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SILVIO SANTOS VEM AÍ – programas de auditório do SBT numa
perspectiva semiótica
Silvia Maria de Sousa UFF/ 2009
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SILVIO SANTOS VEM AÍ – programas de auditório do SBT numa perspectiva semiótica
por
Silvia Maria de Sousa
Tese apresentada à banca examinadora do Doutorado em Estudos Lingüísticos como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Discurso e Interação.
Orientadora: Profª Drª Lucia Teixeira
Niterói 2009
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS
SILVIA MARIA DE SOUSA
SILVIO SANTOS VEM AÍ – programas de auditório do SBT numa perspectiva semiótica
Niterói 2009
SOUSA, Silvia Maria de. Silvio Santos vem aí – programas de auditório do SBT numa perspectiva semiótica./ Silvia Maria de Sousa. Niterói: UFF / PPL, 2009. 196 fl Tese – (Doutorado em Estudos Lingüísticos) – Universidade Federal Fluminense. 1. Semiótica. 2. Sincretismo. 3. Programas de auditório. 4. Tese. I. Título.
Silvia Maria de Sousa
SILVIO SANTOS VEM AÍ – programas de auditório do SBT numa perspectiva semiótica
Tese apresentada à banca examinadora do Doutorado em Estudos Lingüísticos como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Discurso e Interação.
Banca Examinadora
Profª. Drª Lucia Teixeira (orientadora – UFF)
Prof. Dr. Maurício da Silva (UFF)
Profª Drª Renata Mancini – (UFF)
Profª Drª Regina Souza Gomes – (UFRJ)
Profª Drª Norma Discini de Campos– (USP)
Prof. Dr. Guilherme Nery (UFF – suplente)
Profª Drª Maria Elizabeth Chavez de Mello (UFF – suplente)
Para André – com amor.
“Me dê a mão vamos sair pra ver o sol”. Dolores Duran
AGRADECIMENTOS
Ao longo desses quatro anos foram tantas os encontros e pessoas que de
uma maneira ou de outra colaboraram para dar forma a este trabalho que é impossível citar todas. Com agradecimento e afeto aí vão algumas:
Para Lucia Teixeira, que pegou em minha mão há dez anos – ainda na
graduação – e me apresentou à Lingüística e à Semiótica. Além de uma orientadora, no sentido mais estrito da palavra, pela amizade verdadeira que construímos ao longo desse tempo. Meus mais sinceros agradecimentos.
Para todos os “meus colegas de trabalho” do Sedi – Grupo de Pesquisa em
Semiótica e Discurso– pelas discussões, debates e leituras que tanto me incentivaram em especial àqueles que são amigos para além da instância acadêmica: Karlinha – grande amiga, pelo tema da tese e por todo o resto que não cabe aqui! Regina – por tantos bons momentos, Dani – amiga das antigas! Renata e Zé Roberto – casal paulista – agora quase carioca, pela amizade muito bacana. Em especial agradeço a Regina e Renata pela leitura atenta, pelas críticas e sugestões no exame de qualificação, que tanto me ajudaram. Agradeço também a Rívia – amiga recente, por esses dois anos dividindo tanta coisa!
Para os demais amigos por muitos motivos diferentes: Sid e Joi –irmãos-,
Elzi -comadre e amiga, pelo pequeno Miller – (presente bom de apertar!), Laiana - segunda casa, Mônica e Ângela – bons tempos no Rio Comprido, Andréia, Rose Baixinha , Magui e Jane – amigas desde sempre. Um agradecimento especial para Ana Paula (Aninha) – pelo resumé e ao jovem casal Pedro e Larissa - pela edição do DVD.
À minha família, pelo carinho: pai, mãe, minha irmã e amiga Cini e meus
sobrinhos Dudu e Leo. À agência de fomento – CAPES – pela concessão da bolsa de estudos que
possibilitou a realização deste trabalho.
RESUMO O presente trabalho analisa, com o instrumental teórico da semiótica do
discurso, programas de televisão dirigidos ao grande público. Para isso, realiza-se
o exame de quatro programas de auditório emitidos pelo SBT – Sistema Brasileiro
de Televisão – apresentados por Silvio Santos.
Busca-se investigar quais estratégias são adotadas em tais programas, de
modo a fazê-los permanecerem no ar por mais de quarenta anos. Além disso,
discute-se a peculiaridade desses programas serem apresentados por Silvio
Santos, que além de apresentador é também o proprietário do canal de TV.
A Semiótica permite lançar um olhar sobre a produção da significação dos
programas, considerando-os como textos, ou seja, objetos dotados de sentido. No
caso dos textos televisivos, a análise levará em conta a especificidade do plano da
expressão que se caracteriza pelas linguagens verbal, visual e sonora mobilizadas
numa só enunciação, o que se denomina sincretismo.
A análise realizada assenta-se, então, sobre dois pilares. O primeiro é a
observação dos aspectos intratextuais do enunciado sincrético, a fim de mapear
os efeitos de sentido produzidos, e o segundo é a análise das redes de relações
dialógicas estabelecidas pelo gênero programa de auditório e sua emissão nos
meios de comunicação de massa.
RÉSUMÉ
Notre texte fait une analyse des émissions de télévision dirigées au grand publique, en utilisant l’instrumental théorique de la sémiotique du discours. Pour cela, on a observé quatre jeux télévisés présentés par Silvio Santos dans la chaîne SBT – Système Brésilien de Télévision. Dans cette analyse, on cherche quelles stratégies sont adoptées par tels programmes afin de les faire durer pendant plus de quarante ans. En outre, on discute un cas très particulier concernant Silvio Santos, qui est à la fois présentateur de ces programmes et propriétaire de la chaîne de télévision SBT. La Sémiotique permet de lancer un regard sur la production de signification de tels programmes, en les considérant comme des textes, c’est-à-dire des objets dotés de sens. Dans le cas des textes de télévision, l’analyse prendra la spécificité du plan de l’expression qui se caractérise par les langages verbal, visuel e sonore mobilisés dans une seule énonciation, ce qu’on appelle syncrétisme. L’analyse se fond donc sur deux piliers. Le premier étant l’observation des aspects intratextuels de l’énoncé syncrétique, afin de planifier les effets de sens produits, le deuxième étant l’analyse des réseaux de relations dialogiques établies par le genre jeux télévisé et son émission dans les moyens de communication de masse.
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................11
1. Para uma caracterização do gênero Programa de Auditório............ 32 1.1. Encenação e espetáculo – sobre a estrutura composicional.......................... 40
1.2. Agora é hora de alegria! – a temática ............................................................ 46
1.3. Estilo SBT – o povo na TV ............................................................................. 53
1.4. Quem fala é o número – o entretenimento na arena ..................................... 62
2. Tudo ao mesmo tempo agora – estratégias enunciativas de sincretização ............................................................................................ 74 2.1. O plano da expressão do show de variedades ...............................................81
2.2. Esquema narrativo no show de variedades ................................................... 84
2.3. O plano da expressão no game-show............................................................. 85
2.4. Esquema narrativo no game-show.................................................................. 90
2.5. Preenchimento e movimento............................................................................91
2.6. A relação espaço-tempo..................................................................................94
2.6.1. Do caos à ordem – entre extensidade e intensidade........... 104
3. O baú da fidelidade – éthos, páthos e interação.............................. 115 3.1. O SBT e a construção de um baú da fidelidade ......................................... 118
3.1.2. A interação por aproximação ......................................................... 126
3.2. Reais como atores – éthos e páthos............................................................. 139
3.2.1. A relação éthos/ páthos – um caso de (in)fidelidade?.....................153
3.3. Estilo – heterogeneidade e dialogismo ............................................. 164
Conclusão ................................................................................................ 177
Bibliografia .............................................................................................. 185
Anexos ..................................................................................................... 191
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de ouvido
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(LEMINSKI. Caprichos & Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985.)
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INTRODUÇÃO
Em casa a roda Já mudou, que a moda muda A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão (...)
Os namorados Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro Não faz mais esforço não
E a própria vida Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida Que vem lá da televisão...
Chico Buarque
Só no deslocamento poético é possível concretizar a “vida” e fazê-la
sentar-se no sofá. Essa personagem, que vê a si mesma mais verdadeira,
“mais vivida”, quando reproduzida, faz pensar em várias questões emergentes
da atualidade, tão submetida às exigências, especificidades e coerções
tecnológicas. A imagem criada pelo poeta pode ser tomada como um exemplo
da passagem da experiência a signo, de um modo muito particular, uma vez
que este último passa a comandar o jogo entre o mundo e a sua
representação, configurando uma troca de papéis. Eugênio Bucci, em artigo
publicado na Veja, há dez anos, já fazia uma reflexão semelhante, ao pensar
sobre a relação do homem contemporâneo com a máquina fotográfica:
De bom grado, ele [o turista] substituiu a própria memória
pela fita magnética (...) são as imagens do espetáculo que não foi vivido, pois quem poderia vivê-lo se ocupou em gravá-lo (ou em posar para a gravação). Ali jaz a vida que poderia ter sido. Ali jaz o desejo que não se satisfez, pois entre ele e o turista havia um muro transparente, um vidro, uma câmara, essa engenhoca que reina soberana no espaço exíguo que separa o homem de si mesmo. (BUCCI, Eugênio, Veja, 03/12/1996)
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Assim, televisão, cinema, fotografia, são formas de estar no mundo, que
configuram a relação do homem com outros homens e consigo mesmo. As
clássicas e necessárias formulações de McLuhan evidenciam que a cultura
letrada e a palavra impressa acabam por realizar uma “imposição de padrões
uniformes e contínuos” e, conseqüentemente uma “homogeneização” de
pensamento, comportamento, gostos, etc. (cf. McLUHAN, 2003, p.32). O
surgimento da TV suscita uma veloz proliferação dessa “homogeneização”,
resultando em significativas transformações dos arranjos e esquemas sociais.
Considerado ainda um meio recente – no Brasil1 conta com aproximadamente
meio século de existência –, já instigou inúmeros estudos e pesquisas em todo
o mundo, e não poderia ser diferente, dada a “molduragem que ela [a TV]
produz nas formações sociais ou nos modos de subjetivação” (MACHADO,
2003, p. 16).
No entremeio dessas questões, pretendo utilizar a TV a fim de abordar o
que nela há de fenômeno de linguagem. Entretanto, pensar na linguagem e sua
manifestação mediada implica em considerar as diversas materialidades em
que pode se manifestar. Reside aí um dos desafios atuais aos estudos de
linguagem, que contam com corpora cada vez mais variados, sofisticados e
complexos.
Estudar, então, a linguagem a partir de sua manifestação em objetos
midiáticos é um tema polêmico, pois existe uma tendência na área de
comunicação a considerar que apenas as chamadas “teorias da comunicação”
1 No Brasil é considerado o marco inicial da TV a inauguração do canal 3 – TV Tupi, por Assis Chateaubriand em setembro de 1950. (cf. SODRÉ, 1975, p. 60)
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possam dar conta do fenômeno. No entanto, a reflexão de José Luiz Fiorin
serve-me aqui como justificativa:
Os textos criados pelos meios de comunicação são produtos de linguagens e, por conseguinte, podem ser examinados pelas teorias lingüísticas e semióticas. (FIORIN, 2004, p. 14)
Contudo, há que se considerar, obviamente, a importância do arcabouço
desenvolvido pelas teorias da comunicação, que em certa medida se tornam
teorias da cultura, e enfatizar que reflexões inaugurais como as de Adorno e
McLuhan não podem ser deixadas de lado, já que muitas de suas formulações
serão úteis para o enriquecimento da análise. Afinal, é impossível analisar o
texto produzido para e pela TV sem considerar os estudos específicos sobre
esse veículo.
Arlindo Machado denomina os dois autores precursores como dois
modelos ou maneiras principais de tratar a televisão, sintetizadas na oposição:
“boa”, para McLuhan, vs. “má”, para Adorno. Enquanto para o primeiro as
qualidades da TV residem nos “processos fragmentários abertos” e “numa
recepção intensa e participante”, o segundo a ataca pela má qualidade dos
temas abordados. Aí temos dois pontos de vista, que consideram a televisão
“por sua estrutura tecnológica e mercadológica ou por seu modelo abstrato e
genérico” (cf. MACHADO, 2003, p. 17-19). As observações de Machado
chamam atenção para a necessidade de alargar o modo de observação sobre
a TV, privilegiando o material concreto por ela produzido, a fim de:
...pensar a televisão como o conjunto dos trabalhos audiovisuais (variados, desiguais, contraditórios) que a constituem, assim como o
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cinema é o conjunto de todos os filmes produzidos e a literatura o conjunto de todas as obras literárias escritas ou oralizadas, mas, sobretudo, daquelas obras que a discussão pública qualificada destacou para fora da massa amorfa da trivialidade. O contexto, a estrutura externa, a base tecnológica também contam, é claro, mas eles não explicam nada se não estiverem referidos àquilo que mobiliza tanto produtores quanto telespectadores: as imagens e os sons que constituem a “mensagem” televisual. (MACHADO, 2003. p. 19)
Assim, eleger a televisão como objeto de análise, no âmbito dos estudos
semióticos, significa considerá-la como um tipo de texto, que mobiliza múltiplas
linguagens e se dá a ver por intermédio da tecnologia audiovisual. E para isso
faz-se necessário adotar uma metodologia capaz de abarcar as especificidades
e complexidades do texto em questão.
A Semiótica da Escola de Paris, teoria escolhida para embasar este
trabalho, compreende os textos como objetos de significação e de
comunicação. Suas análises buscam observar os aspectos intrínsecos ao
texto, bem como as redes discursivas em que estão inseridos. Entendendo o
texto como um todo de sentido, a semiótica vai se ocupar de objetos
manifestados nos mais variados meios de expressão, como um texto verbal,
uma pintura, uma música, um filme, um programa de TV.
Tendo como fundador Algirdas Julien Greimas, a semiótica francesa
parte da formulação de Hjelmeslev, que define a significação a partir da relação
entre as formas do plano da expressão e do plano do conteúdo (a partir de
agora PE e PC) das linguagens. Os estudos semióticos pretendem entender,
então, quais são os mecanismos responsáveis pela produção de sentido nos
textos. Para isso, conceberam um aparato metodológico que permite observar
a produção da significação como etapas que se superpõem, indo de um nível
profundo e abstrato até um mais superficial e concreto. O chamado percurso
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gerativo de sentido remonta, na análise, a trajetória da produção do sentido,
através dos três níveis: fundamental, narrativo e discursivo, cada um dotado de
uma gramática própria. A análise consiste numa espécie de desconstrução do
texto e visa reconstituir e recuperar o modo de produção da significação.
A publicação de De l’Imperfection, em 1987, representou um marco para
a teoria, que passa a se expandir para além de seu modelo teórico canônico,
voltando a sua reflexão para a dimensão sensível e afetiva do sentido. Vejamos
a observação de Erick Landowski na apresentação da coletânea Semiótica,
estesis e estética em 1999, sobre o referido livro:
...paradoxalmente, à medida que passam os anos, cada vez mais se reforça a impressão de que, em lugar de ter sido a última de suas obras, foi a primeira, ao menos para os semioticistas. De fato, é naquele livro que os que acreditam nos poderes criativos da disciplina encontram atualmente sua fonte de inspiração preferida.2
Esses “poderes criativos” da disciplina, a que Landowski confere um tom
irônico, consistem justamente em realizar análises que não se prendam
unicamente ao modelo canônico proposto, mas que, por outro lado, também
não o abandonem. Com o avanço da teoria de um lado e a exigência dos
textos produzidos contemporaneamente, com suportes cada vez mais
sofisticados, de outro, a semiótica desenvolve seus conceitos sempre tendo em
vista abarcar o fenômeno da significação, mesmo sabendo de sua
inapreensível extensão. A reflexão de Ignácio Assis Silva num estudo sobre a
2 Este texto foi originalmente publicado na apresentação da coletânea Semiótica, estesis e estética em espanhol. Sua tradução consta da publicação em português de Da imperfeição (2002).
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figuratividade serve-me aqui para exemplificar uma das aspirações teóricas da
semiótica. Trata-se de tentar organizar toda uma estrutura das bases
figurativas, e com isso traçar um “arcabouço organizador do imaginário
humano”. Sendo esta proposta ousada demais, caberia ao analista:
...trabalhar no sentido de ver como é que essa estruturação funciona, atua, na camada profunda, organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama, molda, enforma o tema ou temas que o discurso põe em andamento. Na impossibilidade de tentar o macrouniverso (o imaginário humano), contentar-se com o microuniverso em que aquele se espelha, o texto. (SILVA, 1995, p. 30)
Em suma é, então, o texto, com suas múltiplas especificidades e
diversas manifestações, o objeto da semiótica. Para dar conta dos textos que
são formados pela multiplicidade de linguagens, como por exemplo, uma
página de jornal (verbal/visual) ou ainda um programa de TV
(verbal/visual/sonora), a teoria desenvolve o conceito de sincretismo, também
de base hjelmsleviana, para compreender que:
Objetos sincréticos são aqueles em que o plano da expressão se caracteriza por uma pluralidade de substâncias mobilizadas por uma única enunciação cuja competência de textualizar supõe o domínio de várias linguagens para a formalização de uma outra que as organize num todo de significação. (TEIXEIRA, 2004, p.235).
Tomar para análise um texto de TV põe o analista diante de uma tarefa
que envolve a interação entre linguagens verbais e visuais. Atualmente, a
semiótica tem se preocupado em investigar bastante a questão da visualidade.
Como destaca Jacques Fontanille, o grande achado para o avanço teórico do
conceito de sincretismo advém do estudo da dimensão plástica das linguagens:
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(...) a reflexão sobre a dimensão plástica é realmente essencial, já que se trata de saber em que condições e como, sob diferentes modos semióticos, com suportes diferentes e para usos diferentes, um conjunto de proposições visuais poderia ser percebido como coerente. (FONTANILLE, 2004, p.168)
O aprofundamento de tal dimensão traz à tona a necessidade de
enfatizar o estudo do plano da expressão, ou seja, trabalhar os objetos em sua
dimensão visual, através da análise dos formantes cromáticos, eidéticos e
topológicos, cuja apresentação se dá através “das figuras significantes do
plano da expressão do mundo visível” (FONTANILLE, 2004, p.168). Esse
plano da expressão, quando formado por diversas linguagens em relação, a fim
de formar um todo significante, constitui o que chamamos de objetos
sincréticos. O termo sincretismo em Semiótica recebe duas acepções,
conforme elucida Fiorin:
Greimas estabelece dois tipos de sincretismo em semiótica. O primeiro é definido como o entende Hjelmslev. É o “procedimento (ou seu resultado), que consiste em estabelecer por superposição uma relação entre dois (ou vários) termos ou categorias heterogêneas, recobrindo-os com a ajuda de uma grandeza semiótica ou lingüística que os reúne”.(...) O segundo tipo de sincretismo estabelecido por Greimas é o das chamadas semióticas sincréticas –tais como a ópera ou o cinema – que são aquelas que se valem de várias linguagens de manifestação. (FIORIN, 2006, no prelo).
.
Na tentativa de apurar melhor a noção de sincretismo, Floch, no
Dicionário de Semiótica II, retoma a questão para tratar das semióticas
sincréticas. Para o autor elas se caracterizariam pela mobilização de múltiplas
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linguagens de manifestação, como num comercial, num jornal televisivo ou
numa história em quadrinhos, entre outras.3
Ainda buscando maior precisão teórica e consenso para as questões
referentes a esse conceito, o grande desafio que enfrenta, agora, a semiótica é
o desenvolvimento de uma metodologia que explique o modo de ser do texto
sincrético, ou seja, como essa multiplicidade de linguagens manifesta um todo
apreensível como único. Yvana Fechine ao analisar os “procedimentos de
sincretização no audiovisual” considera que:
Nos meios audiovisuais, essa sobreposição, acumulação ou articulação ‘vertical’ (paradigmática) dos seus mais diversos elementos expressivos pode ser pensada como uma estratégia de convergência: convergência de várias linguagens de manifestação para uma mesma forma (a forma única). (FECHINE, 2004)
Um estudo sobre um meio audiovisual tem como preocupação central
revelar o modo de construção dessa “estratégia de convergência”. Para isso,
deve-se partir do levantamento, da observação e da análise das categorias e
procedimentos que estão em jogo no enunciado construído, a fim de depurar
qual mecanismo estratégico é utilizado para fazê-los convergir e construir o
efeito de unidade.
A “forma” de um programa televisivo, com suas múltiplas linguagens
sobrepostas, manifesta-se concretamente em dois eixos: espacial – o espaço
do set de filmagem – e temporal – o tempo de duração do programa. Na mídia
3 “Les sémiotiques syncrétiques se caractérisent par la mise em oeuvre de plusieurs langages de manifestation. Um spot publicitaire, une bande dessinée, um journal télévisé ou une manifestation culturelle ou politique sont, parmi d’utres, des exemples de discours syncrétiques.” (FLOCH, In. GREIMAS, COURTÉS, 2006, p.217)
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televisiva, a administração do tempo é importantíssima, pois é nele que se
desenrola a cena a ser apresentada.
Pode-se dizer que num texto sincrético audiovisual a significação nasce
da convergência das dimensões espaciotemporais, aliadas aos efeitos
plásticos, como luz e sombra, formas, cores, manifestados no PE das imagens.
A grande questão, então, para a análise do texto sincrético é tentar entender
como as diferentes substâncias do PE se articulam, a fim de constituir uma
forma coerente e apreensível como um todo no PC. Lucia Teixeira (2004), “na
tentativa de esboçar uma metodologia para análise da práxis enunciativa que
produz objetos sincréticos”, lança uma proposta de análise que compreende
três etapas:
1) a identificação dos diferentes códigos utilizados no texto
sincrético;
2) a observação das diferentes formas de interação entre os
códigos;
3) a descrição do efeito de unidade alcançado pelo objeto.
Além dos aspectos citados, a análise sincrética deve ainda considerar as
especificidades de manifestação próprias dos textos, com o intuito de construir
uma metodologia adaptável às variações tipológicas. Por exemplo, a relação
sincrética construída numa página de jornal, em que estão em jogo a
linguagem verbal e a fotografia, por meio de arranjos de composição visual
(articulação entre tipos, cores, tamanhos, formatos das fontes e elementos da
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fotografia), difere da relação construída numa imagem de TV em que os
elementos verbal, visual e sonoro convergem de modo extremo, ou seja, são
praticamente indissociáveis. Assim, um leitor diante de uma página de jornal
pode optar por ler a matéria escrita sem sequer olhar a fotografia que a
acompanha e, mesmo assim, atribuir sentido para o texto. Já um telespectador
ao assistir à imagem sem som, fato raro que, no entanto, pode ocorrer ao
acionar a tecla mute do controle remoto para atender ao telefone ou realizar
uma leitura, fatalmente terá a compreensão comprometida. Esse pequeno
exemplo revela uma questão interessante em relação ao modo de presença
diante da TV. É, contudo, muito comum associar a atividade de ver TV com
várias outras atividades. É inclusive bastante comum ligar o aparelho de TV
para não assisti-lo, mas somente tê-lo como uma companhia. Já fazer a leitura
de um jornal concomitantemente com outras atividades é praticamente
impossível. Com isso, observamos que as especificidades de cada texto
resultam em diferentes formas de sincretizar, de instaurar modos de presença
e de propor formas de interação. Yvana Fechine recupera a distinção que John
Ellis faz entre o “regime do olhar” e o “regime da olhadela” para pensar em
regimes de interação:
Quando pensados em termos de uma relação sujeito e objeto, na qual o espectador e a própria TV ocupam os dois termos da função, o “olhar” e a “olhadela” determinam dois regimes de interação que correspondem, por sua vez, a distintos modos de presença. O primeiro regime de interação, do qual vamos inicialmente tratar, define-se a partir dessa relação do espectador com a própria TV, com determinadas ações deflagradas pelo convívio cotidiano com a TV, com a própria manutenção do televisor ligado (práticas em situação nas quais a co-presença entre os actantes faz sentido por si só). O segundo deles depende de uma determinada relação do espectador com aquilo a que ele assiste na TV, com um tipo de contato que se estabelece entre ele, a TV e o
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“mundo” através das transmissões (textos em situação nos quais a co-presença entre sujeito e objeto é uma condição necessária, mas não suficiente, para a emergência do sentido). (FECHINE, 2008, p.106)
Assim, o sujeito diante da TV pode ser flagrado pelo que nela há de mais
sensível ao que há de mais inteligível. No primeiro modo de presença o
envolvimento se dá mais pelas propriedades do PE e pelas especificidades do
suporte: movimento, som e luz. Já no segundo está em voga mais o PC, isto é,
o que se quer dizer e transmitir. A TV por ter de competir com uma gama de
outras atividades enfatiza o modo interpelativo, buscando dirigir-se diretamente
ao telespectador através do posicionamento próximo às câmeras e com frases
do tipo “não saia daí não”, “aguarde o próximo bloco”.
Teixeira (2004) enfatiza a necessidade de se estabelecer “uma tipologia
dos modos de integração de linguagens nos textos” e retoma a oposição entre
sincretismo e discretismo, formulada por Ignácio Assis Silva para demonstrar
que:
Entre um pólo e outro, poderíamos pensar em manifestações com maior ou menor grau de integração entre linguagens, ou poderíamos discutir a construção do próprio objeto pelo analista. (TEIXEIRA, 2004, p, 237)
Especificamente no caso aqui em questão, o texto televisivo, a análise
terá como um dos objetivos propor um percurso coerente com o alto grau de
integração das linguagens postas no enunciado. A relação entre as imagens
(linguagem visual) e o som (linguagem sonora) é praticamente indissolúvel. O
texto sincrético televisivo precisa ser pensado como um objeto sincrético
dotado de uma solidariedade profunda entre as linguagens que o compõem.
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Observar, então, como se constrói esta relação deve ser uma das
preocupações centrais da análise. A pergunta que naturalmente emerge neste
momento é: qual enunciado será eleito como objeto de análise?
Escolhemos, por razões que definiremos a seguir, o Programa Silvio
Santos e o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), a emissora historicamente
“vice-líder” de audiência no Brasil.
O “homem do baú” e o SBT
A matéria prima destas casas são os móveis fracos de compensado, as fórmicas, os pés tubulares de metal, o plástico, enfim, tudo o que o comércio impinge e que os refinados consideram de mau gosto. No entanto, com essa matéria prima vai-se compondo o ambiente em que a família se reúne, acolhedor, quente e agradável, onde é bom estar.
Ecléa Bosi
Domingo à noite. Milhares de famílias brasileiras reúnem-se em suas
casas e posicionam-se em frente à tela de cristal. Repouso e confraternização.
Preparação para a semana que está por vir... Pela fabulosa caixa colorida,
homens e mulheres captam, através dos olhos e dos ouvidos, vozes, músicas,
coreografias. Neste jogo entre realidade e imaginação, o apelo visual e sonoro
da TV envolve sob a capa do entretenimento a esperança de um sonho
realizado, que se concretiza no sorteio da casa própria, um carro O Km, ou
quem sabe até um milhão de reais.
Essa família, que se encontra em sua “quente e agradável” sala, se
rende aos luminosos raios da televisão. Na imagem, saltam aos olhos os
movimentos das voluptuosas dançarinas, embaladas por baladas repetidas em
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coro pela platéia que assiste ao vivo ao programa no auditório. Platéia
essencialmente feminina, vinda de todas as partes do Brasil em caravanas.
Todos estão ansiosos, bradando seus corais, aplaudindo, gritando e muitas
vezes chorando. Tudo isto tem um motivo: é aguardada a entrada do
apresentador do espetáculo.
O show-man desta ocasião, Silvio Santos, o apresentador e ídolo
popular brasileiro, personifica o “sonho” que alimenta carentes platéias e
famílias. Comunicador e empresário é, também, proprietário do canal SBT –
Sistema Brasileiro de Televisão – no qual apresenta aos domingos o longo
“Programa Silvio Santos”.
Senor Abravanel (Silvio Santos) nasceu em 12 de dezembro de 1930, na
Lapa, Rio de Janeiro. Filho de imigrantes, quando criança já queria ganhar
dinheiro por conta própria, tendo enveredado pelo caminho do comércio,
seguindo o exemplo de seu pai Alberto, também comerciante. Embora
trabalhasse no comércio informal, como vendedor ambulante, não abandonou
os estudos, formando-se Técnico em Contabilidade. Com grande facilidade
para a comunicação, obteve êxito em todas as suas iniciativas, sempre
voltadas para jogos e entretenimentos. Após vencer vários concursos de
locução, estreou em 1961, na TV Paulista, o programa “Vamos brincar de
forca”. Daí em diante, deslanchou sua carreira de comunicador e empresário
sempre direcionada ao público popular. Em 1993, o “Programa Silvio Santos”
entrou para o livro dos recordes como o programa mais duradouro da televisão
brasileira, a contar de sua estréia em 1962, quando Silvio apresentava uma
série de quadros aos domingos das 12 às 14 horas. Em 1981, recebeu a
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concessão de quatro canais de televisão e fundou o SBT, tornando-se uma das
figuras mais importantes das telecomunicações brasileiras.
O SBT foi fundado em 19 de agosto de 1981 contando com 18 emissoras.
Atualmente possui cerca de 107 espalhadas por todo o país. A história desse
canal apresenta uma peculiaridade desde a sua fundação: a rivalidade com a
Rede Globo, líder absoluta da TV brasileira de todos os tempos. Como fundar
um novo canal de TV e garantir uma satisfatória fatia do “bolo” da audiência?
Para isso, Silvio e os demais dirigentes do SBT perceberam que deveriam
adotar como estratégia a construção de uma imagem de popularidade:
Pareceu desde logo aos dirigentes do SBT que qualquer caminho a seguir seria válido, menos o caminho que já estava sendo seguido pela Globo, a emissora líder. Se a líder era qualificada de elitista, o SBT seria popular. E, assim como se imaginou, se fez. (SILVA, 2000, p. 106)
Desta forma, vemos um canal de TV feito para atender ao “gosto popular”.
Contando com uma infra-estrutura precária, o SBT apresentava em sua grade
de programação poucos quadros de programas, mas a audiência do “Programa
Silvio Santos” já se consolidara ao longo do tempo em que havia sido exibido
nos outros canais. Assim, tendo como líder o comunicador Silvio Santos, a
aposta em fazer um canal popular obteve êxito, e garantiu ao SBT a vice-
liderança:
O SBT partiu para uma comunicação quente e intimista, assumiu o conceito de televisão como mídia de massa, que oferecia entretenimento, shows e informação. Dirigia sua programação para classes sociais definidas como B2, C e D1, que representavam 61% da população. Essa estratégia aparentemente teve sucesso. O SBT passou rapidamente à condição de vice-líder do mercado, aumentou
25
sua participação em audiência para 30% no segundo ano de operação.4
Até hoje, o SBT permanece fiel à sua base fundante, embora a produção
de programas como “Jô Soares 11 e meia”, que permaneceu no ar durante 11
anos, para depois ser vendido à Rede Globo, e a recente contratação da
jornalista Ana Paula Padrão, oriunda do canal líder, com a intenção de
estabelecer um “novo padrão de jornalismo” (slogan da propaganda), procure
atingir o público dito de elite e, por conseguinte, disseminar uma imagem de
seriedade e credibilidade.
O “Programa Silvio Santos” já chegou a ocupar praticamente toda a
programação dominical, principalmente na década de 80, época em que os
programas de auditório ressurgem com mais força.5 Formado por vários
quadros que funcionavam como “programas independentes”, e eram
apresentados seqüencialmente, o programa chegava a se estender por cerca
de dez horas. Atualmente, o ”Programa Silvio Santos” 6 diminuiu sua extensão,
4 Disponível em: www.sbt.com.br/institucional/default.asp Acessado em: 14/07/2006 5 Os programas de TV ditos “popularescos”, representados majoritariamente pelos programas de auditório, sofreram uma crise, que vai do final da década de 60 até o final da década seguinte, época em que se buscava construir um “novo perfil do homem brasileiro”. Para isso, foram estabelecidos protocolos de autocensura entre as emissoras, além da atuação já feita na época pela censura do regime militar: “Essa nova estratégia político-econômica se traduziria, no plano cultural e ideológico, num movimento contrário aos programas ‘popularescos’ ou de ‘baixo-nível’” (MIRA, 1995, p. 45). Segundo a autora, na década de 80, o SBT entra na história da TV, apresentando programas adaptados de similares americanos dos anos 50/60. O SBT se torna a “história viva (ou revivida) da televisão brasileira. Não a história toda. Apenas uma parte: exatamente aquela que não encontrara lugar nos padrões vigentes na década de 70”.(MIRA, 1995, p. 110) 6 As tardes de domingo são ocupadas pelo “Domingo Legal”, animado por Gugu Liberato, espécie de seguidor e sucessor de Silvio. Os quadros do “Programa Silvio Santos” são apresentados por vezes aos domingos à noite, por vezes durante a semana em horários variados, entrando e saindo do ar, conforme as exigências da audiência. Além do apresentador Gugu (Augusto Liberato) o time de apresentadores do SBT conta com: Ratinho (Carlos Massa), Hebe Camargo, Celso Portioli e Adriane Galisteu. (Essa formatação da programação ocorreu durante a pesquisa para esta tese entre os anos de 2005 e 2007. Atualmente – 2008 – o Programa Silvio Santos ocupa majoritariamente o dia de domingo, seguido no fim da tarde pelo “Domingo Legal”, de Gugu.).
26
embora ainda tenha uma importância significativa no SBT, uma vez que é
apresentado pelo próprio proprietário do canal, que não faz questão de
esconder seu caráter centralizador, sendo constantemente chamado de
““patrão” · por vários jurados, apresentadores e demais “funcionários” do SBT.
Numa reportagem da revista Veja fica clara a preocupação dos demais
empresários do “Grupo Silvio Santos” com o possível afastamento do líder:
A figura de Silvio é poderosa. Na minha avaliação, se ele
pendurasse as chuteiras hoje, perderíamos de imediato 40% de nosso faturamento total, que está em 1,6 bilhão de reais por ano – afirma Luiz Sebastião Sandoval, presidente do Grupo Silvio Santos. (Veja, 17/05/2000 – grifo meu)
O “poder” da “figura de Silvio” pode ser observado num fato interessante,
que é a promoção de seus sucessores. No SBT hoje há pelo menos três
apresentadores que imitam os trejeitos, as roupas e a voz de Silvio Santos:
Gugu Liberato, Luís Ricardo e Celso Portioli. Este último inclusive foi
selecionado como apresentador justamente por ter uma voz incrivelmente
semelhante à do “patrão”. É portanto o papel temático de patrão, de homem
poderoso, centrado na figura tão cara ao sistema capitalista do self-made-man
que emerge dessa variedade de atores.
Essa figura “que deu certo”, reproduzida como imagem diariamente pela
TV, e tomada aqui como um micro-universo de uma estrutura mais ampla, é
dotada de uma dimensão política, na medida em que movimenta quantias e
produtos e se torna o “porta-voz” de valores e práticas sociais, que estão a
serviço de uma determinada ordem social. A análise do audiovisual, enfocando
27
particularmente a TV com seu rápido e longo alcance, tem como objetivo,
justamente, refletir sobre os modos de produção imagética e sua conseqüente
ressonância na cultura, através das redes simbólicas que fazem proliferar.
Mais especificamente, neste estudo pretendo observar como se dá a
construção de um determinado tipo de estética popularesca, constituída como
uma espécie de identidade do canal SBT e de seu comandante Silvio Santos.
Para isso, estudarei os mecanismos internos de produção dessa estética do 2º
lugar nos programas, através da análise das categorias do PE da linguagem
audiovisual, bem como da seleção temática e figurativa que confere
consistência semântica ao discurso. Além disso, faz-se necessário perceber
como se dá a construção do enunciatário, através das pistas deixadas no
enunciado, observando também quais estratégias enunciativas são acionadas
na manutenção da fidelidade desse público, de modo a consolidar Silvio Santos
e o seu canal como os grandes campeões da vice-liderança da TV brasileira,
até por volta de 2006, ano em que a Rede Record passa a ameaçar o SBT.
Instaura-se aí uma disputa pela vice-liderança.
Para empreender tal análise, a constituição do corpus adotará o princípio
da “representatividade”, conforme postulado por Greimas e Courtés:
A representatividade, como critério de escolha de um corpus, permite ao descritor satisfazer, da melhor maneira possível, ao princípio da adequação, sem que tenha de submeter-se à exigência da exaustividade7. (GREIMAS. COURTÉS, s/d., p.383)
7O Dicionário de Semiótica desenvolve a noção de corpus, baseando-se nos conceitos de exaustividade, representatividade e simplicidade: “L. Hjelmslev integra a exaustividade no seu princípio de empirismo, fazendo notar entretanto que, se a exigência de exaustividade se sobrepõe à de simplicidade, ela deve dar primazia à exigência de não-contradição (ou coerência).” (GREIMAS. COURTÉS,s/d., p. 171) Para a semiótica a simplicidade “se traduz pela ‘simplificação’, isto é, pela otimização dos procedimentos sintagmáticos, que pode manifestar-se ora pela redução do número de operações que um procedimento de análise
28
O corpus final conta com quatro programas: “Gente que brilha” (P1), “Roda
a roda”, (P2), “Rei Majestade” (P3) e “Topa ou não topa” (P4)8. Em anexo
segue detalhamento do corpus, com uma pequena descrição, bem como um
DVD com uma seleção de cenas de cada um. Tomando este conjunto, será
possível ter um panorama representativo dos programas de auditório do SBT
apresentados atualmente. As gravações foram feitas no período de março de
2005 a agosto de 2006. Enfatizarei na análise um exemplar de cada programa,
conforme as datas de exibição em anexo. Entretanto, os outros programas
assistidos e/ou gravados servirão de apoio à minha observação. Além disso, a
título de enriquecimento da análise, lançarei mão do ponto de vista diacrônico,
por meio de eventuais referências a programas antigos exibidos no SBT, ao
longo de sua história, sobre os quais obtenho informações em livros, no site
institucional do SBT, em páginas de fã-clubes de Silvio Santos, bem como,
obviamente, através de minha própria memória como telespectadora desde a
infância, no final da década de 70.
