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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ ARYANE DE OLIVEIRA HISTÓRIA DE VIDA DE UMA JOVEM COM SÍNDROME DE ASPERGER MARINGÁ 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

ARYANE DE OLIVEIRA

HISTÓRIA DE VIDA DE UMA JOVEM COM SÍNDROME DE ASPERGER

MARINGÁ

2017

ARYANE DE OLIVEIRA

HISTÓRIA DE VIDA DE UMA JOVEM COM SÍNDROME DE ASPERGER

Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina “Trabalho de Conclusão de Curso”, do curso de Pedagogia, modalidade presencial, da Universidade Estadual de Maringá. Orientação: Profa. Dra. Gizeli Aparecida

Ribeiro de Alencar

MARINGÁ

2017

HISTÓRIA DE VIDA DE UMA JOVEM COM SÍNDROME DE ASPERGER

Trabalho apresentado como parte dos requisitos para conclusão do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá, sob apreciação da seguinte banca examinadora:

_____________________________________________________

Profª Drª Gizeli Aparecida Ribeiro de Alencar (DTP/UEM)

Professora orientadora

_____________________________________________________

Profª Drª Nerli Nonato Ribeiro Mori (DTP/UEM)

____________________________________________________

Profª Doutoranda Viviane Gislaine Caetano Auada

Dedico esse trabalho aos meus pais

Vanderlei e Solange por terem me

concebido a dádiva da vida terrena para

que eu pudesse ser luz na vida de outras

pessoas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus pelo dom da vida, pela força, amparo e

sabedoria conquistados durante essa etapa tão importante e a intercessão da

Virgem Maria, a quem tanto estimo.

À minha orientadora Profª Drª Gizeli Aparecida Ribeiro de Alencar que, além

de ter realizado uma excelente orientação para a conclusão deste trabalho,

colaborou significativamente para a construção da minha identidade profissional,

ensinando-me a trilhar os caminhos da inclusão.

Aos meus pais, por compreenderem meus anseios de menina e terem

permitido alcançar a graça de me graduar em Pedagogia, colaborando

financeiramente com os meus estudos.

Ao meu namorado por respeitar e admirar minha profissão, pela paciência e

amparo durante essa etapa fundamental da minha vida.

Aos meus avós e a toda minha família, ao qual tanto amo, por terem

compreendido as minhas ausências, rezando e torcendo pelo meu sucesso

profissional. Em especial, as minhas primas Thayla e Monize e a minha afilhada Ana

Gabriela que despertaram em mim o anseio pela profissão.

À família CB, pela compreensão, amizade, tristezas e alegrias compartilhadas

durante esses últimos cinco anos, assim como a todos os amigos que, mesmo

distantes, me motivaram a ser quem hoje eu me tornei.

Às minhas amigas Francieli e a Hindiara (in memoriam), que partiram dessa

vida antes que eu me graduasse, mas que participaram dos meus estudos no ensino

básico, me apoiaram na escolha de se tornar Professora/Pedagoga e comemoraram

quando passei no vestibular dizendo que “essa UEM seria pequena” para mim, e é,

realmente foi.

Às amizades construídas na graduação, em especial, aquelas que se

constituíram no PIBID e no projeto de extensão para pessoas com necessidades

educacionais especiais, que foram essenciais para a minha formação.

Aos professores que contribuíram para a construção da minha identidade

profissional, sendo exemplos de força, perseverança e dedicação.

Também gostaria de agradecer à banca examinadora, Profª Drª Nerli Nonato

Ribeiro Mori e a Profª Doutoranda Viviane Gislaine Caetano Auada, por terem

aceitado o convite e pela disponibilidade em fazer parte desse momento ímpar da

minha vida.

Oração dos Autistas

Bem aventurados os que compreendem o meu

estranho passo a caminhar.

Bem aventurados os que compreendem que ainda

que os meus olhos brilhem, minha mente é lenta.

Bem aventurados os que olham e não veem a comida

que eu deixo cair fora do prato.

Bem aventurados os que, com um sorriso nos lábios,

me estimulam a tentar mais uma vez.

Bem aventurados os que nunca me lembram que hoje

fiz a mesma pergunta duas vezes.

Bem aventurados os que compreendem que me é

difícil converter em palavras os meus pensamentos.

Bem aventurados os que me escutam, pois eu

também tenho algo a dizer.

Bem aventurados os que sabem o que sente o meu

coração, embora não o possa expressar.

Bem aventurados os que me amam como sou, tão

somente como eu sou, e não como eles gostariam

que eu fosse.

(Autor desconhecido)

RESUMO

Há mais de cem anos, o Autismo, vem sendo discutido por inúmeros pesquisadores que buscam compreender as causas e as características atribuídas pelo mesmo, para finalmente, incluir o Autismo e a Síndrome de Asperger como entidades diferentes dentro do mesmo espectro, o Transtorno do Espectro do Autismo, que varia a partir do grau de acometimento (grau leve, moderado e severo). As pesquisas se ampliaram, contudo, são ainda incipientes para determinar a causa do Autismo/Síndrome de Asperger. Desde as pesquisas realizadas por Kanner, na década de 1940, à denominação para o quadro de autismo vem sofrendo alterações, bem como os critérios diagnósticos. A Síndrome de Asperger especificamente, só recebeu reconhecimento oficial a partir da publicação da 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças e da 4ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Assim sendo, o objetivo geral desta pesquisa foi “investigar, por meio de narrativas, como se deu o processo de escolarização de uma jovem com Síndrome de Asperger”, e os específicos “conceituar Autismo e a Síndrome de Asperger” e “descrever os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ao longo das duas últimas décadas”. Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa de campo fundamentada na metodologia de história de vida junto a uma jovem com Síndrome de Asperger. A partir dos relatos pudemos constatar características que vão ao encontro com o prenunciado na literatura. A princípio acreditávamos que nos depararíamos com uma garota que iria desfilar desinteresses ao campo social, mas durante a coleta de dados a mesma verbalizou por meio de suas memórias as tantas tentativas de se incluir, fazer amizades, participar de atividades em grupos, ações essas que acredita ter falhado, sem entender o porque. Sua fala denotou o tempo inteiro o desejo de ser aceita e pertencer a um grupo social. É sabido que os Aspergers apresentam dificuldades em entender os estados emocionais alheios e expressar suas próprias emoções. Contudo, constatamos por diversas vezes a jovem expressando suas emoções e sentimentos. Assim, trazer para o cenário educacional a perspectiva de inclusão sob a ótica da pessoa acometida pela síndrome configurou-se importante, pois deu voz e visibilidade a ela. Concluímos o estudo com mais indagações que respostas e esperamos a partir do exposto subsidiar a busca e reflexões sobre a Síndrome de Asperger para os profissionais da educação e demais interessados que necessitam redimensionar as práticas pedagógicas a fim de propagarem um ideal de inclusão a sujeitos com Síndrome de Asperger, atualmente denominado Transtorno do Espectro Autista de grau leve. Palavras-chave: Autismo. Síndrome de Asperger. História de Vida.

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: SÍNTESE DAS ÚLTIMAS CLASSIFICAÇÕES DIAGNÓSTICA..........27

LISTA DE ABREVIATURAS

ABA Applied Behavioral Analysis

APA Associação Psiquiátrica Americana

CID Classificação Internacional de Doenças

DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

EUA Estados Unidos da América

METEP Metodologia da Pesquisa em Educação

MPB Música Popular Brasileira

OMS Organização Mundial da Saúde

PIBID Programa Institucional de Bolsas para a Iniciação a docência

AS Síndrome de Asperger

TEA Transtorno do Espectro Autista

TEACCH Treatment and Education of Autistic and Related Communications

Handicapped Children

TID Transtornos Invasivos do Desenvolvimento

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

2 DEFININDO CONCEITOS: AUTISMO E SÍNDROME DE ASPERGER...... .......... 14

3 DSM: MUDANÇA DOS CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS ......................................... 25

4 METODOLOGIA .................................................................................................... 30

5 RESULTADOS ....................................................................................................... 32

5.1 TRAJETÓRIA ESCOLAR ................................................................................ 32

5.1.1 Educação Infantil e Ensino Fundamental ...................................................... 32

5.1.2 Ensino Médio ................................................................................................ 37

5.1.3 Ensino Superior ............................................................................................ 39

5.2 QUEM É “RAFA” .............................................................................................. 43

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 53

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 56

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1 INTRODUÇÃO

A Universidade apresenta um leque de possibilidades para a formação do

acadêmico, que vai além do contexto de sala de aula e das disciplinas ministradas

no curso. Ao ingressarmos no curso de pedagogia tomamos conhecimento das

possibilidades de formação extracurricular por meio de projetos de ensino, de

pesquisa e extensão.

A trajetória que nos trouxe até aqui perpassou primeiramente pelo Projeto de

Extensão “Intervenções Pedagógicas Junto à Criança Hospitalizada”, quando

cursávamos o primeiro ano do curso de pedagogia. A princípio sentimos receio de

lidar com as crianças e suas especificidades devido às doenças ou deficiências que

cada uma possuía. Contudo, no decorrer do projeto constatamos que existe um

universo de possibilidades para intervir e interagir neste contexto.

No ano seguinte, por meio do PIBID, ênfase na educação infantil, deparamo-

nos com uma criança com deficiência física-neuromotora1. Novamente o cenário

mostrou-se desafiador ao percebermos as lacunas existentes entre o processo de

inclusão ideal em contraposto com o real, evidenciando o quanto é importante um

currículo flexível que possibilite ao educador mediar práticas pedagógicas que

propiciem conhecimentos a todos os alunos, incluindo os que possuem deficiência e

precisam ser atendidos nas suas necessidades, seja com materiais adaptados ou

um professor de apoio.

Nesse cenário observamos diferentes olhares e posturas para com a criança

com necessidades especiais. Profissionais que buscavam conhecimentos para

respaldar suas práticas pedagógicas e outros que simplesmente negligenciavam.

Desta forma, em um único ano de observação e participação, em um Centro de

Educação Infantil, verificamos alguns desafios para a efetivação de uma política

educacional inclusiva consubstanciada em práticas pedagógicas eficientes.

1 O termo neuromotora reporta-se às deficiências ocasionadas por lesões nos centros e vias nervosas

que comandam os músculos. Podem ser causadas por infeções ou por lesões ocorridas em qualquer fase da vida da pessoa ou por uma degeneração neuromusculares cujas manifestações exteriores consistem em fraqueza muscular, paralisia ou falta de coordenação. FONTE: SEED/PR - <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=680> (Acesso em 15/05/17).

12

Ao ingressarmos no terceiro ano, concomitante às atividades desenvolvidas

no PIBID, agora com ênfase em gestão escolar, entramos num projeto de extensão

voltado para atividades junto a jovens e adultos com necessidades educacionais

especiais, uns alfabetizados e outros não. Esse momento evidenciou-se ímpar para

o nosso processo de formação. Indagações sobre o processo de ensino e

aprendizagem, alfabetização e letramento, práticas pedagógicas, sobre inclusão,

sobre o contexto escolar de forma geral começaram a se fazer presentes.

Começamos a refletir e a nos questionar sobre as problemáticas que se fazem

atuais nas instituições de ensino, no que diz respeito ao atendimento educacional a

alunos com deficiências. Em que medida a escola, que se propõe e se respalda em

políticas educacionais inclusivas, atende às necessidades educacionais desse

alunado com vistas a sua progressão escolar? Esses alunos acessam o ensino

superior?

Estando com o olhar mais sensibilizado em relação às pessoas com

deficiência e à medida que fomos nos apropriando de alguns pressupostos sobre a

possibilidade de desenvolvimento dos mesmos, constatamos que no curso de

pedagogia havia uma acadêmica com diagnóstico de Síndrome de Asperger (SA) e

que exercia a função de estagiária no laboratório de apoio pedagógico do curso.

Esse fato, para nós, inusitado, trouxe outras inquietações: Como a acadêmica

chegara até ali? Qual trajetória percorrida? Quais obstáculos teve que transpor?

