Suicidio e Liberdade

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Considerações dos autores da Escola de Frankfurt sobre o suicídio nas sociedades contemporâneas.

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  • SUICDIO E LIBERDADE DE VONTADE:

    POSSIBILIDADES DE INDIVIDUAO NA SOCIEDADE INDUSTRIAL

    Ana Paula Rocha Graduanda em Psicologia

    [email protected]

    Kety Valria Simes Franciscatti Doutora em Psicologia: Psicologia Social

    [email protected]

    UFSJ Universidade Federal de So Joo del-Rei

    DPSIC Departamento de Psicologia

    LAPIP Laboratrio de Pesquisa e Interveno Psicossocial

    RESUMO

    O problema do suicdio sempre foi algo largamente discutido, seja por socilogos, psiclogos

    ou outros profissionais das cincias humanas. ainda com certo receio que se trata do

    assunto, uma vez que se configura para cada indivduo como algo extremamente ameaador,

    que pode ocorrer inesperadamente com as pessoas mais prximas de ns, integrantes de nossa

    famlia. Frente ao problema, a sociedade se mostra alarmada e at mesmo impotente

    (Hillman, 1964/1993).

    Foi Durkheim que, em 1897, realizou o mais detalhado estudo de que dispomos: sua obra O

    suicdio separa e classifica cada tipo de suicdio segundo suas causas. O autor considera tal

    ato como um fenmeno coletivo, e por isso a sociedade teria em um determinado momento

    uma predisposio definida ao suicdio. Dentre os fatores que podem levar uma pessoa a se

    matar estariam a individualizao exagerada, as crises sociais e a no-diferenciao entre

    indivduo e grupo. Ainda que se tenha uma causa particular aparente para um caso de morte

    resultante de um ato praticado pela prpria vtima, consciente de seu resultado, ela bem mais

    que o resultado de um simples fator com base nesse estudo, pode-se assinalar a existncia de

    situao social especfica que predispe o indivduo ao suicdio (Durkheim, 1897/1982).

    Segundo Horkheimer e Adorno (1944/1985 p.14) a naturalizao dos homens hoje em dia

    no dissocivel do progresso social e sinaliza um desenvolvimento prisioneiro da ilusria

    necessidade de dominao dos homens sobre a natureza externa, sobre a natureza interna

    (pulso) e sobre os outros homens. Depreende-se desta argumentao, que a necessidade de

    dominao , ela prpria, uma parcela da natureza a ser superada e isto passa pelo

    1

  • apaziguamento dos diversos elementos e das formas por meio das quais os homens se

    relacionam tanto com a natureza externa como com a natureza interna: ao tomar a natureza

    como um outro, a quem no se pretende dominar ou expropriar, tem-se a possibilidade da

    realizao alterada da mesma este processo que aparece, raramente nomeado como o

    princpio da cultura (por ser um conceito precioso nas obras destes autores), como movimento

    rumo ao estado de reconciliao com o outro, o diferente, na realizao de um outro tambm

    diferenciado. Com o avano da dominao, os prprios bens da fortuna convertem-se em

    elementos do infortnio (1944/1985, p.15) e ao esclarecimento, se no quiser selar a sua

    prpria autodestruio, cabe enfrentar o medo acolhendo dentro de si a reflexo sobre esse

    elemento regressivo (1944/1985, p.13).

    Os autores postulam como teses principais do livro A dialtica do esclarecimento, que o

    mito j era esclarecimento e que o esclarecimento acaba por se reverter ao mito. Dito de outro

    modo, que o esclarecimento, como um processo histrico de formao do homem, vem se

    apresentando dentro de uma tenso que propulsiona e aprisiona a emancipao humana frente

    natureza: sua dinmica traz aspectos progressivos e regressivos, que possibilitam e limitam

    a capacidade humana de superar a prpria necessidade de dominao, necessidade que

    aparece face ao medo de uma natureza que, atualmente, j no exerce uma ameaa estrita

    contra a vida dos seres humanos. Horkheimer e Adorno (1944/1985) referem-se anlise da

    figura de Ulisses, presente na Odissia de Homero, como um modo de entender a passagem

    do homem cultura e o progresso da regresso no entrelaamento de mito, dominao e

    trabalho e as exigncias de renncia e sacrifcio da sociedade industrial.

