus, a Sabedoria deixa de ser

seu foco. Mas importa frisar que ao apresentar as obras de Deus na história de seu povo, a

Sabedoria é sua agente, lugar-tenente tanto na Criação como no Êxodo dos hebreus, ao

capacitar Moisés com sua presença (Sabedoria 11.1-3).

Em suma, a reflexão contínua sobre a Sabedoria faria dela uma hipostatização

personificada de Deus, descrita com atributos angelomórficos.

A seguir, cuidaremos da temática da efulgência gloriosa do Filho de Deus.

3.3.5. O Filho, efulgência da Glória divina (Hebreus 1.3a)

O termo �Glória� como atributo divino se conecta com a declaração de vice-regência do

Filho. Em Hb 1.3 lemos:

O qual sendo o resplendor da glória (v. 3a) o]j w'n avpau,gasma th/j do,xhj Sentou-se à direita da Majestade nas alturas (v. 3d) evka,qisen evn dexia/| th/j megalwsu,nhj evn u`yhloi/j

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Parte do v. 3a será visto com mais detalhes mais à frente. Por enquanto, nos deteremos no

termo �Glória� (do,xa) e sua conexão com o trono celeste.

3.3.5.1. Teofania e Glória Divina

O termo hebraico kabhod (glória) é fortemente associado à literatura de caráter cultual, muito

ligada ao templo de Jerusalém.229 No entanto, já no deserto ela se faz presente sobre o

tabernáculo (Ex 40.34s). E também na inauguração do templo (1 Rs 8.10s). G. von Rad

observa:

Se compararmos estes relatos de aparição da kübôd de Yahweh na dedicação do templo de Salomão, surpreender-nos-emos pela concepção muito mais concreta da que é encontrada em P. Por um lado lemos indefinidamente a respeito de uma nuvem impedindo o acesso ao templo, por outro, da clara distinção entre a nuvem envolvente e a kübôd resplandecente. No caso da última, a kübôd não é um fenômeno meteorológico, pois a nuvem cobre até certo ponto parte da kübôd. A kübôd é uma manifestação da glória de Deus.230

Pleno de santidade e glória, Yahweh se manifesta ao ser humano na teofania. Walter

Brueggemann destaca duas teofanias, uma pública e outra pessoal.231 Mais uma vez, aqui

falaremos sobre a primeira, quanto à segunda, nos será útil mais adiante.

No Sinai, a teofania (Ex 19.9-25 e culminação em Ex 24.9-18) se apresenta como

teofania imediata. O lugar escolhido é a montanha do Sinai (Ex 19.11). De fato, a montanha

carrega um profundo significado para a teofania, funciona como o eixo na cosmologia

tripartida da antiguidade. Localizada na terra, seu topo toca o céu e suas fundações alcançam

o submundo. É também a conexão entre as duas esferas de existência, a terrena (humana) e a

celeste (da divindade).232 Outras manifestações de Deus serão representadas tendo lugar

numa variedade de montanhas (Dt 33.2-5,26-29; Jz 5; Hc 3.3,7; Sl 68.8-9,18-19). Porém, a mais

marcante é a do Sinai a ponto de imprimir-se como referência: �Os montes vacilaram diante

do Senhor, e até o Sinai, diante do Senhor, Deus de Israel� (Jz 5.5; cf. Sl 68.8,14,17). Não é só o

lugar que é importante, mas a forma da manifestação.233 A escolha de Yahweh em Êx 19,9-25

é o da tempestade. A nuvem escura (v. 19) representando a carruagem de Deus (Ez 1,4), os

229 Horst Dietrich PREUSS, Old Testament theology, vol. 1, p. 167. 230 �Doxa� in: TDNT, v. 2, p. 240. 231 Theology of the Old Testament, p. 568. 232 Theodore HIEBERT, Theophany in the OT, ABD VI, p. 506. 233 Ibid., p. 508.

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trovões como a sua voz (vv. 16.19; cf. Sl 18,13) e os raios e flechas incandescentes (ausentes

no texto; cf. Hc 3,11; Sl 18,15). A explicação da escolha da tempestade para a teofania

residiria no elemento natural mais marcante à sociedade agrária canaanita.234 A fartura e a

calamidade resultam dela e nada pode contê-la.

3.3.5..2. A Glória e a mediação

Tal manifestação da Glória de Yahweh requer restrições necessárias para salvaguardar a

integridade das pessoas (Êx 19.10-15). A proximidade é liberada apenas para Moisés (Êx

19.20) e Arão (Ex 19.24). Quando o monte é envolvido em nuvens ao clangor de trombetas,

fogo, fumaça e tremor, trovões e relâmpagos, tudo ao mesmo tempo (Êx 19.16-19), o povo no

sopé fica aterrorizado (Êx 19.16-17). O próprio autor de Hebreus faz menção da plasticidade

terrificante dessa teofania, destacando o pavor de Moisés (Hb 12.18-21). O sentimento de

temor já fora visto em outros lugares (cf. Gn 28.10ss; Jz 5), mas no monte é contagioso, todo o

povo se atemoriza. Não suportando essa manifestação, o povo faz uma proposta a Moisés,

conseqüente dessa experiência:

Todo o povo presenciou os trovões, e os relâmpagos, e o clangor da trombeta, e o monte fumegante; e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe. Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos (Êx 20.18-19).

Oficialmente, surge aí a figura do mediador235 na história do relacionamento do povo de

Israel com Deus.236 Uma necessidade sentida pela comunidade. Desta forma, Israel consegue

combinar a incomensurabilidade de Deus e a sua mutualidade com os seres humanos.237

Pelos mediadores, Deus se faz próximo, se faz disponível. O mediador representa os homens

diante de Deus e ao mesmo tempo Deus diante daqueles. E assim uma série de mediadores

234 Theodore HIEBERT, Theophany in the OT, ABD VI, p. 506. 235 Outros mediadores existiram antes disso (Noé, Abraão, Isaque, Jacó), mas aqui o momento é decisivo, Yahweh só se revelará por mediadores. 236 É uma certeza das tradições de Israel: Deus deseja a mutualidade. Mas tal mutualidade esbarra num inconveniente, a própria alteridade de Deus. Ele é aquele que habita nos altos céus cheio de santidade. A respeito do paradoxo temor e confiança, Georg FOHRER diz: �Temor e confiança são experiências religiosas fundamentais para Israel. Em todo o Antigo Testamento, pode ser encontrada uma clara consciência da grande distância existente entre Deus e o homem. São contínuas as referências a isso (cf. Ez 28.2.9; Is 31.3; Os 11.8) quando se fala da experiência da pequenez, insignificância do homem diante do Deus poderosíssimo e santo. O temor e o medo também são expressos em usos e normas concretos, como, por exemplo, as medidas de precaução para ingressar no santuário, a fim de impedir que algo cultualmente impuro, profano e dessagrado seja levado à presença do Deus santo, e até mesmo a lei de ingresso no santuário, como no caso do Sl 15, exige pureza ético-religiosa dos visitantes do santuário.� In: História da religião de Israel, p. 229. 237 W. BRUEGGEMANN, Theology, p. 568.

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aparecerá por todo o Antigo Testamento. Eles serão juízes, profetas, reis, sábios e sacerdotes,

homens, mulheres e anjos. Liga-se a isto, sua relação com o culto.

3.3.5.3. A Glória Divina e o Culto

Isaías 6.3 indica que a Glória (kübôd/do,xa) de Yahweh poderia ser experimentada no templo

de Jerusalém, de um modo que sugere o lado externo de sua santidade.238 Sua glória não

somente enche o céu, mas também a terra (Sl 57.6, 12; 66.1s). A linguagem da glória é

tipicamente cúltica jerusalemita, os Salmos são testemunhas disso (cf. Sl 24.7-10; 26.8; 57.6;

63.2ss; 66.2; 72.19; 96.3; 97.6; 102.16s; 138.5; 145.5).

No culto terreno, bem como no celeste (Sl 29), e também na natureza (Sl 19), a kübôd de Deus é experimentada e então louvada. Não é surpresa, portanto, que esta glória de Yahweh presente e ativa no culto não seja mencionada em livros como Gênesis, Amós, Oséias, Miquéias e Jeremias. Deuteronômio também é silente acerca da linguagem teológica da �glória de Yahweh�, que é original a Jerusalém e que é o sinal e instrumento de sua presença (Dt 5.24 é secundário), assim como a arca em Dt não é mais sinal da presença de Yahweh, mas se torna o receptáculo das tábuas da lei.239

A ausência do tema da Glória de Yahweh nesses textos aponta para a situação religiosa

crítica denunciada pelos profetas.240

Seguimos com o tema da Glória, enfatizando seu papel diante de Yahweh

entronizado.

3.3.5.4. A Glória e Yahweh angelomórfico entronizado

Exemplo de uma teofania pessoal se encontra em Ez 1. A Glória de Yahweh é descrita com

elementos da teofania do Sinai, ou seja vento tempestuoso, nuvem, fogo, claridade,

relâmpagos associados ao trono carruagem, e novos elementos são acrescentados (rodas

flamejantes, querubins resplandecentes, som de muitas águas, som de asas, arco-íris). Todo

este envoltório fascinante descreve Yahweh como rei. Citamos os Salmo 97.1-6 (LXX 96.1-6) e

99.1 (LXX 98.1) respectivamente, nos quais os motivos teofânicos se entrelaçam:

Yahweh é rei! Que a terra exulte, as ilhas numerosas fiquem alegres! Envolvem-no Trevas e Nuvens, Justiça e Direito sustentam seu trono. A frente dele avança o fogo, devorando seus adversários ao redor; seus relâmpagos iluminam o mundo e, vendo-os, a terra estremece. As montanhas se derretem como cera frente ao Senhor da terra inteira; o céu proclama sua justiça e os povos todos vêem sua glória.

238 Hans Dietrich PREUSS, Old Testament Theology, vol. 1, p. 167. 239 Ibid., p. 167. 240 Como o templo não existia no tempo dos patriarcas, a Glória não aparece como descrita nos textos que se preocupam com o culto.

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Yahweh é rei: os povos estremecem! Ele se assenta em querubins: a terra se abala!

Trevas e nuvens, fogo devorador (cf. Hb 12.29), relâmpagos, abalos sísmicos, erupções

vulcânicas (cf. Hb 12.18-21) e a menção do trono sobre querubins perfazem uma

manifestação cheia de esplendor de sua glória. Yahweh é rei que executa a justiça. Assim,

Yahweh é rei e juiz. O resultado: os povos se abalam.

Na visão de Ezequiel, o mais notável é que há uma figura humana sentada no trono,

melhor, �uma forma com aparência humana� (Ez 1.26). A constatação do profeta é que �era

algo semelhante à Glória de Yahweh� (1.28). O profeta não resiste e cai com o rosto em terra.

Isto já fora sentido por Isaías por ocasião de sua vocação, quando tem a visão do Yahweh

sentado no trono (Is 6.4s). Em ambos percebemos indícios sacerdotais e reais. Isaías durante

o culto no templo no ano da morte do rei Uzias vê Yahweh entronizado, a casa cheia de

fumaça, o que faz lembrar a nuvem (Is 1.1,4); Ezequiel, sacerdote/profeta (Ez 1.3), vê Yahweh

cheio de glória sentado num trono que está anexado aos querubins (1.25). Na visão de

Ezequiel, o trono não é estático, ou seja, possui rodas para ligar-se ao evento que se dá em Ez

10.18-22; 11.22-25, a retirada da Glória para o leste, junto ao povo exilado. Mas um dia a

Glória de Yahweh deveria retornar ao templo (Ez 43.1-9).

Um olhar mais próximo dos textos de Ezequiel revela mais. Em Ez 1.27-28, após a

longa descrição das rodas, ele dá alguns detalhes do trono e da pessoa aí sentada (v. 26). A

aparência do trono se assemelha à pedra de safira; bem no alto e sobre ele uma forma de

aparência humana. Esta figura humana possui um envoltório de âmbar (LXX hvle,ktron), fogo,

brilho e arco-íris. Em suma, a figura é cheia de glória, �Glória de Yahweh�. O texto deixa

entender que se trata do próprio Yahweh (2.1-8). Se isto não é suficiente, o autor nos

esclarece em 3.22-27. Destacamos a estrutura 3.23-24 como proposta por Ronald M. Hals:

Presença da Glória de Yahweh v. 23

1. Ali estava a Glória de Yahweh

2. A mesma vista no rio Cobar

Reação: Prostrar-se com o rosto em terra

Capacitação para a comunicação v. 24

1. A entrada do Espírito

2. Ficar em pé

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A Glória é hipóstase de Yahweh, daí a �fórmula do mensageiro� (Kò ´ämar ´ádönäy yhwh)

estar em paralelo com a fala do Espírito e da Glória (v. 27).

A descrição da figura humana sentada é mais uma vez feita em Ez 8.2s. A parte

inferior do corpo é de fogo, a superior é de âmbar. O profeta é suspenso por sua mão (cf.

2.9s). No v. 3s a Glória se mescla com Yahweh. Um �homem vestido de linho� descrito como

escriba que faz uma espécie de censo surge na visão de Ezequiel (v. 3ss). Depois lhe é

ordenado tomar das brasas de entre os querubins e espalhá-las pela cidade (10.1). O homem

vestido de linho entra no santuário, no meio da nuvem (10.3) e segue-se que o resplendor da

Glória de Yahweh (´et-nöºgah Kübôd yhwh/fe,ggouj th/j do,xhj kuri,ou) enche o templo (10.4). A

proximidade do homem vestido de linho frente à Glória de Yahweh é notável, no entanto, é

suficiente dizer que se trata de um anjo.241 À frente, no bloco dos cap. 40-48, de novo, um

homem vestido de linho, cujo aspecto era de bronze, conduz Ezequiel pelas dependências do

templo ao mesmo tempo em que mede e transmite ordenanças de Yahweh (40.3s). Walther

Eichrodt entende que essa figura seja um mensageiro celestial, um anjo.242

Portanto, no texto de Ezequiel, ora Yahweh se manifesta no trono envolto em glória,

ora é na própria Glória que Yahweh se encontra. Por vezes é distinto da Glória a ponto de

narrar a Ezequiel o que está para fazer enquanto aquela entra no templo. Quanto à figura do

homem vestido de linho, trata-se de um ser sobrenatural, que em Ez 40.3 é descrito apenas

como um anjo de Deus.

Voltamo-nos, a seguir, à próxima perícope, Hebreus 1.5-14.

3.4. Configuração de Hebreus 1.5-14

Quanto à delimitação de Hb 1.5-14, o texto é claro, trata-se do desenvolvimento do motivo da

superioridade do Filho sobre os anjos (1.4). Visto que o texto anterior constitui-se em

contexto próximo anterior bem delimitado, resta saber quais os elementos que caracterizam

esta perícope (1.5-14) como uma unidade.

Hb 1.5-14 exprime perguntas retóricas iniciais e finais:

De fato, a qual dos anjos disse Deus jamais (Ti,ni ga.r ei=pe,n pote tw/n avgge,lwn\): Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? Ou ainda: Eu lhe serei pai, e ele me será Filho? (1.5)

241 Christopher ROWLAND, Open heaven, p. 96. 242 Ezekiel, pp. 130.541.554.

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A qual dos anjos disse ele jamais (pro.j ti,na de. tw/n avgge,lwn ei;rhke,n pote\): Senta-te à minha direita, até que reduza teus inimigos a escabelo dos teus pés? Porventura, não são todos eles espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a Salvação? (1.13s)

Os dois textos formam um inclusio, uma moldura que dá o início e o término do enunciado

completo. Ainda Hb 1.5-14 é marcado pela cadeia de 07 citações-prova do Antigo

Testamento243 com intervenções do autor (�ou ainda�; �E ao introduzir o Filho no mundo,

diz novamente�; �A respeito dos anjos, porém, ele declara�, etc.) para costurá-las a fim de

fazer sentido em sua argumentação. A função da perícope é descrever como o Filho é

superior aos anjos.

Aqui podemos aventar que o autor teria em vista alguma doutrina angelológica que

situaria os anjos num patamar superior ao Filho, contrariando a Cristologia recebida.244 Mas

dado que, ao nosso ver como exposto no capítulo anterior, a Carta aos Hebreus não possui

qualquer tipo de argumentação do tipo polêmico, parece mais proveitoso ver a função de

anjos dentro de Hebreus como a contraparte celeste do âmbito político do Estado terrestre.

3.4.1. O Filho de Deus é superior aos anjos (Hebreus 1.14)

Os anjos em Hb 1.14 �são espíritos servidores� (eivsi.n leitourgika. pneu,mata), �ministros

enviados� (diakoni,an avpostello,mena) por Deus. No Judaísmo do Período do Segundo

Templo, o interesse em figuras angélicas cresceu grandemente. Enquanto que na literatura

bíblica canônica, como vimos, há poucas referências a nomes de anjos e suas atividades, e até

expressa uma certa relutância (cf. Dn 8-12; Gn 32.29), a literatura pseudepígrafa mostra

grande interesse por esse assunto. Tal interesse é atribuído à convicção crescente da

transcendência divina, fazendo aumentar, assim, o papel dos anjos como seres

intermediários entre Deus e o mundo.

Nessa literatura os anjos aparecem sob diversos designativos. São chamados de (a)

�filhos do céu� (1 Enoc 6,2; 13.8; 14.3), �Santos� (Jubileus 17.11; 31.14; 33.12; 1Enoc 1,9;

Testamento de Levi 3.3), (b) �Vigilantes� (Jubileus 4.15,22; 7.21; 8.3; 10.5; 2 Enoc 18.1,3; 35.2;

Testamento de Rúben 5.6; Testamento de Neftali 3.5), �os que não dormem� (1 Enoc 39.12s; 40.2),

(c) �espíritos� (Jubileus 15,31; 1 Enoc 15.4,6,8,10), �gloriosos� (2 Enoc 21.1,3). Esses

243 James MOFFATT, Hebrews, p. 9.; Harold W. ATTRIDGE, Hebrews, p. 50 diz: �Seguindo esta introdução elaborada, vem uma cadeia de sete citações escriturísticas, primariamente dos Salmos, construídas como declarações para ou a respeito do Filho.� 244 H. ATTRIDGE, Hebrews, p. 51.

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designativos se relacionam com (a) sua contigüidade a Deus, (b) suas funções e (c) suas

propriedades. Nesta tríplice classificação não se pretende que um aspecto exclua outro, pois

os aspectos são interligados, mas simplesmente com objetivos didáticos.

O autor de Hebreus não desconhece as especulações acerca da hierarquia angelical, os

seus diferentes nomes e funções. Mas o que talvez possa parecer certo descaso para tais

figuras, não é mais que (1) amplificar o Cristo e sua filiação divina, o que é muito claro; (2)

evitar em se ocupar a respeito das gradações celestiais, como contraparte da Cidade-Estado

faz; (3) distinguir o papel dos anjos frente ao dos magistrados romanos: estes agem como

senhores, os anjos como servidores; (4) expor que os crentes não são inferiores aos seres

celestiais, coisa que sabiam na prática o que era viver assim no império romano, mas

assemelhados ao Filho de Deus que compartilhou de sua condição humana e eles

compartilharão de sua condição gloriosa, pois ele é vice-regente de Deus.

3.4.2. Vice-regência do Filho de Deus (Hebreus 1.3e)

O Filho �sentou-se nas alturas à direita da Majestade� (1.3e). Esta mesma confissão será feita

em 8.1: �O tema mais importante da nossa exposição é este: temos tal sacerdote que se

assentou à direita do trono da Majestade nos céus�. Mas deve-se observar que

�entronização�, �nome superior� são atribuídos ao Filho por ter realizado a purificação dos

pecados.

O Salmo 2.7 é um texto-prova bastante usado pelo Cristianismo das origens. Texto de

caráter messiânico descrevia anteriormente o significado da investidura real:

As palavras de investidura dirigidas ao rei de Jerusalém � consideradas fenomenologicamente � ficam entre a concepção do Egito e da Mesopotâmia. A acentuação da condição de que o rei tem de ser filho de Deus (cf. Sl 89.27s; 2 Sm 7.13,14; 1 Cr 28.6) mostra afinidade com o costume egípcio de aplicar ao rei este nome de filho de Deus, porém sem semelhança alguma, não obstante, enquanto idéia mítica de uma procriação física. Não, senão que o rei do A.T. chega a ser �filho de Deus� mediante a vocação e a prometida consagração. Neste aspecto, o processo de entronização em Jerusalém se parece ao ritual da Mesopotâmia (especialmente ao ritual sumérico). Porém se anexa um importante ponto de vista: a condição de filho, do rei de Jerusalém, se baseia num processo de adoção. Per adoptionem o soberano é declarado �filho de Deus� num ato jurídico de caráter sagrado.

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103

De fato, se em sua função original o Salmo 2.7 declarava a adoção do rei como filho de Deus,

o Cristianismo dos padres apostólicos vê envolvido neste tipo de expressão cristológica, o

adocionismo.245

Nosso autor desenvolve sua Cristologia com esse texto para fundamentar a divindade

de Jesus e não somente o seu status. A fusão com 2 Sm 7.14: �Eu lhe serei pai, e ele me será filho�

se dá propositalmente, pois no texto anterior os verbos estão no presente (ei=) e no perfeito

do indicativo (gege,nnhka,) acompanhado de um enfático pronome pessoal. O que dá a idéia

de um ato contínuo resultante de um momento no passado, ou seja, o �hoje� de Deus. No

segundo texto, os verbos se encontram no futuro (evgw. e;somai - auvto.j e;stai), o que compõe

com o primeiro texto uma filiação eterna.

Porém, ainda mais extraordinário é a citação do Sl 45.7s (LXX 44.7s) em Hb 1.8s:

O teu trono, ó Deus (o` qro,noj sou o` qeo.j), é para os séculos dos séculos; o cetro da retidão é o cetro de sua realeza. Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade , por isso, ó Deus (o` qeo.j), te ungiu o teu Deus (o` qeo,j sou) com o óleo da alegria como a nenhum dos teus companheiros.

Por duas vezes, no Sl 45.7s, o rei é chamado de Deus (o` qeo.j/ ´élöhîm). Na terceira menção,

�o teu Deus� (o` qeo,j sou/ ´élöhÊkä) é referência ao Senhor. Propositadamente, o Salmo não

utiliza Yahweh para se referir a Deus, permitindo o significado de que o rei é de algum

modo elevado ao patamar dos anjos, acima do da humanidade.246 C. H. T. Fletcher-Louis

pede nossa atenção para os textos de 1 Sm 29.9; 2 Sm 14.17,20; 19.7; Is 9.5 (LXX); Zc 12.8, nos

quais o rei é comparado a um anjo.247

3.4.3. O Filho de Deus como detentor do Nome superior ao dos anjos

O Nome do Filho é então revelado em Hb 2.9: �Jesus�. Como em Mt 1.21, Lc 1.31, Jo 1.12,17;

20.31 o nome �Jesus� é enfatizado em Hebreus.248 �Não era um fato desconhecido do meio

245 M. SIMONETTI, Adocionistas, in: Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, p. 43 escreve:�Com este nome os estudiosos modernos indicam os monarquianos que faziam de Cristo um mero homem, adotado como Filho de Deus por seus méritos (o latim adoptiani é muito tardio). Teódoto de Bizâncio, chamado �o Curtidor�, difundiu esta doutrina em Roma, no fim do séc. II. Ele afirmava que Jesus for a um homem nascido da Virgem por vontade do Pai e tinha vivido como os outros homens, de modo mais piedoso, pelo que, no batismo do Jordão, a pomba desceu sobre ele para significar o espírito divino que ele recebera, sendo chamado pelo nome de Cristo superior. Só a partir desse momento Jesus Cristo começou a operar prodígios. Alguns adocionistas colocavam nesse momento a deificação de Jesus, outros, após a ressurreição. Eles fundamentavam escrituristicamente sua doutrina sobre passagens evangélicas, das quais se podia deduzir que Jesus era apenas um homem.� 246 John J. COLLINS, The Scepter and the Star, p. 23. 247 All the Glory of Adam, p. 9. 248 Cf. At 2.36,38; 3.20; 4.17; Rm 10.9; Fp 2.6-11; 1 Ts 1.9 etc.

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ambiente cultural para se falar dos �nomes� de uma deidade como sinal de sua presença.�249

O tema do Nome superior ao dos anjos (1.4) tem sua matriz na revelação do Nome em Êxodo

23.20-23:250

Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Respeita a sua presença e observa a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o meu Nome (�ümî). Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que eu te disser, então serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários. O meu anjo irá adiante de ti, e te levará aos amorreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus, e eu os exterminarei.

O Nome (�üm) de Deus indica para própria presença de Deus. A presença do Anjo sobre

quem o nome de Deus repousa é o sinal de que Yahweh está no meio do seu povo, análogo à

coluna de nuvem (Ex 33.7-11). Em Ex 23.20ss, o anjo guia e guarda. Porque o nome de

Yahweh está sobre ele, obedecer-lhe é obedecer ao Senhor. E assim, o mensageiro pode

perdoar e reter pecados.

C. A. Gieschen nota que Jubileus, 36.7 e 1 Enoc, 69.14-21, 25 como evidência pré-cristã

da hipostatização do nome de Yahweh:251

E agora eu te farei jurar pelo grande juramento � porque há nenhum juramento maior que este, pelo glorioso e honrado e grande e esplendido e maravilhoso e poderoso nome que criou os céus e a terra e tudo mais � que tu o temas e o cultue. Jubileus, 36.7 Esta era a tarefa de Kasbeel, chefe do juramento, que o revelou aos santos quando morava no alto, na glória; seu nome era Beqa. Este disse a Miguel, o santo, que lhes ensinara o nome oculto para o pronunciassem em juramento, para tremessem diante deste nome e juramento os que haviam mostrado aos filhos dos homens tudo o que era oculto. Esta é a força deste juramento, pois é forte e poder, e pôs este juramento, Akae, na mão do santo Miguel. Estes são os segredos deste juramento... e são fortes em seu juramento... e o céu foi moldado antes de ser criado o mundo e até a eternidade nele. E por ele a terra se assentou sobre a água, e de montes ocultos chegaram águas formosas, desde a criação do mundo até a eternidade. Por este juramento foi criado o mar e se pôs o fundamento de areia para a hora de sua fúria, e não passará desde a criação até a eternidade. Neste juramento os abismos se firmaram e se elevaram e não se moveram de seu lugar desde a criação do mundo até a eternidade. Por este juramento, o sol e a lua completam sua órbita e não violam sua noma desde a (criação) do mundo até a eternidade (...). Todos eles confessam e louvam o Senhor dos Espíritos e elogiam e exaltam o nome do Senhor dos Espíritos pelos séculos. 1 Enoc 69.14-21, 24.

Atenção maior devemos dar ao texto de 1 Enoc 69.27, pois este conecta o Nome inefável como

o nome do Filho do Homem:

E eles bendisseram, glorificaram e exaltaram (o Senhor) por conta do fato de que o nome desse (Filho do) Homem lhes fora revelado. (...). Daí por diante nada que é corruptível será achado; porque o Filho do

249 H. D. PREUSS, Old Testament Theology, vol. 1, p. 170. 250 cf. Dt 12.11, 21; 14.23s; 16.2, 11; 26.2; Ne 1.9; Sl 74.7; Is 18.7; Jr 3.17; 7.10-14, 30. 251 Angelomorphic Christology, p. 75; Darrell D. HANNAH, Michael and Christ, p. 51.