A partir de então, definimos o que gostaríamos de pesquisar e lembramo-nos

da definição que nossa orientadora nos deu sobre pesquisa em uma de nossas

conversas: “Segundo Rolands Barthers pesquisar é estudar o que não se sabe”.

Estava ali em nossa frente um assunto que desconhecíamos e que nos despertou

interesse em estudar.

Considerando que vivenciamos tempos de inquietações acerca do ideal de

inclusão, esta pesquisa buscou desvelar como se deu a trajetória escolar de uma

jovem com Síndrome de Asperger, com intuito de subsidiar o conhecimento para os

profissionais da educação e demais interessados que necessitam redimensionar as

práticas pedagógicas a fim de propagarem um ideal de inclusão a sujeitos com

13

Síndrome de Asperger, atualmente denominado Transtorno do Espectro Autista de

grau leve.

Falar desta síndrome é muito importante, justamente por haver sido

delimitada recentemente pela ciência e por ser pouco divulgada entre os educadores

e a sociedade.

Trata-se de um assunto que a sociedade e educadores não conhecem em

profundidade, e trazer para o cenário educacional a perspectiva de inclusão sob a

ótica da pessoa acometida pela síndrome configura-se importante, pois dá voz e

visibilidade ao sujeito, dados esses que poderão melhor subsidiar os

encaminhamentos didáticos e metodológicos junto a esse alunado.

Assim sendo, o objetivo geral desta pesquisa é “investigar, por meio de

narrativas, como se deu o processo de escolarização de uma jovem com Síndrome

de Asperger”, e os específicos “conceituar Autismo e a Síndrome de Asperger” e

“descrever os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de

Transtornos Mentais (DSM) ao longo das duas últimas décadas”.

Assim sendo, desenvolvemos uma pesquisa de campo fundamentada na

metodologia de história de vida organizada em 6 seções. A seção 1 introduziu a

temática. A seção 2 versa sobre os conceitos de Autismo e Síndrome de Asperger.

A seção 3 descreve as mudanças conceituais ocorridas no Manual Diagnóstico e

Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Na seção 4, descreveremos o percurso

metodológico. Em seguida, na seção 5, apresentaremos os resultados dos dados

coletados. Por fim, as considerações finais.

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2 DEFININDO CONCEITOS: AUTISMO E SÍNDROME DE ASPERGER

O Autismo e a Síndrome de Asperger são entidades diferentes dentro do

mesmo espectro, que variam a partir do grau de acometimento. De acordo com Klin

(2006), estão classificados entre os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID)

mais comuns na atualidade, afetando aproximadamente 1 em cada 200 indivíduos.

Contudo, há mais de cem anos pesquisadores vêm buscando as causas e as

possibilidades de “cura” para as anormalidades atribuídas ao Autismo.

De acordo com Ferrari (2007), o termo autismo se originou do grego autós,

que significa “de si mesmo” e começou a disseminar-se em 1911, quando o

eminente psiquiatra Eugen Bleuler introduziu o autismo, descrevendo-o como “[...] a

fuga da realidade o retraimento para o mundo interior dos pacientes adultos

acometidos de esquizofrenia.” (FERRARI, 2007, p.5).

Bleuler descreveu quatro sintomas principais da esquizofrenia, que ficaram

conhecidos como os quatro “A’s” de Bleuler, a saber: Afrouxamento dos nexos

associativos do pensamento; Autismo; Afetividade embotada e Avolição

(PALMEIRA; GERALDES; BEZERRA, 2009).

O Afrouxamento dos nexos associativos do pensamento referia-se às ideias

que são associadas de forma errada e com prejuízo da lógica (do nexo). O Autismo,

por sua vez, foi caracterizado pelo comportamento introspectivo, isolamento social e

dificuldade de relacionamento e comunicação com outras pessoas. A Afetividade

embotada, referia-se à redução das expressões emocionais, com mímica facial e

gestos comunicativos escassos ou artificiais, levando à falta de empatia; ou

afetividade ambivalente, caracterizada pela contradição de emoções e sentimentos

em diferentes contextos e situações sociais, levando a uma inadequação das

expressões afetivas, com reações inesperadas de raiva, tristeza e alegria em

situações em que aquela resposta afetiva não é esperada e, por fim, a Avolição,

descrita como ausência de vontade, com comportamento desmotivado e apático,

sem interesse ou persistência em atividades corriqueiras ou com aumento do ócio.

Observa-se, portanto, que um dos sinais primários da esquizofrenia, para

Bleuler, era a inclinação ao afastamento da realidade, ou seja, o indivíduo

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esquizofrênico tinha uma tendência a refugiar-se no seu mundo interno admitindo

um caráter patológico. A esse quadro sintomático, Bleuler chamou de Autismo

(Landenberger, 2011).

Contudo, as primeiras publicações sobre o autismo ocorreram em 1943. O

pedopsiquiatra2 austríaco Léo Kanner publicou um artigo em que relatava um estudo

realizado com 11 crianças, sendo três meninas e oito meninos, os quais

apresentavam dificuldades na comunicação, na linguagem, na organização do

pensamento, no comportamento e na socialização. Kanner foi o primeiro

pesquisador a publicar sobre o autismo, descrevendo suas análises no artigo ao

qual denominou: Distúrbios autísticos do contato afetivo (MERCADANTE;

ROSÁRIO, 2009, FERRARI, 2007).

Em seu artigo, descreveu relatos de algumas mães que notaram em seus

filhos características contraditórias às das demais crianças. Uma dessas

características era a ausência de atitudes corporais em relação aos adultos, antes

ou após serem levados ao colo. Também não apresentavam mudanças em suas

expressões faciais, nem se quer com a presença e o diálogo de seus pais. Tais

características estavam presentes na criança desde os primeiros anos de vida, e já

demonstrava o desinteresse em se relacionar com o ambiente, isolando-se

constantemente (BRASIL, 2015).

Um dos sinais precoces apresentados pelas crianças do espectro autista era

o problema na aquisição da fala. Três das crianças estudadas por Kanner não

adquiriram a fala e as demais falaram na idade prevista, ou um pouco mais tarde, no

entanto, a linguagem oral não servia para comunicação. O falar se dava de forma

desordenada, com repetições ou informações decoradas. Enquanto a fala se

mostrava prejudicada, a memorização, por sua vez, era privilegiada.

Outra característica crucial apresentada por essas crianças, de acordo com

os estudos de Kanner, citado por Brasil (2015), era a dificuldade em generalizar

conceitos, pois tendiam a usá-los de maneira literal, associando-os ao contexto em

que haviam ouvido pela primeira vez. Exibiam ecolalia3 e não utilizavam o pronome

2 Profissional que trabalha na área da saúde mental de crianças e adolescentes entre zero e dezoito

anos de idade. 3 Eco na linguagem, ou seja, repetição de frases, palavras ou parte de palavras.

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“eu” para se referirem a si mesmas. A entonação da voz não variava, quando

desejavam algo, costumavam repetir frases e perguntas que haviam escutado de

terceiros. O comportamento também era repetitivo e essas crianças se prendiam a

rotinas, portanto, tudo o que fosse modificado lhes causavam crises de ansiedade e

desespero. O último (o desespero) também poderia ser provocado por barulhos

fortes e objetos em movimento, somente os movimentos e ruídos emitidos por ela

eram aceitáveis.

No que diz respeito à socialização, as crianças descritas por Kanner

mantinham boa relação com os objetos, de preferência aqueles que a aparência e a

posição não eram modificadas, contudo os utilizavam de maneira não funcional

Por exemplo, se brincassem com um carrinho, não faziam com que ele deslizasse por um determinado espaço, como faria a maioria das crianças; preferiam virá-lo ao contrário e ficar por muito tempo girando suas rodas, ou batendo com ele no chão (SUPLINO, 2005, p.17).

Por outro lado, as relações com outras pessoas eram perturbadas, sempre se

isolavam das demais crianças, não tinham interesses em conversas alheias, nem

sequer olhavam no rosto das pessoas, ou seja, mantinham um distanciamento de

tudo que se referia ao campo social. (BRASIL, 2015; SUPLINO, 2005).

Assim, Kanner verificou que havia distinção entre a esquizofrenia e o Autismo.

Enquanto no esquizofrênico a mudança no comportamento era gradual, acarretando

no distanciamento do mundo após alguns anos de desenvolvimento normal, o

Autista apresentava bom nível intelectual, ótimo vocabulário (naqueles que

desenvolveram a linguagem) e memória extraordinária. Deste modo, Kanner

concluiu que a dificuldade central do Autista não se referia ao cognitivo e sim ao

afetivo. (BRASIL, 2015; SUPLINO, 2005).

Em síntese, Kanner considerou o estado autista, a princípio, como entidade

nosológica à parte. Em um segundo momento, ele incluiu esse estado no campo

geral das psicoses. Mais tarde, analisou o autismo infantil como uma forma precoce

de esquizofrenia e, depois, o considerou como uma entidade diferente da

esquizofrenia, mas dentro de uma síndrome esquizofrênica.

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Assim sendo, as seis características clínicas da afecção apresentadas por

Kanner sobre o termo “Autismo”, foram: Retraimento autístico; Necessidade de

imutabilidade; Estereotipias; Distúrbios da linguagem; Inteligência e,

Desenvolvimento físico (FERRARI, 2007).

O retraimento autístico refere-se à ausência de contato com o meio externo

no qual a criança age como se os objetos e as pessoas a sua volta não existissem.

O contato corporal, principalmente, provoca nela uma série de angústias e

agressividades.

A necessidade de imutabilidade, por sua vez, corresponde à necessidade da

criança manter estável e inalterado o seu ambiente cotidiano, ou seja, sua rotina.

Qualquer mudança, por mínima que seja, lhe causa agonia ou desperta raiva.

Já as estereotipias referem-se aos gestos repetitivos e rítmicos realizados

pela criança, podendo ser variáveis. Na maioria das vezes, são movimentos de

balanço do tronco, palmadas e esfregaduras, agitação dos dedos ou das mãos

diante dos olhos e movimentos giratórios ao redor do seu próprio corpo.

Os distúrbios da linguagem são constantes, podendo ser variáveis de acordo

com a idade e o grau de acometimento. As crianças que conseguem desenvolver a

linguagem tendem a reverter pronomes, realizar a repetição ecolálica e não

empregá-las com a função de comunicar-se.

No que se refere à inteligência, a grande maioria dos pacientes autistas

possuem déficits intelectuais. Enquanto o desenvolvimento físico é geralmente

normal, podendo entre 15 a 20% terem crises de epilepsia. (FERRARI, 2007).

Em 1949, Kanner se referiu ao autismo como uma síndrome denominada

“Autismo Infantil Precoce”. Assim, separou-o da esquizofrenia infantil, salientando a

necessidade de verificar o autismo como um sintoma primário, longe de ser orgânico

ou psíquico.

Até o final da década de 1950, Kanner enfatiza os fatores de ordem

psicológica ou ambiental em contraposto aos orgânicos. No ano de 1956, em

parceria com o pedopsiquiatra Eisenberg, Kanner averiguou que o autismo poderia

aparecer posteriormente, inclusive após um desenvolvimento aparentemente normal

da criança. Portanto, em 1960, ele retoma os estudos acerca dos fatores

18

psicológicos e orgânicos e constata que mesmo com a diversidade de influências

teóricas, descrições clínicas e denominações existentes naquele período, no campo

psiquiátrico termina por prevalecer a concepção psicogênica, até meados dos anos

de 1970.

Nesse contexto, o Transtorno do Espectro Autista (TEA), comumente incluído

no grupo das “psicoses infantis”, passa a ser tratado como um transtorno das

fundações do psiquismo infantil e as “características dos pais dos autistas (por vezes

banalizadas em lamentáveis metáforas como a das “mães geladeiras”) são

associadas com a gênese do quadro de seus filhos (BRASIL, 2015).

Essa mudança conceitual teve contribuição de autores como a psicanalista

Margareth Mahler (1897-1985) que diferenciou a “psicose infantil autista” da “psicose

infantil simbiótica” (MAHLER, 1952 apud BRASIL, 2015).