    Da Odissia, destacamos uma parte importante, que ilustra a crise bsica do homem na

    sociedade: a dominao/luta contra seus impulsos, suas pulses. Tal passagem se d na ilha de

    Circe: Ulisses tentado a esquecer a realidade e a luta pelo seu ideal. Alguns de seus homens

    se entregam aos prazeres oferecidos pela deusa, sendo por ela metamorfoseados em animais.

    Segundo Crochk (2000), a felicidade daqueles que pretendem uma entrega aos instintos

    na realidade ilusria, uma vez que encobre o seu preo: a resignao, a destruio da vontade

    humana. Se entregar prpria vontade tornando-se indiferente s conseqncias de seus atos

    significa ofuscar-se, no perceber a infelicidade, a dominao intrnseca no mundo dos

    homens. se encerrar no egosmo, ignorando o fato de que o homem essencialmente social,

    mediado, e como tal as suas produes, o conhecimento em geral est vinculado ao interesse

    social da emancipao de toda a humanidade. na auto-reflexo que o homem encontra a sua

    finalidade, e a que percebe tambm algo de liberdade (Franciscatti, 2002).

    2

  • Segundo Marcuse (1964/1967), na sociedade industrial desenvolvida prevalece uma falta de

    liberdade confortvel, suave, razovel e democrtica. Essa sociedade irracional, uma vez

    que sua incessante produtividade impede o livre desenvolvimento das necessidades e

    faculdades humanas. Adorno (1966/1984) comenta que liberdade est estreitamente vinculada

    responsabilidade na sociedade em que vivemos. A autoconscincia de um determinismo

    to impossvel quanto uma conscincia da liberdade, nesses termos, porm nessa negao

    que se pode visualizar essa mesma liberdade. A liberdade da vontade pensada por Adorno,

    em Dialtica negativa, como a unidade de todos os impulsos de um sujeito, independente

    dos impulsos isolados. Seria como uma escolha racional em que se consideram todas as

    conseqncias das aes, e no simplesmente o desejo imediato. A liberdade verdadeira no

    pode ser particular, no a liberdade de um homem. Mas assim como ela deve ser para todos,

    s tem sentido se for tambm para cada um. Para Marcuse (1955/1975), num processo de

    individuao verdadeiro, diferente da individualizao, a liberdade do indivduo e da

    sociedade podem reconciliar-se, formando uma nica vontade.

    Neste estudo, pretende-se pesquisar os limites da liberdade humana; lanar o olhar sobre a

    parcela de culpa dos homens em abrir mo de sua humanidade, de suas responsabilidades e de

    sua vida em ltima instncia. O homem s se diferencia do animal na medida mesma em que

    se afasta da natureza, tanto da natureza interna, os seus impulsos, quanto da externa. Pensa-

    se a Odissia como a luta constante por individuao, que se faz necessria a cada homem

    para que merea realmente essa condio. Mas o que Ulisses e seus companheiros pretendem

    voltar a taca, ou seja, manter o que se tinha. Fora do mito, em uma sociedade que sabota

    as possibilidades de liberdade e de individuao, a ns, apesar dos monstros comedores de

    homens e de outros constantes perigos da histria de Ulisses, o desafio parece ainda maior.

    Porque a nossa taca est ainda por ser construda.