O Programa Silvio Santos representa o gênero “programa de auditório”.
Todavia, esse gênero abriga diferentes subgêneros: show de variedades,
jogos, disputas, etc. É possível organizar o corpus de análise de acordo com a
seguinte classificação:
exige, ora pela escolha deste ou daquele sistema de representação metalingüística”. (Idem, p. 425) 8 Para facilitar a exposição, ao longo do trabalho, adotarei a abreviação: Programa 1(P1) para Gente que brilha, programa 2 (P2) para Roda a roda, programa 3 (P3) para Rei Majestade e programa 4 (P4) para Topa ou não topa.
29
GÊNERO – PROGRAMA DE AUDITÓRIO
Na análise será preciso, então, compreender e explicitar as qualidades e
características do gênero, partindo da observação do corpus. Por isso,
destinarei o primeiro capítulo a uma caracterização do gênero “programa de
auditório”, tomando como base teórica fundamental o pensamento de Bakhtin
(2000), seguido das reflexões de Fiorin (2006b) sobre o tema, na perspectiva
da semiótica. Após detalhar as características que fazem esses textos serem o
que são e funcionarem como funcionam, será necessário adotar um percurso
metodológico que permita analisá-los tendo em vista suas características
fundamentais. Para isso, no segundo capítulo, apresentarei formulações e
observações teóricas sobre procedimentos de enunciação sincrética
concomitantemente à analise dos textos. Observarei, também, quais
estratégias enunciativas põem em andamento o texto sincrético audiovisual, a
partir das duas categorias de tempo e espaço, utilizando uma abordagem
tensiva. No terceiro e último capítulo, enfocarei a categoria de pessoa,
observando os mecanismos de interação entre enunciador e enunciatário, a fim
de observar na concretude do enunciado as marcas de um enunciatário-alvo,
cuja ação de assistir a esse tipo de programa garante a ele a permanência no
PROGRAMA SUBGÊNERO
P1 - Gente que Brilha Show de variedades
P2 - Roda a Roda Game show
P3- Rei Majestade Show de variedades
P 4 - Topa ou não Topa Game show
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ar. Afinal, quem será o público fiel que confere à emissora, seus programas e
seu apresentador o “honroso” segundo lugar? Por outro lado, quem será esse
apresentador, dotado de um “estilo”, a ditar uma determinada identidade
própria à emissora que gira a seu redor?
Enfim, pretendo com este trabalho apresentar contribuição à teoria
semiótica, especificamente para o desenvolvimento de uma metodologia de
análise de textos sincréticos. Com isso, acredito também apresentar um viés
útil para o empreendimento da análise sobre televisão, que leva em conta
aspectos da materialidade significante para a construção do sentido.
Finalmente, busco de certa forma contribuir para compreensão do papel da TV
brasileira, ao desvelar ao longo da análise um determinado estilo que se
constrói e perdura, trabalhando em favor de um determinado modo de
organização social.
31
CONTO COLORIDO Quando lhe perguntaram o que queria ser quando crescesse, não vacilou: televisão.
(STRAUSZ, Rosa Amanda. Mínimo múltiplo comum. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990)
32
1. PARA UMA CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO PROGRAMA DE AUDITÓRIO
A Profª Norma Discini durante uma aula1 perguntou a um aluno: “O que
você vê na sua frente?” Este meio encabulado respondeu: “Um quadro-de-giz
todo rabiscado”. Ao ouvir a resposta, a professora exclamou: “Ótimo, excelente!
Uma resposta perfeita, adequada ao gênero aula. Estranho seria se você
dissesse que vê um lindo céu estrelado”.Naquela ocasião, o que Norma Discini
fazia questão de nos mostrar era o fato de os enunciados serem produzidos em
função do gênero ao qual pertencem, ou seja, obedecendo a determinadas
coerções. Assim, numa situação formal como uma aula, que pressupõe a
avaliação por parte do professor, presume-se que os alunos busquem
respostas objetivas. Quisesse talvez a professora Norma insinuar que o
“gênero aula” propicia poucas respostas criativas? Deixemos tal questão de
lado para retornar ao que realmente interessa, o gênero.
Se parafrasear, dialogar, intertextualizar são formas de construção
discursiva, peço licença para “bakhtinizar” uma famosa frase de Greimas: “fora
do texto não há salvação”, e dizer que “fora do gênero não há salvação”.
Contudo, Fiorin já alertara para o princípio: “Extra Ecclesiam, nulla salus”, que
ecoava no mote greimasiano, que o próprio Fiorin retomava para dizer: “Fora
da relação com o outro, não há sentido” (Cf. FIORIN, 1994, p.36). A ciranda do
discurso se faz, então, de retomada, de relação, de novidade, de repetição.
1 Refiro-me ao minicurso: “TEXTO E DISCURSO: fundamentos teóricos e procedimentos analíticos”, ministrado pela Profª Drª Norma Discini (USP), no Instituto de Letras da UFF entre os dias 28 e 30 de setembro de 2005.
33
Entretanto cada situação exige um “o que dizer”, que é indissociável de um
“como dizer”. É agora Bakhtin quem entra no diálogo, para esclarecer que:
Os gêneros do discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível. (BAKHTIN, 2000, p.302)
A teorização de Bakhtin é referencial para a semiótica, uma vez que põe
em discussão a importância de entender que a comunicação se dá através de
enunciados, nos quais se pode prever a relação entre sujeitos, dotada de
intencionalidade, de tomadas de posição, constituindo-se numa relação viva e
ativa, que tem no enunciado uma “unidade real”. Além disso, o pensamento
bakhtiniano faz emergir a necessidade de se pensar em “gêneros do discurso”,
como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Cf. BAKHTIN, 2000,
p.279). Para a semiótica a estabilidade proposta pelo autor russo é
importantíssima, uma vez que torna os enunciados passíveis de análise.
Embora haja a possibilidade de analisar um enunciado isolado, este não deixa
de funcionar no seio de um determinado gênero, sendo dele uma amostragem.
Daí, a importância de a análise levar em conta as especificidades próprias de
cada gênero, que se concretizam em enunciados. No presente trabalho, a
definição do gênero se torna necessária, pois funciona como uma
34
caracterização do tipo de texto a ser analisado. Assim, a proposta deste
capítulo é explicitar as qualidades do gênero programa de auditório, tomando
as formulações de Bakhtin (2000) e Fiorin (2006b), a fim de descrever mais
embasada e detalhadamente o enunciado-alvo. Entretanto, tendo em mente
que tal gênero se manifesta num enunciado televisivo, é necessário atentar
para o fato de que este gênero se define a partir de uma estratégia enunciativa
sincrética, responsável por colocar em andamento múltiplas linguagens em
concomitância. Com efeito, a enunciação atualiza o jogo entre as linguagens
de maneira a formar tipos passíveis de identificação. Fontanille destaca o
interesse dos semioticistas pela “formação de tipos” ou a necessidade de
“categorização”, estratégias que atuam na atividade discursiva. Segundo ele:
Somente o discurso poderá, sucessiva ou paralelamente, graças ao ato de referência, evocar esta ou aquela ocorrência do tipo a fim de colocá-la em cena. A formação dos tipos é, de certa forma, um outro nome para categorização. É a formação das classes e das categorias que uma linguagem manipula. Ela concerne a todas as dimensões da linguagem: à percepção, ao código e ao sistema. No entanto a categorização atua particularmente no âmbito do discurso, especialmente porque ela organiza a instauração dos “sistema de valores”. (FONTANILLE, 2007, p. 51)
Tipos, categorias e gêneros estão à disposição dos sujeitos, que na
atividade discursiva deles fazem uso, organizando, repetindo, inovando,
subvertendo. Voltando ao objeto do presente estudo – programas de TV –
sabemos que ao apertar o botão da televisão ou do controle remoto corremos o
risco de nos deparar com uma cena repleta de luzes e cores, uma música alta,
uma platéia ao vivo, aplaudindo freneticamente, bailarinas, dançarinos e uma
figura de comando a guiar o acontecimento. A cena descrita não fala de um
35
programa em particular, mas condensa elementos básicos que estão presentes
em vários programas e ausentes em outros. Assim, a presença ou ausência de
determinados elementos faz ser um tipo de programa e deixar de ser outro tipo.
A TV, então, é um objeto que conta com uma variedade, uma infinidade de
“eventos audiovisuais”. Estes em comum possuem “apenas o fato da imagem e
do som serem constituídos eletronicamente e transmitidos de um local
(emissor) a outro (receptor) também por via eletrônica” (MACHADO, 1999,
p.144). Cada programa é, por conseguinte, um enunciado concreto, dotado de
especificidades que o fazem único. Todavia a manifestação de tais enunciados
obedece a regras de uma certa estabilidade, visível na estrutura composicional,
no “volume”, no tema adotado, no enunciatário inscrito e, especificamente no
caso em análise, numa determinada estratégia enunciativa sincrética.
Evidencia-se, desse modo, a necessidade de buscar caracterizar e definir o
gênero que abarca e aglutina um certo conjunto de enunciados. Para tratar
especificamente da TV, sirvo-me de uma observação de Arlindo Machado, no
artigo: “Pode-se falar em gêneros na televisão?”.
De todas as teorias do gênero em circulação, a de Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a mais adequada às obras de nosso tempo, mesmo que também Bakhtin nunca tenha dirigido a sua análise para o audiovisual contemporâneo, ficando restrito, como os demais, ao exame dos fenômenos lingüísticos e literários em suas formas impressas ou orais. Para o pensador russo, gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. (MACHADO, 1999, p. 143)
36
Com isso, é possível perceber que os enunciados produzidos por um
meio agrupam-se segundo uma determinada base de organização, que os
torna reconhecíveis, e ao mesmo tempo garante sua continuidade. O gênero
promove, então, uma certa coerção, que gera a repetição de caracteres
fundamentais à comunicação, mas deixa ao mesmo tempo uma fresta por onde
adentram a criatividade e, conseqüentemente, as mudanças. Segundo Bakhtin,
são eles, os gêneros do discurso, que “de uma forma imediata, sensível e ágil,
refletem a menor mudança na vida social” (BAKHTIN, 2000, p.285). Essas
inevitáveis transformações, que ocorrem ao longo do tempo, possibilitam uma
migração entre os gêneros. A criação de um novo gênero é, portanto, sempre
fruto de um outro que o antecedeu. Este por sua vez antecede um outro que
virá mais adiante. Entretanto, os gêneros não são puros, havendo sempre uma
mistura, uma troca de características que de certa forma torna mais complexa
sua caracterização. Principalmente com o avanço tecnológico e a proliferação
de textos que mobilizam diversas linguagens em sua manifestação, os gêneros
se tornam cada vez mais híbridos.
Em meio a todo o hibridismo dos gêneros televisivos, Machado destaca
dois tipos, que considera exemplares: as formas fundadas no diálogo e as
narrativas seriadas. Sendo a TV “herdeira direta do rádio” as formas fundadas
no diálogo encontraram fértil terreno, sendo os programas de auditório um
exemplo delas:
Os grandes programas de auditório do rádio nasceram dos programas de calouros. Seu enorme sucesso levou o cronista Caribé da Rocha a lançar a idéia dos “teatros nos rádios”. Em 1983, na Rádio Nacional, seria então escrito e animado por Almirante “o primeiro programa montado do rádio brasileiro”: “Curiosidades Musicais”. No
37
mesmo ano, Almirante criava também “Caixa de Perguntas”, em que dialogava com o público presente e oferecia prêmios aos acertadores do auditório. Para tanto, precisava descer do palco e circular no meio do público de modo a colher as respostas ao microfone. (MIRA, 1995, 124-125)
Dialogar com o público é uma das qualidades essenciais e fundamentais
dos programas de auditório. Com efeito, o diálogo é para Bakhtin um dos
gêneros de discurso primários, considerados simples, por se constituírem no
seio de uma comunicação espontânea. Entretanto, a reprodução de um gênero
primário, no interior de um chamado gênero secundário, como o romance, o
teatro, ou o discurso científico, por exemplo, faz com que aquele perca as suas
propriedades, adequando-se ao gosto do autor, do diretor, etc. Assim, a réplica
de um diálogo cotidiano tomada como parte de um romance só tem utilidade ou
funcionalidade dentro da natureza deste segundo gênero complexo (cf.
BAKHTIN, 2000, p.281). Os diálogos estabelecidos nos programas de auditório
por mais naturais e familiares que tentem parecer são apenas réplicas, usadas
na composição da encenação. Observemos este diálogo de P4:
SILVIO: Luciana, onde é que você está? Vem pra cá, Luciana. Vem pra cá. Aê...Luciana. Muito prazer! O que é isso aí, Luciana? LUCIANA: É a foto do meu marido e
do meu filho. SILVIO: Ah...veio fazer propaganda do marido e do filho! E precisa fazer propaganda do marido e do filho? LUCIANA: É que eles não puderam
vir. SILVIO: E o que que tem isso? LUCIANA: Ah...mas faz parte da
minha família, né? É muito importante pra mim. SILVIO: E você veio, você veio aqui
trazer fotografia deles? LUCIANA: Eles vão torcer por mim
aqui! SILVIO: Atenção...atenção! Moças que
querem casar...”ta” disponível... [risos] LUCIANA:Não...não...não...está
disponível, não! Este já é meu!
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O trecho acima representa um bom exemplo da maioria dos diálogos
apresentados no Programa Silvio Santos, os interlocutores parecem bem
próximos e familiares. A questão da aproximação, visível agora na estrutura do
diálogo, será aprofundada mais adiante e tomada como um modo de interação
instaurado no enunciado em questão. É necessário, porém, antever que a
observação das qualidades do gênero programa de auditório permite o
recolhimento das pistas que a análise posterior organizará.
Nos diálogos presentes no Programa Silvio Santos as perguntas
apresentam um caráter pessoal e costumam versar sobre a idade, estado civil,
profissão e endereço dos participantes. Emprega-se um tom humorístico, e por
vezes sarcástico, garantindo a descontração e/ou o constrangimento do
participante, e a diversão do apresentador e do auditório. O diálogo em
destaque, pode-se perceber que, embora ele simule uma familiaridade,
constitui-se na verdade como uma “sabatina”. Nele, o apresentador propõe as
questões e delimita o tamanho dos turnos de fala, os quais quase sempre toma
por assalto. Antes mesmo de o participante concluir a resposta, o apresentador
já está formulando uma outra pergunta. Essa estratégia garante o sucesso do
diálogo, pois não há pausas ou falta de assunto entre os interlocutores, como
pode ocorrer numa situação real ou não simulada. O apresentador é quem
impõe o assunto da conversa, o tom, e delimita o tipo e o tamanho das
respostas, uma vez que interrompe ou corta a fala do participante quando
deseja. A redundância e a repetição também são características marcantes
desse tipo de diálogo, que tem como função muito mais compor a cena e
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cumprir os ritos do gênero em questão, do que esclarecer ou informar qualquer
coisa ao público. Vejamos um trecho de P2:
SILVIO: Bem...aqui estão os fregueses do “Baú da Felicidade”, que estavam em dia com os pagamentos das suas mensalidades...aqui estão para disputar os prêmios do “Roda a roda”. O seu nome é Andrei? ANDREI: Isso. SILVIO: Mora aonde Andrei? ANDREI: Em Manaus, no Amazonas. SILVIO: Aí...Amazonense (aplausos). Quem nasce lá em Manaus é manauara...
ANDREI: Isso. SILVIO: Acertei? ANDREI: Acertou. SILVIO: E você Maria Helena. Mora onde Maria Helena? Mª HELENA: Monte Alegre do Piauí. SILVIO: Aí...piauiense. (aplausos) Feliz natal para os piauienses, não é verdade? Feliz natal para o Hugo Napoleão. Para a esposa dele. E você? Jailson é o seu nome? JAILSON: Isso. SILVIO: Mora aonde Jailson? JAILSON: Florianópolis, Santa Catarina. (aplausos) SILVIO:Florianópolis, Santa Catarina...então nós temos um catarinense, uma piauiense e um manauara ou do Amazonas...Mais uma competição entre três estados...Vamos ver quem vai ganhar! Vamos ver!
O apresentador, mesmo sabendo o nome de cada participante, faz
questão de perguntar. As perguntas redundantes sobre a origem de cada
jogador são habituais e contribuem para reforçar a repetição do diálogo, bem
como para exibir uma ancoragem espacial diversificada, que colabora para a
idéia de espalhamento e expansão do público.
Além desse diálogo com os participantes, Silvio também dialoga com a
platéia, fazendo piadas, brincadeiras, explicando as regras do jogo, fazendo
propaganda de algum produto, entre outras possibilidades. Dirige-se
diretamente ao público que assiste ao vivo e, ao se posicionar em frente à
câmera, ao telespectador que está em casa. Dialogar é, então, uma qualidade
essencial a esse gênero, ajudando a fazê-lo ser reconhecido como tal. Não se
40
pode esquecer, no entanto, que essa forma de ser já é ela própria fruto de um
diálogo, só que mais amplo, com as festas populares, o circo, os programas de
rádio e com outros vários elementos que o antecederam e a ele deram origem:
Assimilando elementos do circo e da festa popular, os programas de auditório acabam se tornando uma síntese, “uma nova modalidade de espetáculo de palco”, que Tinhorão descreve como uma “mistura de programa radiofônico, show musical, espetáculo de teatro de variedades e festa de adro”. Como na televisão, os programas de auditório de rádio agregavam uma infinidade de recursos de origens diversas, aliando diferentes tradições culturais como cantores de grande sucesso, humoristas, conjuntos regionais, mágicos e números de exotismo a estratégias comerciais. Os sorteios, por exemplo, são uma tradição das festas de largo, que passam a ser feitos como propaganda do patrocinador do programa. (MIRA, 1995, p.125-126)
A mistura de que fala Tinhorão, citado por Mira é uma característica
própria ao dialogismo discursivo. Um enunciado nunca é, pois, puro e
original, mas sim fruto de várias relações em que um dizer é retomado,
copiado, reinventado. Os programas de auditório da TV resultam dessa
bricolagem do circo, das festas populares, do teatro, dos programas de
rádio. São retalhos de culturas e histórias, atualmente alinhavados pelas
necessidades mercadológicas da sociedade, vendendo valores,
comportamentos e crenças.
Encenação e espetáculo – sobre a estrutura composicional
Um gênero caracteriza-se por regras de composição, temática e estilo.
Como já foi dito, os quatro programas que compõem o corpus possuem uma
determinada forma composicional que os agrega num grande gênero programa
41
de auditório, ainda que cada um possua especificidades que os constituem
como concretizações de subgêneros: Show de Variedades e Game Show
(competição). Souza, que estudou o gênero em programas de TV, fala em
formatos:
Gêneros viram formatos e vice-versa. As pesquisas e a criatividade profissional podem levar a uma nova classificação. Conclui-se que um mesmo programa de televisão pode ser classificado em várias categorias e gêneros e ter também vários formatos. (SOUZA, 2004, p. 183)
Assim, para o autor, o “gênero auditório”, é tomado ora como um
gênero, ora como um formato de um outro gênero como um “Quiz show”
(perguntas e respostas), por exemplo:
O gênero quiz show utiliza em praticamente todas as produções o formato auditório. Em algumas, o público do estúdio participa do programa com os artistas e o telespectador. (SOUZA, 2004, p.125, grifo meu)
Por considerar o viés teórico de Souza diferente do que pretendo adotar,
mas tendo em mente a dificuldade na definição e caracterização dos “gêneros”,
sirvo-me das descrições feitas por ele de alguns tipos de programas de
televisão, semelhantes aos que compõem o corpus deste trabalho. Souza
define, por exemplo, o formato game-show, no qual “jogos e brincadeiras
fazem o telespectador participar em casa ou incentivam a interagir com os
programas” ou ainda o formato interativo, em que a “audiência é estimulada a
participar por carta, fax, telefone e Internet”. (Souza, 2004, p. 172-173)
Entretanto, esclareço que considerarei todos os cinco programas pertencentes
42
ao gênero programa de auditório, e as suas especificidades tomarei como
subgêneros e não formatos como fez Souza. Assim, o corpus de análise pode
ser organizado, considerando todos os programas pertencentes ao gênero
programa de auditório e divididos em dois subgêneros: game show e show de
variedades. Começo apontando as especificidades de cada subgênero, e
passo mais adiante a uma caracterização global do gênero.
A estrutura composicional do primeiro grupo, Show de variedades,
abriga um certo tipo de programa que apresenta atrações variadas: música,
dança, números circenses, entre outros. Especificamente no caso em questão,
tanto P1 quanto P3 apresentam seqüencialidade, pois preparam para um
grande final. Ambos possuem jurados, responsáveis pela eleição das melhores
atrações e pela distribuição de prêmios. Em P1 há um júri especializado e em
P3, membros do auditório são encarregados de julgar2.
O segundo subgrupo, Game show, apresenta como componente
fundamental a presença de participantes que realizam algum tipo de
competição, a fim de alcançar a vitória e o prêmio em dinheiro. Em P2, três
participantes disputam entre si, em P4 um participante realiza um jogo de
estratégia contra um suposto “banqueiro”. Muitos desses subgêneros são
importados e acabam se espalhando por todo o mundo. É interessante
observar que o SBT utiliza como argumento a seu favor o fato de estar
comprando um programa já pronto. Estratégia semelhante não é vista, por
2 É válido observar que a delegação de determinadas tarefas ao auditório promove uma interação, que aproxima a platéia do espetáculo em cena. Isso colabora para a produção de um efeito de sentido de participação. Esse modo de interação e o efeito dele resultante estão no cerne da discussão deste trabalho, uma vez que serão tomados como os maiores responsáveis por assegurar o sucesso do contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário.
43
exemplo, na Rede Globo, onde se alimenta a ilusão de que o programa é uma
criação da própria emissora. No caso do SBT, a importação de programas já
faz parte de seu estilo, e tem para isso uma motivação histórica. Por
apresentar poucos recursos, na época de sua fundação, a emissora teve a
necessidade de fazer várias importações. A exibição de novelas mexicanas
como Os ricos também choram, em 1982, por exemplo, tornou-se marca
característica do SBT. Curiosamente a referida novela foi reprisada no ano de
2005, vinte e três anos depois de ter ido ao ar pela primeira vez. Com efeito, a
emissora consolidou como parte de sua imagem a aquisição de programas
importados, sem se importar em ser tachada de pouco original, mas pelo
contrário, adotando essa característica como um diferencial. No texto do
comercial do programa Topa ou não Topa, por exemplo, chama-se atenção
para o sucesso do programa em outros países. Assim qualifica-se o produto
importado como “líder de audiência” ou “um dos maiores sucessos atuais” e
valoriza-se sua difusão:
Líder de audiência nos países em que foi exibido, o programa “Topa ou Não Topa” é uma brincadeira que pode tornar você milionário. Se a sorte permitir e com um pouco de atenção, o jogador sai com o prêmio máximo de R$ 1 milhão de reais (...) Nos EUA, o “Deal or No Deal” (nome original) é um dos maiores sucessos atuais da rede NBC, e o episódio final de sua primeira temporada – com noventa minutos – registrou recordes de audiência.3
No que tange à estrutura composicional, os quatro programas em
análise são compostos de auditório, apresentador, atrações, jogos e sorteios.
3 Disponível em: http://www.sbt.com.br/topaounaotopa/programa/ Acessado em: 10/05/ 2007
44
Ao aliar a caracterização do gênero mais diretamente às indagações da
semiótica, ou seja, ao semiotizar a discussão sobre o gênero, algumas
questões podem ser lançadas4: a) quais estratégias argumentativas são mais
recorrentes, b) quais projeções enunciativas são postas, c) qual etapa do
esquema narrativo é privilegiada.
Pensando, mais detidamente, no modo como a estrutura composicional
é narrativizada, foi possível perceber que os diferentes subgêneros privilegiam
diferentes etapas do esquema narrativo. Assim, no esquema narrativo
canônico formado por manipulação, competência, performance e sanção,
pode-se notar que os programas de auditório possuem esquemas narrativos
completamente concretizados, isto é, com todas as fases explícitas. O
Destinador manipula o Destinatário a querer desempenhar as tarefas de jogar
ou de apresentar algum número ou atração. Ele dota os sujeitos de
competência, fazendo-os sentirem-se capazes, valoriza-os positivamente:
“artistas profissionais ou amadores”, “você que é corajoso” depois disso segue-
se a performance, o sujeito dança, canta ou joga. E por fim, recebe as sanções
positivas, com a vitória, ou negativas, com a derrota. Entretanto, é notório que
no game-show se privilegia a fase da sanção, pois o sujeito é mobilizado pela
vitória, e no show de variedades, a performance é mais enfatizada, já que a
realização das atrações é o ponto alto dos programas. Com isso, percebemos
que a caracterização dos subgêneros fica ainda mais coerente quando
tentamos aliá-la a questões propostas pela semiótica.
4 A semiotização da discussão sobre gênero vem sendo pensada, entre outros, por Regina Gomes, integrante do grupo de pesquisa Semiótica e Discurso (Sedi), a quem devo o levantamento dessas questões.
45
Em relação à organização espacial, os programas possuem como
elemento cenográfico fundamental o palco. Landowski, referindo-se ao teatro
como espaço cênico, afirma que o palco é:
Uma zona marcada ao mesmo tempo por sua centralidade, pois tudo – iluminação, percursos da platéia, olhares – converge para ela; por sua autonomia, na medida em que, separada do que a cerca, e, ademais figurativamente organizada graças ao cenário, ela se apresenta como lugar utópico ou de outro mundo possível; enfim, por seu encerramento, dado que seus limites espaciais serão também os da ação destinada a ser ali colocada como espetáculo, “representada”... (LANDOWSKI, 2002, p.185)
Embora não seja uma obra ficcional, como uma peça de teatro ou uma
telenovela, o gênero auditório não possui o caráter referencial dos telejornais,
ainda que sejam esses últimos também performativos. A presença do palco,
entretanto, garante o “lugar utópico” e a “centralidade” de tudo o que ali é dado
a ver. O ponto máximo da centralidade, o centro do palco, é ocupado a maior
parte do tempo pelo apresentador. Esse espaço cênico é preenchido por luzes,
cores e excessivos objetos. Em P2, por exemplo, há dois cenários. Num o
apresentador e os três competidores posicionam-se atrás de uma exuberante
roleta e noutro a ajudante fica em frente a um grande painel iluminado, a fim de
ir revelando as letras das palavras (espécie de jogo de forca). Com isso, a
utopia de ganhar grandiosos prêmios é também reiterada pelo modo grandioso
e exuberante de composição do espaço.
Para o grande público, estar no palco ao lado do apresentador já é de
antemão um dos prêmios alcançados. O grande destaque da cena central é
reforçado pela saturação dos elementos. Em P4 há uma grande escadaria
ocupada por nada menos que vinte e seis modelos, portando malas prateadas.
46
Já em P3 há ao fundo uma orquestra, um maestro, e no canto direito três
backings vocals. Todas essas cenas são permeadas por vibrantes músicas
instrumentais ou cantadas, por corais da platéia e por palmas, muitas palmas,
além é claro da voz inconfundível do apresentador. As tomadas de câmera,
combinadas com a sonoridade, dotam as cenas de um ritmo acelerado. Esse
gênero de programa, então, organizado espacialmente em torno de um palco,
sempre oferecendo prêmios, através de jogos, sorteios ou atrações variadas,
dá-se a ver como uma grandiosa encenação. Nessa cena circense e popular
só é impossível ficar triste ou parado, pois o clima de festa, show e
empolgação colabora para a tematização da alegria.
1.2. Agora é hora de alegria! – a temática
Para a semiótica temas e figuras são categorias da semântica discursiva
e servem para ancorar o discurso histórica e ideologicamente.
Na tematização ocorre a disseminação no discurso dos traços semânticos tomados de forma abstrata. Já na figurativização esses traços são “recobertos” por “traços semânticos sensoriais” (de cor, de forma, de cheiro, de som, etc) que lhes dão o efeito de concretização sensorial. (BARROS, 2003, p.206)
Partindo do refrão da música que precedeu durante anos a entrada do
apresentador Silvio Santos no palco: “Agora é hora de alegria, vamos sorrir e
cantar!”, é possível perceber que a isotopia temática da alegria é largamente
reiterada nos enunciados em análise. O sorriso estampado nos lábios do
apresentador, ajudantes de palco, bailarinas, participantes e público serve
47
como um dos principais elementos figurativos a compor o tema em destaque. A
imagem de um sorriso pode ser tomada, então, como uma das figurativizações
mais icônicas do sentimento da alegria e é emblema do gênero programa de
auditório.
Estar alegre é uma das condições básicas para participar do espetáculo,
e por outro lado uma das estratégias de manipulação por tentação: “venha para
cá e seja feliz”. Essa manipulação, no entanto, se dá por meio de duas
instâncias5: sensível, pelo contato visual, sonoro e tátil com o clima alegre
representado pelo rosto que ri, pelos exagerados elementos do PE: cores,
som, movimentos, e inteligível, atrelada à compreensão dos papéis a jogar e à
aquisição de prêmios, geralmente em dinheiro. Assim, o sujeito é tragado, no
nível sensível, pela mistura de cores, sobreposição de luzes, imagens em
movimento e pela vibração do som. Já no nível do inteligível aciona-se o sujeito
por meio das promessas e ofertas de prêmios. Voltando à definição de Barros
(2006), pode-se dizer que a figurativização, entendida como “traços semânticos
sensoriais” responsáveis por conferir concretude aos temas, acabaria por dotá-
los de uma dimensão sensível. Com isso, o tema da alegria, explorado em
larga escala no gênero programa de auditório, estaria a serviço do esquema
manipulatório que visa modalizar o telespectador a um querer-ver por meio do
contato com determinadas sensações. Analisemos algumas ocorrências de P2:
5 Landowski na apresentação do livro: Do inteligível ao sensível (OLIVEIRA; LANDOWSKI (eds.), 1995, p.14) ao definir a figura de Greimas estabelece uma relação entre inteligível e sensível: “a figura testemunhal (e provavelmente um tanto irônica) de um Greimas também ‘duplo’, que nos fala das ciências e da paixão – do inteligível como paixão do sujeito e do sensível (o ‘perfume’ das coisas) como objeto de saber”.
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VISUAL Mistura de cores, principalmente azuis e vermelhos brilhantes; Intermitência de luzes; Movimentação de pessoas e objetos: roletas giratórias, painel iluminado com letras; Exposição dos prêmios, como carros, fazendo parte do cenário; Sorriso do apresentador, dos participantes e da ajudante de palco.
VERBAL Falas do apresentador: “Vai rodando, vai acertando, e vai ganhando”; “Tá vendo, não falei que você ia acertar? Já ganhou!”. “É todo dia que o baú dá casa, dá casa, dá casa...” (Letra da vinheta)
SONORO Grande quantidade de aplausos, gritos e coro da platéia, música instrumental acelerada, embalando cada jogada; Ritmo da fala do apresentador (quase cantada) Música da vinheta.
Todos esses elementos figurativos, os gritos da platéia, a vibração dos
vencedores, a repetição de refrões, a seqüência gradativa da fala do
apresentador “rodando/acertando/ganhando”, postos sincreticamente na cena
enunciada, criam a sensação de euforia e concretizam o tema da alegria.
Paralelamente a isso, aciona-se um regime de crença, no qual vencer é a única
opção. Vejamos trecho da fala do apresentador, explicando a dinâmica de
premiação do carnê do baú:
Se você não ganhar, não se preocupe. Você recebe todo o dinheiro que você pagou em mercadorias de ótima qualidade, em mercadorias de marcas famosas, em mercadorias que serão úteis no seu lar e que farão você comprar um novo carnê... (P2)
O sujeito tentado para e pela alegria tem a certeza da vitória. Ele pode,
então, ficar relaxado, despreocupado. O produto anunciado é dotado de
confiabilidade e até utilidade. A confiança na vitória, na qualidade das “marcas
famosas”, visa a garantir a satisfação do cliente e o sucesso nas vendas e na
audiência dos programas. Assim, a certeza da vitória por um lado e a
empolgação de outro revestem de concretude uma temática explorada
exaustivamente. Insistir num mesmo tema, preenchê-lo figurativamente com
49
excesso, acaba por revelar um esquema todo posto em função da manutenção
da veridicção do discurso. Denis Bertrand apresenta uma importante reflexão
sobre a dimensão figurativa da linguagem e sua implicação num certo modo de
crença:
O crer, que funda assim, num mesmo gesto, a percepção e suas representações figurativas no discurso, dá acesso à problemática da veridicção. Esta descreve, não o cálculo dos valores de verdade, mas sim os jogos e as facetas de sua operação entre os sujeitos do discurso: simulação e dissimulação, verdade e falsidade, segredo e mentira, as quais comandam as formas de adesão (o contrato de veridicção). (BERTRAND, 2003, p.261)
Vemos, então, no gênero em análise a euforização de vários valores
vigentes na sociedade, desde que simulem a aquisição da alegria. Para crer
ser feliz o sujeito precisa estar em conjunção não só com o dinheiro, mas
também com valores como a beleza e o amor, por exemplo. Atualmente, são
comuns em programas de auditório quadros no estilo transformação. Estes se
caracterizam por transformarem a aparência física do candidato ou até mesmo
a casa dos participantes. Majoritariamente do sexo feminino, as participantes
realizam uma espécie de re-encenação do conto da Cinderela. As Cinderelas
contemporâneas, pertencentes aos segmentos economicamente menos
favorecidos, esbanjam alegria através de gritos e lágrimas ao serem
contempladas com a reforma de um cômodo da casa, ou com a “repaginação”
completa do visual, através de requintados tratamentos estéticos. No que tange
ao “amor”, tais programas muitas vezes se encarregaram de oferecer aos
participantes a possibilidade de encontro com parceiros românticos. No SBT,
ficou famoso o Namoro na TV, em que casais, embalados pela romântica
50
música “Manuela”, do também romântico intérprete Julio Iglesias, diziam ao
final da dança se haveria ou não uma possibilidade de relacionamento.
Especificamente nos programas que compõem o corpus, todos se
aproximam pelo conteúdo temático da alegria, que é figurativizado pelos
elementos do PE como: cores vibrantes, luzes intermitentes, abundância de
elementos em cena, ritmo movimentado, sons de aplausos, gargalhadas da
platéia, do apresentador e dos participantes, entre muitos outros. Outrossim, a
concretização figurativa do tema da alegria se expressa também de acordo
com o subgênero do programa. Por exemplo, no Game Show vencer a
competição faz a alegria do participante e agita a torcida do público e do
apresentador, reiterando a ênfase dada à etapa da sanção. Já no Show de
Variedades, a alegria é alcançada pelo divertimento com as atrações e a
participação em cena, quando é oferecida ao público a oportunidade de se
apresentar ou simplesmente de torcer e acompanhar seus ídolos ao longo das
apresentações – ênfase na performance.
As nuances de cada subgênero vêm ao encontro da afirmação de Fiorin
que diz: “O conteúdo temático6 não é o assunto específico de um texto, mas é
um domínio de sentido de que se ocupa o gênero” (FIORIN, 2006b, p. 62). 6 Cabe, aqui, uma observação em relação aos conceitos de “tematização” e “conteúdo temático”, ambos utilizados neste trabalho. Fiorin faz referência à formulação de Bakhtin, quando fala em “domínio de sentido”, pois Bakhtin considera que “Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico” (BAKHTIN, 2000, p.284). Logo, o conteúdo temático faz parte da caracterização do gênero, na medida em que ajuda a conferir estabilidade aos enunciados. Partindo dessa postulação teórica, faz-se necessário investigar a questão da temática presente nos programas de auditório. Contudo, para isso utiliza-se a noção de “tematização”, conforme postulada pela semiótica: “Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organizá-los em percursos. Em outras palavras, os percursos são constituídos pela recorrência de traços semânticos ou semas, concebidos abstratamente. Para examinar os percursos devem-se empregar princípios da análise semântica e determinar os traços ou semas que se repetem no discurso e o tornam coerente”. (BARROS, 1990, p.68)
51
Pode-se afirmar, então, que o tema da alegria, “domínio de sentido” do gênero
programa de auditório se sobrepõe a todos os outros trabalhados nos
enunciados em análise e mais que isso funciona como um viés que harmoniza
as figuras do discurso e as organiza com um fim comum: garantir a adesão do
público. Por isso, fica claro que:
A tematização consiste em dotar uma seqüência figurativa de significações mais abstratas que têm por função alicerçar os seus elementos e uni-los, indicar sua orientação e finalidade, ou inseri-los num campo de valores cognitivos ou passionais.
Assim, para ser compreendido, o figurativo precisa ser assumido por um tema. Este último dá sentido e valor às figuras. (BERTRAND, 2003, p. 213)
No caso em análise vemos que no game-show há a tematização da
esperança, pois se enfatiza o desejo da vitória. Já no show de variedades
vemos tematizado o conformismo, pois é um programa feito para alegrar a
rotina do dia-a-dia, havendo uma ênfase na contemplação por parte do
enunciatário. Com isso, a temática da alegria desdobra-se nos temas da
esperança, de um lado, e de outro naquilo que vamos denominar de
conformismo contemplativo.
Os programas de auditório funcionam como uma fonte de
entretenimento, muitas vezes aliada a premiações. A venda de títulos de
capitalização e do carnê do baú é uma marca que funda e constitui a emissora.