Outro autor a colaborar e que, desde os anos de 1950, foi muito citado na

literatura psiquiátrica sobre o Autismo é o psicanalista Bruno Bettelheim (1903-

1990), que apresentou o Autismo, a princípio, como decorrência da frieza que as

mães tinham em relação aos seus filhos, ou seja, o autismo era resultado da

ausência afetiva das conhecidas “Mães geladeiras” (MERCADANTE; ROSÁRIO,

2009). Por ter sido um dos sobreviventes do campo de concentração inspecionado

durante a grande guerra, em suas teorias Bettelheim chegou a realizar comparações

das “mães geladeiras” com os torturadores nazistas, associando as crianças autistas

a prisioneiros dos campos de concentração (MERCADANTE; ROSÁRIO, 2009). Em

defesa de suas teorias, Bettelheim lançou um desafio: curar as crianças autistas

separando-as de seus pais. Tornou-se diretor da Escola Ortogênica da Universidade

de Chicago, onde durante anos realizou estudos com crianças autistas, a fim de

alcançar a cura para suas anormalidades.

Em 1967, Bettelheim publicou o livro “A fortaleza vazia”, que foi lido pelo

mundo inteiro, principalmente na França. A partir de então, disseminou-se a ideia de

que as crianças tornavam-se autistas por conta da frieza e da ausência de carinho

recebidas de seus pais (STELZER, 2010).

Bettelheim, com o fracasso dos resultados obtidos em suas pesquisas,

recusou-se a modificar suas ideias sobre os pais de crianças autistas, mesmo que

19

diversas evidências voltassem-se contra a sua teoria. Muitos estudiosos se

rebelaram contra a teoria descrita por Bettelheim

De forma alguma esta publicação foi recebida como consenso pela comunidade psiquiátrica e psicológica dos EUA, uma vez que ignorava completamente as alterações neurológicas associadas com o autismo (STELZER, 2010, p.16).

Dentre esses estudiosos, contrários a essa teoria, estava o Rimland Bernard,

psicólogo e pai de uma criança autista, que discordou das ideias defendidas por

Bettelheim. Para Bernard, a causa do Autismo não se tratava de ausência afetiva,

mas que as

[...] tendências sociais atípicas e intelectualismo dos pais de uma criança autista pudessem ser evidências de leves traços autistas dos pais – o que pesquisadores têm atualmente denominado de “fenótipo ampliado do autismo” (STELZER, 2010, p.20).

Mediante o exposto, Bernard, em 1964, publicou o livro: “Autismo Infantil: A

síndrome e suas Implicações para a Teoria Neural do Comportamento”, em que

defendeu o Autismo como “uma doença neurológica com possível origem em

alteração funcional da formação reticular ativadora” (STELZER, 2010, p.19).

Com o impulso das pesquisas, comprovou-se que os cuidados paternais não

causavam o autismo. Ao defender esse argumento, Bernard contribui de modo

significativo para as pesquisas baseadas na teoria de que o autismo seria causado

por desordens biológicas, disseminando a ideia de que se nasce autista, não se

torna autista.

A partir de 1970, Frances Tustin (1913-1994) e Donald Meltzer (1922-2004),

seguindo uma perspectiva psicanalítica “desenvolvimentista” (AZEVEDO, 2009,

apud BRASIL, 2013), também descrevem o autismo como resultado de um desvio

do curso habitual do desenvolvimento, causado pela relação desarmônica entre a

mãe e o bebê.

Constata-se, neste cenário, que as compreensões da psicanálise e de várias

correntes teórico-clínicas sobre o Autismo modificaram com o passar dos anos.

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Assim, a revolução do pensamento psicanalítico sobre a compreensão do autismo

ocorreu por meio de dois avanços em relação à: “prática clínica com a criança

pequena” e o “estudo dos filmes caseiros” (BRASIL, 2015, p.24).

A primeira pesquisa foi realizada por Massie, em 1978, com a utilização de

filmes caseiros. Tratava-se de filmagens dos pais e seus bebês que, posteriormente,

se tornariam crianças autistas em que é possível verificar de forma clara os estados

de sideração4. Tal observação modificou a “antiga ideia de uma psicogênese do

autismo relacionada às posições parentais, ou a culpabilização da mãe” (BRASIL,

2015, p. 24).

Nesse cenário, evidencia-se que as mudanças conceituais que começam a se

fazer presente estavam respaldadas em três componentes: as teses biológicas;

biografias e depoimentos de pessoas autistas que defendem aspectos orgânicos e

intervenções comportamentais e, o cognitivismo (BRASIL, 2015).

As teses biológicas ganharam, na época, o aval de Kanner que contradiz suas

declarações anteriores.

É reconhecido por todos os observadores, exceto por um reduzido número daqueles impedidos por compromissos doutrinários, que o autismo não é uma doença primariamente adquirida ou feita pelo homem. (...) Fazer os pais se sentirem culpados ou responsáveis pelo autismo de seu filho não é apenas errado, mas adiciona de modo cruel um insulto a um dano (KANNER, 1968, p.25 apud BRASIL, 2015, p.25).

O segundo momento de acordo com Brasil (2015), é evidenciado quando as

pessoas com autismo passaram a dar depoimentos e escrever suas autobiografias,

com intuito de exercerem o protagonismo no interior do campo psiquiátrico e por

estarem descontentes com as imagens que eram divulgadas. Elas se opunham

contra as teorias que descreviam o autismo como uma psicose e defendiam

pesquisas voltadas ao campo orgânico e as intervenções comportamentais. Nesse

período, destacam-se também dois personagens: Bernard Rimland, que publicou o

4 De acordo com Araújo (2010, p.12), os estados de sideração são utilizados para descrever “uma

espécie de suspensão dos investimentos e das capacidades parentais. [...] a sideração gela literalmente a capacidade do outro de investir, impedindo os pais de utilizar nas trocas com seus filhos suas competências habituais”.

21

livro “Infantile Autism” e foi um dos fundadores da Autism Society of America e a

Lorna Wing, que participou da organização da National Autistic Society, na

Inglaterra, em 1962, ambos importantes pesquisadores da área e familiares de

pessoas com TEA.

Por fim, as teses psicodinâmicas, que passaram a contar com as explicações

do cognitivismo quando o psiquiatra inglês Michael Rutter questionou a centralidade

dos aspectos afetivos, defendendo que o problema central do Autismo estava

presente no campo da cognição. Seguindo a mesma linha teórica, Ritvo (1976)

relacionou o Autismo a um déficit cognitivo, considerando-o “não mais uma psicose,

e sim um distúrbio do desenvolvimento” (BRASIL, 2015, p. 26). Essas mudanças

influenciaram o desenvolvimento de outras teses a partir de 1980, a saber: teoria da

mente, da coerência central ou das funções executivas.

A teoria da mente, por exemplo, apontava que as pessoas com TEA tinham

dificuldades de desenvolverem a imaginação e a interpretação, principalmente no

que se refere ao entender o estado mental de outras pessoas e o próprio, ou seja,

não têm a capacidade de colocar-se no lugar do outro e não conseguem interagir

socialmente captando sinais tanto verbais quanto não verbais. De acordo com

Padovani e Junior (2010, p.160), essa dificuldade em entender os próprios estados

mentais e dos outros é conhecida como “cegueira da mente”. Vale frisar que, nos

anos de 1970 a 1980, surgem e difundem-se também estratégias educacionais e

comportamentais como o “Treatment and Education of Autistic and Related

Communications Handicapped Children” (TEACCH); a “Applied Behavioral Analysis”

(BRASIL, 2015).

A teoria da coerência central retrata a dificuldade que as pessoas com TEA

tem de processar as informações, principalmente a entendê-las dentro de um

contexto. Segundo essa teoria, as pessoas autistas exibem uma fraca coerência

central, por isto possuem níveis desiguais de vantagens e déficits cognitivos.

A teoria das funções executivas ressalta a necessidade que as pessoas com

TEA tem em manter rotinas, apresentar comportamentos repetitivos e por hora

rituais elaborados. Para essa teoria, as pessoas autistas apresentam déficits de

planejamento e persistência nas respostas. (PADOVANI; JUNIOR, 2010).

22

Mediante o exposto, é possível afirmar que, como pontuado por Ferrari

(2007), é incontestável o mérito de Kanner em ser o primeiro estudioso a isolar e

descrever o Autismo em sua especificidade clínica, contudo, há que se frisar que no

mesmo período e de forma independente o psiquiatra austríaco Hans Asperger

utilizou a expressão “psicopatia autística” para caracterizar dificuldades de relações

sociais de algumas crianças.

É impressionante como sem ter conhecimento das pesquisas de Léo Kanner,

Asperger, de acordo com Agrupamento (2014), utilizou praticamente o mesmo

termo, realizando um estudo no qual descrevia um grupo de crianças com as

mesmas semelhanças das de Kanner, mas com linguagem desenvolvida e picos de

inteligência. As crianças estudadas por Asperger tinham habilidades intelectuais

preservadas, contudo apresentavam

[...] uma notável pobreza na comunicação não-verbal, que envolvia tanto gestos como tom afetivo de voz, empatia pobre e uma tendência a intelectualizar as emoções, uma inclinação a ter uma fala prolixa, em monólogo e às vezes incoerente, uma linguagem tendendo ao formalismo (ele os dominou “pequenos professores”), interesses que ocupavam totalmente o foco da atenção envolvendo tópicos não-usuais que dominavam sua conversação, e incoordenação motora. (KLIN, 2006, p.8).

Asperger, em seus estudos, constatou que as crianças por ele estudadas

apresentavam inteligência preservada e o desenvolvimento da linguagem normal,

porém, exibiam comportamento autista e comprometimento nas habilidades sociais

e comunicativa, nessa última, evidenciava uma linguagem como se fossem

pequenos adultos, tendo a habilidade de discorrer sobre um tema de modo

detalhado.

Enquanto Kanner acreditava que o grupo pesquisado não tinha deficiência

intelectual, apenas déficits de relacionamento social e comportamentos incomuns,

Asperger dizia que a inteligência dessas crianças eram variáveis, podendo elas

serem geniais ou pacatas. Para Kanner, as crianças também apresentavam prejuízo

na coordenação motora, mas tinham capacidades significativas em relação à

23

coordenação motora fina, em contraposto, Asperger descrevia que ambas as

capacidades estavam comprometidas.

Cabe destacar que, apesar das pesquisas de ambos ocorrerem praticamente

nos mesmos anos, a publicação de Léo Kanner tornou-se rapidamente conhecida

pela comunidade científica, enquanto a de Hans Asperger permaneceu

desconhecida até os anos 1980. De acordo com Schwartzman (1991), citado por

Padovani e Junior (2010), tal fato se justifica por Asperger ter realizado suas escritas

em alemão durante o período da Grande Guerra enquanto Kanner o fez em inglês.

Foi somente a partir dos anos 1980 que Lorna Wing e Van Krevelen levaram

a público os escritos de Asperger. Wing defendeu que, tanto o autismo quanto a

síndrome descrita por Hans Asperger, compartilhavam a mesma tríade sintomática,

ou seja, “[...] entidades diferentes, porém dentro de um mesmo espectro, o autismo”

(PADOVANI, JUNIOR, 2010, p.156).

A tríade sintomática por ela descrita referia-se a

[...] ausência ou limitações na interação social recíproca; ausência ou limitações no uso da linguagem verbal e/ou não verbal; e ausência ou limitações das atividades imaginativas, que deixavam de ser flexíveis para tornarem-se estereotipadas e repetitivas (BRASIL, 2015, p.27).

Como mãe de uma criança autista e pesquisadora da área, Wing desenvolveu

um trabalho que revolucionou a forma como o Autismo era concebido. Ao trazer à

tona os estudos de Asperger e ampliar a pesquisa nessa área, Wing tornou-se uma

das maiores pesquisadoras do mundo autista e levou gradualmente ao

fortalecimento da noção de continuum ou “espectro do autismo” e, contribuiu para

que a síndrome de Asperger fosse incorporada à classificação psiquiátrica na

década de 1990.