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Homem se manifestou e sentou-se sobre o trono de sua glória; e todo o mal desaparecerá de diante de sua face; ele irá e falará a esse Filho do Homem, e o fortalecerá diante do Senhor dos Espíritos.

O Nome inefável de Deus é revelado a Moisés em Ex 3.14-15:

Moisés disse a Deus (´élöhîm): �Quando eu for aos israelitas e disser: �O Deus de vossos pais (´élöhê

´ábôtêkem) me enviou até vós�; e me perguntarem: �Qual é o seu nome?�, que direi?� Disse Deus (´élöhîm) a Moisés: �Eu sou aquele que é� (´e|hyè ´á�er ´e|hyè). Disse mais: �Assim dirás aos israelitas: �EU SOU (´e|hyè ´á�er ´e|hyè) me enviou até vós.�� Disse Deus (´élöhîm) ainda a Moisés: �Assim dirás aos israelitas: �Yahweh (yhwh), o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó me enviou até vós (´élöhê ´ábötêkem ´élöhê ´abrähäm ´élöhê yicHäq wë´löhê ya`áqöb). É o meu nome para sempre, e é assim que me invocarão de geração de geração.��

Yahweh é substituído por ku,rioj na Septuaginta. No entanto, George Howard.252 nota que de

cinco fragmentos da Bíblia grega encontrados nas cavernas de Qumran, três em que aparece

o nome divino (4QLXXNum [=Nm 3.30-4.14]; 4QLXXLeva [Lv 26.2-16]; 4QLXXLevb

[fragmentos de Lv 2-5]), não se utiliza ku,rioj, mas IAW, o que se conclui que o �tetragrama

sagrado� não era traduzido por ku,rioj na LXX no I século.253 Isto também levanta a

possibilidade de que nas citações ao Antigo Testamento no Novo Testamento ocorra o

mesmo artifício ao se referir ao Nome sagrado.254 Por conta disso, podemos supor que o

nome �Jesus� (VIhsou/j) em Hb 2. 9 teria mais significado como o nome superior ao dos anjos

(1.4) do que �Filho�, além de que �Filho� não é nome e sim condição. Sendo esse o caso,

parece-nos sintomático que em Hb 11.30 não apareça o nome de Josué, mas negativamente

em Hb 4.8: �Pois se Josué lhes deu repouso� (eiv ga.r auvtou.j VIhsou/j kate,pausen). E o nome

de Josué é VIhsou/j, como o é na LXX .255 Em Hebraico percebe-se que as três primeiras letras

de Josué são as três primeiras de Yahweh (yhw), o que pode sugerir que a confissão cristã

entendia que o Nome superior ao dos anjos, seeria o próprio nome de Yahweh. Corrobora

para isso a opinião de Justino, de Roma, em seu diálogo com Trifão (113.1):

Eu digo o seguinte: Foi Moisés quem pôs o nome de Jesus àquele que antes se chamava Ausés, como já disse tantas vezes, e que foi enviado junto com Caleb para explorar a terra de Canaã. Tu, porém, não queres averiguar por que fez isso, não é dificuldade para ti, não te interessas em perguntar. Desse modo, Cristo permanece ignorado por ti. Lendo não entendes, e nem mesmo agora, ao ouvir que Jesus é o nosso Cristo, não consideras que não foi sem motivo e por acaso que lhe foi dado esse nome.

252 George HOWARD, The tetragrama and the New Testament, in: JBL 9/1 (1977), p. 65. 253 Já nos textos em hebraico e aramaico onde aparece o nome de Deus, segue-se o padrão de transcrevê-lo �yhwh�. Cf. 1QpHab 10.6-7 (Hc 2.13: hálô´ hinnË më´ët yhwh(´ädönäy) cübä´ôt wüyî|g`û `ammîm Büdê-´ë� ûlü´ummîm

Büdê-rîq yì`äºpû) 254 Ibid., p. 82. 255 Por exemplo, Js 8.3: kai. avne,sth VIhsou/j.

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Com efeito, o Nome inefável de Deus é posto sobre o Anjo do Senhor, protetor do povo e

hipóstase de Yahweh, e que o tema do nome perpassa também as tradições angelológicas

judaicas, pode muito bem ser o caso de que o nome sublime de Jesus seja uma alusão a Ex

23.21. Contudo, ainda permanece uma questão aberta.

A seguir, nos ocuparemos da próxima perícope, Hb 2.5-18.

3.5. A estruturação de Hebreus 2.5-18

O contexto próximo anterior de Hebreus 2.5-18, ou seja, Hb 2.1-4, é de caráter parenético,

com seu foco sobre os leitores.256 O autor aproveita da sua exposição anterior para fazer a

primeira aplicação em que recorda os inícios da comunidade (2.3s). Parte do menor para o

maior em forma de pergunta. A razão de ser é que a segunda revelação foi feita pelo próprio

Filho de Deus, mediador final e absoluto da salvação: �como escaparemos nós, se

negligenciarmos tão grande salvação?� (2.3). Ao mesmo tempo em que exorta, o texto

funciona como prospecto de 2.5-18, pois desenvolverá o tema da encarnação e do sofrimento

vicário de Jesus. O autor também usa ali o recurso do inclusio delimitando o tema e

posteriormente passa para o tema da superioridade Jesus sobre Moisés (Hb 3.1-6). Aqui

também faz uso de vários textos-prova extraídos do Antigo Testamento.

Vejamos o inclusio::

Não foi a anjos que ele sujeitou o mundo futuro (Ouv ga.r avgge,loij u`pe,taxen th.n oivkoume,nhn th.n me,llousan), de que falamos. (2.5) Pois não veio ele ocupar-se com anjos (ouv ga.r dh,pou avgge,lwn evpilamba,netai), mas sim com a descendência de Abraão. (2.18)

O temário em Hb 2.5-18 é a sujeição dos inimigos do Cristo, principalmente o diabo

(2.14). O âmbito universalista da salvação é iluminado pela menção da ascendência comum

de toda a humanidade (2.9,11) e da descendência de Abraão (2.16), um indício do caráter

misto de seu auditório. O texto, ainda que cite os seres angélicos, pouco se diz deles. O

argumento do autor segue na direção da vitória de Jesus sobre a morte (v. 14) e da

conseqüente libertação dos crentes (v. 15). No entanto, os anjos fazem parte necessária da sua

exposição. Apesar do interlúdio parenético (Hb 2.1-4), Hb 1.5-14 e 2.5-18 não estão

256 Nesta perícope, o autor menciona de passagem o título �Senhor�, sem revelar seu nome.

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desligados entre si. Sem o interlúdio (2.1-4) percebemos que o autor não perde o fio da

meada. Somando-se ao tema dos anjos vêm os temas da filiação divina, da encarnação, da

entronização, da vitória sobre os inimigos, e da salvação.

3.6. Jesus, paradigma do homem primordial (Urmensch)

Hebreus 2.5-18 avança mais um degrau na exposição do Filho de Deus exaltado. A realização

do Primogênito no eón terreno é descrita em duas negativas, uma no início e outra no fim da

perícope:

Pois, não submeteu a anjos o mundo vindouro, a respeito do qual falamos. (2.5) Ouv ga.r avgge,loij u`pe,taxen th.n oivkoume,nhn th.n me,llousan( peri. h-j lalou/men. Pois, certamente não ocupa-se com anjos, mas ocupa-se com a descendência de Abraão. (2.16) ouv ga.r dh,pou avgge,lwn evpilamba,netai avlla. spe,rmatoj VAbraa.m evpilamba,netaiÅ

Hb 2.5 recorda o conteúdo de 1.5-14 em que é dito que tudo foi reduzido a escabelo de seus

pés (v. 13). Assim, o autor liga o Sl 8.6 (LXX: 8.7) ao Sl 110.1, como faz Ef 1.22. Em 1 Co 15.27

também encontramos a temática da �Cristologia Adâmica� (Sl 8.6) ligada a do �Governo de

Cristo� (Sl 110.1; cf. 1 Pe 3.22), o que se deve considerar como uma tradição cristã bem

estabelecida. Mas Hb 2.5-18 vai mais longe. Pois embora nem tudo ainda lhe esteja

submetido, o Filho de Deus já se encontra triunfante, ligando a encarnação à exaltação:

�coroado de honra e de glória� (v. 9).257 Trata-se do resultado de ter experimentado a morte

�em favor de todos os homens�. A exaltação do Filho se encontra no paradoxo da

humilhação (vv. 5-9). O Salmo 8 é o foco da primeira parte da perícope em questão (vv. 5-9).

Ao citar o Salmo, o autor usa de ambivalência em sua interpretação, levando o leitor/ouvinte

a pensar tanto na humanidade (ben-´ädäm), como em Jesus, o que dá espaço para refletir a

respeito do ser humano idealizado por Deus.

Que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem (ûben-´ädäm), para que o visites? ti, evstin a;nqrwpoj o[ti mimnh,|skh| auvtou/ h' ui`o.j avnqrw,pou o[ti evpiske,pth| auvto,n hvla,ttwsaj auvto.n bracu, ti parV avgge,louj do,xh| kai. timh/| evstefa,nwsaj auvto,n

Certamente o autor pensava no ser humano ideal e sua descendência (ben-´ädäm/ui`o.j

avnqrw,pou). Arthur Weiser a esse respeito escreve:

257 David PETERSON, Hebrews and perfection, p. 52.

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O soberano do mundo confiou ao próprio homem a função divina de dominar; pouco deixou faltar para que a posição do homem fosse igual a de Deus. O rei do mundo estabeleceu o homem rei da terra, coroou-o com o ornamento real da �majestade e glória�, que no fundo é a forma de manifestação de Deus. Neste sentido pode-se falar aqui de �imagem de Deus� (cf. Gn 1.26-28; 2.19s). Segundo a fé veterotestamentária, o homem não conquistou o poder sobre a natureza numa revolta titânica contra a divindade, mas recebe o domínio sobre �as obras das suas mãos� como tarefa dada por Deus, e é por vontade e poder de Deus que tudo lhe está subordinado.258

No entanto, optando por uma reserva de sentido, o autor de Hebreus faz uma interpretação

cristológica do Salmo, enfatizando o anthropos divino, Jesus, o nome revelado no v. 9.

Para o autor de Hebreus, a encarnação do Filho de Deus cumpre um objetivo muito

preciso, resgatar a humanidade da clausura e do sentimento horripilante da morte (v. 15).

Para isso, o Filho de Deus é ao mesmo tempo �Filho do Homem�, o que parece muito

adequado para o tema do sofrimento e exaltação. �Filho de Deus� em Hebreus expressa sua

qualidade de ser divino, em comunhão com Deus, em seu status exaltado, isto é, sentado à

destra do Pai, vice-regente de todo o universo, e Filho do Homem diz respeito a capacidade

de sofrer como qualquer ser humano.

EXCURSO I: O Filho do Homem em Daniel 7.13s Em Hebreus 2.6-8 é o Filho do Homem, um dos poucos textos fora dos Evangelhos em que

Jesus é assim nomeado. Portanto, importa nos determos um pouco na figura do Filho do

Homem descrito em Daniel 7.13s.

Os pesquisadores têm atribuído ao texto de Ezequiel a matriz tanto para o livro de

Daniel 7.9-14 e 10.5s (ainda que não sem dificuldades) como para a literatura a respeito de

Enoc.259 Em Dn 7.9-10 na visão do Ancião de Dias, tronos são preparados, e aquele se assenta

em um destes. O trono aqui baseia-se no da visão de Ez 1, e é tão fulgurante como aquele.

Do Ancião de Dias é dito que �suas vestes são brancas como a neve; e os cabelos de

sua cabeça, alvos como lã� (Dn 7.9). Diante dele milhares de seres celestiais o servem e livros

são abertos (7.10). Quanto ao Filho do Homem, em Dn 7.13s lemos:

Eu continuava contemplando, nas minhas visões noturnas, Quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem.

258 Os Salmos, p.100. 259 John J. COLLINS, Daniel, p. 306; C. ROWLAND in: Open heaven, p. 97 diz: �A similaridade que existe entre Ez 8.2 e Dn 7.13 está no fato de que ambos os versos se refiram a figuras celestiais e falam delas em termos quase divinos.�

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Ele adiantou-se até ao Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgada autoridade, glória e o governo, E todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu poder é poder eterno que jamais passará, E seu reino jamais será destruído.

O aspecto glorioso do Filho do Homem é caracterizado pelas nuvens sobre às quais ele vem.

Com livre acesso ao Ancião de Dias (Yahweh), torna-se vice-regente. As três últimas linhas

dizem como isso se dá (7.14).

A identidade do Filho do Homem angelomórfico em Daniel 7.13s

Muito material foi escrito sobre a figura do Filho do Homem; quem é ele? Três são as

possibilidades: (1) um ser humano; (2) um símbolo coletivo do povo de Deus e (3) um ser

celestial, neste sentido Miguel e, em alguma medida, Gabriel são os candidatos.260 A favor de

uma figura angélica, possivelmente Miguel, C. Roland observa que a resposta para Dn 7.9,13

está em Dn 10.5s lido com Ez 1.26s.261 Para termos uma idéia apresentamos uma sinopse de

Ez 1.26s e Dn 10.5s:

Por cima da abóboda que ficava sobre suas cabeças havia algo que tinha a aparência de uma pedra de safira em forma de trono, e sobre esta forma de trono bem alto, havia uma forma com aparência humana. Vi um brilho como de electro, uma aparência como de fogo junto dele, e em redor dele, a partir do que pareciam ser os quadris e daí para baixo , vi algo que tinha a aparência de fogo e um brilho em torno dele. E vi: Um homem revestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, seu corpo tinha a aparência do crisólito e seu rosto o aspecto do relâmpago, seus olhos como lâmpada de fogo, seus braços e suas pernas como o fulgor do bronze polido, e o som de suas palavras como o clamor de uma multidão.

Os dois textos apresentam várias similaridades. Mas além disso, falta no texto de Ez o linho

que reveste a figura humana de Dn. O �homem vestido de linho� aparece na outra figura de

Ez 9.2s. Quanto ao �som de suas palavras� de Dn, pode ser comparado com o som

produzido pelo bater de asas dos querubins (Ez 1.24; 10.5). O crisólito que aparece Dn está

em Ez 10.9.

Pela comparação percebemos que elementos do imaginário divino para Yahweh de

Ez migram para o arcanjo de Dn 105s e agora compõem a sua aparência.262 Quanto à

proposta de que é o arcanjo Miguel e não Gabriel, J. J. Collins apresenta uma boa

argumentação: 260 C. ROWLAND, Open heaven, p. 97. 261 Ibid., p. 99. 262 C. ROWLAND, Open heaven, p. 99.

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Uma variante da interpretação Angélica identificaria �um como Filho do Homem� com Gabriel ao invés de Miguel. (...). É mais plausível, contudo, traçar esta referência a Dn 7.16, onde Daniel pede a �um dos que estavam ali presentes� por uma interpretação. Gabriel serve como intérprete em 8.15 e 9.21, assim, ele provavelmente seria também identificado como o intérprete no capítulo 7. Miguel, o príncipe de Israel é o mais apropriado recipiente do reino.263

O livro de José e Asenet, transmitido em mais de uma dezena de manuscritos,

certamente contribui para um quadro mais completo do anjo Miguel como proposto acima.264

Em forma de novela, José e Asenet, datado c. I A.E.C.- I E.C., conta o casamento de José com a

filha do sacerdote de Heliópolis (cf. Gn 41.45) e a conversão da mesma ao Judaísmo. Julga-se

que foi escrito no Egito e sua finalidade era proselitista.265 No capítulo 14, após fazer uma

longa oração, Asenet vê a estrela da manhã surgindo no céu e entende que sua oração foi

atendida pelo Senhor (v. 1). Uma luz fulgurante surge e Asenet cai de rosto em terra (v. 4).

Uma voz chama seu nome e ela responde: �Eis-me aqui, Senhor� (v. 7). Então Asenet narra o

que viu:

E o homem me disse: �Eu sou o príncipe da casa do Senhor e comandante de todas as hostes do Altíssimo.� (...) E Asenet levantou a cabeça e viu um homem em todo o aspecto similar a José, pela veste e a coroa do escalão real, exceto que sua face é luminosa, e seus olhos como a luz do sol, e os cabelos de sua cabeça como a chama de fogo de uma tocha ardente, e as mãos e pés brilhantes como ferro em brasa, e faíscas caíam de suas mãos e pés. E Asenet o viu e caiu com a face sob seus pés sobre a terra. E Asenet ficou com muito medo e todos os seus lombos tremiam. E o homem lhe disse: �Coragem e não tenha medo, mas levanta-te e fique em pé, e eu te direi o que tenho a dizer.� (José e Asenet 14.8-12)

O texto acima descreve o homem que fala com Asenet como mensageiro celeste: (1) a

referência à estrela da manhã prepara o ambiente para a epifania e procedência do homem;

(2) o brilho intenso inicial e a visão da figura luminosa fazem Asenet prostrar-se; (3) face,

olhos, cabelos, mãos e pés luminosos como o fogo e como o metal incandescente; e (4)

portando coroa e bordão real. Comparável a José por causa das vestes, da coroa e bordão, o

mensageiro é a contraparte daquele no céu, o segundo em autoridade. O quadro se completa

com a auto-apresentação do homem: �Eu sou o príncipe da casa do Senhor e comandante de

todas as hostes do Altíssimo.�

263 Daniel, p. 310. 264 C. ROWLAND, A man clothed in linen: Dn 10.5-9 and Jewish Angelology, in: JSNT 24 (1985), p. 33. 265 G. A. PÉREZ, Apócrifos do Antigo Testamento, in: Literatura Judaica e Intertestamentária, p. 367.

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Seu nome, no entanto, não é declarado embora Asenet o tenha pedido (José e Asenet

15.12). A resposta do anjo ecoa a do Anjo do Senhor na visão de Manoá em Jz 13.18. O anjo

responde a Asenet:

Por que pedes o meu nome, Asenet? Meu nome está nos céus no livro do Altíssimo, escrito pelo dedo de Deus no início do livro e antes de todos os outros, porque eu sou príncipe da casa do Altíssimo. E todos os nomes escritos no livro do Altíssimo são impronunciáveis, e a homem nenhum é permitido pronunciar nem ouvi-los neste mundo, porque estes nomes sãos excessivamente grandiosos e maravilhosos e louváveis (15.12).

Mas diferindo do Anjo do Senhor, este anjo frisa sua função na casa do Altíssimo, ou seja, ele

é um príncipe. Corrobora com isto o fato de não declarar seu nome, que além de elevado,266 é

o primeiro da lista escrita por Deus. Em Js 5.13-15 uma figura celeste aparece a Josué267.

Apresenta-se como �Chefe do Exército de Yahweh�, recebe adoração de Josué e diz as

mesmas palavras ditas na visão da sarça ardente a Moisés (Ex 3.5). A seguir é dito que

Yahweh é que fala a Josué (Js 6.1). Por fim, em José e Asenet o anjo é distinto de Yahweh.

3.6.1. A irmandade do Filho de Deus (Hebreus 2.10-16)

A obra efetuada pelo Filho de Deus visa a formação de uma nova sociedade. Esta sociedade

se caracteriza pela restauração da humanidade como imagem de Deus, expressa no homem

pré-lapsariano. Por isso, a descida do pré-existente Filho de Deus é a sua identificação com os

seres humanos, mas principalmente, daqueles que receberam a mensagem de salvação.

A nova humanidade participa da assembléia divina da qual o Filho de Deus é seu

presidente (Hb 2.11-13). O texto utilizado pelo autor para expressar essa nova realidade

salvífica é o Sl 22.23 (cf. tb. Is 8.17s) em que o Filho de Deus declara:

Anunciarei o teu nome a meus irmãos (toi/j avdelfoi/j mou); no meio da assembléia (evn me,sw| evkklhsi,aj) te louvarei; e mais: Porei nele a minha confiança; Eis-me aqui com os filhos que Deus me deu. Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele participou da mesma condição, a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo, e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte.

266 O Anjo do Senhor diz que seu nome é �inefável� em Jz 13.18. 267 A descrição bélica dos anjos será feita também em 2 Macabeus 11.6-8.

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O quiasmo é perceptível nas duas declarações iniciais:

(A) Anunciarei o teu nome

(B) a meus irmãos;

(B�) no meio da assembléia

(A�) te louvarei.

A intenção do texto é: �Anunciar o Nome� e �te louvar�, que são correspondentes, da mesma

forma que �no meio da assembléia� e �a meus irmãos�.

O Sl 22.12-22 apresenta um cenário em que a proximidade da morte é o assunto

central. Além disso, o imaginário animal pode representar figuras demoníacas.268 O salmista

se descreve rodeado por formas de mal, cuja única conseqüência é a morte.269 Mais

sintomático ainda é que o Sl 22 faz referências a Yahweh entronizado (v. 28s) e a assertiva

�Sim, só diante dele todos os poderosos da terra se prostrarão� (v. 29). Morte, animais,

vitória, assembléia e descendência de Israel (v. 24) são temas que aparecem em Hb 2.12-16

(aqui: �animais = diabo�; �descendência de Israel = descendência de Abraão�).

A assembléia (Hb. 2.12) é formada dos �irmãos� com quem o Filho partilha a mesma

condição de �carne e sangue�, mas que pode abarcar também os anjos (Hb 12.22-24). Deveras

este texto (12.22ss) ilumina Hb 2.10-16 ao apresentar o resultado último da obra salvífica de

Jesus, uma �assembléia dos justos perfeitos� (12.23).270

Dito isto, podemos entender que �Filho do Homem� além de propiciar o seu

sofrimento, também indica o homem ideal, perfeito, imagem de Deus, o aperfeiçoador dos

seres humanos que nele confiam. A perfeição do ser humano proposta por Hebreus deriva

da encarnação e morte voluntária do Filho (cf. Hb 10.5-7). Criação e salvação estão

alinhavadas no Filho. Porque o Filho participou da condição humana, os seres humanos

podem agora participar da sua condição divina:

Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, querendo conduzir muitos filhos à glória (e;prepen ga.r auvtw/|( diV o]n ta. pa,nta kai. diV ou- ta. pa,nta( pollou.j ui`ou.j eivj do,xan avgago,nta to.n avrchgo.n th/j swthri,aj auvtw/n dia. paqhma,twn teleiw/saiÅ). Hb 2.10

268 J. Clinton McCANN, Jr., The book of Psalms, in: NIB, vol. IV., p. 763. 269 Ibid., p. 763. 270 A �Assembléia dos justos aperfeiçoados� em Hebreus contrapõe-se a �assembléia dos cidadãos� do mundo Mediterrâneo do I séc. Ali só os arrolados por direitos adquiridos mediante os antepassados (�carne e sangue�) são os de pleno direito. Lá todos os que confessam e permanecem �firmes na profissão de fé� em Jesus Cristo (Hb 4.14).

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113

A �glória e a honra� atribuídas ao Filho são partilhadas com os �muitos filhos�, levados à

perfeição. A imagem desta perfeição está em Jesus, �feito, por um pouco, menor que os

anjos� (2.9). Jesus é assim o Urmensch, o homem primordial por excelência, o paradigma de

uma nova humanidade liberta do detentor da morte (Hb 2.14).

Esse detentor é o diabo, designativo do inimigo da humanidade. Para melhor

entendermos essa relação, precisamos nos deter a seguir no imaginário que envolve a

humanidade e os anjos, e finalmente, na expectativa desse imaginário focado em sua

restauração.

3.6.2. A humanidade e os anjos

A relação entre homens e anjos inicialmente é, de acordo com as tradições do A.T. e do

Judaísmo do Período do 2° Templo, acidentada. Já em Gn 6.2: �os filhos de Deus viram que

as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram�

(wayyir´û bünê-hä|´élöhîm ´et-Bünôt hä|´ädäm Kî �öböt hëºnnâ wayyiqHû lähem nä�îm miKKöl ´á�er

BäHäºrû). Esta passagem é esquadrinhada pelo 1 Enoc 6-8 como explicação da origem da

iniqüidade no seio da sociedade humana. Aí, como na narrativa bíblica, porém com mais

detalhes, os filhos dos céus (anjos) se enamoram das filhas dos homens. Então, esses anjos

fazem um acordo sob um juramento de levar a efeito o plano de possuírem as filhas dos

homens. Caso algum não participe, fica sob maldição (1 Enoc 6.1-6). Ironicamente, a lealdade

mútua não elimina a punição divina conseqüente do ato (1 Enoc 10). De acordo com Gn 6.4, a

união dos anjos com seres humanos gesta uma raça híbrida de gigantes, homens renomados

dos tempos de antanho (oi` avpV aivw/noj oi` a;nqrwpoi oi` ovnomastoi,), semelhantes aos

heróis gregos. Em 1 Enoc 7, tais �heróis� são devoradores e antropofágicos, que passam a

dizimar a raça humana:

E as mulheres engravidaram e deram à luz grandes gigantes, cuja altura era de trezentos cúbitos. Estes (gigantes) consumiram o produto de todo o povo a ponto do povo não dar mais conta de alimentá-los. Então, os gigantes se voltaram contra (o povo) para devorá-los. E começaram a pecar contra as aves, as bestas selvagens, os répteis e peixes. E devoraram-se mutuamente, e beberam sangue. E então, a terra instaurou uma acusação contra os opressores.

O resultado é que o meio-ambiente da humanidade se deteriora porque os anjos ensinaram

às mulheres encantamentos e artes mágicas, e ao povo a confecção de instrumentos bélicos.

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114

3.6.3. A restauração da imagem do homem primordial (Urmensch)

No livro da Vida de Adão e Eva 11-13 narra-se o porquê do diabo causar tantas vicissitudes ao

casal de seres humanos:

Ó diabo desgraçado. Por que nos agride por coisa nenhuma? O que tu tens a ver conosco? O que te fizemos para que nos persiga com enganos? Por que tua malícia cai sobre nós? Roubamos tua glória e o fizemos ficar sem honra? Ó inimigo, por que traiçoeiramente e invejosamente tu nos persegue de todo jeito para a morte? E o diabo suspirou e disse: Ó Adão, toda minha inimizade e inveja e infortúnio concernente a ti, pois por tua causa eu fui excluído e privado de minha glória que tinha nos céus no meio dos anjos, e por sua causa eu fui jogado na terra. Adão respondeu: O que eu fiz para ti, e qual é a minha culpa para contigo? Pois nem te prejudicamos e nem fostes ferido por nós, por que nos persegue? O diabo replicou: Adão, o que estás me dizendo? É por tua causa que fui enxotado de lá. Quando tu foste criado, eu fui expulso da presença de Deus e fui retirado da companhia dos anjos. Quando Deus soprou em ti o hálito de vida e tua imagem e semelhança foram feitas à imagem de Deus, Miguel te trouxe e (nos) fez te adorar à vista de Deus, e o Senhor disse: Ó Adão! Eu te fiz à nossa imagem e semelhança. E Miguel saiu e chamou todos os anjos, dizendo: Adorai a imagem do Senhor Deus, como o Senhor ordenou. E Miguel mesmo o adorou em primeiro lugar, e chamou-me e disse-me: Adore a imagem do Deus, Yahweh. E eu respondi: Não adorarei Adão. E quando Miguel me forçava a adorar, eu lhe disse: Por que me impele? Não adorarei alguém inferior e subseqüente a mim. Eu sou anterior a ele na criação; fui feito antes dele, eu já estava feito. Ele é que deve me adorar.

