Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger ...s Fernando... · Heidegger presented in...
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Luís Fernando Crespo
Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger
Doutorado em Filosofia
São Paulo 2016
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Luís Fernando Crespo
Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger
Doutorado em Filosofia
São Paulo 2016
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação da Profa. Dra. Salma Tannus Muchail.
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Banca Examinadora:
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Dedico à minha mãe, em seus 83 anos,
não apenas esta tese, mas o esforço
de minha vida, para que ela saiba que
valeu a pena...
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À CAPES, agradeço de forma singular, pelo auxílio sem o qual não
seria possível levar este projeto até o fim. Meu desejo é que muitas outras
pessoas possam ter o mesmo apoio.
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Agradecimentos
Na não breve caminhada de estudos, muitas são as pessoas às
quais não deixo de agradecer, mesmo que nem todas sejam citadas aqui.
À professora Salma Tannus Muchail, que orientou meus estudos –
para mim, sempre exemplo da humildade que a sabedoria traz. Sem os
questionamentos e observações rigorosos (que, muitas vezes, desestruturaram
minha pretensa certeza), nenhum crescimento seria possível.
Aos professores Dulce Mara Critelli e Edelcio Ottaviani, pela singular
contribuição quando da qualificação do meu trabalho; cada observação pode
me auxiliar para os últimos encaminhamentos necessários.
À professora Jeanne Marie Gagnebin de Bons, pelas reflexões
provocadoras na disciplina “Filosofia e Literatura”; principalmente pela ideia de
que uma tese não precisa ser chata, podendo ser bonita – muito me esforcei
para isso. Em sua pessoa, agradeço aos professores e alunos da PUC-SP.
Aos meus professores de alemão: Sissi (Araras), Giselle (Ribeirão
Preto) e Dirceu (Campinas), por terem aturado minhas curiosidades filosóficas
com relação ao idioma que, acima da aspereza da língua, pode ser saboreado
no mundo novo que abre.
Ao André Luís, por ser verdadeiramente companheiro em toda esta
caminhada.
A toda minha família, de sangue ou de amizade, por toda palavra de
incentivo; mas, principalmente, por compreender meus momentos de ausência.
À Heloísa Toledo, amiga que me auxiliou no germinar desta tese,
quando me presenteou com o livro de Fernando Pessoa; em seu nome,
agradeço a todos os amigos de Ribeirão Preto.
À Carolina Yaly, pela amizade e todas as discussões poético-
filosóficas que brotavam, mesmo em um ambiente hostil que é o do trabalho
administrativo; em sua pessoa, agradeço a todos os amigos com os quais
partilhei angústias e alegrias que eu vivenciava.
Por fim, agradeço ao existir, por me permitir quebrar laços e eu
perceber que sempre haverá caminhos.
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Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger
Luís Fernando Crespo
Resumo
Tomando como fio condutor a obra Serenidade (Gelassenheit), a
tese trata do referido tema como proposta filosófica; tal problemática é
encontrada na fase conhecida como “segundo Heidegger”. Tendo sempre,
como horizonte-guia, a questão do ser e seu sentido, o objetivo é entender de
que modo a serenidade pode ser afirmada como proposta e a quem ela se
destina. Serenidade é postura e, tratando da relação que o homem estabelece
consigo, com o mundo e com o ser, o centro da reflexão se dá de forma tríplice,
firmando-se nos problemas 1) do pensamento como resposta do homem ao
chamado do ser, 2) do mundo em sua constituição no dar-se dos entes e 3) do
ato de nomear as coisas. Como elemento singular, aparece a palavra que
nomeia – de modo especial, a palavra poética com seu nomear genuíno (como
afirma o pensador), não sujeitando o ente ao desejo da razão que calcula.
Conforme os temas aparecem e se relacionam, vê-se surgir um novo modo de
representação do mundo, que tem o deixar-ser (sein-lassen) como
característica principal. É exatamente o deixar-ser que aproxima pensador e
poeta. Enfim, o outro modelo de racionalidade que vigora no pensar de
Heidegger apresentado neste trabalho está em constante tensão com a técnica
– seu falar e seu fazer – que, por sua vez, segue os caminhos da razão
objetivadora e calculadora (cuja representante maior é a ciência). A tese se
encerra com textos de poetas de língua portuguesa que, em nosso
entendimento, permitem-nos fazer a experiência do poetar pensante.
Palavras-chave: Martin Heidegger; Filosofia; Serenidade; Pensamento;
Racionalidade; Poetar Pensante; Poesia; Habitar.
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Serenity: poetizing thought and thinking in Heidegger
Luís Fernando Crespo
Summary
Trailing the work Serenity (Gelassenheit), the thesis deals with that
issue as a philosophical proposal; this problem is found in the phase known as
"second Heidegger". Always having as horizon guide, the question of Being and
its meaning, the goal is to understand how serenity can be affirmed as proposal
and to whom it is intended. Serenity is attitude and, dealing with the relationship
that man establishes with himself, with the world and with Being, the center of
the reflection occurs in a threefold way, establishing itself in problems 1) of
thought as human response to the call of Being, 2) of the world in its
constitution and in beings’ occurences and 3) of the act of naming things. As a
singular element, emerges the word that names, in particular, the poetic word
with its genuine name (as stated by the thinker), not subjecting the being to the
desire of the reason that calculates. As the themes appear and relate, one
observes the appearance of a new way of representing the world, whose main
feature is the let-be (sein-lassen). It is exactly the let-be that approaches thinker
and poet. Anyway, the other model of rationality that prevails in the thinking of
Heidegger presented in this thesis is in constant tension with the technique - its
talk and its doing - which, in turn, follows the ways of objectifying and
calculating reason (whose main representative is science). The thesis
concludes with portuguese-speaking poets' texts that, in our view, allow us to
experience the thinking poetizing.
Keywords: Martin Heidegger; Philosophy; Serenity; Thought; Rationality;
Thinking Poetizing; Poetry; Dwell
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... no tempo da noite do
mundo, o poeta diz o sagrado.
(Martin Heidegger)
No fim do mundo de tudo
Há grandes montes que têm
Ainda aléns para além –
Um grande além mago e
mudo.
São paisagens escondidas
Que são o que a alma quer.
Ali ser, ali viver
Vale por vidas e vidas.
Todos nós, que aqui
cansamos
A alma com a negar,
Num momento de sonhar
Ali somos, ali estamos.
Mas, depois, volvidos onde
Há só a vida que há
Vemos que ante nós está
Só o que vela e que esconde.
Só dormindo os horizontes
Se alargam e nasce a visão
Dos montes que ao fundo
estão
E o sonho do além dos
montes.
