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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUCAS MONTALVÃO RABELO A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LUCAS MONTALVÃO RABELO

A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI:

ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO

CURITIBA

2009

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LUCAS MONTALVÃO RABELO

A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI:

ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO

Monografia apresentada ao Departamento de História como requesito parcial à conclusão do

Curso de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da

Universidade Federal do Paraná

CURITIBA

2009

3

RESUMO

Essa pesquisa visou compreender a produção dos mapas-múndi no período

renascentista. Para isso contou com analise tributária de Brian Harley e Marica

Milanese. Autores que trazem uma metodologia diferente para trabalhar com essas

fontes visuais. Assim, procurou demonstrar como os conjuntos de influências –tradição

e experiência - encontram-se presentes nos mapas renascentistas e, de um mapa para

outro como isso foi se modificando. Com isso, essa pesquisa visa um olhar voltado não

apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social

próprio da época em que este mapa encontra-se inserido. Observando-os como um

espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista.

4

SUMÁRIO

Introdução..........................................................................................................................5

Quadro de Imagens............................................................................................................6

A Herança Cartográfica...................................................................................................14

A Sociedade e os Cartógrafos..........................................................................................65

Conclusão........................................................................................................................89

Referências......................................................................................................................91

5

QUADRO DE IMAGENS

As referências aos mapas são as seguintes:

Mapa dos Salmos; Made Hereford; Fra Mauro; e Atlas Catalão. Retirados de: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 226-270 Henricus Martellus; Cantino; Diogo Ribeiro; e André Homem. Retirados de ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 55-60 Juan de La Cosa. Retirado de: Retirado de ASTON, Margaret. O Século XV. História Ilustrada da Europa. Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. 88.

6

INTRODUÇÃO

Os mapas são objetos que desde sempre exercem uma fascinação sobre o homem

dada a sua capacidade de dispor o mundo diante dos olhos. Essa pesquisa teve como

meta desvendar um pouco desse olhar voltando-se para um importante período da

história Ocidental, o Renascimento. Acompanhou-se, assim, o processo de produção de

mapas ao longo da segunda metade do século XV e o século XVI.

Esses mapas-múndi estavam inseridos em uma época importante de efervescência

dos debates acerca da geografia terrestre suscitados pelas relações entre o ideal de

mundo medieval, o conhecimento recente dos autores clássicos que a muito estavam

perdidos e as descobertas realizadas durante as viagens empreendidas pelos ibéricos. É

um período que representou um momento de síntese não somente na história da

cartografia, mas em muitos outros campos da história. Esse embate pode ser sintetizado

na afirmação de Maria Fernanda Alegria:

“A cartografia oferece-nos um excelente exemplo para ilustrar [o] complexo

confronto entre o que os livros e a tradição oral registram, entre o que os mestres

ensinam e o que se aprende com a própria experiência. Na luta entre esta dupla linha

de forças [tradição e experiência], a persistência do vivido pelos Portugueses teve

um papel fundamental na alteração das mentalidades. ” 1

Essa alteração de mentalidade refere-se à experiência dos portugueses ao longo

das grandes navegações. Pois, de acordo com João de Castro Osório foi através da

aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do mundo se apresentava

outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam, ou os autores clássicos.

Assim, todo o pensamento anterior foi sendo posto em confronto com a realidade, sem

que tivesse de ser desde logo abandonado pelas verdades nascidas da experiência vivida

e dos ensinamentos da realidade vista e observada.2 Essa mudança pode, então, ser

verificada nos mapas renascentistas.

Aos poucos eles deixam de ser predominantemente simbólicos e passam a

privilegiar uma representação geográfica, o que é enriquecido pelas informações

1 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 26. 2 Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16.

7

provindas das viagens portuguesas. No entanto, essas mudanças não ocorrem de forma

progressiva, mas sim lentamente e por vezes acontecendo retrocessos. As

representações do mundo seguindo o ideal medieval, como o exemplo dos mapas tipo

T-O3, em que a concepção de mundo é estritamente ligada ao modelo bíblico, vai sendo

suplantada pelas características ditas modernas, em que há a preocupação com a

correspondência ao “real”. Esse percurso cartográfico ocorre desde o final da Idade

Média, onde os relatos sobre viagens longínquas, até os confins da Ásia, como do

veneziano Marco Polo, proporcionam à Europa Ocidental os primeiros dados mais

seguros sobre áreas praticamente desconhecidas. Entretanto, essas informações

confundiam-se com fábulas que misturavam essas experiências com outras provindas da

Bíblia ou da literatura clássica. No período soma-se ainda o resgate das idéias de autores

clássicos provindas de fontes árabes ou bizantinas. Um importante caso é de Ptolomeu,

que é amplamente utilizado como base para construção de inúmeros mapas-múndi no

século XV. Sua autoridade muitas vezes entrou em conflito com as novidades trazidas

pelos relatos das viagens portuguesas, e, em muitos casos, suas informações se

sobrepujaram às provindas das viagens marítimas, levando ao descrédito o

conhecimento dos portugueses. 4

Nesse período os cartógrafos eram solicitados a criar um determinado mapa-

múndi para um monarca, ou quem o pudesse custear. A produção destes objetos tinha

um alto custo econômico, o que criava uma relação de dependência do cartógrafo, pois

ele deveria criar um mapa segundo as exigências daquele que o contratou. No entanto,

mesmo que estivesse criando para seu patrocinador, o seu produto final apresenta uma

série de elementos particulares, assim como, da sociedade na qual ele estava inserido.

Ou seja, seu produto final estava intimamente ligado com as questões envolvendo o seu

contexto próprio. Mesmo no interior de um movimento de valorização da experiência na

produção dos mapas-múndi, deve ser observada também essa particularidade referente

ao cartógrafo. Dependendo dos objetivos propostos para um determinado mapa ele

3 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press,1996, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2.ed. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005. 4 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004. p.

8

poderia se valer tanto mais da experiência do “real” como das informações da

“tradição”.

As fontes para essa pesquisa foram seis mapas produzidos ao longo dos séculos

XV e XVI. São obras pertencentes a um período de cem anos iniciando no mapa de Fra

Mauro (1459) indo até o Planisfério de André Homem (1559). Esses mapas-múndi

selecionados estão entre os que sobreviveram, e de alguma maneira são marcantes na

história da cartografia renascentista. Busca-se apontá-los e mostrar de forma breve

porque são considerados grandes marcos:

-Fra Mauro (1459): Mostra o início das explorações portuguesas na costa da

África além de incluir os relatos de viajantes como Marco Polo nas representações

geográficas;

-Henricus Martellus (1489): É considerado um dos primeiros mapas

renascentistas. Um marco por ter iniciado a inclusão das descobertas portuguesas e de

viajantes como Marco Polo mais a fundo do que Fra Mauro;

-Juan de La Cosa (1500): É o primeiro registro cartográfico do Novo Mundo

sendo resultado direto da descoberta empreendida por Cristóvão Colombo;

-Cantino (1502): Uma referência na cartografia ao se tratar de Grandes

Navegações, mostra um continente americano definido mais claramente que no mapa de

Juan de La Cosa. O contorno do continente africano é mais próximo ao real nas

proporções norte/sul. Por isso, este mapa é considerado o primeiro registro cartográfico

“moderno”.

-Diogo Ribeiro (1529): É considerado uma das melhores produções cartográficas

deste período. Ele inova por colocar os resultados das expedições de Colombo, Caboto,

dos irmãos Corte Real, Fernão de Magalhães, entre outros;

-André Homem (1559): O planisfério de André Homem mostra um avanço com

relação ao contorno dos continentes. Nele já aparecem representações mais fiéis da

América, África e Ásia. A partir desta obra os grandes traços da geografia do planeta

estavam construídos.

A grande questão buscada a partir desses mapas foi analisar como eles dispunham

as informações do ofício cartográfico provenientes de duas fontes: dos modelos legados

pelo período medieval e pelos autores clássicos, representando a tradição erudita; e as

cartas-portulano e mapas produzidos diretamente das grandes navegações, inserindo a

experiência. Dessa forma, como o cartógrafo ao produzir seu mapa incluía essas

9

informações? Existia a predominância de uma, ou uma combinação entre elas? E como

ela se realizava?

Para responder a essa questão foi utilizada uma metodologia de estudo

fundamentada nas propostas de análise cartográficas empreendidas por J. Brian Harley.

Grande crítico das abordagens tradicionais, afirma que ao se estudar os mapas deve-se

estar atento ao contexto político próprio para compreender como o poder opera através

do discurso cartográfico, e os efeitos desse poder na sociedade. Sua proposta é estudar

os mapas mais como textos do que como imagens da natureza. Pois os mapas

representam uma linguagem gráfica, uma construção feita a partir da realidade

carregada de intenções e conseqüências que podem ser estudadas nas sociedades da

época da produção de um determinado mapa. Igualmente aos livros, eles também são

produtos de mentes individuais assim como de valores culturais mais amplos de

sociedades específicas. 5

Com isso, essa pesquisa visou um enfoque voltado não apenas às questões

técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em

que este mapa encontra-se inserido, observando-o como um espelho da sociedade que o

produziu dentro do embate renascentista. É, portanto, sobre essa nova ótica acerca da

história da cartografia que essa pesquisa se orienta.

No primeiro capítulo desta monografia faz-se uma descrição do contexto das

produções cartográficas acessíveis aos cartógrafos renascentistas. Elas foram

subdivididas em duas partes. A primeira remete aos mapas-múndi produzidos na Baixa

Idade Média, tanto esquemáticos, como os já mencionados T-O, quanto descritivos.

Depois, no século XV incluiu-se a influência de Cláudio Ptolomeu, considerado o maior

astrônomo da Antiguidade, que deixou vários escritos, entre eles sua Geographia. Essa

obra retornou ao Ocidente no século XV e trouxe uma renovação das representações

cartográficas ganhando o status de autoridade no período. Esse primeiro grupo

pertencente a uma tradição erudita de uma cartografia essencialmente terrestre o que

constituiu uma barreira às inovações de ordem prática.

A segunda subdivisão refere-se primeiramente, as produções das cartas-portulano,

iniciadas no século XIII, provenientes das experiências no mar Mediterrâneo. Em

seguida inclui as navegações portuguesas iniciadas após a conquista de Ceuta em 1415.

Com elas foram produzidos todo um conjunto de mapas das costas africanas utilizados

5 HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica,

2005, p. 60 e 61.

10

para fins náuticos. Infelizmente esses exemplares cartográficos não sobreviveram

devido ao seu desgaste, mas os relatos sobre eles aparecem nas fontes da época. Como é

o caso das notas no mapa de Fra Mauro. Toda essa nova produção cartográfica trouxe

um conhecimento sobre o continente africano, em um primeiro momento, e a América

posteriormente, influenciando decisivamente as novas produções cartográficas a partir

da segunda metade do século XV. Desta forma, as cartas-portulano mediterrânicas e

atlânticas nasceram da experiência marítima fruto de fins fundamentalmente práticos.

Em um segundo capítulo procurou-se descrever o contexto do autor e da

sociedade. Aqui se estabeleceram as especificidades relacionadas com o autor,

diferentemente do legado provindo de outros mapas. Foram investigadas as possíveis

influências dentro da arte de cartografar desses indivíduos. Isso incluiu os responsáveis

por encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as

disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a

imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi

principalmente no século XVI.

O estudo de cartografia iniciou-se no século XIX. O primeiro grande marco para

os estudos realizados nos mapas remontam esse século com o crescimento dos acervos

cartográficos das nações, o desenvolvimento de um mercado de antiquário nos Estados

Unidos e Europa, e a partir de 1850, a institucionalização da Geografia enquanto

ciência. Neste momento, a história da cartografia era apenas um campo auxiliar para o

estudo da Geografia. Era entendida como a história dos descobrimentos e exploração da

Terra. Sua função era tornar os documentos cartográficos acessíveis a outras áreas do

conhecimento. Entretanto, a partir da década de 1930, três fatores propiciaram sua

independência: o início das publicações das histórias gerais da cartografia; a criação de

uma revista voltada para a divulgação de estudos feitos sobre os mapas, a Imago Mundi;

e o início da Cartografia como disciplina independente da Geografia. Essa emancipação

acadêmica inicialmente foi efêmera mais iniciou uma série de questionamentos sobre o

estudo dos mapas. O resultado foi a aplicação de novas bases filosóficas e teóricas, alem

da utilização de novas técnicas no estudo dos mapas antigos. 6

A independência da cartografia trouxe, com isso, o início de interpretações dos

mapas enquanto meios de comunicação. Essa nova perspectiva suscitou uma série de

debates conceituais, abordagens dos mapas como artefatos e meios de comunicação,

6 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOSP, 2004. p. 68.

11

alem da ênfase dada aos processos técnicos de sua produção. Os historiadores da

cartografia passaram, então, a focar mais a natureza de artefato do mapa, do que o seu

conteúdo informativo. É importante ressaltar que todo esse crescimento da disciplina

com essa nova perspectiva foi realizado por particulares, enquanto que a academia

estava à margem dessas discussões. Os particulares criaram sociedades nacionais e

internacionais promovendo encontros, além do estabelecimento da Internacional

Cartographic Association Commition for the History of Cartography. Outra grande

contribuição foi a produção crescente de artigos que discutiam questões metodológicas

e promoviam uma avaliação e crítica dos objetivos da Historia da Cartografia.7

Essa nova abordagem, que também é presente em Harley, feita pela Historia da

Cartografia é sintetizada na frase de Christian Jacob:

“(...) o mapa tornou-se um objeto opaco, que retém o olhar sobre ele mesmo. O mapa entrou na era

da suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não se pode mais, atualmente, considerar a história da cartografia

sem uma dimensão antropológica atenta às especificidades dos contextos culturais, e teórica, que reflita

sobre a sua natureza de objeto e os seus poderes intelectuais e imaginários.”8

Atualmente os estudos focados nessas novas abordagens da história da cartografia

são poucos. O país foi quase intocado pelos movimentos de renovação teórica dos

últimos trinta anos da história da cartografia. Porém, existem as pesquisas empreendidas

por Enali De Biage, formada em geografia, que se utiliza das proposições empregadas

por B. Harley em sua pesquisa concebendo os mapas como construções sociais

enfatizando a questão discursiva dos mapas. Em sua tese intitulada Cartographie et les

représentat du territoire au Brésil a autora faz um panorama das representações

cartográficas do Brasil desde o período colonial até o século XX.9 Essa iniciativa é

acompanhada pelos estudos relacionados a toponímia por Íris Kantor, e os mapas

jesuíticos produzidos ao longo do século XVII no estudo de Artur Barcelos. Acrescenta-

se ainda, as pesquisas de Maria de Fátima Costa que estuda como criou-se uma visão

mítica, a partir da cartografia do lago indígena de Xarayes.

Outra importância desta pesquisa foi mostrar essa forma alternativa de se estudar

os mapas. Eles podem ser trabalhados como uma fonte principal, não necessariamente

com um papel secundário, meramente de apoio. Isso busca contrariar as abordagens

tradicionais ligadas a cartografia positivista preocupada unicamente com os aspectos

técnicos. Esse tratamento destinado aos mapas vem da tendência dos historiadores

7 Ibid. 8 Ibid, p. 1. 9 Ibid, p. 75.

12

tradicionais da cartografia considerar a historia dos mapas de uma forma progressiva.

Consequentemente passam a delegar aos mapas antigos, ou “não exatos”, um papel

descartável. Entretanto, através da experiência mostrada por essa pesquisa, aplicando-se

um método diferente, busca-se suscitar inúmeras pesquisas atentando-se a estudos

alternativos aos tradicionais.

Isso remete a outro ponto: essa pesquisa foi uma forma de desmistificação do

tema. A história da cartografia é comumente interpretada com certos preconceitos. O

principal, como mencionado, remete ao entendimento evolucionista das representações

cartográficas. Os mapas teriam uma evolução progressiva, saindo da total falta de

precisão dos mapas medievais e encontrando a representação racional e ideal da Terra a

partir do Iluminismo. Esta pesquisa busca questionar essa visão e apresentar uma

interpretação atenta às especificidades históricas, desmistificando algumas idéias,

devolvendo aos mapas antigos a sua importância enquanto parte de seu contexto

específico.

Ao se trabalhar com mapas inevitavelmente ocorrerem relações entre diversas

disciplinas como a História, a Cartografia e a Geografia. Portanto, este estudo torna-se

um diálogo entre campos de saber diferentes contribuindo para a importante prática da

interdisciplinaridade. Atualmente existe um consenso de que esta relação é algo

importante e fundamental para o intercâmbio sadio de experiências quebrando os muros

invisíveis criados pelos homens ao separarem as disciplinas. É importante lembrar que

este diálogo aqui buscado deve ocorrer sem a perda no foco da pesquisa. Sendo esta

uma pesquisa histórica, ela não pode perder o seu referencial para que não comprometa

a experiência interdisciplinar.

E finalmente, ao se estudar os mapas pertencentes ao século XV e XVI contribui-

se muito com a elucidação de um período importante da história ocidental. Os mapas

são um dos caminhos mais significativos percebidos ao se trabalhar a mudança de uma

concepção de mundo medieval para uma concepção de mundo moderna. Eles são uma

representação gráfica de todo um conjunto de pensamento e crenças de uma

determinada época através de um autor específico. Analisar essa série cartográfica do

século XV e XVI é uma forma de acompanhar essas mudanças ou permanência no

pensamento; compreendendo que dentro de um mesmo período podem existir olhares

diversos. Desta maneira, ao se estudar os mapas do início da modernidade faz-se a

importante contribuição de mostrar como os elementos ligados ao encontro de duas

concepções de mundo estão presentes nos mapas. Além de se estar atento a

13

especificidade do olhar do indivíduo. Assim, com esse estudo mostra-se como o peso

dos autores clássicos e o saber medieval relacionavam-se com as novas fontes de

informações geográficas, as descobertas ibéricas.