Assim sendo, de acordo com Vasques (2012), Wing recomenda que o

autismo seja identificado a partir da tríade diagnóstica (Social; Linguagem e

Comunicação; Pensamento e Comportamento), pois

[...] um conjunto de patologias, uma síndrome; constitui-se como um grupo de sinais e sintomas, produzido por mais de uma causa. Wing

24

propõe a noção de autismo como um continuum, variando a sintomatologia de acordo com o comprometimento cognitivo. Um mesmo quadro, com diferentes graus de gravidade. Surgem os autistas de “alto ou baixo funcionamento” (VASQUES, 2012, p.166)

No que diz respeito ao autista de alto funcionamento, tem-se como

característica a inteligência acima da média em alguma área específica, e o de baixo

funcionamento os que apresentam baixo rendimento cognitivo. Wing, de acordo com

Agrupamento (2014), a partir dos estudos realizados das publicações de Asperger

definiu seis critérios diagnósticos, a saber:

1. Linguagem correta, mas pedante, estereotipada; 2. Comunicação não verbal – voz monótona, pouca expressão

facial, gestos inadequados; 3. Interação social não recíproca, com falta de empatia; 4. Resistência à mudança – Preferência por atividades repetitivas; 5. Coordenação motora – postura incorreta, movimentos

desastrados, por vezes estereotipias; 6. Capacidades e interesses – Boa memória mecânica, interesses

especiais circunscritos. (AGRUPAMENTO, 2014, p.3)

Muitos pesquisadores tentaram codificar os escritos de Asperger em uma

definição categorial. Contudo, mesmo que tenha sido relatada desde 1944, a

Síndrome de Asperger não recebeu reconhecimento oficial antes da publicação da

10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), no ano de 1989, e

da 4ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM- IV),

no ano de 1994 (KLIN, 2006).

As pesquisas se ampliaram, contudo, são ainda incipientes para determinar a

causa do Autismo/Síndrome de Asperger. Desde as pesquisas realizadas por

Kanner, na década de 1940, à denominação para o quadro de autismo vem sofrendo

alterações, bem como os critérios diagnósticos que descreveremos a seguir.

25

3 DSM: MUDANÇA DOS CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS

Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS), de acordo com Araújo e

Neto (2014), na sexta edição do seu manual de Classificação Internacional de

Doenças (CID- 6), incluiu pela primeira vez, uma sessão destinada aos Transtornos

Mentais.

Em 1953, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) produziu o primeiro

manual de transtornos mentais voltado à aplicação clínica. Tal instrumento foi

denominado Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que

tinha por finalidade

[...] oferecer uma base empírica para a prática clínica, pesquisa e ensino da psicopatologia, bem como servir de instrumento para a coleta e a comunicação de dados estatísticos referentes a saúde pública” (APA, 2002 apud MOVIMENTO, 2013).

O primeiro manual ficou, então, conhecido como DSM-I e “consistia

basicamente em uma lista de diagnóstico categorizados, com um glossário que

trazia a descrição clínica de cada categoria diagnóstica” (ARAÚJO, NETO, 2014,

p.69). Tal manual possibilitou uma ampla revisão acerca das doenças mentais e

suas especificidades, apesar de ainda ser incipiente para subsidiar demais

pesquisas. O Autismo foi considerado pelo DSM-I como um sintoma da “Reação

Esquizofrênica, tipo infantil” (APA, 1952, apud ARAÚJO, NETO, 2014).

Em 1968, o DSM-II, produzido paralelamente com o CID-8 e apresentou

apenas algumas alterações na terminologia. O Autismo, antes apresentado como

“Reação Esquizofrênica tipo infantil” passa a ser apenas uma “Esquizofrenia tipo

infantil” e o comportamento autístico continua sendo um sintoma da esquizofrenia na

infância.

Foi em 1980, que ocorreu uma revolução paradigmática conceitual acerca do

Autismo, retirando-o do quadro das psicoses. Ao ser distinguido da esquizofrenia

infantil, o Autismo passou a ser apresentado no DSM-III como “Distúrbio Pervasivos

do Desenvolvimento”.

26

O DSM-III, composto por uma estrutura metodológica e estrutural, por sua

vez, foi capaz de oferecer subsídios para clínicos e pesquisadores ampliarem suas

pesquisas, propiciando também a coleta de dados estatísticos. Em 1987, o DSM-III

foi revisado, passando a ser denominado DSM-III-R. Foi retirado o diagnóstico de

“Esquizofrenia tipo infantil” justificando que o Autismo é muito raro na infância. Deste

modo, o Autismo, então, passa a ser denominado: “Transtorno Autístico”.

Em 1994, a APA lançou o DSM-IV que incluiu novos diagnósticos, ainda mais

detalhados. Nesse manual, o Autismo apresentou-se como um prejuízo severo e

invasivo em diversas áreas do desenvolvimento. Então, os transtornos globais do

desenvolvimento (TGD) receberam um novo subtipo: O “Transtorno de Rett”, o

“Transtorno Desintegrativo da Infância” e o “Transtorno de Asperger”. Assim,

também no CID-10 de 1993, o Autismo deixou de ser diagnosticado enquanto

psicose passando a ser considerado um transtorno global do desenvolvimento. Nos

anos 2000, foi publicada a revisão do DSM-IV. Tal edição foi denominada DSM-IV-

TR, sendo utilizada até 2013.

Atualmente, os sistemas de saúde, os convênios médicos e os centros de

pesquisas psiquiátricas e farmacêuticas vêm se respaldando no DSM-V, publicado

em 2013. Tal fato se justifica pela publicação ser a mais recente, apresentando uma

nova classificação, reformulações, inclusões e exclusões de diagnósticos, resultado

de doze anos de muitos estudos, revisões e pesquisas.

Se anteriormente, o Autismo se encontrava nos Transtornos Globais do

Desenvolvimento, a partir do DSM-V, juntamente com o Transtorno Desintegrativo

da Infância e as Síndromes de Rett foram classificados em um único diagnóstico: o

“Transtorno do Espectro Autista”, por estarem submetidos ao prejuízo na

comunicação e na interação social e possuírem comportamentos padronizados,

interesses e atividades restritos e repetitivos (ARAÚJO, NETO, 2014).

O DSM-V agrupou quatro categorias do CID e do DSM-IV, a saber:

Transtorno Autista; Transtorno Desintegrativo da Infância; Transtorno de Asperger;

Transtorno Invasivo do Desenvolvimento sem outras Especificações.

Todas essas categorias passaram a ser compreendidas como Transtorno do

Espectro Autista (TEA). Observa-se que o transtorno de Rett deixa de ser

27

considerado como um TEA, passando a ser classificado como uma doença distinta

(KHOURY, 2014).

Vale ressaltar que no DSM-IV-TR e no CID-10, as principais áreas de

comprometimento eram a interação social, comunicação e comportamento. No DSM-

V, passa para dois domínios: domínio referente a déficits de comunicação social e

domínio sobre comportamentos/interesses restritos e repetitivos, conforme descrito a

seguir.

SÍNTESE DAS ÚLTIMAS CLASSIFICAÇÕES DIAGNÓSTICAS

CID 10 F84: TRANSTORNOS GLOBAIS DO DESENVOLVIMENTO F84.0 Autismo Infantil F84.1 Autismo Atípico F84.2 Síndrome de Rett F84.3 Outro Transtorno Desintegrativo da Infância F84.4 Transtorno com Hipercinesia Associada a Retardo Mental e a Movimentos Estereotipados F84.5 Síndrome de Asperger F84.8 Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento F84.9 Transtornos Globais não Especificados do Desenvolvimento (TID SOE).

DSM IV TRANSTORNOS GLOBAIS DO DESENVOLVIMENTO Transtorno Autista Transtorno de Rett Transtorno Desintegrativo da Infância (síndrome de Heller, demência infantil ou psicose desintegrativa) Transtorno de Asperger Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação.

DSM-V TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA (TEA) Transtorno Autista Transtorno Desintegrativo da Infância Transtorno de Asperger Transtorno Invasivo do Desenvolvimento sem outras Especificações Grau leve Grau moderado Grau severo

Fonte: Dados obtidos por meio da pesquisa da autora.

Antigamente, na prática clínica, muitos profissionais não se baseavam nas

diferenças entre os vários subtipos, mas utilizavam os graus de severidade do

transtorno como principal critério. Agora, segundo o DSM-V, o TEA pode ser

classificado em: Grau leve (Nível 1); Grau moderado (Nível 2); Grau severo (Nível 3).

28

Os níveis de gravidade estão fundamentados na quantidade de apoio

necessário para contemplar as necessidades de cada um considerando as

dificuldades na comunicação, nos interesses restritos e nos comportamentos

repetitivos. Assim, de acordo com o DSM-V, os apoios podem ser: pouco apoio;

apoio substancial; e apoio muito substancial, conforme exemplos descritos a seguir:

Nível 1 – Necessidade de pouco apoio

Comunicação Social

• A criança necessita de apoio contínuo para que as dificuldades na

comunicação social não causem maiores prejuízos;

• Apresenta dificuldade em iniciar interações com outras pessoas, sejam

adultos ou crianças, ocasionalmente oferecem respostas inconsistentes às tentativas

de interação por parte do outro;

• Aparentemente demonstram não ter interesse em se relacionar com outras

pessoas.

Comportamentos repetitivos e restritos

• Esse padrão de comportamento repetitivo e restrito ocasiona uma

inflexibilidade comportamental na criança, gerando assim dificuldade em um ou mais

ambientes;

• A criança fica por muito tempo em uma única atividade (hiperfoco) e

apresenta resistência quando necessita mudar para outra;

• Alterações na organização e planejamento podem atrapalhar o trabalho pela

busca da independência e autonomia da pessoa.

Nível 2 – Necessidade de apoio substancial

Comunicação Social

• A criança apresenta um déficit notável nas habilidades de comunicação tanto

verbais como não-verbais;

• Percebe-se acentuado prejuízo social devido pouca tentativa de iniciar uma

interação social com outras pessoas;

29

• Quando o outro inicia o diálogo as respostas, geralmente, mostram-se

reduzidas ou atípicas.

Comportamentos repetitivos e restritos

• Apresenta inflexibilidade comportamental e evita a mudança na rotina, pois

tem dificuldade em lidar com ela;

• Essas características podem ser notadas por um parente ou amigo que

raramente visita a casa da família;

• A criança se estressa com facilidade e tem dificuldade de modificar o foco e a

atividade que realiza.

Nível 3 – Necessidade de apoio muito substancial

Comunicação social

• Há severos prejuízos na comunicação verbal e não- verbal;

• Apresenta grande limitação em iniciar uma interação com novas pessoas e

quase nenhuma resposta às tentativas dos outros.

Comportamentos repetitivos e restritos

• Há presença de inflexibilidade no comportamento;

• Extrema dificuldade em lidar com mudanças na rotina e apresentam

comportamentos restritos/repetitivos que interferem diretamente em vários

contextos;

• Alto nível de estresse e resistência para mudar de foco ou atividade (DSM-V,

2013).

Dentre as inúmeras razões para se usar o termo genérico “Transtorno do

Espectro do Autismo”, está a que afirma que a antiga forma de diagnosticar era

imprecisa, pois diferentes médicos diagnosticavam uma mesma pessoa com

distúrbios distintos. Outro aspecto diz respeito ao fato do autismo ser definido por

um conjunto de condutas, devendo ser caracterizado por um único nome de acordo

com sua gravidade.

30

4 METODOLOGIA

Após a definição do objeto de estudo, selecionamos a abordagem

metodológica, qual seja, a pesquisa qualitativa, que segundo Spindola e Santos

(2003), possibilita um mergulho nas nuances e particularidades que o tema

comporta. Sob esse prisma, esse tipo de pesquisa preocupa-se com uma realidade

[...] que não pode ser quantificada, respondendo a questões muito particulares, trabalhando um universo de significados, crenças, valores e que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (SPINDOLA, SANTOS, 2003, p.2).

