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TRAÇOS MODERNOS DA CIDADE: UM ESTUDO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DA
PAISAGEM URBANA DE FLORIANÓPOLIS ATRAVÉS DE PANORAMAS DO PINTOR
MARTINHO DE HARO.
Elizabeth Ghedin Kammers1
O artigo que ora se apresenta realizou análises e interpretações partindo de
representações da cidade de Florianópolis, produzidas pelo pintor Martinho de Haro2, nas
décadas de 1970 e 1980. Esse período foi caracterizado por intensas mudanças no visual da
cidade, onde se observa a intensa verticalização, o início e conclusão de importante aterro, a
construção de uma nova ponte e de vias expressas, determinando uma nova configuração para
o centro de Florianópolis. Segundo o historiador Reinaldo Lohn (2002, pg. 186), esse
momento da cidade e seus feitos urbanísticos deixaram claro que, “foram nos anos 70 que se
construiu a idéia de que finalmente o futuro havia chegado” para a cidade. Apesar do porte
mediano da capital, as ansiedades com o amanhã e com o progresso sempre foram, e até hoje
são, temas recorrentes entre a população. Conforme apontou o historiador, “se a fisionomia
urbana não acompanhava essa espécie de ansiedade com o amanhã, as práticas culturais já
antecipavam um processo de mudanças de hábitos, condutas e expectativas” (LOHN, 2002,
186). De certa forma, inserido dentro dessa lógica das práticas culturais estão às artes visuais
e sua capacidade de gerar imagens, ativar lembranças e gerar expectativas.
Portanto, esse artigo pretende, partindo da descrição e interpretação de cinco paisagens
urbanas representadas por Martinho de Haro, constituir uma narrativa acerca do imaginário
urbano. Logo, esse imaginário não estará restrito a subjetividade do artista, pois, esse sujeito
será encarado como um agente diferenciado na sociedade, dotado de sensibilidade aguçada
que, como um catalisador, imprimi em seus trabalhos memórias e imagens coletivas.
Segundo Célia Ferraz de Sousa e Sandra Pesavento em capítulo do livro Os
Significados Urbanos (FERRARA, 2000) intitulado Cidade: Imagem e Imaginário,
1 Mestranda Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Considerado o artista que vai definir a linguagem modernista em Santa Catarina (MAKOWIECKY, 2003), Martinho de Haro entrou para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) em 1927, mesmo ano da realização da sua primeira exposição, que aconteceu em Florianópolis. Porém, não seguiu a carreira acadêmica, logo sendo reconhecido e valorizado por uma poética particular. Após uma década de estudos nessa instituição, recebe o grande prêmio de viagem ao exterior, a premiação mais desejada da época pelos artistas plásticos, e que, possibilitou ao artista estudar na Europa com artistas de renome.
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“imagens”, mais precisamente “imagens urbanas”, são como signos da cidade que atuam
como mediadoras do conhecimento dela. Podem também ser descritas como:
- Informação solidamente relacionada a um significado construído por síntese de contornos claros que a faz única e intransferível. - Apenas um significado. - Código urbano de leitura e fruição inscritos na cidade enquanto espaço construído. - Um dado, concreta intervenção construída na cidade. - Decorrência de um referencial contextualizado. (SOUZA, PESAVENTO In: FERRARA 2000, pg. 118).
Várias imagens armazenadas na memória e em arquivos históricos são acrescidas de
significados e valores, constituindo imaginários, teoricamente explicados como:
- Necessidade do homem de produzir conhecimento pela multiplicação dos significados. - Não são únicos, se acumulam, passam a significar por um processo associativo. - Pelo imaginário a imagem urbana passa a significar mais pela incorporação de significados extras do que em relação à imagem básica que lhe deu origem. - Processo que acumula imagens, jogo relacional entre significados despertados a partir de uma imagem de base. (SOUZA, PESAVENTO In: FERRARA 2000, pg. 118).
Outro aspecto teórico que precisa ser definido nesse artigo é a idéia de paisagem.
Tomando como base levantamento da arquiteta Marina Canãs Martins (2008, pg. 04) indica-
se, através de relatórios que tratam do tema do patrimônio cultural, três enfoques diferentes
para a conceituação de paisagem:
1.Interação entre homem e natureza: paisagem é expressão da relação entre indivíduos e sociedades em um tempo e espaço definido;
2.Percepção do espaço: a paisagem é definida e caracterizada da maneira pela qual o individuo ou sociedade a percebe, apropria-se;
3.Atribuição de valor: portadora de significado cultural, defini sensibilidades, práticas, à ela são atribuídos valores de ordem afetiva, de identidade, estética, simbólica, espiritual ou econômica.