14

1 – A HERANÇA CARTOGRÁFICA

A etapa inicial na análise dos seis mapas dessa pesquisa buscou identificar de que

forma ocorreram as influências provindas de outros mapas. Elas estavam relacionadas

diretamente ao ofício do cartógrafo, remetendo desta maneira, à história das produções

cartográficas. Ou seja, o legado provindo das tradições de se elaborar um mapa, todo o

repertório mental e social implicado no momento da produção. Assim, resgatou-se toda

a forma de composição dos mapas-múndi medievais. Além das influências de outras

obras cartográficas produzidas ao longo do século XV: pertencentes a Geographia de

Ptolomeu e provindas das grandes navegações empreendidas pelos portugueses e

espanhóis. Dessa forma, procurou-se constatar de que maneira essas produções

cartográficas influenciaram na construção dos mapas-múndi de Fra Mauro (1459),

Henricus Martellus (1489), Juan de La Cosa (1500), Cantino (1502), Diogo Ribeiro

(1529) e André Homem (1559), as fontes dessa pesquisa.

Essa forma de identificação das influências provém do reconhecimento da relação

direta entre os mapas contemporâneos e aqueles que se tornaram uma tradição. Pois a

interligação entre um e o outro se deve a importância representada pelo legado histórico.

Pois, aplicar um ofício implica utilizar-se de algo que já foi feito anteriormente para se

apreender como fazer determinado produto. Isso se aplica aos mapas com o uso de uma

mesma simbologia. Entretanto, ela vai ter particularidades como signos dispostos de

maneira diferente representando inovações ou preferência específica do autor. Dentro

dessa escolha em prosseguir com a convenção feita ao longo de muitos anos e a

inovação a partir de outras fontes encontra-se o confronto entre a tradição erudita e a

experiência náutica.

Segundo J. Brian Harley, um mapa sempre está relacionado inevitavelmente com

outro. Isso se deve à contínua influência exercida pelo ofício cartográfico que é passado

de geração a geração. Com isso, é possível a identificação de suas relações simbólicas

através da comparação de um mapa ao lado de outros cronologicamente anteriores

traçando, desta forma, uma genealogia das suas influências e assimilações. Este método

é chamado por Harley de cartografia comparativa10, que parte então da idéia de que

“nenhum mapa está hermeticamente cercado em si mesmo, nem pode responder a todas

10Ver: HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 69.

15

as perguntas que desperta.”11. Somente através da análise das relações entre as

produções cartográficas é que se podem desvendar as questões internas presentes na

construção de um mapa. Ou seja, os símbolos estabelecidos podem apenas ser

compreendidos dentro de um paralelismo com os exemplares produzidos anteriormente.

Para realizar o estudo comparativo de mapas, Harley propõe uma divisão em três

etapas. Cada uma delas vai justamente captar os níveis das relações cartográficas. A

primeira tem o objetivo se aperceber das características topográficas lineares nos mapas,

como de costas, rede de rios ou um sistema hidrográfico. Essa técnica, de acordo com

Harley, é muito utilizada por estudiosos da área da cartografia.12 O segundo aspecto

apontado refere-se ao estudo de nomes de lugares ou toponímia. Uma forma de

construir genealogias e perfis de origem podendo ser útil para estabelecer a

identificação temporal e autoral de mapas que antes se encontravam dispersos. E o

terceiro método da cartografia comparativa, a cartobibliografia, é a que possuí a maior

quantidade de publicações. Seu objetivo é reunir uma série de mapas impressos sobre a

mesma superfície destinando-se ao estudo das técnicas de impressão aplicada aos

processos que utilizam as placas de cobre, a litografia e outras formas de impressão de

mapas. 13

Os métodos sugeridos por Harley são propostos para serem trabalhados com todo

o tipo de fontes cartográficas. Isso inclui as produções realizadas desde os tempos

remotos, até aqueles produzidos no século XX através da cartografia digital. Isso

possibilita uma abertura enorme nas possibilidades de estudos.

Através do método da cartografia comparativa, essa pesquisa procura estabelecer

as características lineares nos mapas disponíveis para os cartógrafos estudados e como

elas são, então, herdadas. Uma das especificidades deste recorte temporal, final do

período denominado medieval e início da dita modernidade, são as características

provindas das representações de origem religiosa ou mitológica clássica que não

corresponderiam ao “real” topográfico, mas que acabavam figuradas nas representações

cartográficas. Como exemplo, teve-se a localização em alguns mapas do paraíso terreno,

de monstros marinhos, de cidades bíblicas entre outros.

1.1 - Os Mapas-Múndi Medievais

11 HARLEY, J. B., Op. Cit. 12 Ibid. 13 Ibid, p. 70 e 71.

16

Ao se analisar os mapas antigos é importante estar atento a considerações

temporais importantes. Trabalhar com mapas anteriores ao Iluminismo exige uma série

de cuidados por parte dos estudiosos, como nos chama a atenção Maria Fernanda

Alegria. De acordo com a autora, os mapas do final da Idade Média e início do

Renascimento14 não possuem nenhuma relação direta com os atuais. Ambos diferem em

vários âmbitos: nas formas, no conteúdo, nas dimensões e na abundância de

produções.15 Essa constatação é extremamente importante, pois a partir de visões

positivistas não atentas à historicidade, produziram-se olhares reducionistas e

evolucionistas nos estudos do período dito “renascentista”.16

Para evitar esses descuidos fez-se necessária uma análise do termo mapa-múndi.

Ele foi utilizado ao longo dos séculos, porém seu significado correspondente se alterou

com o passar do tempo. De acordo com Denis Woodward, a palavra latina mappamundi

origina-se de mapa (toalha) e mundus (mundo) levando a entender que seu significado

seria de representação gráfica de toda a Terra, como vêm sendo empregado atualmente.

No entanto, na Idade Média, o termo foi utilizado com outro sentido. De acordo com

Maria Fernanda Alegria, mapa-múndi foi usado também transmitindo a idéia de

“pintura do mundo”, não correspondendo a uma representação que utilizaria as regras

científicas da cartografia pós-Iluminismo. “A figuração poderia não contemplar toda a

Terra, ou então abarcar a Terra numa perspectiva global, a Terra no Universo.” 17

Segundo a autora, hoje se conhecem cerca de mil e cem mapas-múndi medievais

incluindo os do século XV. Aproximadamente novecentos encontram-se em pequenas

dimensões espalhados em livros manuscritos. Aí se inclui casos de mapas de tamanho

inferior a 4 cm como na representação em estilo T-O de Salústio feito no século XII. Os

mapas-múndi presentes nesses livros possuem a mesma forma das letras encontradas

nos textos escritos, o que confirma que na Idade Média produzir um mapa-múndi não

era função específica dos cartógrafos. No caso dos exemplares soltos, eles podiam 14 Esse termo na verdade é inexato como afirma Delemeau, bem como Idade Média que serviram muito para criar grandes preconceitos históricos. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.19. 15 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 27 16 Para mais detalhes sobre o início dos estudos cartográficos positivistas, no final do século XVIII e início do XIX, ver CATTANEO, Angelo. “L’Atlas del Visconte de Santarém: Uma storia culturale europea tra erudizione, orientalismo e colonialismo” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957. 17 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Essa discussão sobre o termo mapa-múndi encontra-se também expressa em RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº14, pp. 11-26.

17

alcançar grandes dimensões, como cerca de 3,5 m no mapa de Ebstorf do século XIII.

Além da dimensão, os objetivos dos mapas medievais também contrastam com os

atuais. O rigor geométrico não fazia parte das representações cartográficas, ou seja, não

havia necessariamente uma correspondência espacial do local figurado. O simbolismo

nas representações gráficas, nas formas, tinha tanta ou mais importância do que a

localização de fenômenos e suas relações no espaço. Nos mapas-múndi medievais há

figurações, com funções alegóricas e abstratas, que se aliam às abundantes informações

escritas. O simbolismo não é apenas expresso pela palavra, mas também por formas

gráficas. Esses exemplos mostram como os mapas-múndi medievais tinham afinidades

com as crônicas medievais, pois também registravam acontecimentos distantes no

tempo através de elementos gráficos com uma função simbólica. A influência de fontes

bíblicas e clássicas está presente, mas encontra-se também a padronização de

convenções gráficas, tanto na forma principal, como em sua distribuição interna, além

do padrão de cores para marcar especificidades: o mar Vermelho frequentemente

representado com a cor vermelha; os outros oceanos e mares com o azul ou verde; os

rios com o azul, ou o azul-esverdeado, o verde ou o cinzento; o relevo com o castanho

ou verde, mais dificilmente o vermelho.18

Complementando os apontamentos de Alegria, Kimble considera os mapas

medievais responsáveis por refletirem as ideias comuns da época, incluindo as teorias

dos gregos, as mitologias pagãs e os sistemas de cosmografia cristã. Para ele os mapas

não representavam o conhecimento geográfico da Idade Média, mas sim a concepção de

mundo da época. Essa forma de expressão era tão importante que as imagens criavam

muito mais eficazmente uma imediata compreensão do que a palavra escrita. Até as

ideias geográficas dos estudantes medievais foram fortemente influenciadas por esses

mapas. 19

Nos mapas da Idade Média ocorreria o que Kimble chama de “amor ao

ornamental”. Os livros manuscritos que eles acompanham referiam-se à história e à

cosmografia ou em outros casos eram feitos por encomenda, como o caso do atlas

18 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Consultar também RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.14. 19 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p.219. A constatação da influência dos autores clássicos na construção dos mapas medievais pode ser observada ainda em THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.42.

18

catalão de 1375 e o mapa-múndi Estense. Os mapas pequenos serviam como ornamento

das capitulares de manuscritos com iluminuras. Outros mapas possuíam um caráter

maior de obra de arte e não tanto para servirem de informação, pois representavam uma

estrutura maleável na qual objetos de interesse popular, muito mais do que científico,

poderiam ser desenhados. É como se ele fosse uma forma de expressar o sentido do

maravilhoso e no mapa estivessem contidas todas as maravilhas provindas da literatura.

Desta forma, um mapa-múndi simbólico do período medieval deveria ser visto como

um espécie de romance ilustrado. Não se podendo negar o valor prático que buscavam

fornecer, pois para além da mística, haveria uma imagem atualizada do mundo que

busca compreendê-lo no todo. Como exemplo têm-se a procura de uma solução para o

enigma do continente africano, que não era conhecido totalmente.20.

O caráter religioso sempre se fazia presente nos mapas.21 Alguns eram executados

para mostrar a extensão da fé cristã sobre a Terra. Assim, esses mapas garantiriam

primeiramente a proeminência dos aspectos bíblicos sobre os conhecimentos

topográficos e, segundo, a sobrevivência de certas tradições na época em que o

conhecimento recente estava influenciando enormemente pelas cartas marítimas

gerando um encaminhamento em direção ao real topográfico. Como exemplo tem-se a

persistência na representação geográfica do Paraíso Terreno nos mapas-múndi, mesmo

após a importante influência das cartas marítimas. O destaque dado à Terra Santa era

dado pela proporção de aproximadamente 1/3 do continente asiático, como mostrava o

mapa dos Salmos.22

Para Kimble, os motivos para que os mapas-múndi fossem afastados da

representação fiel da realidade geográfica seria de que as amarras da tradição (tanto

clássica quanto eclesiástica) sobre a mentalidade medieval fazia com que os cartógrafos

usassem símbolos esquemáticos e imaginativos. A tradição clássica era dada por meio

de vários autores, entre eles Homero e Anaximandro com uma ideia de superfície

terrestre plana sem projeções, um disco cercado pelo “rio oceano”. A influência clássica

também se dava por criaturas da mitologia grega e romana popularizada por Hesíodo,

Homero e Plínio e outros autores da Antiguidade. Essa influência encontrava-se

também na nomenclatura dos mapas. Os lugares famosos do mundo antigo reviviam nos

mapas-múndi. Tróia e Cartago rivalizavam em importância com Roma e Jerusalém. Nos

20 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p222. 21 Para mais informações sobre o caráter religioso presente nos mapas-múndi medievais ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 20 e 21. 22 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p.228.

19

mapas-múndi do período medieval não havia, portanto, uma preocupação com a

topografia real.

Isso foi encarado por estudiosos positivistas do século XIX como uma “visão

errônea do mundo”. Podendo ser identificado através de um ditado proferido pelo 2º

Visconde de Santarém - um importante estudioso de cartografia do século XIX

considerado um dos fundadores dessa área do saber, e, o fundador do termo

“cartografia23 - que dizia que os mapas medievais seriam a prole bárbara dos

exemplares da Antiguidade. 24

1.2 – Os Mapas-Múndi Esquemáticos e Zonais

Dentro de toda essa produção cartográfica anterior ao século XV no ocidente

europeu grande parte encontrava-se dentro do estilo simbólico utilizando ou não de

esquemas pré-determinados. Essa formas de produção ainda influenciavam toda a

produção do Quinhentos e ainda influenciaram as produções posteriores. Existiram

vários estudos buscando uma maneira de classificar esses tipos de representações

cartográficas, aqui se adotou os esquemas classificatórios propostos por D. Woodward,

que dividiu os mapas medievais em quatro grandes grupos.25

O primeiro grupo de mapas medievais seriam os mapas tripartidos esquemáticos.

Esse grupo possui a maior quantidade de produções em relação aos outros até o século

XV. Uma das suas origens encontrava-se no tipo esquemático proposto por Isidoro de

Sevilha (c.560-636) - cujo original não sobreviveu – sendo um dos mais divulgados

possuindo mais de seiscentos exemplares.26 Os cartógrafos da época confiavam na

autoridade deste autor clássico que influiu na representação do Paraíso como dizia:

“limitado por todos os lados por um muro alto de chamas... De maneira que o fogo

chega até o céu.”27 Nesse esquema conhecido como “T-O” o oceano rodeava, como um

grande “O” circular, os três continentes conhecidos, Europa, Ásia e África, que se

23 GARCIA, João Carlos. “Mapas e Atlas do Visconde de Santarém: A prioridade no descobrimento da África Ocidental” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957, p.7. 24 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p. 227.. 25 WOODWARD apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 26 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 27 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 225.

20

encontravam separados por duas linhas aquáticas referentes ao mar Mediterrâneo e os

rios Don e Nilo, que possuiam o formato da letra “T”. 28

O objetivo desses mapas não era ser uma representação rigorosa da superfície do

Planeta, mas corresponder a uma interpretação provinda das Sagradas Escrituras. O teor

religioso, como mencionado, estava sempre presente, com o maior exemplo sendo a

localização da cidade de Jerusalém29 na posição central. Isso envolvia a importância

dessa cidade frequentemente dominada no século XIV. Essa centralidade era

confirmada por inúmeras teorias como nas palavras de Ezequiel: “Eu a coloquei no

meio das nações e dos países que estão em torno dela.” 30 Além de Jerusalém, as

histórias do Velho Testamento eram uma constante nos mapas medievais, como a Arca

de Noé, a punição da esposa de Lot, a destruição de Sodoma e Gomorra, a passagem

pelo Egito e pelo Êxodo. Entretanto, a maior lenda referia-se as terras de Gog e Magog

onde se acreditava que Alexandre, o Grande, teria feito uma barreira em torno do Mar

do Norte. Desse lugar, o povo que o habitava marcharia “no final dos tempos” trazendo

morte e destruição para toda a cristandade.31 Comprovando que a fronteira existente

entre a realidade vivida e a aprendida com os autores clássicos foi indefinida até o

século XVI, e mesmo posteriormente. Mostrando como os mapas-múndi medievais não

tinham uma preocupação em representar apenas o tempo contemporâneo, mas sim uma

confluência de fatos e passagens consagradas de épocas distintas. 32

O mapa dos Salmos é um exemplo desse grupo de mapas. Nele aparece

claramente a influência religiosa, com o Cristo representado no alto acompanhado por

dois anjos.33 O “T” referente ao mediterrâneo, o Don e o Nilo encontra-se mais ao sul, e

ainda existe o destaque feito ao Mar Vermelho mais ao nordeste. No canto direito

28 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO, 1994; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. Cit. 29 Para mais detalhes sobre a posição da cidade de Jerusalém na Idade Média ver: DUBY, Georges. Europa em la Edad Media. Barcelona: Paidos, (?), p.15. 30 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 227. 31 Ibid,.p..227. 32 Ver RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.20 e 21. 33 Essa posição de Cristo no mapa é sintomático da relação do religioso com o espaço físico. No século XIII estava em alta um pensamento atribuído a S. Dinis que resumiria toda a mística do pensamento cristão da época. De acordo com Duby: “Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo sua capacidade, isto é, segundo o nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou.” Trecho retirado de DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. Arte e a Sociedade (980-1420). São Paulo: Editorial Estampa, 1978, p. 105.

21

encontram-se figuras humanas deformadas características das representações

iconográficas da Idade Média.

Figura 1 - Mapa do Salmo (século XIII).

No segundo grupo encontram-se os mapas tripartidos não esquemáticos. Eles

mantinham os três continentes habitados dos mapas T-O esquemáticos, mas eram

desenhados com menos rigidez. Este grupo incluiu vários tipos, mas os mais conhecidos

eram os que se baseavam em Paulo Orosio34 e os que receberam a sua influência e de

Isidoro de Sevilha.

Um exemplo deste grupo é o mapa de Hereford (c.1290). Nele Jerusalém não se

encontrava no centro, e o Paraíso passou a ser localizado no Extremo Oriente. Motivo

ocorrido após as viagens de Odorico de Pordenone e Marco Polo que demonstraram

estar ele localizado no continente asiático. A representação desse local sagrado

sobreviveu após a Idade Média aparecendo em representações cartográficas até o século

XVII. Sendo um importante exemplo da inclusão de locais bíblicos dentro de uma

34 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29.

22

representação plana da Terra, ou seja, os locais espirituais provindos da leitura da Bíblia

eram figurados sem que isso causasse nenhum tipo de “erro” ou delito cartográfico.

Muito pelo contrário, era parte das tradições em voga no período. 35

Figura 2 – Mapa de Hereford c.1280

Outra espécie de mapas são os mapas zonais. Eles se baseavam no mapa de

Macróbio (c.395-436) que não se filiava nos ensinamentos da Igreja cristã, mas na

filosofia tradicional greco-romana. Seu esquema foi retirado de um comentário de

Macróbio a um estudo de Cícero (51 a.C.) Commentarius ex Cieronis in Somnium

Scipionis, datado de c. 430 d. C. Nessa dissertação, Macróbio expôs as ideias existentes

sobre o sistema-mundo, ilustrando as suas observações com um diagrama. O autor

retomou o esquema quadripartidário do mundo de Crates de Mallos (c.168 a.C.) e

afirmava que o Oceano circundava o globo correndo em duas direções contrárias,

partindo de um rio oceano principal, situado na zona tórrida, Alveus Oceani, que corria

por debaixo da superfície do mar. A leste e a oeste desta zona equatorial central o

Oceano dividia-se em dois braços, que fluíam para norte e para o sul separando as

regiões austrais das setentrionais. Das duas zonas temperadas, só a setentrional seria

habitada e a zona austral seria desconhecida, desconhecendo qual seria a espécie de

35 KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. cit., p.225. Ver ainda THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.45.