Consonante com esse pensamento, Severino (2007) afirma que desde o

nascimento da ciência, no início da era moderna, limitava-se a expressão de uma

relação funcional de causa e efeito que só podia ser medida como uma função

matemática, modelo de conhecimento científico denominado positivista. Não tardou

para que os cientistas constatassem que o conhecimento do mundo humano não

podia reduzir-se apenas a esses parâmetros e critérios, pois quando o homem é

considerado como objeto puramente natural esse aspecto deixa escapar

informações importantes relacionadas à sua condição específica de sujeito. Dessa

forma, quando se fala de metodologia quantitativa ou qualitativa, não se está

referindo a uma modalidade de metodologia particular. Por isso, é preferível falar de

abordagem quantitativa e abordagem qualitativa, as quais abarcam um conjunto de

metodologias que podem envolver diversas referências epistemológicas.

Cumpre frisar que a pesquisa qualitativa, de acordo com os autores citados,

preocupa-se com os sujeitos e seus ambientes e, não há limites ou controle imposto

pelo pesquisador.

Assim sendo, a presente pesquisa foi levada a efeito por meio de um estudo

de campo fundamentado na metodologia de História de Vida. A opção por esse tipo

de pesquisa é resultante da necessidade de investigarmos um fato de nossa

realidade atual, para que possamos compreendê-lo em sua totalidade,

principalmente o que ainda está implícito.

31

Das abordagens qualitativas, conforme objeto selecionado, a mais apropriada

é a História de Vida. Pois, de acordo com o Spindola e Santos (2003), o que

interessa nessa modalidade de estudo “é o ponto de vista do sujeito”. O objetivo

dessa técnica de pesquisa é justamente apreender e compreender a vida conforme

ela é relatada e interpretada pelo próprio ator.

Nesse método, o pesquisador se desloca de “detentor do saber” para ouvir o

que o outro tem a dizer sobre ele mesmo, e o que considera importante sobre sua

vida. O método história de vida destaca o momento histórico vivido pelo sujeito e

permite penetrar em sua trajetória histórica, bem como compreender a dinâmica das

relações que estabelece ao longo de sua existência. É possível retratar o cotidiano

das pessoas, o qual é concebido como tempo, espaço e ação que pertencem à

dimensão social mais investida de significação de desejos individuais.

É um conjunto de situações vivenciadas no dia a dia, percebidas individualmente e renovando-se a cada instante. A vida cotidiana é caracterizada como um lugar das negociações, do acontecimento pelos seres humanos e, ainda, como um lugar de disposição da existência pela construção sempre renovada da interface da natureza e da cultura. (SPINDOLA, SANTOS, 2003, p.4).

Por meio das narrativas de vida, o sujeito se completa de si mesmo, e obriga-

se a organizar as lembranças e percepções imediatas de modo coerente, o que faz

emergir todos os micros eventos da vida cotidiana, suas durações, comuns aos

grupos sociais, porém dentro da experiência individual.

As Histórias de vidas, portanto, não falam sozinhas, é necessário harmonizá-

las no contexto em que se desenvolvem em consonância com o conjunto de

significações que formam a vida cotidiana.

Mediante o exposto, realizamos um estudo de campo tendo como sujeito uma

jovem de 19 anos de idade, com diagnóstico de Síndrome de Asperger. Os dados

foram coletados por meio de narrativas, as quais foram gravadas e transcritas

posteriormente.

As análises apresentadas estão respaldadas em estudos desenvolvidos por

Brasil (2015), DSM-V (2013), Ferrari (2007), Klin (2006), dentre outros. Para garantir

o anonimato do sujeito de pesquisa e, por questões éticas, utilizamos nome fictício.

32

5. RESULTADOS

A história de vida a seguir é de uma jovem que denominaremos de “Rafa”, por

questões éticas e com intuito de manter sigilo. “Rafa” nasceu no ano de 1998, em

uma cidade no noroeste do estado do Paraná, e tem uma irmã gêmea, ambas

diagnosticadas com Síndrome de Asperger. Frequentou escola regular durante todo

o período escolar vivenciado, ou seja, Educação Infantil, Ensino Fundamental,

Ensino Médio e na época da coleta de dados estava cursando graduação em

Pedagogia.

Para melhor encaminhamento didático, optamos por apresentar,

primeiramente, as narrativas que contemplam sua trajetória escolar, seguidas das

narrativas sobre como se situa no tempo e no espaço.

5.1 TRAJETÓRIA ESCOLAR

5.1.1 Educação Infantil e Ensino Fundamental

Com seis meses de vida “Rafa”, juntamente com a sua irmã gêmea,

frequentaram a primeira “creche”, dentro da Universidade onde ingressou no curso

de Pedagogia. Na época, sua mãe era funcionária da instituição e atuava como

técnica em um dos laboratórios de engenharia da Universidade.

Sobre a primeira instituição de ensino, não lembra de nada a não ser das

situações relatadas por sua mãe e das fotos da época.

“As minhas fotos são com as professoras, com os amiguinhos. E a minha mãe conta sempre que tinha uma pediatra chamada Bete5, que uma vez pediu para as outras mães levarem calcinhas que as crianças iam sair da fralda e pra minha mãe ela não pediu e a minha mãe foi perguntar: Mas doutora, porque que você não pediu para mim e pediu para outras? E aí ela falou assim: “Mãe, você tem que entender que você tá lidando com duas crianças especiais” (Rafa).

5 Nome fictício para garantir o anonimato.

33

“Rafa” acrescentou que a mãe ficou extremamente chocada com a fala da

pediatra, tanto que ela é conhecedora desse episódio.

Sobre o ensino fundamental, afirma que cursou em uma escola particular,

localizada em uma cidade do leste do Paraná, onde residiu por seis anos. “Rafa” nos

relatou que não recorda em que idade aprendeu a ler e escrever, não repetiu

nenhuma série e nem foi aprovada por meio de conselho de classe e descreve

algumas lembranças.

“Não lembro dessas coisas não fia, não faz perguntas difíceis”.

“Sempre estudei em colégios particulares! Sempre! A vida inteira! [pausa na fala] Tive professoras muito boas, muito generosas, algumas eram... Serviam como mediadores porque eu não tinha amigos né? Ninguém me escolhia para o grupo. [pausa na fala] Eu lembro que eu tinha uma professora chamada Carol6. E eu tive uma professora chamada Elena7. E eu tive uma professora irmã, uma professora freira, que freira a gente chama de irmã, né? Aí eu tinha vários amiguinhos lá. E era... Tinha uma quadra grande, era... A biblioteca ficava no último andar. É... Lembro que tinha um ginásio bem grande. Que as eleições para prefeito de Curitiba, o centro de votações era lá. E é isso que eu lembro! Ah! Lembro de um passeio ciclístico promovido pela escola, que eu fui... Terminei o passei ciclístico de Kombe, porque eu não aguentei (risos) o passeio ciclístico... aí eu fiquei cansada e eu fui de Kombe com as irmãs” (risos) (Rafa).

“Rafa” relata que sua mãe sempre primou por efetivar sua matrícula em turma

distinta da sua irmã, pois acreditava que cada uma tinha que ter suas amizades em

separado. Acrescenta, ainda, que, apesar de sua irmã ter o mesmo transtorno que

ela, a mesma não gosta de falar sobre o assunto, e perde a paciência fácil, é muito

grossa e mal educada e as pessoas não gostam disso. Pontua que diferente da

irmã, ela sofre com as exclusões, mas não se incomoda em falar sobre a síndrome.

“Não. Eu acho que... (fica em silêncio por alguns instantes) normal! Todo mundo... (fica em silêncio por alguns instantes) Assim, ninguém é perfeito! Todo mundo tem problema, né”? (Rafa).

Logo em seguida, quando insistimos que fosse mais explícita sobre o Ensino

Fundamental, demonstrou desconforto para falar no assunto. Elucidamos, assim,

6 Nome fictício para garantir o anonimato.

7 Nome fictício para garantir o anonimato.

34

sobre a importância do seu relato, suas vivências, seu ponto de vista, uma vez que

buscávamos melhor compreender a Síndrome de Asperger, para além do que os

livros e os profissionais da área médica retratam. Explicamos ainda, que enquanto

professoras/pedagogas era de suma importância conhecer as especificidades desse

transtorno para melhor conduzirmos, não só as práticas pedagógicas, mas também

sensibilizar o olhar de outras pessoas que não tem deficiência, de forma a minimizar

os preconceitos que circundam os espaços escolares e sociais. “Rafa” justifica-se

explicando o porquê não gosta de falar sobre o assunto e descreve algumas

situações desconfortáveis por ela vivenciadas.

“Ah, eu prefiro nem falar. (...) É que eu sempre choro quando eu lembro”. “É... Na hora... Eu lembro no recreio que eu sempre tomava lanche sozinha... Sempre tomei lanche sozinha, sentada no canto e sempre que eu ia conversar com as meninas elas falavam assim: Dá licença para mim. É, pra eu...porque elas não queriam conversar comigo sabe? E eu era ingênua. Depois de um tempo eu voltava e eu falava: E agora? Eu posso conversar? Tipo, eu não entendia que elas não queriam falar comigo, entendeu? E para fazer trabalho eu só fazia meus trabalhos sozinha! Sempre! Toda a vida, sabe”? (Rafa).

Os olhos de Rafa, no momento de seu relato, ficaram emaranhados de

lágrimas e, ao mesmo tempo, em que constatamos sinal de fortes emoções, o seu

olhar era vago, inexpressivo.

Logo em seguida, começou a relatar aspectos positivos. Constatamos assim,

que essas memórias positivas não se referiam a momentos de interações em

determinados locais ou eventos e sim a locais e descrições das festas tais como:

festa junina e halloween.

Afirmava que os professores, de forma geral, eram bons, mas destacou um

em específico.

“[...] tinha um que era... tinha uns que eram mediadores sabe? Que quando não era escolhida ele fazia com que eu escolhesse as pessoas pra compor o meu grupo, entendeu? [pausa na fala] Ele particularmente, ele professor, ele fazia isso porque se não eu ia sempre fazer os trabalhos sozinha, entendeu? Aí ele fazia isso” (Rafa).

35

Nunca repetiu de ano, nunca foi aprovada por meio de conselho de classe,

contudo, para desenvolver as atividades escolares e minimizar as inconsistências,

no que diz respeito a apropriação dos conteúdos, recebia ajuda externa à escola.

“Eu ia numa psicopedagoga, chamada Camila8 e lá eu apren... eu tirava as minhas dúvidas” (Rafa).

Constatamos, por meio de seus relatos, que a instituição em que frequentava

realizava pequenas adequações com intuito de atender algumas de suas

necessidades, por meio de provas mediadas, em espaços distintos, porém com os

mesmos conteúdos e nas mesmas datas. As atividades eram as mesmas dos

demais alunos, isso porque naquele período a instituição não dispunha de

informações de que “Rafa” possuía transtorno de Asperger, pois o diagnóstico só foi

feito no ano de 2016, ao completar 18 anos e ingressar na Universidade.

“[...] quando foi para entrar na UEM, daí eu não sei como aconteceu entendeu? Eu sou, sou meio ruim de lembrar, sabe? É... eu só sei que... que foi indicação da psiquiatra Juliana9, que falou para minha mãe pesquisar um pouco sobre o Asperger. E me indicou para o meu neuro” (Rafa).

De acordo com os seus relatos, tinha acompanhamento psiquiátrico, pois era

acometida por muita tristeza e o “remedinho” receitado pela psiquiatra diminuía o

quadro depressivo e auxiliava na concentração e fazia acompanhamento com o

neurologista, mas este nunca havia sugerido nada sobre Síndrome de Asperger.

Buscando entender a incoerência dessa informação, indagamos sobre a

afirmação feita pela pediatra que compunha a equipe multidisciplinar no período em

que frequentava a Educação Infantil, sobre ela e a irmã serem especiais. “Rafa”

informou não ter compreensão disso.

“Não sei. Até hoje eu não sei, por isso que eu quero encontrar essa dotora pediatra Bete né? E falar: Sabe aquelas meninas especiais que você falou para a minha mãe? Então, sou eu, prazer”! (Rafa).