Os temas �imagem e semelhança de Deus�, �honra e glória�, �culto�, �preeminência e

status� na ordem criada aparecem entrelaçados. Uma coisa explica a outra. Perder a glória é

ser destituído do caráter angélico ou da imagem de Deus. O diabo perde seu status angélico

e Adão o de humanidade perfeita. Torna-se mais notável ainda que o temário seja claramente

expresso em Hebreus 2.5-18 numa perspectiva triunfalista. Jesus, em sua encarnação, foi feito

menor que os anjos, mas depois coroado de glória e honra. Alvo de provações, derrota o

diabo,271 detentor da morte, e por isso é �capaz de socorrer os que são provados.� É a um só

tempo iniciador e santificador da salvação de �seus irmãos�, isto é, a raça humana, fazendo

jus ao seu nome de Filho de Deus, �Jesus�. Note-se que na Vida de Adão e Eva 11-13, como

também em Hb 2.14, o causador das vicissitudes da raça humana é o diabo. E que Jesus é o

protótipo do ser humano ideal, caracterizado com traços angelomórficos de �glória e honra�.

Compare-se o texto de Hebreus ao de 1 Enoc 6-10. Veja-se que a vinda do Filho de

Deus ao mundo é diferente da dos anjos (vigilantes) rebeldes. Tanto na intenção como no

agir. Estes descem pela busca de satisfação da sensualidade ao possuir as filhas dos homens;

aquele busca a santidade dos seres humanos assumindo os sofrimentos que levam à

salvação. Ainda, contrariando sua própria natureza, os anjos se contaminam com sangue,

tornando-se impuros (1 Enoc 9.8-10). Jesus, de sua parte, santifica e aperfeiçoa os homens (Hb

271 Hb 1.14 é a única referência ao diabo na carta toda.

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2.10). Enquanto Enoc sobe aos céus e se ocupa dos anjos caídos (1 Enoc 11-16); Jesus desce e

ocupa-se da �descendência de Abraão� (Hb 2.17). Desta maneira, ainda que antiteticamente,

os temas se correspondem.

No Apocalipse de Adão, exprime-se a gloriosa realidade do homem pré-lapsariano:

Ouça as minhas palavras, Set meu filho. Quando Deus me criou da terra juntamente com Eva sua mãe, eu costumava ir com uma glória que ela viu no eon vindouro. Ela me ensinava uma palavra de conhecimento do Deus Eterno. E nós éramos como anjos eternos, pois éramos os mais orgulhosos que o Deus que nos criou e os poderes que estavam com ele, os quais não conhecíamos. Então Deus, o governante dos eons e dos poderes, cheio de iracúndia, nos separou. Então nos tornamos dois eons, e a glória em nossos corações nos abandonou, a mim e à Eva sua mãe, junto com o conhecimento que costumava soprar em nosso interior. E a glória fugiu de nós, entrando em outros grandes [eons] e outra grande [raça].

Há cópias desse texto na biblioteca gnóstica de Nag Hammadi. No entanto, G. McRae propõe

que o Apocalipse de Adão possui material mais primitivo que se situa por volta do final do I

século.272 Se realmente este for o caso, temos aqui uma forte sugestão da existência humana

pré-lapsariana, uma existência angelomórfica (�anjos eternos�). Também o termo �glória�

indica o aspecto angelomórfico do primeiro casal humano. De qualquer modo, parece

sugestivo que uma geração posterior do cristianismo compreendesse uma existência humana

aperfeiçoada e gloriosa como angelomórfica.

Adão é descrito no Testamento de Abraão 11.4-5,8-9:

E a aparência daquele homem era terrificante, como a do Mestre. E eles viram muitas almas sendo conduzidas pelos anjos e sendo levadas pelo amplo portal, e viram que outras poucas almas levadas pelos anjos entrando pelo portal estreito. (...). Meu senhor comandante, quem é este homem maravilhoso, que está adornado de tal glória... E o ser incorpóreo disse: �Este é o primeiro formado, Adão que está em tal glória e olha para o mundo, pois todos procedem dele.

Compare-se a aparência de Adão com a do Mestre, o que sugere que ele seja a imagem e

semelhança de Deus. P. B. MANOA III mostra que o texto acima é derivado de Dn 7.9-10, em

que é apresentado o Ancião de Dias, e pede a nossa atenção para os dois textos.273 Tanto

Adão como o Ancião de Dias estão entronizados e acompanhados de anjos. Mas o Ancião de

Dias é assistido pelos anjos; Adão meramente vê os anjos conduzindo as almas aos portões.

No segundo trono de aparência de cristal exuberante, que lança fachos como fogo

(Testamento de Abraão 12.6), está Abel, que é chamado de Filho de Adão (13.2s). Sua aparência

272 Apocalypse of Adam, in: OTP, vol. 1, p. 708. 273 Four powers in heaven, p. 7.

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é gloriosa como o sol, como um filho de Deus (12.7). Abel é encarregado de julgar toda a

criação �examinando ambos, justos e pecadores� (13.3). A figura gloriosa de Abel deriva da

do Filho do Homem de Dn 7.13-14. Menciona-se o papel das doze tribos e de Deus no juízo,

mas não se detém em pormenores, somente que há três instâncias até o veredicto final, para

cumprir a exigência de três testemunhas (13.8). Fala-se de anjos assistentes, mas não diz de

quem são. Para nós basta saber a sua aparência: o da direita é radiante como o sol e se chama

Dokiel274 e o outro sem misericórdia é Purouel (Uriel?). A morte que, posteriormente, visita

Abraão, também se transforma em uma aparência luminosa e com vestes radiantes, rosto

brilhante como o sol, um anjo mais belo que qualquer filho dos homens (16.6). Porém, após a

morte, Abraão é conduzido aos céus por Miguel acompanhado de uma multidão de anjos,

onde viverá eternamente (20.9-14).

Finalmente, citamos o texto do Apocalipse de Sofonias 8.1-4 que ilustra de modo

especial o anelo por uma humanidade angelomórfica:

� Eles me auxiliaram e me colocaram no barco. Milhares de milhares e miríades de miríades de anjos à minha frente louvavam. Eu mesmo vesti um traje angélico. E vi todos aqueles anjos orando. Eu mesmo orei junto com eles, eu conhecia sua linguagem, dos que falavam comigo.

Obtemos a descrição do traje angélico do visionário de sua visão do anjo Yeremiel no próprio

livro de Apocalipse de Sofonias 6.11-15 como já foi transcrito anteriormente. �Vesti um traje

angélico�, ou seja, �sofri uma metamorfose�.

A Carta aos Hebreus possui um tema recorrente que perpassa tudo: �Perfeição�. O

objetivo de tão grande salvação (2.3) é a perfeição da humanidade (2.10). Perfeição,

conseqüentemente, é sinônimo de imortalidade (2.15). Imortalidade é um traço angélico, de

acordo com 1 Enoc 15.5-8, os anjos são imortais e os homens são mortais. Devido a esta

mortalidade, a raça humana é preservada mediante o gerar filhos, enquanto os anjos não

precisam disto. Tomar das filhas dos homens e gerar filhos é violação de uma ordem

estabelecida pela Divindade. Por sua vez, o sacrifício vicário de Jesus purifica os seres

humanos de seus pecados (1.3; 9.27s; 10.10, 20ss), trazendo-lhes uma nova esperança, uma

perfeição eterna (9.28). A plenitude da perfeição é a �ressurreição�. Mas é notável como

Hebreus se isenta em discorrer sobre esse tema (11.19, 35). A menção mais direta à

ressurreição é feita em Hb 6.2 e é classificada como matéria de catecumenato, no entanto, a 274 E. P. SANDERS, in: OTP, vol. 1, p. 890 cita a proposta de K. SCHMIDT de que �Dokiel� era originalmente ceDeqiel, �justiça de Deus.�

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referência mais forte à ressurreição dos santos está em 11.35, na segunda vez que é

mencionada neste texto. O autor prefere apresentar a ascensão de Jesus como paradigma da

esperança do Cristão. De fato, com isso, o autor harmoniza sua mensagem plenamente com a

situação dos leitores em seu meio-ambiente social. Assim, a esperança de perfeição liga-se a

um �descanso� por se realizar (4.1-11) e a uma cidade celestial (12.22; 13.14). Aí os justos

aperfeiçoados serão como anjos: que possuem entrada franca à presença de Deus (10.19s),

que podem ver a Deus (12.14), que louvam-no perpetuamente (13.15), que cultuam o Deus

vivo (9.14), que lhe são submissos (12.28; 13.20). São aperfeiçoados por que esperam �uma

ressurreição melhor� (11.35), uma metamorfose angelomórfica.

3.7. Avaliação

No fim deste capítulo, cabe-nos fazer um balanço dos resultados alcançados para o nosso

escopo. Os temários de Hb 1.1-4 que são desenvolvidos em 1.5-2.18 mostram um

conglomerado de tradições angelomórficas do judaísmo de seus dias. Mesmo sem citar

explicitamente tais tradições, as alusões e ecos a este cabedal de tradições revelam que o

angelomorfismo foi de muita utilidade na composição da Cristologia de Hebreus.

Ao iniciar com os profetas, o autor parte de bem assentada confissão da comunicação

mediadora de homens que falaram a palavra de Deus. Tais homens tinham acesso ao

Conselho Divino e eram a contraparte dos anjos no ambiente terrestre. Sua função de

mensageiros da parte da Deidade inspirou muita reflexão a respeito de outros subirem ao

céu e habitar na companhia dos anjos e de Deus. Enquanto que os profetas são provenientes

da esfera da humanidade, o Filho, como mensageiro último da revelação é o mensageiro da

esfera celestial.

Imagem perfeita de Deus, Jesus figura como o Adão primevo, o Urmensch sem pecado.

Sua morte vicária resulta em sua glorificação celeste. Consoante ao princípio de que o ser

humano pecador não pode habitar no céu, sua glória é a mesma disposta por Yahweh

apresentada tanto nas teofanias como nas angelofanias. Os anjos são descritos participando da

condição divina, algumas vezes sendo confundidos com Yahweh, o que os levava a retificar

o mal entendido dos visionários. Sua beleza e resplendor são derivações do Anjo do Senhor,

a manifestação angelomórfica de Deus.

Ao conceder a glória a Jesus, Deus concede que os seres humanos partilhem da

imortalidade por ele conseguida. Enquanto o Adão primevo falhou em legar aos seus

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descendentes a imortalidade, o Filho de Deus a realiza e a partilha não com filhos seus, mas

com seus semelhantes chamados de irmãos. O contraste também é diante dos anjos que

desceram para gerar filhos imortais, mas que resultou em prejuízo tanto para si como para a

raça humana. Segundo a expressão do autor, Jesus contrasta com os heróis do mundo greco-

romano que conseguiam a imortalidade mediante feitos maravilhosos, mas somente para si,

incapazes de garantir aos seus devotos.

Já pré-existência de Jesus Cristo é derivada da Sabedoria como agente da criação. No

entanto, a Sabedoria é pintada com caracteres divinos que são marcadamente angelomórficos:

�pré-existente�, �resplendor da glória�, �primogênese�, �função sacerdotal�, �eternidade�,

�vice-regência�, �gloriosa�, �torá�, �participante da Assembléia Divina�. Este temário lança

mão de um certo grau de angelomorfismo, no sentido de que a caracterização angélica é

melhor expressão para sua função demiúrgica.

A vice-regência de Jesus, isto é, sua entronização à mão direita de Deus, faz dele um

vizir de Yahweh, o segundo na corte divina. Esse papel foi interpretado e atribuído a

diversas figuras angélicas ou a humanos angelomórficos descritos nas tradições do Judaísmo

do 2º Templo, sejam das Escrituras ou não. Ora o Anjo do Senhor, ora alguma outra figura

angelomórfica, foi entronizada. Devido a uma certa indefinição, o lugar à direita da Deidade

provocou a composição de candidatos elegíveis. Esta composição foi fruto da concepção da

santidade e alteridade de Deus, portanto, para preencher as qualidades necessárias à figura

do justo metamorfoseado em semelhança de um anjo era a melhor solução. O justo, deste

modo, encarnaria a esperança de meros mortais de habitarem na dimensão divina, a

possibilidade da imortalidade.

A posse do nome inefável já havia sido sugerida pelo Anjo do Senhor. Visto que

algumas figuras angélicas se assemelhavam a ele, surgiram as especulações em torno delas.

O Nome sagrado de Yahweh como prolongamento da divindade e de sua autoridade

também motivou expectativas angelomórficas. Ao atribuir o Nome inefável a Jesus, o autor

de Hebreus é devedor a tais expectativas.

Mas uma impossibilidade é expressa em Hebreus, que esvazia qualquer outro

candidato para tanto: O Filho como gerado pelo próprio Deus. Nisto reside o fator

diferenciador de tudo, isto é, não meramente uma declaração de status alcançada por Jesus,

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mas um mistério que demandaria muita reflexão da Cristandade posterior frente aos seus

detratores.

3.8. Conclusão

Em suma, é inegável que o autor de Hebreus, como outros no Novo Testamento, é devedor

às tradições angelomórficas para expressar a crença no Jesus Cristo glorificado. Ao fazer isso,

encerra qualquer disputa ao lugar no trono à direita de Yahweh (pelo menos no

Cristianismo). Por outro lado, escancara a porta de entrada para que os pequenos deste

mundo façam parte da �grande nuvem de testemunhas� formada de anjos e justos no fim de

sua peregrinação, o descanso prometido.

No próximo capítulo nos ocuparemos do sumo sacerdócio angelomórfico de Jesus

segundo e de Melquisedec.

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Capítulo 4

JESUS E MELQUISEDEC

(Hebreus 7.1-10)

O autor de Hebreus em 5.11 já declarara que teria muito a dizer e �de difícil interpretação�

(dusermh,neutoj le,gein). Referia-se principalmente à proposição do verso anterior: �tendo

recebido de Deus o título de sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec� (5.10). Assunto

espinhoso de tratar, explicar como alguém pode ser sumo sacerdote sem pertencer a uma

linhagem designada para isso, com o agravante de haver sofrido uma morte desonrosa.

A via escolhida pelo autor para apresentar o evento salvífico realizado por Jesus é a

do sumo sacerdócio. Com este motivo, fundamenta e interpreta a sua morte de cruz. A

exposição feita no capítulo 7 também atende o exercício da função tão necessária para a

felicidade da Cidade, a do sumo sacerdote (sumo pontifex). Visto que a Carta aos Hebreus

desenvolve a proposta de uma caminhada para a �Cidade do Deus vivo, a Jerusalém

Celeste� (12.22), o sacerdócio é um item sine qua non.

Neste capítulo, nossa atenção se volta ao sumo sacerdócio de Jesus, ofício que

encontra em Melquisedec sua fundamentação. Pretendemos descortinar as tradições que

evidenciam uma compreensão angelomórfica a respeito do sumo sacerdote e que lancem luz

sobre a Cristologia Exaltada expressa em Hebreus. Para tanto, nosso intuito é buscar os

traços angelomórficos representados em textos do Judaísmo do período do 2º Tempo

comparados aos de Hebreus 7.1-10. Destarte, a figura de Melquisedec nas tradições de 2 Enoc

e, de modo especial, a de Qumran em 11QMelquisedec são de suma importância.

Damos de início um quadro de referência considerando brevemente o céu como

santuário celeste, do qual o Tabernáculo é cópia, e o Sacerdócio como princípios norteadores

subjacentes à religiosidade como entendida no ambiente de Hebreus. Queremos com isso

detectar os matizes sacerdotais que propiciam a Cristologia Angelomórfica da carta.

4.1. Santuário e sacerdócio

A importância do santuário, do sacerdócio, e do culto para o judaísmo do I séc. da E.C. não

pode ser subestimada no estudo da Cristologia das origens, como mostrada pela Carta aos

Hebreus. Se considerarmos que, em sua grande maioria, a religiosidade do mundo

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Mediterrâneo do século I não pode ser imaginada sem um santuário e, conseqüentemente, de

todo um grupo de oficiantes e uma maquinaria adequada, compreenderemos a preocupação

de nosso autor em legitimar a relevância do Cristianismo primitivo sob a ótica do sumo

sacerdócio de Jesus. Trata-se de uma explicação necessária visto que o Cristianismo por ele

professado é uma religião que exercita um culto que prescinde de um sacerdócio visível e

sem uma prática sacrificial aparente (cf. por ex.: Jo 4.21-24; At 7.49-50; Rm 12.1).

Deve-se lembrar que o Santuário de Jerusalém fora concebido como o lugar em que a

Terra toca o Céu, onde a Divindade transcendente se manifestaria. Por conseguinte, o

Santuário é uma réplica da Criação, que leva em conta principalmente o Céu. Mircea Eliade

escreveu:275

A simples contemplação da abóboda celeste é suficiente para desencadear uma experiência religiosa. O Céu revela-se infinito, transcendente. É por excelência o ganz andere diante do qual o homem e seu meio ambiente pouco representam. A transcendência revela-se pela simples tomada de consciência da altura infinita. O �muito alto� torna-se espontaneamente um atributo da divindade. As regiões superiores inacessíveis ao homem, as zonas siderais, adquirem o prestígio do transcendente, da realidade absoluta, da eternidade. Lá é a morada dos deuses; é lá que chegam alguns privilegiados, mediante ritos de ascensão; para lá se elevam, segundo as concepções de certas religiões, as almas dos mortos. O �muito alto�é uma dimensão inacessível ao homem como tal; pertence de direito às forças e aos Seres sobre-humanos. Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário, ou a escada ritual que conduz ao Céu, deixa então de ser homem: de uma maneira ou de outra, passa a fazer parte da condição divina. Não se trata de uma operação lógica, racional. A categoria transcendental da �altura�, do supraterrestre, do infinito revela-se ao homem como um todo, tanto à sua inteligência como à sua alma. É uma tomada de consciência total: em face do Céu, o homem descobre ao mesmo tempo a incomensurabilidade divina e sua própria situação no Cosmos. O Céu revela, por seu próprio modo de ser, a transcendência, a força, a eternidade. Ele existe de uma maneira absoluta, pois é elevado, infinito, eterno, poderoso. (...). E, visto que o Céu existe de maneira absoluta, um grande número de deuses supremos das populações primitivas são chamados por nomes que designam a altura, a abóboda celeste, os fenômenos meteorológicos; ou são chamados muito simplesmente de �Proprietários do Céu�, ou �Habitantes do Céu�.

Destaque-se principalmente os elementos que levam o ser humano diante da imensidão

celeste à consciência do transcendente, isto é, �o muito alto�, o inacessível. É lá que habitam

os deuses, a que somente alguns privilegiados chegam, não sem preencher certos quesitos.

Por conta dessa tomada de consciência e da concepção de um imaginário divino, o ser

humano intenta superar sua humanidade e contactar a deidade; quer superar sua limitação e

contemplar o ilimitado; subir ao céu, se é impossível à primeira vista, então, aproximar o céu

da terra. O santuário terrestre possui esta função, fazer disponível o indisponível. Mediante

uma arquitetura interpretativa, ritos e pessoal especializado, o ser humano busca

275 O Sagrado e o Profano; a essência das religiões, p. 100.

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experimentar o habitat da deidade. Entende-se que encontrar a Deus é encontrar a si mesmo,

descobrir-se, recuperar a sua identidade perdida.

O santuário jerusalemita atende às essas prerrogativas (embora o autor de Hebreus

opte pelo Tabernáculo). Deus tem seu habitat no céu. Junto dele estão os seus servidores

celestes, os anjos. Apesar de transcendente, o ser humano deseja chegar à presença de Deus,

pois, com Ele está a vida. Viver eternamente é viver diante de Deus, viver diante dele é ser

considerado justo. Por conseguinte o santuário terrestre abre a porta do celeste, aí é o limiar

da intersecção entre terra e céu. Mas nenhum ser humano pode entrar em sua presença

imediata, a menos que atenda um programa ritualístico. E mesmo assim, tal aproximação é

fugaz, só acontece uma vez por ano e somente a uma pessoa é permitida, ao sumo sacerdote.

Essa aproximação se faz mediante sua entrada na área mais sagrada do santuário, após

derramamento de sangue de uma vítima sacrificial, garantia de não ser morto ele mesmo na

presença da deidade.

4.1.1. Santuário Terrestre espelho do Santuário Celeste

Tradicionalmente, o universo era concebido como tripartido, ou seja, céu, terra e regiões

inferiores. O céu é o lugar da habitação de Deus, a terra é o da habitação da humanidade e as

regiões inferiores é o lugar dos mortos (cf. Sl 115.16-17). Embora o imaginário varie entre

uma �tenda� e uma �barreira� que retém as águas superiores,276 nos ateremos ao céu como

um santuário, do qual o terreno é réplica.

Flávio Josefo descreve a relação entre o céu e o tabernáculo (Antiguidades Judaicas

3.7.179-187):

Pode-se maravilhar dos prejuízos que os homens nos causam, e que professam perceber o nosso descaso para com a Deidade que eles pretendem honrar; pois se alguém considerar o fabrico do tabernáculo, e observar o vestuário do sumo sacerdote, e daqueles vasos que fazemos uso em nossa ministração sagrada, achará que somos injustamente reprovados por outrem: pois se alguém sem prejuízo, e com juízo, contempla estas coisas, perceberá que cada uma foi feita de modo a imitar e representar o universo. Quando Moisés dividiu o tabernáculo em três partes, e deixou duas delas aos sacerdotes, lugar acessível e comum, ele denotava a terra e o mar, estes sendo de geral acesso a todos; mas ele separou a terceira divisão para Deus, porque o céu é inacessível aos homens. E quando ordenou doze pães para estarem sobre, ele denotava o ano, como é dividido em muitos meses. Ao ampliar o candelabro em setenta braços, ele secretamente imitava o Decani, ou setenta divisões dos planetas; e como as sete lâmpadas sobre os castiçais, ele se referiam ao curso dos planetas, de que esse é seu número. (...).

Segue-se as significações dos componentes do vestuário do sumo sacerdote:

276 J. Edward WRIGHT., The Early History of Heaven, p. 54.

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Já a vestimenta do sumo sacerdote sendo feita de linho, significava a terra; o azul denotava o céu, sendo como relâmpagos as suas romãzeiras, e no barulho dos cincerros se assemelhava ao trovão. E o efod mostrava que Deus fez o universo de quatro [elementos]; e para o ouro entrelaçado, suponho que se relacionava ao esplendor de todas as coisas que são iluminadas. Ele também indicou que o peitoral devia ser colocado no meio do efod, para se parecer com a terra, porque ela está no centro do mundo. E o cinturão que estava em volta do sumo sacerdote, significava o oceano, porque ele rodeia e inclui o universo. Cada sardônica nos apresenta o sol e a lua; eu entendo que era a natureza dos botões sobre os ombros do sumo sacerdote. E para as doze pedras, se entendemos que sejam os meses, ou se entendermos que seja o número dos signos daquilo que os gregos chamam de Zodíaco, não estaremos errados em seu significado. E a mitra, que era de cor azul, parece-me significar o céu; pois como poderia o nome de Deus ser escrito sobre ela! Isto também era ilustrado pela coroa, também de ouro, por causa desse esplendor com que Deus é agradado.

Os dois textos acima fazem parte da ampla descrição de toda aparelhagem cultual araônica.

No primeiro texto, digno de nota é a declaração que o �céu�� é inacessível aos homens. No

segundo, percebe-se a relação de culto e criação sugerida por Gn 1. Quanto ao nome de Deus

escrito sobre a mitra do sacerdote (cf. Ex 28.36-37; Lv 8.9), conforme Jubileus 36.7, Deus criou

o universo por intermédio do seu Nome. As formulações representativas do céu

fundamentam a tese de que a celebração do culto, principalmente o �Dia da Expiação�, era

de alguma forma a restauração do universo que foi maculado pelo pecado.277 Por sua vez, o

��céu�� que é inacessível passa a ser acessível atendidas às prescrições cultuais. Por conta

disso, o Templo de Jerusalém é o lugar utilizado por Deus para santificação da Terra (Jubileus

25.26).

Mas há um dado ulterior, no período do Judaísmo do Período do 2º Templo o céu

também é concebido como um Templo, conforme demonstrou Martha Himmelfarb.278 Ocorre

uma alteração, isto é, gradativamente o imaginário do templo foi-se deslocando para o

âmbito celeste. Enquanto Isaías ainda vê Yahweh sentado sobre um elevado trono fixado em

Jerusalém (Is 6.1), Jeremias, mais tarde, se torna capaz de fazer a ousada declaração da crença

no Templo como inexpugnável: �Não vos fieis em palavras mentirosas dizendo: �Este é o

Templo de Yahweh, Templo de Yahweh, Templo de Yahweh!�� (Jr 7.4). Em Ez 10.18-22, a

Glória Divina sai do Templo no trono móvel para o povo exilado. Esses dois profetas eram

sacerdotes (Jr 1.1; Ez 1.3), o que de certo modo, surpreende tal postura em relação ao Templo.

O Trito-Isaías vai além ao declarar: �Assim diz Yahweh: O céu é meu trono, e a terra o

escabelo dos meus pés. Que casa me haveis de fazer, que lugar para o meu repouso?� (Is

277 Margareth BARKER, Atonement: The rite of healing, p. 1. 278 Ascent to heaven in Jewish and Christian apocalypses, p. 10.

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66.1). Portanto, uma reflexão que relativiza o templo terrestre estaria na base da expressão da

literatura do período, que permite viajar ao céu, o verdadeiro Templo de Deus.

O Segundo Templo nunca será apto a emergir da sombra retirada da Glória de Deus. A arca e os Querubins se foram. No período do Segundo Templo, sob a influência de Ezequiel, aqueles que estão insatisfeitos com o comportamento do povo e especialmente de seus sacerdotes encaram o templo não o lugar próprio para a habitação de Deus, o lugar onde o céu encontra a terra, mas antes como uma mera cópia do verdadeiro templo localizado no céu. É esta dessacralização do templo terreno em favor do celeste que abre o caminho para a subida de Enoc no Livro dos Vigilantes. A primeira ascensão na literatura judaica é deste modo uma viagem ao verdadeiro templo.279

Exemplo dessa representação do céu como santuário (tabernáculo/templo),

arquitetado sobre o terrestre, se acha no 1 Enoc 14. Neste, narra-se a viagem de seu herói ao

céu, onde contempla duas casas.280 A primeira é ao mesmo tempo quente e gélida. Deus está

na segunda casa. Enoc, trêmulo e cheio de temor, contempla �a Grande Glória� sobre um

trono sublime, cuja descrição visa provocar reverência. Diante dele nenhum anjo, dos

milhões que existem ali, ousa se aproximar. Tal texto se constrói à base do que se sabe do

santuário terrestre, mas também de modo que o santuário seja entendido ser o modelo

daquele. Depois de contemplar o trono divino, prosternado, Enoc não ousa levantar os olhos.

Então, recebe uma ordem de Deus para que se aproxime. Enoc é chamado por Deus de

�homem justo� e �escriba de justiça� (1 Enoc 14.8-15.1). O caráter templário do céu só admite

à presença de Deus quem for por ele autorizado, seja anjo, seja humano. A declaração de

Deus a Enoc de que ele é ��homem justo�� (alusão a Ez 14.14,20) nos conduz a outro aspecto

decorrente, o consentimento divino que fundamenta sua permanência diante dele. Esse

consentimento é a evidência de que Enoc é feito sumo sacerdote. Ele tipifica a o exercício de

um sacerdócio celeste, concepção em voga no judaísmo do I séc. Portanto, ocorre uma

inversão na visão comum do santuário inspirado na contemplação do céu, ou seja, o céu é o

verdadeiro templo, e o templo terreno é a contraparte daquele.