    Nesse sentido, este trabalho visa investigar as possibilidades de liberdade e de individuao

    na sociedade atual, e as conseqncias da no-realizao das potencialidades da individuao

    como a concretizao do desejo de se retirar da sociedade por meio do suicdio. Busca-se,

    alm da psicologia (em especial a psicanlise de Freud), auxlio em outras reas de

    conhecimento, especialmente o mito, a arte, as cincias sociais e a filosofia, com vistas

    produo de conhecimento a respeito das relaes diretas ou implcitas entre o indivduo e a

    sociedade, a liberdade e o fenmeno do suicdio.

    Ao considerarmos a arte como reveladora da dialtica existente nesse campo de foras como

    parte do mtodo para estudar as possibilidades de individuao e as conseqncias que advm

    quando a mesma encontra-se obstada, pretende-se ressaltar o potencial crtico que esta

    3

  • articulao pode trazer ao conhecimento cientfico da psicologia, desvelando sofrimentos

    injustificados e fortalecendo vestgios que indiquem a sua superao testemunho, resistncia

    e possibilidades de transformao diante das exigncias da morte imposta por um princpio

    civilizador opressivo. Define-se como objeto de estudo as possibilidades de liberdade e de

    individuao na sociedade atual, problematizando as conseqncias da no-realizao das

    potencialidades da individuao como a concretizao do desejo de se retirar da sociedade por

    meio do suicdio. Tal investigao est circunscrita pesquisa terica e diz respeito a como os

    autores Max Horkheimer e Theodor W. Adorno analisam a formao do indivduo por meio

    da imagem de Ulisses narrada na Odissia de Homero. Alm do confronto e da articulao

    com o que Marcuse formulou sobre esta temtica, a obra "Os sofrimentos do jovem Werther",

    de Johann Wolfgang von Goethe, tambm ser estudada a fim de elucidar o foco investigativo

    aqui proposto: estabelecer as relaes entre o indivduo e a sociedade, a liberdade e o

    fenmeno do suicdio. Destacam-se, alm destes estudos, a reviso do marco temtico e a

    reflexo relacionada ao suicdio com base na obra de mile Durkheim.

    Assim, pensando o suicdio como um produto da sociedade e pensando a sociedade industrial

    como altamente repressora, torna-se relevante a produo de conhecimentos mais atualizados,

    neste caso com o auxlio da Teoria Crtica da Sociedade, acerca das relaes entre suicdio e

    liberdade. Por meio da arte do mito e da literatura pretende-se pesquisar o desejo de se

    retirar da sociedade por meio do suicdio como uma no-realizao da individuao, e as

    possibilidades de liberdade e de individuao na sociedade industrial.

    Palavras-chave: Teoria Crtica da Sociedade Formao Cultural Renncia/Sacrifcio

    Morte Arte

    Eixo: tica, violncias e direitos humanos

    Tipo: Sesses temticas

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  • TEXTO COMPLETO

    O presente texto, base de uma pesquisa de iniciao cientfica, visa contribuir com a pesquisa

    Psicologia e Arte: reflexes acerca da subjetividade obstada LAPIP/DPSIC/UFSJ

    problematizando os impedimentos objetivos e subjetivos que perpassam a individuao como

    fatores que possam levar ao suicdio. Investigam-se, com base na Teoria Crtica da

    Sociedade, as possibilidades de liberdade e de individuao na sociedade atual, e as

    conseqncias da no-realizao das potencialidades da individuao como a concretizao

    do desejo de se retirar da sociedade por meio do suicdio.

    Trata-se de uma pesquisa terica, observando como os autores Horkheimer e Adorno

    analisaram a formao do indivduo por meio da imagem de Ulisses narrada na Odissia de

    Homero. Alm do confronto e da articulao com o que Marcuse formulou sobre esta

    temtica, a obra literria Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe (1774/1994), ser

    estudada, assim como a reviso do marco temtico e a reflexo relacionada ao suicdio com

    base na obra de Durkheim. Busca-se, alm da psicologia, auxlio em outras reas de

    conhecimento, especialmente o mito, a arte, as cincias sociais e a filosofia, com vistas

    produo de conhecimento a respeito das relaes diretas ou implcitas entre o indivduo e a

    sociedade, a liberdade e o fenmeno do suicdio.