8 Nome fictício para garantir o anonimato.

9 Nome fictício para garantir o anonimato.

36

Essa fala nos leva a crer que “Rafa” não concorda com a leitura diminuta que

foi feita sobre o seu processo de desenvolvimento, pois chegara ao ensino superior

e afirma que, possivelmente, a postura adotada pela pediatra, referia-se ao fato dela

ter os olhos tortos e ter pouco tônus muscular.

“Porque eu tinha o olho torto, eu era molinha, entendeu”? “[...] eu fiz uma cirurgia do estrabismo e a minha irmã fez duas”. “[...] e eu comecei a usar óculos com seis meses de idade” (Rafa).

Atualmente, “Rafa” não tem mais acompanhamento psiquiátrico, apenas com

neurologista, que a acompanha desde os 12 anos, e retomando as questões afetas

ao Ensino Fundamental, mais especificamente as atividades escolares, descreveu

os encaminhamentos dados pela equipe pedagógica na realização das provas, nos

trabalhos solicitados e a solidão que a assolava em todo o processo.

“No Nobel, no Nobelzinho, no Ensino Fundamental, a psicopedagoga falou que era melhor eu fazer a prova mediada, que era o que? O professor de uma outra matéria, tipo a prova era de matemática, vinha um professor de história interpretar para mim, entendeu? Só que era numa sala diferente no mesmo momento dos outros. E era a mesma prova”.

“Ah... eu... eu gostava. Porque é... como eu sou ruim em interpretar as coisas eu entendia melhor as questões, cada questão, entendeu? Era melhor para mim, eu gostava disso” (Rafa).

Os colegas de turma não viam com simpatia essa saída da sala de aula e

posturas excludentes, mesmo que velada, se faziam presentes.

“Tinha alguns que de repente torceu”. (Rafa) “TORCIA O NARIZ”? (Pesquisadora) “Torcia”. (Rafa) “DE QUE JEITO”? (Pesquisadora) “Tipo... fazia aquela cara de tipo: Não gostei”. (Rafa)

37

Dentre as disciplinas dos componentes curriculares do Ensino Fundamental,

sua predileção era História e afirmou que decorava todas as datas. Por outro lado, a

área de exatas nunca foi seu ponto forte.

“Eu sempre gostei, eu sou... eu tenho decorada todas as datas, entendeu”? “Mas, matemática [...] Ah não sei! Não entrava na minha cabeça. Até hoje” (Rafa).

Nesse momento, “Rafa” rememora que necessitou de acompanhamento

psicopedagógico da quinta série até o primeiro ano do ensino médio, afirmando que

nunca tivera professor de apoio e acrescentou o que mais gostava nas seções

psicopedagógicas.

“Eu gostava! Gostava mais das sessões né? As sessões eram em grupo” (Rafa).

Constata-se que o mais significativo não eram os encaminhamentos ou

atividades voltadas para sanar ou minimizar suas lacunas, mas a possibilidade de

estar se relacionando com outras pessoas.

5.1.2 Ensino Médio

O Ensino Médio, assim como o Fundamental, foi cursado em escola

particular. Nesse cenário, intensificaram-se as dificuldades escolares, porém a

instituição disponibilizava “monitores”, no contraturno, para acompanhar os alunos

que apresentavam inconsistências no processo de aprendizagem.

“Ah... foi um pouco difícil porque no começo era matéria passada do nono ano né? Aí começou a ter física que eu não entendi muita coisa, química também. Assim, foi diferente né”? “É... Eu prestava atenção, né”? “Tinha... tinha monitoria que o Colégio fornecia a parte, né”? (Rafa)

38

As possibilidades de interações sociais também se evidenciaram fragilizadas.

“Ah... eles tiravam da minha cara né porque eu trocava né “P” e “B”, “D” e “T”, aí eles ficavam tipo zuando, você entendeu”? “[...] eu sempre falava né: Me chama pra sair, deixa eu fazer parte. E eles sempre falavam: Ah Rafa, tá cheio! Rafa, vê com outro! O grupo tá cheio, não vai dá! Eu sempre escutei isso”. “Eles me tratavam com diferen... diferença não! Com... Também, só... só respondiam o que eu perguntava também, assim, não puxavam papo, parecia monólogo, sabe? Só eu falando e eles: Uhum! Não sei Rafa, talvez”. Sabe”? (Rafa) (grifo nosso)

Verificamos que “Rafa” tem conhecimento de que a exclusão era explícita,

mas nega-a em sua fala quando diz “[...] diferença não”!

Assim como no Ensino Fundamental, no Ensino Médio a disciplina preferida

continuou sendo História, mas as que apresentavam maiores abstrações e

dificuldades passaram a ser Matemática, Física e Química. No que diz respeito às

avaliações, estas eram iguais para todos e realizadas no mesmo ambiente, porém

lembra que os professores preparavam provas distintas para as turmas com o intuito

de dificultar as tão conhecidas “colas”. Mesmo assim, por vezes, conseguiam burlar

as normas.

“As provas tinham, tinha... tipo a questão “A” na prova “X” a resposta era “B” na prova “Y” a resposta era “C”. Que era para não colar, mas nói colava”.

“É sério. Ah gente... era um anfiteatro que sentava assim sabe? Tipo arquibancada? Assim, um atrás do outro. Aí a gente armava os esquema na sala pra sentar atrás do inteligente. E torcer para o inteligente passar cola pa nóis. Só que eu nunca sentava fia”! “Não! E sempre tinha um menino atrás, que sentava atrás de mim, que era meu amigo, pra pedir cola, porque ele me achava inteligente” (Rafa).

Pela primeira vez, nos relatos aparecem indícios de uma “pseudo amizade”,

contudo, a nosso ver, essa amizade tinha “tempo de validade”, ou seja, nos

momentos de avaliação, pois nas demais situações ele não se fez presente nas

memórias de “Rafa”.

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5.1.3 Ensino Superior

Ficou evidente o quão significativo foi entrar no ensino superior nas mesmas

condições que os candidatos que não possuem nenhuma necessidade educacional

especial, uma vez que realizou as mesmas provas, nos mesmos locais que todos os

candidatos, sem nenhum atendimento diferenciado. O sentimento de

empoderamento ficou claro em sua fala.

“Ah, eu chorei! (risos) É... é porque eu anoto tudo! O PAS e o vestibular saiu no mesmo dia. O PAS do terceiro ano. Aí eu fiquei em primeiro na lista de espera do PAS e no vestibular eu passei em sexto” (Rafa).

Os motivos que a mobilizaram para a licenciatura estavam correlacionados a

auxiliar aqueles que por ventura passem pelas mesmas aflições que ela e não por

questões afetas à docência e o processo de ensino-aprendizagem.

“Eu escolhi porque eu gosto muito de criança e tenho muita paciência. E eu quero ser psicopedagoga igual a que eu ia sabe? Pra ajudar essas crianças que vão ter o mesmo problema que eu tive, entendeu”?

“[...] Mas eu quero trabalhar em escola enquanto eu estiver fazendo a especialização aí depois eu quero ir para uma clínica” (Rafa).

Dito isso, relatou que apesar de ter reprovado no primeiro ano, conseguiu

puxar algumas disciplinas do segundo ano e que não iria desistir. Os motivos

oscilaram, hora por faltas, hora por notas insuficientes.

“Porque no primeiro semestre eu reprovei em duas por nota e no segundo eu reprovei em todas por falta”. “Porque eu não tinha vontade de ir para aula, entendeu”? (Rafa).

Contou que o principal motivo por ter reprovado por falta se dava por conta de

que, quando tinha que ir para a Universidade, ao invés de entrar para a sala, nos

horários de aulas, ficava andando pelas redondezas, conversando com as pessoas

que conhecia do curso de inglês.

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“Ah eu ficava por aí pela UEM! Ou pelos lugares que eu conhecia, batendo papo”. “Ah, com as pessoas que eu conhecia ali no inglês, no inglês que eu vou né?” (Rafa).

Explicou não ter ressentimento por ter reprovado pela primeira vez durante a

trajetória escolar, já que no momento não tinha condições psicológicas.

“Ah, eu encarei normal né”?

“[...] porque naquele momento eu num tava me sentindo bem, entendeu”? (Rafa).

Demonstrou tristeza ao relatar o momento em que a mãe descobriu que ela

estava cabulando aulas.

“Aham, quando eu reprovei ela descobriu”. “Quando ela descobriu eu não queria voltar pra casa né? Eu achei que ela iria me bater. Aí eu falei para o meu pai falar pra ela”. “Aí ele falou, aí ela ficou bem chateada sabe”? (Rafa).

Nesse momento, Rafa abaixa a cabeça e o tom de voz e diz que tinha uns

pensamentos ruins. Perguntamos que tipo de sentimento era esse que sentia e ela

nos relatou que não entendia, apenas chorava ao se recordar dos momentos de

exclusões vivenciados. Tais lembranças iam tão afundo a ponto de “Rafa” pensar

em tirar sua própria vida.

“É [Pausa na fala] porque é [Pausa na fala] eu tinha pensamentos suicidas”. (cochichou)

“[...] Por isso que o médico mudou o meu remédio, entendeu? Eu tomava um, aí eu falei isso pra ele, aí ele mudou o meu remédio”. “Porque eu ficava muito triste em casa, assim, chorava o dia inteiro, é... não tinha motivo pro choro, mas eu chorava, entendeu”? “É que eu pensava no que eu já tinha passado, entendeu? A exclusão, ninguém ter me aceitado nos grupos, entendeu? Aí isso vinha”.

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Afirma que neste ano têm chances de ser aprovada e que está se esforçando

para isso, apesar das dificuldades em acompanhar as aulas e das notas

prejudicadas.

“Eu tenho! Primeiro porque é muito sono, eu tenho muito sono, aí depois eu perco a concentração muito fácil porque eu tenho déficit de atenção. E aí qualquer coisa que [pausa na fala] passa um caminhão aqui fora eu presto atenção no barulho do caminhão ao invés do professor. Eu fico contando quadradinho até chegar lá na frente, entendeu”? (grifo nosso)

Verifica-se nesse relato que “Rafa” senta em carteira disposta no fundo da

sala, fato que, a nosso ver, contribui para a sua dispersão, uma vez que afirma ter

déficit de atenção.

No que diz respeito à disciplina de maior predileção informou que adora

Psicologia e tem menos predileção por História da Pedagogia e Metodologia da

Pesquisa em Educação (METEP).

No que diz respeito a preconceitos informou, num primeiro momento, não

sentir nenhum preconceito por parte de colegas e de professores, mas, em seguida,

se contradiz.

“Não, eles me tratam igual”. “Eu participo por conta, eu falo: Gente, precisa de ajuda? Eu faço o resumo. Sabe?

Eu sou bem prestativa!” (Rafa).

No momento seguinte, explicita episódios nos quais se sentiu à margem em

relação ao contexto vivenciado na Universidade.

“Ah... Fica essa dificuldade né, porque sempre que eu pergunto para as pessoas elas falam: Já tá cheio “Rafa”. Ou se não: Ah... não dá. Aí fica eu sobrando, entendeu”? “[...] Quando foi pra fazer, montar o grupo pra fazer o trabalho de Políticas Públicas e também o trabalho de Necessidades Especiais”. “Porque... o de Necessidades Especiais eu falei para a professora, aí ela falou assim pra mim: Você já conhece a sala, procura alguém! E eu falei que eu passei de um em um, tipo mendigando sabe? “Vocês podem me aceitar”. Falei tipo assim, sabe? E o

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de Políticas Públicas eu falei para o grupo que eu costumo conversar na sala, eu falei para eles não me excluírem”. (grifos nossos) “Aí eles me excluíram”! “[...] Aí eu fiquei muito chateada sabe? Porque eu achei que eles me consideravam, mas eles não me consideram”. (Rafa).

Sobre esses aspectos teceu um parecer sobre como deveria ter sido a

postura da professora da disciplina de Necessidades Especiais.

“Eu acho que essa professora de Necessidades Especiais, como ela trabalha na área, eu acho que ela deveria já saber que deveria fazer uma integração né? Mas [pausa na fala] quem sou eu pra falar”? (Rafa) (grifos nossos)

Ao mesmo tempo que acredita que a professora deveria ter tido uma postura

diferenciada, relata-nos que nunca contou aos professores que tem Síndrome de

Asperger, porém acredita que saibam da sua condição.