23

homens que a habitaria, chamados de antípodas36. Esse falta de conhecimento seria

devido a barreira representada pela zona tórrida, que impediria a comunicação com eles.

Para além das duas zonas temperadas e da zona tórrida central, marcadas pelos

paralelos, haveria ainda duas zonas polares. Hoje se conhece mais de uma centena de

manuscritos desta obra anteriores a 1500.37 Essa concepção planetária zonal ainda

mostrava-se presente no início do século XVI em Duarte Pacheco Pereira, na sua obra

De Situs Orbi, como testemunha o estrato a seguir:

“e em havendo mais matéria afirmaram que a terra neste meio é posta com o

centro e de toda a parte é cingida pelo mar e ela mesma em duas partes, que

hemisférios são chamados, desde oriente dividida até ocidente volvendo em oriente por

cinco zonas é repartida.” 38

Figura 3 – A concepção de mundo de Macróbio, c. 1485.

36 Vários autores defendiam a existência dos antípodas incluindo Crates de Mallos, e, posteriormente, Pomponius Mela e Macróbio, herdeiros da tradição helênica. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit., p.50. 37 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. e RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 15 e 16. 38 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991, p. 435.

24

O último grupo de mapas é dos mapas-múndi quadripartidários. Eles eram

baseados na produção do Beato De Liébana (730-798), um monge beneditino que

produziu seu esquema cartográfico de representação da Terra quando vivia no Mosteiro

de Santo Toribio de Liébana, perto de Santander. O esquema encontrava-se presente em

sua obra Commentaria in Apocalipsin, de 776, onde o Beato de Liébana parece ter

elaborado dois tipos de mapas, de que o mais conhecido apresentava forma oval. A

novidade é a figuração de um quarto continente, que o monge considerava desabitado

pelo excessivo calor. Uma cópia do Apocalipsin, datada de 1189, esteve no mosteiro de

Lorvão e guarda-se agora na Torre do Tombo, em Lisboa. Neste exemplar reproduziu-se

uma parte do mapa-múndi oval do Beato em que se localizava a leste o Paraíso Terreno

numa vinheta quadrada, cordilheiras com forma dentada, rios bem assinalados e peixes.

Em alguns manuscritos nasciam no Paraíso quatro rios: Nilo, Indo, Tigre e Eufrates.

Este mapa pode ser considerado uma reinterpretação do esquema proposto por

Macróbio.39

Esses grupos de mapas simbólicos do período medieval mostravam tentativas para

uma compreensão cosmográfica universal do mundo religioso em que se vivia, assim,

pouco interessava aos cosmógrafos as representações de caráter realista. Preocupavam-

se muito mais em incluir as fontes tradicionais da Roma antiga, como Plínio e o

Itinerário de Antonio Pio, com Macróbio e Isidoro, do que colocar somente as

realidades topográficas.

Nesse momento buscou-se perceber de que forma aparecem nas fontes dessa

pesquisa as características das produções cartográficas simbólicas medievais; como

esses mapas do século XV e XVI conservavam as características herdadas por séculos

no ocidente europeu.

No mapa de Fra Mauro, produzido no ano 1459, existem inúmeras referências

identificáveis diretamente. Primeiramente, na parte exterior ao mapa aparecem várias

características herdadas dos mapas-múndi medievais. No canto superior esquerdo

encontra-se descrita a configuração cosmográfica universal dividida segundo as esferas

que se acreditavam existir na época, fruto de uma combinação de ideias de Aristóteles e

de Ptolomeu. Partindo do centro para o exterior encontram-se a Terra, depois o Fogo,

em seguida a Lua, Mercúrio, Vênus, e o Sol. Depois ainda estão presentes outros

planetas e por fim há o Scielo. Esse plano universal descendente dos clássicos

39 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Lisboa: Caminho, 1994, p. 205.

25

encontrava uma ligação com o ideal geocêntrico típico do pensamento cristão. A

hierarquização celeste em Fra Mauro é uma herança da solução medieval de conciliar a

concepção bíblica de uma terra plana e a concepção grega de terra esférica. Assim, ao

colocar a representação esférica no exterior do mapa, o cartógrafo se remete a ambas as

tradições, sem negar nenhuma delas. 40

Figura 4 – Cosmografia universal em Fra Mauro

No canto inferior esquerdo o Paraíso Terreno é figurado encontrando-se protegido

com muros altos e um rio que corre em volta. No seu interior há um personagem idoso

associando a imagem ideal de Deus juntamente a dois homens nus, certamente Adão e

Eva. É uma referência direta à passagem bíblica da expulsão do Paraíso.

40 Um estudo sobre esse importante embate encontra-se em RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit.

26

Figura 5 – detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro

Voltando-se ao interior do mapa, a constata-se inicialmente que ele guarda a

orientação da Terra com a Europa no sul e a África ao norte, uma herança atribuída aos

muçulmanos. Existe também uma divisão em quatro pontos cardeais principais e quatro

secundários (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste). O rigor

geométrico é usado minimamente para a localização de cada um desses pontos,

indicados com uma estrela amarela envolta em um círculo de mesma cor (figura 7).

Não existindo, assim, nenhuma linha traçada, apenas essas localizações. Na

convergência desses pontos encontra-se a posição central do mapa, entretanto, a cidade

de Jerusalém que é marcada com a estrela referente a posição central (figura 6). Fra

Mauro encontra-se, dessa forma, entre o rigor geométrico e a primazia do religioso,

uma forte característica do homem no século XV. O autor ainda se justificativa pela

posição de Jerusalém que pode ser lida na legenda próxima a essa cidade:

“Na verdade Jerusalém é latitudinalmente o centro do mundo habitado, se bem [que]

longitudinalmente está um pouco a oeste; mas como a parte ocidental está mais densamente

27

povoada a causa da Europa, Jerusalém está também longitudinalmente no centro, si se olha

no espaço vazio sem a densidade populacional.”41

Figura 6 e 7 - Detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro (esq.) e a diferença do ponto central e o referido por Fra Mauro em Jerusalém (dir.).

Já no mapa de Henricus Martellus (c. 1489), e no mapa de Cantino (1502) as

referências aos mapas-múndi medievais se remetem à ornamentação utilizada para a

construção dos mesmos, incluindo desde a utilização dos padrões de cores, até ao uso

excessivo de elementos baseados não no conhecimento empírico, mas em suposições

teóricas.

Em Henricus Martellus a ornamentação simbólica pode ser encontrada no

preenchimento que o autor realiza do interior dos continentes desconhecidos. No

continente asiático existe uma excessiva representação de cadeias montanhosas e rios

pelo interior. O contorno asiático provém das informações de autores como Ptolomeu e

viajantes como Marco Pólo, mas a complementação fantasiosa realizada pelo autor - a

hidrografia, cadeia montanhosa, etc - remete à tradição dos mapas simbólicos

medievais. Nos locais onde o conhecimento prático não chegou, a complementação

cartográfica se deu por um preenchimento pela suposição. A obra de Martellus apesar

de apresentar traços do estilo simbólico cartográfico liga-se mais fortemente a uma

outra tradição resgatada no século XV, abordada a seguir, a tradição ptolomaica.

O mapa de Cantino também traz elementos da tradição simbólica dos exemplares

medievais. Assim como Fra Mauro, a cidade de Jerusalém ganha destaque com a

representação de um castelo imenso remetendo a importância dessa localidade para a

41 Citado por CRONE, G. R. Historia de los Mapas. México-Buenos Aires: Foundo de Cultura Econômica, 1956. p. 60 e 61.

28

cristandade. Muitas legendas principais continuam a serem utilizadas como o caso do

mar Vermelho representado na cor vermelha, além da ornamentação com símbolos

sendo constantemente utilizada para o preenchimento dos espaços desconhecidos.

Encontram-se figurados grandes castelos, bandeiras com a heráldica dos países

europeus, as araras do novo mundo. Portanto, mesmo com uma notável diminuição de

símbolos, o mapa não se afasta dessas representações porque ainda existem figurações

baseadas em animais exóticos ou importância bíblica. Comprovada por uma das mais

evidentes representações simbólicas no mapa, a “Serra Leoa”, aparecendo justamente no

formato de uma leoa, e a fortaleza de São Jorge da Mina (figura 9).

Figura 8 e 9 – Parte ocidental do mapa de Cantino (esq.) e detalhe de Serra Leoa em Cantino (dir.)

Juan de La Cosa em seu mapa de 1500, conhecido como o primeiro mapa a figurar

o continente americano, igualmente encontra-se ligado às influências simbólicas. A

primeira delas refere-se à orientação das terras no mapa, com o norte sendo ocupado

pelas terras recém descobertas. Filiando-se, assim, à tradição dos mapas-múndi

medievais por não representar ainda a convenção de orientação espacial que figurava a

Europa ao norte que lentamente iria se impor.

29

Figura 10 – O Mapa de Juan de La Cosa

O componente religioso encontra-se muito mais fortemente figurado que nos

exemplares analisados anteriormente. No extremo norte há a presença de são Cristóvão,

símbolo cristão (associado ao próprio Cristóvão Colombo) que seria responsável por

guiar os europeus para o Novo Mundo espalhando a fé às populações autóctones.

30

Estão incluídas também passagens bíblicas como indica a caracterização dos três

reis magos segurando em suas mãos os presentes a Jesus, localizados na península

arábica.

Figura 11 – Detalhe da península arábica com os três reis magos em Juan de La Cosa

Ainda em La Cosa existe a representação do continente americano de uma forma

enigmática, algo que não acontece em Cantino. O espanhol preenche de forma mais

livre o novo continente fazendo suposições acerca de seus contornos costeiros e

interioranos, prática comum nos mapas-múndi medievais.

No mapa de Diogo Ribeiro o simbolismo também está expresso pela presença de

animais, homens, árvores, castelos, seres marinhos e inúmeros outros elementos. O

componente religioso ainda é evidenciado na região da Judéia, onde é figurada a

passagem da morte de Jesus Cristo crucificado.

31

Figura 12 – Detalhe da Judéia em Diogo Ribeiro (1529)

E, finalmente, no planisfério de André Homem o simbólico aparece menos

diretamente. Ainda existem os animais exóticos inseridos nos continentes, mas os

oceanos são os locais onde mais se concentra a representação fantástica, com a presença

de seres marinhos. Essa postura diferente mostra a adoção de uma nova postura nos

continentes onde a estratégia de preencher os espaços vazios não é com figuras, mas

com inscrições grandes ou opta-se pelo não preenchimento dos espaços. Porém, a

hidrografia em algumas partes, como do Amazonas e Nilo, é ainda fantasiosa.

Figura 13 e 14 – Detalhe da cruz no mapa de André Homem e a hidrografia do rio Amazonas

1.3 – A Redescoberta de Ptolomeu

Ao se estudar os mapas do século XV por vezes são utilizadas ideias anacrônicas,

pois os mapas desse período diferem em muitos aspectos aos atuais. Por muito tempo os

exemplares cartográficos dos séculos XIV, XV e XVI foram estudados enquanto parte

32

de um caminho evolutivo, e portanto transitório, na história da representação geográfica

do mundo. Porém, essa não era a realidade do período, de acordo com Marica Milanese,

que contesta a noção de “transição” preferindo em seu lugar a denominação “síntese”.

Pois, esses mapas confluíram experiências culturais e técnicas diversas, não consistindo

em uma “transição”, termo esse que gera uma compreensão de um sentido único que

não existiu na história da cartografia. Assim, muitos mapas ainda eram produzidos

segundo as formas tradicionais e nem todos necessariamente possuíam novidades. Por

conseguinte, as produções cartográficas não tinham um processo linear. 42

Os mapas ao longo do século XV sofreram modificações iniciadas na segunda

metade do século XIV, passando a ser cada vez mais representados independentemente,

diferindo dos anteriores que em sua maioria serviam como ilustração para livros.

Juntamente a isso, verificava-se a formação de cartógrafos profissionais refletindo

diretamente a passagem de representações simbólicas para descritivas. Outra mudança

importante provinha da mudança de uma liberdade de desenho para a restrição imposta

pela imprensa que será abordada no segundo capítulo. Aliado a essas inovações, a

cartografia passou a ser influenciada pela redescoberta de um importante autor clássico,

Ptolomeu. Implicando em toda uma reavaliação das concepções de mundo do período

por uma parte dos europeus.

Esse Ptolomeu redescoberto no século XV foi Cláudio Ptolomeu nascido em

Ptolomaida de Tabaida (c.100 d.C.). Foi um grande matemático, astrônomo e geógrafo

grego que viveu em Alexandria sendo considerado o mais célebre astrônomo da

Antiguidade.43 Entre seus escritos destaca-se a obra Grande sintaxe matemática (140

d.C.), também chamada de Almagesto pelos árabes, que consistia em uma compilação

dos conhecimentos astronômicos de seus antecessores. O autor desenvolveu nessa obra

seu sistema geocêntrico, que dominou a astronomia até o século XVI44. Outra obra sua

considerada célebre foi a Geografia45, um grande marco que contribuiu para mudar as

concepções cosmográficas de ordem religiosa. Por outro lado, Ptolomeu interessou-se

42 MILANESI, Marica apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p.31. 43 Suas obras foram devedoras de outro sábio da Antiguidade, Hiparco. 44 Até o aparecimento da obra Das revoluções dos mundos celestes de Nicolau Copérnico (1543) que contestava Ptolomeu. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, pp.144-147. 45 Os escolásticos preferiam o termo Cosmografia ao invés de Geografia. Ver EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16.

33

muito pela astrologia e, em sua Sintaxe tetrabiblos, tentou demonstrar a influência dos

astros sobre os fenômenos terrestres além de possuir obras de física.46

O retorno dessas obras ao conhecimento ocidental foi graças ao intermédio dos

árabes - exímios conhecedores de Ptolomeu destacando-se Al-Idrisi47 no século XI –

que traduziram para sua língua a obra do alexandrino. A Geografia, em particular,

influenciou os mapas-múndi do século XV e XVI, reaparecendo no Ocidente pela

tradução de Manuel Chrysoloras e Jacobo Angiolo (1410). Ganhou a primeira

impressão no ano de 1475 na cidade de Vicência sem os mapas que possuía. Após essa

edição seguiram-se outras: Bolonha em 1477 com os mapas; Roma, 1478; Florença48,

1482; Ulm, 1482 e 1486; Roma, 1490; totalizando seis edições antes de 1500. O que

reflete a dimensão alcançada por sua obra na Europa.49

Muito se contesta sobre a autoria da obra admitindo-se que somente as idéias

fundamentais seriam do próprio Ptolomeu. Pois, o texto que a acompanha é creditado a

um sábio bizantino, que o redigiu provavelmente entre o século X e XI. De posse desse

manuscrito, um monge grego, Máximo Planudes, teria desenhado, por volta de 1300, os

vinte e seis mapas presentes na obra.50

As concepções do alexandrino apresentadas romperam com várias ideias presentes

nos mapas-múndi anteriores a sua influência. Primeiramente referente a localidade

central, que ao invés de Jerusalém estava a cidade italiana de Siena, posição confirmada

porque durante o solstício de Verão, nessa cidade, o Sol iluminaria o fundo de um poço.

Segundo, na nova representação a ecumene(conjunto das terras conhecidamente

habitadas) formava um todo, não sendo dividida em três continentes como a prática

anterior além da disposição geográfica do mundo estar em forma “esfericizada” e não

discóide. Isso é tributado aos sistemas de projeção ptolomáicos que representavam

numa superfície plana a esfericidade terrestre. Além disso, pelos cálculos do autor a

parte conhecida do mundo ocuparia apenas a quarta parte do globo terrestre.

46 Ver CRONE, G. R. Historia de Los Mapas. Op. Cit. p. 76. 47 Al-Idrisi realizou seu mapa a pedido do rei Roger II, cristão da Sicília. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”. In: Revista de Geografia da UFC, ano 4, nº8, 2005,p.9. 48 Sobre a importância dessa cidade na época do Renascimento ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília, (?), p. 40 e 41 49 Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” Op. Cit, p.16. 50 Ver BAGROW, L. “The Origino f Ptolomy’s Geographia” In: Geografiska Annaler Appud: RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 27 e 28.

34

Segundo Bárbara mundy a interação proposta pelo autor seria de dois sistemas: a

corografia (relacionado a uma parte específica da Terra) e a cosmografia (relacionado a

uma visão do universal) constituiria a sua “geografia”51. Eles seriam projetados não por

meios de casuística, mas em termos matemáticos. Com isso, refutava-se o elemento não

provindo da “razão” matemática e física para a organização do espaço. Outro princípio

fundamental em Ptolomeu refere-se aos mares, que não possuíam comunicação entre si

e se estendiam à superfície da Terra como lagos. Isso contrariava a tradição homérica e

bíblico-aristotélica, fundamentadas na concepção de uma terra dominada em sua maior

parte pela água. Ter-se-ia, portanto, o inverso, com a terra dominando a maior parte da

esfera, e assim, para lá do mundo conhecido haveria uma “Terra Incógnita” e não um

mar desconhecido, como defendido pela crença anterior.