(Fernando Pessoa)
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................... - 11 -
Capítulo 1 – No caminho das palavras, o pensamento ................................ - 30 -
1.1. Das necessidades do caminho para a serenidade .......................... - 31 -
1.2. A palavra do autor em três textos ................................................... - 34 -
1.2.1. “O que quer dizer pensar?” ....................................................... - 35 -
1.2.2. “A coisa” ................................................................................... - 59 -
1.2.3. “A palavra” ................................................................................ - 76 -
Capítulo 2 – Pensamento, ciência, experiência – qual o espaço para a
serenidade? ............................................................................. - 91 -
2.1. O interessante e o que cabe pensar ............................................... - 92 -
2.2. Mundo e experiência ....................................................................... - 99 -
2.3. A fixidez do presente: a ciência e a subordinação do ser ao ente - 102 -
2.4. O ente para além de Gegenstand: o Geviert ................................. - 111 -
Capítulo 3 – Poesia e pensamento – a fala da serenidade ........................ - 118 -
3.1. A linguagem, a palavra e a poesia ................................................ - 119 -
3.2. Poesia e pensamento .................................................................... - 122 -
3.3. Poesia – da experiência do mundo para o acontecimento
no mundo ...................................................................................... - 125 -
3.4. A medida da ciência e da poesia .................................................. - 132 -
3.5. Para que poetas e pensadores? ................................................... - 140 -
Conclusão .................................................................................................. - 150 -
I. Dos caminhos da serenidade: poesia e filosofia no encontro
com o mundo ....................................................................................... - 151 -
II. Da experiência do poetar como pensamento: serenidade .................. - 154 -
III. A discussão que leva ao devaneio: o exercício do poetar pensante .. - 157 -
Referências ................................................................................................ - 172 -
Advertência
Para os trechos das obras de Heidegger que entendemos serem fundamento
do que será discutido nesta tese, optamos por apresentar também o texto
original entre colchetes, em nota de rodapé.
Siglas das obras
CF – Caminhos de Floresta
CL – A caminho da linguagem
EC – Ensaios e conferências
US – Unterwegs zur Sprache (GA 12)
VA – Vorträge und Aufsätze (GA 7)
GA – Gesamtausgabe (Obras Completas)
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Introdução
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Aqui, tudo é caminho de um co-responder que escuta e questiona. Todo caminho corre o perigo de desencaminhar-se. Para percorrer tais caminhos é preciso exercitar o passo. Exercício pede trabalho, trabalho de mãos. Permaneça no caminho da autêntica necessidade e aprenda, neste estar errante a caminho, o trabalho do pensamento, um trabalho de mãos.
M. HEIDEGGER, A coisa
O pensamento se mostra como tarefa urgente ao homem – mas não
qualquer pensamento. O homem se vê rodeado de tudo o que fez do mundo,
mas percebe que as relações com o próprio mundo estão extenuadas; ele
necessita do que renove seu modo de estar sobre a terra. Este homem
caminha só, na indigência de um tempo sem direção e de coisas sem sentido.
O que falta ao pensamento é que ele se volte sobre si, o que exige a abertura
de um espaço no fazer cotidiano. “Abrir espaço” é, em meio a um falar
desmedido, fazer ouvir uma fala que ressoa pelo tempo; é como, ao adentrar a
floresta densa, abrir clareira na qual o homem possa parar diante do
indescritível.
O homem, como ente que pensa, encontra-se em um estado
catatônico de pensamento, dando origem a um vácuo, a partir do qual a ciência
conquistou espaço e se estabeleceu, firmando-se com a ideia de ser “o”
caminho para a verdade. Transferiu-se ao cientista a responsabilidade de
pensar; mas resta algo impensado que a ciência não alcança – nem o fará –
com seu modelo de racionalidade.1 Na indigência, na qual está o homem,
intentamos abrir espaço para um novo modo de estar, sereno.
1 Somos “[i]nfelizmente, formatados e domesticados pelo pensamento conceitual metafísico, pelo racionalismo moderno e idealista, onde só aparentemente se questiona [...].” (M. A. de CASTRO, “Apresentação”. In: M. HEIDEGGER, A origem da obra de arte, p.XVI.)
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É neste caminho que vamos nos colocar, pela urgência de um
pensamento que abarque mais da realidade e permita novo estar ao homem.
Um estar que não seja no desejo de domínio e exploração, mas de mais vigor
como ente que está entre outros e difere dos demais – o único que pode
responder aos apelos do ser2. Nosso esforço servirá para abrir um espaço, no
qual o homem tenha condições e esteja pronto para ser.
Esta é uma tese sobre o pensamento de Martin Heidegger (1889-
1976); problematizaremos conceitos que nos permitirão compreender
diferentes temas do âmbito que trata do pensamento e da poesia no
delineamento da postura do homem diante do mundo. Veremos a atualidade
das reflexões apresentadas pelo autor e as entenderemos como proposta para
o homem de qualquer tempo. Além das dificuldades de se abordar um
pensador do porte de Heidegger, nosso risco é o de abrir caminhos que não
conduzam significativamente ao “lugar” no qual suas palavras indicam a
construção de seu pensar.3
Uma tese é a abertura de um caminho de pensamento. Esta
concepção já nos coloca na via do modo como trabalharemos ao longo deste
texto: partindo das ideias de Heidegger, buscaremos abrir caminho para
interpretar a relação do homem com o mundo. O problema não é novo,
considerando estar presente na filosofia desde o desenvolvimento do
pensamento sobre o ser, com os pré-socráticos (Parmênides indica que
“pensar é ser”). Falar da relação homem-mundo é falar do ser, do homem em
seu existir e do existir dos entes. A proposta heideggeriana recoloca o
2 Entendemos haver um sentido quase único entre as expressões “do ser” e “de ser”. Na primeira, temos a determinação de “ser” como substantivo, enquanto, na segunda, permanece “ser” como verbo; porém, ambas fazem referência ao fundamento da existência. Por exemplo, “chamado do ser” e “chamado de ser” é um mesmo chamado que a existência faz para que o homem se coloque em um espaço entre o ser e o ente, no vigor do Da-sein (uma explicitação mais detalhada do uso do termo “Da-sein” encontra-se mais adiante, na nota 15 da página 18). Optamos pela expressão “do ser”, fazendo diferente apenas quando a situação o exigir. 3 Dificuldades, principalmente, ao considerarmos que a extensão da Obra Completa (Gesamtausgabe) está projetada para 102 volumes – o que não permite ao pesquisador ter a pretensão de elucidar as ideias em todo o caminhar do pensador, sendo possíveis apenas recortes. Ainda, de modo singular, a nós se mostra como grande desafio, não apenas as diferenças linguísticas, mas também a compreensão dos jogos que o autor faz com as palavras – nem sempre tão perceptíveis.
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problema, mas o faz a partir de novo ângulo de reflexão4: ao invés de ter o
homem como ente que questiona5, ele aparecerá como o ente que responde –
tal ideia altera o posicionamento do homem no mundo.