Sempre com a promessa de premiar com casas, carros e dinheiro, o SBT
projeta um enunciatário-alvo, a partir de uma suposta necessidade de obter
prêmios. Os programas de auditório servem-se dessas vendas. A escolha de
participantes é vinculada aos clientes do baú, que no ato do sorteio precisam
52
estar em dia com suas mensalidades. Assistir ao SBT implica quase sempre
em adquirir os produtos veiculados. A projeção de um telespectador-cliente
permeia a estratégia de manipulação, cuja tentação se faz através das
propagandas, resultando num envolvimento do público, atraído pela rede de
promessas. Uma propaganda transmitida entre outubro e dezembro de 2006 é
bem exemplar. Vejamos uma pequena descrição: um narrador em off diz o
seguinte texto: “O SBT não é loteria, ma já fez cinco milionários”. Aparece o
slogan da emissora, acompanhado por desenhos de cifrões que rodam no ar.
Uma música instrumental bem acelerada toca durante todo o tempo. Seguem-
se as cenas do momento da vitória de cada um dos cinco participantes. O
narrador diz o nome do vencedor e informa o do programa em que ele venceu,
como por exemplo: “A 4ª milionária Maria Rosário rodou os peões do baú da
felicidade e ganhou o quarto milhão”. As cenas do momento da vitória mostram
as pessoas emocionadas abraçando o apresentador ou familiares e vibrando
muito. A todo momento é repetida na voz de Silvio Santos a frase: “Ganhou um
milhão de reais”. Essa propaganda feita bem ao estilo SBT ajuda a
compreender que os programas de auditório da emissora utilizam como
argumentação o fato de oferecerem não só entretenimento, mas também a
oportunidade única de transformação da vida dos seus telespectadores-
clientes.
Veicula-se, assim, sob o entretenimento, uma gama de valores sociais.
Como a felicidade, muitas vezes transmutada no consumo e na riqueza, é um
valor bastante euforizado na sociedade contemporânea, a tematização da
alegria, figurativizada nos diversos elementos em cena e iconizada pelo
53
sorriso, é um dos “ingredientes” importantíssimos à “receita” dos programas de
auditório. A figurativização exacerbada do tema da alegria ajuda na
composição de um “estilo alegre” de programa. Isto demonstra a inter-relação
entre os elementos de caracterização dos gêneros: composição, temática e
estilo.
1.3 Estilo SBT: o povo na TV
A televisão promove ídolos e ícones, que fazem sucesso na sociedade.
Suas imagens largamente difundidas compõem o quadro das celebridades,
que ditam padrões com o modo certo de ser e agir. Vilém Flusser reflete sobre
a fama e mostra que em tempos arcaicos havia a valorização do anonimato
através da preservação e ocultação do nome, reforçada pela crença na força
vital chamada de mana, que estaria escondida no nome. Com o passar do
tempo, no entanto, esse quadro sofreu uma inversão e ter um nome conhecido,
ao menos na Idade Moderna, significava ser imortal. Atualmente, entretanto, o
conceito de imortalidade está obsoleto. O filósofo propõe que a facilidade em
alcançar a fama, com o advento dos meios de comunicação de massa, trouxe
como conseqüência a efemeridade:
Algumas razões da problemática da fama são estas: é muito fácil penetrar na memória coletiva, dada a comunicação de massa. Basta participar de programa televisonado do tipo Chacrinha. É igualmente fácil ser esquecido. Basta mudar o programa. (FLUSSER, 1998, p158)
54
A importância dos programas de TV para dar a cidadãos comuns a
oportunidade dos esperados quinze minutos de fama é inegável e tornou-se
uma tendência da televisão contemporânea, mais especificamente a partir das
décadas de 80 e 90. Duarte (2004) mostra que Umberto Eco nomeia esta
tendência como “neotelevisão”:
Segundo Eco, a paleotelevisão, anterior aos anos 80, exigia das pessoas importantes méritos para que merecessem ter sua imagem e opinião veiculada pela “telinha”. Tratava-se de uma tevê-podium, em que as pessoas se apresentavam engravatadas, preocupavam-se em falar de forma gramaticalmente correta. A ela só os melhores tinham acesso: é televisão dos telejornais, dos programas de entrevista, das telenovelas.
A neotelevisão, para o autor, introduzida a partir dos anos 80/90, é uma tevê-espelho, caracterizando-se pela apresentação de um grande número de programas de auditório e jogos. Ela confere acesso a um público sem méritos particulares; seu intento é colocar no ar o cidadão comum vestido negligentemente e falando de forma coloquial. (DUARTE, 2004, p.76)
O SBT, fundado sobre um conceito de popularidade, apropria-se
categoricamente desse estilo noeotelevisivo, embora, como já dito
anteriormente, hoje busque sofisticar a apresentação dos participantes, através
de uma produção visual. No início da década de 80, entretanto, podiam-se ver
no SBT, principalmente, no Show de calouros, pessoas humildes, que
apareciam de modo bem natural, havendo inclusive uma ênfase na aparência
desarrumada e mal cuidada. O cidadão comum continua querendo ter sua
imagem difundida, mas a extrema preocupação em estar de acordo com os
padrões contemporâneos de beleza leva à busca da projeção de uma boa
aparência.
55
O SBT é um canal que espelha o cidadão comum e se apóia na
estratégia de identificação e aproximação com o público. A presença da platéia
ao vivo, a escolha de participantes por sorteio permite ao público participar da
encenação. O efeito de participação é uma das principais estratégias de
manipulação e de estabelecimento da fidelidade do público. Como veremos
nos capítulos posteriores, o efeito de participação se deve à forma de interação
estabelecida entre os actantes, que no caso é a aproximação. Aproximam-se
destinador e destinatário, de forma que este último sinta-se participante e,
conseqüentemente, torne-se fiel. O estilo SBT de fazer TV está calcado no
princípio de que é feito para o povo. Busca-se atrair o telespectador, através de
um clima familiar, no qual ele se sinta confortável, participante e acolhido.
Fontanille ao analisar o canal francês TF1 listou cinco modalidades
enunciativas estabelecidas entre os vários participantes das cenas dos
programas, capazes de conferir a elas determinadas estruturas de
comunicação:
Acolher, interagir, participar, controlar, oferecer em espetáculo são as principais modalidades enunciativas. A cada uma corresponde um modo de comunicação dominante: na acolhida, é a troca entre o animador e cada convidado que predomina; na interação, é troca generalizada e cruzada que prevalece, mas limitada aos diversos convidados; na participação, é a troca de cada convidado com o telespectador que é mediada pelo animador; no controle, é a instância de enunciação global do programa que é representada por delegação ao animador, no set; no espetáculo, enfim, os atores são oferecidos ao auditório, no set transformado em sala de espetáculo. (FONTANILLE, 2004, p. 181)
Cada uma destas modalidades tem determinado espaço nos programas,
privilegiando-se ora uma ora outra. No corpus em análise o controle está
presente em todos os programas, principalmente no início, quando há a
56
entrada do animador, a saudação ao auditório e aos telespectadores, a
explicação das regras do jogo e a retomada dos acontecimentos dos
programas anteriores. Já a acolhida não é característica dos programas de
Silvio e pode ser observada mais em programas de entrevista. No programa de
Hebe Camargo, por exemplo, embora seja muito explorada a modalidade do
controle, há uma certa exploração da acolhida, quando a apresentadora
entrevista os seus convidados no cenográfico sofá. Outrossim, no talk show de
Jô Soares, há a modalidade enunciativa da acolhida, pois o objetivo maior é a
entrevista, no entanto a presença da platéia e da orquestra ao vivo e a
participação dos telespectadores, por meio da Internet acessada ao vivo pelo
apresentador de certa forma dispersa a atenção do apresentador, que não tem
o entrevistado como único foco. Programas de entrevista como os
apresentados por Marília Gabriela podem ser tomados como exemplares de tal
modalidade, uma vez que a apresentadora tem como foco único o entrevistado
posicionado do outro lado da mesa à sua frente. A modalidade da interação,
conforme postula Fontanille, é explorada no Programa Silvio Santos,
principalmente em alguns Game Shows, compostos de disputas entre colégios,
famílias ou cidades, o que não é o caso de nenhum dos enunciados do corpus
em análise. A modalidade da participação é fortemente marcada nos
programas, uma vez que os participantes engajam-se nas cenas e interagem
com os telespectadores. No Roda a roda, por exemplo, o participante que
conseguir maior quantia dentre os três competidores é o vencedor. Porém este
terá que sortear uma carta, e será estabelecida uma disputa com o remetente.
Assim, se o participante acertar a última palavra, ganha o prêmio em dinheiro e
57
uma casa, do contrário recebe apenas o dinheiro, sendo, então, o
telespectador (remetente da carta) contemplado com a casa. Já em P1 e P3, a
modalidade da participação é visível no momento em que os telespectadores
escolhem vencedores e finalistas, votando pelo telefone ou internet. A
modalidade enunciativa da participação é uma tendência da televisão
contemporânea e funciona como uma forma de atrair, seduzir e fidelizar o
público, que se sente “fazendo parte” do espetáculo. O avanço tecnológico
também aponta para um futuro próximo das TVs interativas, que contarão com
uma grade de programação no estilo self-service. O modo de organização
enunciativa da internet, essencialmente interativo, tende a proliferar e afetar os
outros meios.
A modalidade do espetáculo é largamente utilizada no programa em
análise, dos quais os programas do subgênero show de variedades são
exemplos emblemáticos. O game show não deixa de privilegiar também tal
modalidade, uma vez que o apresentador com ar apoteótico, as glamourosas
ajudantes de palco e a aura colorida e brilhante, oferecida aos mais simples
participantes – através de roupas novas, maquiagem e penteados – tudo isso
contribui para transformar a todos em atores e o set com seu palco central
numa sala de espetáculo. A organização espacial do set e o mobiliário servem,
também, ao modelo enunciativo proposto. A presença de uma mesa redonda,
um sofá, escadarias ou palco, organiza de maneira particular o espaço e as
relações nele estabelecidas. É ainda Fontanille quem afirma que:
Quanto ao palco, o seu papel é de realçar os atores e oferecê-los em espetáculo a um auditório presente na sala (...) Os diversos entrevistados, animadores ou convidados, não mais são, então,
58
simples participantes, mas atores em cena, cuja performance é primeiramente dirigida a um auditório, antes de ser oferecida ao telespectador. (FONTANILLE, 2004, p.181)
Vale ressaltar que as modalidades enunciativas definidas por Fontanille:
controlar, interagir, participar, acolher e oferecer em espetáculo podem ser
subsumidas à interação, que funcionaria como uma espécie de modalidade
englobante de todas as outras. Ainda que cada tipo de programa enfatize uma
ou outra modalidade, todas elas funcionam como um modo de interação entre
enunciador e enunciatário. A caracterização das modalidades de interação
acaba por demonstrar os diferentes estilos de interação. Este ponto será
desenvolvido no quarto capítulo, quando tratarei mais especificamente do
modo de interação por participação que é adotado nos programas.
O estilo programa de auditório cria um efeito de individuação, de modo
que todos os programas do gênero podem ser reconhecidos como tal. Essas
características estão presentes também na temática e na composição. Assim,
ao tomar a questão do estilo é preciso considerar a “unidade porque há um
sentido único, ou um efeito de individuação” (DISCINI, 2004, p. 31). Contudo,
a divisão em subgêneros aponta para distinções e nuances que diferenciam,
no caso, o game show e o show de variedades. Em relação ao estilo, ambos
são marcados pelo clima familiar e pela aproximação. Porém, é possível notar
que o game show adota um estilo “esportivo”, não só no que o esporte tem de
disputa, mas também de jovialidade, humor e ação. O participante do game
show é disposto e quer conquistar a vitória. O público é vibrante. Já no show
de variedades há o que denominamos de estilo “artístico”, pois o programa
busca distrair e surpreender o espectador diante das atrações que, muitas
59
vezes, apresentam pessoas dotadas de habilidades particulares: mágicos,
cantores, músicos, contorcionistas. O show de variedades possui, ainda,
bailarinas e orquestras, que reforçam o clima de espetáculo e o estilo artístico.
Além disso, outra característica do estilo sobre o qual se funda o canal
SBT é a projeção da imagem de Silvio Santos. O proprietário da emissora é
também seu principal animador. É ele um homem milionário e poderoso, que
em presença física se relaciona com o seu público e vibra com ele a cada
vitória. Longe de construir-se como um empresário bem sucedido, que não sai
de seu luxuoso gabinete, Silvio consolidou e até hoje reforça uma imagem de
homem do povo. Tal fato, inclusive, quase o levou a uma candidatura a
presidente da República em novembro de 1989. Contava, na época, com
favoráveis índices de aceitação popular nas pesquisas de opinião. Essa
empreitada, no entanto, não se realizou em virtude da não estabilidade de
Silvio em nenhum partido político, o que acabou gerando uma negativa do
Tribunal Superior Eleitoral ao registro de sua candidatura:
No dia seguinte ao julgamento no TSE, as ruas do Morumbi vizinhas à residência de Silvio ficaram bloqueadas pela quantidade de carros de reportagem de jornais, revistas, televisões, rádios. (...) Silvio apareceu às 17h30, aparentando cansaço. (...) Disse aos jornalistas que “continuaria na política”. “Tenho qualidades para servir o povo. Para governar o país, o homem precisa ser sensato”.Deixou claro que continuava sonhando com a Presidência. “O dia em que eu for presidente, serei um bom presidente” (SILVA, 2000, p.190)
O episódio narrado, que retomo menos como curiosidade e mais para
mostrar o modo de construção da imagem do animador, é contundente na
verificação do poder da imagem na estruturação das realidades criadas,
apresentadas e comercializadas. O animador em questão, visto como um
60
homem do povo que trabalha para o povo, apresenta um estilo solidamente
composto por uma aparência de seriedade, presente no vestuário, sempre de
terno e gravata, somada a um tom de humor e ironia e a uma voz
inconfundível. A identidade do apresentador está ligada não só ao rosto exibido
diariamente, mas tem na voz um elemento fundamental. Sobre isso Landowski
afirma que:
Vozes e fisionomias às vezes irritantes por terem se tornado familiares demais, elas estão ali, em volta de nós, perto de nós, diante de nós, entre nós, como tantas presenças ao mesmo tempo inacessíveis e bem próximas que freqüentam cotidianamente o círculo da “família” e que fazem, por assim dizer parte dele. (LANDOWSKI, 2002, p.190).
O gestual, a gargalhada e até mesmo a assinatura de Silvio Santos
exibida como vinheta antes do início de cada programa são tomados como
marca registrada do SBT e fundam uma maneira Silvio Santos de fazer
televisão. A criação de um estilo inconfundível cria uma identidade da emissora
e funciona também como uma das formas de manipulação que buscam como
fim a adesão do público, a audiência e, especificamente, no caso em questão,
a tentativa de permanecer na vice-liderança da TV brasileira.
Caracterizar, então, o gênero programa de auditório, tendo como corpus
de análise o Programa Silvio Santos implica em necessariamente pensar na
figura deste animador, que com seu estilo constitui um elemento fundamental
do programa. O povo que está na TV, e se vê pelo que vê na TV, assina um
contrato que tem como cláusula principal a fé nas promessas veiculadas pela
emissora. Este é um telespectador-cliente que compra os produtos e sonha em
ganhar, que participa, torce e aplaude. Por outro lado, essa é a emissora criada
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a partir do estilo de um apresentador, o qual comanda todos os espetáculos, na
frente e atrás das câmeras. Este é o canal que adota como marca a
popularidade, que promete alegria e, através do jogo, do sorteio e do show,
monta seus espetáculos e segue brigando pelos números de audiência.
Tomando, então, a temática, a composição e o estilo, os três elementos
que caracterizam o gênero, chegamos ao seguinte quadro resumidor:
GÊNERO PROGRAMA DE AUDITÓRIO
SUBGÊNERO COMPOSIÇÃO TEMÁTICA ESTILO
GAME SHOW
Interação direta entre auditório e apresentador; Distribuição de prêmios em dinheiro Participantes realizando competição; Intervalos comerciais; Cenário repleto de objetos tecnológicos: (painéis, roletas, botões).
Alegria; Sucesso; Esperança; Sorte;
Popular; Clima familiar; Espelha-se no estilo do apresentador; Interação por aproximação. Estilo esportivo
SHOW DE VARIEDADES
Interação direta entre auditório e apresentador; Distribuição de prêmios em dinheiro e premiação com gravação de CDs, projeção na mídia; Apresentações variadas: música, dança, mágicos, números circenses... Presença de jurados. Intervalos comerciais; Orquestra; Bailarinas.
Alegria; Sucesso; Divertimento com as atrações em cena. Distração
Popular; Clima familiar; Espelha-se no estilo do apresentador; Espetacularização; Interação por aproximação. Estilo artístico
O gênero programa de auditório é um tipo de enunciado dotado de uma
certa estabilidade. Isso é perceptível nas semelhanças que aparecem na
composição, na temática e no estilo. A interação direta entre o apresentador e
a platéia, a distribuição de prêmios, bem como a temática da alegria e do
sucesso são características do gênero programa de auditório, concretizadas
nos dois subgêneros. A divisão em subgêneros, por outro lado, põe as
62
distinções em evidência. Assim, na questão da premiação, presente tanto no
game show quanto no show de variedades, é possível perceber que há
nuances específicas em cada subgênero. Enquanto no primeiro faz-se apenas
uma premiação em dinheiro, no segundo, além do prêmio em dinheiro, existem
gravações de CD, ou até mesmo o tempo de exposição na TV, que funciona
como premiação para um artista iniciante em busca de projeção. Há no show
de variedades premiações de outra ordem que se sobrepõem à premiação
material. Já em relação à temática, é possível perceber que no game show
ocorre a tematização da esperança, pois os membros da platéia e os
telespectadores podem vir a ser os participantes dos próximos programas. A
temática da distração, por exemplo, é enfatizada no show de variedades que
busca trazer antigos sucessos, ou atrações inesperadas para atrair e divertir o
público. Assim, os subgêneros podem ser definidos como subdivisões de um
gênero e, portanto, são caracterizados pelas semelhanças presentes no
espaço da intersecção dos subconjuntos, juntamente com as especificidades
de cada um.
1.4. Quem fala é o número – o entretenimento na arena
A caracterização de um gênero, além de levar em conta suas
especificidades características, deve também atentar para sua esfera de
circulação, isto é, onde, como e quando um gênero ocorre. O modo como um
gênero circula é que garante sua funcionalidade. No caso de qualquer
enunciado televisivo há sempre um enunciado apelativo subjacente: “assista a
63
este programa”. Para isso, uma das características fundamentais da
programação, de modo geral, é o entretenimento. Souza (2004) afirma que:
Qualquer que seja a categoria de um programa de televisão, ele deve sempre entreter e pode também informar. Pode ser informativo, mas deve ser também de entretenimento. (SOUZA, 2004, p.39)
O entretenimento não está apenas ligado ao tom humorístico. Um
programa chocante ou surpreendente também pode cumprir essa função.
Entreter o telespectador é o objetivo primeiro da programação televisiva e para
alcançá-lo é necessário montar esquemas manipulatórios que mobilizem o
telespectador e o façam querer-assisitir aos programas. Como alerta Bakhtin,
para cada função gera-se um dado gênero. A TV constrói enunciados com
diversos intuitos: alegrar, chocar, emocionar, surpreender. Para que tais
enunciados funcionem, é preciso que as marcas do gênero estejam bem à
mostra, de modo que o destinatário, ao “zapear” o controle e passear pelo
“cardápio” televisivo, possa ver e reconhecer rapidamente as marcas do
gênero que melhor se adaptem às suas necessidades. A semioticista Elizabeth
Bastos Duarte chama a atenção para o papel a ser desempenhado pelo
telespectador:
Cabe ao telespectador o reconhecimento do tipo de realidade que lhe está sendo ofertada e do regime de crença que ela pressupõe, bem como a verificação da coerência entre essa proposta e o discurso disponibilizado. (DUARTE, 2004, p.70)
Uma formulação importante de Bakhtin diz respeito à natureza da
relação entre os interlocutores numa situação comunicativa. Para ele, não há
64
um locutor que emite uma mensagem a seu bel prazer para um receptor
passivo. Para cada tipo de mensagem emitida há uma ação, uma resposta
prevista no modo de elaboração do enunciado:
De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. (BAKHTIN, 2000, p.290)
Com isso, a “atitude responsiva ativa” é prevista no enunciado e
colabora para desenhar a imagem do enunciatário a quem se quer atingir, bem
como a atitude que dele se espera. Barthes na sua definição de mito, ao citar o
exemplo de uma história infantil do leão, da vitela e da vaca mostra que a
reação de uma criança, sem conhecimento de política, seria bem diferente dos
alunos do segundo ano de um liceu francês diante do desaparecimento do
leão. Para Barthes: De fato, se considerarmos este mito politicamente
insignificante, é porque, simplesmente ele não foi feito para nós. (BARTHES,
2003, p.237).
Tanto os mitos quanto os gêneros devem endereçar-se a um tipo
específico de público. Para perceber as qualidades dos gêneros, faz-se
necessário pensar para quem eles se dirigem e de quais estratégias
argumentativas lançam mão para convencer o interlocutor. O recorte mais
generalizante mostra que os gêneros televisivos constroem um querer-dizer
que pretende provocar a “atitude responsiva” de assistir. Semiotizando um
pouco a questão, pode-se dizer que os gêneros televisivos, primordialmente,
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manipulam em favor da ação de “assistir”. Para isso as estratégias
enunciativas têm que ser muito bem elaboradas de modo a alcançar a resposta
desejada. O enunciatário só aceitará a manipulação e fará cumprir o programa
narrativo caso seja convencido. A tematização da alegria, de modo
exacerbado, por exemplo, colabora para tal fim. Por outro lado, o enunciatário
também funciona como manipulador, na medida em que apresenta desejos e
gostos que são contemplados no enunciado, que tem em seu interior
desenhada a sua imagem e/ou o perfil.
No corpus em análise é possível destacar como ações esperadas:
“torça”, “aplauda”, “dance”, “compre”, entre várias outras. Como o público de
tais programas se divide em platéia ao vivo + telespectadores, algumas
atitudes são comuns a ambos e outras são específicas de cada um. No caso
da platéia que está ao vivo há uma participação ativa, em virtude da
manipulação por aplaudir, cantar, rir, etc. Partindo do pressuposto de que este
público se inscreve para ir ao programa, viaja, se organiza em caravanas, já é
possível perceber que ele está receptivo à mensagem e à aceitação da
manipulação. Sabe-se que a platéia ao vivo também faz parte do enunciado
emitido pela TV, devendo adequar-se, portanto, ao protocolo próprio dos
programas de auditório. A ação dos animadores de platéia, que define o
momento exato das palmas, a intensidade de gritos, vaias, risadas, etc. deixa
claro que é instalado, na verdade, um jogo manipulatório, no qual a adesão
contratual já está prevista. Manipular, então, o telespectador de tal forma que,
em última análise, o leve a querer-assisitir é o grande desafio dos enunciados
de TV. Para isso, além das demais estratégias de manipulação, é importante a
66
adoção de um determinado estilo, que traz em seu interior o desenho do
interlocutor a quem se espera atingir:
Estilo é, pois, uma seleção de certos meios lexicais, fraseológicos e gramaticais em função da imagem do interlocutor e de como se presume sua compreensão responsiva ativa do enunciado. (FIORIN, 2006b, p.62)
No caso dos programas de auditório desenha-se como enunciatário-alvo
pessoas que buscam o entretenimento através da diversão. Isto é perceptível
pelo tom de humor das cenas, pelo pouco compromisso dos diálogos em
relação a um engajamento político ou social, pelos recursos de mobilização do
público. Cada subgênero, entretanto, vai privilegiar determinadas ações,
embora todos se assentem sobre o querer-ganhar. Em P4, por exemplo,
embora haja apenas um participante pleiteando o prêmio de R$1 milhão de
reais, o enunciado enfatiza um tom de expectativa, que envolve o público,
levando-o a torcer ativamente. A pergunta repetida ao longo de todo o
programa Topa ou não topa, a trilha sonora de suspense e a imprevisibilidade
própria do jogo de azar levam à histeria do público ao vivo. Além disso, as
vultosas quantias em dinheiro sempre envolvidas e a falta de meio-termo das
apostas, que são do tipo “ganha muito” ou “perde muito” levam o espectador a
um tipo de aflição e espera angustiada pelo resultado final.
Já nos programas do subgênero Show de variedades o entretenimento é
alcançado mais por uma certa apreciação das atrações apresentadas. O
enunciatário distrai-se em frente à TV acompanhando cantores, mágicos,
imitadores, etc. A convocação constante da participação do telespectador, que
é dotado de um poder e saber julgar, colabora bastante para a obtenção da
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ação querer-assistir. Este interlocutor é levado, então, a responder através de
ações como “ligue”, “acesse”, “vote”. A característica de programas
seqüenciais busca como resposta a vinculação do interlocutor, que deve tornar
a ver o programa. Expressões como: “não perca na próxima semana”,
“preparem-se para a grande final” colaboram para tal fim. Os takes resumitivos
dos programas anteriores, bem como os resumos apresentados pelo
apresentador a cada bloco situam o telespectador, inclusive aquele que acabou
de ligar a TV, quanto aos acontecimentos do programa,.
Em suma, garantir um público fiel é o grande fim de uma emissora de
TV. E como às vezes “os fins justificam os meios”, apostar no entretenimento-
trash, através da exploração exacerbada das várias facetas de um gênero,
pode configurar-se numa eficaz estratégia. No caso do SBT, insistir na emissão
de vários programas pertencentes ao mesmo gênero, cujos caracteres foram
expostos, tem uma ligação com a esfera de circulação comercial da emissora.
Segundo Fiorin, no estudo do gênero:
O que importa verdadeiramente é a compreensão do processo de emergência e de estabilização dos gêneros, ou seja, a íntima vinculação do gênero com uma esfera de atividade. (FIORIN, 2006b, p. 63)
Em relação à TV, podem-se destacar duas esferas de circulação
principais, a esfera econômica (comercial) e a esfera de lazer (entretenimento).
A esfera de atividade comercial pode ser analisada através de alguns aspectos
referentes à montagem. No enunciado televisivo a montagem diz respeito tanto
à montagem do programa em si, quanto a seu modo de inserção na
programação: horário de exibição, duração de blocos, serialidade, etc. Ela é
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constitutiva dos enunciados e, por conseguinte, da estrutura da obra e do
gênero. Segundo Arlindo Machado:
Há, em primeiro lugar, a montagem interna do programa, que poderia parecer semelhante à de outros meios audiovisuais, como o cinema por exemplo. Mas há também uma outra “montagem”, que se dá no nível da macroestrutura da televisão e que faz coexistir o programa stricto sensu (uma telenovela, um telejornal etc.) com os breaks e outros tipos de interrupções, além de amarrar cada capítulo ou unidade com a sua continuidade no dia seguinte. Por fim, há a “montagem” que o próprio espectador realiza, com sua unidade de controle remoto, pulando de um programa para outro, de uma emissora a outra, como um viajante errando nas ondas hertzianas. (MACHADO, 1999, p.154)
Os enunciados em questão, por serem exibidos em um canal de TV
comercial, são divididos em blocos, em virtude dos intervalos comerciais. Esse
tipo de organização característico da televisão influencia na composição dos
programas:
A sua função estrutural [do intervalo comercial] não se limita apenas a um constrangimento de natureza econômica. Ele tem também um papel organizativo muito preciso, que é o de garantir, de um lado, um momento de “respiração” para absorver a dispersão e, de outro, explorar ganchos de tensão que permitem despertar o interesse da audiência, conforme o modelo do corte com suspense explorado na técnica do folhetim. (MACHADO, 1999, p.154)
No corpus em análise há uma particularidade em relação a essa divisão
em blocos. Em função de o SBT ser um canal que veicula largamente seus
próprios produtos como: carnê do Baú, computador do milhão, o relógio do
Silvio Santos, etc., alguns programas possuem blocos de longa duração. É o
caso, por exemplo, do Show de Variedades, com blocos de 40 ou 50min cada,
dentro dos quais muitas vezes o merchandise é feito internamente. No caso do
69
subgênero Game Show, enquanto P2 se estrutura em dois blocos de 15
minutos, em P4 já foi possível observar a técnica do “gancho de tensão”, mais
comum ao gênero de narrativa seriada. No momento em que as jogadas do
participante se aproximam do final, o auditório está agitado e todos anseiam
pelo desfecho da situação, o apresentador astutamente chama os comerciais.
Na maioria dos programas em análise, entretanto, ocorrem propagandas de
produtos da emissora, dentro do próprio programa. O apresentador Silvio
Santos chama o narrador em off7 Lombardi, que apresenta as novidades. A
sua fala é acompanhada de imagens dos produtos, havendo um corte na cena
apresentada. O fenômeno é denominado por Duarte (2004) de “auto-
referenciação televisiva”, nele a emissora lança e faz propaganda de seus
próprios produtos, bem como promove os “artistas da casa” ou ainda noticia
acontecimentos promovidos pela própria emissora:
A auto-referenciação é uma macro-estratégia que as emissoras empregam com diferentes finalidades, que vão da construção de sua própria imagem e promoção de seus produtos à proposição mesmo de um real artificial, paralelo, constituído no interior do próprio meio e gerador de acontecimentos sobre os quais a emissora detém o controle e os quais transforma em notícias. (DUARTE, 2004, p.47)
Tal estratégia é largamente utilizada pelo SBT e ajuda a construir,
inclusive, um determinado estilo da emissora. No programa de Hebe Camargo
(SBT), por exemplo, a apresentadora faz o marketing de alguns produtos,
utilizando como argumento o fato de utilizar em sua própria residência
determinada batedeira, ou aspirador de pó. Sendo o SBT em boa parte o seu
próprio patrocinador, utiliza os programas de auditório a seu favor: 7 “OFF-em televisão refere-se ao texto lido sobre imagens, podendo ser ao vivo ou pré-gravado. O locutor não aparece”.(ROITER ; TRESSE, 1995, p.87.)
70
A combinação dos elementos programa-intervalo e comercial-emissora cria a identidade das redes. Um gênero determinado atrai certo tipo de patrocinador e forma a característica da rede. Por isso se identifica a programação com a emissora. A Record ficou conhecida pelas séries; o SBT, pelos programas de auditório; a Band, pelo esporte; a Globo, pelas novelas; a Cultura, pelos programas infantis. (SOUZA, 2004, p.53)
Bakhtin alerta para o fato de que “o querer dizer do locutor se realiza
acima de tudo na escolha de um gênero do discurso” (BAKHTIN, 2000, p.301).
Assim, a escolha do SBT por uma programação permeada por grande
quantidade de programas de auditório acaba por revelar a configuração da
emissora, uma vez que programa de auditório é espaço fecundo para a
veiculação da alegria, da descontração, da venda de produtos e o modo de
construção da grade de programação do SBT apresenta como característica
uma instabilidade que acaba por reiterar o estilo da emissora vice-líder. Por ser
um canal extremamente comercial, que a duras penas se consolida no
segundo lugar, fazendo frente à supremacia “global”, a programação do SBT
obedece rigorosamente aos índices de audiência. Com isso, um programa
entra ou sai do ar, muda de horário, ou mesmo é reprisado abruptamente,
seguindo as ordens e até mesmo os humores do “patrão”. Durante o ano de
2006, os apresentadores Adriane Galisteu e Carlos Massa (Ratinho) tiveram
problemas com Silvio Santos. Galisteu teve o seu programa Charme
transferido de dia e horário várias vezes. Já o Programa do Ratinho
permaneceu fora do ar e o apresentador quase teve rescindido o seu contrato.
Fatos como esses tornam a grade de programação muitas vezes incoerente e
imprevisível, principalmente se comparada com a regularidade da grade da TV
71
Globo. É importante ressaltar que mesmo em face dessa irregularidade o SBT
possui um público cativo. Este acaba por se caracterizar como um público que
vê qualquer coisa apresentada no canal de Silvio, indistintamente, pois busca a
diversão, o lazer apresentados por todos os programas do gênero. Com isso
reforça-se o modo de interação marcado por uma passionalidade, um
envolvimento afetivo entre os actantes. Mudanças dos números do IBOPE ou
estados de espírito de Silvio Santos produzem o efeito de improviso e acabam
por compor um determinado estilo SBT de fazer TV que é, conseqüentemente,
parte da natureza dos seus programas de auditório. O proprietário do canal,
embora tente dissimular seu papel centralizador, é o verdadeiro comandante
do eixo, por vezes errante, da sua emissora:
Na minha emissora, eu não interfiro. Cada um faz o programa do jeito que quer. Eu não falo nada. Quem fala é o número. Quem dá ibope pode mostrar o que quiser. As pessoas sabem que não é o Silvio Santos que está mostrando esta ou aquela coisa, é o apresentador. 8
No caso do SBT, como aliás em todas as emissoras privadas, é notório
que os números regem a orquestra da programação. Um desafino aqui, um
descompasso ali e até alguma harmonia, em dados momentos, são traços
característicos da emissora, que não faz a mínima questão de esconder ou ao
menos disfarçar suas intenções. Atualmente, sob a ameaça de perder a vice-
liderança para a Rede Record, o SBT leva a cabo um projeto de revitalização
da programação. Em fevereiro de 2007, uma propaganda auto-referencial
alardeava a nova programação do SBT, chamando atenção para novas
8 Disponível em http:// veja.abril.com.Br/170500/ entrevista_Silvio.html. Acessado em: 17/04/2005.
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contratações e a utilização de recursos mais modernos, como uma iluminação
de ponta. Vale transcrever a chamada, na qual o locutor com uma voz
impactante diz: “2007, o ano da virada do SBT. A concorrência vai tremer de
medo”. Com efeito, o SBT se constrói como um enunciador competitivo, que
não poupa esforços para manter-se no honroso segundo lugar. Cabe aqui um
destaque para o fato de a maior estratégia utilizada na reformulação da
programação consistir na concentração do Programa Silvio Santos no dia de
domingo. Assim, alguns programas que estavam sendo apresentados durante
a semana, bem como outros que estavam fora do ar, voltam a ocupar o dia
nobre do entretenimento. Aplica-se, então, a estratégia do eterno retorno
televisivo. Quase tudo na TV é cíclico e repetitivo. Com isso, o caríssimo
telespectador por opção ou por falta dela segue como Sísifo sua eterna rotina,
vendo o que é dado a ver e sendo mais um número na arena.
A caracterização do gênero programa de auditório através de suas
regras de composição, temática e estilo, bem como a análise das esferas de
circulação, fornecem pistas importantes sobre o arranjo interno desse tipo de
texto. A investigação dessas pistas é valiosa para a continuidade deste
trabalho, na medida em que colabora para desvelar a estratégia enunciativa
que rege e ordena o texto sincrético televisivo, conforme veremos adiante nas
cenas dos próximos capítulos.
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2. TUDO AO MESMO TEMPO AGORA: ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS DE SINCRETIZAÇÃO
Não me iludo Tudo permanecerá
Do jeito que tem sido Transcorrendo
Transformando Tempo e espaço navegando
Todos os sentidos... Gilberto Gil
Muitas são as acepções pelas quais se podem tomar as noções de
tempo e espaço. Entretanto, num trabalho que adota a perspectiva da
semiótica discursiva, grande serventia há na imagem construída pelo
compositor. Segundo Gilberto Gil, o tempo e o espaço navegam em todos
sentidos. A idéia da navegação remete ao percurso entre um espaço e outro e
nos leva a pensar na questão do sentido por dois ângulos. Afinal, de que
sentido nos ocupamos? Como sabemos, ”navegar é preciso” e para isso
necessita-se do sentido como direção, aquele que mostra aonde ir e,
fatalmente, conduz o sujeito por espaços muitas vezes “nunca dantes
navegados”. Ao percorrer esses espaços, inevitavelmente, o tempo passa,
dias, noites, primaveras, verões, pois o deus Cronos nunca dorme. Contudo, e
o sentido organizado em significação? Este que é moldado na malha textual e
recuperado pela análise?
Fontanille ao esclarecer “a diversidade das abordagens sobre o sentido”
vai nos mostrar que “o sentido é, em primeiro lugar, uma direção:dizer que um
objeto ou uma situação tem um sentido, é na verdade, dizer que eles tendem a
algo”(FONTANILLE, 2007, p.31). Este percurso, entretanto, pelo qual passa o
75
objeto desenrola-se necessariamente num tempo e num espaço. Assim, a
observação do sentido, da produção da significação, não pode deixar de ser
atravessada pela observação das categorias da enunciação. Essa lição a
semiótica aprendeu com Benveniste, pois foi ele o primeiro a demonstrar que a
enunciação põe a língua em funcionamento e dela resulta o enunciado,
recheado por suas marcas. Ao estudar os enunciados, os textos, temos ali
incrustadas as marcas do tempo, do espaço e da pessoa. Fiorin chama
atenção para o modo como se dá a relação entre essas categorias, ressaltando
o caráter referencial da categoria de pessoa:
Como a pessoa enuncia num dado espaço e num determinado tempo, todo espaço e todo tempo organizam-se em torno do “sujeito”, tomado como ponto de referência. Assim, espaço e tempo estão na dependência do eu, que neles se enuncia. O aqui é o espaço do eu e o presente é o tempo em que coincidem o momento do evento descrito e o ato de enunciação que o descreve. A partir desses dois elementos, organizam-se todas as relações espaciais e temporais. (FIORIN, 2001, p. 48)
Todavia, essas relações espácio-temporais, que orbitam em torno da
referencialidade da pessoa, possuem especificidades em função do modo de
organização dos enunciados. Voltando ao objeto desta pesquisa, o texto
televisivo, algumas considerações são pertinentes.
