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tópicos e notas críticas Carlos C, Almeida Sobre a problemática da emigração portuguesa: notas para um projecto de investigação interdisciplinar 1. As breves notas que a seguir se apresentam não pretendem, de modo algum, abarcar o conjunto da problemática da emigração portuguesa. Trata-se, tão-só, de apontar o quadro de reflexão segundo o qual temos vindo ultimamente a analisar o fenómeno migratório português. Como se verá, tal análise coloca-se na pers- pectiva da situação dos trabalhadores imigrados, muito mais que na do estudo da emigração. Várias razões concorrem para que assim seja. a) Em primeiro lugar, partimos do facto de a definição do objecto de uma investigação, sobretudo no que às ciências huma- nas e sociais diz respeito, não se operar independentemente da própria situação do investigador. Não se trata de enunciar um puro princípio de ordem prática, embora seja evidente que o facto de estarmos afastados de Portugal nos coloca em postura desfavo- * Texto apresentado na reunião organizada em 29 de Outubro passado pela Universidade Nova de Lisboa, com vista a lançar um projecto de inves- tigação interdisciplinar sobre mão-de-obra e emigração. Este texto mais não é do que um documento de trabalho, servindo antes de mais para apontar algumas pistas e certas perspectivas de análise sobre a emigração portu- guesa. A sua articulação interna ressente-se do objectivo para que foi elabo- rado, pois que se tenta, nos diversos pontos, responder a alíneas precisas da agenda de trabalhos daquela reunião, com vantagens quanto a uma efectiva participação por parte do autor, momentaneamente ausente do País, mas 778 certamente com desvantagens quanto à unidade própria do texto.

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tópicose notas críticas

Carlos C, Almeida

Sobre a problemáticada emigração portuguesa:

notas para um projectode investigação interdisciplinar

1. As breves notas que a seguir se apresentam não pretendem,de modo algum, abarcar o conjunto da problemática da emigraçãoportuguesa. Trata-se, tão-só, de apontar o quadro de reflexãosegundo o qual temos vindo ultimamente a analisar o fenómenomigratório português. Como se verá, tal análise coloca-se na pers-pectiva da situação dos trabalhadores imigrados, muito mais quena do estudo da emigração. Várias razões concorrem para queassim seja.

a) Em primeiro lugar, partimos do facto de a definição doobjecto de uma investigação, sobretudo no que às ciências huma-nas e sociais diz respeito, não se operar independentemente daprópria situação do investigador. Não se trata de enunciar umpuro princípio de ordem prática, embora seja evidente que o factode estarmos afastados de Portugal nos coloca em postura desfavo-

* Texto apresentado na reunião organizada em 29 de Outubro passadopela Universidade Nova de Lisboa, com vista a lançar um projecto de inves-tigação interdisciplinar sobre mão-de-obra e emigração. Este texto mais nãoé do que um documento de trabalho, servindo antes de mais para apontaralgumas pistas e certas perspectivas de análise sobre a emigração portu-guesa. A sua articulação interna ressente-se do objectivo para que foi elabo-rado, pois que se tenta, nos diversos pontos, responder a alíneas precisas daagenda de trabalhos daquela reunião, com vantagens quanto a uma efectivaparticipação por parte do autor, momentaneamente ausente do País, mas

778 certamente com desvantagens quanto à unidade própria do texto.

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rável para avançar fundadas hipóteses sobre a emigração portu-guesa, sobretudo no quadro de um projecto de investigação comoo que agora se pretende delinear, o qual, a nosso ver, deverá darprioridade ao «trabalho de campo». Trata-se, a nível mais funda-mental, de um princípio metodológico próprio das disciplinas so-ciais, pois que o investigaidor é parte integrante do objecto investi-gado. Ao anunciar o que parece ser uma evidência, mais não faze-mos do que trilhar caminhos já amplamente explorados pelos clás-sicos da sociologia. Mas não será demais insistir neste aspecto,num tempo que parece dominado por correntes metodológicas hiper--empiristas de cariz tecnocrático.