“[...] Mas eu acho que eles sabem por causa de reunião de departamento né? São discutidos isso” (Rafa).

Afirma, também, que poucos são os colegas de turma que sabem de sua

condição e informa que as atitudes excludentes são resultados das características

dos mesmos e não por ela ter a síndrome.

“[...] Eu não saio contando para todo mundo”.

“[...] Eu acredito que eles sejam assim mesmo”. (Contou de forma decidida) (Rafa)

Relata que até mesmo no intervalo os colegas continuam a ignorando.

“Ah um pouco, eu falo assim: Me espera, né? As pessoas vão, entendeu? Não tão nem aí. Eu saio com elas pra ir na Master, elas sabem que eu estou com elas mesmo assim elas não esperam pra ir junto, pra acompanhar, entendeu”? (Rafa).

Com lástima, relatou-nos não ter convívio social externo com os colegas da

Universidade, demonstrando ter ciência das vezes que eles se encontraram e não a

convidaram. Disse estar fadigada de tentar participar das interações com os colegas.

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“Porque eles não me chamam! (risos) Pelo simples motivo!” “Eu já falei já! Mas elas falaram: Ah Mari, a gente vai ver depois a gente te fala”. “É, aí vão pra balada, postam fotos no Facebook no dia seguinte!” (Rafa).

Denota que, o diferencial vivenciado entre o ensino médio e o ensino superior,

é a quantidade de disciplinas e ressalta que os aspectos positivos vivenciados no

Ensino Superior diz respeito à autonomia.

“[...] porque no ensino médio você pede até para ir no banheiro e aqui não! Você vai a hora que você quiser. Você chega a hora que você quiser! Você sai a hora que você quiser, entendeu”? “Os professores né, não ficam: Rafaela para de mexer no celular! Não ficam pegando no pé por causa do celular, só por causa da conversa né”? (Rafa).

De acordo com os seus relatos, na Universidade as atividades são iguais para

todos, “Rafa” não conta com auxílio e nem realiza provas mediadas. Diz participar

ativamente das apresentações de seminários e, quando questionada sobre a

necessidade de ter que estudar a partir de leituras para apresentá-los, argumenta

que mesmo detestando ler estuda para os seminários, pois eles lhe dão resultados

quantitativos.

“Sim! Eu sou muito boa pra apresentar seminário”!

“Mas eu leio seminário, né? Seminário vale nota, o livro não vale nota” (Rafa).

5.2 QUEM É “RAFA”?

Estatura baixa, cabelos lisos, tom de voz marcante. É assim que enxergamos

“Rafa” ao observá-la. Mas quem é “Rafa”? Como ela se vê? Como ela concebe o

mundo e as pessoas a sua volta?

Quando foi convidada a participar da pesquisa demonstrou muito entusiasmo

evidenciando o quão lisonjeada ficou por termos interesse em sua história.

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“Rafa” relatou que trabalha ocupando uma das vagas de estágio na

Universidade onde estuda, em um “laboratório de apoio pedagógico” (LAP). Sua

função é atender aos acadêmicos e professores da instituição quanto a empréstimos

de materiais (livros, materiais pedagógicos diversos) e equipamentos (projetor

multimídia, notebook, controles, entre outros).

Por estar ocupando uma vaga de estágio, específica para pessoas com

necessidades especiais, buscamos saber como concebia sua deficiência dentro

desse contexto.

“Ah, não digo uma deficiência, mas eu tenho um transtorno de Asperger né, mas não é deficiência” (Rafa).

No que diz respeito às especificidades da Síndrome de Asperger descreve a

característica, que a nosso ver, é a mais relevante para ela.

“Eu não sei direito, mas é que [pausa na fala] Eu sou mais [pausa na fala] O meu transtorno é mais na socialização, que eu não consigo fazer amizades, entendeu”? (Rafa).

O aspecto referente à socialização fica mais evidente quando descreve a

dificuldade em fazer amigos.

“Rafa”: “Porque [pausa na fala] Eu não sei o que acontece, porque [pausa na fala] Eu só sei que eu não consigo” (Rafa).

“Rafa” deixa claro que as poucas relações dialógicas estabelecidas com as

pessoas ao seu entorno eram em sua maioria “relâmpagos”.

“Ah... Só respondiam o que eu perguntava, entendeu”? “Ah elas nunca me chamavam pros grupos né? Sempre me excluíam, não me chamavam para ir na casa delas assim, para alguma festinha não falavam né: Ah Rafa, vai ter uma festinha aqui com a gente! Nunca fizeram isso”? (Rafa).

Esse relato nos remete a uma analogia: quando não enxergamos bem, em

regra, após consultarmos um oftalmologista, o uso de óculos supre nossa debilidade

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orgânica, mas não supre a nossa debilidade na forma de ver e conceber o outro.

Essa fragilidade, em ser enxergada, enquanto ser humana, é relatada de forma

veemente por “Rafa”.

“Eu sou muito sensível sabe? Eu tenho empatia pela pessoa. Eu me coloco no lugar do outro. Eu não excluo. Se eu vejo que alguém está afastado eu vou lá e chamo né? Porque eu já passei por isso e eu não quero que aquela pessoa passe, né”? (Rafa).

Ela não destaca a sua condição “diferente”, mas se reporta ao seu

comportamento diante das pessoas, tendo como parâmetro sua própria vivência, ou

seja, não exclui, pois conhece com propriedade o que isso significa. Relata, ainda,

que gostaria de ter superdotação, pois assim não precisaria estudar muito. Contudo,

ao mesmo tempo em que faz essa afirmativa se contradiz.

“[...] Eu queria ter superdotação”! “Ah, porque aí eu não precisava, assim muito estudar, entendeu”? “Eu acho que precisa porque se ela é boa em alguma coisa ela é ruim em outra, então, ela tem que estudar mais do que uma pessoa que não tem” (Rafa).

Temos a hipótese de que, ao fazer essa afirmação, traduz nela um pouquinho

de si, uma vez que não concebe a sua síndrome como uma deficiência. Traz à tona

que a pessoa com superdotação, apesar de ser inteligente, tem problemas como

àquela que possui SA.

“Tem problema de relação, tipo... é... Pra fazer amigos né? Tipo, porque ela é inteligente então, ele fica meio excluído né”? (Rafa).

“Rafa” faz parâmetros de exclusão. Relata não ser inteligente, como gostaria

e o quanto se sente excluída, mas não consegue entender o motivo. No caso das

pessoas com altas habilidades/superdotação a exclusão, de acordo com seu ponto

de vista, é o que eles têm a mais e não o que têm a menos.

Pontua que as pessoas não lhe entendem e o quanto isso a deixa fragilizada

mesmo que as pessoas não percebam.

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“Não entendem meu jeito. Não entendem como eu falo. Perguntam um trilhão de vezes o meu nome. Eu falo: Rafaela. Aí a pessoa: Manuela! Eu falo: Rafaela. E a pessoa: Gabriela. Aí eu tenho que falar umas trinta vezes até a pessoa entender”. “Ah, teve o negócio da Bruna10 né, que ela entendeu mal. Que eu só perguntei se a folha tava ali e ela veio grossa, mal educada” (Rafa).

“Bruna” é uma das funcionárias da Universidade, com quem Rafa se

desentendeu.

De acordo com os relatos de “Rafa”, sua postura e forma de falar com as

pessoas são perfeitamente aceitáveis. Geralmente, conforme seu relato, as pessoas

é quem não conseguem interpretá-la corretamente e que isso não tem nada a ver

com a SA ou o desconhecimento da mesma.

“Ela (Bruna) falou ali que eu tinha mastigado os fones do João11. No outro dia eu perguntei pra ele e ele falou: Não Rafa, de forma nenhuma”! “Ah, eu acho que [pausa na fala] Eu acho que como todo mundo fala que ela é assim meio [pausa na fala] meio assim com todo mundo, eu acho que é com todo mundo. Não é só comigo não. É com todo mundo, todo mundo fala né”? (Rafa).

Dito isso, relatou que suas maiores dificuldades se alocam nas tentativas,

sempre fracassadas, de fazer amizade e interpretar.

“De fazer amigos”. “De interpretação também, porque eu sou... ah uma bosta” (Rafa).

No que se refere às facilidades, “Rafa” atribui a capacidade de dialogar com

outras pessoas e sem perceber utiliza a frase “fazer novas amizades” para descrever

as situações em que apenas tenta se socializar, e, por fim, justifica novamente suas

dificuldades alegando que as pessoas não a entendem.

“Minha maior facilidade é de conversar, fazer amizades, puxar papo, entendeu”? “Tem horas que eu acho que as pessoas não entendem o meu jeito. Ah, mas eu falo bastante também” (Rafa).

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Nome fictício para garantir o anonimato. 11

Nome fictício para garantir o anonimato.

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Essa afirmativa nos leva a crer que não se trata de uma facilidade, mas um

desejo “fazer amizades”!

No que se refere às relações no campo familiar, “Rafa” relata que o seu

relacionamento com a irmã é bastante harmonioso.

“[...] A gente é muito parceira”! “Ah, nas amizades! Eu já peguei cola com ela”. “É que eu sentei atrás dela para fazer a prova, lá no ensino médio né? Aí eu fazia assim (mostrando por meio de gestos), erguia o pescoção”. “[...] Também em segredos”! “[...] Ela é muito legal”! (Rafa).

Em contrapartida, “Rafa” explicita que a relação com a mãe é bastante

perturbada e justifica tal fato alegando que a mãe tem pouca paciência, tanto com

ela quanto com a irmã.

“[...] Ela é meio sem paciência”. “[...] Tem barraco lá em casa todo dia”. “[...] A nossa relação é um pouco perturbada, com a minha mãe”. “Ah, é porque a minha mãe é muito estressada, e aí eu falo alguma coisa ela entende outra. E aí eu faço alguma coisa boa e ela quase não lembra. Só coisas ruins ela lembra, todos os dias, entendeu”? (Rafa).

Apesar da boa relação mantida com irmã, “Rafa” quase não sai com a

mesma, elas preservaram os velhos costumes ensinados pela família, de cada uma

seguir seu caminho, ter suas próprias amizades. Isso se mostrou evidente quando

afirmou não sair com a irmã, nem frequentar as mesmas igrejas.

“[...] A gente não sai muito não. Eu já fui no cinema sozinha, é legal...É top”! (Rafa).

Nessa fala, mostrou-se evidente os mecanismos de defesas utilizados por

“Rafa”, a fim de ocultar sua angústia por ter que sair sem companhia. Perguntamos

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qual meio de transporte havia utilizado para ir ao cinema. De acordo com ela, o pai

levou-a e buscou-a.

“[...] Eu falei: Pai vou no cinema sozinha. Aí ele falou: Não! Vai com uma amiga. Eu falei: “Pai, eu não tenho, eu sou sozinha! (deu uma risada de deboche de si própria) Aí eu fui. Aí é legal, mó legal”! (Rafa).

O mecanismo de defesa se mostra ainda mais evidente no momento em que

diz não se lembrar do nome do filme que assistiu e agradece por não ter encontrado

nenhum conhecido por lá. Disse estar cansada de convidar e receber sempre um

não composto pelas mesmas desculpas, demostrando assim, sua indignação em

meio a tantas mentiras.

“Aquelas desculpas esfarrapadas que tá cansado ou tem algo pra fazer. Domingo? Tem algo pra fazer? Rum...”

“Eu penso: Bando de fila da P..., bando de falso [pausa na fala] Falso”!

Em segundos volta para o foco inicial de seu passeio, ou seja, o filme.

“Nossa! Amo! Eu tenho uma vídeo-locadora particular em casa. Eu tenho mais de 80 filmes na minha casa”.

“Rafa” disse gostar também de Música Popular Brasileira (MPB) e elege entre

seus cantores preferidos Cássia Eler e Raul Seichas. Contudo, é bem eclética e

curte outros tipos de músicas, exceto funk, que ao falar demonstra certo

desprezo/pavor.