Primeiro, ao tomar para análise um texto de televisão, é preciso evocar
uma questão que diz respeito à configuração técnica do veículo. Ou seja, em
que medida os programas, produto final produzido pela TV, são gerados em
conformidade com tal tecnologia que os impregna com determinada natureza,
aqui entendida como o modo de ser, de funcionar, de produzir sentidos?
O primeiro conceito de televisão se refere antes de tudo a uma técnica de produção de imagem em movimento e som e veiculação instantânea à distância. Começamos do óbvio – mas também daquilo onde ela revolucionou. (FRANÇA, 2006, p. 19)
76
A conceituação de Vera França faz pensar em duas questões. Uma é a
técnica de produção, que alia som e imagem, e torna primordial o conceito de
sincretismo de linguagens. A outra, sobre a veiculação instantânea, mostra a
instauração de um novo modo de presença, que como conseqüência altera as
noções de tempo, que com a TV passa a ser instantâneo, e espaço, pois o
veículo atinge qualquer distância. Para tangenciar tais assuntos, e
teoricamente buscar uma descrição das estratégias enunciativas que tornam o
texto televisivo um texto sincrético, tomar os eixos do tempo e do espaço faz-se
mais do que importante, antes de tudo necessário.
Com efeito, o eixo da temporalidade apresenta um caráter central na
constituição do texto televisivo, uma vez que:
O meio de transmissão é o tempo. A programação televisiva é assim um discurso que só existe numa duração: aquela na qual se dá o ciclo contínuo da transmissão e recepção de sinais eletromagnéticos de uma fonte emissora aos milhões de monitores. (FECHINE, 2008, p. 107)
A partir da observação de Fechine, é possível pensar a temporalidade
por duas vias. Uma, intrínseca ao enunciado, diz respeito às debreagens
temporais que são ali postas. A outra, porém, refere-se ao tempo da
transmissão, sendo este o marco referencial temporal adotado como presente,
a partir do qual se marca um “antes” e um “depois”. Assim, quando um
apresentador diz “não perca, daqui a pouco no nosso próximo programa” a
posterioridade é em relação ao momento em que se transmite essa fala, que
na maioria das vezes é não-concomitante ao momento do acontecimento, por
77
se tratar de um programa gravado. A transmissão, então, é o que presentifica,
atualiza o enunciado, o “agora” é o “agora” da transmissão.
Fiorin distingue dois sistemas temporais na língua, enunciativo e
enuncivo. O primeiro ocorre quando o momento de referência está relacionado
ao momento da enunciação. O segundo é ordenado em função das referências
instaladas no enunciado. Como o eixo de ordenação das referências é o
momento da enunciação, a partir dele podm se instalar três momentos de
referência: concomitante, anterior ou posterior à enunciação. Além disso, há o
momento dos acontecimentos (dos estados e transformações), que recebe
uma ordenação em relação aos momentos de referência. Com isso, o autor
destaca o momento da enunciação (ME), o momento da referência (MR) e o
momento do acontecimento (MA) como os três marcos estruturais que
constroem o sistema temporal (cf. FIORIN, 2001, p.145-146). A observação
desses três marcos guiará as observações feitas a respeito da organização
temporal nos programas de TV. Segue um exemplo.
O caso real que narrarei, a conversa entre uma amiga minha1 e sua avó,
diversas vezes recontada como anedota, serve-me para iniciar uma reflexão
acerca das estratégia de temporalidade na TV, que adota a atualização como
uma das principais estratégias. A cena se ambienta na década de 80, época
em que o programa Silvio Santos ocupava tardes inteiras aos domingos. Dizia
a avó, assídua telespectadora do programa e fã de seu apresentador: “Eu
adoro assistir o Silvio Santos, porque ele está lá agora falando com a gente”.
Retrucava a jovem neta: “Vó, deixa de ser boba, você não vê que o programa é
1 Menciono a história sempre contada pela amiga e também semioticista Karla Cristina Faria, numa de nossas conversas sobre o comportamento das pessoas, tão envolvidas pelos artifícios dos meios de comunicação.
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gravado...” À afirmativa irritada da neta seguia-se a fala da senhora, que não se
deixava convencer facilmente: “Se é gravado, me responde como é que ele
sabe que hoje é domingo e, olhando pro relógio, viu que são três horas da
tarde?” A impertinência da insistente “vovó” suscita pensarmos, que, para além
da credulidade de fã, estava aí um enunciatário confrontado com estratégias
discursivas habilmente postas em funcionamento. O efeito de “ao vivo”
construído pela debreagem de um “hoje” como o dia de domingo e o horário,
que coincide com o horário da transmissão, simula a concomitância entre o
momento de referência e o momento da enunciação, através da presentificação
do enunciado.
A obliteração das marcas da gravação e a necessidade de construir um
enunciado que seja inserido num “agora”, num momento presente, ou seja, no
instante mesmo em que os telespectadores se põem diante da TV, revela,
outrossim, um dos modos de presença desse veículo inserido na casa e na
vida das pessoas:
A programação da TV é, portanto, um discurso que, quando
considerado como um todo – ou seja, como um ciclo de programas ordenados numa grade diária – entrelaça uma duração do “mundo” (o tempo medido pelos relógios num mundo social) e uma duração na “linguagem” (o tempo construído pela televisão na sucessão dos seus programas) que, sobrepostas no momento mesmo da transmissão, desdobram-se em um “tempo vivido”, através dessa própria relação com a televisão. (FECHINE, 2008, p. 108)
Torna-se claro, assim, que é preciso examinar a sintaxe discursiva dos
programas, pois é aí que a semiótica localiza a obervação das categorias de
espaço e tempo, ao mapear os mecanismos de debreagem e embreagem,
responsáveis pela temporalização, espacialização e actorialização. Vale dizer
que enfatizarei, por enquanto, as categorias de tempo e espaço, e a de pessoa
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será discutida no próximo capítulo, integrada à questão da interação. O
problema teórico tratado nesta parte do trabalho é mais precisamente o das
relações de tempo e espaço como modos de construção do sincretismo no
texto televisivo. Para tanto, pretendo observar a estratégia de sincretização que
põe em andamento as diferentes linguagens, numa enunciação única, partindo
das estratégias de temporalização e espacialização. Para isso, lançarei mão
ainda da abordagem tensiva desenvolvida especialmente por Zilberberg e
Fontanille. A também denominada Semiótica Tensiva pode ser entendida como
uma das mais recentes abordagens da semiótica que, ao lado dos estudos
sobre as paixões, busca recuperar o exame da dimensão sensível do sentido,
que é tomada como instância de mediação entre sujeitos e objetos, e como
parte constitutiva da percepção.
O mergulho no universo sensível, facultado pelas ferramentas tensivas, acabou por reaproximar a semiótica greimasiana de suas bases fenomenológicas, notadamente no que diz respeito à fenomenologia de Merleau-Ponty, de onde a importância da noção de campo de presença. De fato, o campo de presença nada mais é do que a contrapartida tensiva das relações juntivas entre sujeito e objeto. A questão em destaque para a abordagem tensiva é a compreensão da arena onde se estabelece a relação entre sujeito e objeto como sendo um campo perceptivo. Segundo este ponto de vista, o sujeito se constrói na passagem por um percurso em busca de um objeto, sendo que vale atentar para o fato de que este percurso é delimitado por sua própria percepção. A partir desse momento, a junção (base do enunciado narrativo) ganha certa autonomia em relação ao ponto de vista da ação, de modo que a relação juntiva não mais precisa ser equacionada a partir da inclinação do sujeito em direção ao objeto, mas pode ser pensada enquanto estado na coexistência dos dois termos dessa oposição, uma vez que o sujeito constrói o objeto com sua percepção e, ao fazê-lo, se constrói a si mesmo como sujeito daquela percepção. (SOUSA; MANCINI; TROTTA, 2007, p. 296)
A tensividade compreende a significação como um processo contínuo,
modularizado entre os eixos da intensidade (sensível) e da extensidade
(inteligível). Como a primeira rege a segunda, na abordagem tensiva vê-se uma
80
autoridade do sensível sobre o inteligível. O eixo da intensidade é formado
pelas subdimensões do andamento e da tonicidade e o da extensidade pela
temporaliade e espacialidade. O tempo e o espaço são, então, regidos pela
intensidade. Assim, no entrecruzamento das subdimensões temos o
andamento regendo a temporalidade (duração) e a tonicidade regendo a
espacialidade (profundidade). Das associações entre as valências extensivas e
intensivas geram-se os valores, por meio de relações conversas (quanto
mais...mais, quanto menos...menos) ou inversas (quanto mais...menos, quanto
menos...mais). Como explica Fiorin:
... a Semiótica Tensiva busca explicar as instabilidades. Por isso, parte do pressuposto de que as alterações e vicissitudes que afetam o sentido derivam do fato de que ele está mergulhado na instabilidade, na imprevisibilidade, na foria. Essa transposição semiótica da energia é uma força diretriz, que se analisa em três grandezas (foremas): a direção, o intervalo e o elã (impulso). A intersecção de um forema com uma subdimensão da intensidade (andamento e tonicidade) ou da extensidade (temporalidade e espacialidade) produz uma valência. (FIORIN, 2008, p.136)
No caso do programa em análise, por exemplo, percebemos que a sua
longa duração gera uma extensidade, que remete ao habitual. Estar no ar há
tanto tempo, ou em termos teóricos, fazer-se como objeto extensivamente
presente no campo de percepção do sujeito poderia levar ao desgaste, à
diluição e, conseqüentemente, à perda da audiência. A fim de evitar isso, há
uma regulagem da modulação tensiva entre a extensidade (hábito) e a
intensidade (surpresa), logo, analisar essa alternância entre extensidade e
intensidade faz-se necessário para desvelar o esquema tensivo adotado no
Programa Silvio Santos, como veremos mais adiante ao longo da análise.
81
Passo a seguir à descrição do plano da expressão dos programas e da
estrutura narrativa, necessária para a análise da relação tempo/espaço, que se
fará através do exame das categorias enunciativas por uma ótica tensiva.
2.1. O plano da expressão do show de variedades
Como discuti no capítulo anterior, as estratégias adotadas na feitura dos
programas respondem a algumas coerções específicas do gênero e também
dos subgêneros. O chamado show de variedades, aqui representados por P1
Gente que brilha e P3 Rei Majestade, apresenta como especificidade o fato de
ser seqüencial, ou seja, a cada apresentação participantes são selecionados
para a “grande final”, na qual os prêmios serão distribuídos. Em P1, no ar
sempre aos domingos às 22h2, pessoas comuns ou artistas desconhecidos
apresentam diferentes números, “cantores, dançarinos, modelos, imitadores,
ilusionistas, humoristas, atores, inventores, estilistas, adestradores, cantores
mirins” . Todos os participantes passam pela avaliação de um júri, presente no
palco, como também pelas palmas do auditório. Aqueles que conseguem uma
determinada pontuação ficam classificados para a final. Já em P3, exibido às
quartas-feiras às 23h, cantores populares, que alcançaram sucesso na década
de 50, 60, 70 e 80, e são atualmente menos privilegiados pela mídia,
apresentam antigos sucessos e uma canção atual e são avaliados pelo
auditório e pelos telespectadores, que votam pelo telefone ou no site do SBT.
Como em P1, aqueles que conseguirem expressiva votação serão também
classificados e, além do prêmio em dinheiro, gravarão um CD, chamado “CD
do SBT”. Pode-se observar essa utilização de programas em seqüência como
2 Esta data de exibição diz respeito à data da gravação, a saber: P1 gravado em: 20/03/2005 e P2 em 26/07/2006.
82
uma primeira grande estratégia de instauração da fidelidade. No plano verbal,
expressões como: “na próxima semana”, ou “preparem-se para a grande final”
colaboram para criar expectativa no telespectador. Atentemos, agora, mais
detalhadamente, para os elementos que aparecem em cada programa.
Seqüência de P1
P1 é dividido em três grandes blocos de aproximadamente quarenta
minutos de duração cada um. O cenário é composto por um palco central, com
um piso espelhado repleto de formas triangulares que acendem
alternadamente. Os triângulos se agrupam compondo uma grande estrela. O
fundo azul é recortado em quadrados, que também se acendem em
alternância. No canto direito, há quatro poltronas brancas ocupadas pelos
jurados, que já se encontram no palco. Entre cada poltrona, um objeto cilíndrico
numerado de 1 a 10. A cada nota atribuída pelo jurado o cilindro acenderá até
a altura do número correspondente. Do lado esquerdo, separados do palco
central por uma grade, percebem-se músicos e cantores, um tipo de orquestra,
ocupando o canto mais escuro da cena. Ao fundo há uma espécie de porta,
cuja parte superior recebe forma geométrica e de dentro dela aparece ao fundo
uma enorme estrela azul de cinco pontas, recortada por um hexágono central,
83
destacado num azul mais escuro. Ocupam o centro do palco seis bailarinas de
roupas brilhantes dançando uma vibrante coreografia. Assim, verificamos no
PE as seguintes categorias: a) cores: tons de azul (piso e fundo), branco
(poltronas dos jurados e piso/ fundo) e amarelo (fachos de luz), b)formas:
predominantemente triangulares no fundo e no piso, quadrados também no
fundo, arredondadas (nos corpos) circulares (luz), c) som: música instrumental
em ritmo acelerado.
Seqüência de P3
Em P3 temos três blocos de aproximadamente trinta minutos cada um.
O cenário é formado por um palco redondo com um grande círculo branco no
chão e sobre ele o logotipo do programa, que é composto pelo nome do
programa e o desenho de uma coroa. No palco, cinco bailarinas dançam
alegremente, uniformizadas de vestidos cor-de-rosa. O fundo, que na primeira
parte do programa está um pouco mais escuro, é ocupado por uma orquestra.
Na segunda parte do programa, porém, quando os cantores têm que cantar ao
vivo, a luz incide sobre a orquestra. O palco é emoldurado por seis colunas
iluminadas, três à direita e três à esquerda, que mudam de cor em função das
cores dos fachos de luz. Do alto vários canhões de luz projetam formas
arredondadas no piso e piscam incessantemente fortes e brilhantes tons de
84
azuis, rosas, laranjas e verdes. Diante do palco fica a platéia, que é bastante
focalizada na cena inicial do programa. As pilastras e os desenhos de coroas
iluminados também aparecem no fundo atrás da platéia. Podemos dividir os
elementos da seguinte maneira: a) cores: predominantemente o azul nos
fachos de luz, branco (chão), preto (mais ao fundo/ na roupa dos componentes
da orquestra) b) luz: fachos de luz branca formando desenhos sobre o fundo,
canhões de luz projetadas sobre as pilastras, canhões de luz colorida piscando
em cima do palco, por trás do auditório canhões de luzes coloridas piscando, c)
formas: arredondadas no piso e nos corpos, linhas retas das pilastras, d) som:
no início do programa, antes de cada comercial e no final, toca em som alto a
música Celebration, grande sucesso dançante das discotecas dos anos 70,
aplausos e gritos da platéia e a voz do apresentador.
2.2. Esquema narrativo no show de variedades
No show de variedades vemos, então, o esquema de manipulação entre
um sujeito S1 que leva o S2 a querer entrar em conjunção com o objetos valor
fama ou ao menos visibilidade na mídia. Embora tenha a oferta de prêmios em
dinheiro tanto em P1, que promove a aparição diante da TV, quanto em P3 em
que há a reaparição do sujeito, o foco sobre o qual recai a euforização é a
possibilidade de estar em foco. Para isso é preciso vencer cada etapa para
permanecer mais tempo – ao longo da seqüência dos programas no ar. É
relevante notar que cada um dos programas realiza um programa narrativo
completo. O sujeito aceita a manipulação proposta, torna-se competente para
fazer sua apresentação: passa pela triagem da produção, ensaia, usa figurinos,
enfim prepara-se para entrar no ar. Dotado, então, de competência ocorrem as
performances. Em P1, mágicos, maquiadores, covers. Em P3, cantores e
85
músicos. Por último, ocorre a sanção. Em P1 jurados e a platéia escolhem
quem vai para a final. Em P3, o julgamento é feito pela platéia e pelos
telespectadores, que atribuem sanção positiva para os vencedores e negativa
para os perdedores. Os vencedores aguardam a grande final e têm a imagem
projetada na retomada dos programas anteriores. Nota-se a existência da
narrativa de cada programa e um esquema narrativo do conjunto seqüencial de
todos eles. Esse esquema narrativo está também presente em outros
programas apresentados no SBT como o “Bailando por um sonho”3, que
esteve no ar em 2006.
2.3. O Plano da expressão no subgênero game-show
Os programas que pertencem ao subgênero game-show, ao contrário do
show de variedades, não são seqüenciais. Buscam o interesse do público
essencialmente pelo clima competitivo e pela oferta de muitas premiações.
Seqüência de P2
3 Segue a descrição do programa Bailando por um sonho, publicada na Folha online, na reportagem: Silvio Santos lança “bailando por um sonho” neste sábado: “Semanalmente, dez trios formados por um artista, um” sonhador anônimo “e um coreógrafo apresentam um número de dança depois de uma semana de treinamento. O trio se apresenta para um júri formado por quatro especialistas em dança. Um dos jurados é sorteado pelo apresentador, por meio de uma roleta, e vai para o camarim. Lá, ele coloca a nota secreta do trio em um envelope que será entregue aos próprios participantes. Os outros três jurados ficam no palco, com Silvio Santos, e dão seu voto aberto. Silvio Santos revelará a soma das notas no final do programa e mostrará o ranking”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u65333.shtml Acessado em: 07/12/2008.
86
Em P2, game que reedita o programa Roletrando, grande sucesso do
SBT na década de 80, pecebe-se uma das características mais marcantes do
jogo em si, a competição entre diferentes participantes. O cenário é composto
pelo que podemos chamar de três espaços. Num, que será ocupado pela
auxiliar do apresentador, há um grande painel azul dividido em quadrados, que
escondem as letras a serem adivinhadas pelos participantes para formar as
palavras ou frases ocultas - muito semelhante ao antigo e popular jogo de
forca4. O outro, onde ficarão, num nível um pouco mais alto, Silvio e os
participantes, tem uma grande roleta central branca, tomando quase todo o
espaço. A face de cima da roleta é subdividida em vinte e quatro partes
coloridas, unidas por uma esfera azul no centro. Sobre cada uma das partes
está escrito o valor do prêmio que o participante ganhará, ou algumas
penalidades como “passe a vez”, “perde tudo”. Por trás da roleta se posicionam
os participantes, cada um diante de uma placa, onde será registrada a sua
pontuação. As placas são de cores diferentes: amarelo, azul e rosa. À
esquerda de pé fica o apresentador. O terceiro espaço, um corredor que une os
dois anteriores, possui um piso espelhado. Sobre ele dois carros zero km, um
branco e outro vermelho, que servirão de premiação. Os três espaços em que
se divide o palco são bem claros, a luz é branca e contínua. A divisão do palco
em diferentes espaços é resolvida através de uma tomada de dois planos
simultâneos, na qual o vídeo é dividido em duas partes. Na parte superior,
focalizam-se os três participantes e a roleta e na parte inferior a ajudante de
palco e o painel de letras. A platéia, posta diante do palco, aparece poucas 4 Como o programa usado na análise foi apresentado próximo ao natal, o cenário apresenta motivos natalinos. Ao lado do painel há dois grandes bonecos de neve e por trás dos participantes aparece pintada uma paisagem tipicamente natalina, com muita neve, trenós, papai noel e pinheiros.
87
vezes, contudo participa ativamente através de muitos aplausos e repetições
de vários coros, risos e vaias. A câmera não se movimenta muito e o plano
geral5 é predominante, embora alterne com alguns closes no apresentador e
nos participantes. A sonoplastia é composta de sinais sonoros agudos, que
indicam que o participante acertou a letra, e de uma ruidosa buzina em tom
grave, para mostrar que errou. Além disso, uma trilha sonora acompanhada por
palmas cadenciadas da platéia toca enquanto a roleta gira e cessa
imediatamente quando ela pára. A descrição dos elementos postos na cena
pode ser assim sistematizada: a)cores: branco (roleta, carro), azul (painel e
placar), vermelho (elementos do cenário natalino), rosa (placar), amarelo
(placar); b) luz: branca e contínua; c) forma: circular (roleta), quadrado (painel
de letras), arredondadas (corpos das pessoas, elementos de cenário); e) som:
vinhetas, buzina, trilha sonora, palmas e corais da platéia.
Seqüência de P4
Já o game Topa ou não topa, programa assumidamente importado e
qualificado como “um fenômeno da TV que está conquistando o mundo”, é
marcado por um cenário sofisticado. O palco fica no centro e tem forma
pentagonal. Compõe uma espécie de adaptação do teatro de arena com 5 “Plano geral (PG): enquadramento feito com a câmera distante mostrando a pessoa por inteiro ou um local completo”.(WATTS, 1990, p. 273)
88
entrada lateral e corredores, por onde entram o animador e os participantes,
que ficam no centro e são rodeados pela platéia. Uma parte do público se
posiciona, como na arena, numa arquibancada e vê o palco do alto para baixo.
Entretanto, outra parte é acomodada em cadeiras que estão num nível pouco
abaixo do palco. No fundo há uma escadaria muito iluminada, larga e alta, com
mais de dez degraus, onde se posicionam as vinte e seis modelos portando as
maletas prateadas. A escada é emoldurada por imensas colunas iluminadas
pendendo para o tom de dourado, que também aparece nas luzes acesas entre
um degrau e outro. Há uma infinidade de canhões de luz que projetam do alto
fachos de luzes predominantemente azuis. Por trás da escadaria e do público,
o fundo simula imensas vidraças transparentes de onde se podem ver
projetados prédios de uma cidade, também iluminados. Quando o jogo
começa, uma parte desse fundo dá lugar a um suntuoso painel retangular que
vai do chão, mais precisamente da direção da cabeça das pessoas da platéia,
até o teto. Nele se digitalizam duas colunas iluminadas divididas em treze
linhas com os algarismos dos valores em dinheiro, de cinqüenta centavos a um
milhão de reais. No alto do painel, o logotipo com o título do programa. O
pentágono do chão é dividido ao meio em preto e branco e no centro dele há
um púlpito em forma de balcão feito de matéria acrílica transparente, sobre o
qual ficam um telefone e uma caixa a serem utilizados ao longo do jogo. Ali
também será depositada a maleta escolhida pelo participante. O apresentador
e o participante postam-se cada qual de um lado da tribuna, podendo apoiar os
braços ou outros objetos. Sobre o palco, um sofá destinado aos familiares do
participante que ficam, então, separados do resto do público. Há ainda, na
parte superior esquerda, uma cabine escurecida de onde se pode ver a silhueta
89
de um homem, o banqueiro. Ela contém vários painéis digitais semelhantes aos
painéis de cotação da bolsa de valores e também a projeção de imagens do
participante. É como se uma câmera monitorasse as reações e movimentos do
jogador e reproduzisse para apreciação do banqueiro. O movimento de câmera
é intenso e realiza muitas tomadas em ângulo elevado, ou seja, com a câmera
acima das pessoas. Desde a entrada do apresentador toca, intermitentemente,
uma música instrumental bem ao estilo de trilha sonora de suspense. Vale
ressaltar que no momento da entrada do apresentador e quando este convoca
o participante a música aumenta e se torna mais acelerada. P4 tem
aproximadamente uma hora de duração e o número de quadros é variável, pois
o apresentador chama os comerciais em função do suspense da jogada.
Sistematizando temos: a) cores: preto e branco (chão), azul (luzes, roupa das
bailarinas), dourado (detalhes de cenários), prata (maletas), verde (prédios) e
cinza (roupa do apresentador); b) luz: múltiplos canhões de luz azul incidindo
sobre a escadaria, luz branca clareando o palco; c) formas: linhas retas
(pilastras, escada, painéis), pentágono (piso) e quadrados (formam o
pentágono), arredondadas (somente nos corpos); d) som: aplausos, coro e
gritos da platéia, música instrumental.
A partir dessa observação do PE é possível perceber que os programas
de auditório, embora sejam um gênero padrão, bastante tradicional da televisão
brasileira, cujo elemento primordial de caracterização é a exacerbação da
função do entretenimento, apresentam variações de estilo nos seus
subgêneros. Pode-se verificar no corpus em análise que o show de variedades
cria, em seu PE um efeito de lirismo, dado pela penumbra de cores e luzes, a
presença de orquestra que toca ao vivo, os temas musicais, as bailarinas, uma
90
certa glamourização dos participantes-artistas. Já o game-show caracteriza o
seu PE pela presença mais acurada da tecnologia, através de roletas, painéis
eletrônicos, vinhetas musicais. Em ambos os subgêneros, embora haja a
repetição de um formato antigo, é possível notar a construção de um efeito de
modernidade através das formas geométricas no cenário, jogos de iluminação
sofisticados e uso de tecnologia digital.
2.4. Esquema narrativo do subgênero game-show
O subgênero game-show, como já dito no capítulo 1, enfatiza a etapa da
sanção, ganhar dos outros participantes em P2 ou fazer a escolha certa em P4.
Em P2, o jogo é coletivo. Três participantes precisam acertar as letras que
compõem as palavras. S1 manipula o S2 (coletivo) a querer e poder participar.
Dota-os de competência: são sorteados para ir ao programa, a viagem até o
SBT é financiada, recebem produção (maquiagem, figurinos, alimentação).
Entretanto, a performance se realiza de maneira distinta, pois nesse caso
depende de um saber individual responsável por tornar apenas um dos
participantes o vencedor, sendo os outros dois selecionados negativamente. Já
em P4 há apenas um participante que escolhe as maletas. O percurso da
manipulação é igual ao dos outros programas; a diferença está na performance
que depende não de um saber, mas de uma escolha, representada pela
pergunta “topa ou não topa”. Ambos, P2 e P4 são jogos de azar, mas o
esquema narrativo evidencia a performance através do querer, poder e saber
dos sujeitos. Simula-se a livre escolha dos participantes. Em P4, na medida em
que as maletas vão sendo abertas, as propostas em dinheiro feitas pelo
“banqueiro” podem mudar radicalmente de valor. Em P4, há ainda um aumento
gradativo na tensão, pois a performance só se realiza realmente quando o
91
participante “topa”, ou seja, aceita a quantia oferecida. Muitas vezes, sem mais
nenhuma saída, o participante aceita quantias bem inferiores a outras já
anteriormente oferecidas. Quando a performance se realiza é feita uma
simulação das outras possibilidades que o jogador teria daquele momento em
diante. Assim, por exemplo, um jogador que tenha aceitado e parado de jogar
com cem mil reais é levado a crer que se continuasse chegaria a setecentos
mil, por exemplo. Daí a sanção é negativa. Também pode ocorrer o contrário
Quando o participante percebe que fez a escolha certa ou um bom negócio
sente-se sancionado positivamente.
2.5. Preenchimento e movimento
Ao observar os elementos que compõem as categorias do PE dos
programas é possível formalizar oposições, que estão na base de construção
de alguns efeitos. A partir deles pode-se chegar aos dois quadros seguintes. O
primeiro descreve as oposições e efeitos a partir dos formantes e o segundo da
tensividade, marcada pela sobreposição da luz e dos efeitos sonoros às
categorias discretas plásticas e sonoras:
FORMANTES P1 P2 P3 P4 OPOSIÇÕES EFEITOS
CROMÁTICO
Predomínio de
azul, amarelo,
branco.
Predomínio de
branco , azul,
vermelho rosa
amarelo
Predomínio de
azul, preto e
branco, azuis,
rosas, laranjas e
verdes
preto e branco,
azul, dourado,
prata, verde e
cinza
luminosidade
vs
obscuridade
Efeito de
preenchimento
(multi-
cromatismo)
EIDÉTICO
Formas geométricas
(triangulares/quadrados) e
arredondadas
Circular,
arredondadas e
quadrados
Arredondadas/
linhas retas
Linhas retas e
formas
geométricas
pentágono e
quadrados,
poucas formas
arredondadas
Retilíneo vs
curvilíneo
Efeito de
preenchimento
(variedade
eidética)
92
TOPOLÓGICO
Palco centra/ cadeira de
jurados canto direito / Porta
ao fundo / platéia em frente
ao palco
Palco central
dividido em três
“espaços”/
platéia em frente
ao palco
Palco central /
orquestra ao
fundo/ platéia
em frente ao
palco
Palco central
tipo arena,
platéia em
volta do palco
Central vs.
periférico
Efeito de
preenchimento
(ocupação plena
do espaço)
(Quadro 1 – formantes)
ELEMENTOS
TENSIVOS
P1 P2 P3 P4 OPOSIÇÕES EFEITOS
TENSIVOS
LUZ
Em vários formatos e cores, estilo pisca-pisca
Branca e contínua
Vários canhões coloridos piscando sobre o palco e fundo/ projeção de vários tipos de desenhos
Vários canhões de luz azul / luz branca
Intermitência vs. Não-intermitência / forte vs fraco
Efeito de movimento (tonicidade + andamento)
REGULAÇÃO DO SOM
Música instrumental acelerada/ palmas Fundo musical (efeito incidental) – marcação acelerada
Vinhetas, buzina, trilha sonora, palmas e corais da platéia.
Musical/ vocal/ incidental – marcação desacelerada
Música “Celebration” / palmas (aceleração)
Música instrumental (suspense), vinhetas, aplausos, coral (desaceleração)
Aceleração vs desaceleração / Alto vs baixo
Efeito de movimento
(tonicidade +andamento)
(Quadro 2 – elementos tensivos)
A profusão de elementos obedece a uma organização espacial ditada
pelo tipo de enquadramento da câmera e pelo próprio espaço do set, que por
não ser grande, ajuda a criar a sensação de saturação. Por sua vez, o ritmo
da música, a dança das bailarinas, as tomadas de câmera e os fachos de luz
criam, no plano do conteúdo (PC), um efeito tensivo de movimento, que se
acelera e tonifica gradualmente.
O efeito de preenchimento é construído pela fixação de um dos termos
dos pares opositivos que é reforçado, resultando da euforização do eixo de
93
oposições: luminosidade+retilíneo+central. Já o efeito de movimento se
estabelece na relação entre os termos opostos que instaura a intensidade
sobre a extensidade dos elementos plásticos e sonoros. Na luz vai-se de uma
não-intermitência a uma intermitência e, nessa passagem, ora a luz é mais
forte, ora mais fraca, marcando o percurso da tonificação à atonização. A luz
também é dotada de andamento, na medida em que ora é mais rápida, ora
mais lenta, formando um percurso caracterizado por acelerações e
desacelerações. Já no som vai-se de uma aceleração a uma desaceleração e
vice-versa, e também de uma tonificação à atonização, pois o volume do som
varia entre mais forte e mais fraco. O ritmo da cena se dá, então, através do
efeito de movimento, que aciona uma categoria temporal extensa sobre a qual
incide a subdimensão intensa do andamento. É importante notar que a luz é
uma substância “enformada” pelos formantes cromáticos e eidéticos, pertinente
portanto ao espaço e ao canal perceptivo visual. Porém o seu emprego
intermitente confere a ela uma duração temporal e uma movimentação rítmica
– marcada por continuidades e descontinuidades – ainda que absorvida pelo
canal visual. O percurso da continuidade à descontinuidade faz da luz um
elemento tensivo. O formante sonoro recebe a regulagem aceleração /
desaceleração (andamento) e tonificação / atonização (tonicidade), mas essa
sonoridade que vem de todos os lados também colabora no preenchimento do
espaço, embora seja absorvida pelo canal auditivo.
O esquema tensivo adotado sincretiza os formantes de modo a criar o
efeito totalizante. O sujeito diante do acontecimento, isto é, da cena, antes de
compreendê-la é capturado pela sensação do exagero, para só posteriormente
na desaceleração ir “resolvendo” e compreendendo o que vê. Essa junção de
94
elementos dá corpo a um tipo de estética ou estilo adotado no texto em
questão, qual seja a estética do excesso.
2.6. A relação espaço-tempo
Uma coisa de cada vez Tudo ao mesmo tempo agora
Titãs
Os dois únicos versos que compõem uma canção do grupo Titãs (1991)
formam um paradoxo que tangencia algumas das questões que pretendo tratar
nesta parte do capítulo. Como se dá a instauração dos elementos postos na
cena do programas? Depurando ainda mais a questão, como se constrói este
efeito de “tudo ao mesmo tempo agora” característico do sincretismo no
audiovisual e, no caso do programa de auditório, reiterado no excesso.
Nos programas em análise a cena inicial6 é marcada pela saturação de
elementos diversos postos em simultaneidade, o exagero de formas e o
movimento acelerado das imagens, que aparecem em consonância com a
música que toca, os som dos aplausos e gritos da platéia intensificando-se até
chegar a um ponto culminante, a entrada do animador. Tudo é posto de forma
a guiar todos os olhares ao centro. Por exemplo, em P1 o foco vai-se fechando
em direção à porta, no fundo, e a cena se ilumina. Em P2, embora o palco já
esteja iluminado, as luzes se intensificam e a câmera fecha lentamente o foco 6 Considerarei a cena inicial dos programas a seqüência que vai da vinheta de abertura e entrada do apresentador até o momento em que se inicia a ação do programa, seja chamando o participante ou anunciando o convidado. Essas seqüências possuem a seguinte duração: P1: 2’ / P2: 1’23”/ P3: 3’/ P4: 1’57”.
95
até focalizar de corpo inteiro o animador e sua ajudante que estão
conversando. Já em P4, o apresentador faz uma contagem regressiva de cinco
segundos e o palco totalmente escurecido só é iluminado quando ele chega ao
centro.
Embora cada seqüência inicial apresente suas particularidades, todas
obedecem a um movimento que parte do geral (primeiras tomadas), para o
particular (foco no apresentador). Essa passagem, que vai do aberto (plano
inicial) para o fechado, aponta como chave de análise a relação espaço–tempo,
pois a organização espacial submete-se a três marcos temporais: antes da
chegada do apresentador, o momento da chegada e após a chegada. A
transformação da organização espacial, subjugada à relação entre a figura de
comando (central) e o entorno, constrói, através do efeito de movimento e
preenchimento, a tematização da alegria e da espera entusiasmada, esta
última representada nos gritos e aplausos do auditório, marcas intensas. Já se
sabe quem virá, mas o momento causa expectativa e possui clima de surpresa.
Essa surpresa simulada obedece, no entanto, a um certo ritmo, isto é, a um
princípio temporal necessário para caracterizá-la como tal. Segundo Tatit
(1997) tanto a surpresa quanto a espera necessitam de um equilíbrio entre o
sujeito e o objeto. Se o objeto se apresenta numa velocidade muito grande,
corre o risco de escapar do sujeito, pela perda de seus contornos e
identificações. É o caso de alguns objetos de vanguarda artística, por exemplo,
que de tão imprevisíveis nem chegam a ser notados. Em contrapartida, na
utilização de um ritmo lento demais é o sujeito que se perde do objeto, dele se
desinteressando. Diante de uma peça de teatro que levou ao extremo a
lentidão dos movimentos dos atores, chegando sua encenação a durar uma
96
noite inteira, o grande desafio do público era não desistir de assisti-la ou não
adormecer (Cf. TATIT, 1997, p.54). Com isso, percebemos que o “clima de
surpresa” está atrelado a alterações rítmicas da cena, sendo regido pelo
esquema tensivo de organização do enunciado. A aceleração que precede a
entrada do animador e colabora para ajustar o tempo da surpresa é dotada de
uma intensidade e uma descontinuidade em relação a um contínuo
pressuposto. O tempo de “antes do início” do programa seria a extensidade, ou
um contínuo prévio, ao qual se retorna após a entrada do animador, num tipo
de volta à ordem, ao relaxamento. Nas formulações de Zilberberg, retomadas
por Tatit, adotam-se as noções de parada e parada da parada, para a
compreensão da produção do sentido:
Zilberberg compreende que o sentido fórico só se estabelece a partir da intervenção rítmica do sujeito que, rejeitando um tempo fora de controle, um fluxo indeterminável e imprevisível, propõe, por meio da enunciação, uma redistribuição das descontinuidades e continuidades em forma de paradas e paradas das paradas. Nesses termos, a própria enunciação constitui, em última instância, a parada da parada de um fluxo interrompido ou, se preferirmos, o restabelecimento de uma continuidade que ela mesma estancou. (TATIT, 1997, p. 15)
No enunciado em questão, nota-se que após a entrada de Silvio a luz
aumenta, tornando o palco mais claro. Nesse momento há uma alteração do
ritmo, passando gradativamente de uma intensidade extrema – parada da
parada – a um relaxamento, um retorno à extensidade – parada. A mesma
música que tocava antes volta a tocar num volume bem mais baixo, tornando-
se um fundo musical. A coreografia das bailarinas dá lugar ao gestual do
animador, que passa a compor juntamente com o auditório uma coreografia
97
ritmada, em P1 e P3. A voz do apresentador também reforça o ritmo da cena,
pois possui uma prosódia entoativa, que é acompanhada pelas respostas e
aplausos da platéia. Ele estabelece, então, uma espécie de diálogo com o
público, que é convocado a participar. À pergunta dirigida à platéia: “Está todo
mundo animado?”, ouve-se a resposta: “Sim!” Ou ainda na brincadeira com as
modelos de P4: “ – Alô, moças bonitas”, diz Silvio, ouve-se a resposta: “-Alô,
Silvio Santos”. Todas as perguntas são seguidas de respostas com a mesma
tonalidade musical e obedecem a um roteiro ensaiado.
Já em P3, à musica alta soma-se a voz do apresentador, enquanto a câmera
focaliza do alto, em diversas posições, o público. Antes mesmo de ser
focalizado, o apresentador dirige-se à platéia: “Agora vocês dançando,
dançando. Rodando, rodando, dançando, batendo palma”.