Como inspiração de método de análise e interpretação da imagem da cidade toma-se
Canevacci (1993, pg. 30), com a proposta de “estranhar toda a familiaridade possível com a
cidade e, ao mesmo tempo, familiarizar-se com suas múltiplas diferenças”. Depois desta dupla
operação é possível passar a fase mais criativa, a da interpretação, atravessando a opacidade
da tela, tornando-a transparente. Outra dupla operação metodológica foi estimulada pela obra
Significados nas artes visuais do crítico e historiador da arte Erwin Panofsky (1991). Ali se
propõe duas operações para a análise de uma imagem. Primeiramente, uma análise
iconográfica, onde são investigados e descritos “dados concretos da imagem, o que pressupõe
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familiaridade com temas específicos, tal como são transmitidos através de fontes literárias,
leituras deliberadas ou tradição oral” (PANOFKSY 1991 p.58). Entretanto, como afirma o
autor, “essa análise não tenta elaborar a interpretação sozinha. Não se considera obrigada ou
capacitada a investigar a gênese e significação dessa evidência” (PANOFSKY 1991, pg. 53).
Portanto, em oposição à iconografia, a segunda operação, chamada iconológica, tem por
objetivo a interpretação de valores simbólicos, “que, muitas vezes, são desconhecidos pelo
próprio artista e podem, até, diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou
expressar” (PANOFSKY 1991, pg. 53). A interpretação iconológica não se trata de uma
análise, como a anterior, mas de uma interpretação, a construção de uma narrativa que busca
os significados intrínsecos ou os conteúdos que constituem o mundo dos valores simbólicos
expressos através de uma imagem. A interpretação de valores simbólicos aponta para um
conjunto de idéias construídas pelo imaginário, que no caso, não seria apenas do autor, mas de
uma época, de um momento da cidade. As imagens, seu conteúdo e formas, são recriadas
levando em conta sentimentos em relação ao urbano, memórias e outras imagens já vistas. O
imaginário é fenômeno onde encontramos conjunto de imagens, sendo, imaginário e imagens,
dois dados que se complementam mutuamente, se reconhecem à própria medida que se
concretizam, um é a própria existência do outro, confere-se o imaginário pela imagem e vice-
versa. (SOUZA, PESAVENTO In: FERRARA 2000, pg.117). Pensa-se como se o imaginário
pudesse ser revelado pelas escolhas, recortes, cores e formas dadas pelo autor para a cidade
representada na tela.
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Análises e Interpretações:
A (des) valorização do mar e o contraste entre o antigo e o novo.
Cais Rita Maria com Igreja de Nossa Senhora do Parto – 1975/1980 – óleo sobre tela sobre Eucatex – 51,5 x 82 cm.
A primeira tela analisada representa o cais Rita Maria com a Igreja de Nossa Senhora
do Parto datada de 1861. Nessa imagem, a representação dada pelo pintor à geografia da orla
direita está meio distorcida se levarmos em conta seus verdadeiros limites na época da
pintura, como se observa com a fotografia abaixo, datada em 1973. Para localizar a região na
em imagens fotográfica, utiliza-se como ponto de referência a construção em primeiro plano à
direita, com o detalhe arquitetônico arredondado na parte superior.
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Na fotografia, vê-se o casarão indicado anteriormente em uma esquina e construções a
sua direita, em contradição ao que mostra a pintura, que a direita mostra o mar. Pintando a
orla junto ao casarão, o pintor abriu mão de retratar fielmente a realidade física, dando
preferência as águas da baía às construções quadradas que não apresentavam nenhuma forma
arquitetônica relevante. Sabe-se que na época da fatura da tela, entre 1975 e 1980, o aterro já
ocupava o espaço das águas, portanto, como se verá adiante, a idéia da distorção é presente de
um modo geral, em todas as pinturas apresentadas nesse artigo.