Ora, se assim é, a nossa vivência directa da situação da imi-gração confere-nos, enquanto investigador, um papel que restitui,em grande parte, a nossa situação de facto enquanto «actor»social. É certo que nos separamos dos trabalhadores imigrados, naqualidade de intelectual expatriado por motivos que não são essen-cialmente de ordem económica. Diríamos que nos liga aos trabalha-dores imigrados uma mesma situação contextuai e que deles nosseparam distintas situações estruturais. Mas não vemos nestefacto uma decisiva limitação quanto ao nosso papel de investiga-dor, antes pelo contrário — a diversidade de perspectivas pode fa-cilitar o estabelecimento de uma necessária distância em relaçãoao objecto de estudo, sem prejuízo da relação de empatia queligará o investigador ao universo que se propõe estudar, relaçãoesta facilitada pela existência de zonas de vivência comuns.

6) Passando a um outro tipo de argumentos, diga-se que oestudo da situação da imigração reveste grande importância sese quer definir a problemática da emigração portuguesa. Seránecessário demonstrá-lo?

Há a tendência para reduzir essa problemática a dois momen-tos privilegiaJdos, o ante e o após expatriação, o que se traduz, nagíria dos estudiosos destas questões, pela análise das «causas» edas «consequências» da emigração. Acaba por se considerar queos imigrantes, porque vivem e trabalham noutros espaços nacio-nais, não entram numa problemática portuguesa. Dir-se-ia quesão assim duplamente expatriados, pois que a efectiva partida dostrabalhadores migrantes para outros países, nós, os investigadores,acrescentaríamos o seu forçado exílio de estudos que a eles preten-demos dedicar...

É certo que os trabalhadores imigraidos são tidos em contanas análises das «consequências» da emigração. Mas de um modo,as mais das vezes, instrumental, isto é, apenas enquanto «produ-tores de transferências»; ou então de um modo negativo, ou seja,enquanto força-de-trabalho ausente.

A este propósito, parece-nos urgente estabelecer uma rupturaem relação às abordagens do fenómeno migratório que tendem areproduzir, a nível da prática científica, a própria prática políticae ideológica do sistema. A nosso ver, a análise da emigração nãoavançará grandemente se a tomarmos apenas como um agregado deprodutores móveis, e de produtores que nada mais produzem doque mercadorias. Ter-se-ia — cabe perguntar — avançado no conhe- 779

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cimento da classe operária caso se reduzisse a análise desta ao tra-balhador como simples produtor de mercadorias, sem estudartudo aquilo que ele produz, enquanto trabalhador, no campo dacultura, da ideologia, da acção sindical e política? Ver-se-ia maisdo que um agregado de trabalhadores individuais, aí onde afinalexiste uma categoria histórica e soeio-política: a classe operária?

Ora, acontece que as migrações hodiernas tendem a realizar,como se verá mais adiante, esse objectivo aliienante que advém daprópria essência do sistema capitalista, ou seja, a redução dostrabalhadores (migrantes) a simples produtores do «mundo dascoisas», como diria Marx. Muitas das análises da emigração — sin-gularmente aquelas que se colocam no terreno da economia, disci-plina que as próprias características do fenómeno migratórioprivilegiam, dir^se-ia que de modo «natural», no estudo destasquestões— partem da alienação dos trabalhadores migrantes comose se tratasse de um simples dado, e não precisamente daquiloque há que explicar.

Surge, assim, a necessidade, que se nos antolha urgente, deexprimir nas análises do fenómeno migratório algo que não sereduz aos aspectos mais funcionais deste último em relação aosistema de produção. Veremos então — será preciso sublinhá-lo? —que os imigrantes têm uma existência «global», para além da suaexistência como simples «factores de produção»; e que formasespecíficas de cultura e de acção tendem a emergir em relaçãocom a situação da emigração.