A partir do último quartel do século XV a obra de Ptolomeu tornava-se conhecida

por toda a Europa, inclusive em Espanha.52 Além de Ptolomeu o século XV também

obteve informações sobre o continente asiático provinda de relatos de viajantes

europeus53. O mais famoso deles, Marco Pólo, tinha viajado desde as terras da costa do

mar Negro até às do mar da China, entre 1240 e 1350. Nessa época, os Khans mongóis

asseguravam a sua paz pela Ásia Central. Segundo C. Boxer esses relatos de viajantes

chegaram a ser fonte para a confecção de mapas-múndi, mas as suas informações não

podem ser tomadas somente como verdadeiras porque contavam com maravilhas e eram

fragmentárias. Assim sendo, para o autor elas não contribuíram efetivamente com os

conhecimentos geográficos do período. 54

Segundo Denis Cosgrove, a redescoberta do manual geográfico de Ptolomeu seria

a grande inovação do Renascimento. Esse texto para humanistas, mercadores, e artistas

que leram, transcreveram e ilustraram fizeram com que fosse possível uma nova

51 MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 3 e 5. Ver também: CONTA, Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica” In: Semana de Estúdios Romanos. Valaparaíso: Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, vol. 22, 2004, pp.19-29. 52 A influência de Ptolomeu não se restringiu a cartografia, até mesmo Leonardo Da Vinci utilizou as idéias do sábio alexandrino. Ele teria baseado o seu homem vitruviano na Geografia de Ptolomeu porque também dividia o homem em “minor mondo” sendo o homem o microcosmo dentro do macrocosmo. A obra clássica o ajudou a organizar um sistema para operar a anatomia da mesma forma com que Ptolomeu desenvolveu para representar o mundo. Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16. 53 Entre eles destacam-se Nicolo di Conti e Pêro da Covilhã. Para mais detalhes sobre eles ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.50 54 Ver BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1972, p.40.

35

visualização do mundo. O globo terrestre foi convertido em um rede imaginária de

coordenadas de latitude e longitude trazendo uma nova representação.55

No momento em que os cartógrafos do século XV e XVI produziram seus mapas-

múndi eles estavam em contato com as ideias de Ptolomeu e dos viajantes europeus. A

principal influencia identificada nas fontes dessa monografia corresponde a inovação do

alexandrino em fazer uma representação terrestre esfericizada e não discóide. Apenas

Fra Mauro conservou a forma discóide56, os outros já trouxeram essa solução para a

representação em superfície plana da Terra.

Além disso, todo o contorno oriental, as costas do Oceano Índico na África e Ásia,

presentes nas obras de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489) e Juan de La Cosa

(1500) são, de alguma maneira, tributários a Ptolomeu. Em menor grau situam-se

Cantino (1500), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559).

A influência do autor alexandrino no contorno asiático ocorre nitidamente na

representação da Índia57, onde não há menção desse espaço enquanto península além da

representação desproporcional da ilha do Ceilão, dez vezes maior do que o “real”, logo

abaixo da Índia. No sudoeste asiático aparecem ainda as penínsulas resultantes da

representação proposta por Ptolomeu, principalmente a Catigara.

55 COSGROVE, Denis. “Renaissance mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography” In: Sixteenth-Century Venice, Imago Mundi, XLIV, pp. 65-89, p.6. 56 Essa posição de Fra Mauro não pode ser tida como uma posição retrógrada porque segundo Cosgrove na Renascença diversos sistemas de representação (plano, perspectiva) e diversos modos de descrição (verbal, visual, cartográfica e histórica, matemática e literal) coexistiram. Ibid, p.7. 57 Lembrando que o termo Índia provindo também da redescoberta de Ptolomeu passou a não ser apenas a região do que seria hoje o país asiático, mas sim toda a borda do Oceano Índico que cobre as costas africanas e asiáticas. Assim Índia poderia ser as terras da Etiópia. Cf. THOMAZ, Fuis F. De Ceuta a Timor, Op. Cit, 171.

36

Figura 16 – Detalhe do Índico em Fra Mauro (1459)

Figura 17 – Detalhe do Índico em Henricus Martellus (1489)

37

Figura 18 – Detalhe do Índico em Juan de La Cosa (1500)

Figura 19 – Detalhe do Oceano Índico em Juan de La Cosa (1500) com o destaque do contorno

afro-asiático.

38

Outra representação atribuída ao alexandrino diz respeito ao contorno da península

arábica podendo perceber suas contribuições nos mapas anteriores.58

Figuras 20, 21 e 22 – Representação da península arábica em Cantino, Diogo Ribeiro e André

Homem.

Entretanto, Fra-Mauro, Henrique Martellus e Juan De La Cosa apesar da ligação

ptolomaica afastam-se dela em relação a configuração do Oceano Indico, aparecendo

como um mar aberto, e não como um lago interior. Uma das legendas presentes em Fra

Mauro é sintomática desse distanciamento que para o monge não caracterizariam um

rompimento:

“Não creio ir contra Ptolomeu si não sigo sua Cosmografia, porque de observar seus meridianos paralelos o grau havia tido, no tocante das partes conhecidas desta circunferência, que excluir muitas províncias que Ptolomeu não menciona. Principalmente na latitude, o mar do sul a norte, há muita “terra incógnita” porque em seu tempo era desconhecida”.59

Porém, mesmo colocando o Índico enquanto mar aberto, Fra Mauro ainda o

mantém com um ar ptolomáico, pois, na borda sul, sudeste e leste existem várias ilhas

minúsculas com uma distância mínima entre si (ver figura 20). No caso de Martellus,

que também traz essa inovação, o sul do continente africano também se aproxima

fortemente da península ptolomaica do extremo oriente (ver figura 21). Só em La Cosa

que a aproximação do sul africano com o sudoeste asiático não aparece.

Outra característica que se destaca nas representações produzidas segundo

Ptolomeu é a presença áfrica neles do Monte da Lua. Esse local foi associado com as

nascentes do rio Nilo, já que no período não havia conhecimento direto do interior do

continente africano e também asiático. Isso indicava que o conhecimento recente através

das explorações náuticas não representou o mesmo para o interior dos continentes.

Assim, vários cartógrafos se influenciaram por representar o interior como

Ptolomeu indicava. Em Fra Mauro a localização do Monte da Lua não é claro, mas em

59 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit., p.61.

39

Henricus Martellus, o autor que mais se filia na tradição do alexandrino, o monte

aparece ocupando um espaço amplo na metade do continente africano.

Figura 23 – Detalhe do Monte da Lua em Henricus Martellus (1489)

Já em Juan de La Cosa o interior africano é muito enigmático. Nele está a

presença de reis cobrindo grande parte do interior remetendo ao uso constante da

ornamentação para preencher os espaços desconhecidos. Uma das características

provinda do simbolismo medieval já referido anteriormente. No entanto, sem estar claro

a posição do monte fantástico, a nascente do Nilo encontra-se com outros dois rios. Eles

correm em direção oposta, um deles ao leste e outro ao oeste. Sem a representação clara

do monte pode-se dizer que a estratégia do cartógrafo de colocar os três rios nascendo

no mesmo lugar é baseada na hidrografia ptolomaica. Pois, mostra a nascente misteriosa

do Nilo, desconhecida na época, da mesma forma que a tradição do autor clássico

fizera.

40

Figura 24 – Detalhe do interior do continente africano com a nascente do rio Nilo em Juan De La

Cosa (1500)

O mapa de Cantino e de Diogo Ribeiro são exemplos da cartografia dita

renascentista do século XVI que abandonariam o simbólico em prol de uma

representação mais “fiel” ligada a tradição da experiência náutica das grandes

navegações. Entretanto, no interior também é desconhecido levando a representação do

Monte da Lua no sul do continente africano, em ambos ocupando uma grande

dimensão, todo o espaço entre a costa leste e oeste.

Figura 25 – Detalhe do Monte da Lua em Cantino (1502)

41

Figura 26 – Monte Lua em Diogo Ribeiro (1529)

E em Cantino ainda aparece representada no extremo oriente, após a Índia, a

península de Catigara tributada ao autor clássico.

No caso de André Homem o Monte da Lua não aparece representado mas a

hidrografia do interior é ainda ptolomaica. Da mesma forma que La Cosa, a localização

da nascente é na mesma região com a contribuição de dois rios que provém do Atlântico

e do Índico.

Figura 27 – Detalhe do interior africano em André Homem (1559)

42

1.4 – As Cartas-Portulano Mediterrânicas

Uma outra forma de representação da Terra, diferente dos mapas-múndi

simbólicos medievais surgidos na Idade Média, foram as cartas-portulano (ou

portulanos). Segundo Luís de Albuquerque, essa expressão serve para designar a nova

espécie de cartas surgidas nos séculos XIV e XV. No entanto, as referências a elas eram

somente como “cartas” ou, mais vulgarmente, “cartas náuticas” ou “cartas de navegar”.

Todavia, a designação hoje aplicada justifica-se plenamente, porque o tipo de

representação das áreas marítimas nessas cartas relacionava-se diretamente com os

portulanos, relatórios com um roteiro náutico. Com isso, a carta-portulano tornou-se

logo um elemento complementar desses textos e os navegadores não a dispensavam. A

inovação propiciada por elas foi de uma a representação mais próxima do real na bacia

mediterrânica, nas costas européias do atlântico chegando até o norte da França, nas

ilhas Britânicas e também no Mar Negro. Foi um recurso surgido da prática em alto mar

para auxiliar a orientação. 60

Luís de Albuquerque defende, pelo fato de não existir qualquer informação a

respeito das cartas náuticas antes do século XIII, que a origem dessas cartas poderia ter

sido herdada de modelos clássicos, de autores como Marino de Tiro, hipoteticamente, e

Ptolomeu. Que basearam a sua cartografia em determinados sistemas de projeção, ou

seja, tiveram o cuidado de basear suas cartas em alicerces científicos. No entanto, não

existe nenhuma prova suficiente que comprovaria a relação entre esses modelos da

Antiguidade e as cartas-portulano. “Em suma: parece não ser sustentável que exista na

carta-portulano qualquer ideia prévia de uma representação cartográfica de raiz teórica,

a despeito dos argumentos que alguns adiantaram como prova.”61

Numa outra vertente de estudos sobre as cartas-portulano, Norman J. W. Thrower

acredita que o uso sistemático das agulhas magnéticas trazidas da China ao Ocidente

pelos árabes ou através da Rota da Seda possibilitou esse mapeamento totalmente novo.

A representação muito mais fiel da Terra foi possibilitada pela agulha magnética que

rapidamente se espalhou pelo Mediterrâneo. Assim, através do sucesso desse novo

elemento para a representação topográfica do real originaram-se as cartas-portulano.62

60 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit., p.210. 61 Ibid, p.210. 62 Ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Op. Cit, p.51.

43

Por serem então fruto da experiência náutica, essas formas cartográficas

apresentavam uma visão diferente sobre o território. Enquanto os mapas-múndi

mostravam uma imagem global e simbólica, as cartas-portulano se restringiam à região

específica do Mediterrâneo traçando com uma grande precisão os territórios ao seu

redor, incluindo o perfil mediterrânico e o Mar Negro.63 De uma forma mais geral,

enquanto os mapas-múndi seguiam uma tradição erudita de cartografia terrestre, as

cartas-portulano provinham da experiência dos navegadores do Mediterrâneo para fins

decorrentes da prática e para serem utilizados para ela.64

Atualmente são conhecidas aproximadamente cento e oitenta cartas e atlas dos

séculos XIV e XV, que correspondem a uma pequena parte da produção do período,

pois elas tinham uma facilidade enorme de deterioração devido às condições de

manuseio. A maior parte foi realizada em núcleos mediterrânicos, os dois principais

foram as ilhas Baleares e as cidades italianas de Gênova e Veneza. Cada um desses

centros foi criando suas características próprias ao longo dos séculos, consolidando seus

estilos já no século XIV. Assim, constitui-se um “estilo italiano” marcado pelo traçado

de uma franja litoral sem ornamentação e um “estilo catalão” que além do litoral

representava o interior dos continentes. Todavia, vários são os exemplos de que dentro

dessas escolas houve uma versatilidade como mostrado no estilo catalão dos irmãos

Pizigani (1367) e o estilo italiano de Guillhermo Soler (1385).65

Por trazer uma nova forma de representação cartográfica, as cartas-portulano não

se encontravam desconexas do pensamento medieval. Um exemplo foi a busca catalã

por representar o interior continental divergindo da função náutica, entrando assim, no

modelo de produção dos mapas-múndi medievais. 66

Segundo Kimble, os catalães faziam muitas especulações sobre os territórios

inexplorados da Terra. Como testemunha o Atlas Catalão, onde os “montes da lua”

provindo da tradição ptolomáica foram associados em determinados momentos os

montes da antiga Guiné Francesa e os seus cinco rios afluentes. Com essa especulação

estava a “harmonização” de fatos reais com a tradição, do século XIV em diante. Eram

63 De acordo com Cosgrove o período dito renascentista passaria de um mapeamento de visualização do texto escrito como feito com as ilustrações cartográficas dos autores tradicionais e passaria a contar com aspectos que envolvia a matemática e a filosofia. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography”. Op. Cit, p. 6. 64 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir). Historia da Expansao Portuuesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p.34. 65 Ibid, p.36. 66 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210.

44

problemas surgidos em conciliar as novas descobertas com os mitos. Como pode ser

comprovado pelo Rio do Ouro sendo empurrado para baixo nas representações

cartográficas até a direção do Senegal/Niger, pois a medida que prosseguiam as

descobertas portuguesas e o rio mítico não era encontrado, os cartógrafos o

representavam cada vez mais abaixo. Até o momento em que ele foi associado aos rios

Senegal e Niger.67

Figura 28 – O Atlas Catalão de Carlos V, 1375.

Contudo, apesar das cartas-portulano compartilharem algum simbolismo do

homem medieval em relação ao universo culminando na representação de locais ou

elementos fantasiosos existia o traçado detalhado do perfil costeiro remetendo

fortemente à realidade topográfica, sendo esse o objetivo principal deste gênero de

produções cartográficas. 68 Segundo Luís de Albuquerque, o que caracterizaria então

uma carta-portulano seria o conjunto de linhas de rumo emergidas de vários pontos do 67 Ver DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.166; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 245. 68Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. Cit, p.36.

45

traçado. Seriam assim lançadas dezesseis linhas de rumo (norte, nor-nordeste, nordeste,

etc.), número que algum tempo depois duplicou, como pode ser observado na maioria

das cartas existentes, e que iriam se generalizar como identificado no planisfério de

André Homem.69 Era uma rede de loxopramas, ou linhas de rumo, originárias de um

número de pontos de convergência dispostos no mapa de forma regular que eram

copiadas de mapa para mapa. 70

O impacto dessa nova maneira de representar o espaço ligado ao rigor geométrico

e a busca da representação fidedigna do real influenciou as produções cartográficas

decisivamente a partir do século XV.

Nos seis mapas estudados as influências das cartas-portulano encontram-se

presentes. Apenas no mapa-múndi de Fra-Mauro (1459) e Henricus Martellus (1489) as

linhas de orientação provindas delas não foram adotadas. Mas o melhoramento da

representação do mar Mediterrâneo é notável.

No caso do mapa de Fra Mauro a influência encontra-se presente na preocupação

com a orientação geográfica com referência geométrica dos pontos cardeais (observar

figura 7), mesmo não havendo o traçado das linhas referentes ao equador e aos trópicos.

O Mediterrâneo é muito bem representado, confirmando as inúmeras correções

provindas dessas cartas mediterrânicas.

Figura 29 – Detalhe do Mediterrâneo em Fra Mauro

69 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210. 70 Ver KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. Op. Cit, p.245.

46

O Mapa-múndi de Henricus Martellus apresenta uma representação muito fiel do

contorno mediterrânico, pois nas tabuas de Ptolomeu esse mar europeu possui uma

dimensão duas vezes maior do que a original.

Figura 30 – detalhe do Mediterrâneo no mapa de Henricus Martellus

O cartógrafo espanhol Juan de La Cosa e os portugueses Cantino (atribuído),

Diogo Ribeiro e André Homem mostram claramente suas enormes influências

provindas das cartas-portulano. Em ambos encontram-se a figuração das rosas-dos-

ventos herdada dessas cartas, como mostrava o atlas catalão, refletindo a preocupação

com a localização espacial por meio dos pontos cardeais.

Figuras 31 e 32 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Juan de La Cosa (esq.) e Cantino (dir.)

Figura 33 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Diogo Ribeiro (esq.) e André Homem(dir.)

Notam-se juntamente a essas rosas inúmeras linhas de rumo que partem de pontos

específicos e preenchem por completo os mapas. Elas é que são as guias de rumo do

mapa-múndi.

47

Figura 34 – Detalhe do Atlântico no Planisfério de André Homem.

1.5 – As Grandes Navegações

Iniciadas pelos portugueses no século XV, as grandes navegações foram

responsáveis em parte por toda uma revisão das teorias cosmográficas dos séculos

anteriores contribuindo de maneira decisiva para o período designado como

Renascimento. Todos esses feitos marítimos foram registrados através de cartas-

portulano portuguesas. Essas novas fontes, além dos próprios relatos dos viajantes

chegaram até os cartógrafos da segunda metade do século XV e tornaram-se uma nova

fonte de referência para a produção cartográfica do período. Contribuindo

decisivamente para uma representação geográfica partindo da prática.

Apesar de supor-se terem sido inúmeras as cartas produzidas pelos portugueses,

poucas são os exemplos. Essa grande quantidade é confirmada através de alusões a elas

na literatura da época como o caso das referências freqüentes aos mapas portugueses na

Crônica da Conquista da Guiné71 de Zurara e no Esmeraldo de Situ Orbis72 de Duarte

Pacheco.

Todo esse empreendimento português para além mar, segundo C. R. Boxer, teria

se iniciado devido a quatro fatores principais que se conviveram e apareceram na

seguinte ordem no século XV: 1. Um zelo de cruzada com o Marrocos. Refletindo na

idéia original do reino português de tentar surpreender os marroquinos por uma ofensiva

71 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, estudo crítico e anotações de Torcato Sousa Soares. Lisboa. Academia Portuguesa da História, 1978. 72 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541.