Mercado público – 1975/1980 – óleo sobre Eucatex – 65,5 x 123 cm
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A segunda tela investigada já está voltada para localidades históricas inúmeras vezes
representadas por pintores regionais, à região do Mercado Público e da Alfândega. Tema
central da tela, o Mercado sempre ganha destaque pelo seu importante e secular papel na
economia e na sociedade, e pela introdução na paisagem urbana de um elemento arquitetônico
característico e único (VEIGA 1993, pg. 284). O mercado foi construído em duas etapas.
Primeiramente a ala norte, inaugurada em 1898, e, em 1928 a ala sul pelo lado do cais, sendo
necessário um pequeno aterro. O segundo prédio foi planejado idêntico ao primeiro e ligado
por “pontes”. Além do Mercado, pode-se observar o cais Francisco Tolentino a esquerda do
mercado, as torres da Igreja São Francisco, a esquerda das torres do mercado, e, no canto
direito da imagem, a última construção ao fundo, do famoso trapiche Miramar, localizado em
frente à Praça Fernando Machado. Diferentemente da tela anterior, onde a igreja está
representada na mesma altura do edifício logo atrás, nessa imagem os edifícios se destacam
pela altura, mas não pelas formas definidas ou cores. Percebe-se que o pintor reage a presença
da verticalização proeminente com uma representação de blocos sólidos e monocromáticos.
Um dos prédios identificados foi o Edifício Dias Velho, situado na Rua Felipe Schmidt,
inaugurado em 1973 era considerado o mais alto da cidade com 16 andares. Abaixo dele,
outro bloco tem as inscrições “HOTEL”, e identifica-se a representação do Querência Hotel,
inaugurado em 19583. Nota-se que, aonde os edifícios são retratados como os pontos mais
altos da paisagem, para não se chocaram com o visual tradicional e colorido do mercado
público, da alfândega, dos elementos da antiga orla, Martinho de Haro os esboça
despreocupadamente, parecendo juntá-los como se fossem elementos sem distinções entre si,
de significados homogêneos.
3 Esse hotel existiu até o ano de 1999, agora é um edifico comercial, conforme: SANTOS (2005).
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Cais da Alfândega – 1975/1980 – óleo sobre compensado – 38,5 x 70,5 cm
O cais da Alfândega é tema da terceira tela. Nessa imagem, a única selecionada a
mostrar a Ponte Hercílio Luz, pode ser considerada como vista oposta da anterior. Enquanto
na segunda tela focaliza-se o Mercado Público pelo lado oeste, nessa vista o mesmo é
focalizado pelo lado leste e sua fachada está encoberta pelo trapiche frontal a Alfândega. O
edifício da Alfândega é considerado o melhor exemplar da arquitetura neoclássica na capital
(VEIGA 1993, pg. 278), e foi construído entre 1875 e 1877. Funcionou como importante
posto arrecadador e controlador do fluxo de riquezas que chegavam à cidade pela via
marítima, aquela que por muitos anos foi a mais utilizada, até a desativação do porto de
Florianópolis em 1964. Além da fachada da Alfândega, percebem-se em detalhes as torres da
Igreja São Francisco e os telhados de um dos casarões de comércio de Carl Hoepcke,
construído nas primeiras décadas do século XX. Na época da fatura da tela, possivelmente
esse casarão já tivesse cedido lugar à construção do edifício do centro comercial Aderbal
Ramos da Silva – popularmente conhecido pelas iniciais “ARS”. Percebe-se que o pintor
optou por retratar o belo e antigo casarão em vez da nova construção, mantendo a distância
entre o antigo e o novo, que joga para segundo plano os ícones da verticalização.
Nessa figura também está representado os três tipos de meios marítimos de locomoção
utilizados como a canoa, a lancha motorizada e o barco a vela. Assim como os trapiches, a
representação desses meios de transportes é recorrente nas pinturas analisadas, fato que
transmite um sentimento de nostalgia, pois se sabe que esses elementos marítimos, na
verdade, estavam ausentes da paisagem vista na época, podendo essa ser visualizada
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parcialmente abaixo, em fotografia de 1973, onde se vê o Mercado Público e, em primeiro
plano, o arenoso aterro.