A mudança de posição muda a postura do homem, pois ela deverá
aparecer como espera (não passiva) diante do mesmo mundo, dos mesmos
entes. “Serenidade”6 é o nome que o autor dá a tal postura, que deve
possibilitar um estar-junto-às-coisas em uma relação de sentido; de maneira
inicial, o termo pode ser tomado em seu significado amplo e comum de
“postura que não desespera nem se perturba diante dos acontecimentos”, mas
veremos a necessidade de que o conceito seja lapidado. Muitas vezes
confundida com simples quietude e não-ação, a ideia de serenidade cai na
trivialidade.
Na tentativa de entender de que modo se encaixam, no desenho do
caminho percorrido pelo autor, nossa pretensão não será apenas a de
relacionar os conceitos “horizontalmente”, verificando onde e de que modo
aparecem; tentaremos uma “empreitada vertical”, na busca de suas raízes
(sejam as já conhecidas ou as que podem aparecer como ramificações).
Acompanhando as questões que nos guiarão, é importante ter em mente o
tema da serenidade: O pensar é algo de conhecimento óbvio para o homem?
De que modo o pensamento pode ser entendido como “fechado” para o mundo
e de que dependeria uma abertura? Como os entes podem ser repensados e
qual a implicação deste novo pensar na relação que o homem estabelece com
4 Embora haja diferentes sentidos para o termo “reflexão” no cenário filosófico, ele será utilizado sem grandes distinções, ao longo da tese, significando, diretamente, o “ato de lidar com as ideias, relacionando-as”. Assim, será possível encontrar “reflexão do filósofo”, “reflexão do cientista”, “reflexão da ciência”, “reflexão comum” etc. 5 Ser e tempo propunha a busca pela questão do ser e seu sentido a partir do homem, único ente que pode colocar tal questão: “O entendimento-do-ser é ele mesmo uma determinidade-do-ser do Dasein”. (M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.59.) 6 “Serenidade” é termo que tem origem latina em serenitas,-atis, e está diretamente relacionado a um modo de estar do homem, a uma postura de paz, tranquilidade, suavidade e não perturbação. Para este trabalho, porém, é importante tomarmos o termo como tradução de Gelassenheit, título de obra de Heidegger; a etimologia alemã auxilia no aprofundamento de nossa reflexão. Dividimos o termo em três partes – ge-lassen-heit: 1) “ge” é prefixo que dá a ideia de conjunto que une “coisas” dentro de um mesmo conceito, de uma mesma categoria, 2) “heit” é sufixo para substantivação de termo; e 3) o verbo “lassen” é o centro de conteúdo do termo e mais nos interessa, significando “deixar”: deixar estar, deixar ser, renunciar a algo. Deste modo, Heidegger fala da Gelassenheit como uma postura do homem diante de toda a realidade de seu mundo e de suas possibilidades. Gelassenheit indica algo não usual para nossa razão comum: trata-se de uma postura de totalidade junto aos entes, na compreensão de que, tanto o Da-sein quanto os demais entes, têm de estar na liberdade para a manifestação do ser.
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eles? Como entender os conceitos: linguagem, palavra, palavra poética e
postura poética? Qual serenidade é possível diante do turbilhão7 no qual o
homem está?
Peter Trawny afirma:
O pensamento de Heidegger é, no meu entender, essencialmente esotérico, sendo a partir desse esoterismo que diversos excursos exotéricos podem ser esclarecidos. Para Heidegger, o pensamento é uma travessia incessante para o adyton8, uma resposta sempre ainda pendente à sua própria im-possibilidade. O futuro da filosofia talvez dependa disso, a saber, se ela é ou não essa resposta pendente, essa abertura.9
É neste âmbito do esotérico que pretendemos adentrar, intentando
falar daquele significado denso que as palavras trazem. Pleno de riscos é o
caminho que se abre com nossa própria experiência do pensar; experiência
esta que, após o embate com as ideias do autor, não nos dá mais a certeza de
ser genuína. Isto ocorre, pois o pensar de Heidegger nos desconcerta,
revolvendo os fundamentos daquilo que, em primeira instância, era tido como
claro e certo. No caminho que percorreremos, conceitos10 que, antes, não
denotavam grandes problemas, tornar-se-ão graves.
O que este trabalho apresenta é um caminho de interpretação; é
trabalho não unicamente histórico, no entendimento de uma filosofia do modo
como se dá no tempo, mas hermenêutico, no desvendar o conceito, fazendo o
pensar vir de dentro da palavra. Adentrar no âmbito do esotérico é buscar a
relação com o mundo que o autor estabeleceu como base de seu pensamento.
Como indicado na citação anterior, por meio do esotérico se torna possível
compreender o exotérico.
7 Imageticamente, trouxemos o turbilhão; a ideia é a de que o homem é arrastado para fora daquele que poderia ser entendido como seu lugar na terra, entre os demais entes. Com esta imagem, expressamos a tamanha força de algo que impossibilita – ou, pelo menos, dificulta – o estar do homem na relação com o ser, por meio da relação com os entes. No turbilhão, tudo fica fora do lugar e as coisas perdem o sentido. Heidegger fala de tal força como “avalanche”, na qual o espiritual do homem se perde: “É a avalanche do que chamamos o demoníaco.” (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.72.) 8 “Adyton” é o lugar do inacessível no templo grego; diferente do lugar comum, nele apenas é possível adentrar com a permissão de um deus. O conceito é o mesmo do que, no tabernáculo (tradição hebraica), é chamado de “Santo dos Santos”. 9 P. TRAWNY, Adyton..., p.26. 10 Como exemplo: mundo, experiência, coisa, reflexão, pensamento, poesia etc.
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A problemática da relação do homem com o mundo nos apresentará
o modo como tal ente constitui seu mundo, especificamente na experiência de
nomear. Por sua vez, tal experiência nos remete ao problema da palavra e do
uso que o homem faz dela. Assim, o caminho que seguiremos nos levará a
tratar da palavra poética e a primeira necessidade será enxergar de que modo
a palavra foi forjada pelo autor para dar vazão às suas ideias, fazendo-as
vigorar; a segunda necessidade será a de verificar a diferença da palavra em
seu uso comum ou científico para o poético. Desafio é buscar, por meio de
conceitos, a possibilidade de quebrar conceitos; atividade paradoxal? De modo
algum, quando se reconsidera o entendimento que comumente se tem sobre o
pensar e de que modo este se coloca ao homem em seu existir. Pensamento,
palavra e existência se relacionam, intimamente, no homem.