48

inesperada pelo sul.73 2. O desejo de se apoderarem do ouro da Guiné. Com o início das

explorações em direção ao sul da África após as ilhas Canárias os portugueses entram

em contato com populações envolvidas no comércio do Ouro da Guiné e isso os atrai; 3.

a questão do Preste João. Um reino fantasioso provindo das lendas medievais que teria

sido associado com as notícias da Igreja cristã copta da Abissínia, e que auxiliaria os

lusos na expulsão dos infiéis de Jerusalém; 4. a procura de especiarias do oriente. Com

as informações de que o continente africano seria circum-navegável cogitou-se em ir até

as Índias buscar as especiarias, desviando dessa maneira a intermediação dos

mamelucos – os infiéis que controlavam a Terra Santa.Assim, a expansão portuguesa

deveria ser observada tendo em mente esse quadro de interesses surgidos ao longo da

exploração marítima. 74

O primeiro grande marco das navegações ultramarinas portuguesas foi a conquista

de Ceuta em 1415 realizada durante o reinado de D. João I. A partir desse feito, iniciou-

se a expansão ultramarina, e já no ano de 1419 ocorreu a descoberta e ocupação da ilha

da Madeira. Os Açores foram reconhecidos inicialmente no ano de 1431 e completada a

exploração do conjunto de ilhas em 1432. Após dois anos, Gil Eanes conseguiu a

façanha de transpassar o Cabo Bojador, obstáculo tradicional da navegação de

cabotagem, inaugurando uma nova etapa no reconhecimento da costa africana. Nesse

momento, devidos as mudanças de orientação das terras que passam de N-S para O-E

acreditava-se que teria sido atingido o caminho para as Índias75. Porém, o continente

volta a sua posição N-S depois do Golfo da Guiné. Nessa altura, entre 1456 e 1460,

ocorreu a descoberta e colonização das ilhas de Cabo Verde.

A experiência adquirida através dessas viagens iniciais permitiu aos portugueses

conhecerem o sistema de ventos do Atlântico Norte, e, posteriormente, os do Atlântico

Sul. Possibilitando também a construção de um novo tipo de navio, a caravela latina,

que suportava o vento melhor do que qualquer outro navio europeu. Já com essas

experiências, as viagens de Diogo Cão durante o reinado de D. João II reanimaram as

descobertas portuguesas. Ele partiu em 1482 e afirmava a conquista portuguesa, com o

73 Esse ataque ao Marrocos refletia o ódio existente entre a Cristandade e os muçulmanos. No entanto, segundo Buckhardt a Itália escaparia ao isolamento de relações com esse grupo religioso. Ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália, Op. Cit., p. 60 e 61. 74 BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit, p.34. Para os motivos das navegações portuguesas verificar também: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1998, p.171. 75 Diferentemente dos portugueses, segundo Barros, os chineses já representavam a Áfica com um formato triangular. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”Op. Cit., p.13.

49

padrão de São Jorge, das terras da embocadura do Rio Zaire. Na sua segunda viagem, o

navegador atingiu as costas da atual Angola. O esforço de Diogo Cão foi continuado por

Bartolomeu Dias que, em fins de 1487, ultrapassava a costa africana até a Serra dos

Reis onde entrou em contato com uma forte tempestade que o fez perder de vista a

costa. Nesse momento ele atravessou o Cabo das Tormentas, rebatizado posteriormente

de Cabo da Boa Esperança e atingiu a Oceano Índico. Ao mesmo tempo em que se

prosseguiam as navegações ao longo da costa africana, o rei D. João II mandou que

seguissem por terra ao Oriente, Pero de Covilhã e Afonso Paiva, a fim de obterem

notícias circunstanciais sobre as terras das especiarias e do misterioso reino do Preste

João. Os informes enviados por eles davam conta das cidades indianas e das condições

de navegação no Oceano Índico. 76

Nos fins do século XV, os portugueses lançaram as bases da moderna ciência

náutica européia, sendo então, possível se guiar através em alto mar pela observação

astronômica. Contribuíram para isso três instrumentos principais: a bússola

(provavelmente de origem chinesa e conhecida por intermédio dos marinheiros árabes e

mediterrâneos), o astrolábio e o quadrante nas suas versões mais simples.

Paralelamente as descobertas portuguesas na segunda metade do século XV, os

espanhóis iniciam as suas viagens marítimas. Em 12 de outubro de 1492, o genovês

Cristóvão Colombo, navegando a serviço de Castela atingiu algumas ilhas

desconhecidas. Esse episódio fez com que os feitos portugueses para atingir a Índia

fossem ameaçados, já que Colombo77 acreditava ter chegado a ilhas asiáticas78. Os

reinos português e espanhol entraram então em divergências diplomáticas. A solução foi

o estabelecimento no ano de 1494 do Tratado de Tordesilhas que definia a demarcação

de um meridiano separando a Terra em dois hemisférios, um luso e outro castelhano,

que passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Após esse tratado,no ano de

76 Sobre as viagens ultramarinas portugueses existe vasta bibliografia aqui indica-se alguns autores: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a TimorOp. Cit.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (dir.). História da expansão portuguesa. Vol. I. Lisboa : CNCDP, pp. 35-44.; BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit.; HOLANDA, S. Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – Tomo I: A Época Colonial 1º vol.: Do Descobrimento à Expansão territorial. São Paulo: D.E.L., 1968; Voltando-se mais para a Ásia tem-se SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império asiático português 1500-1700. Lisboa: Difel, 1995; 77 Segundo ele “il mondo é poco”. Para compreender um pouco do pensamento de Colombo e sua crença em ter chegado a ilhas asiáticas ver: SILVA, Janice Theodoro da. “Colombo: entre a Experiência e a Imaginação”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 11, nº21, 1991, p. 29. 78 Esse temor teria sido despertado também porque os portugueses não teriam dado ouvidos tanto a Colombo como o florentino Paolo Toscanelli que afirmava que a melhor rota para se chegar a “Índia dos aromas e das gemas”, como para o ouro de Cipango e as riquezas de Cataio, não era a rota pela Guiné, mas sim a “direitura”, navegando ao ocidente. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit, p. 171.

50

1498, finalmente uma frota portuguesa atingiu a Índia: Vasco da Gama79 chegou a

Calicute estabelecendo assim uma nova rota, transoceânica, para atingir o lucrativo

comércio das especiarias.

Esses dois episódios, descoberta da América (1492) e conclusão da primeira

viagem pela rota do Cabo (1498) marcaram uma nova etapa nas relações

interplanetárias. O eixo principal do comercio europeu deixou de ser o mar

Mediterrâneo e passou a ser o oceano Atlântico.

As explorações oceânicas não se detiveram após isso avançando ao longo dos anos

o continente americano e asiático. Tentando atingir o comércio do Índico através do seu

hemisfério, a coroa espanhola financiou a viagem comandada por Fernando Magalhães.

A conclusão do périplo de Magalhães e depois, no comando Sebastião de Elcano foi a

primeira circum-navegação planetária entre 1520 e 1523. Na seqüência, descobriram-se

novos arquipélagos no Pacífico aumentando imensamente a extensão conhecida da

China, e descobrimento do Japão.

Ao longo das explorações portuguesas das costas africanas no século XV existem

relatos de que havia várias cartas marítimas sobre as novas regiões descobertas como

mencionado anteriormente. As provas desses registros cartográficos encontram-se

primeiramente no cronista Zurara80, fonte principal para a época do estabelecimento

português na Guiné, que afirmou terem sido feitos novos mapas por ordem do Infante

D. Henrique; e uma carta régia (mandada passar pelo regente D. Pedro, em 1443, em

Penela), referente também à feitura de novos padrões cartográficos. Sobre esse assunto,

o autor Alfredo Pinheiro Marques afirma terem cruzado testemunhos de fontes

narrativas arquivísticas, para determinar com precisão a data das primeiras correções em

cartas produzidas na época do Infante D. Henrique. No seguimento de sua investigação,

no estado atual de conhecimentos, deve-se considerar a data de 1443 como da realização

da primeira carta portuguesa que se tem conhecimento. Outro indício importante da

produção cartográfica ao longo dos descobrimentos relaciona-se ao arquipélago das

Canárias. Em 1435 no Concílio de Basiléia os portugueses mostraram uma carta para

79 A chegada a Calicute, de acordo com Amélia Aguiar Andrade, foi a feliz articulação entre a acumulação de experiência marítima anterior na costa africana e a compreensão do funcionamento do Oceano Índico. A viagem tinha como objetivos dominar a rota das especiarias e consequentemente neutralizar ou transformar em secundária a concorrência. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 35. 80 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, Op. Cit.

51

provar que essas ilhas estavam mais próximas de Portugal do que de Castela. Incluí-se

ainda a prova apresentada no mapa de Fra Mauro que será retomada a seguir.81

Os mapas aqui analisados apresentam resultados claros dos diversos momentos

das descobertas portuguesas. Fra Mauro em seu mapa apresenta inúmeras informações

na costa ocidental da África provindas de fontes portuguesas.82 Há a inclusão das

descobertas portuguesas produzidas na primeira metade do século. O autor comenta isso

nas várias informações presente nessas regiões do mapa, segundo ele, na direção ao sul

do continente africano, os portugueses “(...) encontraram litorais que não eram

perigosos, com boas profundidades, convenientes para a navegação e sem riscos de

tempestades. Eles elaboraram novas cartas destas regiões e deram nomes aos rios, baías,

cabos e portos. Eu tenho várias destas cartas em meu poder...”Isso seria ainda em fins

da época henriquina (1459).

81 Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Op. Cit., p.38. 82 Através dos descobrimentos geográficos instalou-se também a toponímia, ou nomeação dos locais descobertos. Segundo Amélia Aguiar Andrade dar nome ao desconhecido significava dominar aquele local. Ou seja, torna-lo conhecido para facilitar a identificação, e possível dominação. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 39.

52

Figura 35 – Detalhe do contorno africano ocidental (o mapa encontra-se na sua posição original, ou

seja, com a África ao norte).

Já a obra de Henricus Martellus (1489) também possui as informações

portuguesas apuradas sobre a costa ocidental africana. A façanha de Bartolomeu Dias de

dobrar o Cabo da Boa Esperança (das Tormentas) já mostra seus resultados. Com isso o

contorno africano ocidental se tornau mais próximo ao real geográfico como no caso do

Golfo da Guiné. Ainda estão inclusas duas grandes inscrições na altura do continente

africano relatando sobre as experiências marítimas lusas e suas descobertas.

53

Figura 36 – Detalhe do continente africano em Henricus Martellus (1489)

Figura 37 – Detalhe de inscrição em Henricus Martellus

Essa inscrição diz o seguinte: “Essa é a forma moderna africana segundo descrição

portuguesa entre o mar mediterrâneo e o oceano meridional”

Em Juan De La Cosa (1500) constam dois grandes avanços provindos das grandes

navegações. Do lado português tem-se o contorno da África, que na parte ocidental é

perfeitamente desenhada enquanto que a parte oriental ainda é pouco exata. A Ásia

ainda filia-se a Ptolomeu mesmo com a inserção da frota de Vasco da Gama que havia

atingido a Índia. No mapa existe uma menção ao “Rei” de Calicut que saldou os

portugueses. Já no lado espanhol há a contribuição da viagem de Colombo e Vicente

54

Pinzón a costa sul-americana, sendo o cartógrafo reconhecido como o primeiro a

representar o continente americano. O Novo Mundo ocupa uma posição ainda pouco

precisa, excetuando-se a região das Antilhas onde os espanhóis tiveram maior contato.

Figura 38 – Detalhe da África e da expedição de Vasco da Gama (seqüência de barcos ao redor do

continente) em Juan De La Cosa.

Figura 39 – Detalhe da chegada de Vasco da Gama a Índia em Juan De La Cosa.

55

Figura 40 – Detalhe da América em Juan De La Cosa.

56

Figura 41 – Detalhe das Antilhas em Juan De La Cosa

Dois anos após Juan de La Cosa, foi produzido o mapa de Cantino (1502). Ele

aprofunda as informações contidas no mapa anterior graças às influências maiores das

cartas portuguesas. É o mapa-múndi português mais antigo que sobreviver ao longo do

tempo. Apresenta um conhecimento extraordinariamente preciso da costa africana,

especialmente a costa ocidental a norte do rio Congo. E o contorno oriental ganha pela

primeira vez uma dimensão muito próxima ao real geográfico. Outro mérito das

explorações marítimas reside na representação da Índia enquanto península e o Ceilão

muito próximo a sua proporção em relação as outras terras.

57

Figura 42 – Detalhe da África em Cantino (1500).

Figura 43 – Detalhe do continente americano em Cantino (1500).

58

Diogo Ribeiro testemunhou o feito de Fernão de Magalhães, o primeiro a navegar

da América para a Àsia e, depois da sua morte na ilha de Bornéu, a frota continuou a

viagem e retornou a Espanha pela rota do Cabo. Realizando assim, como mencionado, a

primeira viagem de circum-navegação terrestre. O mapa ainda representa os resultados

das explorações de Colombo, Caboto83, os irmãos Corte Real, Américo Vespúcio e

Balboa (que confirmou a existência do grande “mar do sul” posteriormente batizado de

Pacífico)84. Em seu mapa o contorno dos continentes alcança um patamar mais próximo

ao real. O continente africano ganhou um contorno mais preciso, com a ilha de

Madagascar saindo do retângulo de Cantino e ganhando uma representação mais

fidedigna. Já a figuração do contorno asiático também melhora. A península arábica

deixa de ser associada a um “L” enquanto que as particularidades da península indiana

são representados, porém, é figurada com uma espessura menor que deveria. Sendo

assim, um retrocesso a representação observada em Cantino. Outra importante inovação

da figuração é a península da Malásia, não mais sendo aproximada a Catigara de

Ptolomeu. Nela existe a toponímia “Regno de Ansian”. Além da representação das ilhas

do sudeste asiático como “Camatra”, “Iavas” e as Molucas.

83 Tentando legitimar sua primazia sobre o continente americano e por conseqüência a navegação nos mares espanhóis no século XVII. Os ingles Samuel Purchas apresentou Sebastião Caboto como um inglês (na verdade era italiano) e verdadeiro descobridor do continente americano que deveria se chamar “Cabota”. Ver a introdução de Sheila Moura Hue para a obra: KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knyvet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 84 Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Op. Cit, p.59.

59

Figura 44 – Detalhe do contorno asiático em Diego Ribeiro (1529).

Em relação ao “Mundus Nows” Ribeiro também inovou comparando-se com La

Cosa e Cantino. O contorno americano é continuo com a especificidade da América

Central. Somente o contorno ocidental do continente que não é figurado, e a América do

Norte pouco aparece.

60

Figura 45 – Detalhe do contorno americano em Diego Ribeiro (1529).

Em André Homem há um aprofundamento no conhecimento de todas as regiões

anteriormente figuradas nos mapas. A península indiana tem sua dimensão proporcional

resgatada, a península da Malásia e a Indochina aparecem mais bem delimitadas.

61

Figura 46 – Detalhe do contorno asiático em André Homem (1559).

O continente americano ganhou uma enorme precisão. A América central é muito

fiel a realidade não só no contorno mas na proporção interiorana. As costas da América

do Norte são mais fiéis, aparecendo a península da Califórnia. Na parte sul do

continente encontram-se as bacias do Amazonas e do Plata85 delimitadas e com exceção

de uma parte do Chile atual, todo o sul é representado.

Figura 47 – Detalhe do contorno americano em André Homem (1529).

Destarte, nesse mapa-múndi o globo terrestre teve os seus principais contornos

alcançados pela cartografia, fruto direto das navegações pelos oceanos. Esse exemplar

abrigou assim todas as principais descobertas até 1559, e somente o Japão que guarda

ainda uma representação arcaica.86

85 Essa representação cartográfica do interior da América do Sul foi povoada dos chamados “mitos cartográficos” como o lago Xarayes. Que o desconhecimento do funcionamento do Pantanal mato-grossense propiciou. Para mais informações consultar: COSTA, Maria de Fátima. História de um País Inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVII. São Paulo: Estação Liberdade/Kosmos, 1999. p. 18. 86 A cartografia mais focada no realismo geográfico com suas coordenadas geográficas iria influenciar os chineses nas suas projeções cartográficas. Confira: Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.25 e 26.

62

Outra contribuição importante das navegações portuguesas foi a utilização da

astronomia influindo diretamente na localização dos Trópicos de Câncer e Capricórnio

além do Equador. Esse uso se generaliza a partir da década de 1490 podendo ser

identificadas nos mapas de Juan De La Cosa, Cantino, Diego Ribeiro e André Homem.

Conclusão

Voltando-se a constatação de Harley que nenhum mapa pode ser interpretado

isoladamente, mas sim o relacionado com outras produções cartográficas a comparação

estabelecida nesse capítulo comprovou essa concepção. Assim, o estabelecimento de

elementos herdados dos mapas-múndi medievais e de Ptolomeu, de um lado; e das

cartas-portulano mediterrânicas iniciadas no século XIII e da influência das grandes

navegações, de outro; mostrou que o legado desses dois grupos é fortíssimo. Cada mapa

testemunha a seleção das referências a outras produções cartográficas e que elas

ocorrem de forma particular. Todavia, o ofício cartográfico durante o período da

produção das fontes 1459 a 1559 significou submeter-se, conscientemente ou não, a

todo um aparelho referencial ligado a outras produções cartográficas.

Assim, Ptomoleu foi um autor com muita credibilidade justamente por representar

uma importante tradição grega na Antiguidade Clássica contribuindo inicialmente para

um melhoramento das representações cartográficas. Legitimando a utilização de seus

métodos na composição de mapas-múndi como testemunhou Fra Mauro. Porém, as suas

informações desde seu ressurgimento conviveram com os dados recentes provindos das

navegações mediterrânicas e lusas na costa africana. Percebeu-se, desta forma, que as

novas informações serviam aos espaços costeiros antes desconhecidos e sempre

representados de forma simbólica. Mesmo com a progressão das descobertas

geográficas a tradição ptolomaica não desapareceu, ela continuou como importante

fonte para a figuração de espaços ainda não atingidos pela experiência direta, o interior

dos continentes.

Assim, os mapas ditos “renascentistas” confluíram essas diversas formas de

apresentação do espaço indicando muito mais uma convivência de informações,

provindas da tradição e da experiência, do que uma escolha unilateral. Isso serve para a

importante constatação de que nessa época, paralelamente a um movimento de

valorização do real geográfico, outras formas de tradição cartográficas sobreviveram,

como a ornamentação.

63

Assim sendo, a influência náutica ganhou mais espaço, mas de forma lenta e com

alguns retrocessos. Contrariando a posição de evolução cartográfica ocorrida no

período renascentista defendida enormemente no século XIX e XX e ainda em voga no

século XXI.87 Essa é uma perspectiva reducionista de analise porque o estudo desses

exemplares deve ocorrer individualmente, pois em cada um existem diversas heranças

de várias origens.