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Todas as imagens usadas nesse trabalho sugerem, pela ausência, a presença do aterro,
uma grande transformação urbana que alterou, completamente, a paisagem e o cotidiano das
pessoas. Segundo Paulo César dos Santos (1997) a necessidade da construção de uma segunda
ponte, juntamente com vias expressas e, uma crescente preocupação com a poluição e mau
cheiro da baía junto ao centro, fez com que o mar nessa local fosse rejeitado pela população e
o aterro pouco contestado. Imagina-se que andando sobre as areias do aterro o pintor possa ter
visualizado ao longe os panoramas de prédios, de antigos casarões e esboçado suas telas,
porém, na hora de pintá-las, aonde se viu areia, imaginou novamente as águas. Essa distorção,
que recria a cidade na imaginação, e é transportada para a tela, é junção de recordações, de
outros tempos que influenciam a alma do artista através de sua experiência com o espaço.
Deformações, interpretações de volumes coloridos e de planos; dissonâncias e polifonias. Simultaneidade de estados de alma polarizados por vias analógicas de recordações, pensamentos distantes, impressões de outros lugares e de outros tempos, como se fossem luzes de astros errantes concentradas num espelho. [...]. Influência do ambiente sobre o organismo artístico, na sua gênese e na sua função. (SOFFICI 1920 In: CANEVACCI 1993, pg. 63).
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Até hoje a região do aterro gera polêmicas devido a sua duvidosa utilização, podendo
ser pensado como um não-lugar, já que não se desenvolveu e não se incentivou junto a esse
espaço relações e experiências sociais. Ali se desenvolveu uma “nova espacialidade com um
tempo e um ritmo diferenciado” (SANTOS 1997, pg.15). Um desses ritmos foi o da via
expressa, principal motivo da obra, o que também facilitava o crescimento urbano e da
construção civil. A manutenção do aterro como um “não-lugar” foi também motivada pela
preocupação do poder público em preservar a área (muito maior do que a necessária para a
proposta inicial da segunda ponte segundo Santos (1997, pg.35)) como uma “reserva
construtiva”.
Panorama de Florianópolis com mar verde – 1975 – óleo sobre Eucatex – 63 x 113 cm
Na pintura “Panorama de Florianópolis com mar verde”, observa-se em primeiro
plano, ao lado esquerdo, a parte leste do mercado público com um pedaço do seu trapiche no
canto inferior. Ao lado direto do mercado, seguindo a direção da Rua Deodoro, o já citado
casarão da família Hoepcke e ao lado a Igreja São Francisco. Na quadra central, situada entre
as ruas Deodoro e Trajano, vê-se o prédio da Alfândega tendo a frente seu trapiche e, à
direita, um edifício cinza escuro, construção de 1948 para sediar o IPESC. Ao fundo, várias
edificações impessoalmente representadas, uma aparece ainda com seus andaimes,
sinalizando que ainda estava em construção. Na quadra do lado direito uma construção larga
que representa o que é hoje o edifício comercial São Jorge, chamado assim desde a última
reforma em 1988, onde deixou de ser hotel. Segundo Castro (2002), esse hotel foi construído
em 1952 e se chamava Lux Hotel. Em 1974, ano anterior ao da pintura de Martinho de Haro,
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sofreu uma reforma que aumentou de sete para nove o número de pavimentos, passando a ser
chamado de Center Plaza Hotel até 1988. Logo a direita do Center Plaza Hotel, o topo do
edifício Aplub Visconde, localizado na Rua dos Ilhéus, destoando daquilo que parecia uma
constante na construção da representação dos edifícios, pois foi desenhado com cores e listras.
O detalhe deste último edifício imobilizou o olhar do pintor, como sugere Canevacci (1993,
pg. 24):
Freqüentemente, eu mesmo me sinto observado como se tivesse sido arrastado e imobilizado pelos olhares que as várias subjetividades de alguns edifícios lançam sobre mim. Às vezes, tenho dificuldade em compreender ou recordar se algumas escolhas efetuadas em relação a certos lugares da cidade, [...], tenham realmente sido feitas por mim ou por eles.
Com o detalhe do andaime, um aceno para a dinâmica da verticalização, da demanda
por mais edifícios, um processo que estava se acentuando e preenchendo os espaços vazios da
paisagem. Para isso, as construtoras, muitas vezes, tinham que derrubar antigas construções,
indo de encontro a discursos de parte da sociedade que valorizavam a preservação de casarões
coloniais, de sua memória e história. Percebemos esse conflito no anúncio de uma imobiliária
onde se lia: “é uma pena, mas uma capital não tem o direito de ser somente patrimônio
histórico, [...], uma imobiliária que, apesar de gostar muito da arquitetura do século XVII,
ajuda a construir uma capital do século XX” (PEREIRA, 198?, pg.78).