EXCURSO II: O Sacerdócio cívico da Religião Imperial281

Há diversas similaridades do sacerdócio israelita e do sacerdócio cívico do império romano.

A função sacerdotal na religião cívica era exercida por homens oriundos das classes

279 Martha HIMMELFARB, Ascent to heaven in Jewish and Christian apocalypses, p. 13. 280 Há ainda uma terceira câmara externa conforme 1 Rs 6.3; Josefo, Guerra Judaica, 5.207-19. 281 O que segue é baseado in: Mary BEARD/John NORTH/Simon PRICE, Religions of Rome, vol. 1.

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aristocráticas e filiados a tribos específicas. O detentor do cargo de sumo sacerdote (flâmine)

era eleito por tempo determinado e era uma espécie de magistratura que cuidava

principalmente dos aspectos legais ligados ao serviço religioso, dado que o exercício político

era impensável sem a religião. Sua representatividade na comunidade era evidente, pois a

ele um lugar especial na Assembléia era reservado. Cabia-lhe além do ofício e administração

sacrificial, também a interpretação de presságios, leitura do vôo dos pássaros e a palavra

favorável ou não às campanhas militares. Ao mesmo tempo cabia-lhe limitações referentes à

posição ocupada como a de que não podia sair dos limites da Cidade; não podia tocar em

cadáveres, nem ir ao cemitério (este se localizava extra-muros), pois a cidade é o lugar dos

vivos. Não fazia juramentos, pois não representava a si mesmo, mas as divindades. Não

portava quaisquer nós em seu vestuário e nem em sua casa, que estava, senão anexa, muito

próxima do Templo e era uma continuidade deste. Seu casamento atendia a prescrições ao

respeito da pureza, não se casava com mulher desvirginada ou divorciada. Se divorciasse,

abandonaria o ofício, o que era altamente vergonhoso. O caráter sagrado ligava-se a sua

pessoa, por isso, se algum escravo fugitivo ou criminoso se abraçasse ao seu corpo, tal pessoa

era perdoada no mesmo instante, ou tinha a pena aliviada. Um cardápio especial lhe era

prescrito do que comer e não comer. Os pés de sua cama eram revestidos com uma fina

camada de lama da própria Cidade simbolizando sua relação com a mesma. Quando andava

pelas ruas, o silêncio imediato e obrigatório se fazia, e mesmo em casa predominava um

ambiente tranqüilo por causa de sua sacralidade pessoal. Indumentária, ritos de purificação,

observação de calendário festivo, também faziam parte de seu cotidiano. O imperador, desde

Augusto, recebia o título de Pontifex Maximus, que era ao mesmo tempo divinizado em sua

morte. Banquetes, liturgias complicadas e dias especiais, como o 1º de maio, compunham a

religiosidade cívica e cabia ao sacerdote supervisioná-las. O sumo sacerdote era considerado

um duplo dos deuses, uma espécie de estátua viva da divindade. Os cultos domésticos

funcionavam como um culto em miniatura, em que o pai, caso fosse o primogênito, era o

sacerdote diante do �lar� (a lareira sagrada). O ofício sacerdotal ligava-se ao império na

sustentação ideológica, seja como propaganda imperial, seja legitimando a razão das coisas

serem assim como eram, feitas e conduzidas pelo império. Portanto, quanto a comunidade

cristã recipiente da Carta aos Hebreus não possuía como referência somente o culto israelita,

estabelecida na diáspora, o culto cívico também era um realidade em seu cotidiano. Assim, o

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autor pode, como dissemos, fazer uma leitura em espelho de toda instituição cúltica israelita,

e seus ouvintes/leitores fariam sua atualização em seu cotidiano, levando-se em conta o

aparato religioso imperial, como o desafio de manter sua confissão em Jesus. Sua abordagem

atende às duas expressões étnicas, judaica e gentílica.

4.1.2. O sumo sacerdote celeste

A Carta aos Hebreus enfatiza que o tabernáculo terrestre (com seu pessoal e equipamento) é

cópia do templo celeste (Hb 8.2; 9.19-23) a fim de salientar a superioridade deste e do sumo

sacerdócio de Jesus. Assim sendo, interessa-nos preferentemente a expressão de uma

expectativa sumo sacerdotal angelomórfica no A.T.

Em Zc 3.1-7 descreve-se uma cena que se passa na Assembléia Divina. Aí estão o

Anjo de Yahweh, o sumo sacerdote Josué e Satã à sua direita. Trata-se de um tribunal. Josué

se acha inicialmente vestido de roupas sujas (Zc 3.3). Satã o acusa, mas é repreendido pelo

Anjo do Senhor que o defende (Zv 3.2). Redimido, Josué recebe um novo vestuário

�suntuoso�, e uma �tiara limpa� lhe é colocada sobre a cabeça (Zc 3.4-5). A descrição é a de

uma investidura sacerdotal diante da Assembléia Divina (cf. Lv 8.2), que poassui traços no

Testamento de Levi 5. Depois da purificação de Josué, segue-se o anúncio do Anjo:

Então o anjo de Yahweh fez a Josué esta declaração: ��Assim disse Yahweh dos Exércitos: Se andares pelos meus caminhos e guardares os meus preceitos, então tu governarás a minha casa e administrarás os meus pátios e eu te darei acesso entre os que estão aqui de pé.��

O exercício do sumo sacerdócio neste contexto de tribunal se estende numa palavra oracular

a Josué. Sua recém santificação e, conseqüentemente, a irrepreensibilidade renovada,

garantem-lhe a autoridade para promover a justiça, mas a manutenção deste estado de

santidade é de responsabilidade pessoal. E se torna uma condição ao direito de participar da

Assembléia Divina (cf. Test. Levi 4). O sumo sacerdócio possui uma função dúplice: governo

e administração da justiça na casa do Senhor. Se exercida fielmente, seu prêmio será o

atributo angelomórfico, fazer parte da Assembléia Divina, o privilégio de se assentar junto

aos Elohim. Destarte, Zc 3.1-7 é um texto fundamental para a casta sacerdotal na expressão

da expectativa angelomórfica de seu ofício.

O livro de Sirácida também se envolve na temática do sacerdócio e culto. Escrito

originalmente em hebraico por volta de 190 A.E.C., teve sua primeira tradução para o grego

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em 132 A.E.C. por seu neto que vivia no Egito.282 Sua preocupação é a harmonia entre

piedade e sabedoria. O texto de Sirácida 7.29-31 revela o prestígio que gozava o sacerdote

nesse período:

De todo o teu coração teme ao Senhor

E venera (qau,maze = �admire�) os seus sacerdotes. Com todas as tuas forças ama o que te criou E não abandones os seus ministros (leitourgoi). Teme ao Senhor e honra (do,xason = �glorifique�) o sacerdote E dá-lhe a sua parte, como é prescrito: Primícias, sacrifício de reparação, a oferenda das espáduas, O sacrifício de santificação e as primícias das coisas santas.

O �temor do Senhor� nos conduz ao ambiente da Sabedoria israelita (cf. Provérbios 1.7;

Sirácida 1.14)283, mas aqui, o �temor do Senhor� se expressa no conceito que se tem do

sacerdote. O paralelismo entre o �Senhor� e o(s) �sacerdote(s)� é notável. Ao Senhor tributa-

se temor, ao(s) sacerdote(s) admiração e honra, sem se esquecer de sua côngrua. Chamamos

a atenção ao fato de que a relação do israelita fiel com o Senhor se estampa na veneração ao

sacerdote. Outrossim, os temas criação e sacerdócio se entrelaçam como em outros lugares

(cf. Gn 1). Se no texto de Zc 3.7 é prometido um lugar entre os Elohim da asssembléia divina,

em Sirácida 7.29-31, o (sumo) sacerdote é o duplo de Deus, é mesmo divino, ao ponto de

estima se confundir com veneração.

Voltemos mais uma vez a nossa atenção a Enoc. Desta vez consideramos o texto de 1

Enoc 12.3-6:

E eu, Enoc, comecei a bendizer ao Senhor dos poderosos e o Rei do universo. Nesse momento, os vigilantes me chamaram. E disseram: �Enoc, escriba de justiça, vá e faça saber aos Vigilantes do céu que abandonaram o céu elevado, o santo e eterno lugar, que se macularam com mulheres, cujos feitos alteraram os filhos do mundo, e que tomaram esposas para si: Eles se fizeram impuros com grande impureza sobre a terra; não haverá paz para eles e nem o perdão do pecado. Pois seus filhos se deleitam em ver o assassino de seus amados. Mas eles gemerão e mendigarão para sempre o cessar a destruição de seus filhos, e não lhes haverá paz eternamente.

Faz algum tempo que Enoc reside oculto nos céus em companhia dos anjos (1 Enoc 12.1-2).

Procurado pelos Vigilantes que não pecaram, torna-se mediador entre anjos. No episódio

282 M. GILBERT, Wisdom literature, in: STONE, Michael E., Jewish Writings of the Second Temple Period, p. 291. 283 Veja-se também Gn 31.42: �Temor de Isaac� aplicado a Yahweh.

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acima exerce a função de mensageiro (anjo). Após entregar a mensagem, Azazel, um de seus

chefes, roga-lhe que escreva uma oração de confissão para ser levada ao Senhor dos Céus,

pois eles mesmos não podem fazê-la diretamente (1 Enoc 13.6). Enoc consente, e entrega a

mensagem ao Senhor. Por este feito, Enoc se torna mediador entre os Vigilantes e Deus (1

Enoc 15.2), apesar de não ser atendido, pois são os anjos que devem interceder pelos

humanos, e não os humanos interceder pelos anjos (1 Enoc 15.2). A negativa do Senhor a

Enoc ecoa Ez 14.14, em que apesar de sua justiça, sua intercessão não livraria Israel do juízo

divino, e agora nem pelos anjos.

1 Enoc, em suas diversas tradições, apresenta um cosmografia de apenas um céu.284 O

céu é o lugar da habitação de Deus e dos anjos, a terra é o lugar da habitação dos seres

humanos. A transgressão da linha divisória pelos anjos torna a terra imunda. Quanto aos

seres humanos, só podem transcender sua situação com a descida de um mensageiro divino

(angelus interpres) para pontear os dois mundos.

Uma vez mais citamos 2 Enoc (recensão A) 22.6-10:285

Enoc! Não tenhas medo! Levante-se e fique em pé diante da minha face para sempre. E Miguel, o maior dos arcanjos do Senhor, tomou-me e colocou-me diante da face do Senhor. E o Senhor se pronunciou aos seus servos. O Senhor disse: Que suba Enoc e se coloque de pé diante de minha face para sempre! E os gloriosos obedeceram e disseram: Que ele suba! O Senhor disse a Miguel: Tome a Enoc e retire (dele) as vestes terrenas. E ungi-lhe com o óleo deleitoso e ponha(-o) em vestes de glória. E Miguel tirou-me de minhas vestes. Ungiu-me com óleo que é mais brilhante que a maior luz, sua unção é como bálsamo doce, e sua fragrância como mirra; e seu brilho como o sol. E contemplei-me pasmado, e eu me tornei como dos gloriosos, e não havia nenhuma diferença observável.

Este texto descreve a metamorfose ocorrida em Enoc. Despido e depois revestido com vestes

gloriosas, ungido com óleo deleitoso, torna-se semelhante aos anjos e nota que em si não há

nenhuma diferença observável. As vestes resplandecentes é um motivo recorrente de

angelomorfismo.286 Deve-se notar que as referidas vestes referem-se a indumentária

284 Edward J. WRIGHT, J., The Early history of heaven, p. 140. 285 2 Enoc (A) é a recensão mais curta. 286 Em textos narrativos, os traços angelomórficos possuem uma plasticidade mais tangível. Por exemplo, na transfiguração de Jesus em Mc 9.2-8, traços angelomórficos se apresentam: lugar: montanha; vestes resplandecentes; heróis do passado, Moisés que experimentou um estado de glória no Sinai e Elias que foi arrebatado ao céu, tanto um como outro eram taumaturgos; nuvem que desce como no Sinai ou no tabernáculo; voz celeste e a declaração de filiação; reação das testemunhas: espanto e medo; retorno à realidade humana. Digno de nota é que outra epifania, menos detalhada, acontecerá em Mc 16.3-8, um jovem vestido com túnica branca e o espanto e medo das mulheres. Visto que o Evangelho de Marcos se encerra em 16.8, conclui-se que não se narra como é o Jesus ressuscitado, daí é necessário recorrer à transfiguração para se ter uma idéia de como é o Jesus glorificado, além de que o Senhor recomenda silêncio do que se passou na montanha até a sua ressurreição.

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sacerdotal. De igual modo, o óleo deleitoso e a investidura sumo sacerdotal, que também

parecem resultar em sua aparência luminescente. Este aperfeiçoamento repleto de �glória�

indica o caráter angelomórfico de sua nova existência.

1 Enoc 104.1s, apesar de não descrever uma transformação de Enoc, no entanto, ela é

sugerida, o que lembra Dn 12.3, a prometida ressurreição dos justos.

Eu juro a ti que no céu os anjos recordarão de ti para o bem diante da glória do Grandioso. Tende esperança, pois antes havíeis sido escarnecidos com maldades e aflições, porém agora brilhareis como as luminárias do céu. Brilhareis e sereis vistos, e as portas do céu se abrirão.

Consideremos Moisés. Ele é mais uma figura humana exaltada nos moldes

angelomórficos. Em Siracida 45.1-5 se diz:

Equiparou-o em glória aos santos e tornou-o poderoso para o terror dos inimigos. Pela palavra de Moisés fez cessar os prodígios e glorificou-o na presença dos reis; deu-lhe mandamentos para o seu povo e fez-lhe ver algo de sua glória. Na fidelidade e doçura ele o santificou, escolheu-o entre todos os viventes; fez-lhe ouvir a sua voz e o introduziu nas trevas; deu-lhe face a face os mandamentos, uma lei de vida e de inteligência, para ensinar a Jacó suas prescrições e seus decretos a Israel.

�Glória aos santos� (w`moi,wsen auvto.n do,xh| a`gi,wn) refere-se à glória dos anjos, que

também aparece em Ex 4.16.287 No caso de Moisés, trata-se de uma referência à sua face

resplandecente devido à permanência diante de Yahweh (Ex 34.29-35). A glória de Yahweh

refletida no rosto de Moisés provoca medo semelhante ao das visões de anjos, embora

Moisés tivesse visto somente parte da glória (Ex 33.18-23). A santidade diz respeito à sua

separação e designação mediadora para falar da parte de Deus e a competência para chegar

diante de Yahweh (entrar nas nuvens; Ex 19.10-14,24). Ver Yahweh �face a face� é um

superlativo usado pelo autor.288

Outra conexão que se percebe com o tema da transfiguração é que logo a seguir se narra um embate

entre Jesus e um espírito impuro (Mc 9.14-29). Análogo a esta sucessão é a argumentação paulina em 1 Co 15.20-28. Paulo faz uma exposição do significado da ressurreição, e recorrendo à tradição do Jesus exaltado, menciona-se a vitória sobre os poderes sobrenaturais hostis (15.24s), e sobre a morte personificada (v. 26). Após, discorre sobre a condição glorificada dos ressurretos (v. 49: �E, assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste�), o que sugere e muito a expressão angelomórfica dos justos (15.35-53). Assim, temos uma amálgama de motivos: derrota das potestades inóspitas, destruição da morte, metamorfose angelomórfica, retorno à presença de Deus, instauração de um novo mundo. cf. tb. Paulo A. S. NOGUEIRA, Visionary elements in the Transfiguration narrative, in: C. ROWLAND/J. BARTON, Apocalyptic in history and tradition, p. 143. 287 James L. CRENSHAW, in: The book of Sirach, NIB, vol. 5, p. 842, diz que a expressão do,xh| a`gi,wn não é a mais adequada para o texto, pois deve-se levar em conta o Sl 8.5 que emprega aggeloj para élöhîm. Ver também Larry W. HURTADO, in: One God, One Lord, p. 56. 288 L. W. HURTADO, One God, One Lord, p. 57.

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Outro texto importante é o de Ezequiel, O Trágico. Esta obra foi escrita em grego, c. II

A.E.C., por um poeta judeu chamado Ezequiel.289 Trata-se de uma peça que se preocupa com

a libertação do povo judeu do Egito narrada em Ex 1-15. Nas linhas 68-89, Moisés relata um

sonho ao seu sogro. Diz:

Sobre o pico do Sinai, eu vi o que parecia um trono de altura tão grande que tocava as nuvens dos céus. Sobre ele estava sentado um homem de semblante nobre, coroado, e com um cetro numa mão, enquanto que com a outra ele acenava para mim. Eu me aproximei e fiquei em pé diante do trono. Ele estendeu o cetro e convidou-me para subir ao trono, e deu-me a coroa; então ele mesmo se retirou do trono. Eu vislumbrei a terra inteira e ao redor; as coisas debaixo dela e acima dos altos céus. Então aos meus pés uma constelação de estrelas se curvavam e seu número contei. Elas passavam por mim como fileiras de homens armados. Então acordei aterrorizado do sonho. Seu sogro interpreta o sonho como se segue: Meu amigo, Deus te deu isto como um sinal para o bem. Pudesse eu viver para ver estas coisas acontecerem. Pois tu serás a razão do surgimento de um poderoso trono, e tu mesmo reinará e governará os homens, sustentando todos os povos da terra, e as coisas debaixo e as coisas acima do domínio de Deus: coisas do presente, do passado e do futuro tu verás.

No sonho, retrata-se Moisés exaltado por Deus. Parece um relato de ascensão celestial. O

pico do Sinai é o lugar escolhido para que a terra toque os céus, isto é percebido quando o

texto diz que dali se contempla a terra e os céus. A menção das nuvens demarca o começo do

outro espaço. Mas é o trono o elo entre o que está acima e o que está abaixo.290 A descrição de

Deus como rei se baseia na menção do cetro e da coroa. Moisés, o mediador e libertador do

povo de Israel, é entronizado pelo próprio Deus, até mais, Deus cede-lhe o lugar. Torna-se

um vizir de Deus. É reverenciado pelas hostes celestiais que desfilam diante dele como um

exército em revista. Recebe onisciência por estar no trono e dali contempla todas os

mistérios, acima, abaixo e ao redor.291

O Testamento de Moisés, datado c. I séc., também faz descrição de aspectos

angelomórficos atribuídos a Moisés.292 Fletcher-Louis indica os seguintes textos relevantes

dessa obra:

Mas ele designou-me e planejou-me; (fui) preparado desde o início do mundo para ser o mediador de sua aliança. (1.14)

289 L. W. Hurtado, Ibid, p. 57. 290 Em Mt 5.34s encontramos uma analogia para tal: �...Não jureis em hipótese nenhuma nem pelo céu, porque é o trono de Deus, nem pela terra, porque é o escabelo dos seus pés, nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande rei.� Os elementos são semelhantes: (1) céu e trono, (2) terra e escabelo dos pés, (3) Jerusalém, cidade sobre o monte, e (4) Deus, o grande rei. 291 Christopher ROWLAND, Open Heaven, p. 76. 292 Crispin H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory of Adam, p. 31.

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Então seu reino aparecerá por toda a sua criação. Então o diabo terá um fim. Sim, o lamento será retirado com ele. Então encherá as mãos do mensageiro, que está indicado no lugar mais alto. (10.1s) Contudo, quando os reis dos Amorreus ouvirem (de sua morte), crendo que não está mais conosco o espírito sagrado, digno do Senhor, múltiplo e incompreensível, mestre dos líderes, fiel em todas as coisas, o profeta divino para a terra inteira, o mestre perfeito do mundo, agora crentes que podem arrasar-nos, eles dirão: Subamos contra eles. Se os inimigos têm, até agora, por uma única vez, agiram impiedosamente contra o seu Senhor, agora não há mais nenhum defensor para eles que informará ao Senhor em seu favor ao modo de Moisés que era o grande mensageiro. Ele, a cada hora, dia e noite, tinha seus joelhos fixados à terra, orando e olhando constantemente para aquele que governa a terra inteira com misericórdia e justiça, lembrando o Senhor da aliança ancestral e o juramento resoluto. (11.16s)

Em Testamento de Moisés 1.14, Moisés declara que é pré-existente (�desde o início do

mundo�). E em 10.1s é designado sacerdote (desde que encher as mãos é termo técnico para

ordenação ao sacerdócio)293 e anjo vingador nos moldes de Miguel (cf. Dn 10.13, 21; 12.1; 1 En

20.5; 1QM 9.15s; 17.6s). 294 Porém, o segundo texto no livro se desconecta dos outros. O que

gera uma incerteza em atribuir a Moisés o papel da figura exaltada no Salmo do capítulo 10

de Test.Mois. Entretanto, é mais ajuizado entender que se trata de alguém do gênero humano

exaltado celestialmente, isto é, com caracteres angelomórficos. Sobre isto vale a observação:

Este sacerdote celestial é um sacerdote humano que é celestial, ou um anjo supra-humano que é sacerdotal? (...). Em nenhum lugar em textos contemporâneos ouvimos a respeito de anjos (supra-humanos) experimentando uma ordenação para um novo ofício. Diferente de anjos que são criados para ser anjos, a linguagem de ordenação combina com seres humanos a quem transferência de status autoridade é necessário.295

Os dois primeiros textos devem ser lidos pela ótica do terceiro. Testamento de Moisés 11.16s é

parte da instrução de Moisés a Josué sobre o que sucederá depois de sua morte. Os

Amorreus entenderam que os filhos de Israel estão desamparados, vulneráveis a um ataque

final. Moisés é detentor do espírito sagrado, mestre e profeta divino. Mas principalmente era

o grande mensageiro (anjo-nuntius), o mediador entre o povo e Deus.

O Apocalipse de Sofonias 6.11-16 é uma descrição vívida do arcanjo Eremiel com

tonalidades sacerdotais:296

Então eu me levantei e fiquei de pé, e vi um grande anjo postado diante de mim, sua face era brilhante como os raios do sol em sua glória, e daí sua face ser como aquela que é aperfeiçoada em glória. E ele estava cingido como se um cinturão dourado estivesse sobre o seu peito. Seus pés eram como bronze que é apurado pelo fogo. E quando eu o vi, regozijei-me, pois pensara que o Senhor Todo-Poderoso

293 Roland DE VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 385. 294 J. PRIEST, in: OTP, vol. 1, p. 932. 295 C. H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory of Adam, p. 31. 296 A data de composição varia de 100 A.E.C. a 175 E.C., in: O. S. WINTERMUTE, OTP, p. 500.

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viera visitar-me. Prostrei-me sobre minha face, e o adorei. Ele falou-me: �Tome tento. Não me adore. Eu não sou o Senhor Todo-Poderoso, mas sou o grande anjo Eremiel, que cuida do abismo e do Hades, aquele em que todas as almas estão aprisionadas desde o fim do Dilúvio, que veio sobre a terra, até este dia�.

O texto evoca imagens componentes da Cristofania de Apocalipse de João 1.12-18, sendo que

esta possui mais elementos e o Cristo não rejeita a adoração do vidente (v. 17). Mas o que nos

interessa do texto acima é a descrição do arcanjo. Trata-se de um �grande anjo�, ou seja, de

dimensões gigantescas. Anjos de grande estatura parecem derivar da visão de Ez 1. 26-28.

Temas recorrentes angelomórficos são �face brilhante como os raios do sol em sua glória�,

�pés como bronze apurado pelo fogo�. Contudo, notemos o �cinturão dourado no peito do

anjo�, referência ao vestuário sacerdotal (cf. Lv 8.7; Sirácida 45.10). As vestes angélicas são

dadas ao vidente em Apocalipse de Sofonias 8.1-4: �Milhares de milhares e miríades de

miríades de anjos davam louvor diante de mim. Eu mesmo vesti um vestuário angélico. Vi

todos aqueles anjos louvando. Eu mesmo louvei junto com eles, eu conhecia sua linguagem,

que falavam comigo�. Ocorre, assim, uma metamorfose no vidente, ele passa a figurar como

um ser angelomórfico.

Por fim, um texto deveras revelador como representante do anelo dos qumranitas por

uma existência angelomórfica na presença de Deus em 1QSb iv

Î ·· yÐXwdqw Xwna�Î ·· Ðw hc�ry hkyÎlgr ymÐ[pw

1 twÐg�wn[tbw XwnÎa ·· ÐÙÎ lÐylkw Å wl br[th�Îw wtaÐ h�nmy

2 Å $�Î ·· ~da ynb

·· ÐÙm�w hkyd�ÙÎ ·· XÐdwq hk�Xawr trj[ ~�Îlw[Ð t�wkrb 3

Î Å Î ·· ÐÙÙÙ y�lh�Î ·· ÐytXÎ ·· ÐÙÙl

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5 Î Å ·· Ð !wxbl wl�Î ·· Ð

20 Î Å ·· ~hyÐn�p l[ wl by�Îbs ·· Ð

21 ·· Ð hkb rxb� Îayk ·· ÐÙÙÙ lwkm hkqydcyw hkÎ ·· Ð

22 Î

t�r�b�ÙÙÙ hk�Î ·· $rÐb�l hkm[w ~yXwdq Xwrb taXlw 23

hkdyb Å wh[rl Xyab�Î ·· Ðd�y r�X dyb awlw la tc[ yXna

24 htaw

twÐa�bc� yhwla dwbkl� Xdwq !w[mb ~ynp $almk 25

lkyhb trXm bybs hyh�Îtw Å ~lw[l dwb[t ~[Ð dxy tc[w ~ynp ykalm ~[ lrwg lypmw twklm 26

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ayk xcn ycq lwklw ~lw[ t[l� ÎmyXwdq rwamlw wm[b� ÎXÐdwq hkmyXyw Å wyjpXÎm lwk tmaÐ

27 ~ybr ynp ryahlw t[db lbtl Îrwal lwdgÐ

htaÐ ayk ~yXdwq� Xdwql rzn ÎhkmyXyw Å ~yyx lkXbÐ 28

Å wyXdwqw wmX dbktw wl XdÎqt

Que ele se agrade com os pas[sos de] seus [pé]s e [...] de homem e dos santo[s...] 2 que ele possa contar [consigo para] formar uma parceria com ele. E a co[roa... de hom]em e nos prazere[s dos filhos de homem...] 3 Que [eter]nas bênçãos sejam a coroa de tua cabeça, sant[a...] tuas mãos ... [...] 4 ...[...]...[...]...[...] 5-19 [...] 20 [...] provar [...] 21 [...ac]erca dele em frente [de...] [...]... e que lhe justifique de todo ...[...] ele te escolheu [...] 23 para levantar acima da cabeças dos santos, e contigo para [...]... de tua mão 24 os homens do conselho de Deus e não pela mão do príncipe de ...[...] um para seu companheiro. Que tu possas ser 25 como um anjo da presença na santa morada para a glória do Deus dos Exércit[os...est]ar ao redor, servindo no templo do 26 reino, elencando o lote com os anjos da presença e o Conselho da Comunidade [...] por tempo eterno e por todos os períodos perpétuos. Pois 27 [todos] seus [jul]gamentos [são verdadeiros.] E que ele te faça san[to] no meio de seu povo, como um luminar [...] pois o mundo no conhecimento, e para brilhar sobre a face de Muitos 28 [... E que ele faça de ti] um diadema do santo dos santos, por causa [de ti será feito san]to para ele e glorificará seu nome e suas coisas santas.