87 Ver GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004.

64

2 – A SOCIEDADE E OS CARTÓGRAFOS

Esse segundo capítulo da pesquisa destina-se a resgatar as características

particulares provindas do contexto do cartógrafo e da sociedade. Pois, para entender o

complexo embate entre a tradição, representada pelas características simbólicas

medievais e os autores clássicos; e a experiência, partindo daquilo que é “cousa vista”,

deve-se entrar em questões como por que o cartógrafo realizou sua obra. Ou quem o

financiava e, portanto, esperava um determinado resultado. Através dessa abordagem

escapa-se de um estudo voltado apenas para o conteúdo do mapa em si, sem entrar nas

entrelinhas do jogo cartográfico88, que de uma forma ou de outra, buscava convencer

sua posição através do mapa. Dentro desse jogo, como ocorria a escolha entre as

informações provindas da tradição ou a experiência?

Para atingir esse objetivo focou-se primeiramente nas particularidades do

momento da confecção do mapa. Destacando as características que os torna originais,

no sentido de ser um produto único, um registro de seu contexto próprio. Considerando

também que se encontram imersos em uma série de exigências e interferências

(patrocinador, ajudantes...) em seu ofício tornando-o um veículo complexo das

dinâmicas sociais de uma época.

De acordo com Harley, esse contexto do cartógrafo sempre esteve representado

nas primeiras interpretações dos mapas. No entanto, eram realizadas apenas com o

objetivo de se estabelecer a autoria, como os livros e os documentos, ou através da

busca de uma intenção do cartógrafo. Porém, a autoria – excluindo os mapas

manuscritos - está diretamente ligada ao contexto social, uma vez que ela é resultado de

uma divisão de trabalhos. Essa divisão ocorre exatamente com a invenção da impressão,

pois diante de uma série de indivíduos colaborando no processo (topógrafo, editor,

gravador) o cartógrafo torna-se uma figura sombria e a tradução da realidade que ele

realiza torna-se mais complexa. O mapa pode apresentar vários textos - uma

intertextualidade – que deve ser buscada no processo interpretativo. 89

Ainda de acordo com Harley, cada mapa codifica mais de uma perspectiva de

mundo e revela toda a expressão de uma intenção, e estabelecer seu envolvimento com

88 Esse jogo pode ser sintetizado na perspective apontada por Denis Cosgrove. Segundo ele, os mapas são resultado de um processo seletivo cultural que envolve escolhas, reduções, omissões, e distorções quando representam o aspecto tridimensional do globo terrestre numa superfície bidimensional. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartograohy”. Op. Cit.,p. 6. 89 Cf. HARLEY, J. B., Op. Cit., p.64

65

um cartógrafo é muito menos direto do que a primeira vista pode parecer. Por isso, para

se realizar o estudo de qualquer mapa deve-se estar atento a sua função específica.

Mesmo com essa particularidade, eles podem servir para outros fins diversos rompendo

com a ideia de uma relação direta entre função e conteúdo. Destaca-se ainda que os

cartógrafos quase nunca podiam tomar decisões de maneira independente, nem sempre

estavam livres de limitações financeiras, militares ou políticas. Assim, vinculavam-se a

financiadores desse ofício, e por isso, ao se questionar um mapa deve-se estar claro que

as dimensões sociais encontram-se presentes muito além da técnica. 90

Para se estudar esses mapas, Harley recomenda a importância de se estar atento as

técnicas de navegação e a topografia, e também com as técnicas de compilação,

gravação, impressão e coloração, e saber sobre as práticas comerciais dos livros e dos

mapas. Segundo ele, eles são produtos de vários processos que envolvem diferentes

indivíduos, técnicas e instrumentos. 91A partir dessas constatações de Harley procurou-

se analisar cada autor dos mapas pesquisados.

2.1 - A Experiência na Primeira Modernidade

A maioria dos mapas não refletia diretamente o novo conhecimento cartográfico

produzido pelo início da época da expansão marítima. Isso iniciou uma nova atenção

para o Oceânico que não havia anteriormente. 92 Dentro disso, a cartografia portuguesa,

ou aquela diretamente relacionada com os seus feitos, se sobressaiu desde o início pelo

seu acentuado caráter prático e por um traçado rigoroso. Assim, a já referida experiência

náutica vivida pelos pilotos que serviu de base para os trabalhos cartográficos. 93

Entretanto, todo esse vigor da prática marítima desde o início do século XV fez com que

ocorresse lentamente uma alteração de mentalidade. De acordo com João de Castro

Osório foi através da aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do

mundo se apresentava outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam,

ou os autores clássicos. Desta forma, todo o pensamento anterior foi sendo posto em

confronto com a realidade, sem que tivesse de ser desde logo abandonado pelas

90 Ibid, p. 66. 91 Ibid, p.67. 92 Ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Op. Cit, p.23 e 24. 93ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,37.

66

verdades nascidas da experiência vivida e dos ensinamentos da realidade vista e

observada.94 Essa mudança pode, então, ser verificada nos mapas renascentistas.

Esse questionamento da tradição não se restringiu aos cartógrafos

“renascentistas”, ele atingiu diversos âmbitos dessa sociedade. Na obra Esmeraldo de

Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira95 texto iniciado em 1505 e no Tratado da Esfera96

de Dom João de Castro da década de 1540 aparecem exemplos que mostram o embate

surgido entre essa lenta mudança. Confluindo no esforço do pensamento desses autores,

onde o conflito entre a limitada ciência geográfica antiga e o que a experiência naval

revelava os colocava em oposição a geógrafos, filósofos e doutores que eram admirados

e respeitados no período. Os ditos modernos se diziam superiores aos autores clássicos

pela prática das teorias clássicas, sendo então “anões em ombros de gigantes”97.

Contudo, uma analise do período comprova que a experiência não significou o uso

de informações “verdadeiras”. A experiência podia, de certa forma, ainda induzir a uma

interpretação não condizente com a realidade geográfica. Um dos exemplos é do autor

Duarte Pacheco que apenas acreditou na ideia de Ptolomeu, referente à quantidade

superior das terras sobre o mar, porque para ele assim parecia. Depois das noticias do

Novo Mundo no ocidente, a experiência, “mãe das cousas”, confirmaria que para além

do mar-oceano havia grande quantidade de terras que circundariam o orbe.98

Essa crença na autoridade a partir da experiência provém da nova forma de

encarar o mundo.99 Essa nova postura proveniente dos descobrimentos, iniciados pelos

portugueses, inaugurou de acordo com Luis Filipe Barreto três importantes mudanças.

A primeira referiu-se a explosão informativa planetária sobre o homem e a natureza

instalando uma comunicação global; a segunda remeteu ao acelerado desenvolvimento

técnico e científico nas áreas da astronomia náutica, cartografia, magnetismo terrestre,

arquitetura naval e militar, hidrografia, botânica, zoologia, geologia, antropologia, entre

outros; e por fim, o mais importante para essa pesquisa, a crítica racional, sistemática e

fundamentada de muitos princípios chave, em especial os informativos, do

94Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16. 95 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991. 96 CASTRO, D. João de. Tratado da Sphera (cerca de 1540), in Obras Completas de D. João de Castro.Coimbra, 1968-1981. 97 MARAVAL, J. A. Antigos e Modernos. Madri: Aliaza, 1986. 98 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991, p. 351. 99 Cf. capítulo “Viagens e Contestação” presente na obra ASTON, Margaret. O Século XV. Lisboa: Verbo, 1968, pp.89-124.

67

conhecimento herdado da Antiguidade Clássica e do período Medieval que poderiam

ser aceitos segundo critérios fundados na observação, comparação, razão e não no

critério mais tradicional da autoridade.100 Isso seria responsável por instaurar “o novo”,

pois as informações de caráter geográfico (pertencentes a área cosmográfica) até o

século XV em sua maior parte era explicada pelos através de lendas provindas ou dos

autores clássicos, ou da Bíblia. A experiência representaria, portanto, uma mudança de

atitude, uma contestação a essa ordem posta.

Um elemento importante na contribuição dessas novas informações seria a

imprensa. Antes da sua adoção sistemática com a gravação dos mapas, o desenho era

feito a mão, dependendo do grau, rigor, habilidade e saber cartográfico além dos

copistas. A difusão era restrita, a elaboração de uma cópia era demorada e cara. Num

novo exemplar poderiam ser introduzidos novos dados, corretos ou não, sendo algumas

das alterações intencionais outras involuntárias. A durabilidade dos mapas era outro

problema, sobretudo os que eram desenhados para fins utilitários. A imensa maioria dos

mapas que não foram gravados na Itália, na Alemanha ou nos Países Baixos, perderam-

se com o uso, tanto mais que eram substituídos por outros, atualizados. Os manuscritos

persistentes foram provavelmente não feitos para fins práticos, serviam para decorar um

palácio, satisfazer a curiosidade de um erudito, ou servir como oferta a nobres

eclesiásticos. Por isso mesmo, os mapas portugueses produzidos ao longo das

descobertas no atlântico no século XV não sobreviveram. Tinham um caráter

eminentemente utilitário enquanto fonte de informação, meios de localização e bases

para registro de novos dados.101

Segundo Jeremy Black, a situação inicial da Europa mudou radicalmente no

século XVI com os mapas sendo impressos pela primeira vez na década de 1470. Isso

possibilitou com que eles fossem produzidos mais rapidamente e distribuídos

amplamente resultando em uma maior quantidade de mapas que os cartógrafos tinham

contato e, consequentemente se influenciavam cada vez mais por outros exemplares.

Desta forma, a imprensa facilitou a troca de informações, os processos de cópia e

revisão que eram tão importantes para a confecção levando a uma ênfase no aspecto

100 Ver BARRETO, Luis Filipe. Portugal Mensageiro do Mundo Renascentista. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p.23. 101 O autor David Woodward fez um estudo de como a cartografia se aproximou muito da tipografia em relação a marcação da toponímia. Assim o autor vai verificando ao longo da história da produção dos mapas como esse registro escrito varia e influi na leitura dos mapas. Cf. WOODWARD, David. “The Manuscript, Engraved, and Typographic Traditions of Mapping Lettering” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p. 15.

68

comercial. Inaugurando assim uma nova dinâmica para a produção e a propagação do

mapeamento. 102

Essa possibilidade de impressão trouxe uma grande mudança também em relação

as matrizes de produção dos mapas. Inicialmente eram realizados em madeira passaram

a ser feitas no cobre. As novas gravações feitas nesse metal tinham, no geral, um

desenho mais fino do que na madeira. Além disso, era relativamente fácil corrigir erros

nas placas de cobre, que podiam também ser reutilizadas. Em qualquer dos casos a

gravação era feita somente com uma cor, e depois da impressão, os exemplares eram

pintados manualmente, um a um. 103

2.2 – A Síntese em Fra Mauro

Os mapas aqui estudados encontram-se imersos em diferentes décadas da segunda

metade do século XV e no século XVI. Em cada um deles podem ser identificadas

questões envolvendo a sociedade da época. Pois, o produto final torna-se uma resposta a

uma solicitação visando à legitimação de algo. Lembrando que esses exemplares foram

destinados a cumprir uma função não prática, mas de ornamentação para príncipes ou

outros indivíduos que pudessem custear sua confecção significava, então, que eles

deveriam conter um determinado discurso. Dentro das solicitações de cada financiador

estaria toda uma leitura do mundo que o agradasse diretamente. Buscou-se, então,

segundo os dados de cada cartógrafo interpretar cada um desses mapas dentro de seu

objetivo próprio. Segundo Harley o poder interno do objeto cartográfico se dava através

da compilação, generalização, classificação, hierarquização de dados geográficos, e

longe de ser simples atividades técnicas neutras, implicavam no funcionamento de

relações de poder-conhecimento.104 Dessa maneira, o conhecimento do mundo pelos

cartógrafos era apresentado em seu mapa segundo as suas seleções próprias gerando um

poder sobre aqueles que observariam seu mapa.

Fra-Mauro foi um monge de Murano, localidade próxima de Veneza, que possuia

uma grande reputação como cartógrafo. A primeira referência obtida sobre seu ofício

data de 1447 quando estava trabalhando em um mapa-múndi. Dez anos mais tarde foi

comissionado pelo rei D. Afonso de Portugal para fazer outro mapa. O monarca pediria

ao monge que compusesse uma representação de todo o mundo conhecido utilizando as

102 Ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Op. Cit, p.23 e 24. 103 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,54. 104 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de los mapas. Op. Cit., p.144.

69

suas habilidades técnicas como cartógrafo. Para realizar a tarefa, Fra Mauro utilizou

uma série de informações que possuía no período. Dentre as influências que herdara das

produções cartográficas como referido no capítulo primeiro, as referentes às cartas que

mostravam os últimos descobrimentos portugueses teriam sido dados a ele por pedido

do próprio D. Afonso. Essa menção feita às cartas é comprovada pelas inscrições

colocadas na costa ocidental da África pelo cartógrafo. Em relação ao restante do

continente asiático além da baseada em outros mapas, Crone acredita que Nicolo de

Conti teria facilitado ao monge várias informações verbais sobre o sudeste do

continente, mais do que haveria em seu relato publicado. Isso seria comprovado pelos

mínimos detalhes sobre o comércio local presente no mapa, como confirma a

observação próxima a Irrauaddy onde as mercadorias se transportavam de rio a rio, e

seguiam até Catay. Já os detalhes da África, Crone também afirma que provinham da

igreja copta da Abissínia, que manteve um contato direto com a cidade do Cairo e

Jerusalém através de seus emissários, tornando-se as fontes principais do cartógrafo

italiano.105

O mapa-múndi foi feito em formato circular com um diâmetro aproximado de 2 m

traçado em pergaminho e montado sobre madeira. Para realizar esse trabalho Fra Mauro

contou com a ajuda de outro cartógrafo, André Bianco. Este último já havia desenhado

um mapa do mundo em 1436, e uma grande quantidade de iluminuras. O mapa de Fra

Mauro foi finalizado em abril de 1459 e enviado a Portugal. Depois disso não existem

registros de sua trajetória, nada que possa indicar o destino que teve no reino lusitano. O

cartógrafo morreu no mesmo ano, enquanto trabalhava em uma cópia daquele mapa

destinada a uma senhora de Veneza. Essa reprodução foi completada alguns meses

depois, pelo seu ajudante, André Bianco, ainda em 1459. Este outro exemplar

sobreviveu ao longo dos séculos e encontra-se atualmente na Biblioteca Marciana de

Veneza.106

Analisando as informações presentes no mapa juntamente com dados sobre a

biografia do autor e o contexto social pode-se entender um pouco da proposta

cartográfica presente em sua obra. A primeira das considerações refere-se a comparação

deste mapa com outros exemplares feitos pelo cartógrafo. Assim, compreende-se que o

enorme destaque as regiões da Pérsia e Mesopotâmia remete aos vários estudos

105 Cf. SCHULZ, Juergen. “Maps as Metaphors: Mural Map Cycles of the Italian Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.97. 106 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.59 e 60.

70

anteriores que o monge teve sobre essas localidades. O costume de figurar esses espaços

contribuiu para sua representação geográfica mais fidedigna. No entanto, sabe-se que a

obra original não teria agradado ao rei lusitano, isso poderia ser atribuído justamente ao

pouco enfoque dado pelo cartógrafo para as regiões do interesse português. Uma

observação mais cuidadosa revela que Portugal e a costa ocidental do continente

africano, resultado das explorações lusas, aparecem marginalizados na costa a direita. 107 Isso sugere que as expectativas para com a obra pelo produtor e pelo financiador não

foram supridas. Ainda na obra de Fra Mauro encontra-se presente uma contradição não

percebida pelo homem desse século XV e XVI.

O problema da veracidade das informações gráficas e escritas, presentes nas

legendas. Desse modo, para que seu testemunho fosse legitimado, o cartógrafo indicou

que ele foi realizado através dos dados provindos de indivíduos contemporâneos. Estes

teriam relatado fatos provindos da experiência que o monge confirmaria como sendo

dele próprio: “Em meu tempo me é esforçado por comprovar os escritos com a

experiência, ao largo de muitos anos de investigação e trato com pessoas dignas de

maior crédito, as que tem visto com seus próprios olhos a verdade de quanto digo.”108

Essa estratégia de legitimação é uma retomada de uma tradição provinda de

Heródoto, o primeiro a considerar a importância da viagem, da verificação, para a

compreensão do mundo, distinguindo a fábula da verdade.109 Entretanto, essa busca por

mostrar apenas aquilo que provinha da experiência própria ou de pessoas

contemporâneas esbarrava na força da tradição. As lendas ainda ocupavam grande parte

do mapa-múndi, que pode ser conferido na seguinte legenda:

“Até o ano de nosso Senhor de 1420 um barco da Índia, em uma travessia do mar da Índia até as ilhas dos homens e das mulheres, foi levado mais para lá do cabo de Diab através das Ilhas Verdes e a obscuridade até o oeste e o sudoeste por quarenta dias, não encontrando outra coisa que ar e água; segundo seus cálculos se percorreram 2.000 milhas e a sorte os abandonou. Regressaram ao dito Cabo de Diab em setenta dias e, ao parar próximo a costa para aprovisionar-se, os navegantes viram um ovo de um pássaro chamado roc, sendo o ovo tão grande como um tonel de sete galões e o tamanho do pássaro é tal que desde a ponta de uma asa a outra era de sessenta passos e pode quase com facilidade levantar um elefante ou qualquer animal grande. Causa grandes prejuízos aos habitantes e seu vôo é muito rápido.”

110

107 A disposição dos continentes em Fra Mauro encontra-se contrária a prática convencionada no século XVI de dispor a Europa ao norte, África ao sul e Ásia ao Leste. Portanto, o mapa conserva um pouco da influência árabe de colocar a África ao norte, a Europa ao sul e a Ásia ao oeste. 108 Citado por CRONE, G. R. Historia de los mapas, p.61. 109 Cf. DORÉ, Andréa. “Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos” In: Revista Brasileira de História, vol. 22, nº44, 2002, p.313. 110 Citado por CRONE, G. R. Historia de los mapas, p.61.