É convicção nossa que o estudo dessas formas específicas deexistência dos trabalhadores imigrantes tenderá a mostrar o inte-resse que há em englobar a imigração na problemática do fenó-meno migratório português. Por aí se verá que os imigrantes por-tugueses (como aliás acontece com os imigrantes em geral) tendema criar no seio das sociedades ditas «de acolhimento», espaçosnacionais caracterizados pela complexa resultante do jogo dialéc-tico que, por intermédio da imigração, se estabelece entre a culturade origem e a cultura do país de emigração. Temos, pois, que dealgum modo a imigração prolonga e diversifica a problemáticaportuguesa, nela introduzindo novas variáveis que seria certa-mente errado não tomar em consideração. E não estamos só apensar no possível impacto daqueles (relativamente poucos) imi-grantes que, mais tarde ou mais cedo, regressarão a Portugal.A nossa atenção dirige-se sobretudo para a grande massa dosimigrantes portugueses, já de algum modo integrados nos países deimigração. Diríamos que eles estão «presentes» no país, e que opaís está «presente» neles; e que essa «presença» não vem unica-mente das poupanças remetidas para Portugal. Certo, grande parteda ambígua solidariedade que liga os imigrantes e a Nação aíradica. Mas outras formas de relação existem, que urge valorizar,começando-se por lhes atribuir a devida atenção ao nível de futu-ros projectos de investigação.

Efectivamente, o movimento migratório estabelece uma rela-ção entre dois espaços culturais diferenciados, o da região de

780 partida e o da região de «acolhimento», relação que se inscreve

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no quadro de formações sociais desigualmente desenvolvidas.Através da emigração, estabelece-se um contacto súbito das re-giões de origem dos migrantes com os valores culturais do centrodesenvolvido. Contacto este que, seja embora difuso, poderá con-duzir a certos fenómenos de desintegração e de re-estruturaçãosócio-culturais nas comunidades portuguesas mais afectadas pelaemigração. Estas transformações são tanto mais vivas quanto écerto tratar-se de comunidades reduzidas as mais das vezes a umasituação de estagnação económica e de «marginalidade» sócio--cultural. Haverá, pois, a tendência, por parte daqueles que nãoforam levados pela corrente migratória, a adoptar mecanicamentealguns dos traços culturais mais visíveis das sociedades de imi-gração, segundo a re-interpretação que deles fazem os própriosimigrantes. E note-se que essa cultura exógena, embora não cor-responda ao contexto histórico e socio-económico dessas regiõesde emigração, tende a ser tanto mais valorizada quanto é certo serveiculada por relações a que o envio das poupanças empresta carác-ter ambíguo, senão mesmo contraditório.

Que sabemos ao certo sobre tudo isto? Que alterações napaisagem social, cultural e ideológica das comunidades rurais emesmo urbanas portuguesas tudo isto está a engendrar, eis o queparece urgente inquirir. Para tanto, impõe-se levar a cabo aquiloa que chamaríamos um levantamento sociológico das regiões maisfortemente afectadas peto recente surto migratório. Segundo senos antolha, tal estudo deveria focar essencialmente a relação quese estabelece entre essas regiões de emigração e aquelas onde ostrabalhadores portugueses imigrados tendem a recriar, no con-fronto com a cultura do país de imigração, formas culturais «por-tuguesas», marcadas ao mesmo tempo pela permanência e pelainovação. Por outras palavras: trata-se de descortinar, nesseestudo das regiões de emigração, a articulação existente entre aspressões externas vindas das comunidades de trabalhadores por-tugueses expatriados e o arranjo dos factores internos, tanto na-cionais como locais. Ou seja ainda: as transformações induzidaspela emigração nas regiões de partida, a nível do arranjo das clas-ses sociais como a nível da emergência de novas formas de ideo-logia e de comportamento, não são apenas o fruto do impacto defactores externos, nem tão-pouco a resultante de factores internosgozando de uma autonomia absoluta. Estamos antes perante umarelação, cuja dinâmica contraditória haverá que analisar no pró-prio âmbito das regiões de emigração.

Se o que deixamos dito se justifica, compreende-se, então,como é importante incluir-se na problemática da emigração por-tuguesa o estudo do processo de inserção dos trabalhadores imi-grados nas sociedades de «acolhimento».

2. Estudos como estes implicam uma perspectiva de análisemulti-dimensional. Daí o justificar-se uma prática científica inter-disciplinar que apele para diversas disciplinas na focagem das ques-tões colocadas. Entendamo-nos, no entanto, sobre essa práticainterdisciplinar. É nossa convicção que não se pode reduzir o 781

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emprego desta a uma simples colagem, lado a lado, de análisesfeitas segundo a linguagem e o método de abordagem próprios acada disciplina. A tanto se reduz por vezes uma certa utilizaçãopuramente ritual da interdisciplinaridade, manejada como se setratasse de um valor altamente desejado, mas vazio de conteúdoprático.