Texto provavelmente de um único rolo contendo uma série de bênçãos sobre os membros do

grupo, os seus conteúdos exprimem o anelo por uma existência angelomórfica. No entanto,

não como qualquer anjo, mas como �um anjo da presença� (iv.25). Em outras palavras, um

ministro que pode estar o mais próximo possível de Deus. Assim, um anjo da presença

exerce o serviço sacerdotal celestial (iv.25); como membro do Conselho Divino (iv.26); como

escriba que arrola o lote dos santos (iv.26); como uma estrela de destaque no meio dos anjos

(iv.21, 27); e alguém em que o Nome de Deus seja escrito (iv.28). A luminosidade e

imortalidade indicam a metamorfose ocorrida, ou seja, uma existência angelomórfica.

Cremos que seja o suficiente. Passamos a seguir à figura de Melquisedec.

4.1.3. O Santuário celeste na Carta aos Hebreus

O autor de Hebreus e seus destinatários compartilham o quadro referencial acima. Deus

habita os lugares altos e aí está o seu trono (1.3). A abóboda celeste é o véu que separa a

realidade terrestre da divina (6.19), o verdadeiro tabernáculo (8.2; 9.24). O santuário terreste

é cópia do celeste (8.5; 9.23), cuja segunda tenda representa o ambiente da divindade (9.7), à

qual a humanidade não tem acesso se a primeira tenda não for removida (9.8, 11). Mas que

pode se aproximar mediante sacrifício e representação do sumo sacerdote (10.19-22).

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4.2. Melquisedec e o Jesus sumo sacerdote celestial

O autor de Hebreus defende a tese de que Jesus é o sumo sacerdote perfeito que desfez a

primeira tenda, atravessou o véu propiciado por seu próprio sacrifício, perfeito, eficaz e final.

E por isso, sentou-se à direita de Deus, sendo ao mesmo tempo vice-regente e salvador dos

que nele crêem. Sua tese enunciada desde Hb 1.3 e repisada várias vezes (Hb 2.17; 4.14, 15;

5.1, 5, 6, 8, 10, 6.19-20), desenvolve-se principalmente em Hb 7. O autor, ou melhor, pregador,

cria certa expectativa em seu auditório. E como o tema do sacerdócio segue gradativamente

agregando elementos, só a partir em Hb 5.6 explicita o seu fundamento, isto é o Sl 110.4. Ao

captar a atenção, interrompe seu discurso com uma parênese (5.11-6.12), para retornar a

seguir mencionando Abraão, que será novamente muito importante para Hb 7.1-10 devido

sua relação com Melquisedec .

A respeito de Melquisedec tem-se gerado uma grande quantidade de literatura. Esse

personagem bíblico, que no A.T. aparece somente em Gn 14.18-20 e no Sl 110.4, será foco de

literatura judaica, cristã e gnóstica. O assunto que provoca muito debate e um despertamento

na pesquisa dos últimos decênios é o de 11QMelquisedec e sua contribuição para o estudo de

Hb. Em nosso estudo, recorreremos, via de regra, aos que contribuem para o tema da

Cristologia Angelomórfica.

4.2.1. Melquisedec em Gênesis 14.17-20

A primeira menção de Melquisedec nas Escrituras se encontra em Gn 14.17-20.297 Segue-se

nossa tradução do texto da LXX:

17 evxh/lqen de. basileu.j Sodomwn eivj suna,nthsin auvtw/| meta. to. avnastre,yai auvto.n avpo. th/j koph/j tou/ Codollogomor kai. tw/n basile,wn tw/n metV auvtou/ eivj th.n koila,da th.n Sauh tou/to h=n to. pedi,on basile,wj 18 kai. Melcisedek basileu.j Salhm evxh,negken a;rtouj kai. oi=non h=n de. i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou 19 kai. huvlo,ghsen to.n Abram kai. ei=pen euvloghme,noj Abram tw/| qew/| tw/| u`yi,stw| o]j e;ktisen to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n 20 kai. euvloghto.j o` qeo.j o` u[yistoj o]j pare,dwken tou.j evcqrou,j sou u`poceiri,ouj soi kai. e;dwken auvtw/| deka,thn avpo. pa,ntwn

297 Ainda que Fred HORTON, in: The Melchizedek tradition, p. 48ss, nos informe que há um questionamento na pesquisa do A.T. se o texto do Sl 110.4 seria mais antigo, fazendo Gn 14.17-20 depender daquele. Para os nossos objetivos isso não é relevante, visto que nossa preocupação se atém ao fato de o autor de Hebreus haver conhecido os textos na ordem em que se encontram na LXX.

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21 ei=pen de. basileu.j Sodomwn pro.j Abram do,j moi tou.j a;ndraj th.n de. i[ppon labe. seautw/| 22 ei=pen de. Abram pro.j basile,a Sodomwn evktenw/ th.n cei/ra, mou pro.j to.n qeo.n to.n u[yiston o]j e;ktisen to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n 23 eiv avpo. sparti,ou e[wj sfairwth/roj u`podh,matoj lh,myomai avpo. pa,ntwn tw/n sw/n i[na mh. ei;ph|j o[ti evgw. evplou,tisa to.n Abram 24 plh.n w-n e;fagon oi` neani,skoi kai. th/j meri,doj tw/n avndrw/n tw/n sumporeuqe,ntwn metV evmou/ Escwl Aunan Mambrh ou-toi lh,myontai meri,da

(17) Então, saiu o rei de Sodoma ao seu encontro após seu retorno da matança de Cordolaomor e dos reis seus aliados para o vale de Save, isto é, a planície do rei. (18) E Melquisedec, rei de Salém, trouxe pães e vinho, de modo que era sacerdote do Deus Altíssimo. (19) E abençoou a Abrão e disse: �Abençoado (seja) Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra. (20) E bendito (seja) o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos nas tuas mãos.� E lhe deu o dízimo de tudo. (21) Então disse o rei de Sodoma a Abrão: Dá-me os homens e toma um cavalo para ti.� (22) E disse Abrão ao rei de Sodoma: �Estenderei a minha mão ao Deus Altíssimo que fez o céu e a terra (23 ) se de um cordãozinho de couro de uma sandália eu tomar de todas as tuas coisas para que não digas: �enriqueci a Abrão.�� (24) Exceto do que comeram os jovens e da porção dos homens que vieram comigo, Escol, Aunan, Mambré, estes receberão uma parcela.�

A estrutura proposta por Gordon J. Wenham revela alguns pormenores:298

(A) v. 17 � Saída e chegada do rei de Sodoma

(B) v. 18 � Melquisedec, rei de Salém, traz pães e vinho

(B�) v. 19s � Melquisedec fala

(A�) v. 21 � O rei de Sodoma fala

v. 22 � Abraão responde

Gênesis 14.1-16 narra que, entre outros, o rei de Sodoma e seu povo foram servos de

Codorlaomor por treze anos. Um ano depois, junto com outros, se revoltou contra ele e seus

aliados. Derrotados fugiram. Os bens e alimentos de Sodoma foram tomados. Porque o seu

sobrinho Ló fora também vitimado, Abrão reuniu uma tropa de 318 homens e foi resgatar Ló

com seus bens. Vitorioso, Abraão retorna.

Gênesis 14.17-22 relata o encontro de Abraão com os dois reis. A estrutura quiástica

enfatiza as incoerências do encontro. O rei de Sodoma chega antes de Melquisedec (v. 17),

298 Genesis 1-15, vol. 1, p. 315.

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mas só fala depois deste (v. 21). Não traz nada. Melquisedec, ao contrário, traz pães e vinho

(v. 18), abençoa a Abrão e bendiz a Deus (v. 19s). Abraão por sua vez mostra sua

generosidade e dá o dízimo (v. 20). Na LXX, quando fala o rei de Sodoma, exige e oferece a

Abraão �um cavalo� (v. 21). A resposta de Abraão surpreende, nada reterá para si, a não ser

o que foi consumido por seus homens e parte deles, visto que não pode falar pelos outros (v.

22).

A narrativa visa enaltecer a Abraão ao mostrar sua generosidade e a sovinice do rei

de Sodoma, talvez de antemão informando o leitor a respeito do caráter de sua gente

representado no rei. Salienta a generosidade de Melquisedec que traz alimento e bênção.

Assim, palavras e atos se põem em relevo.299 Sobre Melquisedec é dito que é �sacerdote do

Deus Altíssimo� (i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou). Por quatro vezes �Deus Altíssimo� é

mencionado. Ligado a Deus está a declaração de que ele �criou o céu e a terra�, que coaduna

com o livro de Gênesis (cf. Gn 1-2). O tema da bênção é recorrente em Gênesis e Gn 14.17-20

torna-se exemplar depois de 12.2s. Mas não só isso, o exercício do sacerdócio se relaciona à

Criação, visa recuperar um caminho perdido.

O tema da �justiça� perpassa a perícope de que nos ocupamos. Melquisedec é rei de

justiça e ao abençoar Abraão reconhece que o Deus Altíssimo esteve com ele em sua luta pela

libertação de Ló (Gn 14.12-16). Os atos e palavras de Abraão revelam sua justiça e finalmente

a resposta dada ao rei de Sodoma (v. 23).300 O rei de Sodoma é a antítese de tudo isso. Quanto

a Melquisedec, sua importância é sugerida por seu ofício e por seus atos e palavras

abençoadoras para com Abraão. Depois disso desaparece da cena.

A pesquisa sugere que Melquisedec, por conta da palavra �Salém�, foi ligado a

Jerusalém e ao sacerdócio ali fixado bem antes da conquista de Davi.301 Mais digno de nota é

que o ceºdeq de seu nome pode sugerir uma certa referência a �Sadoc� (cädôq), um dos

sacerdotes de Davi (2 Sm 8.17) de quem, muitos puristas, farão questão de descender para

exercício do ofício.302 Robert A. Kluger demonstrou em seu estudo do Testamento de Levi

Aramaico, que o campo das dissensões acerca da legitimidade sacerdotal não se resumia só ao

299 Gordon J. WENHAM, Genesis, p. 321. 300 Terence E. FRETHEIM, The book of Genesis, NIB, vol. I, p. 440. 301 cf. Fred L. HORTON Jr., The Melchizedek tradition, p. 48ss; G. J. WENHAM, Genesis, p. 316. 302 G. W. BUCHANAN, Hebrews, p. 94.

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fator da linhagem de Sadoc, havia outras correntes e outros interesses no judaísmo do

período do 2º templo.303

Enfim, cumpre destacar o encontro de Abraão e Melquisedec em que havia um

sacerdote do Altíssimo em seu tempo, e que este, representando a Deus, abençoou e sinalou

a justiça do patriarca.

4.2.2. Melquisedec no Salmo 110.4

Melquisedec está ligado a Jerusalém por conta do Sl 110.2,4. É a segunda menção de

Melquisedec na Escritura. Quanto à data do Salmo várias são as propostas.304 Porém, uma

interessante é a de que o Sl 110 fora produzido no período dos Hasmoneus, no de Simão

mais propriamente, a fim de legitimar seu governo no acúmulo das funções sacerdotais e

reais. Conforme Josefo, João Hircano I incorporava três funções em si, �governo da nação,

sumo-sacerdote e profecia� (Guerras, 1.68).305 Além de um acróstico do nome �Simão� poder

ser obtido .306 Corrobora para isso o escopo bélico do Salmo:

O Senhor está à tua direita, ele despedaçou os reis no dia da sua ira. Ele julgará as nações, amontoará cadáveres, despedaçará cabeças por muitos lugares da terra. (v. 5s) ku,rioj evk dexiw/n sou sune,qlasen evn h`me,ra| ovrgh/j auvtou/ basilei/j krinei/ evn toi/j e;qnesin plhrw,sei ptw,mata sunqla,sei kefala.j evpi. gh/j pollw/n.

O caráter oracular307 do v. 4 do Sl 110 é manifesto: �Yahweh jurou e jamais desmentirá: �Tu és

sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec� (cf. Am 4.2; 6.8). O texto de Gn

14.17-20 viabiliza a possibilidade de que na Jerusalém (=Salém) pré-israelita o rei da cidade

era também sacerdote. O Salmo 110 seria uma testemunha da vigência de tal tradição

assimilada pelos reis judaítas.308 Desta forma, os papéis real e sacerdotal são unidos, o que

vai ser de muito proveito para o autor de Hebreus.

Um ponto merece nossa atenção. No v. 1, o rei é chamado de �meu senhor� (la|´dönî

/tw/| kuri,w| mou) e convidado para se sentar à direita de Yahweh. No v. 5 (como no v. 2),

303 From patriarch to priest, p. 224s. 304 Status Quaestionis acerca da data cf. Leslie C. ALLEN, Psalms 105-150, p. 83. 305 Compare-se 1 Macabeus 14.41: �E que os judeus e seus sacerdotes haviam achado por bem que Simão fosse o seu chefe e sumo sacerdote para sempre (kai. o[ti oi` Ioudai/oi kai. oi` i`erei/j euvdo,khsan tou/ ei=nai auvtw/n Simwna h`gou,menon kai. avrciere,a eivj to.n aivw/na), até que surgisse um profeta fiel.� 306 Michael ASTOUR, Melchizedek, in: ABD, vol. IV, p. 687. 307 Arthur WEISER diz: �Dois oráculos divinos constituem o cerne do salmo (vv. 1 e 4), que são anunciados ao rei de Jerusalém, certamente por um profeta da corte.�, in: Os Salmos, p. 536. 308 Hans Joachim KRAUS, Salmos 60-150, p. 516.

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(ku,rioj evk dexiw/n sou/ ´ádönäy `al-yümî|nkä), a expressão �Senhor� dá a entender que a

declaração agora é feita no estilo profético ao rei. Yahweh está à direita do rei, chamado aqui

de Senhor. H. J. Kraus comenta: �Se no v. 1 o rei terreno é chamado de ´ádönäy, agora é

Yahweh que é chamado de ´ádönäy.�309 Isto reforça o papel de lugar-tenente do rei, visto que

é Yahweh que exerce e realiza a justiça, a defesa e as vitórias do monarca (vv. 6s). Destarte,

realeza e sacerdócio são conectados.

A seguir, nossa atenção se volta para a descrição do Melquisedec em 2 Enoc.

4.3. Melquisedec em 2 Enoc

Conhecido também por �Enoc Eslavo� e �Os Segredos de Enoc�, 2 Enoc é um texto de origem

judaica proveniente do I séc. pouco antes da destruição do templo de Jerusalém.310 Deve ter

sido escrito originalmente em grego, sobrevivendo somente em línguas eslavas.311 Embora,

seja firmado nas tradições de 1 Enoc, difere em suas preocupações. Trata de três assuntos

principais: (1) Enoc sobe aos céus, transformado em um anjo, recebe a revelação dos segredos

celestes (cap. 1-34); (2) desce à terra, onde revela os segredos aos seus filhos e os instrui

moralmente (cap. 35-68); (3) foco sobre o sacerdócio pré-deluviano de Melquisedec (69-73).

Em seus capítulos 71-72, narra-se a origem e nascimento de Melquisedec. Sopanim,

esposa do sacerdote Nir, irmão de Noé. De idade avançada, próxima de sua morte, sem a

concorrência de seu marido, engravida-se (2 Enoc 71.1-3). Envergonhada, oculta-se. Nir

depois de algum tempo vai ter com Sopanim, sua gravidez já tem 282 dias. Ao encontrá-la,

Nir, indignado, discute com ela, e a repudia apesar das suas justificativas. Então, ela cai

morta aos pés de Nir. Este, cheio de culpa, chama seu irmão Noé, e juntos resolvem sepultá-

la secretamente a fim de evitar o escândalo da gravidez (2 Enoc 71.1-16). Deixam-na sobre

cama e vão cavar uma sepultura. Nesse meio tempo, vem à luz uma criança, que senta-se ao

lado da morta. Ao retornar, admirados, vêem a criança ao lado direito de Sopanim, limpando

sua roupa.

Noé e Nir ficaram aterrados, com muito medo, pois a criança era completamente desenvolvida fisicamente como uma de três anos. Ele falava por sua própria boca e bendizia ao Senhor. Noé e Nir observaram-no e viram que havia um emblema sacerdotal em seu peito e que tinha um aspecto glorioso. E exclamaram: �Eis que Deus renova o sangue sacerdotal depois de nós, segundo seu beneplácito.�

309 Salmos 60-150, vol. II, p. 517; cf. José BORTOLINI, Conhecer e rezar os Salmos, p. 458. J. Clinton McCANN, Jr., The book of Psalms, NIB, vol. IV, p. 1130; James KURIANAL, Jesus our High Priest, p. 39. 310 Gonzalo Aranda PÉREZ, (Ed.) Literatura judaica intertestamentária, 262. 311 M. E. STONE, Apocalyptic Literature, in: Jewish Writings of the Second Temple Period, p. 406.

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Apressaram-se Noé e Nir e lavaram o menino, pondo-lhe as vestiduras sacerdotais, oferencendo-lhe o pão santo � e ele comeu � e lhe deram o nome de Melquisedec. (2 Enoc 71.17-21)

O texto acima revela traços surpreendentes atribuídos a Melquisedec. Pode-se perceber que

sua concepção sobrenatural explora a falta de genealogia em Gn 14.17-20. O autor de 2 Enoc

71.17-21 o faz a favor da continuidade e perenidade do sacerdócio colocando as palavras nos

lábios de Noé e Nir, que dizem: �Eis que Deus está renovando o sacerdócio de sangue

concernente a nós, assim como lhe apraz.� A continuidade é mais uma vez referida no

ocultação de Melquisedec no Éden por intermédio do arcanjo Miguel (2 Enoc 71.28-35).

Kevin P. Sullivan rejeita classificar de angelomórficos os traços salientes e peculiares

em Melquisedec nos episódios de 2 Enoc 71-72. Ele entende que, por não haver o registro do

termo �anjo� atribuído a Melquisedec (e a qualquer outra figura), não pode considerá-lo

como angelomórfico.312 Porém, se rende ao fato de que de algum modo, por seu status

exaltado, Melquisedec seria de alguma maneira angélico:

Finalmente, a evidência a respeito de Melquisedec não é clara. Não diz explicitamente se referir a ele como um anjo, mas parece que ele desfruta de um status especial que sugere que ele possa ter sido considerado de alguma maneira angélico.313

Charles A. Gieschen, diametralmente oposto, enfatiza que o episódio de Melquisedec em 2

Enoc deve ser lido contra o pano de fundo em que se encontra.314 O mundo se encontra às

vésperas do Dilúvio (2 Enoc 71.28s; 72.1s), a pecaminosidade aumentava (2 Enoc 71.23),

devido à sua concepção não ser fruto de uma relação sexual pecaminosa e nem experiência

com sangue (que pode ser uma referência ao estado corrompido do sacerdócio), ele pode

expiar os pecados.315 Outros dados são o emblema sacerdotal, sua aparência gloriosa, e sua

ocultação feita pelo arcanjo Miguel compõem os traços angelomórficos de Melquisedec.316

A face �radiante� poderá se manifestar no futuro, quando a criança exercer o

sacerdócio. Aventamos isto devido ao fato de o próprio sacerdote Metusalém ser descrito

com a face iluminada: �E Metusalém subiu ao altar do Senhor, e sua face era radiante, como

o sol ao meio dia, quando se levanta...� (2 Enoc 69.10).317 O louvor que profere seria uma

312 Wrestling with angels, p. 96. 313 Ibid. p. 98. 314 Angelomorphic Christology, p. 172. 315 C. A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 173. 316 Ibid. p. 173. 317 Rescensão �A� lê: �como a estrela da manhã quando surge�.

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alusão ao Salmo 8.2, tão perfeito quanto ao dos anjos. E seu tamanho fora das medidas para

sua idade, que pode ser confundido com um �gigante�, filho dos anjos (1 Enoc 106.5).

Comer o �pão santo� alusão a Gn 14.18 e ao rito de sagração sacerdotal em Ex 29.31-

33. O nome �Melquisedec� indica ao mesmo tempo para sua justiça contraposta à geração de

Noé e para o seu reinado, substituindo Adão, no Éden (�centro da Terra�), e como cabeça de

todos os �santos sacerdotes� (2 Enoc 71.28-30, 35). O tema da ocultação de Melquisedec tem o

precedente no episódio bíblico da trasladação de Enoc (Gn 5.24).

Passaremos, agora, ao documento extra-canônico mais importante para nossa

pesquisa em que Melquisedec é o protagonista, 11QMelquisedec.

4.4. Melquisedec em 11QMelquisedec

11QMelquisedec compõe-se de 13 fragmentos descobertos em 1956 e publicados pela

primeira vez por A. S. van der Woude publicou em 1965.318 Provavelmente redigido na

segunda metade do séc. I A.E.C. (ou no I séc. E.C.), 11QMelquisedec é um pesher temático,

isto é, diferente dos pesharim que se ocupam de livros, o pesher temático �é um comentário

sobre uma seleção de textos do Antigo Testamento, unidos num propósito teológico�.319

11QMelquisedec, como chegou a nós, trata do ano do jubileu, o ano da remissão das dívidas

dos israelitas. Encadeia-se vários textos (Lv 25.13; Dt 15.2; Is 61.1; Lv 25.10; Sl 82.1; Sl 7.8-9; Sl

82.2; Is 52.7; Lv 25.9), sendo interpretados ou sopesando a interpretação, que é pontuada pela

expressão P�r (pesher=�interpretação�) em 11QMelquisedec ii.4.7.12.17.20; iii.1.

De caráter escatológico, 11QMelquisedec é interpretação da história, ou seja, tem

como referencial a época da Comunidade de Qumran, a partir de que lê as profecias bíblicas

como mistérios desvelados.320

Para os nossos propósitos, o texto de 11QMelquisedec exprime como a comunidade

de Qumran entendia a figura de Melquisedec e, ao mesmo tempo, concorre para

vislumbrarmos parte da especulação de sua figura nos círculos judaicos do I séc. Dito isto,

passamos à apresentação do texto aramaico e a tradução feita pela edição brasileira de

Florentino Garcia-Martinez: 321

318 Paul J. KOBELSKY, Melchizedek and Melchiresa, p. 1. 319 Ibid., p. 1; cf. José ADRIANO FILHO, Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, p. 48. 320 Ibid., p. 49. 321 Textos de Qumran, p. 180.

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141

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Å Î ·· Ðy�h�Î ·· Ð 20

Col. II 1[...] teu Deus ... [...] 2 [...] E o que diz: �Neste ano de jubileu [voltareis cada qual à sua respectiva propriedade�, como está escrito: �Esta é] 3 a maneira (de fazer) [a remissão: todo credor fará remissão do que tiver emprestado [ao seu próximo. Não premerá o seu próximo nem o seu irmão quando se tiver proclamado] a remissão 4 para Deus.� [Sua inter]pretação para os últimos dias se refere aos cativos, dos quais diz: �Para proclamar aos cativos a libertação.� E fará prisioneiros 5 os seus rebeldes [...] e da herança de Melquisedec, pois [...] e ele que 6 os fará retornar a eles. Ele proclamará para eles a libertação para libertá-los d[a dívida] de todas as suas iniqüidades. E isto suce[derá] 7 na semana primeira do jubileu que segue os no[ve] jubileus. E o dia [das expiaçõ]es é o final do jubileu décimo 8 no qual se expiará por todos os filhos de [Deus] e pelos homens do lote de Melquisedec. [E nas alturas] ele se pronun[ciará a seu] favor segundo os seus lotes; pois 9 é o tempo do �ano de graça� para Melquisedec, para exal[tar no pro]cesso os santos de Deus pelo domínio do juízo, como está escrito 10 sobre ele nos cânticos de Davi que diz: �Elohim se ergue na assem[bléia de Deus], em meio aos deuses julga�. E sobre ele diz: �Sobre ela 11 retorna às alturas, Deus julgará os povos�. E o que di[z: �Até quando jul]gareis injustamente e guardareis consideração aos malvados? Selah.� 12 Sua interpretação concerne a Belial e aos espíritos de seu lote, que foram rebeldes [todos eles] apartando-se dos mandamentos de Deus [para cometer o mal.] 13 Porém Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus [nesse dia, e eles serão libertados das

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mãos] de Belial e das mãos de todos os es[píritos de seu lote.] 14 Em sua ajuda (virão) todos �os deuses de [justiça�; ele] é que[m prevalecerá nesse dia sobre] todos os filhos de Deus, e ele pré[sidirá a assembléia] 15 esta. Este é o dia d[a paz do qual] falou [Deus desde antigamente pelas palavras de Isa]ías o profeta, que disse: �Que] belos são 16 sobre os montes os pés do proclamador que anuncia a paz, do pro[clamador do bem que anuncia a salvação,] dizendo a Sião: �teu Deus [reina��.] 17 Sua interpretação: Os montes são os profe[tas...] 18 E o proclamador é [o un]gido do espírito do qual falou Da[niel... e o proclamador do] 19 bem que anuncia a salva[ção é aquele do qual está escrito que [ele o enviará �para consolar os aflitos�, sua interpretação:] para instruí-los em todos os tempos do mun[do...] 21 em verdade. [...] 22 [...] Ela foi apartada de Belial e ela [...] 23 [...] nos juízos de Deus como está escrito sobre ele: �Dizendo a Sião: �teu Deus reina��. [�Si]ão, é 24 [a congregação de todos os filhos de justiça, os] que estabelecem a aliança, os que evitam andar [pelo ca]minho do povo. �Teu Deus�, é 25 [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de Belial. E o que diz: �Fareis soar o chi[fre em to]do o país�. Col. III 1 [Sua interpretação...] 2 e conheceis [...] 3 Deus [...] 4 e muitos [...] 5 [...] ... Melquisedec [...] 6 a lei para eles [...] a mão [...] 7 consumirão Belial com fogo [...] Belial, e se rebelarão [...] 8 os desejos de seus corações [...] ... [...] 9 as muralhas de Judá [...] as muralhas de Je[rusalém...] 10-20 (restos mínimos).

4.4.1. Melquisedec multifacetário

O protagonista de 11QMelquisedec é Melquisedec. Seu nome aparece várias vezes no texto

(ii.5, 8, 9, 13, [25]; iii.5). A ele são atribuídas funções de �redentor�, �mensageiro�, �messias�,

�ungido�, �o príncipe�, �anjo� e o �ungido do espírito�.

4.4.1.1. Melquisedec como redentor celeste

A função de redentor se realiza na �primeira semana do último jubileu� (ii.7). Para 1QS

i.18,23; ii.19 e em outros lugares, a presente era é do domínio de Belial, que é inimigo do

Príncipe da Luz e da Comunidade. Em 11QMelquisedec o tempo de seu domínio chega ao

fim, no último ano do décimo jubileu: �consumirão Belial com fogo� (ii.7). Os filhos da luz

juntos de seu príncipe farão guerra contra os filhos das trevas liderados pelo Príncipe das

Trevas, isto é, Belial (1QM i.1). O período de dez jubileus inspira-se em Lv 25.8 associado a

Dn 9.2, 24-27, que tem por base Jr 25.11, 12; 29.10. Sabe-se que um jubileu acontece a cada 49

anos, conforme Lv 25.8, que resulta em 490 anos, este perfaz o período de tempo do cativeiro

dos �filhos da justiça�.