Concomitantemente às “ordens” proferidas pela voz do animador, visualiza-se
o auditório realizando as ações. Pode-se, então, dizer que a cena inicial é
fática, servindo prioritariamente à abertura do canal comunicativo. Com efeito,
a constante repetição desgasta e esvazia a informação e o enunciado passa a
funcionar mais como uma mise en scène. Todavia, a intensidade conferida a
essa cena fática tem um sentido de compensação, já que preenche o vazio
causado pelo desgaste. Nota-se uma atonização do conteúdo, que é
contrabalançada pela tonificação dos elementos da expressão. Esse quase
apagamento do conteúdo pela exacerbação da expressão é uma característica
geral importante dos programas em análise.
Passado o momento inicial, todas as atenções centram-se no apresentador,
dotado de uma confiabilidade própria àquele que comanda o espetáculo. Há
uma configuração da modalidade enunciativa do controle, que conforme teoriza
98
Fontanille (2004, p.181) ocorre quando: “a instância de enunciação global do
programa é representada por delegação ao animador”.
P1 e P3, como já mencionado, apresentam-se seqüencialmente. Assim,
cada programa apresentado agora se relaciona com um outro que veio antes e
prepara para os outros que virão depois. Com efeito, essa relação temporal é
construída no interior do programa atual, por meio de várias estratégias de
conversão do passado e do futuro para o presente. Tanto na cena inicial de P1
quanto de P3 exibe-se um tipo de resumo das apresentações dos vencedores
dos programas anteriores. Essas imagens aparecem juntamente com falas do
apresentador, tais como:
Estamos iniciando o programa “Gente que Brilha”. E já temos muitas pessoas classificadas para o programa final. (...) Daqui a pouco, no decorrer do programa, eu vou dizendo quais os outros que estão classificados para o programa final... (P1)
...É vamos ver quais os outros artistas que receberam a coroa de ouro e que já estão classificados para os programas finais, vamos ver... (P2)
Em P3, como anuncia o próprio apresentador “celebra-se o encontro das
músicas de ontem com as músicas de hoje”. Vale a pena ressaltar que o tema
da celebração é construído pela simultaneidade de vários recursos: música
“Celebration”, as ações do auditório, cantando e dançando, e uma certa pompa
do cenário, que conta com uma grande orquestra ao fundo. A relação temporal
de aproximação de passado e presente se expressa por meio de um videoteipe
com a retrospectiva da vida de cada artista. As antigas imagens precedem a
entrada do participante. Ao ocuparem o palco, eles são costumeiramente
interpelados por perguntas como: “Você gravou esta música há mais de 30
99
anos?” No primeiro bloco do programa, quando os artistas apresentam os
antigos sucessos, utiliza-se playback com as gravações originais, talvez para
não correr o risco de nenhuma alteração de timbre ou de arranjo, que poderia
modificar a imagem cristalizada na memória. Já na segunda parte do
programa, em que os artistas interpretarão ao vivo sucessos atuais, todos
aparecem com trajes a rigor, no palco posicionam-se músicos, o maestro e o
backing vocal. Durante todo esse momento há uma iluminação especial, uma
espécie de penumbra esfumaçada azul. Todos esses elementos geram uma
euforização do passado, visto como tempos áureos. E o programa apresentado
ganha ares de uma l’âge d’or revisitada.
A subdimensão do andamento funciona como um elo de ligação entre os
efeitos, uma vez que o movimento se dá através dos elementos que
preenchem o espaço, dotando-o de determinado ritmo. Yvana Fechine
apresenta uma proveitosa reflexão sobre os procedimentos de sincretização,
na qual destaca as propriedades expressivas de ritmo e movimento:
Na análise dos discursos sincréticos do cinema, da TV, do vídeo
ou da Internet o primeiro desafio passa a ser, então, a identificação das propriedades expressivas capazes de convocar simultaneamente ao menos duas ordens sensoriais envolvidas nos sistemas audiovisuais. O ritmo e o movimento estão certamente entre elas. Dessas propriedades, desprendem-se categorias expressivas comuns ao vídeo e ao áudio. Inventariamos, a princípio, oito pares categoriais, a partir dos quais podemos pensar uma articulação sinestésica entre imagem e música (ou efeitos sonoros): /aceleração vs. desaceleração/, / continuidade vs. descontinuidade/ , / dinamicidade vs. estaticidade/ , pontualidade vs. duratividade/ , /intervalaridade vs. progressividade/, / expansão (extensão) vs. contração (intensão)/, /ascendência vs. descendência/, / abertura vs. fechamento/. (FECHINE, 2006, mimeo)
100
A preocupação de Fechine é, através desses pares de categorias, entender
como se dá a relação sincrética entre o áudio e o vídeo. Expandindo, então, as
categorias listadas por Fechine, através da incorporação da abordagem
tensiva, chega-se ao seguinte quadro:
SEQÜÊNCIA TEMPORAL
OCORRÊNCIA VALÊNCIAS CANAL SENSORIAL
RELAÇÃO PC
Cena inicial (antes da entrada do animador)
Focalização de todo o palco e da platéia; Jogo de luzes coloridas; Aplausos e coro da platéia
Abertura Aceleração Foco Rapidez Brevidade
Áudio Vídeo
Consonância
Expectativa Surpresa Empolgação
Cena imediatamente após a entrada do animador
Foco fechado no apresentador; Luz branca parada; Somente a fala do apresentador
Desaceleração Fechamento Apreensão Repouso
Áudio Vídeo
Consonância
Controle Contenção
Continuidade do programa
Entrada de atrações variadas e convidados; Focalização de todo o palco e da platéia; (movimento de câmera) Foco no apresentador; Aplausos, gritos, músicas e voz do apresentador
Abertura Aceleração Foco Fechamento Desaceleração Apreensão Deslocamento Tonicidade
Áudio Vídeo
Consonância
Empolgação Controle
À relação de consonância entre os canais áudio / vídeo soma-se a
integração entre tempo e espaço – subdimensões da extensidade –, revelando
a estratégia de sincretização. Se tomarmos, por exemplo, o fechamento,
veremos que ele está presente ao mesmo tempo no áudio (diminuição da
música e aplausos/ unicamente a voz do apresentador) e no vídeo (fechamento
do foco). O fechamento promove, então, contenção espacial (foco fechado)
somada ao tempo, através da desaceleração. No enunciado em análise, é
ainda possível notar que há uma euforização do eixo: abertura + aceleração+
apreensão, que fica evidente na saturação de elementos e no ritmo acelerado,
101
reiterando, assim, no PE os efeitos tensivos de preenchimento e movimento.
Pode-se perceber essa ênfase pela observação da continuidade do programa,
que retoma as categorias presentes antes da entrada do animador. Ele passa a
figurar no centro da cena, ocupando o centro do campo de presença, e usa
como estratégia a regulação da alternância entre tensão / relaxamento. Ao
mesmo tempo em que incentiva e promove a movimentação e a empolgação
(tensão), acalma a platéia para tomar a palavra. A famosa embregem de
pessoa: “O Silvio Santos, fala ou não fala!” é projetada como uma das
estratégias de relaxamento, diante de uma ruidosa platéia. Vale ainda ressaltar
que o controle exercido se dilui na interação íntima que o apresentador mantém
com o auditório, por meio do efeito de aproximação, concretizado no
tratamento sem comedimentos ou entraves.
No primeiro momento da seqüência temporal analisada, tem-se um
andamento rápido regendo a duração, a temporalidade é regida pelo foco com
andamento acelerado, isso ocorre tanto no áudio (sonoridade em andamento
rápido), quanto no vídeo (movimento acelerado de câmera, efeito intermitente
de luz). O elã que rege a temporalidade é o da brevidade e o que rege o
andamento, o da rapidez. A cena é curta (breve) e a rapidez acelera-se
continuamente. No marco temporal dois, que é o momento de maior
intensidade, marcado pela entrada do apresentador, há uma descontinuidade
rítmica. O andamento é desacelerado e a cena passa a ser regida pelo
esquema de apreensão. No áudio, somente a voz do apresentador ou a voz e
um fundo musical baixo. A amplidão sonora cede lugar à concentração. No
vídeo, a imagem do apresentador em close no centro da tela substitui a
102
dispersão imagética de antes. Nesse instante é possível apreender melhor os
detalhes.
Vê-se, então, que no percurso que compreende o intervalo entre esses
dois marcos temporais vai-se da dispersão à concentração e isso se dá
sincreticamente, por meio da consonância entre os canais sensoriais áudio e
vídeo. O elã da rapidez, do deslocamento, da brevidade e da tonicidade passa
ao de lentidão, longevidade, repouso e atonia.
O terceiro momento, da continuidade do programa, realiza-se através da
recuperação de parte da tonicidade, o que é bastante justificável, já que do
contrário o prolongamento do repouso levaria ao tédio e, por outro lado, a
manutenção de uma acentuação tônica tão elevada implicaria em uma
“saturação opressora ou obsessiva”, para utilizar a expressão de Fontanille (cf.
Fontanille, 2007, p.126). A estratégia adotada na continuidade do programa é
justamente o equilíbrio e alternância entre tensão e relaxamento, já que se
busca a captura e a fidelização do sujeito.
Assim, vemos que a consonância entre canais de áudio e vídeo, aliada
aos efeitos do PC e aos mecanismos de interação, cria uma concomitância
ponto a ponto, que imprime um modo de operar a sincretização no enunciado
analisado. No PC, pode-se considerar que a concomitância facilita a
compreensão e é reforçada pela repetição, pelo conhecido, pelo habitual.
Postulo, então, que a um sincretismo por concomitância se opõe um
sincretismo por discrepância, mais presente na videoarte ou no cinema, por
exemplo. O polêmico filme “Maria Antonieta” (Marie Antoniete, Estados Unidos,
2006), de Sofia Copolla, chamou atenção por narrar a vida de Maria Antonieta
103
– na ingenuidade dos quatorze anos de idade, ao ser levada à opulenta corte
francesa, para um casamento arranjado – conjugando tomadas do castelo e
momentos bucólicos da princesa, com uma trilha sonora que vai do rock à
música eletrônica, passando pelo punk. O insólito provoca estranhamento,
característico do efeito estético. Na TV, a exploração do sincretismo por
concomitância gera uma certa obviedade, como é bastante comum em
matérias sobre esportes radicais que via de regra apresentam uma trilha
sonora de rock. Entretanto, também é possível assistir a uma jogada brilhante
de futebol, acompanhada por um tema famoso de balé, criando assim uma
novidade e provocando o riso. Os programas informativos esportivos buscam,
em alguns momentos, adotar a estratégia do novo, do diferente, através de
trilhas sonoras, paráfrases para narrativizar jogadas ou percursos de vida de
algum atleta, chamadas com títulos intertextuais. Assim, o sincretismo por
concomitância é marcado pela “reiteração”, pela concordância enquanto o
sincretismo por discrepância é constituído no “contraponto”. Lucia Teixeira
desenvolveu as noções de “reiteração” e “contraponto” para analisar a relação
entre quadros e títulos nas artes plásticas. A autora mostra como os efeitos de
iconicidade – em que se busca aproximar a representação de uma imagem do
mundo – e de plasticidade – procedimento que confere à pintura seu caráter de
pintura, sem se preocupar prioritariamente com a representação – se
constroem na relação entre interação e contraponto (Cf. TEIXEIRA, 2001, p.
415-425).
A relação, portanto, entre títulos e pinturas pode ocorrer como contraponto ou como reiteração. No primeiro caso, desestabiliza-se o sentido da pintura, marcando-se a tensão entre o icônico e o plástico; no segundo, reforça-se ou dilui-se o sentido icônico. (TEIXEIRA, 2001, p. 418)
104
O contraponto marca a desestabilização, o desvio, como ocorre no
sincretismo por discrepância. Já na reiteração se acha o reforço, a estabilidade,
como no sincretismo por concomitância. Teixeira demonstra ainda que “se
pensarmos na oposição extensidade/intensidade (cf. TATIT, 2001), a reiteração
é o extenso e o contraponto, o intenso” (TEIXEIRA, 2001, p.418). Assim como
acontece no sincretismo por concomitância, em que se emprega a lógica
implicativa (previsível) e no sincretismo por discrepância, a lógica concessiva
(inesperado)7.
2.6.1. Do caos à ordem – entre extensidade e intensidade
Após a cena inicial dos programas, com a entrada do animador, que
exerce o controle, segue-se logicamente a continuidade do espetáculo. Assim,
depois de um momento de intensidade marcado pela aceleração e
ascendência, tem-se uma descendência, um retorno ao fluxo contínuo, ao
conforto do conhecido. Entretanto, nos programas de auditório liderados por
Silvio Santos, a extensidade é marcada por constantes idas e vindas que no
PC oscilam entre os pólos do controle e da empolgação. Pode-se afirmar que a
justa medida de variação entre esses pólos garante a audiência, pois influencia
no controle da atenção. Para isso, ajustam-se as estratégias de tempo e
7 Para tratar da questão da concessão e da implicação Zilberberg no artigo “Síntese da gramática tensiva” serve-se do percurso: /hermético/ fechado /aberto/ escancarado/, para mostrar que para além da oposição / aberto/ e /fechado/ ainda poderiam ser geradas entre um subcontrário e sobrecontrário a oposição /fechado/ e /hermético/, ou seja, entre o que se pode abrir e o que não se pode abrir. Ou entre /aberto/ e /escancarado/, o que se pode fechar e o que não se pode fechar. A implicação, então, o esperado produziria sintagmas do tipo motivado: fechar o aberto e abrir o fechado. Já a concessão trabalharia com a oposição entre aquilo que se julga irrealizável e a possibilidade de sua realização, assim: embora seja hermético eu o abro. A lógica implicativa é representada por (se...então) e a concessiva por (embora...). Segundo Zilberberg passa-se da “ordem enfadonha da regra para a ordem tonificante do acontecimento” (cf. Zilberberg, 2006, p.197).
105
espaço, a fim de que não haja uma morosidade excessiva que possa levar ao
tédio, e conseqüentemente, ao desinteresse, nem uma velocidade tão intensa
que deixe escapar informações e detalhes importantes.
As relações espaciotemporais, embora os programas tenham o set de
gravação estruturado apenas na divisão palco vs platéia, e o tempo seja o do
agora da transmissão, podem ser organizadas de muitos modos, criando
efeitos de sentido variados. O espaço do aqui e o tempo do agora podem
sofrer alargamentos capazes de provocar uma verdadeira elasticidade
espaciotemporal. Em P3, por exemplo, a necessidade de apresentar uma
narrativa da vida dos partcipantes promove através de debreagens e
embreagens efeitos de encaixamento de lá por aqui, de então por agora.
Observemos o quadro com uma parte da seqüência de entrada do cantor
Wando:
VISUAL VERBAL ESTRATÉGIAS EFEITOS
SILVIO: Vamos ver quem é o nosso primeiro convidado!
Visual: close no apresentador
Verbal: locução verbal no presente.Uso da 1ª pessoa do plural.Uso do pronome possessivo no plural.
Aproximação com o espaço da enunciação “aqui” e do tempo “agora”. Inclusão do interlocutor nas ações.
LOMBARDI: Wando é mineiro de Cajuri, mas adotou...
Visual: corte da imagem de Silvio e inserção imediata do close de uma foto de Wando, ocupando a tela inteira.
Verbal: uso do presente gnômico e do pretérito perfeito.
O momento da referência é um sempre, geralmente usado nas definições.
Não-concomitância, anterioridade ao momento de referência.
106
...O Rio como sua cidade...
Visual: Superposição de uma foto do Rio à foto de Wando.
Concomitância entre o verbal e o visual, palavra Rio e imagem do Rio (iconicidade).
...com trinta e cinco anos de carreira seus maiores sucessos foram “Moça” e “Fogo e paixão”...
Visual: Imagem de uma apresentação de Wando.
Verbal: música Fogo e Paixão, interpretada por Wando.
Uso do pretérito imperfeito
Concomitância entre verbal e visual. Wando canta a música no mesmo momento em que o narrador fala sobre ela.
Fato durativo, contínuo no passado.
...Em todo este tempo, ele gravou 25 discos e um DVD, que venderam 15 milhões de cópias...
Visual: Imagens de capas de discos de Wando vão aparecendo uma a uma, preenchendo a tela.
Verbal: passagem do tempo, pretérito perfeito e pretérito imperfeito
O visual constrói a grandiosidade da obra de Wando.
Ação anterior ao momento de referência, aspecto acabado.
A venda dos discos – fato durativo
A descrição dessa parte do programa revela algumas debreagens e
embreagens internas, que vão se encaixando e instaurando outros tempos e
espaços, embora todos sejam atualizados no enunciado. Quando o
apresentador chama o público para ver o convidado, poderia aparecer uma tela
dentro do set de gravação, mas pelo contrário o filme ocupa todo a tela,
havendo um apagamento das marcas de projeção. É impossível, inclusive,
saber de que modo o auditório que está ao vivo na gravação vê as imagens. O
marco referencial da enunciação aqui e agora funciona como o englobante de
todos os demais espaços e tempos, que são englobados, através de
estratégias simultâneas entre verbal e visual. O exagero da coincidência, como
por exemplo, falar da cidade do Rio e mostrar imagem do Rio busca guiar
passo-a-passo a interpretação do enunciatário. Não há implícitos, nem não-
107
ditos. Não há margem, nem tempo para reflexão. A velocidade e a reiteração,
que exacerbam de informações, são especificidades do modo de presença do
audiovisual. Basta pensarmos, no caso do cinema, na rotulação pejorativa que
sofre o cinema americano em oposição ao cinema europeu. O primeiro, de uma
velocidade por vezes incômoda, é tachado de um cinema sem conteúdo, para
assisti-lo não é preciso pensar, apenas receber passivamente o show de
imagens em movimento. Já o segundo, marcado pela lentidão, que desagrada
uma parte dos telespectadores, recebe a marca de “cinema-cabeça”, isto é,
aquele que faz pensar e refletir.
Na continuação de P3, após a apresentação do filme com a trajetória de
Wando, projeta-se de imediato o close no apresentador e ouvem-se muitas
palmas. Volta-se à contenção, ao controle, ou seja, à extensidade. Percebe-se
que, mais do que uma passagem da intensidade à extensidade, há uma
oscilação dinâmica de um pólo a outro. O animador, então, chama o
participante e este faz a apresentação de seu grande sucesso. As bailarinas do
início do programa voltam à cena, a luz recebe o mesmo tratamento de antes,
a música toca novamente num volume alto, muitas palmas e coral da platéia,
num outro retorno à intensidade. Além disso, projeta-se uma faixa na parte
inferior da tela, contendo a letra da música executada, de modo a guiar o
comportamento do telespectador para que cante a música “junto”, “ao mesmo
tempo” que o intérprete. Reiteram-se as linguagens, pois ao som da música é
somada a sua letra, simultaneamente, mobilizando-se visão e audição, em
torno de um mesmo conteúdo, há aqui novamente marcas de um sincretismo
por concomitância. Essa estratégia de projeção de tarjas e quadros com
inscrições sobre a tela da TV é uma tendência atual, largamente utilizada em
108
várias situações. Utilizam-se diferentes canais de expressão exacerbando a
informação, através da saturação. Mais uma vez o intuito é fisgar a atenção e
atender ao público disposto ao relaxamento. Vê-se que há uma passagem
gradual do modo da apreensão regido pela desaceleração para o foco regido
pela aceleração.
Mais especificamente em P1 e P3, a organização espacial ditada por
todos os elementos do PE recebe um enquadramento específico da câmera
que colabora para a dinamicidade entre a intensidade e a extensidade. Com
isso, vê-se o predomínio da focalização em ângulo plano (horizontal) do
apresentador e da platéia. Tomadas do alto e em movimento aparecem mais
no momento das atrações. Efeitos de câmera aproximam apresentador e
público, através da utilização do plano médio (da cintura para cima) e do plano
próximo (ombros e rosto). O apresentador, quando se dirige ao público, ocupa
exatamente o centro da tela, olhando diretamente para a câmera. Há então,
através da aproximação da imagem, da direção do olhar, de gestos como
apontar com o dedo, da entonação vocal e dos conteúdos das falas, uma forma
de interação por aproximação, dela resultando a participação deste “tu”, para e
com quem se fala. Implanta-se, nesse momento, o modo da apreensão, e uma
espacialidade fechada, promovendo a aproximação, na qual é possível
perceber mais os detalhes como olhar, gestos, entre outros.
Em P2, algumas ocorrências bastante interessantes criam o efeito de
elastização do tempo e do espaço. Num certo momento do programa, entre
uma jogada e outra, o apresentador chama o narrador em off: “Lombardi, não é
você, Lombardi?”. Lombardi, então, narra uma das vantagens do carnê do baú:
“Quando você compra o carnê do baú, no final de todos os pagamentos, você
109
retira tudo o que pagou em mercadorias da mais alta qualidade...” A narração é
acompanhada pela projeção das imagens da loja lotada de pessoas que
passeiam por corredores repletos de fogões, geladeiras, entre outros
eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Observamos, então, que o espaço do lá é
debreado no interior do enunciado e com isso temos reforçados efeitos de
realidade e de referente. O episódio das pessoas retirando as mercadorias é
presentificado no interior do programa, que reconstrói o espetáculo. Com efeito,
há aqui a abertura do eixo da espacialidade que se transpõe do set de
gravação (palco/platéia) para a loja do Baú cheia e movimentada.
Em outra parte do programa, o animador chama o narrador em off para
apresentar uma propaganda sobre um novo programa que estreará em breve.
O narrador mostra que a atração chamada “Ídolos” foi sucesso em vários
países. Aparecem cenas do programa na Inglaterra, Estados Unidos,etc. Uma
inscrição em letras azuis sobre a tela, acompanhada de narração em tom
enfático mostra o seguinte texto: “aqui não vai ser diferente”. Aparece a vinheta
do programa e o narrador diz: “Vem aí, Ídolos. A voz de uma nova estrela, em
breve!” Com esta descrição, é possível notar que os programas não só
introduzem acontecimentos que marcam a anterioridade entre o momento do
acontecimento e o momento de referência, como no caso do exemplo de P3,
mas preparam o enunciatário para acontecimentos que se instauram numa
posterioridade, isto é, textualizado nas expressões “vem aí” e “em breve”. Além
disso, existe um jogo entre a projeção espacial que se distancia da enunciação
através do lá, representado pelos países onde o programa já foi exibido e o
“aqui”, que é inclusive textualizado. A categoria enunciativa do “aqui”,
entretanto, faz referência a dois lugares: o Brasil e a emissora SBT. Com isso,
110
qualifica-se positivamente a programação do canal, por portar um programa
que já fulgurou em países desenvolvidos. Além disso, narrativiza-se a ação de
um sujeito que torna o outro competente para realizar a performance de assistir
a uma programação “moderna”, do primeiro mundo em seu próprio país, que
conseqüentemente, também se torna moderno. Tais estratégias dinamizam o
enunciado e remetem a uma questão mais global, qual seja a inserção dos
programas num conjunto mais amplo, o da programação, que deve aparecer
como coerente e ao mesmo tempo atrativa. A espacialidade passa a ser regida
pela posição da exterioridade, concretizada pela modernidade, pelas
novidades. Assim, torna-se mais atrativo o espaço interior do programa. Já a
temporalidade expande-se para uma posterioridade, que pretende despertar o
interesse do enunciatário pelo que está por vir. Percebe-se que os eixos da
temporalidade e da espacialidade são esquematizados tensivamente nas
seguintes direções:
Anterioridade posterioridade
Interioridade exterioridade
A estratégia de uma busca pela modernização através da importação de
gêneros e formatos está presente no SBT, que a utiliza a seu favor. Uma
matéria publicada no site do Observatório da Imprensa diz8:
8 Matéria: "O limite da cópia", copyright O Estado de S. Paulo, 4/11/01. Publicada em www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/.
Acessado em: 26/03/08
111
O SBT enfrenta uma série de processos ligados a direitos autorais envolvendo sua programação. Mesmo assim, mantém como prática, há muitos anos, incorporar formatos de atrações produzidas em outros países sem pagar por isso.
As viagens de Silvio ao exterior já são até conhecidas por isso. O homem do Baú viaja constantemente para Miami e Los Angeles, dá uma olhada no que estão fazendo na TV lá fora e volta cheio de novidades.
Assim, o SBT constrói a imagem do canal das “novidades”, embora
ainda aposte largamente nos tradicionais programas de auditório. Do ponto
de vista da programação como um todo, os programas de auditório possuem
um caráter metonímico do eixo da extensão, uma vez que são eles o conforto
do conhecido, a marca registrada do canal, embora busquem através de
várias estratégias incluir o novo, o intenso, a surpresa. De certa forma, o
equilíbrio entre a intensidade e a extensidade é bem sucedido, visto que o
Programa Silvio Santos ainda garante bons pontos de audiência.
Outra questão que merece ser destacada diz respeito à seqüência
final dos programas. Elas são repletas de elementos que desempenham a
função de conectores, quer com outros programas da emissora, quer com o
próximo programa de série. P1 e P3 preparam o gancho para o outro
“O Observatório da Imprensa é uma iniciativa do Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e projeto original do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É um veículo jornalístico focado na crítica da mídia, com presença regular na internet desde abril de 1996 (veja aqui a edição nº 1). Nascido como site na web, em maio de 1998 o Observatório da Imprensa ganhou uma versão televisiva, produzida pela TVE do Rio de Janeiro e TV Cultura de São Paulo, e transmitida semanalmente pela Rede Pública de Televisão (confira a grade horária no site do programa).”
Publicada em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/historia.asp
Acessado em: 06/12/2008
112
episódio, no qual mais alguns artistas serão selecionados. Expressões como
“não perca o próximo programa” são muito comuns. Além desses aspectos é
bastante interessante perceber que a busca pela fidelização do público se
estende para outros meios como a Internet e o telefone. Assim, o programa
acaba, mas as ações de “votar”, “eleger”, destinadas aos telespectadores,
perduram. Pode-se dizer que tais ações, então, possuem uma temporalidade
em que o momento de referência é mais longo do que o da enunciação, o
uso do gerúndio marca esta relação temporal: “continue votando”, “continue
acessando”.
Uma das cenas finais de P2, é emblemática. Trata-se de um diálogo
entre Silvio Santos e Lombardi:
VERBAL VISUAL SILVIO: Oh, Lombardi, os internautas esperam por você! Lombardi!
LOMBARDI: Legal! Entre no clube da fidelidade pela internet ou pelo telefone. Diga qual é a palavra final e concorra a um Celta 0km toda semana.
AUDITÓRIO: (palmas) Ê...ê...ê...
O chamado “clube da fidelidade” é uma extensão do programa que
expande para um espaço virtual, que pode ser acessado pela internet ou
telefone, e para um tempo da posterioridade, não-concomitante com a
enunciação. O uso do modo imperativo “entre”, “diga” e “concorra”, marca as
ordens, ou melhor, sugestões de atividades que devem ser praticadas num
113
momento posterior ao marco de referência. Pode-se inclusive considerar que
tal estratégia une essa duratividade temporal a uma amplificação da
ambiência, pois:
Desde o advento dos meios eletrônicos, estar na mesma ambiência, no mesmo lugar ou situação não significa, no entanto, comungar o mesmo espaço físico. (FECHINE, 2008, p.135)
Com isso, a ambiência promovida pela interação no momento de
transmissão dos programas prorroga-se para o depois e o lá da conexão ou
da ligação. A chamada da vinheta e mesmo o modo como o apresentador se
despede provocam um retorno à intensidade, através da aceleração do ritmo.
Percebemos que os programas não podem terminar sob o elã da atonia, daí
a concentração da tonicidade nos instantes finais. A intensidade somada à
amplificação da ambiência colaboram na manutenção do estado constante
de participação e envolvimento dos telespectadores.
114
SOB CONTROLE
(Capa da Revista do Anunciante, junho de 1998)
115
3. BAÚ DA FIDELIDADE – ÉTHOS, PÁTHOS E INTERAÇÃO
Nem realidade para além dos bastidores Nem realidade real em quem vê
Mas só real o cenário e os atores Reais como atores, não como gente que cada um é.
Fernando Pessoa
A reflexão do genial poeta português vem exatamente ao encontro de
algumas questões de que pretendo tratar neste capítulo. O contentamento em ter
um tão ilustre interlocutor é tamanho, que eis aí o Pessoa, como mais uma voz a
dialogar nesta tecedura. No entanto, não é de poesia, nem de poetas que vamos
tratar, mas sim da “realidade” ou justamente de sua ausência “para além dos
bastidores”. Conforme a afirmação do poeta vê-se que só há de real “o cenário e
os atores”. Sobre estes últimos necessita-se, agora, lançar um olhar mais detido e
formular algumas indagações.
O veículo TV, com o tipo de programas que promove, atua na construção
dos gostos, sonhos e desejos de seus espectadores. Por ser um meio de
comunicação de massa e, desta forma, construir a grade de programação voltada
ao grande público, a televisão, muitas vezes, manipula, convence e controla a
representação imaginária das pessoas, e trabalha em favor de uma lógica de
mercado, na qual luxo, riqueza e sucesso são vendidos como ideais de felicidade,
que se não podem ser atingidos na acromaticidade do cotidiano são alimentados
na colorida hiper-realidade construída e transmitida pelos programas. De que
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modo, no entanto, realizar uma difusão de determinados padrões que se fixem,
resistindo à fugacidade e efemeridade que cercam o homem contemporâneo?
Na análise do Programa Silvio Santos uma questão a ser considerada é a
sua permanência, já que é o mais duradouro programa da história da televisão
brasileira. Essa peculiaridade permite pensar sobre a eficácia do elo estabelecido
com o público, levando-o a permanecer fiel por tanto tempo. Se, como afirma o
poeta, não se pode definir a “realidade real” de “quem vê”, não se pode negar que
“cenário” e “atores” são feitos para serem vistos e se perduram é, justamente,
porque são vistos. Partindo do pressuposto de que todo texto voltado para a
comunicação de massa necessita, prioritariamente, de um público fiel1,
pretendemos pensar mais profundamente no modo de construção do contrato
fiduciário, que “põe em jogo um fazer persuasivo de parte do destinador e, em
contrapartida, a adesão do destinatário” (GREIMAS, COURTES, s/d, p. 184).
Entretanto, para desvendar esse “jogo” é preciso observar os mecanismos
internos de construção do enunciado, o modo de interação instaurado, bem como
o efeito de sentido que dele resulta. Assim, postulamos que todas as estratégias
adotadas na construção desses enunciados estão a priori a serviço do sucesso de
um contrato persuasivo e, dessa forma, é possível esquematizar como se dá a
instauração desse contrato. Postulo que a eficácia do contrato fiduciário
estabelecido no Programa Silvio Santos se deve à adoção do que denominarei de
esquema de fidelidade. Este seria composto de uma determinada forma de
1 A reflexão sobre a necessidade de manutenção da fidelidade do público, principalmente em textos de comunicação de massa, é desenvolvida por Nilton Hernandes (2006) através da postulação do “gerenciamento do nível de atenção”. Para o pesquisador a “fidelização” é uma das etapas do gerenciamento. Aqui postulamos que a fidelidade se apresenta como um esquema.
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interação entre destinador e destinatário, observável nas várias categorias do
discurso. Dessa interação resulta um determinado efeito, que abriga obviamente
vários outros, mas que os põe a seu serviço. Ou seja, o estabelecimento de uma
adesão sólida entre destinador e destinatário, estabelecida em virtude da fé no
dizer-verdadeiro, exige uma série de estratégias que obedeçam a um esquema,
uma espécie de fórmula de manutenção do crer-verdadeiro. Nota-se que, no
corpus em análise, programas de auditório dirigidos ao grande público, a
manutenção do crer se dá preferencialmente através de um “efeito de
participação”, que alimenta a crença na proximidade entre os actantes, e numa
suposta relação de parceria democrática.
A tentativa de formulação de um “esquema” organizador das estratégias
enunciativas justifica-se como etapa do percurso de análise, pois ao conseguir
observar quais esquemas regem as estratégias enunciativas adotadas pelos
textos sincréticos é possível avançar na construção de uma metodologia útil à
análise de qualquer texto que envolva mais de uma linguagem. Para isso, partirei
do exame do regime de interação estabelecido entre os atores da enunciação. No
caso, o regime adotado tem como função colaborar para a garantia da fidelidade
do enunciatário, finalidade primordial de um discurso veiculado por um meio de
comunicação de massa. Especialmente no caso em questão, textos sincréticos
audiovisuais, produzidos para televisão, é necessário ter em mente que o largo
alcance é parte constitutiva do meio, como bem observa Arlindo Machado:
A mais baixa audiência de televisão é, ainda assim, uma audiência de várias centenas de milhares de telespectadores, e, portanto, muito superior à mais
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massiva audiência de qualquer outro meio, equivalente à performance comercial de um best seller na área da literatura. (MACHADO, 2003, p.30)
Então, sendo a TV um meio de massa por excelência, as estratégias
enunciativas adotadas pela grande maioria dos programas objetivam garantir
audiência e, conseqüentemente, permanência no ar. Não raro há casos de
programas que, imediatamente após entrarem no ar, passam por alterações, ou
mesmo saem da grade de programação, o mesmo acontecendo com
apresentadores que modificam horários, temas e até o estilo. É possível lembrar
ainda das telenovelas, que transformam a trama e até as características físicas e
psicológicas de personagens, tudo posto irremediavelmente “ao gosto do freguês”,
ao menos aparentemente.
3.1 – O SBT e a construção da fidelidade
O brasileiro é um povo humilde. A televisão é a sua única diversão. Esse povo não quer ligar a televisão para ter aula ou ter cultura. (...) Temos de dar ao povo o que o povo quer. Se for samba, será samba. Se for mulher com pouca roupa, será mulher com pouca roupa.2
Silvio Santos
A afirmação de Silvio Santos busca justificar os conteúdos trabalhados nos
programas de sua emissora, apoiando-se num suposto “querer” dos
telespectadores. No entanto, como ter a exata dimensão sobre o “querer” do
“povo” a que ele se refere? Posta de tal forma, a seleção deste ou daquele
conteúdo ganha um caráter tautológico, ou seja, “o que o povo quer é o que o
2 Disponível em: http://veja.abril.com.br/1750500/p_148.html’ Acessado em: 17/04/2005
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povo quer”. A fala do apresentador provoca uma inversão do programa de
manipulação, no qual o público (destinatário) passa a figurar como manipulador.
Caracteriza-se, assim, o discurso típico do vendedor, ao reforçar a idéia de que o
telespectador é quem manda. No entanto, a relação destinador vs. destinatário, ou
manipulador vs. manipulado3, aqui ilustrada, constitui um dilema. De um lado as
emissoras e suas escolhas por temas, gêneros e formatos, de outro o público,
que, através da audiência, referenda ou recusa o que vê. Entretanto, esse mesmo
público move-se dentro dos limites do que lhe é apresentado, sendo a “escolha”
mera ilusão. O enunciado de Silvio Santos reitera uma “isotopia da liberdade”,
observada em proposições muito comuns como: “escolha o vencedor”, “o
escolhido pelo público”, “artistas que vocês de casa escolherão”. A instalação
dessa isotopia colabora para ancorar o contrato, estabelecido entre sujeitos, no
efeito de “participação”. À medida que o destinatário se sente responsável pelas
escolhas do que será veiculado no enunciado, sai de um estado de passividade e
passa a figurar como um sujeito participante da ação e livre para decidir. Esse
efeito de participação resulta, no entanto, de um determinado modo de interação
estabelecido entre os sujeitos sobre as quais pretendemos pensar ao longo desta
análise.
A constituição do gênero programa de auditório que conjuga prêmios em
dinheiro, atrações musicais, participação da platéia em brincadeiras, entre outros,
3 Utilizo, aqui, os termos manipulador e manipulado para explicitar que trato do percurso da manipulação, no qual se estabelece uma relação contratual entre os actantes destinador e destinatário. Barros explica que: “O percurso da manipulação deve ser entendido, assim, em primeiro lugar , como uma ou mais transformações de estado, mas de tipo particular. Para diferenciá-las das demais transformações, o sujeito operador será denominado destinador e o sujeito dos estados sobre os quais ele age, destinatário.” (BARROS, 2003, p.197)
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tem grande destaque na história da TV por conquistar a adesão do público e bom
índice de audiência:
Os programas que mais aproximam o telespectador da realidade da produção em televisão são os de auditório, pois permitem a entrada do público nos estúdios ou nos locais preparados para a gravação. (SOUZA, 2004, p.93)
Estar ao vivo no momento da gravação colabora para fortalecer o elo entre
destinador e destinatário, tornando-os muito próximos e familiarizados. Esse modo
específico de interação pela proximidade será proporcionalmente mais proveitoso,
quanto mais houver adesão por parte do público. Ações como aplaudir, gritar,
vibrar, cantar fazem parte da performance participativa do público, que deve ser
modalizado por um querer-saber participar, e revelam o grau de envolvimento com
o espetáculo. Em contrapartida, o apresentador deve se mostrar competente para
atrair a atenção, divertir e entreter. Habitar, então, efetivamente um espaço e
tempo comum leva a uma comunhão entre artista e platéia, pois ambos estão
fazendo juntos o espetáculo acontecer. Entretanto, o modo de interação por
aproximação, que produz esse efeito de participação, precisa estender-se ao
telespectador, que está em casa, do outro lado da tela.