Somos de opinião que, no que à emigração diz respeito, im-porta estabelecer aquilo a que chamamos noutro local uma análiseintegrada éo fenómeno migratório, capaz de restituir este últimona sua globalidade. É que nos encontramos perante um objectode estudo particularmente parcelarizado, em função das váriasfocagens e até dos vários paradigmas das disciplinas concernentes.

Afigura-se-nos que o fenómeno migratório, como totalidadeque é, ganhará mais em ser analisado no quadro de uma focagempluridisciplinar do que no quadro de uma prática interdisciplinardo tipo aditivo que acabamos de criticar. Georges Devereux tecea este propósito, no limiar da sua obra intitulada Ethnopsychana-lyse complémentariste (Paris, 1972), algumas considerações quenos parecem de grande alcance para a clarificação deste assunto,e que estamos tentados em subscrever. Defende o autor a práticade uma «pluridisciplinaridade não fusionante e não simultânea:a do 'duplo discurso* obrigatório» (pág. 10). E entende por «duplodiscurso obrigatório» a focagem que consiste em analisar ummesmo objecto de estudo segundo as perspectivas específicas deduas disciplinas distintas, devendo fazer-se essa «dupla análise»segundo uma relação de complementaridade. Não terá cabimentodesenvolver neste texto tais propostas. Não quisemos, todavia,deixar de as referir a título de objecto possível de reflexão.

3. Apresenta-se, na n Parte destas notas, um extracto, ver-tido para português, de um texto intitulado: «Migration, classe etethnie — réflexions sur les processus d'intégration des travailleursmigrants» \ no qual se esboça um quadro teórico global podendoservir para analisar o processo de integração dos trabalhadoresmigrantes nas sociedades de imigração. Inserimos este texto, talcomo o publicámos anteriormente, na medida em que precisa al-gumas das anotações precedentes.

Mais não é que um quadro teórico geral, que haverá que con-cretizar e diversificar no contexto de um trabalho de campo cen-trado sobre os imigrantes portugueses. Acrescentemos que é estaa tarefa que nos ocupa actualmente.

Para tal, servimo-nos de uma metodologia essencialmentequalitativa, cujo detalhe não cabe desenvolver nestas curtas notas.Indique-se, tão-só, que as entrevistas aprofundadas e aquilo a quepodemos chamar as «histórias de vidas» constituem o fulcro destametodologia. Pretendemos essencialmente reconstituir, através do«discurso» dos imigrantes sobre as suas próprias vivências e expe-

1 Publicado na obra colectiva: Contributions à VAnalyse Sociologiquede Ia Suisse, Société Suisse de Sociologie, Actes du 2.e Congrès, Genève 1974,pp. 17-27. A tradução do extracto adiante publicado foi feita no Gabinete de

782 Investigações Sociais.

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riências da emigração, a globalidade do movimento migratório,enquadrando, tanto quanto possível, esse «discurso» na situaçãoestrutural que caracteriza o actual fenómeno migratório.

n1. Acerca da integração funcional: os caminhos da exclusão

O processo de inserção dos trabalhadores migrantes nas socie-dades desenvolvidas da Europa revcste-se de formas relativamenteespecíficas. Os movimentos migratórios a que assistimos actual-mente tendem a perder a forma de movimentos mais ou menosespontâneos, como os que se verificaram antes da segunda guerramundial, para se irem tornando movimentos organizados, planifi-cados. Isto quer dizer que dependem cada vez menos das «decisões»dos emigrantes potenciais. Tanto nos países de partida como nospaíses de chegada foram criadas instituições especializadas queorganizam e enquadram os movimentos migratórios. Estes estãoassim dependentes, na sua forma e extensão, duma política con-certada, se bem que por vezes contraditória, entre os governos inte-ressados, política que é ditada pelas necessidades da conjunturaeconómica.