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O Dia das Expiações (Büyôm haKKiPPùrîm),322 conforme ii.8s, sugere a atividade sumo

sacerdotal, mas um sumo sacerdote celestial. Concorre ainda para a remissão a representação

dos santos de Deus na Assembléia Divina mediante o cumprimento do direito conduzido

por Melquisedec (ii.11). Adicione-se a isto o papel de paladino da justiça ao realizar a

vingança expedida por Deus para libertá-los �das mãos de Belial� (ii.13).

4.4.1.2. Melquisedec na Assembléia Divina

Como vimos no cap. III desta tese, a Assembléia Divina é presidida por Deus no Sl 82. O

nome de Deus (yhwh) não aparece, mas ´élöhîm (cf. Sl 82.1,8), embora `elyôn

(�Altíssimo�)esteja expresso no v. 6. Apesar disto, o Salmo deixa lugar para que um possível

´élöhîm (=anjo) se destaque de outros ´élöhîm (=anjos). O autor de 11QMelquisedec

aproveitou-se dessa possibilidade e atribuiu a presidência a Melquisedec que está acima de

todos os outros ´élöhîm (v. 1) e acima das nações na referência ao Salmo 7.6-8 precedida pela

fórmula de citação: �E sobre ele diz: �Sobre ela retorna às alturas, Deus (´élöhîm) julgará os

povos�� (ii.10-11). O Sl 7.6-8 no TM difere do texto de Qumran. O TM lê yhwh, enquanto que

11QMelquisedec lê ´élöhîm (LXX: ku,rioj). �. No entanto, há os que acham que Melquisedec

seja o próprio Yahweh. Ao refutar o parecer de Franco Manzi,323 que defende que

Melquisedec é Yahweh, J. Kurianal argumenta a favor da sua função mediadora.324 De igual

modo, Florentino Garcia-Martinez expressa que os argumentos de Manzi não se sustentam

diante de 11QMelquisedec ii.13 �Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus�

salienta a distinção entre Deus e Melquisedec.325 Melquisedec é aquele que �proclamará para

eles a libertação para libertá-los d[a dívida] de todas as suas iniqüidades� (ii.6). Então,

encontrar em Melquisedec, manifestamente um mediador, epíteto de Yahweh, parece

exceder ao próprio texto de 11QMelquisedec. Quanto aos outros ´élöhîm, em

11QMelquisedec ii.12 são os �Belial e os es[píritos de seu lote.]�. Melquisedec é, portanto,

322 A versão brasileira traduz Büyôm haKKiPPùrîm por �o dia das expiações� ao invés de �dia da expiação� da versão inglesa. 323 Melchisedek e l�angelologia nell�Epistola agli Ebrei e a Qumran, p. 51. 324 Jesus our High Priest, p. 176: �as qualificações de Melquisedec como �o arauto� (ii.16 duas vezes, 18 duas vezes) e o �ungido do espírito� (ii.18) fazem improváveis que Melquisedec e Yahweh seja a um só tempo uma e mesma pessoa neste documento. O título �arauto� não se refere ao originador da mensagem, mas a alguém que proclama a mensagem. Portanto, desde que Melquisedec seja um �arauto�, o originador da mensagem não é ele mesmo, mas outro, Yahweh.� 325 F. GARCÍA-MARTINEZ, Las tradiciones sobre Melquisedec em los manuscritos de Qumrán, p. 73.

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uma figura celeste e potente, também atestado em 1Q401.xi.1-3, conforme a reconstrução de

C. Newsom:326

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3

1 [...] ... sacerdote[s de ...] 2 [... d[euses do conhecimento e [...] 3 [... Melqui]sedec, sacerdote na assembléia de Deus ...].

4.4.1.3. Melquisedec e Belial

Capaz de liderar as hostes angélicas como faz Miguel em 1QM xvii.6-7, um �duplo� do

Príncipe da Luz desde que o comandante dos exércitos celeste possui três nomes (4Q544 iii.1-

2) assim como o Príncipe das trevas: �e um dos nomes de quem �domina sobre todas as

trevas� é Melquiresha, antônimo perfeito de Melquisedec.�327

Oposto a Melquisedec, Belial (�Beliar� em Testamento de Levi 19.1)328 junto aos outros

espíritos de seu lote se tornaram rebeldes a Deus. Belial (büliyyaº`al) é a personificação da

impiedade e da morte. Quanto a isto, diz-se expressamente no paralelismo sinonímico do Sl

18.5: �As ondas da morte me envolviam, as torrentes de Belial me aterravam.�329 Seus crimes

vinculam-se a indivíduos que incentivam a idolatria (Dt 13.14), ao perjúrio (Pv 19.28), à

violação da hospitalidade (Jz 19.22), de lesa-majestade (1 Sm 10.27), à embriaguez feminina (1

Sm 13-17), à usurpação (2 Sm 16.7s), ao sacrilégio (1 Sm 2.12-17) e, digna de nota, à retenção

do direito à remissão do ano sabático em Dt 15.9s:

Fica atento a ti mesmo, para que não surja em teu coração um pensamento vil (büliyyaº`al), como o dizer: �Eis que se aproxima o sétimo ano, o ano da remissão�, e o teu olho se torne mau para com o teu irmão pobre, nada lhe dando; ele clamaria a Yahweh contra ti, e em ti haveria um pecado. 10 Quando lhe deres algo, não dês com má vontade, pois, em resposta a este gesto, Yahweh teu Deus te abençoará em todo teu trabalho, em todo empreendimento da tua mão.

As palavras de Dt 15.1-11 em seu campo semântico (ano de remissão; más intenções;

injustiça; Deus como juíz) parecem ecoar tanto a Gn 14.17-20 como a 11QMelquisedec, isto é, 326 Ibid.,. p. 70. 327 F. GARCIA-MARTINEZ, Las tradiciones sobre Melquisedec em los manuscritos de Qumrán p. 74. 328 Outros nomes também se referem à mesma entidade: �Mastema� (1QM 13.11; cf. Jubileus 10.8); �Satã� (1QH iv.6; Vida de Adão e Eva 9-16). 329 Belial também é transliterado em Dt 13.13; Jz 19.22; 1 Sm 1.16; 2.12; 10.27; 25.17; 2 Sm 16.7; Na 1.15. Outros lugares em que aparece o nome �Belial� são: 2 Co 6.15; Jubileus 1.20; 15.33; Oráculos Sibilinos ii.167; iii.63,67; Ascensão de Isaías 1.8-9.

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a restauração de bens e pessoas (Gn 14.16), liberalidade e generosidade (de Abraão e de

Melquisedec: Gn 14.18-20) e bênção (Gn 14.19s) contrapostas às palavras do rei de Sodoma,

uma espécie de gente de Belial (Gn 14.21; cf. Gn 18.17-21). Estes temas, ainda que

indiretamente, seriam re-aproveitados e re-configurados em 11QMelquisedec?

Visto que Melquisedec age como lugar-tenente de Yahweh; seu opositor, Belial, é

inimigo à sua altura.330 Belial não é comparável a Yahweh, mas aos anjos da presença (ex.:

Miguel). Vejamos 1QM xiii.11-14:331

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11 yxwr lwkw Å ~yXahlw [yXrhl wtc[bw wtÎlXmm wylaw wklhty $Xwx yqwxb lbx ykalm wlrwg 12

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h�ÙÎ ·· ÐÙr brq ~wy hkl htd[y zam aÎyk Å hkyl[Ðwp

11Tu criaste Belial para a fossa, anjo de hostilidade; seu [domí]nio são as trevas, seu conselho é para o mal e a iniqüidade. 12Todos os espíritos de seu lote, anjos de destruição, andam nas leis das trevas; para elas vai seu único desejo. Porém nós, no lote de tua verdade, regozijemo-nos em tua mão poderosa, 13exultemos em tua salvação, alegremo-nos em tua ajuda e em tua paz. Quem como tu na força, Deus de Israel? 14Tua mão poderosa está com os pobres! E que anjo ou príncipe é como tu na ajuda?

Para 1QS i.18,23; ii.19 e em outros lugares, a presente era é do domínio de Belial, que é

inimigo do Príncipe da Luz e da Comunidade. Em 11QMelquisedec o tempo de seu domínio

chega ao fim, no último ano do décimo jubileu: �consumirão Belial com fogo� (ii.7). Os filhos

da luz juntos de seu príncipe farão guerra contra os filhos das trevas liderados pelo Príncipe

das Trevas, isto é, Belial (1QM i.1). Por exercer a justiça na Assembléia Divina e vingança

contra Belial, Melquisedec proclamar a paz de Yahweh (ii.16)

4.4.1.4. Melquisedec como Messias celestial

Como Messias, a Melquisedec cabe restaurar o povo de Deus e consolá-lo com a instrução

divina (ii.17-25). Em 11QMelquisedec ii. 24fine e 25 lemos:

330 José ADRIANO FILHO, Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, in: Paulo Augusto S. NOGUEIRA (Ed.), Estudos de Religião 19, p. 55. 331 Texto que faz alguma alusão ao Sl 89.6-9.

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�Teu Deus�, é [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de Belial. E o que diz: �Fareis soar o chi[fre em to]do o país�.

Apesar de ser uma reconstituição ao identificar Melquisedec com �Teu Deus�, tal

reconstituição tem a seu favor a continuação que menciona �Belial�, que já foi apresentado

como o seu inimigo derrotado (ii.12-13). C. H.T. Fletcher-Louis sugere que em

11QMelquisedec ii.25 o autor substitui o tetragrama sagrado (yhwh) usado no TM (LXX:

kuri,oj) para Isaías 61.2 por Melquisedec.332 Seu argumento baseia-se em 11QMelquisedec

ii.9: �é o tempo do �ano de graça� para Melquisedec...�, que é lido em Is 61.2: �proclamar um

ano aceitável a Yahweh...�. Por sua vez, J. Adriano Filho lê como �provável que Elohim aqui

tenha sido interpretado como Melquisedec.�333 A favor deste está o fato de que Melquisedec

é chamado de �Elohim� em 11QMelquisedec ii.10 na citação do Sl 82.1. A favor daquele é o

texto de Isaías. Ao se referir a �Deus� (yhwh) para Melquisedec aventamos ainda que nos

vv. 1, 6, 8 do Salmo 82, a palavra usada para �Deus� é ´élöhîm, mas na segunda parte do v. 6

aparece a expressão ûbünê `elyôn (�filhos do Altíssimo�), que claramente se refere a Yahweh.

Sintomático é que em Gn 14.18 Melquisedec seja apresentado como köhën lü´ël `elyôn

(�sacerdote do Deus Altíssimo�) e que em 11QMelquisedec ligue-se o Sl 82.1 a Melquisedec,

ou seja, o próprio Gn deu ensejo à atribuição divina ao sacerdote de Salém.

A citação do Sl 7.8s (11QMelquisedec ii.11) é pertinente para o aspecto judicial e real

de Melquisedec, mas lido em conexão com o Sl 82.1 (ii.9-10a) como faz 11QMelquisedec.

Assim, ao citar Sl 82.1 em 11QMelquisedec ii.9-10a se lê: �Elohim se ergue na assem[bléia de

Deus]...�. Tanto em seu lugar original como aqui, Elohim se levanta para mostrar indignação

diante dos juízos da Assembléia dos Elohim. Já o texto de 11QMelquisedec ii. 11 se lê: �Sobre

ela retorna às alturas, Deus julgará os povos�. No TM, o Sl 7.8s fala do retorno de Deus

(Yahweh) às alturas para julgar. Em 11QMelquisedec, Melquisedec é que julga. Exerce-se o

julgamento sentado num trono como em Dn 7.9-10:

Eu continuava contemplando, quando foram preparados alguns tronos e um Ancião sentou-se. Suas vestes eram brancas como a neve; e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã. Seu trono eram chamas de fogo com rodas de fogo ardente. Um rio de fogo corria, irrompendo diante dele. Mil miríades o serviam, e miríades de miríades o assistiam. O tribunal tomou assento e os livros foram abertos.

332 All the Glory of Adam, p. 216. 333 Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, p. 60.

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As partes grifadas manifestam os preparativos para o exercício de julgamento formal.

Corrobora para isto o ato do Ancião se sentar, e após ele, o tribunal também se senta. O

julgamento se inicia com a abertura dos livros.

Melquisedec senta-se para julgar e seu posicionamento em relação aos �filhos de

Deus� revela seu status exaltado. Assentar-se acima da Assembléia (11Q13 ii.14) aponta para

o seu caráter elevado.334 Desde que o imaginário da Assembléia Divina se apresenta na

Bíblia como uma reunião em recinto da realeza335 e de que é daí que Deus preside as

deliberações, podemos entender que Melquisedec se apresenta no documento de Qumran

como entronizado, o que faz sentido desde que ele é um �rei� (Gn 14.18).

Enviado por Deus, o proclamador é o �ungido do espírito� (11Q13 ii.16-18). O profeta

era visto como participante da Assembléia Divina e recebia o encargo de entregar as

comunicações ali deliberadas (1 Rs 22.19; Is 6.1, 1 Enoc 1.9; 12.1-6). Na confluência de Dn 9.25

com Is 52.7 Melquisedec é a um só tempo mensageiro da salvação e Messias que traz

conforto, justiça e paz. Por ele �Deus reina� em Sião (11Q13 ii.23-25). Os atributos de

Melquisedec de rei, sacerdote e profeta são ampliados ao máximo a fim de esboçar as

expectativas da Comunidade de Qumran a respeito de seu Redentor Celestial.

4.4.1.5. Sumário: Melquisedec angelomórfico

Chamamos a atenção para os traços que favorecem os aspectos angelomórficos de

Melquisedec em 11QMelquisedec. A Melquisedec atribui-se uma �herança� constituída dos

�filhos de Deus� e pelos �homens� de seu lote (ii.5-6) e sobre quem governa e protege (ii.14),

pois fazem parte dela . Toma partido destes na Assembléia Divina (ii.9,11) e repreende os

asseclas de Belial (ii.12) e os condena conforme os juízos de Deus (iii.7). Aqui vale lembrar a

atribuição divina a Melquisedec para presidir a Assembléia Divina (ii.10) e para não haver

dúvidas, segue-se a interpretação: �Teu Deus�, é [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de

Belial� (ii.25). Melquisedec também age como redentor dos de seu lote (ii.5-8,25), pois foi

enviado por Deus para trazer o consolo e a instrução (ii.19). Ainda que nestes fragmentos

não se mencione336 Gn 14.17-20 e Sl 110, o caráter �real� de Melquisedec é salientado pela

citação e interpretação de Is 52.7 e pela menção de Sião (ii.23). Podemos perceber que

334 Nas cerimônias públicas dos romanos, o magistrado sentava-se num trono posto sobre um estrado, o que o colocava numa situação mais elevada diante de outrem. cf. AYMARD, A./AYBOYER, J., Roma e seu império, p. 157. 335 Martha HIMMELFARB, Ascent to heaven in jewish apocalypses, p. 14. 336 O que poderia ter sido feito em partes anteriores ou posteriores perdidas do documento.

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Melquisedec a ênfase que o apresenta características de Messias celestial (ii.18; cf.

4QApocalipse Messiânico 2.ii). O Melquisedec de 11QMelquisedec possui, desse modo,

atribuições: divinas, angélicas e humanas. Esta última presente na reminiscência de seu

nome337 (Gn 14.18), o que o torna paradigmático para a comunidade sacerdotal de Qumran

em seu anelo de uma existência angelomórfica expresso em 4QShir-Shab (401.xi.1-3).

Melquisedec de 11QMelquisedec possui afinidades com o �Filho do Homem� de

Daniel 7.13, de que nos ocuparemos a seguir.

4.4.2. Melquisedec, O Filho do Homem e Jesus: O sumo sacerdócio angelomórfico

Em seu estudo a respeito de Melquisedec e Melquiresha, Paul J. Kobelski tem dedicado um

capítulo que trata do tema do �Filho do Homem� em Dn 7.13 e sua relação com

11QMelquisedec.338 Ele propõe que 11QMelquisedec é elaborado com base nas tradições do

Filho do Homem, principalmente a de Dn 7. Seu estudo é pertinente ao nosso, pois procura

lançar luz à Cristologia de Hebreus.

Das cerca 90 referências ao ��Filho do Homem�� no N.T., somente 4 não se encontram

nos Evangelhos Sinóticos: Jo 5.27; Hb 2.6; Ap 1.13; 14.14. As duas passagens de Ap são

alusões a Dn 7.13, sendo que Jo 5.27 é a única citação que aplica diretamente Dn 7.13 a Jesus.

Quanto a Hb 2.6, Kobelski descarta, pois entende que o autor cita o Sl 8.5 ��de uma maneira

que huios anthropou pode nem se referir a Jesus mesmo��.339 Dado que sustenta a tese de que a

expressão ��Filho do Homem� é proveniente de Jesus. Por conta disto, faz-se a pergunta: Já

havia uma compreensão estabelecida que entendia o ��Filho do Homem�� atribuída a uma

figura anterior ao NT?340 Em sua discussão sobre o tema, o ponto de partida é Dn 7.9-13, pois,

ainda que a expressão ��Filho do Homem�� esteja presente no livro das Similitudes de Enoc (1

Enoc 37-71), devido às certas dificuldades, Kobelski considera Daniel mais adequado.

Leve-se em conta que a proposta bem aceita é a de que o ��Filho do Homem��

possivelmente seja um anjo dar sustentação de que Melquisedec em 11QMelquisedec é

identificado com Miguel.341 Os paralelos inventariados por Kobelski são: (1) Tanto Dn 7 (vv.

10, 14) como 11QMelquisedec tem como ambientação o fim dos tempos ao referirem-se a um

337 cf. tb. C. H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory to Adam, p. 220. 338 Melchizedek and Melchiresa, pp. 130-137. 339 Ibid., p. 130. 340 Ibid., p. 132. 341 Paul J. KOBELSKI, Melchizedek and Melchiresa, p. 133.

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julgamento e à derrota bélica do inimigo; Miguel é apresentado em Dn 12.1 com tonalidades

judiciais e bélicas empenhado em libertar o povo, e Melquisedec possui os mesmo traços em

11QMelq ii.9-14, 25; ambos são exaltados nas alturas (Dn 7.9, 13; 11QMelquisedec ii.10-11);

triunfam sobre o poder do oponente (Dn 7.23-27; 12.1; 11QMelq ii.13-16, 25); são reis (Dn

7.14; 11QMelquisedec ii.7-8, 16, 23-25); (2) ainda mais digno de nota é a relação dos dois

textos com o Salmo 110, o qual o autor de Daniel teria em mente ao compor um com �Filho

do Homem��, dado que Melquisedec é mencionado no v. 4 e ao mesmo tempo que no v. 1 é

dado o privilégio de alguém se sentar à direita do Senhor, já que em Dn 7.9 faz referência ao

Ancião de Dias (=Deus) e a tronos, possuindo autoridade para reinar e receber o louvor do

povo (Sl 110.3 cf. Dn 7.14); a figura exaltada do Sl 110 pode ser encontrada em Melquisedec

na Assembléia Divina (11QMelquisedec ii.9-11), em sua vitória sobre Belial e seus asseclas

(11QMelquisedec ii.12-14; iii.7); a pessoa exaltada como rei em Sl 110.2 em Melquisedec como

Elohim que é rei.342

Todavia, a tese de Kobelski pode em um ponto ser alterada, ou seja, na identificação

do ��Filho do Homem�� como o anjo Miguel. Antes de nos determos na provável alteração,

convém apresentar a proposta de Miguel como ��Filho do Homem�� de acordo com seus

promotores mais expoentes.

4.4.3. O Filho do Homem como sumo sacerdote

Como vimos acima, a solução da identidade do Filho do Homem é bastante enigmática. A

conclusão de se identificá-lo com Miguel parte das descrições disponíveis na tradição do

judaísmo do período do 2º templo. No entanto, Miguel não é o único candidato para isso.

Outros foram sugeridos: Enoc, Noé, Melquisedec, Jacó, Moisés. Chama a atenção o fato de se

propor uma figura humana, deveras exaltada, mas humana.

C. H. T. Fletcher-Louis recentemente fez uma proposta alternativa (na verdade, uma

re-elaboração da tese de André Lacoque)343 a de que o ��Filho do Homem�� seria um sumo

sacerdote. Sua proposta merece atenção, pois, possui elementos que corroboram para nossa

tese. Apresentamos os pontos mais importantes da argumentação.

Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que já havia tradições angelomórficas que

visavam determinados indivíduos exaltados à estatura angélica (Nm 24.17; 2 Sm 14.17, 20;

342 Ibid., p. 135. 343 The high priest as divine mediator in the Hebrew Bible: Dan 7.13 as a Test Case, pp. 161, 169.

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19.27; Is 9.5; Zc 12.8; Ml 2.7) anteriores à crise Macabéia. Assim, o autor de Daniel tinha à

mão certa quantia de material que lhe proporcionava condições de dar expressão a uma

figura que se torna um vizir de Deus.

O quadro referencial histórico de Dn 7.13 também é importante para a construção da

identidade do ��Filho do Homem��. Em sua presente forma, o livro de Daniel trata de um

conflito entre o Deus de Israel acompanhado de seus anjos e as forças demoníacas

incorporadas no reino macedônico, e o triunfo final de Deus.344 A ameaça representada por

Antíoco IV é descrita nos cap. 7-12 de Daniel. Tal crise centrava-se sobre à profanação do

culto do Templo de Jerusalém (Dn 8.10-14; 11.30-31; 12.10-13).

Uma possível resposta à pergunta pela identidade de Daniel é oferecida no acréscimo

ao livro, no cap. 14.2 de Daniel na LXX (��Bel e o Dragão��) se diz que Daniel era sacerdote.

Soma-se ainda o fato de que o caráter apocalíptico do livro segue a tradição de Ez e Zc 1-6,

que eram profetas-sacerdotes. O rigorismo legal com que Daniel é descrito também pode ser

um indício que ele era um sacerdote, visto que, as observações caem no âmbito da

comensalidade (cf. Dn 1.8), além de que dele foi requerido que fosse �sem defeito algum�

(Dn 1.4), requisito importante para o ofício sacerdotal.

Outrossim, o livro como um todo faz contínuas referências ao Templo de Jerusalém.

Exemplos da primeira parte, encontram-se em Dn 3, o edito do rei de se prestar culto a uma

estátua de ouro; a constante glorificação do Senhor (Dn 2.20-23, 47; 3.17-18, 28, 31-33; 4.23-24,

28-29, 34; 6.26-29); a profanação das taças do santuário por Baltazar (Dn 5.1-6.1); a resistência

de Daniel diante do culto ao rei (Dn 6.2-25). Na segunda parte temos, a condenação das

bestas, e em especial da quarta besta porque pronunciava palavras arrogantes (Dn 7.11-12,

23-27; 8.9-11); a menção do sacrifício perpétuo, o abominável da desolação e o sacrifício

perpétuo do santuário (Dn 8.13; 11.31, 36-38; 12.11); a purificação do santuário (Dn 8.14; 9.17,

24, 27), sendo no santuário que o nome de Deus é invocado (Dn 9.18-19; Dt 12.11; Sirácida

50.20).

Observe-se também que a expressão �nossos príncipes� (duna,staj h`mw/n/Särêºnû)

em Dn 9.6 se utiliza após �nossos reis� (basilei/j h`mw/n/müläkêºnû) e antes de �nossos pais�

(pate,raj h`mw/n/´ábötêºnû), numa ordem que se refere a �reis, sacerdotes e anciãos�; note-se

344 O livro de Daniel tem os cap. 1-6 ambientado no exílio de Babilônia, mas procedente do período persa ou helenístico. Enquanto que os cap. 7-12 procedem do início do II séc. A.E.C. e descrevem os eventos durante a crise desatada por Antíoco IV.

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ainda Dn 9.25, o �Príncipe ungido� (Lv 8.11). Visto que a monarquia havia desaparecido

depois do exílio, o autor se refere à autoridade que a um só tempo sustenta tanto o poder

político e religioso do período dos macabeus, isto é, o sumo sacerdote.

Sua oração parece ter como pano de fundo Lv 26.14-46 e Daniel ao fazer uma oração

do tipo sacerdotal, isto é, a que o sacerdote faz em nome do povo: �Nós pecamos, cometemos

iniqüidades, agimos impiamente e rebelamo-nos (...). A ti, Senhor, a justiça; e a nós a

vergonha no rosto, como acontece hoje para os homens de Judá, Jerusalém, todo o Israel�

(Dn 9.5, 7).

Daniel no papel de vidente tem garantido um lugar de destaque nos impérios

babilônico e persa. A primeira evidência é a de Dn 2.48-49, texto que trouxe dificuldades aos

intérpretes, tanto judeus como cristãos.345 Após decifrar qual era o sonho de Nabucodonosor,

Daniel se torna alvo de veneração, ao ponto de o imperador ordenar que lhe oferecessem

��oblação e sacrifício de agradável odor��. A cena lembra a de Alexandre Magno ao prestar

veneração diante do sumo sacerdote Jaddua (Antiguidades Judaicas 11.331). Além dessa

dignidade, Daniel recebe outra, a de magistrado, ele e seus amigos. Em Dn 5.29, Batazar

oferece-lhe a dignidade de ser o terceiro em seu reino, Daniel rejeita. Porém, no reinado de

Dario, Daniel é o segundo em poder de comando (Dn 6.2-5). Isto talvez sugira uma chave

para a interpretação de Dn 7.14, em que ��um como Filho de Homem�� recebe poder e reino.

Chama também a nossa atenção a descrição de �um homem revestido de linho� (Dn

10.5-6), que conforme C. Rowland (vide acima), é a descrição do �arcanjo Miguel�. Note-se

que a figura está mais para sacerdote do que para rei. Vejamos a comparação de três textos:

Sirácida 50.5-11 (O sumo sacerdote Onias) Como ele era majestoso, cercado de seu povo, quando saía de detrás do véu, como a estrela da manhã em meio às nuvens, como a lua cheia, como o sol radiante sobre o Templo do Altíssimo, como o arco-íris brilhando nas nuvens de glória, como a rosa na primavera, como o lírio junto à fonte, como um broto do Líbano no verão, como o fogo e o incenso no incensório, como vaso de ouro maciço, ornado de pedras preciosas, como a oliveira carregada de frutos, como o cipreste elevando-se até as nuvens.

O texto acima é composto de uma série de metáforas, todas referentes ao sumo sacerdote

quando saía do �Santo dos Santos� no �Dia da Expiação� (cf. Lv 16). O tertius comparationis

não está no vestuário, mas na sua pessoa. Os elementos �estrela da manhã�, �nuvens�, �lua

cheia�, �sol radiante�, �arco-íris�, etc., destacam um tipo de transformação ocorrida dentro

345 John J. COLLINS, Daniel, p. 171.

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do �Santo dos Santos�. Já Sirácida 50.11-12 descreve o vestuário de gala, que ao contrário do

vestuário despojado, de linho branco usado no �Dia da Expiação�, era muito ornamentado e

vistoso.

�Nuvens�, �arco-íris�, �sol radiante� são componentes, via de regra, das

manifestações divinas, por exemplo Ez 1 e 10. Veja-se também o cântico de louvor do Sirácida

42.15-43-33, em que o autor lista muitos elementos aqui elencados e outros (sol, lua, estrelas,

arco-íris, nuvens, neve) em sua representação à Glória de Deus. Na descrição do sumo

sacerdote pelo Sirácida dois componentes são expressivos para Dn 7.14, ��as nuvens�� que ali

também se encontram; e o sumo sacerdote como o ser humano que pode se aproximar de

Deus, isto é, o protótipo de humanidade perfeita, inspirado em Gn 1, cuja tradição é

sacerdotal (P).