A questão da interação vem sendo abordada pela semiótica, através dos
trabalhos de Landowski. No artigo Les interations risquées, o autor estabelece
quatro regimes de interação, assim denominados: programação, manipulação,
acidente e ajustamento. Cada um deles é fundado sobre um tipo de relação
definida em função dos possíveis percursos que sujeitos hipotéticos fariam nas
interações que estabelecem no mundo (Cf. Landowski, 2005, p. 39). Os quatro
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regimes se dividem entre os que formam a “constelação da prudência” –
programação e manipulação – e os que formam a “constelação da aventura” –
acidente e ajustamento. Landowski relaciona a cada regime de interação um
regime de sentido. O regime da programação, que se funda na regularidade, diz
respeito ao que é habitual como os rituais, por exemplo. A programação tem como
regime de sentido “o insignificante”, pois a repetição pode levar ao “esvaziamento
do sentido” (LANDOWSKI, 2005, p. 42). Já o regime da manipulação é baseado
na argumentação de um sujeito que busca fazer o outro crer em determinados
valores, logo, é fundado na intencionalidade. O esquema proposto por Landowski
prevê ainda um régime de risque (regime de risco) para cada um dos regimes de
interação. Na “constelação da prudência” há o “regime da segurança”, relacionado
à programação, e o “regime de risco limitado” à manipulação. Já a denominada
“constelação da aventura” é formada pela junção dos regimes do acidente e do
ajustamento. O primeiro é fundado sobre o perigo e tem como regime de risco o
“puro risco” le risque pur. O regime de ajustamento funda-se sobre a sensibilidade,
ou seja, aciona a competência estésica dos sujeitos, e tem como regime de risco a
insegurança. Para Landowski, se por um lado, o regime de ajustamento oferece
mais riscos que a manipulação e a programação, “ele abre em contrapartida
perspectivas mais amplas em termos de criação de sentido” (LANDOWSKI, 2005,
p. 20)4, visto que tem como regime de sentido o “fazer sentido”.
Através dessa esquematização, Landowski busca analisar os percursos
percorridos pelos sujeitos, não só quando estão submersos em dos quatro
4 Citação original em francês: “...il ouvre en contrapartie de beaucoup plus larges perspectives en termes de création de sens”. (LANDOWSKI, 2005, p. 20)
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regimes de interação, mas também na passagem de um regime a outro. O
esquema, portanto, é dinâmico, pois supõe a possibilidade de movimentação dos
sujeitos. Além disso, Landowski chama atenção para os riscos inerentes aos
quatro regimes de interação, como se um pudesse vir a se submeter ao outro:
Vemos, com efeito, que o risco inerente ao regime da manipulação é “cair” na programação, ou seja, passar de um regime relativamente incerto mas que, nessa mesma medida, deixa aberta a possibilidade de efeitos de sentido imprevistos, a um universo mais seguro mas que tende, por força da redundância, ao esvaziamento do sentido e a dissolução na insignificância. Simetricamente o risco do ajustamento é o de oscilar na direção do acidente e do insensato. (LANDOWSKI, 2005, p. 42) 5
Nota-se, assim, a possibilidade de uma dinâmica entre os diversos regimes.
Além disso, pode haver uma espécie de concomitância entre eles, através da
realização de mais de um regime ao mesmo tempo. Os programas em análise, por
exemplo, embora adotem o regime da manipulação, sendo, desta maneira,
dotados de intencionalidade – levar o enunciatário a poder e querer assisti-los –
trabalham também com o regime do ajustamento, já que possuem o apelo ao
sensível, através do emprego dos elementos do PE como luz, cor e som.
É importante ressaltar que essa esquematização, embora emblemática, não
será tomada como base para a investigação proposta pelo presente trabalho, visto
que a análise não busca definir regimes de interação, nem as relações
estabelecidas entre eles, mas sim considera o modo de interação por
aproximação, aqui proposto, como etapa que ajuda a revelar o efeito sobre o qual
5 Segue a citação do original em francês: “On a vu en effet que le risque inhérent au régime de la manipulation est de “tomber” dans la programmation, c’est-à-dire de passer d’un régime relativement incertain mais qui, dans cette mesure même, laisse ouverte la possibilité d’effets de sens imprévus, à un univers plus sécurisant mais tendant, à force de redondance, vers l’évidement du sens et la dissolution dans l’insignifiance. Symétriquement, le risque de l’ajustement est de faire basculer dans l’accident et l’insensé”.
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se assenta o esquema de fidelidade. Além disso, o modo de interação por
aproximação encontra eco em vários dos regimes propostos por Landowski. Por
exemplo, a aproximação que se constrói na identidade entre enunciador e
enunciatário, provocada pela confiabilidade da imagem de Silvio Santos, remete
ao regime da programação, que se refere ao hábito. A repetição que reforça a
credibilidade, no entanto, é a mesma que leva ao desgaste do sentido. Daí
decorre o emprego de estratégias de fidelização do público, a fim de não correr o
risco de perdê-lo de vista. Essas estratégias, no entanto, podem remeter tanto ao
apelo ao sensível, através do regime do ajustamento, quanto ao uso da
argumentação, enquadrando-se ao regime da manipulação.
Voltando à caracterização do modo de interação por aproximação,
implantado nos programas de auditório, é possível perceber que, mesmo sendo o
programa gravado, é necessário manter um “efeito de ao vivo”, apagando-se
qualquer marca de distanciamento entre o tempo da produção e o da recepção:
O que muitos programas de TV gravados buscam é, através de
mecanismos de linguagem – estratégias de continuidade –, dar ao espectador a impressão de que estão acontecendo junto com a programação. (FECHINE, 2008, p. 28)
Para exemplificar uma dessas estratégias basta relembrarmos expressões
como: “Não perca ainda hoje, logo após os comerciais” muito utilizadas tanto nos
programas transmitidos ao vivo, quanto nos gravados. Notemos que nas falas do
apresentador dirigidas ao público (platéia e telespectador) há, corriqueiramente, o
emprego do modo imperativo: “não perca”, “assista”, “vote”, “ligue”.
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Além dessas estratégias de organização sintática do discurso, a
instauração de um modo de interação que se funda na proximidade exige
estímulos de ordem sensível, a fim de garantir entre os envolvidos a fidelidade.
Landowski, ao estudar a “teatralização” como uma das formas de significação,
afirma que:
Nós nos reconhecemos mediante uma conjunção com o outro: espectadores sentados em algum lugar da sala e olhando o que diante de nós se representa de nós mesmos, estamos então presentes também em cena, pelo menos desde o momento em que começamos a nos ‘identificar’ com os atores que vemos atuar ali. (LANDOWSKI, 2002, p. 187)
Assim, é possível notar que é adotado um regime de identificação,
construído também em função da adoção do gênero em questão. Podemos
remeter ao capítulo 1, no qual se caracterizou a temática adotada no gênero
programa de auditório para voltar a mencionar que a manipulação é feita não só
pelos conteúdos veiculados – alegria, sucesso, vitória – mas também pelos
estímulos de ordem sensível, postos no PE visual e sonoro.
Além do que já foi exposto, é preciso mencionar ainda que o SBT, em que
os programas de auditório são uma marca, torna-se um canal sui generis em
relação à adoção de jogos de azar. Estes são traços recorrentes da programação
e se consolidam como parte das estratégias de manipulação para obtenção de
audiência e, sobretudo, de obtenção de lucros da emissora. Tal faceta torna o SBT
uma emissora muitas vezes autofinanciável, que, ao invés de vender espaço para
propagandas, veicula e anuncia os próprios produtos. Isso ajuda a construir uma
identidade do canal e delinear o enunciatário que com ele se identifica.
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Os jogos são por definição, caracterizados por um componente lúdico, ou
seja, aliam a brincadeira, o divertimento, à aquisição de prêmios. Com isso, vemos
uma estratégia de passionalizar o enunciatário pelo desejo de vencer e também
de se divertir. Isso é construído no SBT, por meio de uma espécie de venda
casada, na qual a ação de assistir é atrelada à ação de comprar produtos, o maior
deles sendo o “carnê do baú”. Esse consórcio da sorte partiu de uma idéia de
Manoel de Nóbrega, transmitida em 1959 a Silvio Santos, que a aprimorou e
ampliou (cf. SILVA, 2000, p.37). Vejamos o texto de apresentação do Baú, que
consta do site oficial do SBT:
Há 50 anos no mercado varejista, o Baú da Felicidade firmou-se entre os clientes, unindo credibilidade com a imagem de Silvio Santos a uma fórmula original de comercialização de produtos para o lar. Sem similar no mercado, o produto Carnê de Mercadorias, além de um mecanismo simples de incentivo à poupança representa a democratização do crédito e a possibilidade de adquirir bens de forma programada.
Representa, também, a chance de mudar a vida de um cliente que pode ganhar prêmios em sorteios, concursos e promoções especiais e também nos programas atrelados ao SBT.
É uma fórmula consagrada, que já conquistou a simpatia de milhões de pessoas.6 (grifos do autor)
Um dos modos de promoção da identificação entre o público e os
programas é a popularidade do apresentador, construída em pequenos gestos,
que vão da participação numa brincadeira, misturado ao público na platéia, à
assunção de um papel protetor e condescendente, ao prometer mudança de vida
dos participantes pela aquisição de bens de consumo. Assim, num procedimento
circular e cumulativo, quanto mais popular for o apresentador mais se promove a 6 Disponível em: http://www.bau.com.br/site/content/conheca/default.aspx Acessado em: 22/11/08
126
identificação e quanto maior a identificação, mais o apresentador se torna popular.
No caso em análise, a popularidade cresce com a extensidade dos programas de
Silvio Santos, pois com isso ele se torna conhecido de várias gerações de
brasileiros. Essa identificação, possível pelo regime de interação entre a platéia e
os atores que atuam diante dela, é responsável pelo sucesso, a permanência dos
programas, e revela a chave do contrato de fidúcia implantado discursivamente
entre os sujeitos que interagem.
Com efeito, o papel de homem do povo atribuído a Silvio Santos aparece
atrelado à ação de ser popular, ou seja, conhecido e admirado por seu público.
Isso se torna possível graças a um jogo de simulação e dissimulação entre esses
papéis. Simula-se a proximidade entre apresentador e platéia e, com isso,
dissimulam-se intenções como a venda de produtos, ou a busca desmedida pela
audiência, que acabam por se dissolver sob o disfarce do entretenimento e da
alegria, percursos temáticos reiterados ao longo dos programas.
3.1.2 A interação por aproximação
Nas aberturas dos programas que compõem o corpus, o apresentador, que
entra triunfalmente, passa a manter o controle da situação, interage
profundamente com o público, que se divide em dois tipos: o que assiste ao vivo à
gravação e aquele que assiste ao programa gravado em casa pela TV. O primeiro
tipo de público constitui a platéia que participa em presença do evento; o segundo
é o telespectador, aquele que é chamado a participar por diversas formas de
interação. A própria necessidade de diferentes nomeações nos aponta para a
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especificidade do tipo de enunciado em análise, uma vez que ele propicia
maneiras diferentes de interação. Com isso, temos um modo de “interação cara-a-
cara”, por parte dos destinatários que se encontram no estúdio no momento da
gravação, e um modo de “interação mediada”, a dos telespectadores. É
interessante perceber que a existência de um auditório em presença na gravação
de antemão contribui para o efeito de participação, uma vez que se projeta no
narratário (platéia) uma imagem fiel do enunciatário. Essa identificação entre um
aqui (o estúdio) e um lá (a casa) reforça a verdade da cena narrada, visto que uma
parcela do auditório tem supostamente acesso à totalidade do que é dado a ver.
Enquanto isso, o telespectador só vê o que é focalizado pelo olho da câmera,
embora tenha também a ilusão de compreender a totalidade, uma vez que por
extensão faz parte do mesmo auditório. A interação destinador-destinatário é
então controladora e cerceadora por parte de quem detém o controle, mas se
assenta sobre o princípio de uma participação igualitária. A existência de
“animadores de auditório”, que atuam no estúdio, guiando as ações e reações da
platéia, é um bom exemplo desta relação. Podemos melhor observar a estratégia
do controle neste trecho da entrevista de Roque (Gonçalo Roque), organizador de
auditório do SBT desde o surgimento do canal:
Na época dos auditórios eu fui o primeiro. Lidar com o auditório, é no gogó mesmo. Você antes bate um papinho com a turma... Pede para a turma: "Olha quando entrar o fulano, vamos aplaudir". Eu fui uma pessoa muitas vezes contratada, quando tinha uns cantores que estavam meio caídos... então eles vinham para o programa e eu levava a mulherada lá pra gritar para eles.7
7Disponível em: http://www.tudosobretv.com.br/histortv/depo/roque/ Acessado em: 19/07/2006.
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No momento da entrada do apresentador, há uma ênfase na utilização do
código verbal, que até então só tinha aparecido com o coro a gritar o nome do
animador. O jogo entre luz e música dá lugar a uma relação entre o verbal (falas
do apresentador) e tomadas de câmera. Assim, todas as vezes em que o
apresentador se refere à platéia a câmera a focaliza. Vejamos: ao mesmo tempo
em que ouvimos a frase: “Nós hoje, com satisfação estamos recebendo a
caravana do Jardim Canaã”, proferida pelo apresentador, temos a tomada de um
grupo de pessoas aplaudindo e vibrando. O som da voz do apresentador, a
imagem das pessoas, os gritos e aplausos em concomitância criam um clima de
festa, onde tudo é repleto de empolgação. Vale ressaltar que esse efeito é criado
pela reiteração de procedimentos das diversas linguagens, que convergem
formando o enunciado sincrético.
O posicionamento do apresentador, no meio do palco e situado bem em
frente à câmera faz com ele se dirija diretamente ao público, construindo o que
Yvana Fechine chama de “modelo enunciativo interpelativo”, característico da
linguagem televisual. Por meio dele, o enunciador:
...reconhece um interlocutor do outro lado da tela, seja por meio de um olhar dirigido diretamente à câmera ou por meio de uma menção verbal direta ao espectador... (FECHINE, 2001, p.394)
Em P3, por exemplo, isso fica claro, num dos momentos em que Silvio
Santos dirige-se diretamente ao público que assiste ao programa pela TV, e além
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de dirigir o olhar à câmera, aponta com o dedo, no exato momento em que
pronuncia a palavra “vocês”:
Vamos continuar perguntando aos telespectadores, quem será que vai gravar o CD do SBT? Quais sãos os três artistas que vocês de casa escolherão, quais os três artistas que receberão a coroa de ouro? (P3)
Assim, nos programas em análise, tanto o auditório quanto os
telespectadores são convocados a participar durante todo o tempo. Em P1, um
aparelho posto no palco para medir a intensidade de palmas da platéia - um
“medidor de palmas’” – compõe uma das notas dos participantes, juntamente com
as notas atribuídas pelos jurados. Constrói-se, então, um efeito de objetividade,
em face da utilização de “recursos científicos”, que garantem a precisão do
julgamento feito pelo público. Outrossim, em P3, duzentas pessoas da platéia
com um aparelho específico votarão, a fim de escolher o melhor participante do
dia. E os telespectadores, através do telefone ou do site, vão eleger o artista que
irá para a final. Durante as apresentações dos artistas, aparece no canto inferior
esquerdo da tela um retângulo com o nome do artista e no canto inferior direito
outro retângulo com o verbo no imperativo “vote”, acompanhado ora do número do
telefone, ora do endereço eletrônico do SBT. Em P4 a repetição da pergunta “topa
ou não topa?” dirigida à platéia é uma das estratégias de participação, assim
como em P2 o diálogo cantado entre Silvio e a platéia simula a participação na
tomada de decisão do apresentador: “(SILVIO) O que é que a gente faz com ela?
(PLATÉIA) Dá o dinheiro pra ela!”. Com isso, percebemos que, nos programas,
seja aplaudindo, respondendo aos coros propostos na platéia, seja em casa,
votando por telefone ou pela internet, o fato é que o enunciado utiliza uma série de
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estratégias para que o público-alvo se sinta parte integrante da cena enunciada.
Para simular essa participação são utilizados como procedimentos o
“palmômetro”, que mede a intensidade de palmas, o aparelho que registra os
votos da platéia que está ao vivo e ainda a contagem dos votos feitos pelo
telefone e internet. Tais procedimentos buscam conferir uma objetividade ao
processo de participação, concretizado na ação de votar, construindo a idéia de
igualdade de oportunidades, visto que, como numa democracia,vence quem
obtiver maior quantidade de votos.
As estratégias utilizadas para a construção de um efeito de participação
resultam de uma determinada forma de interação, que neste caso é a
aproximação, obtida por procedimentos do PE, aliados a determinados
procedimentos do PC.
Tomadas de câmera que aproximam o apresentador e telespectador, por
exemplo, e expressões como “minhas colegas de trabalho”, colaboram para a
instauração de uma interação por aproximação e, por conseguinte, para a
construção do efeito de participação. A forma de interação e o efeito por ela
proporcionado, juntos, formam o que chamaremos de “esquema de fidelidade”,
adotado neste tipo de programa.
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ESQUEMA DE FIDELIDADE
Títulos e slogans têm também importante função nesse esquema. No caso
de P1, no título Gente que brilha já se realiza, por meio da palavra “gente”, uma
aproximação com o público: pessoas comuns, “artistas profissionais e amadores”
podem de um momento para o outro alcançar o sucesso, brilhar! É interessante
perceber que essa gente e sua arte é julgada por uma equipe de jurados, que,
embora não especializada, é ao menos referendada pela fama. Décio Pitinini,
Sheila Melo (ex-integrante do grupo “É o tchan”), Pedro de Lara, entre outros, são
dotados de um “saber-fazer” para julgar as pessoas comuns, que neles se
INTERAÇÃO
EFEITO DE PARTICIPAÇÃO
APROXIMAÇÃO destinador destinatário
RECURSOS � Expressões verbais em primeira
pessoa; � Verbos no imperativo; � Apelo ao sensível (luz, música,
som, cor); � Tomadas de câmera
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espelham ou ao menos os respeitam. Já em P3, o slogan “quem foi rei não perde
a majestade” sugere um resgate do brilho de artistas atualmente desprestigiados
pela mídia, mas nunca “desauratizados”8. Sendo fiel à interação por aproximação,
o programa apresenta vídeos em que tais artistas são focalizados em situações
cotidianas como jantares em família e relação com filhos e cônjuges.
Esse tipo de estratégia pode ser compreendida, teoricamente, através do
conceito de debreagem, que é o mecanismo por meio do qual pessoas, espaços e
tempos são instaurados no enunciado. Uma das facetas da debreagem, como
mostra Fiorin, consiste em “disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da
enunciação e em projetar no enunciado um não-eu, um não-aqui e um não-agora”
(FIORIN, 2001, p. 43), embora estes possam se passar por um – eu, aqui, agora –
através da debreagem enunciativa, ou, pelo contrário serem substituídos por um –
ele, lá, então – o que caracterizaria a debreagem enunciva. Os efeitos de sentido
obtidos por meio de tais procedimentos são o efeito de subjetividade, através de
uma aproximação com a enunciação, na debreagem enunciativa, e o efeito de
objetividade, através do distanciamento projetado pela debreagem enunciva:
A debreagem enunciativa e a enunciva criam, em princípio, dois grandes efeitos de sentido: o de subjetividade e o de objetividade. Com efeito, a instalação dos simulacros do ego – hic – nunc enunciativos, com suas apreciações dos fatos, constrói um efeito de subjetividade. Já a eliminação das marcas de enunciação do texto, ou seja, da enunciação
8 O conceito de aura, tal como formulado por Benjamin, serve-me aqui para identificar o resíduo de fama que envolve esses artistas. Como se, uma vez famosos, não fosse mais possível voltar a um estado inicial de não-fama, uma vez que a evocação das imagens guardadas recupera a fama de outrora. Diz Benjamin: “Se chamamos de aura às imagens que, sediadas na mémoire involontaire, tendem a se agrupar em torno de um objeto de percepção, então esta aura em torno do objeto corresponde à própria experiência que se cristaliza em um objeto de uso sob a forma de exercício. Os dispositivos, com que as câmeras e as aparelhagens análogas posteriores foram equipadas, ampliaram o alcance da mémoire volontaire; por meio dessa aparelhagem, eles possibilitam fixar um acontecimento a qualquer momento, em som e imagem, e se transformam assim em uma importante conquista para a sociedade, na qual o exercício se atrofia.” (BENJAMIN, 1985, p.137)
133
enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas com enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade. Como o ideal de ciência que se constitui a partir do positivismo é a objetividade, o discurso científico tem como uma de suas regras constitutivas a eliminação de marcas enunciativas, isto é, aquilo a que se aspira no discurso científico é construir um discurso só com enunciados. (FIORIN, 2001, p. 45)
As possibilidades de uso do recurso da debreagem são múltiplas, pois:
(...) muito raramente os discursos apresentam apenas um tipo de desembreagem9 e de efeito de sentido. O mais comum é que se misturem e confundam dispositivos, produzindo assim uma grande variedade de efeitos de sentido. Três procedimentos são os mais freqüentes, (...) a) desembreagem interna, (...) dá-se a voz, internamente, em primeira pessoa a um ator. (...) Esse tipo de desembreagem produz, no discurso, o efeito de realidade ou de referente, pois reconstrói o espetáculo. (...) b) desembreagens paralelas ou alternadas, (...) o discurso alterna, por exemplo, desembreagens enunciativas e enuncivas (...), c) embreagem, (...) o texto é produzido com desembreagem enunciativa e, sobre ela, como uma espécie de volta, ocorre uma desembreagem enunciva, e vice-versa. (BARROS, 2003, p. 205)
Para construir o efeito de aproximação, no programa Rei Majestade,
ocorrem debreagens paralelas. Isso se dá por meio do corte da cena inicial e da
projeção dos vídeos, gravados previamente, ou seja, num tempo e espaço em
relação de anterioridade à enunciação. Assim vemos que as debreagens vão
sendo encaixadas. Primeiro há o aqui/ agora do programa que está sendo exibido.
Depois o lá/ então dos outros ambientes mostrados. A debreagem muitas vezes é
enunciva, quando é projetado o espaço do lá – a casa dos participantes, a
academia onde fazem ginástica, o estúdio onde gravam suas músicas – entretanto
a narração em off alterna o uso de debreagens enunciativas e enuncivas, como no
exemplo abaixo:
Wando mora num amplo apartamento de cobertura na Barra da Tijuca e adora olhar a paisagem agradável de sua cidade de adoção. É aqui
9 O termo debreagem também pode admite a grafia desembreagem.
134
que o Wando compõe suas novas músicas e revive os grandes sucessos. Além de música, a outra paixão de Wando é a pesca... (P3)
Assim alterna-se o uso do ele (Wando), do lá (o apartamento) com um aqui,
que aparece concomitantemente à imagem do quarto do cantor. O uso do
advérbio marca a aproximação, ao mesmo tempo em que, através das imagens, é
permitida a entrada no espaço íntimo do artista. Além disso, a estratégia de
revelar preferências e gostos dos convidados funciona como um modo de mostrar
que os artistas possuem um cotidiano comum. Se a fama de outrora corre o risco
de afastá-los da realidade do público, a exibição de cenas do dia-a-dia os
humaniza e aproxima.
O efeito de participação, em P3, é também evidenciado pela eliminação do
júri especializado, pois apenas o público tem o poder de escolher os vencedores.
Atribui-se ao público a competência, dotando-o de saberes e poderes. Essa
oportunidade de participação é constantemente convocada e relembrada ao longo
do programa. Afinal é ela quem garante um público fiel e a tão necessária
pontuação no IBOPE. Observemos um trecho de uma fala de Silvio Santos:
Bem, mais uma vez, quero lembrar a vocês do auditório que serão responsáveis pelo artista que neste programa receberá a coroa de prata e vocês de casa que serão responsáveis pelo artista que receberá a coroa de ouro. Aqueles que receberem a coroa de ouro ficarão para as semifinais. Nas semifinais vai haver uma disputa entre aqueles que se apresentaram bem em cada um desses programas. Aí então vocês vão escolher os três que vão gravar o CD do SBT...
Nesse caso é possível observar ainda a distribuição de tarefas específicas
para cada parte do auditório. A platéia elege o melhor da noite e o telespectador
escolhe quem vai para a final. O envolvimento de todo o público é pensado
135
cuidadosamente e cada qual, interagindo a seu modo, executa o papel que lhe
cabe. É necessário destacar ainda o relevante papel da mediação do
apresentador para garantir a aproximação. Na maior parte do tempo ocupando o
centro do palco, a conhecida figura de Silvio Santos utiliza falas e gestos há muito
conhecidos pelo público. Em P3, cada participante trava uma amigável conversa
com Silvio, relembrando fatos antigos, da época em que se apresentava no
programa. Já em P1, o apresentador faz perguntas sobre o trabalho dos artistas, a
vida pessoal, alguma piada ou trocadilho com o nome ou o local de onde vem o
participante. Nos dois programas, instaura-se um clima descontraído e informal.
Ao se relacionar com a platéia ou os telespectadores o comandante da cena
também tenta sempre estar próximo, ser amigável e engraçado. A busca pelo
efeito de humor, no entanto, muitas vezes se dá através de um tom irônico ou
cínico, que é justificado pelo querer-fazer rir, aceito contratualmente por
participantes e pelo público.
A relação apresentador-participantes-auditório é toda ela regida pelo
princípio da aproximação e reforça, por conseguinte, o efeito de participação,
reiterado fortemente com a atuação de todos em cena, cantando, dançando,
aplaudindo, exibindo seus números. Ao telespectador em presença mediada cabe
ainda assistir, acompanhar, escolher, telefonar, acessar. Doar ao telespectador
determinadas responsabilidades, torná-lo capaz, competente e envolvido é um
modo de construção da participação observável, inclusive, em outros programas e
emissoras. Para falar do gênero programa de auditório, atualmente10 os
10 Os dois programas apresentaram tais quadros durante o ano de 2007.
136
programas “Caldeirão do Huck” e “Domingão do Faustão”, ambos da Rede Globo
de Televisão, apresentam quadros que contam com a mesma estratégia. No
primeiro faz-se a eleição de uma atriz iniciante, que como prêmio atuará na novela
das oito, horário nobre da teledramaturgia. No segundo, o quadro “A dança dos
famosos” realiza uma disputa, que tem como objetivo premiar uma dupla
composta de um ator e um professor de dança. Nos dois, à nota dos jurados
soma-se a nota da platéia. Para além da televisão, as emissoras utilizam ainda
como aliada a internet, estendendo aos seus sites as mesmas estratégias. O
modo interativo típico do veículo preenche a lacuna deixada pela TV, que por sua
vez sempre necessitará de outros meios: computador, telefone, correio, para
receber respostas às questões lançadas no ar. Com isso, através da aproximação
com o público e dessa ilusão de participação, os programas de auditório garantem
a fidelidade do público, conquistam adesão e a tão disputada audiência. A
estratégia da chamada TV interativa não aparece só nos programas de auditório.
Atualmente, o telejornalismo tem feito um largo uso dela. Para exemplificar,
podemos citar o programa Fantástico da rede Globo, que expande sua
permanência no ar ao contar com a continuidade do programa na Internet. Assim,
o “telespectador- internauta” pode dar opinião sobre algum assunto discutido ou
participar de um bate-papo com especialistas. É interessante perceber que a
Internet, mídia mais recente do que a TV, empresta a esta seu modo de presença
interativo11. A própria TV com o advento da TV digital caminha para um modelo
11 Ao adotar cada vez mais um regime que preza a participação do telespectador, a televisão vai modificando o seu regime de presença até chegar mais contemporaneamente, com o avanço tecnológico, à TV digital, que é muito mais próxima do modelo interativo da Internet. Entretanto a migração da TV como a conhecemos hoje para a TV digital está atrelada a questões de mercado e
137
interativo muito próximo ao da Internet. Como nos lembra McLuhan: “Nenhum
meio tem sua existência ou significado por si só, estando na dependência da
constante inter-relação com os outros meios“ (McLUHAN, 2003, p.42). Para
pensar ainda a questão da interatividade na TV, vale atentar para a observação de
Lemos:
A televisão tradicional permite uma interação com a máquina tipo analógico-digital (ligar, zappear) sem permitir uma interação direta e mais ampla (que a simples votação por telefone), com o conteúdo das emissões, o que seria uma interatividade eletrônico-digital. (...) A emissão Hugo (jogo eletrônico pela televisão com manipulação do personagem central) incorpora elementos de uma verdadeira TV interativa já que, a partir das teclas do telefone, o espectador se transforma em jogador e modifica o conteúdo da emissão, no caso o resultado do jogo. (LEMOS, 2004, p. 114)
Vê-se, assim, que o contrato fiduciário será estabelecido com êxito, na
medida em que todas as estratégias convergem para a alimentação do crer dos
destinatários e, por conseguinte, influenciam na aceitação do fazer persuasivo a
que são submetidos. Além disso, é estabelecida uma relação afetiva, que através
da “aproximação” entre os actantes promove um envolvimento passional. Este é
também responsável pelo êxito do contrato. Mais adiante, ao examinar a
constituição do éthos e do páthos retornaremos a esta questão.
Ainda que antenados com os modos de operação da nova mídia,
entretanto, os antigos formatos, como o de programa de auditório, mantêm antigas
estratégias, como a ocupação feérica do espaço, dada pela saturação de cores, à própria estruturação da sociedade. Sobre isso vale citar as indagações propostas por Ana Sílvia Médola: “Como pensar os processos de convergência midiática, de migração dos meios analógicos para os digitais sem considerar o alijamento sócio-cultural da massa de excluídos? Quanto tempo a televisão, como conhecemos hoje, irá coexistir com os meios já plenamente integrados em um só suporte, o computador, até que seja plenamente extinta?” MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi. Globo mídia center: televisão e Internet em processo de convergência midiática. Disponível em: http:/ www.unicap.br/gtpsmid/artigos/2005/Ana-Silvia.pdf Acessado em: 10/10/2008
138
luzes e movimento, e insistem na estrutura de entretenimento: jogos, disputas e
premiações. Símbolos estereotipados como estrelas para figurativizar o brilho em
P1, e coroas como figuras da majestade em P3, que aparecem em vários
formatos e tamanhos, ora concretos no cenário, ora apenas como efeitos de luz,
ora como vinhetas e animações, compõem um estilo visual de gosto kitsch
adotados nos programas de Silvio Santos aqui analisados, mas que não deixam
de figurar em todos os outros do gênero, não necessariamente com a repetição de
elementos figurativos, mas sempre com o procedimento reiterativo de associar o
que se vê ao que se diz. Entretanto, para satisfazer as exigências da
contemporaneidade é necessário mais que isso. É preciso trazer o enunciatário
para o centro da cena. É preciso alimentar a crença nos poderes de escolha e nas
ilusões de participação.
No caso em análise, para alcançar tal fim há como estratégia enunciativa
de sincretização a concomitância que ocorre entre categorias do áudio e do vídeo
e reforça a solidariedade dos elementos do PE e PC. O ritmo, categoria do tempo,
alinhava os elementos na cena através da aceleração e reitera a saturação e o
preenchimento espacial. Há, digamos, um grande excesso de elementos que
organizam o sentido do programa. É esse mesmo excesso que está também no
modo de interação, pois a aproximação, concretizada na familiaridade, na falta de
entraves e fronteiras, caracteriza a intimidade estabelecida entre a emissora de
“que o povo gosta” e seus interlocutores, pois o (tel)espectador deve se identificar
com o que vê e assim reconhecer e legitimar a fala que lhe é dirigida. Nesse
simulado jogo narcísico é preciso fugir do “real intolerável”, de que nos fala
139
Barthes (BARTHES, 2003, p. 245), para postar-se, então, defronte à efígie,
grudar-se e confundir-se com ela.
3.2. Reais como atores – éthos e páthos
A semiótica formaliza a discussão da adesão entre sujeitos como um
contrato de fidúcia que se assenta no valor doado aos objetos. A construção do
éthos12 daquele que diz, ou enunciador, feita através de um corpo, de um tom e de
um caráter, está intimamente ligada à obtenção dessa adesão. Na semiótica,
partimos da premissa teórica de que o sujeito da enunciação biparte-se em
enunciador e enunciatário. Os contornos de ambos delineiam-se no interior do
enunciado, uma vez que a projeção de um enunciador acarreta necessariamente a
projeção de um enunciatário, ou mais precisamente, de uma determinada imagem
de enunciatário, o páthos.
O enunciador é aquele que diz e dirige-se ao enunciatário, que ouve, lê, ou
assiste. No entanto ambos, enunciador e enunciatário, são instâncias
pressupostas, já que em qualquer enunciado pressupõe-se o “eu” que fala e
logicamente um “tu” a quem ele se dirige, mesmo que isso seja apagado no
enunciado. A dinâmica estabelecida entre esses papéis desmembra-se nas vozes
do narrador e narratário – eu e tu projetados – e do interlocutor e interlocutário –
12 No artigo “Semiótica e comunicação”, José Luis Fiorin discute o conceito de éthos, segundo Dominique Maingueneau, a fim de estudar a composição do enunciador. Ancoro minha reflexão nesta citação: “Dominique Mainguenau diz que o éthos compreende três componentes: o caráter, que é o conjunto de características psíquicas reveladas pelo enunciador (é o que chamaríamos o éthos propriamente dito), o corpo, que é o feixe de características físicas que o enunciador apresenta; o tom, a dimensão vocal do enunciador, desvelada pelo discurso.” (FIORIN, 2004, p.19)
140
eu e tu como personagens que falam em discurso direto (cf. FIORIN, 2004, p.
119). Logo, na materialidade discursiva, sobre a qual o analista se debruça, é
possível encontrar as marcas que reunidas formam um conjunto capaz de
caracterizar os atores da enunciação:
Os atores da enunciação imagens do enunciador e do enunciatário, constituem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto. São esses simulacros que determinam todas as escolhas enunciativas, sejam elas conscientes ou inconscientes, que produzem os discursos. Para entender bem o conjunto de opções enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua eficácia, é preciso apreender as imagens do enunciador e do enunciatário, com suas paixões e qualidades, criadas discursivamente. (FIORIN, 2008a, p. 161)
Para chegar à imagem dos atores da enunciação, ou seja, ao éthos e
páthos, é preciso ter em mente que não se trata da caracterização dos
interlocutores, personagens que aparecem recheados de características físicas e
psicológicas. A esse respeito, cabe observar o alerta feito por Fiorin, ao apontar a
problemática distinção entre o caráter do enunciador e do narrador, e a pista
deixada por Greimas para solucioná-la:
(...) o enunciador tomado como ator da enunciação se define pela totalidade de sua obra. Quando analisamos uma obra singular, podemos definir os traços do narrador, quando estudamos a obra inteira de um autor é que podemos apreender o éthos do enunciador “. (FIORIN, 2008a, p.141)
Neste trabalho, em que se pretende caracterizar o éthos do enunciador, o
corpus, embora não apresente à exaustão todo o conjunto dos programas de
auditório apresentados por Silvio Santos, é tomado como uma totalidade, visto que
é uma representação significativa da referida produção. Entender o conjunto de
141
programas como totalidade é possível, na medida em que compreendemos as
diferenças e semelhanças entre esse conjunto e muitos outros possíveis:
Não podemos esquecer que a totalidade, de que se depreende um estilo é, em princípio, determinada diferencialmente. Falamos de relações de semelhança e diferença entre x e y, sendo que as primeiras são necessárias para que as segundas se realizem. (DISCINI, 2004, p. 117)
A partir das considerações de Discini sobre a questão das totalidades, é
importante ressaltar que os programas de auditório do SBT, tomados como
totalidade, permitem a depreensão do éthos do enunciador e a caracterização de
um estilo.
Para caracterizar, então, éthos e páthos é preciso ainda atentar para a
relação entre o dito, que pertence à instância do enunciado, e o dizer, que
pertence à instância da enunciação. Dessa relação depreende-se o caráter
daquele que diz, implícito justamente no modo como constrói o dizer, pois “o éthos
explicita-se na enunciação enunciada, ou seja, nas marcas da enunciação
deixadas no enunciado” (FIORIN, 2008a, p.139). Para caracterizar o éthos faz-se,
então, necessário examinar as marcas recorrentes deixadas na materialidade
discursiva da totalidade, tais como: a) o elemento composicional do discurso, b) a
escolha do assunto, c) a construção dos personagens, d) os gêneros escolhidos,
e) o nível de linguagem empregado, f) a figurativização, g) os temas e as isotopias
(Cf. FIORIN, 2008a, p. 143).
Para isso passo, agora, ao exame da categoria enunciativa da pessoa,
através da observação da construção dos atores do enunciado e da relação
142
estabelecida entre enunciador e enunciatário, através das projeções do éthos e do
páthos:
A actorialização é um dos componentes da discursivização e constitui-se por operações combinadas que se dão tanto no componente sintáxico quanto no semântico do discurso. Os mecanismos da sintaxe discursiva, debreagem e embreagem, instalam no enunciado a pessoa. Tematizada e figurativizada, esta converte-se em ator do discurso. (FIORIN, 2001, p.59)
No corpus em análise, a caracterização do éthos de Silvio Santos ajuda a
delinear a imagem do enunciador. Não me refiro ao Silvio Santos real, um homem
nascido na Lapa (Rio de Janeiro), filho de pai grego e mãe turca, 77 anos, cujo
verdadeiro nome é Senor Abravanel. Trato da imagem de “apresentador”
projetada nos programas de auditório do SBT, e da sombra da imagem de
empresário e proprietário do SBT que também aparece projetada na rede
discursiva que daí decorre. Afinal, de que Silvio Santos estamos falando, daquele
que se coloca como autoridade e centro de decisões e ações do SBT, ou do
apresentador carismático e piadista?