O modo segundo o qual olhamos para o pensamento de Heidegger
nesta pesquisa (e as escolhas feitas ao longo de sua construção) é uma
possibilidade de reflexão, a partir de nossa percepção da obra tomada; neste
sentido é que será sempre presente nossa preocupação em retomar as
palavras do autor e de seus comentadores para não cairmos unicamente em
nossa intenção. A pretensão deve ser pensada a partir das palavras do próprio
Heidegger, quando fala do poeta Hölderlin:
Como se a sua obra [de Hölderlin] precisasse disso [justiça] e, em especial, pela mão dos maus juízes que há por aí hoje em dia. Hölderlin é abordado de um modo “histórico”, desconhecendo-se aquele único facto essencial de a sua obra, ainda privada de tempo e de espaço, já ter superado o nosso espalhafato “histórico” e fundado uma outra História, aquela História que se inicia com a luta pela decisão sobre a vinda ou a fuga do deus.11
Os “maus juízes” são os que não executam bem a atividade de
desenvolver um julgamento; não são de modo simplista aqueles que têm uma
vontade má e que se debruçam sobre a obra com a finalidade de corrompê-la –
embora não tenhamos condições de excluir a possibilidade de quem queira
forjar interpretações. Mau juiz é também aquele que não tem condições de bem
julgar por não enxergar a partir dos parâmetros dentro dos quais a obra pode
vigorar. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando uma obra filosófica ou poética
11 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.9.
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é apropriada pelas diversas ciências, considerando-se a parcialidade no ângulo
de visão destas. Uma obra não vigora sozinha, pois faz parte dela o seu
entorno.
Bem corremos o risco de nos tornarmos maus juízes; mesmo assim,
restará a consideração de que um “avanço” não se dá apenas de modo linear.
Sabemos que a filosofia assim se fez ao longo da história, pois, nem todo
desvio de caminho significa que ele não deveria ter sido percorrido.
Tendo o conceito de serenidade como meta, o caminho que
percorreremos problematizará temas que entendemos constituírem base para a
reflexão – de modo especial, os temas do pensamento e da poesia em uma
relação tal que permita entender pensador e poeta como próximos em seu
estar no mundo. Os elementos trazidos vêm da filosofia de Heidegger como um
todo, mostrando haver nela a unidade de um centro ordenador, embora as
problematizações abram caminhos diversos de reflexão. A diferença de tais
caminhos pode ser observada tomando-se por base a comumente aceita
divisão entre os chamados “primeiro Heidegger” e “segundo Heidegger”.
Com Ser e tempo, o autor se apresenta no cenário filosófico com um
projeto incisivo no questionamento da tradição filosófica: rever o que foi
construído ao longo do tempo, percebendo os desvios12 que tiraram o filosofar
daquilo que deve ser seu centro ordenador (a questão do ser e seu sentido),
ultrapassando os preconceitos13 e recolocando a filosofia em seu caminho
original (no sentido de “origem”). Eis um projeto mais destrutivo do que
restaurador:
Ser e tempo era, porém, um estranho tratado, como dele diria o próprio autor. Previsto em duas partes, saiu incompleto, contendo apenas duas das três seções programadas da primeira parte, em desacordo com o plano delineado em sua introdução. E incompleto permaneceu, sem que a segunda parte da obra e muito menos a terceira seção da primeira, com
12 M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.33: “Aquilo que de modo fragmentário e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenômenos pelo supremo esforço do pensamento de há muito se trivializou”. [“Und was ehemals in der höchsten Anstrengung des Denkens den Phänomenen abgerungen wurde, wenngleich bruchstückhaft und in ersten Anläufen, ist längst trivialisiert”. (Ibid., pp.32)] 13 O autor fala que o ser foi entendido como conceito mais universal, indefinível e óbvio. (Cf. Ibid., pp.35-39)
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o título inverso de Tempo e ser, tivessem vindo a lume. Contudo o mais estranho foi que, voltando ao problema-mor da tradição filosófica, rejeitado ou neutralizado pelas correntes modernas, esse fragmento de uma obra segmentada revolveu a especulação metafísica a que aparentava retornar.14
A analítica do Da-sein15, inaugurada em Ser e tempo, abriu caminho
para o questionamento do ser; é caminho que se abre a partir de um ente
singular, o homem. Como ente que problematiza – por ser o único a se
relacionar com a questão do ser, questionando seu próprio ser – o homem foi a
via de acesso por meio da qual o projeto heideggeriano seria possível. Mas a
incompletude do projeto talvez seja a possibilidade para a evolução
problemática do “segundo Heidegger”.
A filosofia não insere o homem em seu ser ente como Da-sein.
Enquanto aprendizado de uma história na qual o pensamento se deu ao longo
do tempo, o filosofar não aproxima do habitar. A filosofia como “história do
pensamento” fala, mas não ouve. A necessidade que se mostra é a de que o
homem aprenda a ouvir, a ver e a deixar-ser, pois apreender um pensamento é
ouvir e, neste ponto, pensador e poeta estão próximos – ambos ouvem os
apelos que não são transparentes ao homem comum.
14 B. NUNES, Passagem para o poético, p.9. 15 Optamos pela utilização do termo sem traduzi-lo, por conta das diversas e divergentes traduções existentes. O termo Dasein é o infinitivo substantivado de sein (ser/estar), significando a presentificação de algo, ou seja, o “estar presente”; por volta dos séculos 17/18, significava exatamente “presença” e logo acabou assumindo, em âmbito filosófico, o significado de “existência” no lugar do termo de origem latina Existenz; do mesmo modo, foi assumido no vocabulário poético, no sentido de “vida”. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.208) Deste modo, Dasein pode ser entendido como o estar-presente de algo, é aquilo que está sendo no momento presente; aquilo que está sendo de algum modo é o ente (termo com origem no particípio presente latino do verbo ser [esse]). Assim, o ente é o que “está sendo”, é o Dasein. Mas Heidegger faz uso específico do termo, forjando-o para que pudesse dar o sentido que pretendia no contexto de sua construção teórica: ele divide o termo em duas palavras alemãs, a saber, “da” (aí) e “sein” (ser); o uso do hífen bem indica o destaque objetivado (Da-sein). O autor consegue dar um significado específico, reforçando a mesma ideia de “estar presente”, usando o termo para um determinado modo de existir, que é o do homem; neste sentido, é também trazida a ideia de que no existir do homem está o próprio ser. O homem não é o ser de qualquer modo, mas o ser aí, determinado em um tempo/contexto que diz de sua singularidade. Embora, costumeiramente, sejam tratados como equivalentes os termos “homem” e “Da-sein”, o Da-sein não é propriamente o homem, mas sim o modo de ser específico do homem.
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O pensamento que embasa nossa reflexão teve origem após a
viragem16 (Kehre) da filosofia heideggeriana. Caso fosse considerado de modo
simplesmente histórico, na verificação de quando os conceitos aparecem de
modo exato, tal pensamento seria incomensurável, já que faz referência ao
período no qual está a maior parte da produção do autor. Optamos por eleger
textos a partir dos quais pudéssemos abrir caminho, escolhendo conceitos que
contribuíssem para a reflexão, do modo como a elaborávamos. Mesmo
delimitando o âmbito dos conceitos, percebemos a incomensurabilidade; tanto
que, adequadamente, pode ser utilizada aqui a metáfora do bosque, tão cara a
Heidegger: a noção do que se vê, olhando o bosque de fora, não é
proporcional à dimensão que se abre quando nele se adentra.