São fortes indícios que sustentariam toda a especulação angelomórfica no período de

que tratamos. Contudo, se o Filho do Homem de Dn 7.13 for Miguel ou um sumo sacerdote,

o fato é que o Filho do Homem apresenta expressões angelomórficas a ponto de ser

confundido com um anjo.

Podemos agora fixar nossa atenção na Carta aos Hebreus.

4.5. Síntese de Hebreus 7.1-29

O texto de Hb 7 é considerado um �midrash� homilético sobre o Sl 110.4 e Gn 14.17-20,

assim, são interpretados detalhes com vistas a expressão de realidades superiores.346 Uma

distinção entre midrash exegético e midrash homilético pode não ser tão evidente, desde que

tais gêneros podem ser mesclados; contudo, enquanto o primeiro oferece uma interpretação

versículo a versículo, palavra a palavra, o segundo oferece um comentário edificante sobre

um versículo ou tema principal.347 Grosso modo, a estrutura básica de um midrash pode ser

disposta em citação da Escritura e comentário, o qual lança mão de subformas, como por

exemplo o encadeamento de textos ordenados da Lei, Profetas e Escritos.348 De modo que,

�midrash é um tipo de literatura, oral ou escrita, que tem seu ponto inicial num fixado texto

346 Victor C. PFIZTNER, Hebrews, p. 104; José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 132. 347 H. L. STRACK/G. STEMBERGER, Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p. 328. 348 James L. BAILEY/Lyle D. VANDER BROEK, Literary forms in the New Testament, p. 42.

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canônico, considerado palavra de Deus revelada pelo midrashista e por sua audiência, em

que o texto é citado ou aludido.�349

Hebreus 7.1-29 é delimitado por 6.19-20 e por 8.1s. Nestes dois textos os temas a

serem desenvolvidos são anunciados: �sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec� e �o

santuário celeste� respectivamente. Em termos de retórica, trata-se de provas extrínsecas, isto

é, �provas independentes da arte� (Aristóteles, Arte Retórica, 1.15.1). Em geral, a

argumentação parte de cinco tipos de provas: (1) as leis, (2) as testemunhas, (3) os contratos,

(4) as confissões, (5) o juramento (Aristóteles, Arte Retórica 1.15.1).350 O autor se utiliza dos

cinco tipos, vejamos alguns exemplos:

(1) Hebreus 7.1-10 trata do testemunho acerca da superioridade do

sacerdócio de Jesus. Observe-se o v. 8 em que se encontra o particípio

presente marturou,menoj (testificando; cf. v. 17).

(2) Em 7.11-19 o assunto é a mudança da lei. Mas 7.1-10 também faz

referência à lei (v. 5: kata. to.n no,mon), o mesmo se dá em 7.28 (meta. to.n

no,mon).

(3) Juramento (meta. o`rkwmosi,aj) como tipo de prova é o assunto de 7.20-

28 na discussão da �ordem de Melquisedec� (cf. 6.13).

(4) As alianças (contratos), a antiga e a nova aliança são discutidas a partir de

Hb 8.1 (cf. 8.7: diaqh,kh).

(5) Confissão é aquela feita pela comunidade crente, comunidade

confessante, já mencionada em Hb 3.1 (avrciere,a th/j o`mologi,aj

h`mw/n).

No primeiro bloco, o autor se ocupa de apresentar os itens que classificam o

sacerdócio levítico como inferior ao sacerdócio de Jesus. Visto que Jesus não descende da

tribo de Levi, mas de Judá (Hb 7.14), o assunto se torna de �difícil explicação� (Hb 5.10-11).351

Para seus objetivos, o autor recorre à figura de Melquisedec. O tema de Melquisedec vem

349 Gary G. PORTON, Midrash, in: ABD, IV, p. 819. 350 �São em número de cinco: as leis, as testemunhas, os contratos, as confissões obtidas pela tortura, o juramento�. 351 À reprimenda expressa em Hb 5.11-14 encontra-se fundamentada em Quintiliano, Inst. Orat. que atribui ao ouvinte a responsabilidade de ser atencioso.

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sendo aludido em Hb 1.3; 2.17-18; 3.1; 4.14-16 e claramente anunciado em Hb 4.14-16,

recebendo em Hb 6.20 o título temático: �...nomeado sumo sacerdote perpétuo na linha de

Melquisedec�.

Hebreus se interessa por dois temas neste bloco (Hb 7.1-10), a bênção de Melquisedec

e o dízimo de Abraão, estes são os dois argumentos utilizados pelo autor para fundamentar

o testemunho de tal superioridade, em que se deterá com mais vagar em Hb 7.11-28. Neste, a

atenção do autor se volta para a superioridade de seu sacerdócio a partir do Sl 110.4. De Hb

7.11 em diante, o autor interpreta o Salmo 110.4. Aí seu tema passa a ser a superioridade do

�Sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec�, expressão que aparece três vezes no texto

(vv. 11, 17, 21 ). Sendo que a sua explicação se inicia na segunda metade do verso: �Segundo

a ordem de Melquisedec� (v. 11); na segunda vez utiliza-se do verso inteiro: �Tu és sacerdote

para sempre, segundo a ordem de Melquisedec� (v.17); e finalmente, explica a primeira

metade do mesmo (v. 21), ficando estruturalmente assim: B AB A. Mais um dado, os vv. 11 e

28 fazem uma inclusão mediante a expressão �perfeição� (telei,wsij/ teteleiwme,non).

O assunto é expresso no v. 11 mediante a pergunta: �Que necessidade ainda de outro

sacerdócio?� Aí dois tipos de sacerdócio são expostos: �o levítico� e �outro sacerdócio�. Este

é da ordem de Melquisedec, aquele da ordem araônica. Nota-se um paralelismo invertido:

(A) �sacerdócio levítico� (B) �ordem de Melquisedec�, (B) �sacerdócio diferente�, (A�)

�ordem araônica�.

De cara trata da questão de como conciliar em termos aceitáveis o sacerdócio de Jesus

e a Lei. Ora, o sacerdócio segundo a Lei de Moisés é atribuição da tribo de Levi, respeitando

a linhagem de Araão. Hb 7.11-14 faz a proposição dessa problemática. Ao responder,

apresenta ousadamente as fraquezas da instituição anterior vigente sob a lei pelas palavras:

Porque torna sem efeito o mandamento anterior por causa de sua fraqueza e inutilidade, pois a lei nada aperfeiçoou, é desta sorte uma oferta de maior esperança mediante a qual nos aproximamos de Deus (Hb 7.18-19).

Então, o autor mostra um princípio do agir Divino, do qual há inteira concordância, para

fundamentar sua argumentação em Hb 7.15-19. A base é o �juramento� feito por Deus (7.20-

25). Esta estratégia retórica do autor foi antecipada em Hb 6.13-18, ao falar da fidelidade

Divina no cumprimento de sua promessa a Abraão, ratificada pelo seu �juramento� pessoal:

�Abraão foi perseverante e viu a promessa realizar-se� (Hb 6.15), conectando promessa e

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juramento (Hb 6.18). Em outras palavras, o juramento pessoal de Deus é superior à

prescrição legal, que por ele é tornada sem efeito. O argumento da superioridade do sumo

sacerdócio de Jesus chega ao final num sumário da perícope (Hb 7.26-28) em que os motivos

são elencados em comparação à instituição levítica.

Após este breve panorama, nossa atenção estará especialmente Hb 7.1-10,352 visto que

trate mais diretamente da figura de Melquisedec.

4.5.1. Texto grego e tradução de Hebreus 7.1-10

Apresentamos o texto grego e uma tradução pessoal de Hebreus 7.1-10. Procuramos

apresentar na tradução a plasticidade visual do texto, dado que os teóricos imaginavam o

descurso retórico tanto sonoramente, como visualmente.

Ou-toj ga.r o` Melcise,dek( basileu.j Salh,m( i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou( o` sunanth,saj VAbraa.m u`postre,fonti avpo. th/j koph/j tw/n basile,wn kai. euvlogh,saj auvto,n( 2 w-| kai. deka,thn avpo. pa,ntwn evme,risen VAbraa,m( prw/ton me.n e`rmhneuo,menoj basileu.j dikaiosu,nhj e;peita de. kai. basileu.j Salh,m( o[ evstin basileu.j eivrh,nhj( 3avpa,twr avmh,twr avgenealo,ghtoj( mh,te avrch.n h`merw/n mh,te zwh/j te,loj e;cwn( avfwmoiwme,noj de. tw/| ui`w/| tou/ qeou/( me,nei i`ereu.j eivj to. dihneke,jÅ 4 Qewrei/te de. phli,koj ou-toj( w-| Îkai.Ð deka,thn VAbraa.m e;dwken evk tw/n avkroqini,wn

o` patria,rchjÅ 5kai. oi` me.n evk tw/n ui`w/n Leui. th.n i`eratei,an lamba,nontej evntolh.n e;cousin avpodekatou/n to.n lao.n kata. to.n no,mon( tou/tV e;stin tou.j avdelfou.j auvtw/n( kai,per evxelhluqo,taj evk th/j ovsfu,oj VAbraa,m\ 6o` de. mh. genealogou,menoj evx auvtw/n dedeka,twken VAbraa.m kai. to.n e;conta ta.j evpaggeli,aj euvlo,ghkenÅ 7 cwri.j de. pa,shj avntilogi,aj to. e;latton u`po. tou/ krei,ttonoj euvlogei/taiÅ 8 kai. w-de me.n deka,taj avpoqnh,|skontej a;nqrwpoi lamba,nousin( evkei/ de. marturou,menoj o[ti zh/|Å 9 kai. w`j e;poj eivpei/n( diV VAbraa.m kai. Leui. o` deka,taj lamba,nwn dedeka,twtai\ 10 e;ti ga.r evn th/| ovsfu,i? tou/ patro.j h=n o[te sunh,nthsen auvtw/| Melcise,dekÅ

(1) Pois, este Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que se encontrou com Abraão

quando retornava da matança dos reis e o abençoou, (2) a quem também Abraão deu o dízimo de tudo,

primeiro sendo interpretado rei de justiça e depois rei de Salém, que é rei de paz.

(3) Sem pai, sem mãe,

352 Mas à medida da necessidade, mencionaremos esta outra perícope.

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sem genealogia, sem princípio de dias, nem da vida tendo fim, e assemelhado ao filho de Deus, permanece sacerdote eternamente. (4) Vede, pois, quão grande este, a quem Abraão,

o patriarca, deu o dízimo dos espólios.

(5) E, por um lado, dos filhos de Levi,

os do sacerdócio, uma ordenança têm: receber o dizimo do povo segundo a lei, isto é, dos seus irmãos,

embora saído dos lombos de Abraão!

(6) Entretanto, o que não tem genealogia da parte deles, recebeu o dízimo de

Abraão e ao que tinha as promessa,

abençoou. (7) Mas sem qualquer discussão: o inferior pelo superior é abençoado. (8) e aqui, por um lado, homens mortais recebem dízimos, mas ali,por outro lado, testificando porque vive. (9) e por assim dizer, mediante Abraão também Levi,

o que recebe os dizimos, dizimou!

(10) Pois, nos lombos do pai estava quando lhe encontrou Melquisedec.

4.5.2. Sumário histórico (Hebreus 7.1-2)

O autor elabora o argumento que atende a orientação aristotélica: �Chamamos testemunhas

antigas os poetas e as demais personagens em destaque, cujos depoimentos são bem

conhecidos... (...). Os testemunhos desta espécie invocam acontecimentos passados� (Arist.

Arte Retórica, 1.15.13.14). Melquisedec e Abrãao são essas testemunhas.

Melquisedec é uma das figuras mais enigmáticas das Escrituras do Antigo

Testamento. Além dele, Enoc (Gn 5.24), Moisés (Dt 34.6) e Elias (2 Rs 2.11) despertaram a

imaginação dos literatos do período do Judaísmo do 2º Templo. Enoc e Elias porque foram

arrebatados ao céu (este por um torvelinho, aquele por abdução) e Moisés porque não se

sabe a localização de seu sepulcro. Ao fazer uso da figura de Melquisedec, nosso autor não

está sozinho, mas faz parceria com Filo, 2 Enoc, os Targumim, 11QMelquisedec.

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Ao recorrer à narrativa do encontro de Melquisedec com Abraão, Hebreus não se

ocupa de cada detalhe da narrativa de Gênesis, mas dos que lhe são úteis. O episódio é

narrado sumariamente. Abraão voltava da �matança dos reis� (Gn 14.17). Nada é dito do rei

de Sodoma, ele não é necessário à questão.353

Por um lado, Hb 7.1s frisa a apresentação de Melquisedec (a) como rei de Salém e

sacerdote do Deus Altíssimo; (b) na interpretação de seu nome: rei de Justiça; e (c)

proveniência: Salém. Contudo aqui, não se preocupa de conectar Salém com Jerusalém, mas

com �älôm, �paz�. Etimologia de nomes era um lugar retórico comum, usada mais para

acréscimo subliminar do que uma prova completa (Quintiliano, Instituciones Oratorias 5.9).

Por outro lado, o autor se concentra nos elementos (a) da antiguidade do evento (tempo do

patriarca), (b) na realeza do sacerdócio de Melquisedec, apesar de não desenvolvê-la, mas

que lhe dá sustentação ao alinhavar a tribo de Judá com o sacerdócio (7.14) e na (c) bênção e

dízimo.354 Estes elementos servirão de fundamento para sua argumentação.

4.5.3. Natureza do sacerdócio de Melquisedec

O conteúdo de 7.3 apresenta fortes elementos retóricos:

Sem pai, avpa,twr Sem mãe, avmh,twr Sem genealogia, avgenealo,ghtoj( Sem princípio de dias, mh,te avrch.n h`merw/n Nem tendo fim de existência, mh,te zwh/j te,loj e;cwn( Mas feito como o Filho de Deus, avfwmoiwme,noj de. tw/| ui`w/| tou/ qeou/( Permanece sacerdote para sempre. me,nei i`ereu.j eivj to. dihneke,jÅ

Um rápido olhar na coluna do texto grego percebe-se quatro termos iniciados com �alfa� e

três com �mü" (isocolon, assíndeto, assonância e quiasmo).355 Cinco negativas e duas

afirmativas. De Gênesis 14.17-20 estão cinco negações, das quais se derivam as duas

aplicações úteis ao seu pensamento.

As genealogias possuíam um papel importante para o mundo Mediterrâneo do séc. I

E.C., como vimos no capítulo 2 deste trabalho. Quintiliano elenca em primeiro lugar na

elaboração da argumentação a referência à �linhagem�, porque �comumente os filhos devem

353 Ainda que pudesse ser proveitosa à questão do testemunho a interlocução de Abraão com o rei de Sodoma. Conforme Aristóteles: �que o verossímil não se pode deixar corromper pelo dinheiro e que nunca foi colhido em flagrante delito de falso testemunho� (Arte Retórica, 1.15.3.17). 354 Deborah W. ROOKE, Jesus as royal priest, in: BIBLICA 81, pp. 81-94. 355 Harold W. ATTRIDGE, Hebrews, p. 189.

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ser parecidos aos que os geraram, e ainda disto tomam, digamos, as primeiras sementes ou

para a virtude ou para o vício� (Instituciones Oratórias, 5.9). Na Palestina, principalmente

para o sacerdócio levítico, isso não era diferente. A construção de uma genealogia é critério

para a função sacerdotal. Por sua vez Filo de Alexandria se utiliza o princípio do silêncio,

mas focaliza Melquisedec de outro ângulo.

Contudo, Deus fez Melquisedec, o rei de paz, isto é, de Salém, por que esta é a interpretação de seu nome, �seu próprio sumo sacerdote�, sem ter previamente mencionada qualquer ação particular sua, mas meramente porque ele o havia feito rei e um amante da paz, e especialmente digno de seu sacerdócio. Por que ele é chamado de rei justo, e um rei é o oposto de um tirano, pois um é o intérprete da lei e o outro contraventor (Legum Allegoriae, 3.25.79).

Note-se o circunlóquio de Filo ao não mencionar explicitamente a falta de genealogia de

Melquisedec, ainda que se refira de passagem ao seu sacerdócio. O artifício de Filo é sopesar

o aspecto real em contraponto ao do tirano. Mas mesmo com esta preocupação, pode-se ver

os pontos de interesse com Hebreus, como a interpretação de Salém: �rei de paz, isto é

Salém�, similar à interpretação de Hebreus; a interpretação do nome Melquisedec (�seu

próprio sumo sacerdote�), divergente de Hebreus, podendo, de um certo ponto de vista,

enfatizar a unicidade de seu sacerdócio; sua aparição súbita na narrativa é registrada (�sem

ser previamente mencionada qualquer ação particular sua�); alusão à lei (ainda que com

outro interesse); enfoque em uma de suas atribuições, neste caso, sua realeza.

Paradoxalmente, o autor de Hebreus não hesita em lançar mão da ambigüidade da

ausência genealógica de Melquisedec. Termos tais como avpa,twr e avmh,twr eram usados

para (1) crianças abandonadas, de pais desconhecidos, (2) filhos ilegítimos, (3) pessoas de

baixa origem e (4) deidades sem a participação masculina, como Apolo.356 Certamente nosso

autor não pretende nenhuma das três primeiras possibilidades, porém a quarta, devido a

constatação �Mas feito como o Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.� Seu

argumento, segundo uma ampla parcela de pesquisadores,357 baseia-se no princípio do

�silêncio�, isto é, visto que o texto não menciona sua origem e destino, o intérprete pode

lançar mão deste expediente hermenêutico a seu favor. De modo que, o v. 3 �é um exemplo

clássico de um elegante e denso estilo de falar como efeito retórico�.358

356 James MOFFATT, Hebrews, p. 93. 357 G. BUCHANAN; F. B. CRADDOCK; W. L. LANE, Philip E. HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 248; F. F. BRUCE, The Epistle to the Hebrews, p. 159; J. ADRIANO FILHO, 358 Fred B. CRADDOCK, Hebrews, p. 86.

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Um sacerdócio sem genealogia teria causado certo desconforto a muitos, que os

targumim parecem sugerir. Vejamos junto à versão da Bíblia de Jerusalém as feições de

alguns targumim da passagem de Gn 14.18-20:

Bíblia de Jerusalém (17) Quando Abrão voltou, depois de ter derrotado Codorlaomor e os reis que estavam com ele, o rei de Sodoma foi ao seu encontro no vale de Save (que é o vale do Rei). (18) Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho; ele era sacerdote do Deus Altíssimo. (19) Ele pronunciou esta bênção: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra, (20) e bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos em tuas mãos.� E Abrão lhe deu o dízimo de tudo. Tg Onqelos (17) Então o rei de Sodoma foi ao seu encontro depois que [Abrão] retornou da matança de Codorlaomor e dos reis que estavam com ele para a planície vazia, que é a pista de corridas do rei. (18) Então Melquisedec, rei de Jerusalém, trouxe pão e vinho, pois ele ministrava diante do Deus Altíssimo. (19) E o abençoou e disse: �Bendito seja Abrão diante do Deus Altíssimo, cujas possessões são céus e terra. (20) E bendito seja o Deus Altíssimo que lhe tem livrado das mãos de seus inimigos�. E lhe deu um dízimo de tudo. Tg. Ps.-J. (17) Quando ele retornou de derrotar Codolaomor e os reis que estavam com, o rei de Sodoma veio ao seu encontro na planície aterrada, que é a pista de corridas do rei. (18) E o rei justo - ele é Sem, o filho de Noé � o rei de Jerusalém, veio ao encontro de Abrão e trouxe-lhe pão e vinho; e naquele tempo ele estava ministrando diante do Deus Altíssimo. (19) Ele o abençoou e disse: �Bendito seja Abrão [diante] do Deus Altíssimo que por amor do justo criou céu e terra. (20) E bendito seja Deus Altíssimo que fez de seus inimigos como um escudo que recebe um revés�. E ele lhe deu um dízimo de tudo que tinha recuperado. Tg. Neof. (17) E o rei de Sodoma veio ao seu encontro, depois que retornou da matança de Codolaomor e dos reis que estavam com ele, no vale dos Jardins, isto é, o vale do rei. (18) E Melquisedec, o rei de Jerusalém � ele é Sem, o grande � trouxe pão e vinho, pois era um sacerdote ministrando no sumo-sacerdócio diante do Deus Altíssimo. (19) E ele o abençoou e disse: �Bendito é Abrão diante do Deus Altíssimo que em sua Memra fez os céus e a terra. (20) E bendito é o Deus Altíssimo que dispersou seus inimigos diante de ti�. E lhe deu um dízimo de tudo.

Destaquemos:

(1) A cidade de Melquisedec é �Jerusalém� em todos os targumins ao invés de Salém da

tradução da Bíblia de Jerusalém (Tg. Onq.; Ps.-J.;Tg. Neof.). Melquisedec é o sacerdote

que �ministrava �diante de Deus ao invés de declarar que �é sacerdote� (Tg. Onq.;

Ps.-J.; Neof.).

(2) Melquisedec não é um nome, mas um título adjetivado: �rei justo�, e seu nome é

�Sem, filho de Noé.� (Tg. Ps.-J.).

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(3) Melquisedec é �Sem, o grande� e sumo-sacerdote (Tg. Neof.).

As alterações revelam a transformação dada ao texto para efeitos de precisão da �cidade� do

culto (Jerusalém). Percebe-se a preocupação de interpretar Salém como Jerusalém, o que

valida o �lugar que Yahweh vosso Deus houver escolhido para fazer habitar o seu nome� (Dt

12.11). Chega a parecer natural que �Salém� adquira o sentido de �Jerusalém� como uma

interpretação conseqüente da sua sonoridade. O autor de Hebreus pode saber dessa

possibilidade, mas omite uma preocupação maior com a sua localização. Simplesmente

interpreta o sentido da palavra �Salém�, o que é mais útil ao objetivo. Por sua vez, a

apropriação de Melquisedec de oficiante sacerdotal em Jerusalém confere antiguidade ao

culto de Yahweh. �Ministrava diante de Deus� salienta o papel de sumo sacerdote.

A especulação a respeito do nome de Melquisedec, �rei justo�( Tg. Ps.-J.), pode ser

para fins de legitimar o reinado hasmoneu. E ao prover uma genealogia a Melquisedec de

alguma maneira não eternizaria o sumo sacerdócio em sua pessoa, isto é, desencadearia uma

sucessão, além de ser um exemplar da convergência de duas funções, rei e sacerdote, útil aos

seus partidários.

O nome de Sem ligado a Melquisedec surpreende, fazendo-o ter uma longevidade tal

(600 anos) que sobrepuja até a morte de Abraão.359 Mas também faz-se, desse modo, uma

ligação com o sacerdócio levítico, o que elimina a decontinuidade com Melquisedec, ao

mesmo tempo que provê a sucessão, de que nada é dito no texto de Gênesis 14.17-20. Assim,

conforme os targumim, a utilização do recurso ao �silêncio� da narrativa não é tão evidente,

visto a necessidade de expressar progênese e sucessão a Melquisedec. Antes o ponto focal da

perícope era Abrãao, agora é Melquisedec. Toda essa especulação é feita a favor do

sacerdócio de Jerusalém. Em outras palavras, Melquisedec não extingue o sacerdócio por sua

morte.

O autor de Hebreus difere quanto ao tópico da genealogia de Melquisedec dos

targumim, a ausência de qualquer menção genealógica abre a precedência para a divindade

de Jesus. Mas existe alguma similaridade aos objetivos do autor de Hebreus, ou seja, um

sacerdócio alternativo ao fixado pela lei, ainda que o peso esteja mais no elemento da realeza

conjugada com sacerdócio.

359 Martin Mc NAMARA, Melchizedek: in Gen. 14.18-20, p. 13.

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Portanto, notamos os sinais usados por Hebreus para compor sua elevada Cristologia.

�Melquisedec permanece continuamente um sacerdote por conta de sua aparição na

narrativa bíblica�.360 Não é dizer que Melquisedec seja divino, mas que é um �duplo� de

Jesus, a sua contraparte terrena.

4.5.4. Dízimos de Abraão e bênção de Melquisedec (Hebreus 7.4-10)

O imperativo presente de Hb 7.4 funciona como vocativo e prepara o terreno para a

argumentação da superioridade de Melquisedec sobre Levi. A grandeza de Melquisedec é

colocada diante de Abraão mediante o designativo �o patriarca� (o` patria,rchj), o pai

fundador da nação (cf. Gn 12.1). O tema é assim anunciado: �Quão grande [é] este a quem

Abraão, o patriarca, deu o dízimo�. Para ressaltar a superioridade de Melquisedec, o autor

conduz os leitores/ouvintes à menção da arrecadação do dízimo como é exercida pelos

descendentes de Abraão.

Os filhos de Levi, mediante o sacerdócio, recebem o dízimo dos descendentes dos

seus irmãos. Não obstante todos sejam irmãos (�saídos dos lombos de Abraão�), por força de

lei, os filhos de Levi se tornam superiores ao receber o dízimo do restante dos irmãos.361 A

importância dos levitas é super enfatizada pelo Testamento dos Doze Patriarcas:

Eu vos digo: rivalizareis com os filhos de Levi e procurareis superá-los, mas não sereis aptos, porque Deus atuará em seu favor, e vós morrereis uma morte ruim, pois Deus deu a Levi a autoridade, e a Judá com ele para serem governantes. Por esta razão é que vos ordeno a obedecer a Levi, porque ele conhecerá a lei de Deus e instruirá a respeito da justiça e do sacrifício por Israel até a consumação dos tempos; ele é o sacerdote ungido de quem o Senhor falou (...). Aproximai-vos de Levi com humildade de vossos corações a fim de receberdes a bênção de sua boca. Pois ele abençoará Israel e Judá devido a ser mediante ele que o Senhor escolheu para reinar na presença de todo o povo. Prostrai-vos diante de sua autoridade, porque (sua posteridade) morrerá em vosso favor em guerras visíveis e invisíveis. E ele será entre vós um rei eterno (Testamento de Rubem 6.5-12)

O mesmo tipo de enaltecimento será encontrado nos testamentos dos outros patriarcas (cf.

Testamento de Simeão 5.4; 7.1; Testamento de Judá 21.1-4; Testamento de Issacar 5.5; Testamento de

Dan, 5.4, 7; etc.). Percebe-se, assim, a estatura do sacerdócio levítico. A pretensão do autor de

Hebreus é fornecer elementos que fundamentam o sacerdócio de Jesus e exaltá-lo. Por isso, a

menção de Abraão pagar o dízimo é um ponto fraco na instituição levítica, é o �calcanhar de

Aquiles� do sacerdócio. A grandeza de Abraão é superada pela de Melquisedec, o que deixa

360 F. F. BRUCE, The Epistle to the Hebrews, p. 160. 361 O �dízimo� não caracteriza uma espécie de �salário�, o que faz do sacerdócio inferior, mas se caracteriza um imposto.

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os sacerdotes levitas sem possibilidade de superar o entrave, desde que Abraão é morto.

Quanto a esse desconforto, digna de nota é a passagem do Testamento de Levi 9.3s:

Quando nós chegamos em Betel, meu pai, Jacó, teve uma visão a meu respeito de que eu deveria estar no sacerdócio. Ele se levantou cedo e pagou dízimos ao Senhor por meu intermédio.