Sempre trajando sóbrio terno e gravata, Silvio Santos é dono de voz e
gargalhada inconfundíveis, amplificadas através de um microfone preso junto à
gola da camisa. Esse microfone, bastante ultrapassado diante da tecnologia atual,
acompanha o apresentador desde sua estréia na TV. As qualidades físicas, que
ajudam a compor o “personagem” Silvio Santos, criaram tamanha identidade ao
SBT – emissora de propriedade do empresário Silvio Santos – que, atualmente,
os apresentadores cotados como seus possíveis sucessores – Gugu Liberato e
Celso Portioli – imitam seus trejeitos, roupas e voz:
143
No conjunto de programas nota-se que, ao entrar no palco, o apresentador
dirige um olhar firme para a câmera, esta, na maioria das vezes, o focaliza em
plano americano13. No enunciado é projetado um interlocutor, que instaura como
interlocutários o auditório e os participantes. Assim, o enunciador do programa
projeta o apresentador como narrador, pois é quem organiza a cena e dá a
palavra aos demais participantes, no entanto ele também desempenha um papel
temático de interlocutor, através dos diálogos e da interação com a platéia. Os
telespectadores, também projetados no interior do enunciado, sincretizam os
papéis de narratários, quando não tomam a palavra, e interlocutários, quando
realizam participações por telefone, internet e cartas. No exemplo 1 (abaixo),
evidencia-se a participação do telespectador. Ele deverá escolher quem “receberá
a coroa de prata” e para isso terá que telefonar ou mandar e-mail. A transmutação
do narratário em interlocutário é característica da TV contemporânea que cria,
através da delegação de tarefas ao telespectador, um efeito de participação,
responsável por estabelecer uma imagem de interatividade e, conseqüentemente,
garantir a fidelização. Com isso, refuta-se atribuir ao telespectador um papel de
passividade e ele se torna também responsável pelo desenrolar dos
acontecimentos.
O interlocutor dirige-se aos dois interlocutários em momentos específicos e
inclusive nomeia-os de forma diferente. O auditório ao vivo na gravação,
composto majoritariamente por mulheres, recebe a alcunha de “minhas colegas
de trabalho”, enquanto o público que assiste à TV é chamado de “querido
13 “Plano Americano. Tipo de captação de imagem, em que o artista só aparece do busto para cima. No cinema é do joelho para cima”. (ROITER; TRESSE. 1995, p. 92)
144
telespectador”. A expressão adotada para se referir à platéia ao vivo instaura uma
relação mais direta e cria uma aproximação. Além disso, por estar no feminino,
restringe e caracteriza precisamente o interlocutário. Já a expressão “querido
telespectador” é mais abrangente e instaura um maior distanciamento. O
apresentador toma a palavra em primeira pessoa. Faz uso da norma culta real14 e
emprega um tom que oscila entre uma seriedade didática, ao explicar as regras
de um jogo, e o humor sarcástico ou cínico ao dirigir piadas de duplo sentido a um
jurado ou participante:
Bem, mais uma vez, quero lembrar a vocês do auditório que serão responsáveis
pelo artista que neste programa receberá a coroa de prata e vocês de casa que serão responsáveis pelo artista que receberá a coroa de ouro. Aqueles que receberem a coroa de ouro ficarão para as semifinais. Nas semifinais vai haver uma disputa entre aqueles que se apresentaram bem em cada um desses programas. Aí então vocês vão escolher os três que vão gravar o CD do SBT... (P3)
Silvio: Você está vendo, Pedro, que o Décio e a Sônia estão com mania de grandeza. Estão dando dez estrelas a torto e a direito. Agora é a sua vez, você é o torto e o direito.
Pedro de Lara: Eu tenho que dizer a você, cada um dá o que quer!
Silvio: Cada um dá o que quer, claro! É verdade, neste programa, todos têm liberdade...cada um dá o que quer!
[risos] (P1)
A suposta seriedade de Silvio, no entanto, não é abalada por ocorrências
tais como o duplo sentido atribuído ao verbo dar, e ele aparece como o
14 Fiorin estuda as relações entre o que chama de “norma culta real” e “norma culta escolar”, para diferenciar o uso da língua nos jornais O Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo. No primeiro, “Os textos são escritos no que se poderia denominar a norma culta escolar. Os períodos são mais longos e a sintaxe, mais complexa.” Já na Folha, “Os textos são escritos no que se poderia chamar de norma culta real. Os períodos não são muito longos” (FIORIN, 2004a, p. 25). Assim, observamos, nos programas em análise, o uso da “norma culta real”, ou seja, o registro se dá dentro da norma culta, porém num uso dotado de maior informalidade e menos rebuscamento do que na “norma culta escolar”. Entretanto, não há uma transgressão às regras propostas pela normatividade, o que caracterizaria o registro popular.
145
“apresentador da família brasileira”, ou seja, um homem respeitável e respeitoso,
que estabelece uma intimidade com o público e participantes de maneira bem
humorada e afetuosa. Mesmo quando constrange um convidado com algum
trocadilho em função de seu nome, profissão, ou local onde reside, o tom de
brincadeira suaviza as afirmações do apresentador, que mantém sempre o
controle da situação, seja ditando o tom e o tema dos diálogos, fazendo perguntas
que conduzem à resposta desejada, ou ainda, proferindo julgamentos e juízos de
valor. Estabelece-se um confronto entre as instâncias do dito e do dizer. No dito,
as piadas, os trocadilhos. No dizer a emersão da figura de líder, de comandante.
No caso de Silvio, o comandante não só do programa, mas também da emissora,
daí resultando o papel temático de “patrão”, que ele habilmente acumula com o de
animador.
Com efeito, constrói-se um éthos masculino e tradicional, protótipo do homem
bem sucedido, que sabe e pode dizer o que quiser. O tom de ensinamento
permeia as falas do apresentador e projeta um “enunciatário-discente”, pronto a
seguir as estratégias propostas e com isso ser sancionado positivamente, através
de prêmios em dinheiro, eletrodomésticos, casas, entre outros. Observemos o
trecho abaixo:
Bem você vai ver agora alguém ganhando um milhão de reais! Tomara! Tomara que aconteça. Aqui neste cofre, como vocês sabem, estão as vinte e seis maletas. Vinte e seis maletas com importâncias diferentes, de cinqüenta centavos até um milhão de reais. Muita gente pergunta pra mim: - Como é que eu posso me inscrever? Entre no site do SBT. E, se você tem coragem – não é pra desistir com cinco ou oito mil reais, não – se você tem coragem, inscreva-se que você pode ganhar um milhão de reais. Você pode ser o próximo milionário! E você já sabe que o SBT já fez cinco pessoas ganhar um milhão de reais. Pode ser que hoje nós consigamos fazer o sexto milionário. (P4)
146
A cena descrita se passa nos segundos que precedem o início do
programa Topa ou não topa. O apresentador encontra-se sentado dentro de um
cofre, no qual se guardam as maletas numeradas a serem usadas segundos
depois no programa. A câmera o focaliza em close e plano americano. Ele dirige
o olhar diretamente para a câmera e gesticula bastante. A câmera também
focaliza, bem de perto, as maletas numeradas. A luz não é forte e cria um efeito
de penumbra. Toca uma música instrumental, no estilo de suspense, durante todo
o tempo. O pequeno exemplo serve para elucidar algumas características do
páthos do enunciatário. Como a cena é gravada antes do programa, ela se volta
exclusivamente ao narratário (telespectadores), que é convidado a participar, a
assumir o papel de interlocutário. O programa Topa ou não topa é um game-show
e, em virtude disso, após a entrada no palco o apresentador vai se dirigir quase
exclusivamente à platéia e aos participantes do jogo. Isso é uma característica da
estrutura composicional desse subgênero, que resulta numa interação mais
amena entre o apresentador e o telespectador. Daí a necessidade de inserção de
uma espécie de prólogo, com a função de prestar esclarecimentos sobre como
fazer para se inscrever no programa e ampliar a credibilidade ao focalizar as
maletas em lugar seguro, o cofre. O diálogo é instaurado exclusivamente com o
telespectador, segundos antes de o programa efetivamente começar. O tom
adotado, neste momento, é de seriedade e aconselhamento. O interlocutário é
tratado como um antigo conhecido por já possuir várias informações que são
relembradas, juntamente com algumas poucas novidades, é também incentivado
a participar e a desejar o vultoso prêmio de um milhão de reais. Adota-se como
147
estratégia a massificação da informação, note-se que apenas neste pequeno
trecho, a expressão “um milhão de reais” foi repetida quatro vezes. O repetitivo
discurso do interlocutor reforça, confirma e chama atenção para a informação.
Busca-se atrair o interlocutor, mas ao mesmo tempo dá ao discurso um tom
paternal, no qual é preciso repetir a ordem. Por outro lado, a repetição revela o
tipo de público a que se dirige: que não entende a informação pela primeira vez,
ou que precisa ter certeza do que o outro diz.
O páthos é, dessa forma, caracterizado como o de pessoas de classe
baixa, que têm necessidade de obter como prêmios “uma casa própria no valor de
quarenta mil reais”, “um carro zero quilômetro”, “um refrigerador”, ou “um milhão
de reais”. Este último prêmio é o ponto alto das premiações do SBT. O
interlocutário é manipulado por tentação através de construções como “se você
participar, pode ser o próximo ganhador” e para isso é preciso acreditar. A
garantia de realização concreta da vitória é a divulgação das cenas dos
vencedores como, por exemplo, a estatística dos cinco premiados com um milhão,
exaustivamente apresentada através de uma propaganda transmitida entre
outubro e dezembro, sobre a qual já fiz referência no primeiro capítulo.
A base da crença é, por conseguinte, o sonho e a ilusão, muito próximo ao
discurso de auto-ajuda do tipo “desejar é conseguir” ou “querer é poder”. No
entanto, para a realização desses sonhos e a obtenção dos prêmios, o
interlocutário precisa agir inscrevendo-se nos programas e participando, ou seja,
sendo corajoso. Não há espaço para o posicionamento crítico ou a discordância,
busca-se a adesão cega, semelhante ao contrato da crença religiosa, sustentado
dogmaticamente pela fé. Com efeito, projeta-se um páthos carente, movido não
148
apenas pelo querer, mas primordialmente pela necessidade. O diálogo
estabelecido entre Silvio Santos e uma participante do programa Topa ou não
topa evidencia um descompasso entre o páthos projetado e a situação financeira
da interlocutária:
SILVIO: Você só tem um marido e um filho? LUCIANA: Só um. SILVIO: Ainda bem, não? LUCIANA: Graças a Deus. SILVIO: Você o que faz da vida? LUCIANA: Sou advogada, Silvio. SILVIO: Gostei desse seu...do seu corpete. O que é isso? É chinês? LUCIANA: É... é... chinês, chinês... SILVIO: Comprou na China?
LUCIANA: Comprei. SILVIO: Você “teve” na China? LUCIANA: “Tive”.
SILVIO: “Teve” na China...Ela é rica, não precisa de um milhão de reais, não, ela “teve
na China! [risos] (P4)
A observação feita pelo apresentador provoca o riso da platéia e
desconcerta a participante. O riso cúmplice deixa transparecer o tipo de relação
instaurada entre interlocutores e revela a chave sobre a qual se assentam as
estratégias argumentativas do enunciador, qual seja a sólida construção do éthos
e, por outro lado, um páthos delineado com precisão.
No programa em análise corrobora para esta conjunção e,
conseqüentemente, identificação, a construção da imagem do apresentador. Silvio
Santos possui a mesma caracterização física desde seu aparecimento na TV. Sua
risada é um tipo de marca registrada, a voz marcante e trejeitos inconfundíveis
compõem um estilo próprio muito singular, formando o éthos do comunicador.
149
Através de sua vestimenta, ele sustenta uma imagem convencional e tradicional,
que muitas vezes destoa do gosto duvidoso de suas piadas. Com isso, mantém
uma suposta seriedade, não se rendendo a um estilo carnavalesco, mas ao
mesmo tempo apresentando uma dose de cinismo na sua relação com o público,
jurados e participantes dos programas. Este comportamento oscilante, no entanto,
em nada desautoriza ou desqualifica a fala do apresentador, que, colocado no
centro do foco, é a autoridade máxima do espetáculo. A esta imagem solidamente
construída soma-se a história de vida do apresentador, sendo ela mesma
mitificada, como a história do menino de origem humilde que por esforço e mérito
próprio se torna um dos homens mais ricos do país. O percurso de passagem da
pobreza à riqueza, tomado como feito heróico, ressoa na figura de Silvio Santos,
posto que se encontra armazenado na memória discursiva do público. Com efeito,
instala-se aí um jogo de alternância de vozes e papéis entre o personagem
(apresentador) e o próprio apresentador do programa, no qual cada um funciona
como espelho e reflexo do outro.
Observar a dinâmica desse jogo ajuda a compreender a construção do
enunciador, entendido como a imagem de um eu, pressuposto ao enunciado.
Assim, nesses programas de auditório, o comunicador funciona como narrador e
interlocutor e as suas características fornecem pistas sobre o éthos do enunciador.
Este, por conseguinte, se refere a um enunciatário, um tu, também projetado no
interior do discurso como interlocutário. A imagem de enunciatário construída pelo
enunciador, ou o páthos do enunciatário, é que garante a eficácia discursiva, já
que maior será a funcionalidade do discurso, quanto maior identificação houver
entre o éthos e o páthos:
150
A eficácia discursiva está diretamente ligada à questão da adesão do enunciatário ao discurso. O enunciatário não adere ao discurso apenas porque ele é apresentado como um conjunto de idéias que expressam seus possíveis interesses, mas sim, porque se identifica com um dado sujeito da enunciação, com um caráter, com um corpo, com um tom. Assim, o discurso não é apenas um conteúdo, mas também um modo de dizer, que constrói os sujeitos da enunciação. O discurso, ao construir um enunciador, constrói também seu correlato, o enunciatário. (FIORIN, 2008a, p.157)
Com isso, percebe-se que o modo de construção da imagem de Silvio Santos
colabora no estabelecimento do esquema de fidelidade, na medida em que
promove a identificação necessária para mobilizar passionalmente o sujeito
espectador, pois o “apresentador da família brasileira” demonstra intimidade na
sua relação com o público. Quanto ao “querido telespectador”, vê-se representado
e sente-se próximo. Só lhe resta rir das piadas, comprar os produtos, jogar os
jogos e com isso garantir a audiência. O enunciador que pretende “dar ao povo o
que o povo quer” revela, então, boa estratégia argumentativa, pois entende ser
necessário conhecer as carências de seu auditório, a fim de agradá-lo e,
conseqüentemente, convencê-lo.
Quanto ao páthos projetado, temos a imagem da família que se reúne em
frente à televisão e assiste a uma encenação. Nela determinado objeto-valor é
oferecido ao telespectador com o intuito de fazê-lo aceitar contratualmente o que
lhe é proposto. Para isso, é necessário fundar um regime de interação calcado na
identidade. Assim, se o páthos construído pelo Programa Silvio Santos
caracteriza-se como o do “povo”, ou seja, pessoas simples, pertencentes aos
setores menos privilegiados econômica e culturalmente, é preciso observar em
que medida a construção do éthos também se dá através deste conceito de
“popularidade”. Landowski ao estudar as “formas de popularidade” chama atenção
151
para o fato de que para ser popular, ou seja, conhecido e amado pelo povo, o
sujeito famoso, marcado pela notoriedade, precisa deixar-se conhecer de forma
íntima:
Dizemos conhecer nossos amigos ou próximos e – o que é quase a mesma coisa – que os “amamos” (ou detestamos), a proximidade no plano cognitivo traduzindo-se então por si mesma num elo (valorizado positiva ou negativamente) no plano afetivo. Mostrar-se aberto a todos, apresentar-se para o maior número possível sem a máscara profissional, deixar-se perceber em sua verdadeira identidade ou pelo menos dar a impressão disso: assim se cultiva, além da notoriedade, uma forma de adesão fundada no sentimento de uma familiaridade interindividual, se possível matizada de “simpatia”. (LANDOWSKI, 2002, p.190)
No caso em estudo, podemos citar como exemplo o fato de todos os
telespectadores terem conhecimento sobre o que deveria ser uma particularidade
de Silvio Santos: o nome de seu cabeleireiro. Jássa, citado freqüentemente no ar,
transformou-se em um personagem das narrativas e piadas de Silvio. Observemos
o trecho da reportagem publicada na Folha online de 31 de agosto de 2001, que
descortina a intimidade de Silvio:
Quando está no Brasil, sua rotina é quase sempre a mesma. Acorda cedo, por volta das 6h, e faz exercícios -cerca de uma hora de esteira e flexões. Ele não lê jornais. Diz ter alergia à tinta. Nos dias em que grava seus programas, passa antes, por volta das 7h30, no salão de Jassa -onde arruma o penteado e, a cada 15 dias, tinge o cabelo com uma mistura de dois tons de loiro. Chega ao SBT às 10h e sai de lá no máximo às 19h. Às 20h, janta com a família em sua casa, no Morumbi. Nos dias em que não grava, costuma despachar em seu escritório, no Ibirapuera.15
15 “Silvio Santos evita andar com segurança”.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u36094.shtml
Acessado em: 18/11/2008
152
Saber, então, que o milionário empresário usa no cabelo “dois tons de
loiro”, ou ainda de suas alergias, funda a “familiaridade individual” que colabora na
consolidação de um corpo e um caráter. Essa forma de popularidade é bastante
difundida no show business atual, através da promoção das chamadas
celebridades, que freqüentemente revelam dados de sua vida íntima nos
programas de TV, sites, jornais e revistas. Isso, de certa maneira, também reflete
a dissolução das fronteiras entre espaço público e privado, que caracteriza um
modo contemporâneo de interagir, revelado em blogs que relatam e expõem
imagens da intimidade, sites de relacionamento e até mesmo nas conversas entre
amigos, que costumeiramente relatam em público detalhes da vida íntima.
Para a semiótica o movimento do homem no mundo, nas suas práticas
sociais, é semelhante ao dos artistas em suas encenações, já que se pratica uma
construção de simulacros. Neles cada sujeito projeta e, ao mesmo tempo,
interpreta a imagem de si e do outro. No caso do Programa Silvio Santos, em que
a construção do éthos possui uma eficiência muito grande, podemos ver uma
fusão entre as imagens do apresentador, do patrão e de uma suposta projeção do
homem Silvio Santos, construída textualmente pela sincretização entre os papéis
de narrador e interlocutor.
Assim, o narrador Silvio Santos projetado tematicamente como patrão, dono
e responsável pelo que é transmitido, é também o interlocutor quando diante das
câmeras toma a palavra para dialogar seja com Pedro de Lara diretamente, por
exemplo, seja para se dirigir a “vocês aí de casa”, projetando como interlocutores
os telespectadores. Contudo, durante a atuação de interlocutor, Silvio Santos diz o
nome de seu cabeleireiro, de suas filhas e esposa, a fim de matizar este narrador
153
com as cores da intimidade e com isso favorecer a construção da identidade.
Pode-se perceber que a um éthos constituído pelo gosto em revelar os detalhes
da intimidade corresponde um páthos que sente prazer em espreitar e aí se
instaura uma parceria.
3.2.1 - A relação éthos / páthos – um caso de (in)fidelidade?
Uma das questões centrais deste trabalho é a questão da fidelização do
público que permite ao Programa Silvio Santos estar há quase meio século no ar.
No entanto, o estilo do SBT, construído pela imagem de Silvio Santos e sua
maneira de fazer TV, pode nos levar ao questionamento dessa fidelidade. Isso se
dá pela instabilidade da grade de programação, que promove a surpresa no
telespectador e pode gerar a paixão complexa da frustração, que se dá no arranjo
de duas modalidades, querer e não-poder assistir ao programa desejado. A
existência de um público fiel para além da instabilidade e muitas vezes incoerência
da programação revela também importantes características desse páthos. O
sujeito que diante da TV percebe que o seriado que vem acompanhando, há
semanas, saiu sem qualquer aviso prévio do ar, sente-se traído? E o que dizer das
intermináveis repetições de programas e filmes, marca estilística do SBT? Daí
podemos depreender o páthos projetado, qual seja o sujeito moldado ao “estilo”
SBT, que não se importa ou se importa pouco diante das surpresas a que é
submetido.
A grade de programação do SBT é marcada pela projeção da subjetividade.
A imagem construída corrobora a centralidade do poder, estando tudo, no SBT,
154
nas mãos do “patrão”.O enunciador projeta um “eu” que fala e toma as decisões
de maneira absolutista. Essa exacerbação da subjetividade diferencia o SBT das
demais emissoras brasileiras, todas elas compostas por uma diretoria. Assim,
enquanto o enunciador “TV Globo”, por exemplo, é fragmentado, sendo difícil
concretizar quem está por trás de uma decisão ou outra, no SBT há uma
concretização do enunciador que toma corpo e voz através da projeção do
narrador Silvio Santos. Este decide quem entra e sai do ar e quando, ou ao menos
esse é o efeito de sentido construído. Numa comparação inevitável entre as
emissoras Globo e SBT teríamos os efeitos de objetividade e distanciamento na
primeira, de modo que os “fatos pareçam narrar-se a si mesmos, sem
aparentemente um narrador instalado no discurso” (DISCINI, 2004, p. 156),
construído através do apagamento das marcas de subjetividade, contra
subjetividade e aproximação na segunda, justamente pela exacerbação das
marcas referentes ao enunciador. Vejamos abaixo algumas ocorrências.
Entre os meses de junho e julho de 2008, a mudança de horário do
programa apresentado por Hebe Camargo das 22 para as 23 horas causou
polêmica. A apresentadora, que está na emissora desde 1986, chegou a reclamar
no ar. Algumas semanas após e com uma queda significativa de pontos no
IBOPE, o programa foi apresentado às 20h., o que agradou à apresentadora e
rendeu alguns pontos a mais na audiência. Entretanto, a passagem das 23h para
as 20h foi anunciada por uma propaganda, na qual um narrador em off dizia: “A
Hebe reclamou e seu programa muda de horário”. A construção do enunciado faz
uma espécie de mediação, através da instância da narração, entre a reclamação
de Hebe e a tomada de decisão da emissora.
155
O que observamos nessa narrativa é que, quando Hebe reclama no ar,
dirigindo-se à câmera com o dedo em riste, ela faz referência ao Silvio Santos em
seu papel temático de patrão. Assim, ele é projetado no discurso como aquele que
tem o poder de decidir. Hebe, imbuída da autoridade de apresentadora
consagrada, demonstra coragem por questionar a ordem recebida. Toda essa
polêmica narrativizada pela reclamação de Hebe e pela propaganda pode ser
também acompanhada pela mídia impressa, através de revistas e sites, muitos
deles especializados em fofocas de bastidores. Assim, observa-se uma narrativa
interna construída pelo SBT e uma narrativa paralela sobre o SBT, em que ecoam
os acontecimentos presenciados ou não pelo público. Há aqui, e particularmente
no episódio de Hebe Camargo, um efeito suplementar de briga familiar, de
intimidade dada a ver que reforça a ligação entre emissora e público.
Através dessa ocorrência, é possível delinear melhor a diversidade de
papéis desempenhados por Silvio – narrador/ interlocutor – como um traço
marcante do estilo da emissora. A exacerbação do efeito de subjetividade é
também utilizada a favor do estabelecimento da fidúcia, visto que as narrativas
podem ser acompanhadas pelo público como uma novela paralela à programação.
As polêmicas em torno dos apresentadores Ratinho e Adriane Galisteu, por
exemplo, rendem matérias em revistas e suplementos de jornais. O trecho da
matéria “Mudanças de grade agitam bastidores do SBT”, publicada na Revista da
TV do jornal O Globo de 31 de março de 2008 é emblemático:
Galisteu, por exemplo, gravou normalmente o ‘Charme’ na segunda-feira retrasada, mas no dia seguinte, foi avisada que sua atração seria suspensa por tempo indeterminado. Uma semana antes, o programa havia passado para as madrugadas e mudado de horário pela 19ª vez. A apresentadora tentou encarar tudo com bom humor e passou a comandar o “Charme” de pijama e pantufa. Aos jornais e sites dizia que ”a única
156
coisa que tinha certeza é de que cumpriria o contrato com o SBT até outubro”. Silvio Santos não gostou do figurino – e muito menos das declarações – e aproveitou a saída do ‘Fantasia’ da grade para cancelar também o “Charme.”16
Expressões como “Silvio Santos não gostou” constroem a imagem de um
canal de TV dirigido em função dos estados de alma de seu proprietário. A
subjetividade resulta num efeito de aproximação, o que nos remete ao esquema
de fidelidade, com a ressalva de que desta vez, à aproximação entre os
interlocutores (apresentador e platéia/ telespectadores), soma-se a instância
narrador e narratário (patrão/ empregada)instituída nos textos que relatam os
acontecimentos e mesmo nas falas e gestos das apresentadoras, que constroem
uma narrativa.. A saída de Charme da grade se deve a uma narrativa que subjaz
ao programa, sem deixar de ser textualizada no figurino da impetuosa
apresentadora, sancionada, por isso, negativamente.
Essas diferentes instâncias de atuação e representação do enunciador
caracterizam o éthos discursivo, também responsável pela composição do estilo
da emissora e, ao mesmo tempo, projeta um páthos, caracterizado em função do
contrato firmado em aproximação e subjetividade. As intrigas e notícias que vêm a
público, funcionando como eco do que se pode ver e ouvir diante da TV, são
acompanhadas pelos leitores e telespectadores que se juntam num páthos
constituído de gosto pela intriga, pelas relações pessoais e pela exposição da
intimidade. Aqui é possível traçar uma analogia entre o éthos do SBT e o éthos da
imprensa popular, demonstrado por Norma Discini. A autora retoma Bourdieu
(1979), que “comenta o franco-falar, ou o falar sem censura, aliado ao franco- 16 Disponível em: www.oglobo.globo.com/ cultura/revistadatv Acessado em: 10/11/08.
157
comer, ou comer sem preocupação de polidez, como constituintes de um estilo de
vida” (DISCINI, 2004, p.129). Esse, digamos, estilo franco, próprio ao que é
popular, pode ser observado no SBT, através de uma simulação de franqueza
presente nos comentários do apresentador, na reclamação de Hebe ou no pijama
de Galisteu, por exemplo. Insistindo ainda nas reflexões de Discini, pensamos na
“voz discursiva que grita” (cf DISCINI, 2004, p. 129) presente na imprensa popular,
possível de ser percebida também no tom das intrigas que ocupam a cena central
no SBT. Mais adiante voltaremos a essas e outras questões levantadas por Discini
em relação ao éthos e ao estilo.
Ao caracterizar o gênero Programa de Auditório e ao pensar sobre um estilo
SBT, a busca desmedida pela audiência já foi mencionada. Entretanto, algumas
considerações ainda cabem aqui. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o
“honroso” segundo lugar tão proclamado pelo SBT, ao longo de sua história e
atribuído ao estilo popular adotado pela emissora, vem sendo ameaçado há pelo
menos dois anos pela TV Record.17 A perda nos números gera ainda mais
mudanças na grade. Assim, com tamanhas disparidades na programação, qual é
o público que consegue resistir e quais estratégias de fidelização são adotadas?
O Programa Silvio Santos voltou a ocupar quase toda a programação de
domingo, trazendo de volta boa parte dos antigos quadros, como o “Segredo
musical” e “Topa tudo por dinheiro”. Este último retomou os polêmicos aviõezinhos
de dinheiro que Silvio lança para suas “colegas de trabalho”, atração diversas
17 A Rede Record está no ar desde 1953 e apresenta, assim como o SBT, um estilo voltado ao público popular, através de programas de variedades, notícias de variedades e também de telenovelas. Desde 2005 vem se consolidando como a vice-liderança da TV brasileira, numa disputa acirrada com O SBT. Um espaço de sua programação veicula a programação da Igreja Universal do Reino de Deus.
158
vezes alvo de críticas. Faz-se, outrossim, a reprise de atrações antigas como as
reaproveitadas “pegadinhas”. Assim, vê-se que uma das estratégias adotadas é a
revitalização do contrato de fidúcia, através do retorno ao já-dito, que
insistentemente se repete. Aliás, a repetição também pode ser considerada uma
das marcas do estilo SBT e se dá não só nos programas de auditório, mas em
toda a grade de programação. Duas ocorrências merecem atenção. O programa
Chaves 18e a novela Pantanal19.
Um dos grandes trunfos do SBT, por mais curioso que possa parecer, é o
programa humorístico destinado ao público infanto-juvenil chamado Chaves, que
está no ar desde 1984, sendo reprisado exaustivamente. Observemos na notícia a
seguir o efeito que tem tal programa no SBT.
Chaves", arma antiga do SBT na briga pela audiência, ataca novamente. Nesta quarta, o seriado mexicano garantiu um empate no horário das 12h45m. De acordo com o Ibope, "Chaves" obteve 8 pontos, mesmo número da Globo, que exibia "Globo Esporte" e a Record, com o "Balanço geral".20
A estratégia da repetição de programas e filmes é utilizada sem pudor pelo
SBT. A reprise da novela Pantanal, produzida pela extinta Rede Manchete e
exibida no ano de 1990 é um bom exemplo. Essa estratégia rendeu IBOPE e
18 Constam na programação do SBT, disponível no site oficial ,três apresentações do programa “Chaves” em 10/12/08: 7h, 12h e 45min e 18 e 15 min. Disponível em: http://www.sbt.com.br/programacao/ Acessado em: 10/12/08
19 Vale aqui uma ressalva e justificativa pela citação de episódios sobre a programação geral do SBT, estendendo as conclusões sobre os programas que compõem o corpus. Por um lado, os programas estão inseridos em uma grade dotada de coerência, (a incoerência lógica dos horários é uma forma coerente de construir o perfil da rede) sendo, portanto, importante examinar a seqüência da programação; por outro lado, a busca pela caracterização de um estilo que confere uma unidade ao canal justifica a preocupação, ainda que sem aprofundamento, com a totalidade. 20 Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/kogut/post.asp?cod_post=106560 Acessado em 09 de novembro de 2008
159
causou polêmica em relação aos direitos de exibição das imagens e aos cachês
dos atores. Abaixo, tomarei para análise o trecho de duas cartas publicadas na
seção “opinião” da Revista da TV do Globo de 9 de novembro de 2008:
Pantanal
Concordo com a leitora Regina Castilho (edição de 02/11) sobre a reprise de “Pantanal”. É um desrespeito a nós, telespectadores, a insistência em tanta repetição de capítulos! Além de reprisar a novela num horário tardio, ainda nos deparamos com essa chateação. Aline Nolasco
Sou uma senhora de 68 anos e vejo televisão o dia todo. “Pantanal” é
uma grande alegria. Parabéns a Cláudio Marzo e a todos os artistas que trabalham nesta maravilhosa novela. Obrigada pela beleza que vejo todos os dias. Regina Helena (Revista da TV, O Globo, 09/11/08)
As duas opiniões, uma contrária e a outra a favor, deixam pistas
interessantes sobre a construção da fidelidade.
A primeira telespectadora, num texto mais temático, expõe os temas
do desrespeito, da chateação e da repetição. Para isso, faz referência a outra
telespectadora também chateada. O segundo fragmento, no entanto, assinado por
uma senhora de 68 anos é que nos ajuda a revelar um pouco mais sobre o páthos
fiel ao SBT. Para ela a “maravilhosa novela” pode passar em qualquer horário, já
que assiste à TV o dia todo. Unindo essas informações ao sucesso do programa
Chaves, pode-se perceber que o SBT busca atingir como grande filão por um lado
o público infanto-juvenil e por outro as donas-de-casa, que compõem a maior
parte do público diurno. Tais telespectadores são em sua maioria dotados de
maior tempo livre. O ocioso enunciatário tem possibilidade de ver e rever os
programas e manter-se fiel independentemente da infidelidade da programação.
Vale aqui uma ressalva e justificativa pela citação de episódios sobre a
programação geral do SBT, estendendo as conclusões sobre os programas que
160
compõem o corpus. Por um lado, os programas estão inseridos em uma grade
dotada de coerência, (a incoerência lógica dos horários é uma forma coerente de
construir o perfil da rede) sendo, portanto, importante examinar a seqüência da
programação; por outro lado, a busca pela caracterização de um estilo que
confere uma unidade ao canal justifica a preocupação, ainda que sem
aprofundamento, com a totalidade.
Programas como P1, ao apresentar artistas como Nalva Aguiar que teve o auge
de sua carreira em 1970 ou mesmo a dupla Jane e Herondi que em 1977 explodia
com a música “Não se vá”, chamam atenção para o resgate de memórias. Com
isso, busca-se atingir a atenção daqueles que acompanharam esses
acontecimentos, através da recuperação de prazerosas lembranças. Em quadros
como “Não erre a letra”,21 que faz parte do atual Programa Silvio Santos, embora
não passe de uma adaptação do antigo “Qual é a música?”, é possível ver a
participação de muitas senhoras completando as letras das músicas mais antigas
que não são de conhecimento da parte mais jovem da platéia. Arlindo Silva, em A
fantástica história de Silvio Santos, ao descrever a programação do SBT na época
de sua fundação, chama atenção para o modo como a jovem emissora explora a
programação infantil:
Logo que o SBT entrou no ar, Silvio Santos procurou explorar um filão até então praticamente ignorado pelas demais emissoras: a programação infantil das manhãs. (...) Silvio Santos adotava uma filosofia simples e realista: oferecendo desenhos à criançada, os pais não se atreveriam a mudar de canal. (...) Hoje, todas as emissoras fazem isso, seguindo os passos de Silvio Santos. Na realidade, esse truque de oferecer desenho
21 O quadro “Não erre a letra” faz parte do Programa Silvio Santos que nesse ano de 2008 voltou a ocupar a maior parte da programação dos domingos. O jogo é formado por seis participantes que se inscrevem pela Internet. Eles devem cantar a música designada pelo apresentador sem errar a letra. Quando os participantes não conhecem a música, ou erram a letra, o apresentador solicita a participação da platéia, que se dirige a um microfone instalado no meio do auditório. Quem acertar a letra da música é premiado em dinheiro.
161
animado às crianças para prender os adultos foi a primeira grande tacada do SBT em sua estratégia para conquistar a audiência tanto da criança como do papai, da mamãe, da titia e da vovó – isto é, do público de todas as idades. (SILVA, 2000, p.109)
Assim, o SBT, como todas as emissoras de TV, quer atingir todas os tipos
de público, daí a variedade da programação. É preciso somente atentar que
mesmo quando investe em jornalismo, e, então, projeta um enunciatário que se
interessa pelas notícias, questões da atualidade, ou seja, o enunciatário mais
inclinado à reflexão e ao debate, tudo se faz num estilo Silvio Santos. Por
exemplo, no caso da contratação da jornalista Ana Paula Padrão, com intuito de
melhorar a equipe e a produção dos telejornais ocorreu o mesmo. Como a
audiência esperada pelo SBT Brasil não foi alcançada, algumas trocas de horário
foram realizadas e a jornalista permaneceu apenas um ano como âncora. A
relação do SBT com o jornalismo sempre foi atribulada e compor a imagem de
uma emissora capaz de realizar um jornalismo de qualidade é uma questão ainda
não resolvida.
Duas estrelas do telejornalismo, contratadas a peso de ouro – Ana Paula Padrão e Carlos Nascimento – padecem na ciranda de mudanças de horário e formato de seus programas, e já amargam uma lamentável invisibilidade. Descontente por ver a imprensa comentando esses fatos, Silvio Santos desativou a assessoria de comunicação por um ano, reorganizando-a apenas recentemente.22
Com efeito, o investimento mais alto do SBT visa a atrair o público de maior
tempo livre, que busca a diversão, o entretenimento. Este é, sem dúvida, o público
22 Trecho da reportagem:Silvio Santos e SBT: como é difícil largar a rapadura, de Gabriel Priolli. Disponível em: C:\Documents and Settings\professor\Meus documentos\Silvia\silvio santos\Observatorio - Silvio Santos e SBT como é difícil largar a rapadura.mht Acessado em:08/01/09
162
que mais se identifica com o apresentador Silvio Santos. A estratégia de uma
revitalização do Programa Silvio Santos, através da apresentação dos mesmos
quadros antigos também pretende atingir o antigo e fiel telespectador. Ao invés de
criar novos programas e com isso arriscar ainda mais problemas com a audiência
o SBT consolida mais do que nunca o contrato estabelecido e segue apostando na
repetição. Contudo, o constante retorno vem salpicado pela tentativa de
modernização, como nos reality shows, apresentados atualmente no SBT.
Todos os exemplos mostram que é possível perceber, através das
ferramentas que a semiótica disponibiliza, o jogo de vozes que é projetado
hierarquicamente no discurso. Num primeiro nível, projetam-se os actantes
pressupostos: enunciador e enunciatário. Assim, não se pode confundir, por
exemplo, o enunciador dos programas de auditório do SBT com o apresentador
projetado internamente dentro do enunciado (programa), correspondente ao
narrador com função de interlocutor. É a imagem construída por esse acúmulo de
papéis sintáticos e temáticos que delineia o éthos do enunciador.
Nos programas, considerados como um enunciado, constrói-se um efeito
de polifonia, já que na encenação temos diversos atores que dialogam, expõem
opiniões (como é o caso dos jurados), trazem informações. Um exemplo
emblemático é a voz de Lombardi23, que em discurso direto conversa com Silvio
Santos durante os programas. Os anúncios de produtos e a promoção de outros
programas são feitos por Lombardi. O contrato de trabalho feito com Lombardi,
estrategicamente, o impede de mostrar o rosto na mídia. Daí criou-se um mistério
23 Luiz Lombardi Neto é o locutor que acompanha Silvio Santos há pelo menos 35 anos. Iniciou sua carreira na TV Globo, mas migrou para o SBT desde sua fundação. Por questões contratuais não expõe sua imagem na mídia, raríssimas vezes apareceu no ar no próprio SBT.
163
e muitas conjecturas em torno dessa figura, que só se concretiza numa voz sem
rosto. A polêmica sobre o horário do Programa da Hebe revelada no ar é também
um episódio em que o efeito de polifonia é reforçado, pois simula a existência de
diferentes pontos de vista. No exemplo, prevalece a opinião da apresentadora
Hebe. Todavia, a polifonia construída é marcada por uma identidade discursiva da
emissora, que se dá pela permanência de percursos e papéis conferidos aos
actantes e aos atores que, segundo Fontanille, é uma forma de isotopia:
(...) aquilo que chamamos aqui de permanência ou identidade não é senão uma forma particular de isotopia, isto é, uma redundância semântica que, nesse caso é aplicada a uma categoria particular de conteúdos. (...)