    O problema do suicdio sempre foi algo largamente discutido, seja por socilogos, psiclogos

    ou outros profissionais da rea das cincias humanas. ainda com certo receio que se trata do

    assunto, uma vez que se configura para cada indivduo como algo ameaador, que pode

    ocorrer com pessoas prximas, at mesmo integrantes de sua famlia. Ou seja, segundo

    Hillman (1964/1993)1 o suicdio no est relegado aos pacientes dos hospcios; pelo

    contrrio, onde ele mais acontece dentro do lar, no curso normal de qualquer vida. Para este

    autor, frente a esse problema, a sociedade se mostra alarmada e at mesmo impotente.

    Foi Durkheim que, em 1897, realizou o mais detalhado estudo de que dispomos O suicdio.

    O termo suicdio designa todo caso de morte resultante de um ato praticado pela prpria

    vtima, consciente de seu resultado. Para o autor, o suicdio um fenmeno coletivo, um fato

    social: ainda que se tenha uma causa particular aparente para o ato, ele bem mais que o

    resultado de um simples fator pode-se assinalar a existncia de situao social especfica

    que predispe o indivduo a se matar (Durkheim, 1897/1982).

    1 Quando se tratar de uma obra publicada originalmente em outra data, sero citadas as duas referncias: primeiro a data da publicao original e segundo a data da edio consultada.

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  • Segundo Marcuse (1964/1967), na sociedade industrial desenvolvida prevalece uma falta de

    liberdade confortvel, suave, razovel e democrtica (p.14). Essa sociedade irracional, uma

    vez que sua incessante produtividade impede o livre desenvolvimento das necessidades e

    faculdades humanas. Sendo assim, seu crescimento depende da represso das possibilidades

    reais de amenizar a luta pela existncia individual, nacional e internacional (p.14).

    Assim, pensando o suicdio como um produto da sociedade e pensando a sociedade industrial

    como altamente repressora, torna-se de extrema relevncia a produo de conhecimentos mais

    atualizados acerca das relaes entre suicdio e liberdade.

    Do Mito ao Esclarecimento: individuao e liberdade

    Horkheimer e Adorno (1944/1985) postulam, como teses principais do livro A dialtica do

    esclarecimento, que o mito j era esclarecimento e que o esclarecimento acaba por se reverter

    ao mito2. Nesse sentido, os autores se referem em especial, nos textos O conceito de

    esclarecimento e Excurso I: Ulisses ou mito e esclarecimento anlise da figura de Ulisses,

    presente na Odissia de Homero, como um modo de entender a passagem do homem cultura

    e o progresso da regresso no entrelaamento de mito, dominao e trabalho. Segundo os

    prprios autores, com o propsito de desenvolver as duas teses expostas acima, o Excurso I

    (...) acompanha a dialtica do mito e do esclarecimento na Odissia como um dos mais precoces e representativos testemunhos da civilizao burguesa ocidental. No centro esto os conceitos de sacrifcio e renncia, nos quais se revelam tanto a diferena quanto a unidade da natureza mtica e do domnio esclarecido da natureza. (p.15-16.)

    Da Odissia (850/750/2002), destacamos um fragmento que ilustra a crise bsica do homem

    na sociedade: a dominao/luta contra seus impulsos, suas pulses. Tal passagem se d na ilha

    de Circe, quando Ulisses tentado a esquecer a realidade e a luta pelo seu ideal. Alguns de

    seus homens se entregam aos prazeres oferecidos pela deusa, sendo por ela metamorfoseados

    em animais. De acordo com Silveira (1992), a metamorfose um tema recorrente em muitos

    contos de fadas e tambm na mitologia, mas no implica necessariamente em um

    rebaixamento. Entretanto, as histrias apontam tambm para a metamorfose como obra de

    uma entidade malfica, ou como forma de castigo normalmente decorrente de se negar algum

    aspecto da condio humana.