Para os grupos dominantes dos países de emigração, a expa-triação maciça de trabalhadores constitui uma solução sectorial ea curto prazo para os desequilíbrios estruturais do mercado dotrabalho, permitindo, sem se ter de pôr a questão duma necessáriapolítica global de desenvolvimento, atenuar as tensões sociais re-sultantes desses desequilíbrios. Para os grupos dominantes dospaíses de imigração, os trabalhadores estrangeiros permitem incre-mentar os lucros, ao mesmo tempo que tornam possível, não sóestender ao longo do tempo o processo de racionalização da produ-ção, como também «desnacionalizar» um muito largo sector daclasse operária do país.

Neste contexto, os movimentos migratórios reduzem-se cadavez mais a uma pura funcionalidade económica.

Todavia, as migrações de trabalhadores não consistem numasimples transferência espacial de mão-de-obra de um país paraoutro. Essa transferência constitui, efectivamente, um autênticomovimento social, através do qual se (re)-estrutura a classe ope-rária ao nível global do sistema de produção. Isto significa, nomea-damente, que as implicações duma forte presença de trabalhadoresimigrados nos países de «acolhimento» se fazem sentir, não apenasao nível da produção, mas também na criação e cristalização dasrelações sociais globais. Na realidade, os movimentos migratóriosforam sempre movimentos «fautores de história», na medida emque serviram não somente para desenvolver a sistema produtivomas também, e talvez mesmo sobretudo, para criar e transformaras formas de sociabilidade características das diversas formaçõessociais nacionais.

As nações são, no fundo, as resultantes duma complexa inte-racção de diversas culturas. E é indubitável que os movimentos 783

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migratórios sempre contribuíram para a modelação desse plura-lismo cultural e societal.

Ora, a actual gestão política da imigração, posta em práticaatravés das várias políticas migratórias (acordos bilaterais, trata-dos multinacionais no quadro do Mercado Comum, etc), visa redu-zir a imigração à simples funcionalidade produtiva, retirando-lhetodo o carácter de movimento social.

A instrumentalização dos grupos de imigrantes, enquanto meraforça-de-trabalho, é uma operação ambivalente e geradora de am-bivalência na consciência (vivida) dos próprios imigrantes. A fun-cionalização na esfera da produção faz-se com base no papel de-sempenhado pelos imigrantes no sistema de produção, isto é,enquanto membros duma categoria da sociedade global: a classeoperária. Mas o unifuncionálismo a que s&o constrangidos os tra-balhadores imigrados diferencia-os do resto da classe operária au-tóctone, a qual é, por definição, plurifuncional. De facto, os traba-lhadores imigrados são excluídos de todas as formas de participaçãoinstitucionalizada na sociedade global que se situem fora da esferada produção, e isto com o fundamento da sua pertença étnica, ouseja, enquanto estrangeiros. Operários (+ estrangeiros) na esferada produção, eles tornam-se estrangeiros (+ operários) nas diver-sas esferas da vida, exteriores ao trabalho. Nesta dupla categori-zação: operários/estrangeiros, se joga a ambivalência da situaçãoda imigração.

A instrumentalização dos movimentos migratórios condicionalargamente o processo de inserção dos imigrantes.

É a este respeito muito significativo que o conceito de assimi-lação tenha sido progressivamente substituído pelo conceito deintegração. Sem dúvida, o conceito de integração é mais «neutro»,como o demonstrou Sheila Allen (1971): permite, nomeadamente,conceber a existência duma sociedade de imigração culturalmentepluralista, na qual os grupos de imigrantes não teriam forçosa-mente de se fundir com a cultura dominante. Parece-me todaviaque a substituição de um termo pelo outro traduz mais uma alte-ração verificada na problemática coberta pelos dois conceitos doque uma preocupação de «objectividade».