A cena de Abraão pagar o dízimo a Melquisedec é refeita, dentro do possível. Dado que o

episódio de Gn 14 não pode ser apagado, compõe-se um outro evento em que Jacó, pai dos

doze patriarcas, é descrito no papel de Abraão e Levi no de Melquisedec. Esta tradição

denuncia que o tema de Abraão pagar o dízimo precisava ser superado mediante uma nova

leitura da narrativa.362 Como é Jacó que dizima, este se torna inferior ao filho Levi, que ao

mesmo tempo supera seus irmãos. Apesar dessa empresa, o ponto fraco permanece, e o

autor de Hebreus o explora a seu favor: �Abraão pagou o dízimo a Melquisedec� (7.4).

De sua parte, Melquisedec abençoou a Abraão, que é outra prerrogativa do

sacerdócio de Levi (Hb 7.6), o abençoador é abençoado. A bênção sobre o povo era tão

estimada ao ponto de o livro de Sirac 50.20-21 mencioná-la cheio de exultação. Contudo, o

expediente utilizado pelo autor de Hebreus 7.7 apresenta certa dificuldade, conforme Jacob

Neusner: A despeito da Carta aos Hebreus 7, um inferior pode abençoar um superior, bem

como um superior abençoar um inferior. 363

Quando alguém de status inferior abençoa outro de status superior, ele está elogiando os benefícios recebidos, como por exemplo, Judite é abençoada (Judite 14.7; 15.9,12) por libertar o povo. (...). Em Qumran à refeição da comunidade, o Mestre (maskil) pronuncia bênçãos sobre os participantes, os sacerdotes e o príncipe da congregação (1QSb).364

Ainda que pareça uma falácia do autor,365 o próprio J. Neusner, no texto acima, sugere uma

resposta. No mundo Mediterrâneo do I séc., a dobradinha �honra e vergonha�, conforme já

foi dito, regulava as relações entre superior-inferior, inferior-superior, e iguais. O superior

não pede, ordena. O inferior não ordena, pede, �elogia�, e entre iguais �troca-se�. A base da

superioridade de Melquisedec sobre Abraão também é enfatizada no ato de receber os

dízimos (Hb 7.8), e por isso, ele é superior, por conseguinte ele abençoa, não elogia. E o texto

362 Jubileus 31.11-20 apresenta Levi e Judá abençoando a Isaac. Levi está ao lado direito de Isaac e Judá ao lado esquerdo. Quem pronuncia primeiro a bênção é Levi e em seguida Judá, o que expressa claramente a predileção por Levi. 363 Dictionary of Judaism in the Biblical Period, p. 98. 364 Ibid., p. 98. 365 David DeSILVA, Perseverance in gratitude, p. 267.

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de Sirácida 7.29-31, que vimos mais acima, dá-nos um quadro do prestígio e dignidade que

gozava o sacerdócio. Além do mais, o autor aduz que, enquanto os filhos de Levi

�morrerão�, Melquisedec permanece: �de quem se declara que vive� (7.8).

4.5.5. Jesus, sumo sacerdote angelomórfico

Neste ponto, podemos fazer um balanço dos conteúdos de Hb 7.1-10 frente aos resultados

colhidos das tradições usadas neste capítulo a respeito de Melquisedec.

O sumo sacerdócio é de importância vital na relação do �ser humano� com a

�Divindade�. Vital pois se entende que a mediação do sumo sacerdote garante a manutenção

da vida. Todo o aparato cultual visa alcançar o perdão de Deus e o acesso à sua presença, a

fim de se atingir a vida que dá sustentação à ordem criada. Pois, a Criação e o perdão dos

pecados se conectam desde o começo de Hebreus: �(ele) sustenta o universo (lit.: �todas as

coisas�) com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados...�

(1.3). De modo que, a perenidade do universo se baseia sobre a santificação resultante da

purificação dos pecados. Em outras palavras, o poder criativo precisa superar o �caos� que a

morte provoca, faz-se isso mediante uma morte vicária, vida que vem pela morte. Isto é

senso comum, compartilhado pelos diversos grupos dentro do judaísmo do período do

segundo Templo. Por conseguinte, o sumo sacerdote é o representante humano, que após o

sacrifício de uma vítima substitutiva, ao entrar no recinto do santíssimo lugar, experimenta a

imediata presença de Deus, e o fato de sair dali sem sofrer qualquer dano é devido ao fato de

que sua oferta foi aceita, a morte não o alcançou. Disso tudo resulta a necessidade de

�perfeição� do sumo sacerdote, e perfeição é melhor expressa em termos divinos, daí o

angelomorfismo ser a melhor sintaxe de perfeição.

Partindo-se do fato de o próprio Deus, inicialmente, por uma via ter-se revelado ao

ser humano como o Anjo do Senhor, que representa a divindade diante do homem; o próprio

Anjo do Senhor, que também é antropomórfico, por outra via, representa o ser humano que

pode se apresentar diante de Deus, conseqüentemente daí o sumo sacerdote ser idealizado

com tonalidades angelomórficas.

A interpretação do autor de Hebreus acerca do sumo sacerdócio de Jesus não

prescinde de um sacrifício vicário, este dado não é omitido, mas cumprido. A morte de Jesus

por crucificação é confessada como fator determinante para seu ofício sacerdotal, mas ao

contrário das vítimas anteriores, sua morte é voluntária:

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�Por isso, ao entrar no mundo, ele afirmou: Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, -- no rolo do livro está escrito a meu respeito � eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade (Hb 10.5-7).

Sua vida de ser humano sem pecado (9.14), vida do Filho de Deus, manifestada no fim dos

tempos (9.26, 27), derrama-se como sacrifício único e cabal (9.26; 10.18-20). Após a morte,

Jesus ascende aos céus (13.20), atravessa o véu, isto é, o próprio céu, e como sumo sacerdote

glorioso se assenta no trono ao lado direito da Divindade (1.3; 8.1).

Com efeito, Melquisedec exerceu grande interesse no que toca ao sumo sacerdócio

idealizado. A antigüidade, os significados de seu nome e lugar, seu ofício sacerdotal, sua

impressiva presença, seu contato com Abraão, a falta de genealogia, tudo isso deu margem

para especulações visando compreender o significado de sua abrupta aparição e saída de

cena. Mesmo estas deram aso ao imaginário para o tema de sua ocultação temporária no

paraíso (2 Enoc 71). Por ser uma figura humana recebe muita atenção e foi elevado a estatura

angélica, indo mais longe, superando os anjos, liderando anjos e homens, fazendo expiação

por seus pecados e chamado de divino por seu colegiado (11QMelquisedec).

O Melquisedec visto pelo autor de Hebreus apresenta uma reserva de sentido que

também supre os elementos angelomórficos de Jesus. Porém, isso é feito de uma outra

maneira. Melquisedec não é a contraparte celeste de Jesus, como o é para os sectários de

Qumran. Mas Melquisedec é a contraparte terrena do Jesus celeste:

Sem pai, sem mãe, sem genealogia, nem princípio de dias nem fim de vida! É assim que se assemelha ao Filho de Deus, e permanece sacerdote eternamente (Hb 7.3).

Melquisedec é o duplo da Pré-existência e imortalidade de Jesus, bem como de seu

sacerdócio perene. Os temas relacionados no início de Hebreus 1.1-4 podem ser vistos

entrelaçados na figura de Melquisedec como duplo. Podemos começar pela Criação da qual

o Filho é o feitor, que encontra-se na bênção impetrada sobre Abraão (7.7). E vistoque a

indumentária e o próprio ofício sacerdotal são embasados na promoção da Criação Divina,

como temos visto, tanto na expiação de pecados pelo povo, como na reparação do universo

criado, uma espécie de manutenção do cosmos.

A dúplice função rei-sacerdote de Melquisedec é proveitosa para a Cristologia de

Hebreus, em que dois ungidos são incorporados em um só. Como rei proveniente da tribo de

Davi não há necessidade de uma exposição a este respeito, porém, desde que o rei nas

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tradições monárquicas de Israel/Judá (e nos arredores) é declarado Filho de Deus, mais uma

vez Melquisedec funciona como anti-tipo de Jesus, pois se ele é entronizado em Salém, Jesus

é entronizado nos céus (1.3; 8.1).366 E esta filiação divina não foi privilégio de anjo algum,

pois mesmo os anjos surgiram de sua ação criadora. Ainda, quanto à filiação, leve-se em

conta a humanidade de Melquisedec que o capacita a interceder por outros humanos

estampados em Abraão que se submete ao seu ministério (7.2, 7), que igualmente capacita a

Jesus também ser mediador em favor da humanidade.

Melquisedec vai ao encontro de Abraão como um portador de boas-novas quando o

abençoa, isto lhe dá uma atribuição profética. O �evangelista�(euvaggelisth,j) é o

�proclamador de oráculos�.367 Tal proclamador anunciava as boas-novas de vitória (Is 52.7;

61.1; cf. Ml 1.7). Jesus igualmente anunciou a salvação aos descendentes de Abraão (2.16) e

de todos os homens (2.9).

Tanto o rei, como o sacerdote são designados para exercer justiça e paz entre os

homens (Dt 17.16-20; Sl 72; Zc 6.13; Ml 2.3-5). Melquisedec faz isso ao abençoar Abraão com o

que avaliza sua ação de libertação e promoção de paz.

11QMelquisedec descreve um Melquisedec angelomórfico. Não se discute o motivo

de sua �ordem�, nem muito menos o encontro com Abraão, simplesmente o autor apreende

sua figura e a transfigura. O interesse não reside na figura histórica de Melquisedec, mas no

Melquisedec exaltado. Embora não explicitamente citado, pode-se pensar que o texto que faz

o transfundo é o do Salmo 110. Deste modo, a figura de Melquisedec expressa no Sl 110

também torna-se ponto de partida para uma nova configuração de seu personagem.

Por um lado, Melquisedec é o paradigma do anelo sacerdotal por uma existência

celestial dos qumranitas. Os textos aventados em sua descrição são utilizados em outros

lugares do NT para Jesus Cristo. Porém, já havia notado Kobelsky, há várias similaridades

entre o Jesus de Hebreus e o Melquisedec. Jesus, em seus dias terrenos, anunciou a

�Salvação� (2.13), pois veio para libertar a humanidade do pavor da morte, sujeitos à

escravidão (Hb 2.14-15). Melquisedec também é portador de �boa-nova� de libertação aos

cativos de suas iniqüidades (11QMelquisedec ii.1-7). Jesus possui um �lote� de filhos de

Deus, isto é, os cristãos (Hb 2.11-13), que anteriormente estavam sob o domínio do �Diabo�,

366 Em Malaquias 1.6, os sacerdotes são considerados como filhos de Deus. 367 G. STRECKER, euvaggelisth,j, in: EDNT, vol. 2, p. 70.

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detentor da morte (Hb 2.11). Melquisedec também possui um lote dos �filhos de Deus�, os

quais liberta da �mão de Belial� (11QMelquisedec ii.13, 24-25). O �sacrifício� vicário efetuado

por Jesus �ao se cumprirem os tempos� (Hb 9.26) relaciona-se com o do dia da expiação (Hb

9.23-28). O �Dia da Expiações� é a marca do fim do décimo jubileu, Melquisedec expiará por

todos os filhos de Deus (11QMelquisedec ii.7-9), �é o tempo do ano da graça para

Melquisedec� (ii.9). Jesus se manifesta �no meio da assembléia� em favor dos �irmãos (Hb

2.11-13); de igual forma Melquisedec presidirá �a assembléia� dos filhos de Deus em favor

de seu lote (ii.9, 14). Jesus é superior aos anjos e estes estão a serviço dos que herdarão a

salvação (Hb 1.4, 14). Melquisedec também é superior aos deuses de justiça, prevalece sobre

todos os filhos de Deus (ii.14). Os crentes são os que chegaram �ao monte Sião e a cidade do

Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à assembléia universal, e à

assembléia dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos

justos aperfeiçoados� (Hb 12.22-23). Em 11QMelquisedec �Sião é a congregação de todos os

filhos de justiça, os que estabelecem a aliança, os que evitam andar pelo caminho do povo�

(ii.23-24). Hebreus trata da �desobediência� da geração da caminhada no deserto (Hb 4.11);

11QMelquisedec menciona �os rebeldes� (ii.4), isto é, �Belial e os espíritos de seu lote�, que

incluem os anjos caídos e os homens, �todos eles apartando-se dos mandamentos de Deus

para cometer o mal�(ii.12). A Jesus se designa de �Deus�: �mas acerca do Filho: �O teu trono,

ó Deus, é para todo o sempre� (Hb 1.8). De igual forma, 11QMelquisedec lança mão de um

texto escriturístico para declarar que Melquisedec é Deus: �Dizendo a Sião: �teu Deus reina��.

(...). �Teu Deus�, Melquisedec que os livrará da mão de Belial� (ii.24-25). Jesus é o �Cristo�:

�Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre� (Hb 13.8). 11QMelquisedec diz

o mesmo de Melquisedec: �E o proclamador é o ungido do espírito que falou Daniel...�(ii.18).

Melquisedec se manifesta para consolar (instruir) os aflitos (ii.20), também Jesus consola os

seus (Hb 4.14-16; 5.1-3). Nada se diz de Melquisedec ter feito ofertas por seus pecados (pelo

que nos chegou, nada sabemos), nem Jesus precisa fazer pelos seus (Hb 9.25 ). Digna de nota

é o caso de que quando se fala de Melquisedec �nas alturas se pronunciará a seu favor

segundo os seus lotes�, fala-se após a expiação (ii.8), o que é igualmente dito de Jesus (Hb

9.24-25).

Por outro lado, quanto ao tema da �pré-existência� (Hb 1.1-3), 11QMelquisedec não

faz menção, pelo menos no fragmento que foi preservado. O status angelomórfico de

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Melquisedec parece derivar do Salmo 110.1 nos moldes da LXX: �Disse o Senhor ao meu

senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo de teus pés�

(ei=pen o` ku,rioj tw/| kuri,w| mou ka,qou evk dexiw/n mou e[wj a'n qw/ tou.j evcqrou,j sou

u`popo,dion tw/n podw/n sou). Entende-se que se trata de Melquisedec devido ao v. 4: �Tu és

sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec�. E o aspecto vingador de

Melquisedec (como instrumento de justiça de Deus) em 11QMelquisedec se encontra nos v.

5-6 do mesmo Salmo: �O Senhor, à tua direita, no dia da sua ira, esmagará os reis. Ele julga

entre as nações; enche-as de cadáveres; esmagará cabeças por toda a terra�. Quanto à função

de juiz de Melquisedec procede do Salmo 82, como o próprio 11QMelquisedec diz (ii.10-13).

De outro lado, de 11QMelch não se infere qualquer auto-sacrifício pelos pecados dos fiéis,

que é imprescindível para Hebreus (Hb 9.11-14), muito menos uma expiação derradeira; nem

há qualquer referência ou justificação de uma morte ultrajante de sua parte, e, por

conseqüência, nenhum registro da exaltação derivada disso. Melquisedec de

11QMelquisedec é triunfalista por completo. É dito, sim, que Melquisedec fará expiação

pelos filhos de Deus (ii.8). Nada se diz de uma filiação divina de Melquisedec; �filhos de

Deus� é genérico e é empregado para outros (ii.14); quanto a Jesus, �Filho de Deus� é o tema

predominante em Hb 1. É verdade que no segundo, Melquisedec não é explicitamente

declarado �Filho de Deus� como se faz em Hebreus. O caráter enigmático de sua pessoa é

que parece ser a matriz para lhe conceder que seja um redentor angelomórfico. Por isso,

pensamos que sua exaltação está mais para os moldes de Enoc, numa mescla que conflui as

descrições dos mesmos textos utilizados pelo autor de 11QMelch: Lv 25.13; Dt 15.2; Is 61.1;

Lv 25.10; Sl 82.1; Sl 7.8-9; Sl 82.2; Is 52.7; Lv 25.9.

4.6. Conclusão

No texto de Hb 7.1-10 predomina o objetivo principal de fundamentar a atribuição e

superioridade do sumo sacerdócio a Jesus. Diante disso, não surpreende que todos os

motivos agrupados em 11QMelquisedec não estejam presentes em Hb 7.1-10. Pelas

evidências que temos, não é possível afirmar que o autor foi dependente textualmente de

uma concepção de 11QMelquisedec. Os dois textos não dependem um do outro.

Todavia, como vimos, as similaridades entre as figuras de Jesus em Hebreus em sua

totalidade e Melquisedec em 11QMelquisedec são evidentes. As similaridades dos motivos

entre o Jesus sumo sacerdotal angelomórfico de Hebreus e o Melquisedec angelomórfico de

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11QMelch derivam-se de preocupações comuns. O anelo por um redentor celestial em que

convergem as funções de rei e sumo sacerdote, redentor, promotor da justiça e da paz, que

encarne ao mesmo tempo o triunfo sobre as forças do mal e uma divinização do humano,

resultante de uma comunhão com o Senhor estavam na ordem do dia. Destarte, o motivo do

sumo sacerdócio celestial era bastante difundido nas reflexões do Judaísmo do período do 2º

Templo, e por isso mesmo, o autor de Hebreus se encontrava a vontade, num terreno muito

fértil de tradições acerca de Melquisedec para a sua formulação de Cristo Jesus exaltado à

direita de Deus.

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CONCLUSÃO

O Jesus exaltado da Cristologia da Carta aos Hebreus compartilha a mesma confissão

expressa em quase todos os outros documentos do Novo Testamento. Mas o elemento

distintivo é o seu enfoque claramente no tema do sumo sacerdócio celestial de Jesus Cristo.

Isto não quer dizer que os outros textos do N.T. não façam alusão ao sacerdócio de Jesus,

mas que Hebreus o expressa enfaticamente.

A exaltação de Jesus ao lado direito de Deus como vice-regente angelomórfico

incorpora as diversas funções deste e, principalmente, a de sumo sacerdote celestial

prefigurada em Melquisedec (Hb 7.1-10). Destarte, o autor de Hebreus partilha e refaz as

considerações presentes em tradições angelomórficas de um mediador glorificado na

presença de Deus. Enquanto tais tradições especulam em torno de diversas figuras exaltadas,

como Miguel e algum outro anjo, Melquisedec ou outro patriarca, ou ainda o Messias

Araônico da Comunidade de Qumran, o autor de Hebreus não titubeia em confluir e atribuir

esse status a Jesus Cristo expressando o binitarismo do Cristianismo das origens.

Hebreus não inventa um novo modelo de messianismo em sua confissão cristológica,

mas partilha das considerações contemporâneas a respeito do sumo sacerdote exaltado. O

enfático interesse na figura do sumo sacerdote como encarnação das esperanças apocalípticas

deve muito ao seu próprio momento histórico e ao meio-ambiente cultural sócio-religioso do

Mediterrâneo do século I. O sumo sacerdote incorpora as atenções e expectativas religiosas

tanto no Judaísmo como também no mundo gentílico. Desde séculos atrás o sumo sacerdote

foi galgando mais atenção no terreno político-religioso da Palestina, suplantando até mesmo

a figura da instituição monárquica. Não surpreende que as funções de rei e sumo sacerdote

sejam confluídas em uma só pessoa, e que todo um arcabouço literário, ora a favor, ora

contra, tenha surgido nesse período. Como qualquer liderança humana, o sumo sacerdote

era alvo de aprovação e de rejeição, constituindo-se nos motivos de uma expectativa,

superior, exaltada e final. O sumo sacerdote na história do Judaísmo do período do Segundo

Templo fora capaz de substituir o rei em muitos momentos cruciais do povo, granjeando

tamanha autoridade e riqueza. Diante de suas conquistas e falhas, construiu-se um volumoso

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corpo de tradições que a despeito de seus pecados, e mesmo por conta dos pecados, em que

um mediador celeste surge como o depositário de tantas esperanças. Também a religião civil

do império romano possuía uma razoável concentração no sumo pontifex que era ao mesmo

tempo um magistrado e sacerdote prestigiado da cidade ideal.

No caso do Judaísmo, o sumo sacerdote perfeito é idealizado em caracteres

angelomórficos, e mesmo os anjos são descritos em tons sacerdotais de tal modo que, no

imaginário angélico, os arcanjos são concebidos como a contraparte celeste do sumo

sacerdócio terrestre ou vice-versa. Daí a massiva literatura da Comunidade de Qumran

testemunhar seu interesse e expressar de modo inegável tal ideal no Melquisedec de

11QMelquisedec, sumo sacerdote angelomórfico, vice-regente, redentor e juiz escatológico.

Os sacerdotes da Comunidade já assumiam sua identidade celestial nas confecções de textos

litúrgicos em que se viam como parte das hostes angélicas (cf. Os Cânticos do Sacrifício

Sábatico).

Mas o sumo sacerdote não encarnava essas expectativas somente devido ao prestígio

adquirido por sustentar a identidade nacional do Judaísmo do período do Segundo Templo.

Acrescente-se que a personagem do sumo sacerdote é além de paradigma de salvador

celeste, também é o paradigma do homem primordial (Urmensch), o ser humano perfeito, que

reabilitado em suas relações com Deus, pode usufruir de sua presença imediata e gozar da

imortalidade, típica dos anjos.

Todo esse arcabouço de esperanças foi passo a passo sendo construído, influenciado

inicialmente pelas elucubrações da aquisição de imortalidade, de uma esperança pos-mortem,

que só aumentou desde o período do exílio babilônico e na constante interação com as

culturas do entorno do Mediterrâneo do século I. Para alguns, como por exemplo, o império

romano, a possessão da imortalidade era a recompensa devida aos atos heróicos realizados

pelos mandatários provenientes das altas elites. Para outros (de uns poucos), a imortalidade

era fruto de uma vida bem-aventurada vivida em justiça, ou devido ao martírio como marca

de fidelidade ao compromisso da aliança do povo com Deus.

Contra esse pano de fundo cultural e sócio-religioso, a Carta aos Hebreus revela certa

simbiose quando encaixada nesse quadro referencial. Há uma cultura dominante que

privilegia o imperador romano como o salvador do mundo, mas que na prática sustenta uma

maquinaria opressora que faz dos seres humanos meros servidores do estado, massa de

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manobra, instrumentos do bem estar de poucos, que se sentem no direito de escravizar. Ou

seja, um Estado que desclassifica e exclui os seres humanos de seu direito básico, o da

existência em sociedade com seus plenos direitos de usufruir a felicidade, que segundo

Aristóteles, é o objetivo primeiro e último do Estado. Há também uma sub-cultura proposta

pelo judaísmo que se opõe ao império em termos religiosos, mas que lhe dá a mão como seu

aliado na impostura de seus próprios interesses. Nega-se, assim, o evento salvífico

estampado na caminhada do povo rumo à terra que mana leite e mel. Reagindo a isto, os

partidários de Qumran (e talvez, outros grupos subjacentes à literatura pseudepígrafa) se

afastam dos centros urbanos e refugiando-se no deserto da Judéia, não para se alienarem,

porém, muito mais para uma rearticulação estratégica com projeções bélicas contra o

opressor. Dá-se, então, que coletando abundante material, espera-se uma liderança

messiânica, ainda que dupla, com ênfase num idealizado sumo sacerdote angelomórfico que

redimirá os filhos de Deus e executará a sua vingança final. A cultura concorrente

representada e assumida pela comunidade de Hebreus, que expressa suas certezas e

esperança na Cristologia Angelomórfica do Jesus exaltado, desafia o pensamento dominante

no império romano, fazendo dos deserdados e reprovados, seja por questões de sangue, seja

de pureza ou socialmente, o verdadeiro povo de Deus. Contrariando abertamente qualquer

política de retaliação, o autor de Hebreus propõe aos seus leitores não abandonarem a

esperança adquirida por Jesus, e mesmo que a situação seja sufocante, exorta seus leitores a

não abandonar o estilo de vida de uma nova sociedade mesmo que isto custe à própria vida.

Este povo tem seu sumo sacerdote, Jesus, que é ao mesmo tempo o Filho de Deus e o

crucificado, que morre a morte de escravos e desclassificados, mas torna-se exaltado à direita

gloriosa de Deus, garantindo uma nova existência aos seus fiéis seguidores, a quem chama

de irmãos. A cidadania, que lhes é negada no plano terreno, é assegurada no plano celeste,

expressão de muito mais honra que a terrena, fazendo deles companheiros dos anjos e santos

do passado, habitantes da Jerusalém Celestial. Por enquanto, esses mesmos são peregrinos,

recém libertados da escravidão, caminhantes para o repouso divino assegurado não por

Josué (=Jesus), mas por Jesus Cristo. Mas que desde já fazem parte de uma comunidade

celeste formada dos primogênitos, justos transformados e elencados no livro da vida,

companheiros dos anjos de Deus.

A estratégia retórica do autor, vista desse modo, abarca tanto os ideais da existência

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greco-romana como a expectativa judaica por uma vida transformada. Acrescente-se a isso o

fato dos recentes eventos da destruição do Templo de Jerusalém e da instituição sacerdotal,

que são levados em conta na elaboração de seu discurso para uma comunidade crente que

enfrenta o desânimo e o cansaço provocados pela constante agressão à sua existência

humana, que a desfigura como mero material de sustentação de uma sociedade agressiva e

arrogante. O gênio do autor de Hebreus o faz coletar amplo material nas tradições israelitas

de resistência diante de outros momentos similares, mesmo momentos contemporâneos, a

fim de �exortar� seus leitores a permanecerem firmes em sua �confissão�. Não nega o

momento crucial vivenciado pelos leitores, mas relembra de outro tão difícil quanto o seu, o

da caminhada no deserto, que foi cheia de tentações para muitos. Tentações que podem fazer

perder a sua confiança no grande pastor das ovelhas frente à aflição do tipo de uma fome

momentânea, trocando o direito de �primogenitura� por um prato de lentilhas. Tal exemplo

medíocre deve ser contraposto ao do Cristo crucificado. Que apesar de pré-existente e sem

culpa alguma, sofreu um sofrimento terrível e vergonhoso, pois sabia que seu trabalho não

seria vão, conduzindo muitos irmãos à vida, resgatados do detentor da morte e da subvida.

A caminhada da Comunidade de Hebreus neste tempo é similar àquela do povo do

deserto até em sua própria identidade de um grupo de escravos que esperam uma cidadania

possível mediante a promessa de Deus. Hebreus faz, assim, uso da memória a tradição da

libertação de Israel e atualizando-a para a situação dos leitores.

O tema da vice-regência angelomórfica da Cristologia de Hebreus precisa ser vista

contra o pano de fundo do meio-ambiente sócio-cultural contemporâneo dos leitores. Jesus é

o herói supra-terreno que enfrentou a morte, mas que reina e intercede por seus irmãos no

Santuário Celeste. Ele pode ser cultuado, pois sem agredir os conteúdos da fé monoteísta, é

concebido como aquele que sustenta toda a ordem criada, ontem, hoje e sempre. Sua

exaltação encontra alguns paralelos na figura do herói greco-romano, que é imortalizado por

ter cumprido os trabalhos prescritos pelos deuses. Mas no contexto da sociedade

circundante, Jesus é o anti-herói, o não-cidadão. Para os leitores, porém, pessoas

desclassificadas socialmente, Jesus incorpora a sua própria identidade, pois o Filho Pré-

Existente de Deus deixa seu status elevado para se tornar semelhante aos seus irmãos, não

vivencia o cotidiano como um anjo, mas como um ser humano que partilha as mesmas

fraquezas dos que receberam a salvação em seu nome.

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