    2 O tradutor Guido Antonio de Almeida, em nota preliminar para a publicao deste livro no Brasil em 1985, refere-se ao termo esclarecimento desta forma: em Adorno e Horkheimer, o termo usado para designar o processo de desencantamento do mundo, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, qual atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela. Por isso mesmo, o esclarecimento de que falam no , como o iluminismo, ou a ilustrao, um movimento filosfico ou uma poca histrica determinada, mas o processo pelo qual, ao longo da histria, os homens se libertam das potncias mticas da natureza, ou seja, o processo de racionalizao que prossegue na filosofia e na cincia (p.7-8; grifos no original).

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  • Ao se pesquisar sobre os limites da liberdade humana, necessrio lanar o olhar sobre a

    parcela de culpa dos homens em abrir mo de sua humanidade, de suas responsabilidades e de

    sua vida em ltima instncia. O homem s se diferencia do animal na medida mesma em que

    se afasta da natureza, tanto da natureza interna, os seus impulsos, quanto da externa. Assim,

    (..) a fuga do homem da natureza necessria para a construo da cultura, enquanto abrigo que substitui a natureza, mas o preo cobrado a anulao daquilo que deveria ser preservado e em nome do que aquele sacrifcio se dava. Aquilo que se perdeu, enquanto objeto de nostalgia, marca a melancolia do prottipo burgus do indivduo. Se aquilo que foi negado no pode ser conservado ao menos na representao, o sentido da vida se perde. (Crochk, 2000, p.21.)

    Crochk (2000) assinala que a felicidade daqueles que pretendem uma entrega aos instintos3

    na realidade ilusria, uma vez que encobre o seu preo: a resignao, a destruio da

    vontade humana. Entregar-se prpria vontade tornando-se indiferente s conseqncias de

    seus atos significa ofuscar-se, no perceber a infelicidade, a dominao intrnseca no mundo

    dos homens. se encerrar no egosmo, ignorando o fato de que o homem essencialmente

    social, mediado, e como tal as suas produes, o conhecimento em geral est vinculado ao

    interesse social da emancipao de toda a humanidade. na auto-reflexo que o homem

    encontra a sua finalidade, e a que percebe tambm algo de liberdade (Franciscatti, 2002).

    Ulisses pode ser tomado como o representante do esclarecimento. No entanto, ao tentar

    enganar a natureza atravs de seus constantes ardis, ele mesmo passa a descartar aquilo por

    que luta, a base de seu sacrifcio: sua terra e sua identidade. Num tipo de fetichismo, Ulisses

    passa a exaltar o prprio sacrifcio: se, por um lado, seus amigos se entregam e dissolvem sua

    individualidade na natureza, por outro as tticas do heri representam uma fuga. O que

    buscam no o conhecimento dessa mesma natureza e das possibilidades de liberdade, o que

    seria o esclarecimento verdadeiro, mas sim um no-enfrentamento constante do mundo e de si

    mesmo.

    Marcuse (1955/1975) adverte quanto iluso que se caracteriza por esse tipo de pensamento

    que julga que somente os parasos perdidos so verdadeiros:

    Os parasos perdidos so os nicos verdadeiros no porque, em retrospecto, a alegria passada parea mais bela do que realmente era, mas porque s a recordao fornece a alegria sem a ansiedade sobre a sua extino e, dessa maneira, propicia uma durao que de outro modo seria impossvel. (p.201.)

    Parece haver na sociedade interpretaes extremamente opostas de um mesmo terror: a no-

    liberdade. H os que se resignam pela situao atual de dominao imposta por esta

    3 Para Freud, instinto (Instinkt) se refere ao comportamento animal fixado por hereditariedade, caracterstico da espcie. O termo Trieb introduzido justamente em represlia concepo de que a pulso tenha meta e objetivo especficos, localizada no aparelho genital. Aponta, pelo contrrio, para um objeto varivel, que s pode ser escolhido na histria pessoal. Trieb se refere impulso, apontando para uma orientao geral e enfatizando o carter irreprimvel da presso (Laplanche e Pontalis, 1967/1991).