O conceito de «assimilação» surgiu ao mesmo tempo como ne-cessidade prática e como campo teórico nas sociedades nascentes,onde o contributo dos imigrantes para a formação da nacionalidadedesempenhava um papel central. Tratava-se, nestes países, não sóde fazer funcionar uma economia, mas também de criar uma nação.A inserção na produção podia por conseguinte processar-se con-juntamente com uma política de assimilação, que tinha por objec-tivo transformar os imigrantes em membros plenos da nação. Foiesse, por exemplo, o caso dos Estaaos-Unidos. Sensivelmente dife-rente é o caso dos países europeus que actualmente recrutam mão--de-obra estrangeira: a utilização desta força-de-trabalho pode aíser mais facilmente dissociada duma participação dos imigrantesra vida pública. O objectivo visado é unicamente manter e/ouacelerar um determinado crescimento económico. Não há uma na-ção a criar: pelo contrário, a nação é apresentada como um dado

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histórico, como já inteiramente constituída enquanto tal — o queimplica dever ser preservada de aportações exógenas.

E é por isso mesmo que os grupos dominantes procuram con-finar o contributo dos trabalhadores migrantes exclusivamente aosector da produção, evitando quanto possível rupturas no sistemanormativo da nação.

O conceito de «integração», muito mais impreciso que o deassimilação no que respeita à extensão das transformações por queos imigrantes deverão passar, adequa-se melhor à situação queacabo de referir. Traduz efectivamente o duplo movimento quecaracteriza actualmente o processo de inserção dos trabalhadoresmigrantes nas sociedades de «acolhimento», a saber: a integraçãofuncional e a exclusão social. Estes dois conceitos referem-se adois aspecto® dum mesmo e único processo. O primeiro traduz oprocesso de adaptação dos trabalhadores migrantes às actividadesprodutivas e de consumo do país de «acolhimento», processo quedepende amplamente das necessidades estruturais da economia,modeladas pela conjuntura. O segundo exprime o facto de os imi-grantes não poderem usufruir dos direitos cívicos do país de «aco-lhimento» e serem assim marginalizados do ponto de vista político,social e cultural. Estes dois processos estão estreitamente imbrica-dos. De facto, a unifuncionalização da classe operária imigrada sóse pode operar inteiramente, desde que os operários imigrados per-maneçam estrangeiros. Caso contrário, isto é: se a assimilação serealizasse de modo extensivo, implicando desaparecimento do es-tatuto de estrangiros, a unifuncionalização dos trabalhadores imi-grados tenderia a perder toda a legitimação formal. Os trabalha-dores imigrados seriam então membros integrais da classe operáriaautóctone, o que significaria que o seu grau de marginalizaçãopassaria a depender sobretudo do estado das relações de força exis-tente entre a classe operária e a burguesia dominante.

Resumindo, direi que se o duplo movimento de integração fun-cional e de exclusão social dos trabalhadores migrantes visa, semdúvida, instrumentalizar os imigrantes enquanto força-de-trabalho,por outro lado visa igualmente preservar as sociedades de «acolhi-mento» dos contactos interculturais e interétnicos que todo o re-curso maciço à mão-de-obra estrangeira pressupõe. É certo que taiscontactos ocorrem inevitavelmente; mas tendem a ser reduzidosàquele mínimo que é indispensável a adaptação dos trabalhadoresmigrantes na esfera da produção.

2. Aculturação e contra-aculturação: coma viver a diferença

Acabamos de ver que, no quadro de uma política de imigraçãoque não visa assimilar os trabalhadores migrantes, mas muito sim-plesmente integrá-los, os contactos interculturais e interétnicospermanecem bastante restritos. Importa, no entanto, acentuar quenão se trata simplesmente de uma aculturação cuja forma e mesmocujo conteúdo dependam unicamente do tipo de integração a quesão submetidos os trabalhadores migrantes. Com efeito, no quadro 785

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da integração funcional, a aculturação tende ela própria a ser ins-trumentalizada, simultaneamente pela sociedade de «acolhimento»e pelo próprio imigrante. É aqui que julgo útil introduzir o conceitode aculturação funcional.