Baía sul – 1974 – óleo sobre Eucatex – 62 x 120 cm
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Na última tela a ser examinada não é possível ver nenhuma edificação, mas ela está
exatamente no ponto de observação do pintor. O marco da verticalização presente na
representação é o Edifício das Diretorias, ponto aonde o observador vê a cidade aos seus pés.
Pode-se também pensar esta imagem como focalizando a paisagem oposta da última tela
analisada.
Aqui nessa tela é possível ver com mais detalhes o famoso bar e trapiche Miramar,
última construção à esquerda. Era nesse trapiche que desembarcavam pessoas vindas do
continente, mesmo depois da inauguração da ponte Hercílio Luz, que ocorreu em 1926, tendo
em vista que mesmo depois da ponte a prefeitura investiu na reforma e modernização desse
trapiche, entregue à população em 1928. O bar e trapiche Miramar foi demolido em 1974
devido às obras do aterro e tem sua memória reavivada até hoje, visto que no seu local não
passou nenhuma rodovia, como estava sendo planejado à época de sua demolição. Chama-se
atenção para a data da pintura de Martinho de Haro, 1974, o ano derradeiro para a existência
do famoso bar-trapiche, outro dado apontando para memórias e nostalgias.
Observa-se com bastante ênfase nessa última tela e, em menor grau nas outras quatro,
a persistência do artista em retratar as variações cromáticas do céu e do mar. Pode-se até
pensar que essas telas focadas na paisagem urbana seriam um pretexto para Martinho de Haro
estudar e recriar diversas atmosferas de dias nublados ou ensolarados, bem como efeitos para
as águas do mar. A última imagem é muito significativa nesse sentido, pois, mais da metade
da tela é representação da paisagem natural.
Considerações Finais
Absorto e envolvido pelo espaço urbano, caminhando e observando
despreocupadamente o centro de Florianópolis, a postura que se imagina para Martinho de
Haro poderia ser descrita como a do famoso flaneur de Walter Benjamin, na obra Charles
Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. No meio da população apressada que freqüenta
o centro, o artista precisou caminhar lentamente e, às vezes, parar, para, quem sabe, esboçar
desenhos. Nas imagens analisadas o olhar do pintor deu-se quase sempre a partir da região do
aterro recém formado pela areia. Caminhando nesse imenso espaço vazio, qualquer pessoa da
cidade observaria o panorama que anteriormente só era visualizada por quem andava de
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barco. Da mesma forma, a perspectiva alcançada no alto de um edifício. Esses novos pontos
de vista instigaram a percepção do artista o levando a criar novas telas.
As defasagens visuais provocadas pela negligencia da poética, como no caso da falta
do aterro, ou da inserção ou não de determinados prédios, acabam colocando em realce o
imaginado e seus significados. Segundo Bronislaw Bascko (1985), coisas imaginadas,
situações não reais, não deixam de representar a realidade. Coisas irreais, imaginadas,
apontam para funções reais desses percursos imaginários pintados, que são aqueles que dizem
sobre o sentimento da perda, sobre a experiência da transformação urbana, das expectativas
impossíveis em relação à nova paisagem em evolução, enfim, a realidade indiscutível que é
aquela vinculada aos sentimentos humanos. A imagem real, vista pelo artista no caminhar
despreocupado, e a imaginação, como conjunto de várias imagens rememoradas e
modificadas com o tempo, se complementam na pintura, mostrando que:
Existe uma comunicação dialógica entre um determinado edifício e a sensibilidade de um cidadão que elabora percursos absolutamente subjetivos e imprevisíveis. Fluxo emotivo que é liberado por essas ruas e não outras. Reativação de fragmentos de memória em determinados espaços. A cidade é agida por nós, não somos apenas espectadores, mas também atores do urbano (CANEVACCI 1993, pg. 22).
Observa-se que, Martinho de Haro foi personagem que agiu sobre a cidade, criando
outras formas de observá-la e contribuindo para o leque de imagens que formaram a paisagem
urbana naquele momento histórico. Contudo, a urbanização, como fenômeno dinâmico,
transforma gradativamente e progressivamente essa paisagem, induzindo a renovação
constante das imagens e do imaginário.
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Referências
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