A mudança de orientação da filosofia heideggeriana – ainda que se
mantenha sempre no âmbito da questão do ser17 – é uma viragem que altera o
“lugar conceito” por meio do qual se torna possível problematizar o ser. Sendo
o ente que pergunta sobre seu ser, o homem é quem primeiro deveria ser
questionado (reflexão realizada em Ser e tempo); porém, no desenvolvimento
do projeto do autor, outros conceitos se revelaram como mais fecundos para o
tratamento da questão. E, no lugar do homem, ganha consideração singular a
linguagem – que não significa “fala” ou “expressão”, mas a própria linguagem
16 A viragem é a identificação (academicamente aceita) do “momento” no qual ocorre a significativa mudança de rumos no caminho que o pensador deu para seu filosofar. A passagem para o chamado “segundo Heidegger” pode ser observada inicialmente na obra que trata da essência da verdade, de 1930, a saber, Vom Wesen der Wahrheit (GA, Band 9). Benedito Nunes afirma que “na temática do segundo Heidegger, o círculo hermenêutico a que são concêntricos os dois outros, o histórico e o ontológico, coincide com o da linguagem, quer em virtude da pergunta mesma, que é discurso (lógos), quer em virtude das palavras. Sem linguagem não haveria desvelamento nem retroveniência à origem: origem não absoluta – o ente enquanto presente, esse êxtase do tempo que despontou uma vez na língua grega, o idioma da Filosofia”. (B. NUNES, Passagem para o poético, p.211) Em Platons Lehre von der Wahrheit (GA, Band 9), no início da década de 30, Heidegger identifica claramente a mudança de pensamento sobre a verdade, no Mito da Caverna. Tal mudança foi a responsável pelo esquecimento do ser ao longo do tempo pois, após a filosofia platônica, a experiência do ser no existir dos entes (algo bem presente nos primeiros pensadores da filosofia) solidificou-se e permitiu o desenvolvimento da metafísica como tradição. Em Brief über den Humanismus (GA, Band 9), de 1946, pode ser encontrada, de modo explícito, a viragem, na problematização da linguagem e na aproximação de poetas e pensadores. 17 Werle afirma:
...em Ser e tempo, a questão do ser foi somente colocada, mas não resolvida – aos poucos Heidegger irá notar que a questão em si não tem solução, e que ela deve ser sobretudo cultivada e mantida acesa como tarefa constante do pensamento. O que permanece posto para o pensamento subsequente a Ser e tempo é o desenvolvimento de sua questão fundamental. Trata-se, para Heidegger, de operar uma desvinculação da problemática do ser calcada em categorias contaminadas pela metafísica e de buscar um acesso mais direto ao ser, que sempre transcende o ser do homem”. (M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, pp.34-35)
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do ser: é o fato de entes existirem que vem ao homem e se dá como
linguagem18 – o ser se dá como linguagem.
De algum modo, o ser se deixa questionar e o elemento pelo qual é
permitido o questionamento é a linguagem – não a “linguagem falada” pura e
simplesmente, mas a linguagem na qual o homem se vê lançado desde
sempre. Inserido na linguagem que seu existir recebe, é, então, preciso que se
decida sobre o ponto pelo qual começar o questionamento. Tal experiência de
uma linguagem “original” da existência deve ser buscada nos elementos pelos
quais ela melhor pode ser expressa; a pergunta a se fazer é sobre qual seria tal
“melhor expressão” da linguagem.
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o poema.19
A indicação de Heidegger é a de que se tome a mais singular
expressão da palavra, que é a palavra poética. Nesta empreitada, a própria
questão do pensamento é posta, pois, ao tratar da linguagem/palavra poética,
parte-se para um modo de uso da linguagem que não segue o formal e
instituído; dizendo de outro modo, na pesquisa sobre o modo poético de
pensar, é questionada toda a tradição de pensamento e linguagem. O novo
pensamento é apresentado como via para a essência da linguagem poética,
pois o autor vê serem necessários outros parâmetros de entendimento.
A filosofia de Heidegger, em toda sua extensão, mostra a
necessidade de que seja revista a tradição de pensamento que vigora na
história da filosofia (que ele chamou de “tradição metafísica”). Apenas como
exemplo, pode ser trazida a proposta de destruição da história da ontologia
18 Daí o entendimento de que não é o homem que tem a linguagem, mas o contrário, pois a consciência de existir que ele tem já se dá dentro de uma realidade que “aparece” a ele de certo modo – que é a linguagem do ser. O pensador afirma que “no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias”. (M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, pp.24-25) 19 Id., A linguagem; In: CL, p.12. [“Wenn wir darum das Sprechen der Sprache im Gesprochenen suchen müssen, werden wir gut daran tun, statt nur beliebig Gesprochenes wahllos aufzugreifen, ein rein Gesprochenes zu finden. Rein Gesprochenes ist jenes, worin die Vollendung des Sprechens, die dem Gesprochenen eignet, ihrerseits eine anfangende ist. Rein Gesprochenes ist das Gedicht”. (Id., US, p.14)]
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(Destruktion der Geschichte der Ontologie), indicada já em Ser e tempo, no §6:
“A tradição que assim se faz dominante, em vez de tornar acessível de pronto e
no mais das vezes o que ela ‘transmite’, ao contrário, encobre-o.”20
Considerando-se que o conhecimento filosófico sempre parte de determinado
ponto ao qual já se chegou anteriormente, o problema ocorre quando, por
pequeno desvio que seja, a filosofia é posta fora daquilo que lhe é próprio: tudo
o que a ela é acrescentado segue no mesmo desvio. Para o autor, depois de
um “brilho” inicial no nascimento da filosofia, com a experiência dos primeiros
pensadores gregos, já ocorrera tal desvio que, desde então, foi se solidificando
na tradição metafísica.
No mesmo questionar sobre o pensamento, implícita está a
problematização da razão em seu modo mais comumente aceito, a saber, a
científica. Esta se apresenta como único modo de racionalidade capaz de dirigir
o homem na busca pela verdade, assumindo a ideia de que “ciência e
pensamento se equivalem”. Ao contrário, o autor afirma, de modo incisivo, que
a “ciência não pensa”21. Tal asserção se mostra de modo a incomodar o leitor
e, neste sentido, buscamos verificar detidamente seu significado. O
desenvolvimento que daremos a tal afirmação ao longo desta tese nos
permitirá identificar pontos fundamentais do que seja o pensar – apenas no
entendimento de tal conceito é que se tornará possível a reflexão sobre a
palavra poética como expressão da linguagem do ser. Em última instância, é o
próprio pensamento que passa a ser questionado e O que quer dizer pensar? é
o texto que nos possibilita alargar os horizontes de reflexão.