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  • sociedade, reconhecem sua fraqueza perante a ordem social repressora e por isso servem e

    sustentam a mesma ordem. Outros se revoltam, baseados em uma utopia despida de razo, e

    crem ser possvel voltar a um estado primitivo, numa espcie de bucolismo rcade, uma

    saudade melanclica de algo que no se conhece. O que se precisa perceber que o bero do

    homem a cultura, e no a natureza estrita como muito se acredita. A histria como perverso

    da natureza traz consigo uma tenso dialtica entre o progresso e a regresso, contudo no se

    pode dizer que esta retrocede s etapas anteriores da natureza extra-humana; o instinto j se

    perverteu irremediavelmente em pulso, mas a vida no se perdeu, pois ainda h pulso, e esta

    verdadeira no que se prope a ser. Resta ainda o grande desafio da individuao, da

    liberdade. A pulso no abole o prazer; instaura-o. No s a possibilidade objetiva mas

    tambm a capacidade subjetiva para a felicidade prpria da liberdade (Adorno, 1951/1992,

    p.78).

    A liberdade da vontade pensada por Adorno (1966/1984), em Dialtica negativa, como a

    unidade de todos os impulsos de um sujeito, independente dos impulsos isolados. Seria como

    uma escolha racional em que se consideram todas as conseqncias das aes, e no

    simplesmente o desejo imediato. Baseado nestas consideraes, Hermenau (2005) afirma que

    a vontade no se d sem conscincia (p.64) e que esse sujeito responsvel, que pondera suas

    escolhas to livre quanto lhe permitido ser livre, por isso mesmo ele o sujeito da

    liberdade de vontade.

    Adorno (1966/1984) comenta que, na sociedade, a liberdade est estreitamente vinculada

    responsabilidade. A autoconscincia de um determinismo to impossvel quanto uma

    conscincia da liberdade e, entretanto, nessa negao que se pode visualizar a liberdade.

    Segundo o autor, nos ltimos tempos, o mundo tem se mostrado como uma nica ideologia,

    e os homens suas partes integrantes, o prottipo e agente de uma sociedade particularista e

    carente de liberdade (p.272; traduo das autoras).

    A liberdade verdadeira no pode ser particular, no a liberdade de apenas um homem. Mas

    ao mesmo tempo em que ela deve ser para todos, s tem sentido se for tambm para cada um.

    Num processo de individuao verdadeiro, diferente da individualizao, a liberdade do

    indivduo e da sociedade podem reconciliar-se, formando uma nica vontade. Para Marcuse

    (1955/1975), isso abole qualquer justificativa de autoritarismo.

    Nesse contexto, a Odissia pode ser pensada como a constante luta por individuao, que se

    faz necessria a cada homem para que merea realmente essa condio de indivduo. Mas o

    que se pretende voltar a taca, manter o que se tinha. Fora do mito, em uma sociedade que

    sabota a todo momento as possibilidades de liberdade e de individuao, exceo dos

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  • monstros comedores de homens e de outros constantes perigos, o desafio do homem parece

    ainda maior. taca est ainda por ser construda.

    Morte e Suicdio: limites da cultura

    Nos moldes da dialtica, ao pensar a conscincia, volta-se inevitavelmente para um estado de

    no-conscincia, a morte. Marcuse (1955/1975) mostra a grande importncia do tema, j que

    a morte que vem negar uma existncia no-repressiva, sendo que somente a partir dessa

    idia se torna possvel e necessria a civilizao. Horkheimer e Adorno (1944/1985)

    ressaltam: o olhar fixado na desgraa tem algo de fascinao. Mas tambm algo de uma

    secreta cumplicidade (p.215).