71

O roc é um pássaro fabuloso que se encontra presente na obra clássica de origem

árabe Mil e uma noites. Porém, quinhentos anos antes da data do mapa, um cronista

árabe em um escrito sobre Soffala se referia a uma história análoga. Nela um bote não

somente arrastou a tripulação a uma tempestade, mas também encontrou o roc. Desta

forma, Fra Mauro construiu seu mapa apoiando-se também em uma tradição lendária

provinda de fontes árabes. Comparando-se esses dois trechos presentes no mapa

observa-se sua contradição. No primeiro há a afirmação da utilização apenas de

informações comprovadas pela experiência, mas, no segundo têm-se os dados referentes

a lendas árabes. Ou seja, a experiência provinda com as navegações portuguesas por um

lado não significava necessariamente que a tradição seria banida do mapa. Pois o

próprio Fra Mauro não era capaz de perceber essa contradição111 justamente por causa

da retórica desse homem renascentista. Não havia, portanto uma diferença nítida entre

experiência e tradição, as duas coisas poderiam estar em conjunto. Além disso, a

afirmação do uso de referências provindas de “cousas vistas” remete também a tradição

literária de legitimação do relato produzido. 112 Esse é um dos fatores que contribui para

uma confusão entre os dados provindos da práxis e da autorictas.

Esse mistura dos dois grupos também está presente no já referido Esmeraldo de

Situ Orbis, de Duarte Pacheco que justifica a origem da povoação dos três continentes

do Velho Mundo:

“depois do universal dilúvio e total destruição, do qual por divino privilégio o Santo Noé e

seus filhos escaparam [...], por eles e sua geração foi possuído todo o universo, e por esta

causa se diz que Sem, seu primogênito habitou a parte oriental e Cão a parte do meio-dia e

Jafeth habitou a parte setentrional”113

Nessa passagem existe uma clara influência das Sagradas Escrituras que

certamente traziam o religioso para uma explicação geográfica. Porém, em outra

passagem da obra há a seguinte afirmação:

111 Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Londres: Yale University Press, 2005, p. 2. A autora trabalha com a “contradição” existente na corte de Gregório XIII que colocou no corredor do Vaticano no teto histórias religiosas, santos, e milagres, e, ao longo do corredor havia uma série de mapas da Itália moderna. 112 Cf. DORÉ, Andréa. “Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos” In: Revista Brasileira de História, vol. 22, nº44, 2002, p.313. 113 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541.

72

“A experiência nos faz viver sem engano abusões e fábulas que alguns dos antigos

cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar. Disseram que toda a terra

que jaz debaixo do circulo equinocial, era inabitável pela grande quantidade do sol. E isto

achamos falso e pelo contrário.” 114

Duarte Pacheco neste trecho credita a legitimação da sua afirmação ao uso da

experiência afastando-se da proposição de Isidoro de Sevilha e Lactâncio que

afirmavam que a zona tórrida (abaixo do circulo equinocial) não poderia ser habitada

devido ao excessivo calor. Entretanto, no primeiro trecho o autor ainda deixa-se

influenciar pela explicação bíblica. Logo, pode-se dizer que no período correspondente

ao Renascimento não existiu uma ruptura brusca com a tradição bíblica e erudita

clássica por meio da experiência náutica. O conhecimento marítimo não significou um

afastamento completo de todas as crenças antigas.

Trinta anos após o exemplar manuscrito feito pelo monge veneziano, a Itália

também seria o local da produção do mapa de Martellus.

2.3 – Henricus Martellus e a Geographia de Ptolomeu

De origem alemã, Henricus Martellus115 também era referido com o sobrenome

Germanus. Foi um dos copistas ocupado com as reproduções modernas da Geografia de

Ptolomeu. Na época em que o cartógrafo realizou sua obra as descobertas portuguesas

prosseguiam na costa africana com a conclusão da viagem de Bartolomeu Dias (1488),

que havia dobrado o Cabo das Tormentas, rebatizado, de Cabo da Boa Esperança.

Portanto, no momento que a obra do alexandrino ganhava mais edições o conhecimento

náutico exigia que fossem acrescentadas novas tábuas para dar conta das novas

informações geográficas evidentes. Acrescentando assim a “modernidade” as regiões

que na obra de Ptolomeu não estariam tão bem representadas. Em meados do século XV

Martellus era um dos quatro indivíduos responsáveis pela reprodução da obra do

alexandrino juntamente com seus mapas. Os outros eram P. de Massajo, c. 1458-72,

Nicholaus Germanus, 1464-71 e Francesco Berlinghieri na década de 1480. Esses

cosmógrafos, da mesma forma como Fra Mauro, não aceitaram sem críticas as ideias de

Ptolomeu. Essas novas edições publicadas ao longo do século XV tiveram a inclusão de

um número de mapas contemporâneos para o estabelecimento de uma comparação com

114 Ibid, p. 548. 115 Ver: ASTON, Margaret. O Século XV. Op. Cit., 1968, p. 47.

73

os manuscritos da obra. Objetivando, desta maneira, a complementação com os locais

não representados, ou uma melhor apresentação dos locais antigos. 116 Numa das

edições de Martellus, encontrada atualmente na Biblioteca Nacional de Florença,

existem treze mapas feitos por ele mostrando os aspectos “modernos” de regiões da

Itália117. Produziu essas obras em Florença mostrando os Alpes cuidadosamente em um

forma de “concha de ostra”, contornados e coloridos em castanho escuro com castanho

claro e branco na parte central. 118

Como informado no capítulo anterior, Martellus produziu sua obra no mesmo ano

que ocorreu o retorno de Bartolomeu Dias a Europa. Assim, ele contou com

informações contemporâneas das viagens lusas comprovando a circulação das notícias

das viagens ultramarinas. Questionando assim a ideia de um “sigilo” dos

descobrimentos portugueses ao longo do século XV.

De acordo com Alegria seria difícil alegar a ocorrência dessa política, pois os

exemplares cartográficos relatando os descobrimentos fora de Portugal foram

produzidos com tanta rapidez e rigor, não só numa ocasião ou por apenas um autor

concreto, mas repetidamente e constantemente. Consistindo em vários cartógrafos ao

longo do século XV e XVI. A autora conclui que se essa estratégia portuguesa

realmente existiu não foi mostrou-se eficaz, porque não restringiu as informações

provindas dos descobrimentos lusos. 119

Analisando ainda a vida e mapa do autor alemão nota-se que o resgate das

informações provindas da Antiguidade Clássica, por meio de Ptolomeu não significou o

seu uso restrito. As notícias veiculadas por toda a Europa acerca das novas regiões

conhecidas abaixo da zona tórrida implicaram uma revisão sistemática da autoridade da

Geografia e de outros autores clássicos. Não se poderia mais ignorar as informações das

experiências náuticas portuguesas no Atlântico. Consequentemente, mesmo sendo um

dos copistas responsáveis por lançar novas edições do livro clássico, Martellus não

reproduziu apenas as tábuas antigas, mas, realizou inclusões na costa africana ocidental,

além de incluir novos mapas regionais com o aperfeiçoamento de regiões da própria

Europa.

116 Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to christian Empire: The Hegitage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.”, op. cit., 16. 117 O termo Itália refere-se a localização geográfica e não política. 118 Essa representação local é fruto também da influência de Ptolomeu. Pois ele aconselhava a representação de pormenores Cf. CONTA, Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica”, op. Cit, p.25; e CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.79 e 80; ALPERS, Svetlana. “O impulso cartográfico na arte holandesa” In: A Arte de Descrever. São Paulo: Edusp, 1999, pp. 263-265. 119 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,38.

74

A imprensa também se mostrou importante no caso do mapa do cartógrafo

alemão. O exemplar que serve de fonte para essa pesquisa produzido em 1489 possuiu

versões gravadas e manuscritas, entre as quais hoje encontram-se em Leiden, Londres e

Yale. A gravação original foi realizada em Florença por Francisco Roselli, e uma das

reproduções, o enorme exemplar manuscrito da Universidade de Yale, possui 1,2m x

1,8m e é o único a possuir graduação em latitude e longitude.. Da gravação de F. Roselli

é provável que um exemplar possa ter chegado ao conhecimento de Cristóvão Colombo

(confirmando a ideia de Toscanelli de que o Cataio, isto é, o Japão, se situava bastante

próximo da Europa). Uma outra seria vista em Nuremberga por Martin Behaim, que

inspirou no mapa de Martellus para construir o primeiro globo terrestre em 1492.120

O exemplo do uso da impressão na obra do cartógrafo alemão mostra que dentro

de uma mesma série de mapas gravados existem diferenças consideráveis. Como lembra

Harley, quando se deu a transição da era do manuscrito para a da impressão, a divisão

de trabalho do cartógrafo se acentuou, o autor se converteu em uma figura sombria e a

tradução da realidade que ele registrava era mais complexa.121 Assim, dentro de uma

obra gravada existem inúmeras interferências que contribuem para a intertextualidade

final.

A confirmação de que a obra de Ptolomeu não refletia toda a realidade do globo

terrestre veio com a descoberta da América122 em 1492. Ou seja, deste momento em

diante, as navegações ibéricas provaram que as teorias clássicas sobre a disposição da

Terra não correspondiam com a realidade geográfica. Havia uma boa parte do orbe

desconhecido dos cosmógrafos clássicos e medievais. O “Mundus Novus” seria

figurado pela primeira vez pelo cartógrafo navegador Juan De La Cosa e dois anos mais

tarde aparecia na carta atribuída a Cantino.

2. 4 – A Divisão do Mundo em Juan de La Cosa e Cantino

La Cosa foi um navegante espanhol que acompanhou Cristóvão Colombo, a

serviço dos Reis Católicos de Espanha, em sua segunda viagem. Posteriormente

120 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,54 e 55. 121 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64. 122 O nome do continente seria creditado a Américo Vespúcio porque ele verificou que se tratava de um novo continente e não de ilhas asiáticas. Essa conclusão foi consagrada por Waldseemuller com o termo “América” para o novo continente. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.337.

75

realizou outras viagens ao continente americano, e traçou várias cartas, que estão

perdidas. Seu mapa de 180x96cm foi desenhado em pergaminho e ao longo do tempo

acabou sofrendo importantes danos. Os dados sobre sua produção encontram-se em uma

legenda na margem oeste, ao pé do desenho de São Cristóvão: “Juan de La Cosa a fez

no porto de s. Maria no ano de 1500”.

Dois anos após a produção de La Cosa surgiu o primeiro exemplar português que

registrou o Novo Mundo, sendo conhecido como a carta de Cantino. Esse nome foi

atribuído devido ao feito de um indivíduo chamado Alberto Cantino, que teria furtado

esse exemplar português para o Duque de Ferrara, chamado de Hércules d’Este. A carta

teria sido obtida clandestinamente para satisfazer a curiosidade do duque, angustiado

diante da ameaça que pairava sobre a participação italiana no comércio de especiarias.

A correspondência relativa ao acordo entre ambos, chegada até hoje, confirma que o

duque recebeu a carta em novembro de 1502, e que incorporava descobrimentos

recentes realizados no verão do mesmo ano. É um consenso entre os historiadores da

cartografia que a carta foi produzida por um cartógrafo português. Numa das suas partes

existem indícios de que foram feitas algumas correções posteriores na costa brasileira, e

se escreveram uma meia dezena de nomes italianizados. O título ao mapa é: Carta

marina das ilhas recentemente descobertas nas partes das Índias. No mapa as costas se

apresentam com muito detalhe e existe grande quantidade de nomes desde o ocidente

até o oriente abarcando desde Cuba até a costa oriental da Ásia.

Essas duas obras que testemunharam o nascimento da América para a Europa

foram produzidas com um intervalo de apenas dois anos. Nelas pode-se estabelecer um

paralelo pela proximidade de tempo e representação do novo espaço, referente ao

continente americano. Incluindo também a apresentação da nova configuração do

mundo resultante da divisão estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, no ano de 1494.

Devido às particularidades de cada um dos cartógrafos, a representação do mundo foi

realizada de formas muito diferentes.

Em Juan De La Cosa o continente americano aparece figurado seguindo a

influência das sua viagem ao novo mundo acompanhado de Colombo. A América

corresponderia, portanto, a área de interesse dos reis espanhóis, e desta forma foi

figurada com tons verdes aparecendo enigmaticamente representando o contorno litoral

sul lembrando o nordeste brasileiro. Seguindo para a América do Norte o contorno é

feito em uma continuidade sem aparecer a especificidade referente a América Central.

O Novo Mundo estende-se para fora do plano delimitado pelo mapa simbolizando o

76

desconhecimento do interior dessas terras, mas da mesma forma cogita-se que elas

poderiam se estender para além do litoral conhecido. Outra importante representação

presente no continente remete a figura de São Cristóvão - um mártir que teria

transportado o menino Jesus sobre os ombros para atravessar um rio - ocupando o meio

do continente disfarçando o um conhecimento regional não aprofundado123. Esse

símbolo ainda remeteria a Cristóvão Colombo que se considerava associado a esse

personagem. Tanto que em suas viagens ele estava permanentemente dotado de uma

missão religiosa, como confirmada pela sua associação do Rio Orinoco com a foz do rio

provindo do Paraíso. Revelando, dessa forma, o forte componente religioso presente

nesse contexto.

Já em relação à África, La Cosa a desenhou perfeitamente bem na costa ocidental

melhorando a representação do mapa de Martellus. No entanto, a parte oriental do

continente ainda é muito precária. Já o continente asiático, incluindo a península

arábica, ainda é representado seguindo o modelo estabelecido por Ptolomeu em suas

tábuas.

Diante da distribuição das terras do globo no mapa do viajante espanhol observa-

se sua distribuição privilegiando o continente americano. Na carta aparece uma linha

transversal que poderia ser associada a linha estabelecida por Tordesilhas apesar de não

ser confirmada pelos autores consultados. Essa hipótese surgiu devido a não existência

de nenhuma outra linha com essa orientação124 na carta. Como o uso sistemático de

meridianos não ocorre e a linha passa justamente na parte oriental do continente

americano dentro do que seriam as pretensões espanholas. De qualquer forma, a carta

privilegia fortemente o continente americano representando mais de 1/3 de todo a

distribuição espacial das terras.

No caso do mapa de Cantino o enfoque dado no mapa-múndi é o hemisfério

português acertado entre os reinos ibéricos. Iniciando a descrição do mapa pela

esquerda aparece a pequena parte destinada aos espanhóis, as chamadas pelo cartógrafo

de “as antilhas do Rei de castela” e como mostra outra legenda: “Toda esta terra é

descoberta por mandado do rei de castela”. Essa representação americana no lado

123 Essa é uma técnica amplamente utilizada na história da cartografia, que descende dos mapas simbólicos medievais, de encobrir um desconhecimento geográfico com uma ornamentação como referido no capítulo primeiro. 124 Juan de La Cosa não seria o último cartógrafo a não representar a convenção de dispor a Europa no alto. Pois os mapas se localizavam de acordo com o Apenninespine (linha formada pelos Alpes). Esses mapas estavam presentes no corredor no Vaticano da segunda metade do século XVI. Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit, p.2.

77

espanhol restringe-se a algumas ilhas do Caribe, uma pequena parte da América Central

e parte do litoral norte da América do Sul. As duas regiões que representariam o

continente americano, e portanto são interligadas não aparecem unidas no mapa. Isso

indica que o cartógrafo não se preocupou em utilizar-se da estratégia comum no período

de completar o interior dos locais desconhecidos como havia feito La Cosa.

Diferindo radicalmente desse pouco cuidado com a região que seria espanhola do

Novo Mundo, a região portuguesa foi figurada diferentemente. A costa brasileira

aparece bastante clara contando com a representação de três araras no seu interior.

Ainda na região portuguesa foi figurada a região do Labrador correspondendo as

viagens empreendidas pelos Corte Real.125

O continente africano aparece bem representado no seu contorno da costa

ocidental como oriental, a carta é infestada com os baluartes portugueses lembrando as

principais viagens de descoberta do continente, como a de Diogo Cão, Bartolomeu Dias,

Vasco da Gama. O destaque encontra-se certamente, junto com as araras no Brasil, é a

ornamentação da Serra Leoa e um dos grandes símbolos da expansão portuguesa, o

Castelo “Da’mina”. Outro ponto também importante é a inovação no desenho da Índia

enquanto península resultado direto da viagem de Vasco da Gama e Pedro Álvares

Cabral. No entanto, após a Índia, o restante do globo correspondendo a península da

Malásia e as outras localidades a leste provém das informações consagradas pela

tradição ptolomaica como mencionado no capítulo anterior.

125 A região do Labrador e da Terra Nova foi descoberta por viagens dos portugueses Corte-Real, mas nunca foram efetivamente colonizadas. Para mais informações ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit, 45 e 46.

78

Figura 48 e 49 – O Tratado de Tordesilhas em La Cosa(suposto) e Cantino

Consequentemente, a comparação entre esses dois mapas permite perceber as

entrelinhas do jogo cartográfico. A partir do contexto diferente de cada autor, um a

serviço da Espanha e o outro um representante de Portugal, a obra é refletida. O realce

em La Cosa dos territórios descobertos a ocidente e conseqüente representação

tradicional dos contornos litorâneos do Índico remete fortemente ao conjunto dos

conhecimentos e interesses da corte espanhola no período.

De forma contrária, em Cantino as principais áreas de interesse português são

desenhadas com grande destaque tanto referente à informação geográfica como

referente à ornamentação. Isso mostra como o cartógrafo tinha um condicionamento

referente ao local onde realizou a obra, bem como dos financiadores diretos ou

indiretos. Assim, La Cosa não representou a Ásia mais próxima ao real como seu

vizinho português porque ou ele não teve um interesse para com esse local ou as

informações do meio em que se encontrava não o permitiram. Por outro lado Cantino

79

deixou partes do continente americano sem uma ligação terrestre deixando de imprimir

uma suspeita recorrente de especulação sobre territórios desconhecidos.

De qualquer maneira a divisão do mundo acertada em Tordesilhas, testemunhada

pelos dois exemplares cartográficos, não iria resolver por completo as divergências

entre os reis ibéricos. Uma vez provou-se que a Terra é esférica, o limite oriental dessa

divisão do mundo deveria ocorrer no oceano Pacífico. Próximo a esse ponto

encontravam-se importantes ilhas produtoras das cobiçadas especiarias, as Molucas. O

que gerou, na da década de 1520, uma nova disputa entre os dois reinos testemunhada

pelo mapa-múndi de Diogo Ribeiro.