Revisto o modelo de racionalidade e pensamento, aparece como
clara a ideia de que a filosofia (tradição) se mostra como um projeto que
caminha para seu fim; porém, há o pensamento, além da filosofia. O
pensamento como experiência similar à realizada pelos pensadores no início
da filosofia. O que cabe ao pensamento quando chegamos ao fim da filosofia
como plenificação do projeto metafísico da tradição? Resta aquilo que ainda
não foi tomado em consideração, o elemento esquecido ao longo do tempo: o
20 M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.85. [“Die hierbei zur Herrschaft kommende Tradition macht zunächst und zumeist das, was sie ‘übergibt’, so wenig zugänglich, da sie es vielmehr verdeckt”. (Ibid., p.84)] 21 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Die Wissenschaft denkt nicht”. (Id., VA, p.133)]
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ser em sua revelação. A revisão do paradigma de racionalidade permite tratar
da palavra poética; o que buscamos mais especificamente é a relação do
homem com o mundo, na construção da serenidade – permitida pelo pensar
meditativo e poético. É na tomada de um novo pensar que podemos refletir
sobre a proximidade essencial entre pensamento e poesia, pensadores e
poetas.22
A relação do homem com o mundo não se dá em abstrato, mas em
uma existência determinada, em meio às coisas que são. No intuito de trazer
para a discussão o modo como o homem recebe e considera as coisas, o texto
A coisa nos servirá de guia. A necessidade que se mostra é a de que nos
detenhamos no modo como o homem está em relação com as coisas. Será
preciso revisar, então, a experiência que se faz do pensar e de que modo a
filosofia heideggeriana propõe uma reflexão “fora” do que comumente se
entende por “racionalidade” – com isso, objetivamos questionar o modo como o
homem se relaciona com o mundo ao seu redor.
O modelo de racionalidade identificado no âmbito científico é o que
se faz presente e se sobrepõe a outros na contemporaneidade – trazido da
modernidade em seu ideal de razão. Tal modelo intenta construir um discurso
sempre “certo” das coisas que se apresentam no mundo, buscando falar “a
verdade” sobre a realidade – o sucesso disso traz a segurança ao homem
comum, mas, muito mais, traz a credibilidade para a ciência. Mas de que modo
é construído tal discurso? Ele apenas vigoraria em um mundo plenamente
cognoscível em suas entranhas; mas a capacidade racional do homem não tem
condições de indicar o que seja a plenitude do conhecer a realidade.
A ideia de um mundo “plenamente cognoscível” traz não apenas a
capacidade humana de conhecer, mas o mostrar-se das coisas que compõem
o real: elas devem ser cada vez mais transparentes, dando-se integralmente ao
homem, na experiência que ele faz delas. Para que isso seja possível, então, a
razão (nos moldes da ciência) constrói uma interpretação das coisas que passa
a ser entendida como a verdade das próprias coisas. Imageticamente falando,
22 “Abîme et proximité, différence extrême et appartenance au Même doivent être pensés ensemble pour que soit saisi le rapport des poètes et des penseurs qui, séparé par l’abîme, séjournent cependant dans une proximité essentielle.” (B. ALEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.136)
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se a interpretação fosse uma máscara das coisas, a razão científica toma a
máscara como sendo a coisa. A ciência mascara a realidade; e o sentido disso
reside no fato de que a ciência crê ter condições de conhecer o “todo” – pelo
menos, é o todo construído por ela mesma. Neste contexto, “estabeleceu-se
um discurso público no qual a filosofia só pode aparecer como ciência”.23
Na reflexão que faremos, tocando os temas “razão científica”,
“mundo” e “coisa”, a obra A coisa se mostra de capital importância por trazer a
ideia de que a realidade (as coisas que a compõem) “vai além” do que a razão
pode compreender e expressar. A citada obra é importante no sentido de
encontrar nas coisas que se dão na realidade um entrecruzamento de sentidos
que fazem delas não simplesmente o que se pode ver, mas o que trazem. Em
tal desenvolvimento, o próprio mundo se revela de outro modo e a noção de
“espaço” passa a ser revista por meio de um olhar lançado para as ideias de
“proximidade” e “distância” das coisas em relação ao homem.
Heidegger pensa a experiência do homem no e com o mundo, a
partir da experiência originária do início do pensar filosófico, na Grécia Antiga.
O autor entende que, naquele contexto, o questionamento filosófico
proporcionou “a” experiência junto ao ser. Tal experiência se deu como um
clarão, o brilho de um instante na história, que se apagou, mas deixou
guardada uma vivência – esta, que pode ser reconhecida e resgatada, pois
está “adormecida” nas palavras dos pensadores gregos, que foram
cristalizadas ao longo do tempo. A palavra grega não é simplesmente a fala
registrada, mas a tentativa de grafar uma experiência de mundo realizada por
aqueles que não eram só filósofos, mas também poetas. A palavra grega nos
traz a possibilidade de refletir sobre a origem do pensamento, da experiência
com o ser. Marlène Zarader afirma que
as palavras fundamentais não são apenas instauradoras de regiões. Apontam para um centro. Se é certo que podem ser desdobradas em direcção à sua diversidade, só encontram todo o seu sentido na condição de serem reenviadas à sua unidade primordial. Esta unidade – que constitui “o que há que pensar” nos textos do começo, o que espera por ser pronunciado, para lá do começo e, contudo, graças a ele – qual é o seu nome? Considerada do ponto de vista do seu
23 P. TRAWNY, Adyton..., p.43.
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enigmático teor, chamar-se-á “ser”; considerada do ponto de vista de sua função na história do pensamento, chamar-se-á “origem”.24
A experiência trazida pela palavra grega apenas pode ser vivenciada
pelos próprios gregos da Antiguidade, restando para a história apenas
fagulhas, indicações de algo que lá existiu. O conceito de “cristalização” das
palavras quer representar o processo pelo qual as palavras gregas foram
perdendo seu aspecto vivaz – experiência viva – e foram se solidificando.
Tendo por base este material sólido é que foi construída a metafísica (tradição).
Segundo o pensador alemão, a mudança de caminho no pensar grego foi
iniciada com nova interpretação para a verdade – alétheia –, identificada no
Mito da Caverna, no Livro VII, d’A República, obra de Platão.
Para o resgate da experiência original, na meditação sobre a
linguagem, é a palavra poética (“dito que se diz genuinamente”) que possibilita
o “ir além” dos parâmetros estabelecidos. A poesia traz a experiência de
mundo do poeta junto às coisas, não as dirigindo para um mostrar-se
determinado, mas na espera de que o próprio ser se revele nelas, como
linguagem do próprio ser.
É no pensar a palavra poética que a vivência de mundo do poeta
abre caminho para a experiência dos pensadores-poetas da Antiguidade. Isto
não significa voltar a realizar a mesma experiência – impossível pelas
diferenças contextuais. O que Heidegger intenta é a experiência ao modo dos
gregos, na construção de mundo do poeta da poesia de sempre – nos
“genuínos” poetas, segundo ele. Assim, ele elege alguns pensadores e poetas
por meio dos quais a experiência poética possa ser melhor compreendida.