    Todavia, quando a morte se d por interferncia do prprio sujeito, e no por motivos

    naturais, o conflito torna-se ainda maior. Em O suicdio, Durkheim (1897/1982) vem dizer

    que existe para cada grupo social e para cada momento uma tendncia especfica para a morte

    auto-infligida. Essa tendncia ento no se explica, a despeito do que pregavam certos

    estudiosos dentre eles mdicos e psiquiatras pela constituio orgnico-psquica ou pelo

    meio fsico. O grande avano do estudo de Durkheim se refere justamente ao fato de situar as

    causas do suicdio no coletivo.

    Faz-se necessrio definir os diferentes tipos de suicdio classificados por Durkheim

    (1897/1982). Segundo o autor, quando o eu individual se afirma com excesso sobre o eu

    social, diz-se que est presente o egosmo. Dessa forma, o tipo de suicdio denominado

    egosta resultaria de uma individualizao exagerada, quando h pouca integrao do

    indivduo sociedade, ou seja, quando ele no sente a sociedade como sendo parte de si

    mesmo. Em seu ideal, suas aes, sua forma de viver e de pensar, esse indivduo tenta se

    afastar cada vez mais da coletividade, e no encontra mais razo de ser na vida. De forma

    oposta, o suicdio altrusta ocorre quando h uma grande integrao do indivduo

    sociedade; ele se mata pelo bem-comum. A razo de ser a existe ainda, mas est fora do

    prprio eu. importante notar que tanto o individualismo excessivo quanto a absoro, a

    dissoluo do indivduo na sociedade podem desencadear o suicdio.

    O terceiro tipo de suicdio, chamado anmico, aquele resultante de desequilbrios sociais

    ocasionados pelas crises econmicas e polticas. Sob o jugo de uma crise, a moral sucumbe e

    as antigas atividades do homem se desagregam, forando-o a uma readaptao nova

    situao. Este processo to doloroso quanto uma mudana para a qual o homem no se julga

    suficientemente preparado. possvel visualizar certa relao entre o suicdio egosta e o

    anmico, na medida em que ambos resultam do fato de a sociedade no estar suficientemente

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  • presente nos indivduos. No tipo egosta, a atividade, so as prticas coletivas que esto

    ausentes, enquanto no anmico o que acontece que o indivduo no sente sobre si e sobre

    seus desejos individuais o efeito regulador da sociedade. V-se, portanto, que o suicdio

    fortemente influenciado, seno determinado pela capacidade de individuao que uma

    sociedade oferece aos seus membros. Uma individuao fraca, entre outros fatores, aliceram

    uma personalidade suicida.

    Horkheimer e Adorno (1944/1985), em Fragmento de uma teoria do criminoso, apontam a

    monotonia do ritmo de trabalho na sociedade industrial como fator determinante de um

    sentimento de horror que se apodera do homem, levando-o muitas vezes ao isolamento,

    desesperana e, finalmente, ao nada. Segundo os autores, necessrio um quantum de

    energia para se tornar indivduo, e em certos casos, essa energia parece estar deteriorada. Da

    a propenso a perder-se no meio ambiente, querer regredir natureza, numa moleza de

    carter a que se chamou, dentre outras denominaes, pulso de morte.

    Para Freud, em seus escritos Alm do princpio de prazer (1920/1976) e O mal-estar na

    civilizao (1930[29]/1974), por considerar a existncia de uma contradio irreconcilivel

    entre Eros e Tanatos, a pulso de morte que aparece como uma natureza inconquistvel e

    a grande responsvel pelo mal-estar. Os autores frankfurtianos mostram uma sria

    preocupao com tal hiptese de Freud. Horkheimer e Adorno (1944/1985) se referem a uma

    obscura pulso (p.160) que toma os homens insatisfeitos econmica e sexualmente. Estes

    desenvolvem grande dio, j que no admitem nenhum relaxamento, porque no conhecem

    nenhuma satisfao (p.160). J Marcuse (1955) emprega a terminologia freudiana, pulso

    de morte, na anlise que realiza sobre o pensamento deste autor no livro Eros e civilizao.