2.5 – O “Padrão Real” em Diogo Ribeiro

No início do século XVI surgiu na Espanha o “Padrão Real”, uma carta que

registrava oficialmente os descobrimentos obtidos até o momento. Havia sido criado por

ordem do rei Fernando, em 1508, e teria que ser revisado à medida que progredissem as

explorações pelo globo. Essa atualização periódica foi deixada aos cuidados dos

funcionários da Casa de Contratação de Sevilha. Nenhuma cópia autentica das várias

cartas que pertenciam a esse modelo sobreviveram, mas esse estilo apareceu

representado nas cópias feitas pelos cartógrafos oficiais, os funcionários reais que

tinham a função de confeccionar a carta original.126

Na Espanha encontravam-se muitos cartógrafos provindos de Portugal, um deles

era Diogo Ribeiro. Foi expulso de seu país nativo e no ano de 1519 estava em Sevilha

em contato com a família de cartógrafo dos Reinel, quando fazia os preparativos da

viagem de Magalhães. Cinco anos mais tarde, era referenciado em Sevilha pelos

espanhóis como “nosso cosmógrafo e mestre em fazer mapas, astrolábios e outros

instrumentos de navegação”. Foi ainda um assessor técnico da delegação espanhola na

conferência de Badajoz, quando se tentou negociar um acordo com Portugal sobre a

posição das Molucas127. Acordo esse, que não pode ser levado a diante, porque ambas

126 A expansão espanhola no período que vai de 1474 até 1524 é impressionante como analisado por Bárbara Mundy. Ver: MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 9. 127 A história da chegada dos europeus a essa ilha remete a presença portuguesa no Índico. Já no final do século XV os portugueses tiveram conhecimento da existência de uma importante cidade a oriente, Malaca. Ela controlava o comércio do Extremo Oriente. A conquista dessa cidade veio a ocorrer em agosto de 1511, o que fez com que as portas dos mares da Insulíndia se abrissem. E só aí descobriram a existência de um pequeno conjunto de ilhas que produzia o cobiçado cravo. Essa informação chegou aos

80

as partes se mantiveram seguindo suas aspirações. Assim, por decreto real de 1526 se

preparou todo o material necessário para que Ribeiro fizesse uma carta e um mapa-

múndi que descreveriam todos os descobrimentos, uma revisão do “Padrão Real”. No

ano seguinte foi designado examinador de pilotos, na ausência de Sebastião Caboto, que

se encontrava em uma expedição. Ribeiro alcançou uma posição muito destacada no

serviço da Espanha, sendo conhecido como Diego Ribeiro, onde permaneceu até a sua

morte em 1533. 128

De toda a sua obra sobreviveram três cartas do mundo de tipo análogas, uma feita

provavelmente em 1527 (não está com a data referida), e duas cópias datadas de 1529.

Elas representam uma mistura das influências cartográficas portuguesas e espanholas

produzidas no desenrolar do conhecimento do mundo, compreendido o circuito total do

globo entre os círculos polares, com o arquipélago das índias Orientais, que aparecem

em ambas as margens, de ocidente a oriente.

Revelando muito da visão espanhola acerca da divisão do mundo nos dois

hemisférios a carta de Ribeiro testemunha a disputa no extremo oriente. A estratégia

empreendida pelo cartógrafo resulta na disposição dos continentes.129 Pois, ele exagera

na extensão oriental da Ásia, no qual Cantão (China) se posiciona a uns 20º mais ao

leste que onde deveria. A distância entre o continente asiático e as Molucas foi reduzida

resultando na disposição dessas ilhas a 172º 30´O da linha divisória de Tordesilhas, isso

corresponderia a sete graus e meio dentro do lado espanhol. Com isso a carta validava a

posição espanhola pelo prolongamento oriental asiático com a posição “errônea” de 11º

das ilhas Molucas. 130

Essa localização das “ilhas das especiarias”, um dos mais importantes centros de

abastecimento do comercio oriental, nas proximidades da linha de demarcação hispano-

portuguesa, teve um efeito estimulador nos estudo de cosmologia e cartografia. Ambas

as partes, ansiavam demonstraram que as ilhas estavam em seu lado. A questão era tão

disputada que, dados os meios de que dispunham os protagonistas, tiveram necessidades

espanhóis que também queriam participar desse rico comércio. Ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor. Op. Cit, p. 547. 128 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.104 e 105. 129 Essa estratégia de adequar o mundo dentro de uma representação geográfica para validar uma posição é muito usado na história da cartografia. Um exemplo é de como o mito da ilha Brasil fez com que o espaço luso na América do Sul fosse construído diante dessa configuração estritamente cartográfica. Para mais detalhes desse mito Cf. DE BIAGGI, Enali; DROULERS, Martine. “L’Île Brésil: La Force d’um myth cartographique.” In: Mappa Monde, nº69, 2003, 43. 130 Os estudos dos historiadores da cartografia têm comprovado que a “dominação” e a “conquista” são elementos inerentes nos mapas renascentistas atuando, assim, com um poder da imagem acerca do interesse político e religioso. Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit, p.3.

81

de discutir o problema a fundo com ajuda das últimas cartas. No hemisfério ocidental a

linha de Tordesilhas era o meridiano 46º37´ O. de Greenwich, e o equivalente no

hemisfério oriental caía no meridiano 133º 30´E. As Molucas131 estão aproximadamente

nos 127º 30´E. dentro da esfera portuguesa, aproximadamente uns 6º graus dentro dela.

Sabendo disso, pode-se traçar a evolução da cartografia que atingira uma nova parte do

Oceano Índico com as ilhas orientais. Assim mesclaram feitos comprovados com os

informes nativos para a produção de cartas relativamente a esse espaço. De acordo com

Crone: “estas cartas são uma combinação de conhecimentos de primeira mão e de um

uso crítico e pouco da informação nativa.”132 Incluindo-se ainda, segundo Harley, as

intenções próprias do cartógrafo que selecionava as informações segundo a sua

necessidade. 133

O mapa-múndi de Ribeiro, com as Molucas sete graus e meio dentro do lado

espanhol, referiu-se a última prova da posição tomada pela Espanha134 na disputa, a qual

tinha como certo que o meridiano oriental corria para lá do delta do Ganges. Destarte,

da mesma forma como havia feito La Cosa, o hemisfério espanhol em Ribeiro atinge a

maior parte do globo representando também mais de 1/3 de todo o mapa. Estabelecendo

no região do pacífico uma grandiosa rosa-dos-ventos inaugurando uma nova disposição

ornamental. Ao invés de símbolos provindos de lendas clássicas ou bíblicas, o

cartógrafo utilizou de um instrumento de localização.

131 A situação era tensa. Portugal e Espanha guerreavam nas ilhas com tanto ardor como se o inimigo fosse um mouro. Na Europa as negociações não avançavam, pois o desconhecimento da exata longitude das ilhas não deixava definir quem, pela força do tratado, estava em seu direito. Ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit., p.187. 132 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.103. 133 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64. 134 No mesmo ano do mapa-múndi a Espanha desistiu de suas pretensões por meio de compensação monetária, e acabaram se instalando nas Filipinas. Isso inauguraria uma nova rota das trocas comerciais no planeta, a rota Acapulco-Manila. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, Op. Cit. p. 187.

82

Figura 50 e 51 – Tratado de Tordesilhas em Diogo Ribeiro, lado ocidental (esq.) e oriental (dir.)

83

Figura 52 – Representação da China no hemisfério espanhol.

D. João de Castro135 na década de 1540 em trecho um trecho de seu Tratado da

Sphera apresenta o conhecimento do mundo, cartografado por Ribeiro, realizado pelas

viagens portuguesas e espanholas desmitificando o que Santo Agostinho e Lactâncio

diziam sobre a inexistência de homens vivendo no hemisfério austral:

“A experiência, que se tem acerca disto é que a navegação de nossos tempos revolveu o

mundo todo e revolve ainda agora bem de vezes. Porque, além da nau de Magalhães que

navegou toda a esfera em roda, depois disto, fazendo os Portugueses sua navegação para os

últimos términos do Mundo, orientais, e os outros Espanhóis para os ocidentais, por vezes

se encontraram e acabaram de rodear todo este globo em Maluco. E assim por toda a

redondeza dele acharam mares que se navegam e terras que se habitam como estas nossas,

135 Um dos vice-rei da Índia. Esse cargo foi a delegação direta de poderes régios na figura de um nobre, o qual concentrava poderes políticos, militares, administrativos e judiciais de alta instância. Ver: ANDRADE, Amélia. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”, Op. Cit, p.38.

84

bem contrárias umas das outras. E todos por eles andam e navegam direitos e carregam para

o centro, como nós por cá.”136

O que João de Castro mostrou nesse trecho é que algumas idéias clássicas foram

contestadas pela experiência marítima. A partir do feito de Magalhães137 e do

conhecimento português das ilhas do Sudeste Asiático os principais contornos do globo

estavam sendo traçados.

Dentro desse século XVI também encontrava estabelecido todo um grupo de

cartógrafos dentro de um mesmo estilo representativo. Sendo uma forma de confluência

diferente do verificado em Diogo Ribeiro, que pertencia a um grupo de cartógrafos

responsável pelo “Padrão Real”.

2.6 – André Homem e as Escolas Cartográficas

André Homem pertencia às chamadas “escolas” cartográficas representando

oficinas com uma tradição estilística própria. Em muitos casos contavam com

familiares, tendo suas raízes nos ambientes da cartografia mediterrânica. Havia

verdadeiras “dinastias” de cartógrafos, como a da família Reinel, da família dos

Homens e da família Teixeira. Porém, estar ligado a essas escolas não significava fixar-

se em um mesmo local, pelo contrário. Muitos cartógrafos aprendiam todo um conjunto

de técnicas e depois se deslocavam para outros centros na Europa que estivessem

interessados no seu produto. Muitos cartógrafos portugueses exerceram essa atividade

no estrangeiro atraídos por vantajosos contratos, quer temporariamente, como o caso de

Jorge de Reinel, estando um período em Sevilha; ou no decurso de sua vida ativa como

o já mencionado Diogo Ribeiro, que só trabalhou em Sevilha, ou como Diogo Homem,

que esteve em Londres e depois fixou-se definitivamente em Veneza.

No caso da família dos Homens ela teria surgiu com Lopo Homem que era

cavaleiro fidalgo da Casa do Rei de Portugal. Produziu durante a primeira metade do

século, e viveu sempre em seu país. O padrão de cartas estabelecido por ele influenciou

inúmeras outras como dos seus filhos André Homem e Diogo Homem, e além de

diversos outros cartógrafos.

136CASTRO, D. João de. Tratado da Sphera (cerca de 1540), in Obras Completas de D. João de Castro.Coimbra, 1968-1981, p. 170 e 171. 137 Para conferir os detalhes da viagem ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit., p. 549.

85

André Homem seguiu o padrão dos Homem, realizou sua obra em Antuérpia, o

que causou grande impacto em sua época sendo considerado por Richard Haklut o

“príncipe dos cosmógrafos da atualidade”138. Sua obra é o maior planisfério lusitano

contando com 1,50 x 2,94. Ele pare ter vivido muitos anos fora de Portugal, depois de

fazer sua obra em Antuérpia segue para a França onde foi o cosmógrafo oficial do rei

Carlos IX139. Apesar dos esforços do rei de Portugal para que ele retornasse ao país ele

jamais conseguiu. Não se sabe ao certo mais antes do ano de 1559 o cartógrafo havia

fugido para o estrangeiro.

Além de André Homem e as famílias mencionadas, existiram muitos outros

cartógrafos filiados a “escolas”, e a imensa maioria eram cartógrafos portugueses.

Segundo Alfredo Pinheiro Marques foram listados 28 lusitanos com produção

conhecida, e 19 referenciados em documentos, mas dos quais não se conhecem hoje em

dia obras assinadas ou atribuíveis. 140

Desta forma, os modelos instituídos por esses centros representavam uma

importante influência na produção das cartas. Pois representava a manutenção de

representações próximas seguindo os mesmos padrões estilísticos gerando uma cópia de

figurações anteriores..141

Figura 53 e 54 –América do Sul em André Homem

138 Para mais detalhes sobre as escolas cartográficas ver: MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses.Op. Cit, pp. 49-64; ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Lisboa: Caminho, 1994, p.216. 139Sobre a relação de cartógrafos e cortes conferir a obra de Francesca Fiorani. Ela examinou a cartografia feita em duas cortes, a do Duque de Cosimo I de Médici (1537-1574) e a corte do Papa Gregório XIII Boncompagni (1572-85). FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit. 2005. 140 Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos. Op. Cit., p.57. 141 Nesse mapa aparece a iniciava da representação do Rio da Prata e afluentes a leste do meridiano de Tordesilhas. Cf. DE BIAGGI, Enali; DROULERS, Martine. “L’Île Brésil: La Force d’um myth cartographique.”,Op. Cit, p.43.

86

O mapa de André Homem representou um grande avanço na figuração dos

contornos da superfície terrestre. Segundo Alegria, entre 1434, quando Gil Eanes

dobrou o Cabo Bojador e a data do planisfério de André Homem, os navegadores

portugueses tinham levantado mais de 60 000 quilômetros de costas figuradas de modo

bastante preciso, com exceção do Japão com uma representação ainda arcaica. 142Em

André Homem também aparece retratada a divisão do mundo entre portugueses e

espanhóis. A linha que separa os hemisférios atravessa a América deixando no lado

português a foz do rio da Prata, enquanto que o mapa-múndi de Diogo Ribeiro deixa a

região no hemisfério espanhol.

Figura 55 – Tratado de Tordesilhas em André Homem

Conclusão

As especificidades relacionadas diretamente com o contexto do autor,

diferentemente do legado provindo de outros mapas, influenciam enormemente a obra

final. Suas marcas individuais estão sempre presentes na arte de cartografar além de

serem influenciados pelos responsáveis por encomendar a obra e, portanto, com as

expectativas para com o produto final, as disponibilidades técnicas para tal produção.

Como cada caso analisado acabou por mostrar.

142 Cf. ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,60.

87

Ainda observou-se que os autores encontravam-se imersos dentro do confronto

surgido entre a tradição e a experiência. O que não representava, de certa forma, um

dilema, pois havia, em certo grau, uma convivência entre ambas. O caso de Fra Mauro e

Duarte Pacheco Pereira mostrou que a tradição ainda estava presente, mesmo contando

com informações que se diziam tributárias da experiência sem que isso gerasse uma

contradição para ambos.

Desta forma, após analisar também Martellus e sua relação direta com a obra de

Ptolomeu; La Cosa e Cantino com suas visões acerca do mundo; Ribeiro com o

testemunho espanhol sobre o embate nas Molucas; e André Homem e o uso de uma

tradição “familiar”; concluiu-se que todos os mapas produzidos nesse período contavam

sim com as referências as novas regiões descobertas pela experiência náutica. Bem

como, as tradições simbólicas medievais e clássicas como mostrado no capítulo

anterior.

Consequentemente, os dados para a construção dos mapas-múndi eram utilizados

de acordo com a finalidade específica da obra. Ou seja, o contexto do autor influía

decisivamente na composição, uma vez selecionando, destacando, ocultando...143

143 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64.

88

3 - CONCLUSÃO

Ao final dessa pesquisa monográfica conclui-se primeiramente que nenhum mapa

pode ser interpretado isoladamente, ou seja, ele sempre se relaciona com outras

produções. A comparação estabelecida entre os mapas-múndi medievais e as tábuas de

Ptolomeu, de um lado, e os seis mapas pertencentes ao século XV e XVI, de outro,

mostram que a ligação é fortíssima. Constatou-se que em cada um as influências se

estabeleceram de forma particular, em um determinado grau. Isso mostrou que o ofício

cartográfico no início do Renascimento significava estar submetido, conscientemente

ou não, a todo um aparelho referencial ligado a outras produções cartográficas.

No entanto, essas informações logo cedo conviveram com os dados provindas das

Grandes Navegações. As novas informações serviram aos espaços antes desconhecidos

e que foram compondo os novos locais até então desconhecidos. Porém, a tradição da

representação ptolomaica não desapareceu, ela continuou a ser uma importante peça

para a representação de espaços ainda não atingidos pela experiência direta, como o

caso dos Montes da Lua. Contribuindo nessa representação cartográfica, a

ornamentação dos mapas-múndi da Idade Média também são soluções usadas para

completar os espaços de que se tem pouca ou nenhuma informação.

Assim, os mapas renascentistas confluem diversas formas de representação

indicando muito mais uma convivência de influências do que uma escolha unilateral.

Outra importante constatação é de que o período em que foram produzidos não indica

necessariamente um melhor representação do “real” ajudando a derrubar a ideia de

evolução cartográfica no Renascimento.

Juntamente a essa conclusão primeira somam-se as especificidades relacionadas

diretamente com o contexto do autor, pois, diferentemente do legado provindo de outros

mapas, elas também influenciam a sua maneira a obra final. Essas marcas estavam

presentes na arte de cartografar desses indivíduos, incluindo aí os responsáveis por

encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as

disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a

imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi

principalmente no século XVI.

Ainda de acordo com todas as informações apontadas elas sofreram repercussão

do dilema do homem da época referente ao confronto surgido entre a tradição e a

experiência. Todos os mapas produzidos nesse período contavam, então, com

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informações provindas da experiência náutica e das tradições simbólicas medievais e

clássicas. Porém, utilizadas de acordo com a finalidade da obra como pode ser

observado tanto em La Cosa como em Cantino.

Isso pode ser exemplificado na forma como o cartógrafo Diogo Ribeiro

selecionava os dados que estivessam de acordo com a finalidade específica de seu

produto, retratando todos os descobrimentos até aquele momento. Porém, sua obra

destinava-se a confirmar as pretensões espanholas acerca das Molucas, local onde o

Tratado de Tordesilhas não tinha um limite de comum acordo entre os reinos ibéricos. O

mapa foi então uma ferramenta para legitimar a posse dos espanhóis, com isso, a

experiência náutica que então mostrava que as ilhas estavam do lado português não foi

levada em conta.

Assim, diante desses dois grupos de influências: outros mapas e contexto do autor;

Construir um mapa-múndi na época renascentista significava utilizar-se dos novos

dados sobre regiões exploradas pelas navegações. Contudo, como eles não podiam

preencher todos os espaços do mapa-múndi, havia territórios ainda sob o domínio da

tradição. Entretanto, a utilização dessas informações ou da tradição ou da experiência

foi permanentemente condicionada pelo contexto próprio do autor.

90

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