A sociedade de imigração exige ao trabalhador migrante trans-formações limitadas. Não tendo por objectivo assimilá-lo, essastransformações podem reduzir-se a uma simples adaptação ao novomeio social e, sobretudo, ao novo quadro de trabalho (Descloltres,1957). Colocando-se eles próprios na perspectiva —muito fre-quentemente ilusória, de facto— de uma imigração temporária(Kayser, 1972), os trabalhadores imigrados são levados a reduziros seus esforços de adaptação aos aspectos mais imediatos de umquotidiano organizado quase exclusivamente em função das suasactividades produtivas. Com muita frequência, a aculturação limita--se, assim, à aprendizagem do conhecimento técnico-industrial in-dispensável para a realização de tarefas produtivas muito poucodiferenciadas. Acrescenta-se a isto, sem dúvida, a aprendizagem dalíngua do país de «acolhimento»; mas tal aprendizagem permanecefrequentemente circunscrita às poucas expressões imprescindíveisna vida quotidiana do imigrante.

Deve-se acrescentar, no entanto, que esta acumulação funcio-nal é sempre acompanhada, em maior ou menor escala, por umaaculturação não imediatamente ligada à integração na esfera daprodução. E isto porque, mesmo no quadro de uma aculturação quese pretende pouco extensiva e se quer controlada, são difíceis de secircunscrever os limites das interpenetrações culturais. Os imigran-tes têm tendência (pelo menos numa primeira fase do processo deinserção) para aceitar passivamente, por uma espécie de confor-mismo admirativo, alguns dos traços mais salientes da cultura dasociedade de «acolhimento». Esta vulnerabilidade cultural —quedepende nomeadamente da distância entre a cultura de origem dosimigrantes e a cultura do país de «acolhimento», bem como doestatuto profissional e jurídico dos trabalhadores migrantes, dapolítica migratória e da situação, na sociedade para onde emigra-ram, do grupo étnico a que os imigrantes pertencem — manifesta--se, no entanto, na generalidade dos casos, paralelamente com umacerta rigidez cultural (Lanternari, 1966). Vulnerabilidade e rigidezculturais podem, aliás, coexistir na medida em que estes dois pro-cessos incidem em aspectos diferenciados da cultura de origem dosimigrantes e da cultura da sociedade de «acolhimento».

A rigidez cultural, isto é: o permanecer ligado à cultura deorigem, é, em certa medida, inerente a todo o processo de inserçãode imigrantes numa dada sociedade. Parece-me, todavia, que estefenómeno se acentua no contexto actual da imigração na Europa,em virtude da integração funcionai e da marginalização que estaimplica. Por marginalização, entendo menos o processo individualde que pode resultar, naqueles que vivem entre duas culturas, um«eu dividido» na acepção de Park (1928), do que o processo socio-político de rejeição de um grupo minoritário, por efeito do qual estese vê a si mesmo como situado à margem da vida social, política e

786 cultural.

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Os imigrantes assim marginalizados continuam a reportar-seà sua cultura de origem, que evidentemente não está em relaçãofuncional com a sua situação objectiva. Ao mesmo tempo, só muitotenuemente e de modo instrumental assimilaram a cultura do paísde «acolhimento». Cria-se, deste modo, uma espécie de vazio cultu-ral, propício à desagregação interna do grupo de imigrantes e adesequilíbrios psíquicos mais ou menos profundos.

A fixação valorizante em certos traços da cultura de origem dogrupo étnico pode constituir, nestas condições, um elemento deresistência à desagregação e, por conseguinte, de reequilíbrio rela-tivamente ao estado de alternância que caracteriza a actual situaçãoda imigração. A este processo de revalorização idealizante da cul-tura de origem no seio das sociedades de «acolhimento», chamareicontra-aculturação. ES evidente, porém, que não se trata de umretorno à cultura de origem «real»; a contra-aculturação significamais propriamente valorização duma cultura de origem «ideali-zada», reinterpretada à luz das novas experiências e da nova situa-ção dos trabalhadores migrantes no interior da sociedade de imi-gração. Através desta idealização, a memória colectiva do gruporetém apenas, mas emprestando-lhe novos conteúdos ou acentuandoos conteúdos de origem, aquilo que é capaz de fazer persistir, maugrado as mudanças impostas pelo contacto com uma nova culturadominante, as suas formas de sociabilidade mais tradicionais, en-caradas como as mais coerentes. Esta idealização torna-se tantomais necessária quanto é certo o grupo já não poder identificar-sefuncionalmente com a sua cultura de origem. Isto quer dizer quea cultura assim construída tende a tornar-se relativamente inde-pendente das formas concretas da existência social dos imigrantes.