24 M. ZARADER, Heidegger e as palavras da origem, p.24.
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Heidegger, um pensador, fala de Hölderlin, um poeta; sua tentativa é
tocar a obra de Hölderlin, não de dentro da filosofia, mas da própria experiência
poética. Falar de poesia, não significa falar de literatura. A literatura fala da
experiência literária de um autor, enquanto Heidegger intenta falar da própria
experiência poética que é origem e consequência das palavras do poeta. A
poesia de Hölderlin funda “outra História”, não marcada pela passagem de um
tempo cronológico, mas marcada pelo mundo que a experiência poética
permite. Tendo por base tal poesia, seria possível diagnosticar a doença de
“nossa” época e também a prescrição de como remediá-la.25 Em Heidegger,
não encontramos um filósofo que, pela filosofia, quer dirigir os caminhos de
uma poesia; mas nos deparamos com o pensador que busca entender
pensamento e poesia em uma mesma vivência de mundo.
E por que Hölderlin? Primeiramente, é importante perceber que o
filósofo alemão tem como objetivo maior, indicar os caminhos perdidos pela
filosofia ao longo do tempo; neste sentido, observando-se a situação histórica
vivida pelo povo alemão após a guerra, o autor entende também a necessidade
de que este povo retomasse seu caminho de realização na História. Há assim,
dois propósitos que podem, de um ou outro modo, ser alinhados. Heidegger
buscou em Hölderlin um herói: seria a via de acesso para seu projeto e
também seria “fazer justiça” a um poeta alemão que não teve seu valor
reconhecido em sua época.
Efetivamente, com Hölderlin, Heidegger reuniu em uma mesma
figura: 1) um personagem propriamente alemão, pessoa na qual poderia ser
reconhecido “qualquer alemão”, podendo se tornar um dos grandes nomes
para a reconstrução da identidade alemã, 2) um poeta, respondendo à sua
busca pelo que chamou de “expressão genuína” da palavra, que é a palavra
poética, e 3) um poeta que traz em sua problematização aquilo que podia ser
encontrado nos primeiros pensadores-poetas gregos. “Em nenhum poeta o ser-
25 Cf. J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, p.75.
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aí histórico, a urgência de criar e o destino da obra são tão intimamente um
como no caso de Hölderlin”26, afirma Heidegger27.
Na experiência de Heidegger com a poesia de Hölderlin, buscamos
o entendimento que o autor propriamente tem do que seja a poesia – suas
ideias foram, de modo especial, desenvolvidas na obra Hinos de Hölderlin
(tradução de Germanien e Der Rhein); de certo modo, tais ideias são
apresentadas brevemente em Hölderlin e a essência da poesia. Inicialmente,
para esta tese, o poetar é um dizer que se revela singular, desde que se
entenda a própria essência da poesia. O autor desenvolve a reflexão sobre tal
essência, a partir de cinco considerações: 1) o poetizar como a mais inocente
das ocupações humanas; 2) a linguagem, como um bem dado ao homem (o
mais perigoso dos bens); 3) a existência humana como diálogo; 4) o poetar
como atividade do poeta que instaura o ser com a palavra e 5) a morada
humana na terra, que apenas pode ser genuína quando poética.28
Chegando ao entendimento de algumas importantes características
da poesia – e podendo relacioná-la ao pensamento meditativo29–, nossa
investigação encaminhar-se-á para sua finalização sobre o pensamento e
serenidade, na construção do próprio mundo do homem, buscando a
26 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.14. 27 Cf. J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, pp.69-83; não podemos deixar de indicar a crítica apresentada por tal autor ao posicionamento filosófico de Heidegger com relação à proposta de retomada do modelo grego de experiência do mundo – que chama de grecocentrismo – e não menos pelo que construiu da figura de Hölderlin, como “o poeta dos poetas” e “o poeta dos alemães”. Tal autor indica – como crítica – a identificação que Heidegger faz de sua obra com a de Hölderlin: no intento de bem construir tal identificação, Heidegger perderia o exato ponto de separação entre o fazer do pensador e o do poeta, confundindo-os; Young fala de um projeto heideggeriano que seria de pensamento, sem deixar de ser poético nem político. Ele afirma:
“Heidegger continued to think and write about Hölderlin until the end of his life. But 1934-46 marks, I believe, the period of his intense engagement, the period of his struggle to comprehend just what it was that the poet meant to him. By 1946, by ‘What are Poets for?’, he had, it seems to me completed his appropriation of Hölderlin. Thereafter the relationship has metamorphosized into a kind of identity. The sense of struggle, of comprehension being in the process of being forged and reforged, tangible in the earlier texts, is absent from the later.” (J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, p.70 [note 1])
Por outro lado: “Qu’Hölderlin soit ici qualifié de poète du poète ne doit pas surprendre: l’expression se trouve déjà chez Hölderlin pour qualifier Homère, ‘le poète des poètes’, dans un fragment sur Achille prévu pour la revue Iduna qui ne devait pas voir le jour.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.94) 28 Cf. M. HEIDEGGER, Hölderlin e a essência da poesia. In: Explicações da poesia de Hölderlin, 2013, pp.43-59. [Id., Hölderlin und das Wesen der Dichtung; In: Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, pp.33-48.] 29 O conceito de “pensamento meditativo” (Besinnung) será desenvolvido adiante, quando ele será posto em oposição ao “pensamento calculativo” ou “calculador”, “objetivador”, da ciência.
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realização humana em uma morada poética. Não se trata de verificar o “mundo
poético de cada poeta”, buscando-se uma síntese; no fundo, ao considerar o
mundo como a construção de um conjunto de interpretações e modos de estar,
Heidegger indica que a construção de mundo do poeta revela um modo de se
relacionar que deixa as coisas serem o que são. O pensamento meditativo
proporciona o mesmo.
Elemento central a ser considerado é o nomear. Ele constitui o
mundo, pois, não nomeado, o mundo não é. Esta tese desemboca na ideia de
que o mundo nada mais é que a construção que se faz dele, tendo o nomear
como ato segundo, já que o primeiro é o próprio dar-se das coisas em uma
experiência pré-racional – entendendo-se que a experiência racional já seja a
tentativa de traduzir o aparecer das coisas para a palavra (falada ou escrita)
que, por sua vez, é signo que obedece ao modelo de racionalidade aceito. O
homem pode realizar sua existência de muitas maneiras, porém, apenas ao
modo dos poetas é que verdadeiramente ele pode habitar.
O texto A palavra possibilitará a reflexão sobre o nomear poético,
baseado na interpretação que Heidegger fez do poema de mesmo nome, da
autoria de Stefan Georg. O nomear é ato do poeta, mas que não depende
simplesmente de seu desejo: é preciso que o próprio mundo das coisas se
mostre; e a habilidade do poeta (que não se refere a certo tipo de habilidade
técnica) está no saber ouvir os apelos do ser e fazer com que as coisas
vigorem por meio de suas palavras – na verdade, por meio das palavras que
ele encontra e entende como aquelas que respondem a uma dupla
necessidade: de si e das próprias coisas.