“Todas, menos funk”.

“Porque funk não é música”! (Rafa).

No que se refere aos esportes prediletos, “Rafa” faz questão de frisar o quão

sedentária é, alegando que, desde o Ensino Fundamental, já tinha desinteresse por

qualquer tipo de esporte.

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“[...] Eu não gosto de fazer esportes. Sou sedentária, sou muito cansada”.

“[...] Sempre tive medo da bola fia”.

“Academia? Entrei, uma vez, nunca mais voltei! No outro dia eu não conseguia nem andar de tanta dor que eu sentia nas minhas pernas” (Rafa).

De acordo com seus relatos, “Rafa” faz uso de dois medicamentos

controlados, o “Zoloft” e a “Ritalina”, o último apelidado por ela como “Rita”. Tem

alergia a formigas e não possui nenhuma restrição alimentar. Uma de suas comidas

favoritas é macarrão ao molho Alfredo. Entusiasmada, “Rafa” nos explicou a receita

do molho de macarrão que somente ela sabe fazer com êxito.

“[...] meu molho Alfredo é o melhor que tem no universo inteiro”! “O molho Alfredo é 500 ml de creme de leite, meia xícara de parmesão, noz moscada a gosto que é bom, e aí eu cozinho o espaguete né? Aí eu coloco o molho encima e mando pro bucho”. “Ah tem as! Tem sal! Tem sal! Mas é sal a gosto. É! Eu também gosto de lasanha de presunto e queijo, mas eu não sei fazer” (Rafa).

Além de gostar de comer, confidenciou-nos o quanto a tecnologia a seduz.

Afirmou gostar de navegar na internet. Passa aproximadamente 5 horas por dia e

que a sua rede social favorita é o Instagram, pois adora visualizar as fotos postadas

pelas pessoas que segue.

“[...] eu fico vendo os perfil dos outros e dando risada! Que eu vejo aquela foto diferente da de 350 antes de ela postar aquela foto. Que aquela foto não é espontânea, tirou umas 350 antes e apagou as 350 porque ficaram todas horrorosas”! (Rafa).

Nesse comentário, é possível detectar um tom de deboche seguido de

conhecimento sobre o que a sua geração costuma representar nas redes sociais em

contraposto com a realidade. “Rafa” continuou debochando, a ponto de utilizar-se de

sua própria pessoa para fazer piadas.

“Ah eu gosto de usar pantalona, macacão, mas roupa larga. Mas, como eu sou nanica fica horrível na minha pessoa! Aí quando... se eu uso macacão parece... aí

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fica parecida com aqueles colchões amarrados pelo meio sabe? (risos, muito risos) É porque como eu tenho barriguinha, aí fica marca, aí eu não gosto daquelas roupas justas que marca a pança, não gosto, entendeu? Aí eu não posto né, fia”? (Rafa).

Esse momento se fez ímpar durante o momento em que videografávamos as

suas memórias à entrevista, pois sabendo dos acometimentos da SA, não

esperávamos que a “Rafa” pudesse desfilar tantas gírias, emoções, ironias e, nesse

caso específico, fazer uma piada durante sua fala. Assim, “Rafa” nos relatou gostar

de piadas, embora costume demorar um pouco mais para entendê-las.

“Ah eu demoro um pouquinho, aí eu falo: “Explica de novo? Eu não entendi”!

“Aí fico assim (fez gestos de desentendida) Aí até entender eu sou a última a rir, três dias depois eu tô rindo da piada”.

“[...] A piada que eu já conheço eu já rio no meio da piada né? Nem termina de acabar”. (Rafa)

Em seguida, externaliza que se incomoda com a demora que tem para

processar as informações e suas ações diárias, demonstrando a necessidade das

pessoas respeitarem o seu tempo.

“Ah, que eu faço as coisas muito devagar, sabe? Eu faço no meu tempo, sabe? Não gosto de ficar me pressionando”. “Ah, minha mãe reclama toda vez que eu limpo o meu quarto! Que eu fico duas horas pra limpar, que ela acha que eu tô no celular e eu não tô no celular! Eu demoro porque eu demoro mesmo” (Rafa).

E relata ter admiração por sua personalidade, principalmente no que diz

respeito à simpatia e humildade. Afirma que a maioria das pessoas com as quais se

depara, essas características são inexistentes. Por outro lado, no que se refere às

características físicas, reclama de sua aparência.

“Da minha simpatia! Da minha simplicidade, que eu acho que ninguém tem simpatia igual a minha né”? “[...] Que eu sou humilde, né? Eu não me acho, entendeu? E eu sou engraçada”.

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“Ah eu queria ser mais bonita! É porque eu vejo aquelas menina feia com aqueles homens bonitos, aí eu falo assim: E pra mim? Só vem homem feio fia! Parece que eu sou ímã! Só vem dragão! Assim, que desgraça véi! (risos) É sério, só vem dragão pra minha pessoa, parece que eu sou ímã. Sabe ímã que atrai coisa ruim? Ruh (fazendo gestos) Aqueles vudu? Eu sou assim...” (gargalhou) (Rafa).

De repente, quase no final de nossa conversa, perguntou-nos se podia deixar

uma mensagem para as pessoas e, após nossa aprovação, desabafou:

“Olha, eu queria te falar pessoa assim: estude antes de sair falando, sair achando, porque o mundo não é feito de achismo querido, é feito de certezas, então caso você saia falando né, você se informe antes porque você não sabe a pessoa que você vai atingir, você não sabe como ela vai reagir e você pode fazer muito mal pra ela”. “Ah, devia ter mais paciência, devia entender mais né, devia relevar muitas coisas. Que eu acho que... não é a gente que quer, quem tem Asperger não faz porque quer, porque gosta, entendeu? Faz porque [pausa na fala] Não sei”. “[...] Seja um amigo de quem tem Asperger quem quer, quem não quer não seja também (demonstrando muita tristeza). Não seja mas também não fale mal, não fale mal pelas costas porque daí é falsidade e de falsidade, de gente falso o mundo tá cheio”.

“Rafa” acrescentou, ainda, que fica magoada quando os colegas falam mal

dela ou fazem comentários a respeito de suas características.

“Ah, tipo! Meu olho é torto né? Aí me perguntam assim: Você é cega? Eu falo: Não. (ficou muito pensativa, triste) (Rafa).

Declarou, em seguida, às vezes que se humilhou para fazer amizades e não

conseguiu.

“Quando eu era excluída né? Quando eu fingia ser uma pessoa que eu não era pra conseguir amigos, entendeu? Eu fui capacho das pessoas... Pra tentar conseguir amigos. Mesmo assim eu não consegui”. “Eu ia comprar lanche, pegar tarefa, eu ia fazer as coisas, entendeu? E elas só olhavam pra minha cara pelo interesse, sabe”? “[...] elas falavam: Rafa, vai lá comprar pra mim. E eu ia. “Vai lá fazer um negócio pra mim” e eu ia, pra tentar fazer amizade”. (Rafa) (grifo nosso)

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Antes de nos despedirmos, solicitamos que nos relatasse qual fora sua maior

alegria, com intuito de fazer um fechamento que suscitasse algo positivo, mas suas

palavras finais nos emudeceram.

“Eu não contei porque eu não tive, né”? (Rafa).

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa aprofundou nosso conhecimento acerca do Autismo e seus

diferentes graus, sobretudo a Síndrome de Asperger, grau mais leve do TEA,

caracterizada pelas dificuldades na socialização com outras pessoas, estereotipias,

particularidades na fala e na linguagem e interesses peculiares. A principal

característica da SA que a diferencia dos demais autismos é a capacidade

intelectual presente nos indivíduos acometidos por essa síndrome. Por serem

capazes de desenvolver a linguagem e a cognição, quando adultos podem viver de

forma comum, tendo amplas chances de se tornarem grandes intelectuais.

Durante a realização desta pesquisa, deparamo-nos com vários estudiosos da

área do Autismo, que a partir dos anos 1900, tiveram como objetivo encontrar o

cerne do problema para então resolvê-lo. Reconhecemos que, com o passar dos

anos, as pesquisas se ampliaram, os manuais de saúde incluíram o TEA em seus

diagnósticos, assim auxiliando muitos profissionais que lidam com essa

especificidade. Contudo, ainda são incipientes para determinarem a causa do

Autismo e da Síndrome de Asperger, assim como para desenvolverem trabalhos

significativos com as pessoas acometidas com esse transtorno.

Vale ressaltar que, apesar do TEA ser tão comentado na atualidade, suas

especificidades ainda são desconhecidas por grande parte da sociedade. Em nossa

pesquisa, essa incógnita se fez presente: Como uma jovem passou pela trajetória

escolar durante 17 anos, apresentando características do TEA leve e não foi

diagnosticada? Os indícios apresentados pela pediatra no período da educação

infantil foram levados em conta?

Mediante o exposto, constata-se que tanto os pais, quanto os profissionais da

saúde e da educação, que realizaram trabalhos multidisciplinares com a “Rafa”, não

conseguiram visualizar o quadro de Síndrome de Asperger presente nela. Só agora,

em 2016, uma psicopedagoga conseguiu apontar o TEA como principal fator das

condutas atípicas de “Rafa”, o que coincide com a reformulação do DSM.

Ainda hoje, “Rafa” não conhece as especificidades da Síndrome que a

acomete, acredita que a mesma se refere apenas ao campo social, e sem perceber,

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durante a entrevista desfilou as características da SA presentes na sua vida, mesmo

que ainda de forma camuflada.

No que se refere às características da SA apresentadas por Rafa,

percebemos que a sua inteligência, assim como descrita por Asperger, é

preservada, sendo fenomenal para algumas coisas e com certa dificuldade em

outras. Rafa expressa para nós a sua aptidão pela história, sendo capaz de decorar

as datas dos acontecimentos históricos. Em contrapartida, expõe sua dificuldade em

matemática e nas disciplinas derivadas. Acreditamos que sua dificuldade é resultado

de outra característica nata do TEA, a incapacidade de interpretação. A jovem

também não se interessa pela leitura e apresenta dificuldades em voltar a sua

atenção para o que o professor ensina, tudo se torna razão para perder o seu foco.

Notamos que, embora o falar de Rafa apresente estereotipias, o seu

vocabulário é rico, sendo capaz de entender tudo o que dizemos a ela, até mesmo

no que se refere a gírias e abreviações.

A princípio, acreditávamos que nos depararíamos com uma garota que iria

desfilar seus desinteresses ao campo social, mas foi bem pelo contrário, durante a

entrevista “Rafa” evidenciou as inúmeras tentativas de se incluir, fazer amizades,

participar de atividades em grupos. Ações essas que a própria falhou, sem entender

o porquê. Sua fala denotou o tempo inteiro o desejo de ser aceita e pertencer a um

grupo social.

É sabido que os Aspergers apresentam dificuldades em entender os estados

emocionais alheios e expressar suas próprias emoções. Contudo, a partir da

entrevista, notamos por diversas vezes, “Rafa” expressando suas emoções e

sentimentos, mas ao dialogar com terceiros, sem perceber, acaba se expressando

de maneira “grotesca”, o que resulta em conflitos para com aqueles que não

entendem sobre as especificidades do TEA.

Concluímos este estudo com mais inquietações que respostas. O exercício de

ouvir e re-ouvir as gravações várias vezes nos permitiu levantar a hipótese de que

aquilo que a exclui também a inclui, ou seja, é excluída das interações sociais, mas

não do espaço social acadêmico. Contudo, infelizmente após 20 dias da coleta de

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dados “Rafa” nos informou que estava “esgotada” com todo processo e havia

trancado sua matrícula.

Por fim, esperamos com este estudo que profissionais da educação e a

sociedade acadêmica em si passe a “olhar” e a enxergar aqueles que se encontram

à margem do processo, não apenas oportunizando ferramentas pedagógicas, mas

sobretudo disseminando e exercitando respeito, aceitação e sensibilização para o

que é diferente, desafiador, destoante dos padrões estabelecidos socialmente.

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REFERÊNCIAS

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