    Diante disso, com base nos autores frankfurtianos, a barbrie das condies sociais e a

    violncia interna contra si mesmo afastam o homem de seu carter humano:

    O mecanismo da adaptao s endurecidas condies, , ao mesmo tempo, um mecanismo de endurecimento do sujeito em si: quanto mais se ajusta realidade, tanto mais se converte em coisa, menos vai vivendo, mais absurdo se torna esse seu realismo, que tudo destri, por meio do qual intervm propriamente a razo autoconservadora, e que sucessivamente ameaa a vida pura. (Adorno, 1955/1991, p.52 e p.164; grifo no original; traduo das autoras.)

    a culpa pelos fracassos constantes na cultura que leva o homem a essa agressividade contra

    o que poderia ter sido e que fora prometido pela cultura paz e tranqilidade. Entretanto, o

    movimento de retirar-se da cultura traz como conseqncia exatamente o embate entre cultura

    e indivduo, de onde tambm origina a questo. Nesses termos, as desigualdades sociais

    dificultam e at impossibilitam a individuao, e o resultado se mostra na separao entre as

    10

  • vidas exterior e interior do homem, e numa frieza frente ao sofrimento, seja este alheio ou

    prprio.

    Entretanto, segundo Marcuse (1955/1975), a idia do instinto (pulso) de morte no aponta

    para a morte em si, como fim da vida, mas para o Nirvana um estado de gratificao

    constante, livre de carncias, quaisquer estmulos ou tenses. A partir disso, pode-se pensar

    que uma vida gratificante poderia reduzir as tendncias destrutivas do indivduo, ao passo que

    uma vida de frustraes e contrariedades hoje estimula a pulso de morte.

    Retomando a Odissia como metfora da vida humana cujo mote a individuao, pode-se

    pensar a atitude dos homens animalizados no palcio de Circe como uma espcie de suicdio:

    o que eles buscam o no-pensar, s o que se deseja a gratificao, numa entrega natureza

    que desconsidera a urgncia alheia do retorno ao mundo real, terra outrora to buscada e

    agora to facilmente esquecida. Como no suicdio, os indivduos se valem de uma qualidade

    essencialmente humana, o pensamento tambm chamado livre-arbtrio, por mais que a

    noo de liberdade possa aqui ser contestada, retornando ao tpico anterior para escolherem,

    em suposta racionalidade, pela no-conscincia, pela desumanizao.

    nesse sentido que se ancora a negao de que a escolha individual pelo suicdio seja

    baseada em uma vontade livre. Tal ato, pelo contrrio, mais parece uma entrega dominao,

    algo que assinalaria talvez a crescente submisso do homem sociedade que ele mesmo criou,

    e no obstante, no suporta mais. Ainda segundo Marcuse (1955/1975), a morte pode se

    tornar racional, e os homens podem morrer sem angstia se souberem que o que eles amam

    est protegido contra a misria e o esquecimento. Aps uma vida bem cumprida, podem

    chamar a si a incumbncia da morte num momento de sua prpria escolha (p.203).

    Mas infelizmente, e nem preciso tanto argumentar quanto a essa afirmao, o tempo de

    segurana e de no-represso ainda no chegou. Escolher a morte desistir da luta, sem que a

    luta termine por isso. aumentar o peso do fardo dos companheiros, determinar que eles

    continuem o trabalho que individual, e que por um motivo ou outro no se pretende mais

    realizar. Quanto a esse ponto, as palavras de Horkheimer e Adorno (1944/1985) so enfticas:

    foi sob o signo do carrasco que se realizou a evoluo da cultura (...). Sob o signo do

    carrasco esto o trabalho e o prazer. Querer neg-lo significa esbofetear toda a cincia e toda a

    lgica. No se pode abolir o terror e conservar a civilizao (p.202).

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