Os dois grandes tipos de identidades são, respectivamente, (1) no caso dos actantes, aqueles assegurados pelas isotopias predicativas e, (2) no caso dos atores, aqueles assegurados por todas as outras isotopias (figurativas, temáticas, afetivas etc.). (FONTANILLE, 2007, ,p. 150)
No caso do SBT é possível perceber que o canal do entretenimento fácil,
isotopicamente construído pela reiteração dos temas da descontração e da
diversão e pela figurativização do excesso, possui a figura de Silvio Santos como
um grande conector de isotopias, no sentido de que atribui uma coerência ou
quem sabe incoerência à emissora. A onipresente figura de Silvio Santos, que se
apresenta não só nos programas de auditório, mas contamina toda a programação
do SBT, ajuda na construção do éthos do enunciador e na caracterização de um
estilo.
164
3.3. Estilo – heterogeneidade e dialogismo
O estilo, sendo um fato discursivo, constitui-se heterogeneamente. É na oposição a outro estilo que se constrói.
Fiorin
Enquanto tantos querem atingir o público A e B, a nossa realidade é o C e D. A gente é C e D naturalmente. Tem uma identificação natural com a massa (...) É óbvio que perder a segunda posição, para quem quer que seja, não é agradável. A gente, por muito tempo, correu sozinho no segundo lugar.24
Daniela Beyruti
O trecho da entrevista de Daniela Beyruti, uma das filhas de Silvio Santos,
faz referência a uma “identificação natural com a massa”, ou seja, evidencia o
enunciatário projetado pela emissora de seu pai. Isso remete à questão do estilo,
abordada, ainda que de modo disperso, ao longo desse trabalho. Para caracterizar
o éthos do enunciador foi preciso tratar um pouco da arquitetura do canal SBT,
tomado como uma totalidade e, portanto, dotado de um efeito de individualidade.
Discini (2004) mostra que esse “efeito de individualidade” é responsável por
permitir a “construção do ator da enunciação” e como o “ator da enunciação
manifesta-se por um éthos” é necessário analisar a construção do estilo a partir da
investigação do éthos do enunciador:
Afirmamos que o ator da enunciação é figurativizado, logo, ele concretiza temas. Ele é um antropônimo, o que significa dizer que tem um corpo. Pensamos na antroponímia desse ator, em princípio, enquanto éthos, com caráter e corporalidade: um éthos, por exemplo, que grita, por que hiperbólico, de jornais da imprensa dita sensacionalista, que se corporifica por ocupar de maneira própria ume espaço social, opõe-se a um éthos eufemístico e que fala baixo, de jornais da imprensa dita séria. Não
24 “Filha de Silvio Santos assume o SBT e critica o pai”. Disponível em: http://www.titinet.com.br/news/filha-de-silvio-santos-assume-sbt-e-critica-o-pai-1210.asp Acessado em: 10/11/2008
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esquecendo que o ethos é deduzível de uma maneira de dizer e que emerge do dito ... (DISCINI, 2004, p. 39-40)
Assim, o estilo SBT se define pelo conjunto de traços que o diferencia das
outras emissoras. O SBT é o que todas as outras emissoras não são e vice-versa,
ainda que o discurso da TV, tomado como totalidade, apresente traços em comum
que o diferenciam do discurso da literatura, ou do cinema, por exemplo. Fiorin
acrescenta a essa discussão a questão da “heterogeneidade” como característica
constitutiva do estilo, numa referência explícita aos conceitos bakhtinianos de
dialogismo e polifonia, que perpassarão a discussão travada de agora em diante.
Pretende-se abordar, pelo viés teórico da semiótica, o jogo de vozes instaurado
discursivamente através de dois recortes: 1) o jogo intrínseco que dinamiza a
construção discursiva dos programas numa relação com a programação da
emissora e 2) extrinsecamente a relação do SBT com as outras TVs abertas
brasileiras.
Para a semiótica, no nível discursivo, considerado o mais superficial da
produção da significação, a análise deve “buscar as formas, as estratégias, os
procedimentos que fazem de um texto, mesmo dialogicamente constituído,
discursos monofônicos e polifônicos” (BARROS, 1994, p.9). Estes últimos,
caracterizados pela multiplicidade de vozes expostas, se opõem aos primeiros,
marcados pelo apagamento dos diálogos que os constituem em favor da
monofonia, ou seja, a supremacia de uma só voz. Fiorin, retomando Bakhtin, vai
mostrar os dois mecanismos pelos quais se constrói a consciência dos sujeitos:
Bakhtin qualifica de ptolomaica a consciência organizada em torno de um centro fixo, como era o sistema planetário de Ptolomeu, em que a Terra era fixa. Já a galileana é a consciência mais aberta, mais móvel, não
166
organizada em torno de um centro fixo, como é o sistema de Galileu, em que a Terra se move. (FIORIN, 2006, p. 56)
Dessa forma, apesar de inerentemente dialógicos, os textos podem se
construir a partir de uma polifonia, nos quais se deixam descortinar embates e
confrontos, através das várias vozes expressas, ou a partir da monofonia, que
gera os discursos autoritários. Estes últimos, embora também diologicamente
construídos, fazem ouvir apenas uma voz e, portanto, não se deixam contestar, já
que criam uma simulação de verdade.
No caso dos programas do SBT, em vários momentos da análise ficou clara
a centralização da voz por parte do apresentador. É interessante que, embora haja
a simulação de delegação de vozes, percebe-se na verdade a construção da
monofonia, posta no intervalo entre o parecer de várias vozes e o ser de uma só
voz. Em alguns momentos, no entanto, há uma explicitação do discurso
autoritário. A fala de Silvio Santos dirigida a uma participante no quadro
Pegadinha, de 19/10/08, é um bom exemplo: “Aqui a produção não sabe escolher
nada. Eu é que escolho tudo. Aqui é tudo eu. Tudo eu.” O apresentador
desqualifica a produção e, ao mesmo tempo, exacerba a subjetividade. Em outras
ocasiões mostradas ao longo do trabalho, entretanto, ao reafirmar a participação,
simula-se uma democratização da voz, como se todos tivessem poderes de
escolha.
Na relação de Silvio Santos com os jurados, por exemplo, há uma
desqualificação da opinião destes últimos. O tom de chacota é instituído e no
momento do julgamento o apresentador expõe a opinião dele de modo
tendencioso. Na verdade, a presença de jurados, que faz parte da estrutura
167
composicional dos programas, é uma encenação e cada um deles representa um
tipo, ou seja, cada um já é programado para desempenhar certo papel temático e
figurativo. Assim, consolidaram-se como “jurados do Silvio Santos”, o rabujento
Pedro de Lara, o exigente Décio Pitinini, a tola Sônia Lima e ainda personagens
lendários como Aracy de Almeida, que pertenceu ao júri nas décadas de 70 e 80,
encarnando a personagem indelicada, que julgava apontando falhas de maneira
grosseira, sob vaias efusivas da platéia. Vejamos, a seguir, trecho do diálogo de
Silvio e Décio Pitinini no programa Gente que brilha:
SILVIO: Mas você tem uma voz muito parecida com a do Nelson
Gonçalves. Não é mesmo? Olha quando você estava cantando
tinha um jurado que é muito exigente e que estava sorrindo. Eu
não sei se ele estava sorrindo pra você ou se ele “tava” rindo de
você. Agora, vou perguntar. Décio Pitinini, por que é que estava
mostrando os dentes para o rapaz?
DÉCIO: Porque é uma forma maravilhosa da gente começar o
programa. Dez estrelas para você! (palmas) Parabéns, parabéns,
parabéns!
SILVIO: Quantas estrelas? Quantas? Quantas?
DÉCIO: Dez estrelas, a voz dele é maravilhosa!
SILVIO: Você está sendo exagerado, exagerado! (P1)
É interessante notar, através do exemplo, que na relação com os jurados
tem-se uma via dupla de efeitos de sentido. Primeiro, o jogo de vozes entre os
atores do enunciado, construindo a polifonia. Ao mesmo tempo, o tom jocoso do
apresentador e sua expressão de opiniões contrárias às dos jurados, como forma
de autoritarismo. Entretanto, o próprio autoritarismo é simulado, pois já faz parte
da imagem de apresentador projetada e, portanto, deve se repetir sempre. Logo,
168
aí a relação não é nem autoritária, nem democrática, visto que o caráter burlesco
neutraliza a oposição. Aqui podemos perceber uma relação entre o dito e o dizer,
já que a enunciação (dizer) é autoritária, mas o enunciado (dito) é engraçado. A
adoção do tom de farsa serve para atenuar o discurso autoritário e com isso ajuda
a construir o estilo da emissora, através de um simulacro de mundo, onde
transborda o riso e a alegria.
Voltando à fala de Daniela, a filha de Silvio Santos, é notória a tentativa de
criar uma naturalização do estilo popular do SBT e, com isso, fundar um
diferencial. É possível traçar um paralelo entre essa tentativa e a questão da
heterogeneidade apontada por Fiorin, visto que um determinado estilo existe como
resposta a outros estilos. Atingir os públicos D e E é uma oposição a outras
emissoras, que projetariam como enunciatários os públicos A, B e C. Uma
emissora que se diferencia pelo estilo popular está em oposição a outra não-
popular. Assim,
Só se entende o estilo, portanto, se se observa o centro, o fechamento da totalidade de discursos enunciados, circunscritos aos seus limites, de onde emerge o efeito de diferença. Para a diferença, entretanto, não se perde de vista o diálogo com seu exterior, o não-centro, que é a heterogeneidade constitutiva a todo estilo. (DISCINI, 2004, p. 29)
Pode-se afirmar que a palavra do SBT, desde a sua fundação, assim como
de certa maneira, de todas as emissoras do Brasil, é sempre uma resposta à TV
Globo, líder absoluta do mercado nacional. É ainda possível notar que a grade de
programação do SBT não possui autonomia, sendo feita em relação à grade da
TV Globo. Observemos o exemplo seguinte.
169
Numa visita ao site do SBT, o telespectador tem diante de si, na página de
abertura, a seguinte propaganda25:
A chamada para o SBT Show é construída no plano visual, obedecendo ao
mesmo padrão dos programas aqui analisados, ou seja, forma-se sob a estética
do exagero. Assim, sobre um fundo azul, na parte central, o colorido logotipo da
emissora pousa sobre a palavra “show” que é escrita em letras maiúsculas e
prateadas. A letra “o” transmuta-se num canhão de luz a projetar um feixe de raios
luminosos que se expandem pela tela. Reitera-se, então, a isotopia do show, que
está também em consonância com o Programa Silvio Santos. No plano verbal, a
proposição na parte superior: “Cansado de ver noticiários em outros canais? Então
mude” visa atingir uma parcela do público que prefere se distrair diante de um
show a se confrontar com a “realidade” dos noticiários. Mais uma vez enfatiza-se o
entretenimento, através do show, da brincadeira, do espetáculo. Há também, na
parte inferior da propaganda, referências temporais, com o dia e horário da
atração. O interessante dessa questão está no fato de o SBT Show ser transmitido
25 O SBT Show vai ao ar diariamente das 20 às 21h / 30 min. Conta com uma programação variada: talk shows, games, humorísticos e reality shows: segunda – “Programa da Hebe”, terça – “Nada além da verdade” , quarta – “Astros”, quinta – “A praça é nossa” , sexta – “Quem manda é o chefe”, sábado – “Supernanny”.Os programas das terças e sextas-feiras são apresentados por Silvio Santos.
170
das 20h às 21h30min, compreendendo justamente o horário do Jornal Nacional,
telejornal de maior audiência no Brasil, que vai ao ar das 20 às 20h30mim na
Globo. Assim, o SBT monta uma programação como alternativa aos
telespectadores, a fim de fisgar os indecisos ou mesmo os “cansados de ver
noticiários”. O oferecimento da diversão, do lazer, constrói-se discursivamente
como oposição ao discurso jornalístico (noticiários), por meio de uma polêmica
velada, já que as duas vozes em confronto não são expressas abertamente,
apenas faz-se uma réplica a outro discurso pré-existente (cf FIORIN, 2006, p. 41).
A construção de uma programação feita “a partir de” deixa às claras a
retomada que um enunciado faz do outro, seja para imitá-lo, respondê-lo ou
mesmo subvertê-lo. Por exemplo, a novela Pantanal é exibida logo após a “novela
das oito” da Rede Globo. Temos aí a apresentação do mesmo gênero
(telenovela), sendo que numa emissora há o componente do inédito e na outra
trata-se de uma reprise. É como se o SBT propusesse a um público apaixonado
por telenovelas assistir à novela inédita da Globo e depois rever o antigo sucesso
Pantanal. Esperar terminar a novela do outro canal, para só depois emitir a sua,
atrasar ou adiantar programas para que se ajustem ao horário da grade de
programação da concorrente é reconhecer a voz do outro interferindo sobre o seu
próprio modo de ser. O SBT faz uso dessa estratégia e traz a Globo para o seu
convívio, buscando sempre tirar proveito disso. A novela Pantanal, por exemplo, é
anunciada pelo próprio Silvio Santos, durante seus programas dizendo, “Não
perca, aqui no SBT, a novela Pantanal, logo após A Favorita, da rede Globo de
Televisão”. É necessário, contudo, mencionar que o fato de a TV Globo não
explicitar as marcas do diálogo que trava com as emissoras brasileiras e até
171
estrangeiras, não significa que tenha uma grade independente, pois o discurso se
constrói na heterogeneidade e é sempre dialógico. Todos os enunciados e falas
estão inevitavelmente em resposta uns aos outros:
Todos os enunciados no processo de comunicação, independentemente de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. (FIORIN, 2006, p.19)
No caso em análise, o que fica evidente é que o SBT tem como marca
estilística mencionar a presença do outro, fazendo disso um argumento a seu
favor. Utiliza-se o que seria da instância do outro, da alteridade, para fundar a
identidade. O SBT considera a existência da Globo, constrói a grade de
programação na dependência da grade da Globo, sem no entanto querer ser a
Globo. O SBT produz sua própria identidade, na afirmação desse outro, que é a
Globo e não na sua negação, como seria mais comum. Segundo Landowski:
... cada um, se quiser, pode tentar pensar e gerir sua própria identidade enquanto positividade, ou, em outras palavras, sem ter mais que, para fundamentá-la, passar necessariamente pela negação do Outro. Então, e somente então, a partir desse ponto de ruptura (de ordem “epistemológica”, como deve ser), desaparecem os sintomas da crise de alteridade e começam de fato a colocar-se os problemas de uma autêntica busca de identidade: “ Eu sou o que você não é, sem dúvida, mas não sou somente isso, sou também algo a mais, que me é próprio – ou que talvez nos seja comum”. (LANDOWSKI, 2002, p. 27- grifos do autor)
Esse “Outro” com letra maiúscula é o centro de referência a partir do qual
outras identidades se constroem. No caso da TV brasileira, o centro é a Globo.
Dela as outras emissoras tendem a se afastar ou a se aproximar, imitar ou
esnobar, enaltecer ou desqualificar. Obviamente que, numa via de mão dupla, o
ponto de referência também é afetado pelas presenças desses outros.
172
Especialmente em relação ao SBT, que desde a fundação buscou diferenciar-se
através de uma estética popular. Como “nunca se faz parte inocentemente de uma
minoria” (Landowski, 2002, p. 47), as forças das outras emissoras acabam por
também empurrar a Globo em direções múltiplas, que vão da minissérie mais
caprichada e esteticamente cuidada ao humor pastelão dos programas de sábado
à noite. Dessa mistura de padrões e intercâmbio permanente de estímulos é que
se faz hoje a TV brasileira, identificada em emissoras que se constituem como
diferentes éthe.
Como mais um recurso de consolidação do éthos do SBT, ajusta-se o jogo
de vozes pela subjetividade implantada por meio da figura de Silvio Santos, que
toma e dá a voz. Vejamos o trecho da reportagem:
"Revelação" marca a volta do SBT à produção de novelas originais após o fim do acordo com a Televisa. É também a estréia de Iris, esposa de Silvio Santos, na dramaturgia. "O SBT só passava enlatados, mas o público se cansou disso. Precisávamos trazer vida à teledramaturgia do SBT, a cidade cenográfica estava se decompondo. Mas não conseguíamos contratar autores, porque estavam todos amarrados com a Globo e a Record. Então decidi escrever a novela", conta Iris. Ela contou com a ajuda de roteiristas experientes do SBT, como Yves Dumont.(...) Uma curiosidade: Iris conta que o nome "Revelação" foi sugerido pelo próprio Silvio Santos, antes da trama estar concluída. Com o nome aceito, a equipe teve que inventar, na novela, o que seria a tal "revelação", que não existia originalmente na história. 26 (...)
O contrato de fidúcia, que obedece a um “esquema da fidelidade”, funda-se
na proximidade, na intimidade que se dá discursivamente através de várias
estratégias. Uma delas seria a criação de um efeito de polifonia, que na verdade
26 Disponível em: http://www.telaviva.com.br/News.asp?ID=105516&Chapeu= Acessado em: 27/11/08
173
serve como um véu que recai sobre um fundo monofônico. A monofonia aqui se
refere à discursivização do discurso autoritário, por meio da simulação da voz do
outro. O caso curioso, contado na reportagem, mostra um Silvio que, não só
delega à esposa o papel de dramaturga, mas também escolhe o nome da novela.
A centralização do poder se reflete, então, em todas as áreas de atuação da
emissora.
Além disso, outra característica perceptível é que o SBT se desenvolve
como um negócio de família. À esposa dramaturga, juntam-se as filhas diretoras e
as administradoras. Isso revela a preocupação do líder com o futuro de seu
império, instituindo um verdadeiro clã. O clã Abravanel repete o discurso do chefe
– pai e marido – e assim vemos surgir uma consciência, nos termos de Bakhtin,
muito mais ptolomaica, pois gira em torno de um centro fixo. O cartaz que anuncia
o Show do SBT, com a etra central “o” da palavra show emanando luz para todo o
espaço, pode ser tomado como metonímia, simulacro do mundo construído no
SBT. Na emissora do patrão, são dele as idéias e as escolhas, embora o diálogo
com o outro, seja a TV Globo, sejam as emissoras de onde se importam
programas e formatos, esteja presente e se faça visível.
A relação estabelecida entre éthos e páthos, que constrói o estilo do SBT,
pode ser sintetizada no seguinte quadro:
174
RELAÇÃO ÉTHOS / PÁTHOS
ÉTHOS PÁTHOS EFEITOS
CO
RPO
Corpo forte e enérgico.
Gesticula, fala alto, canta.
Adota uma atitude de
comando.
O corpo encontra-se em
repouso, acomodado. Adota
uma atitude de espera.
Aproximação
Identidade
Intimidade
Subjetividade
CA
RÁ
TER
Caráter autoritário, dono da
verdade e decidido. Tem
iniciativa e liderança.
Caráter crédulo e passivo,
indiferente ao debate ou
discussão. Gosto pela fruição
e a diversão.
TOM
O tom é decidido, firme,
afirmativo. Claro e alto.
Expansivo, risonho.
Responde, aos gritos, ao que
lhe é perguntado.
Os efeitos de aproximação, identidade, subjetividade e intimidade se
constroem na relação amigável entre éthos e páthos. Nela, ao caráter dissimulado
do éthos corresponde à ingenuidade do páthos. O éthos é brincalhão, do tipo que
faz amizade rapidamente, e torna-se íntimo. O páthos abre a porta de casa e
convida para entrar. Diante da oferta de prêmios e jogos, ele arrisca, pois é
incentivado, e porque precisa acreditar na possibilidade de mudança.
É essa crença que, para a semiótica, move o homem no mundo de valores
e sentidos projetados nos textos. Os textos simulam o mundo com palavras, sons
e imagens. Tanto diante do mundo como dos textos, o sujeito é afetado e precisa
175
compreender. Para isso, nomeia os objetos, compara-os, percebe semelhanças e
diferenças. Aceita ou refuta o que vê, e assim segue o inevitável percurso a que
se chama vida.
176
TELEVISÃO
A televisão, com seus intervalos comerciais, é escola de paciência.
(DRUMMOND. O avesso das coisas. Rio de Janeiro: Record, 1987)
177
CONCLUSÃO
Histórias de sucesso devem ser simples, diretas, sem mistérios. Assim o querem os personagens que as vivem, os autores que as escrevem, os editores que as manipulam e o público que as devora. Ninguém ensinou isso a Silvio Santos – adivinhava, puro instinto.
Alberto Dines
No livro intitulado O Baú de Abravanel, o jornalista Alberto Dines,
impulsionado pela polêmica candidatura de Silvio Santos à presidência, em 1989,
fez uma pesquisa histórica sobre a família Abravanel, da qual se têm registros
desde o século XIII. Eruditos, filósofos, poetas, estadistas compõem uma “árvore
genealógica” quase sempre marcada pela notoriedade.
Considerado por muitos um fenômeno da comunicação no Brasil, Silvio
Santos, é também uma figura polêmica, que responde a processos por
contrabandear “idéias” de TVs estrangeiras, aparece em cadeia nacional
negociando com os seqüestradores da própria filha, ou ainda tem a imagem
transmitida por mais de uma hora na emissora concorrente em desfile do Grêmio
Recreativo Escola de Samba Tradição, agremiação do carnaval carioca que no
ano de 2001 homenageou1 o empresário em seu enredo. Assim foi o percurso do
1 Sobre o desfile de escola de samba, vejamos o trecho da reportagem de Raphael Perret Leal, do Obervatório da Imprensa: “... no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, mais um gol do SBT. A Tradição homenageou Silvio Santos. Apesar do samba medíocre, conquistou o público ao reverenciar uma figura popular. Depois de muito mistério, o empresário decidiu desfilar e apareceu sem cortes na tela da Globo. Sem falar de Lombardi, Ratinho, Hebe e outros figurões do SBT. Os pontos de audiência foram para a emissora carioca. O prestígio, para Silvio. Aproximou-se do público do Rio – dizem que ele não queria desfilar por temer uma possível frieza da platéia carioca, já que tem ciência de que domina muito bem, pelo menos, o gosto dos paulistas – e conquistou-o”.
Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp0711200199.htm
Acessado em: 10/12/2008
178sucesso de Silvio e de sua emissora, alinhavado pelo “instinto” e pela capacidade
de “adivinhar”, que o conduziu de mascate a mega-empresário. Assim se justifica
a existência dessa tese, que com a instrumentalização da semiótica do discurso
numa das mãos e a curiosidade por esse personagem e os programas que
apresenta há meio século na outra, tentou refletir sobre algumas questões, que
podem interessar à teoria e aos estudos da Comunicação.
A primeira pergunta, “como definir os gêneros televisivos?”, parte da
problemática do hibridismo que se apresenta na TV, na qual uma bricolagem de
elementos se reitera ao longo das grades de programação. Para respondê-la,
contou-se com a obra referencial de Mikail Bakhtin e a retomada que dela fez José
Luiz Fiorin, à luz da semiótica. Gêneros são formas estáveis de discurso e a
estabilidade é chave de entrada de uma análise. Cada programa é um
acontecimento, uma efervescência, mas que se conecta a outros do mesmo tipo
numa rede isotópica. Para Zilberberg “a perenização dos clichês e a ritualização
dos gêneros visam a conter e, por vezes, estancar essa efervescência”
(ZILBERBERG, 2006, p. 173), bem como oferecer ao sujeito o conforto do
conhecido.
Pensando, então, sobre o gênero foi possível perceber que os programas
de auditório fundam-se no diálogo e na participação do público, que está logo ali,
bem diante do apresentador. Se a ênfase será dada aos jogos, atrações variadas
ou entrevistas, isso dependerá dos subgrupos em que esse gênero se divide. No
caso em análise, a observação recaiu sobre programas do tipo game-show e show
de variedades. Em cada um deles, uma etapa do percurso narrativo é enfatizada,
179a saber, a sanção no primeiro e a performance no segundo. Além disso, no show
de variedades, uma seqüencialidade temporal fez o percurso narrativo de cada um
relacionar-se com o esquema de narração que engloba toda a série de programas.
A sanção só se realiza de fato na grande final. Já nos games, premiações em
dinheiro, disputas e apostas passionalizam sujeitos dentro dos programas ou do
outro lado da tela. Em ambos, a alegria contagia a todos e busca-se o
envolvimento dos destinatários que são levados a participar e se envolver com a
cena narrada.
Para que tudo isso ocorra, entretanto, estratégias enunciativas são
necessárias para mobilizar as linguagens do áudio e do vídeo, de modo a serem
apreendidas como um todo. Daí o exame da enunciação sincrética faz-se
necessário. Um dos desafios que aqui se tentou enfrentar foi o do estabelecimento
de uma metodologia capaz de abarcar a complexidade de um texto concretizado
no cruzamento de múltiplas linguagens e apreendido num tempo, o tempo da
transmissão. O tempo, então, é tomado como dimensão de base, já que é nele e
por ele que se dá a existência do texto televisivo. Para tratar da questão do tempo
que por implicação leva à questão do espaço, tomou-se a tensividade, como
abordagem de análise, pois esta articula a questão da intensidade e da
extensidade, através de subdimensões que incluem a temporalidade e a
espacialidade:
A extensidade concerne ao alcance no tempo e no espaço do campo controlado pela intensidade. A intensidade é da ordem do sensível; a extensidade, da do inteligível. A primeira rege a segunda. Por isso, diz-se que o tempo e o espaço são controlados pela intensidade. (FIORIN, 2008b, p. 135)
180
A partir do exame do PE dos programas que compõem o corpus é possível
concluir que os formantes cromáticos, eidéticos e topológicos do componente
visual, responsáveis por criar um efeito de preenchimento, recebem a regulagem
das categorias tensivas de tonicidade e andamento, por meio dos elementos
tensivos – luz e som – gerando, então, o efeito de movimento. Preenchimento e
movimento em abundância criam a estética do excesso que caracteriza os
programas analisados.
Foi ainda possível perceber que a categoria temporal tem o percurso
marcado por continuidades e descontinuidades, resultantes da alternância entre
intensidades e extensidades. É nesse percurso que os programas caracterizam o
campo de presença e buscam afetar a percepção dos sujeitos em relação aos
objetos. A entrada do apresentador, como momento culminante da intensidade,
prepara uma surpresa eufórica, embora já esperada, em função de sua repetição
ao longo dos anos. Vimos, então, a adoção de uma regulação entre as categorias
da /tensão/ vs. /relaxamento/, como forma de atrair a atenção e livrar o
enunciatário do tédio, provocado por uma extensão longeva. Essa regulação é
controlada pelo apresentador, que ocupa o centro do campo de presença. Dele
emanam as ordens de expansão, vista em falas como “mais aplausos, mais
aplausos...” ou contenção em “calma, calma...”, dadas a uma platéia participativa e
colaboradora.
A regulagem entre os pólos da intensidade e da extensidade se dá no PE e
no PC por meio de uma consonância entre o que ocorre nos canais sensoriais de
áudio e vídeo. Tal estratégia aqui se denominou de sincretismo por consonância,
181responsável por uma interpretação mais rápida, fácil e simples. O sincretismo por
consonância se opõe a um sincretismo por discrepância que cria o efeito de
estranhamento, de contraponto, usado nas obras de arte. Mostrou-se assim que a
TV, como mídia de massa, opera majoritariamente com o habitual, o conhecido, a
reiteração. A massificação, entretanto, tem espaço para uma escala estética que
iria do mais diferente ao mais repetido. A apresentação de um concerto de música
clássica ou, no caso do SBT, o Cine Belas Artes, programa dedicado, quase
sempre, à exibição de filmes de arte poderiam figurar no pólo do máximo de
estranhamento, enquanto o “novelão mexicano” ocuparia o pólo contrário, do
máximo de lugar-comum. O estilo SBT de programas repete e retoma à exaustão
os mesmos padrões, deixando a emissora estabilizada no pólo do já conhecido.
A esse estilo se costuma chamar “popular”, o que leva a uma indagação a
respeito das estratégias adotadas na obtenção de um público fiel. Para desvelar
tais estratégias, um exame do modo de interação implantado na relação
enunciador / enunciatário foi necessário. Na análise foi possível perceber que a
interação se apóia numa aproximação com público (platéia e telespectadores).
Isso se constrói discursivamente a partir de estratégias que aparecem no PE – tipo
de enquadramento de câmera, posicionamento do apresentador, gestos como
apontar – e também no PC – verbos no imperativo, uso da primeira pessoa,
construção da subjetividade. Da interação por aproximação resulta o efeito de
participação, que torna o enunciatário um actante do enunciado, convidado a
participar do programa narrativo proposto, de modo a escolher o vencedor de
determinada prova, ou ainda a acompanhar a letra da música exposta numa tarja
na parte inferior da tela da TV. Vimos que tal modo de interação e o efeito dele
182resultante podem ser tomados como parte de um esquema de fidelização
implantado como uma fórmula repetitiva. A interação por aproximação resulta,
ainda, de uma interação íntima implantada pela presença do apresentador Silvio
Santos, e seu modo de se relacionar com o público. Para compreender essa
interação fez-se necessário observar e caracterizar as imagens de éthos e páthos
(enunciador e enunciatário) projetadas no interior do enunciado, e aí se tornou
possível dar atenção à categoria enunciativa de pessoa.
A construção e a projeção da imagem do apresentador Silvio Santos, tanto
quando toma a palavra nos programas que apresenta, tanto quando opera no
papel temático de narrador, muito tem a dizer sobre o éthos do enunciador,
marcado por um estilo dito popular, que visa atingir o público chamado de D e E.
Assim, a solidificação do éthos, através da identidade que constrói, colabora para
a fidelização do público, que reconhece no que assiste uma parte de si mesmo.
Nos programas de auditório do SBT o páthos é, então, delineado com precisão,
através de uma relação bem estruturada com o éthos. Dela resultam os efeitos
de: a) intimidade, b) aproximação, c) identidade, d) subjetividade, todos eles
funcionando como mediação entre as duas instâncias.
O efeito de subjetividade acaba também dando respaldo para a construção
da grade de programação, que por isso é marcada por uma instabilidade, idas e
vindas, mudanças de horário, repetição de programas, suspensão de outros. Tal
instabilidade é atribuída à crença de que no SBT todas as decisões estão
centralizadas nos humores e vontades do patrão. Essa centralização de poder e
de voz cria um efeito de monofonia, típico do discurso autoritário.
183Funda-se, então, um estilo subjetivo de fazer TV e administrar uma rede de
comunicação. Isso pode ser visto internamente na análise dos programas, nos
quais também se projeta o apresentador como o centro de decisões e organizador
da seqüência narrativa. O autoritarismo evidencia-se na relação com público e
participantes, guiados a agir e falar, participar, aplaudir, sorrir, calar, embora haja
uma diluição desse autoritarismo feita pelo humor, o clima brincalhão e o tom de
farsa impresso nas cenas. O autoritarismo recebe uma acentuação átona que,
aliada à exacerbação do efeito de participação ganha ares de um coleguismo
bem-humorado, no qual só não se pode esquecer quem é que manda.
Como “o estilo se constrói sobre outro estilo e, por isso, mostra seu direito e
seu avesso” (DISCINI, 2004, p. 31), a análise inevitavelmente revela a relação
entre os programas de auditório e os outros programas da emissora, por um lado,
e por outro a relação do SBT com os outros canais da TV brasileira. Sendo a TV
Globo líder absoluta de audiência, é a ela que o SBT responde e ao mesmo tempo
retoma, para replicar.
Assim, o SBT constrói sua programação em relação à programação da
Globo. No horário do “Jornal Nacional”, emite-se o SBT show para quem está
“cansado de noticiários” e só após as novelas da Globo é que o SBT apresenta as
suas próprias novelas. Entretanto, uma marca de estilo que chama atenção na
emissora de Silvio Santos é justamente a textualização do “outro”. Utiliza-se a
concorrência como um argumento positivo, assim como se anuncia em alto e bom
som a importação de programas de emissoras estrangeiras, ou seja, é justamente
no diálogo explícito com o outro que o SBT cria sua individualidade. Com isso, é
184possível perceber que a afirmação de um estilo se dá no jogo entre identidades e
alteridades.
Conclui-se, então, que examinar as questões de gênero e estilo é
importantíssimo para a análise de qualquer tipo de texto, como já demonstrou o
minucioso trabalho de Discini (2004). Porém, numa análise do texto de TV, que
tem como peculiaridade apresentar-se no tempo da transmissão, que ocorre em
concomitância nos diversos canais, as redes dialógicas se fazem muito evidentes
e, por isso, foram centrais para a análise. Além disso, o exame da enunciação
sincrética, que põe em andamento o texto televisivo, também se fez uma
exigência da abordagem semiótica, aqui apreendida, principalmente considerando
que os dias atuais são marcados por avalanches de imagens, sons, enfim,
linguagens, que cercam e muitas vezes até atordoam o homem contemporâneo.
Esse sujeito que, por vezes, sem sair do sofá da sala, alegra-se ou
assombra-se, nasce, cresce e até namora em frente à TV. A televisão é
camaleônica, vista como máquina, utensílio doméstico indispensável, formadora
de opinião. Muitas são as definições. Em diversos momentos, une, num mesmo
instante, olhares de vários desconhecidos que se encontram nos lugares mais
díspares, em outros, desune os conhecidos que estão tão perto. O fato é que a TV
está no mundo, lançando moda, fabricando celebridades instantâneas, revelando
talentos, transmitindo informações. Analisá-la é preciso!
185
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191
ANEXOS
192
PROGRAMA DATA DA EXIBIÇÃO P1 Gente que brilha
20/03/2005
P2 Roda a Roda
22/12/2005
P3 Rei Majestade
26/07/2006
P4 Topa ou não topa
23/08/2006
DESCRIÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE
193
O programa Gente que Brilha era exibido aos domingos das 20h às 22h na
época da gravação. Composto de três blocos de aproximadamente 40min cada, o
programa pertence ao subgênero show de variedades. Nele vários artistas e
amadores apresentavam as mais variadas atrações como: imitadores,
maquiadores, mágicos, números circenses, cantores, dançarinos, etc. Cada
participante era julgado por quatro jurados: Sheila Carvalho, Sônia Lima, Décio
Pitinini e Pedro de Lara, recebendo uma nota de até 10 estrelas. Além desta nota,
um “medidor de palmas” capaz de captar a intensidade das palmas da platéia
conferia até 10 estrelas. Assim, o participante com a maior quantidade de estrelas
do dia era classificado para a final, a fim de receber um prêmio de duzentos mil
reais.
P1 - PROGRAMA GENTE QUE BRILHA / Show de Variedades
194
O programa “Roda a roda” apresentado de segunda a sexta às 20 horas é
um game show, bastante semelhante ao programa “Roletrando”, sucesso no SBT
nas décadas de 80 e 90. Nele há uma roleta premiada no centro do palco toda
dividida com vários valores em dinheiro. Cada um dos três participantes roda a
roleta e recebe o valor marcado, caso acerte as letras que compõem a palavra
escondida no painel, num estilo da antiga brincadeira de forca. O cenário é
composto de dois ambientes. Num Silvio e os participantes se posicionam atrás da
roleta. No outro, a ajudante de palco Patrícia revela no painel as letras e as
palavras conforme o acerto de cada concorrente. O participante que tiver a maior
quantia ainda concorre a uma casa sorteada ao final do programa. O programa
tem 30 minutos de duração, divide-se em dois blocos.
P2- RODA A RODA / Game show
195
O programa “Rei Majestade” vai ao ar às quartas-feiras às 22h, tendo
aproximadamente 1h e meia de duração. Nele, artistas que fizeram sucesso nas
décadas de 60, 70,80 e 90, fazem duas apresentações. Na primeira parte do
programa cantam com a ajuda de um playback um antigo sucesso. Apresentam-se
também vídeos com cenas antigas do artista. Já na segunda parte do programa, o
artista canta ao vivo o sucesso de um cantor atual, sendo acompanhado por uma
orquestra. O auditório que assiste ao programa no estúdio faz uma votação e
elege o “melhor da noite”, premiado com uma coroa de prata. Ao longo da
semana, os telespectadores votam pelo telefone ou internet e escolhem o melhor
participante, que recebe uma coroa de ouro e classifica-se para a final. Os três
finalistas receberão prêmios em dinheiro e gravarão músicas para o CD do SBT.
P3 -PROGRAMA REI MAJESTADE / Show de variedades
196
O programa “Topa ou não topa” é um game show em que apenas um
participante concorre a 1 milhão de reais. Vinte e seis modelos portam maletas
com quantias que variam de 50 centavos a um milhão. No início, o competidor
escolhe uma mala, que fica separada e só é aberta ao final da competição. Depois
o participante vai abrindo as maletas com os mais variados valores. Quanto
menores os valores, maiores as chances de a maleta do participante ter uma alta
quantia. Assim, após a abertura de seis maletas um suposto “banqueiro”, que fica
numa sala isolada ao fundo do palco, do qual vemos apenas a sombra, comunica-
se com o apresentador, através de um telefone celular que fica no palco e oferece
uma determinada quantia em dinheiro. Se o jogador aceitar o valor oferecido o
jogo será encerrado. Caso não aceite, a competição continua até que se esgotem
as maletas. A competição termina quando o participante aceita a proposta do
banqueiro ou se esgotam as maletas e, enfim, revela-se o valor do prêmio. A cada
proposta do banqueiro, o apresentador aumenta o suspense da cena ao repetir
várias vezes a pergunta: “Você topa ou não topa?”. Este game show é importado e
já fez sucesso em vários países, como faz questão de revelar o comercial
veiculado na emissora.
P4- PROGRAMA TOPA OU NÃO TOPA / game show
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