A reinterpretação, isto é, a atribuição de significações antigasa elementos novos, ou alteração das significações culturais doselementos antigos em função de novos valores (Herskovits, 1952),visa, por conseguinte, não somente re-enquadrar o imigrante numa«psique colectiva» compartilhada no interior do grupo étnico, mastambém re4nstitucionalizar este último coerentemente, tanto pelarevalorização das suas formas tradicionais de solidariedade, comopela «banalização» da nova cultura com que o grupo se confronta.Com efeito, a reinterpretação da cultura do país de «acolhimento»em termos da cultura de origem torna aquela menos «inquietante»porque mais próxima, mais familiar. Simultaneamente, o retornovalorizante à cultura de origem permite, em certa medida, restituiruma história comum a indivíduos que no contexto das migrações,dela se encontram privados, quer enquanto membros da classe ope-rária, quer enquanto estrangeiros.

3. O duplo exílio: a dificuldade de ser emigrante

A política de integração e de aculturação funcionais têm emvista, por conseguinte, uma dupla finalidade: a) reduzir os traba-lhadores estrangeiros a uma simples força-de-trabalho, utilizadaao sabor das conjunturas económicas; b) preservar o equilíbrionormativo da nação de «acolhimento», evitando que as interpene- 787

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trações culturais entre os imigrantes e os autóctones ultrapassemo limiar indispensável às actividades de produção.

Neste condicionalismo, os conflitos resultantes da imigraçãomaciça de trabalhadores revestiram-se até ao presente de um carác-ter pontual, que certas explosões de violência racista, mais oumenos localizadas, não puderam desmentir. Uma tal contenção dosconflitos só pôde, todavia, ser conseguida mediante a extremafuncionalização dos grupos de imigrantes e através da acção demecanismos de controle social e político que, se fossem aplicadosaos autóctones, seriam próprios de regimes abertamente ditatoriais.

Estas práticas de controle social e político da imigração tornamdifícil qualquer acção dos trabalhadores migrantes. Dado o seuestatuto de estrangeiros, está-lhes praticamente vedado lutar peloreconhecimento das suas culturas como elementos constitutivos dacultura das sociedades de imigração. E, de facto, a identidade cul-tural e étnica não constitui, enquanto tal, um objectivo da acçãoreivindicativa dos grupos de imigrantes. A tomada de consciênciaétnica não assume, no presente conspecto das migrações na Eu-ropa, a forma activa de um protesto contra a marginalização e aexclusão socio-política que atingem os trabalhadores migrantes.Tende normalmente a tomar uma outra forma, que é precisamentea do retorno defensivo a valores idealizados da cultura de origem.

É certo que uma acção reivindicativa dos trabalhadores mi-grantes se manifesta no campo das lutas operárias. Mas estes doisaspectos das lutas dos trabalhadores imigrados, isto é, a sua cons-ciência de classe e a sua consciência étnica, não são independentes.Com efeito, a participação de um grupo de imigrantes nas lutasoperárias depende largamente do grau de autonomia que esse grupomanifesta relativamente à cultura dominante; ou seja, por outraspalavras, depende do grau de afirmação da sua cultura própria.Inversamente, a consciência étnica de um grupo de imigrantesrevela-se tanto mais apta para servir de base a uma acção indepen-dente quanto mais autónoma é a sua consciência de classe. Estesdois aspectos das lutas dos trabalhadores imigrados só dificilmentepodem ser dissociados.

É, pois, seguro que o refúgio nos valores idealizados da culturade origem, para o qual os trabalhadores migrantes são impelidos,tende a tornar-lhes mais difícil uma tomada de consciência, querenquanto membros da classe operária, quer enquanto grupo étnico.

Vivendo numa situação de duplo exílio, — por um lado relati-vamente à sua sociedade de origem, por outro relativamente à so-ciedade de imigração—, os trabalhadores estrangeiros são talvezos únicos operários para quem a nacionalidade se encontra abolida.

E no entanto — por motivos que foram socialmente construí-dos—, esta situação, longe de facilitar a acção, conduz na maiorparte dos casos a uma dificuldade de ser (imigrante).

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