No Capítulo I, teremos nossa experiência com os textos de
Heidegger. Os três principais momentos que compõem o capítulo remetem a
cada um dos textos que escolhemos como base. Será experiência árdua, na
tentativa de que as palavras de Heidegger sejam ouvidas na intenção do autor
e que indiquem o problema tratado por detrás do texto, bem como o caminho
escolhido para refletir sobre ele. Trabalho de espera, no sentido de que as
repetidas leituras e questionamentos nos coloquem em discussão com o
pensador. Trabalho de escavação, procurando sempre maior aprofundamento
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nas brechas que se abrem diante de nossas pretensas certezas. Em nossa
vida acadêmica, é oportunidade de nova experiência, colocando-se sem
mediação diante da obra.
As três obras escolhidas serão ouvidas e esmiuçadas nas malhas de
ideias que as compõem: cada questionamento se abrirá em outros – e assim
por diante. Será trabalho de confronto do que somos com o que se nos
apresenta; estaremos sós, diante do bosque desconhecido, tendo a tese como
abertura de caminho. O que quer dizer pensar?, A coisa e A palavra são textos
inesgotáveis, e bem sabemos que a leitura posterior à exposição que aqui
faremos pode abrir caminho para nova tese. Neles, queremos enxergar os
elementos que podem sustentar a ideia de serenidade.
No capítulo 2, tematizaremos a experiência que o homem realiza no
mundo, junto às coisas, a partir dos conceitos advindos do capítulo anterior. A
questão do ser é presente na obra de Heidegger como base e elemento
unificador; desta raiz, as problemáticas se desdobram e levam à necessidade
de novos modos de compreensão e postura – o que, por sua vez, significa a
necessidade de que o homem coloque para si a questão do próprio
pensamento. O capítulo, inicialmente, tratará do pensamento, na busca de
elucidar o modo como Heidegger o entende, diferenciando-o daquilo que são
as concepções comum, científica e filosófica. Em seguida, as temáticas se
relacionam ao modo como o homem realiza sua experiência de mundo – este,
que aparece povoado de coisas junto às quais o homem pode se realizar como
Da-sein. A experiência de mundo do homem se dá a partir de diferentes modos
segundo os quais ele recebe as coisas. Não apenas explicitaremos o que seja
o modo de enxergar proporcionado pela razão científica, que reduz os entes a
seu aparecer do instante, mas veremos qual é a proposta heideggeriana de um
pensar que permita mais ao ente, apresentando a noção de Geviert – a
quadratura –, dentro da qual as coisas podem ser entendidas em seu sentido.
Tratando, de modo especial, do tema da linguagem, o capítulo 3 fará
a apropriação necessária das ideias anteriores, para que seja possível tocar de
modo mais pontual a questão da poesia. Não temos uma definição última do
que seja o poetar, mas temos indicação de caminhos que podem ser
- 29 -
percorridos até o centro do fazer poético. Seguiremos tais caminhos e, na
intersecção entre os conceitos, poderemos problematizar o grande tema da
poesia, falando especificamente do poeta e da construção de seu mundo, na
experiência com a palavra. O poeta constrói seu mundo de modo a deixar as
coisas serem o que verdadeiramente são, não as dirigindo em um aparecer
determinado. Atenção especial daremos ao tema da medida, pensando de que
modo são poesia e ciência medidas da realidade.
A serenidade se mostrará, então, não simplesmente como um
caminho qualquer para o ser humano, mas como postura necessária a partir de
um chamamento da existência como um todo. Enquanto o homem se perde na
exigência de produção e armazenamento do que os entes podem oferecer, a
serenidade é a possibilidade de que o homem se encontre dentro do mundo.
Em suma, esta tese se abre como possibilidade de um olhar sobre a
filosofia de Heidegger; de modo especial, a partir do novo olhar que ele lança
sobre a filosofia como um todo, revendo o posicionamento do homem no
mundo. Nossa tentativa será a de enxergar aquilo que o pensador apresenta
como “contribuição” à filosofia. Mesmo com qualquer classificação30,
entendemos haver apenas um Heidegger que, ao longo de sua produção,
tomou os caminhos necessários para dar voz à questão que o instigava.
A decisão esotérica de Heidegger inicialmente diz respeito à relação entre linguagem e destinatário. Linguagem deve ser aqui entendida como aquela capaz de corresponder a tarefas específicas da filosofia. O filósofo possui uma relação diferenciada com a linguagem e não se orienta de modo algum em direção à linguagem do cotidiano. Heidegger está, sem dúvida, pensando na poesia sem jamais querer imitá-la. O destinatário é aquele que, desde um reconhecimento, encontra-se disposto a se deixar interpelar por essa linguagem. Assim como cada destinatário é específico, também o destinar-se no dizer ou na escrita é sempre específico.31
Neste sentido é que iniciamos esta tese: colocando-nos como
destinatários de um dizer que não se faz público, não por necessidade pessoal
do filósofo, mas por necessidade e exigência d’aquilo-que-dá-a-pensar.
30 Referimo-nos a uma pretendida e clara separação entre “primeiro Heidegger” e “segundo Heidegger”. 31 P. TRAWNY, Adyton..., p.55.
- 30 -
Capítulo 1 – No caminho das palavras, o pensamento
- 31 -
1.1. Das necessidades do caminho para a serenidade
Na obra de Heidegger, a ideia de “caminho” (Weg) se faz presente
com importância singular: aparece para indicar um pensamento que se faz, ou
seja, que não é pronto e dado. Sabe-se a direção na qual se deve ir (no caso,
mirando o ser e seu sentido), porém é exigida a força para enfrentar os solos
mais áridos, em paisagens não tão definidas. Pesquisar sobre o pensamento
heideggeriano é, assim, tarefa de percorrer caminhos. O grande risco – e risco
certo – é acompanhar a trilha que, abruptamente, se desfaz em vazio de
palavras, restando somente a realidade diante do pesquisador.
As ideias de Heidegger abrem diversos caminhos de pensamento,
mas a atividade de acompanhá-las leva o pesquisador a se deparar com uma
realidade não antes imaginada. Na verdade, é a realidade já conhecida, mas
que aparece (ou é recebida) de outro modo. A experiência filosófica junto do
pensamento de um filósofo chega ao ponto em que nos deixa sós, para que,
ainda que obliquamente, possamos fazer uma experiência que se aproxima
daquela do autor. Assim, o trabalho que realizaremos neste capítulo será de
reconstrução/ reconstituição.
O risco, aqui, passa a ser outro: desviar-se dos caminhos abertos
pelo próprio autor. Para aquilo que, comumente, podemos chamar de
“progresso” em filosofia, seria clara a importância dos “novos caminhos”. Mas,
de início, o intuito deste trabalho será o de seguir os passos de Heidegger nos
caminhos abertos por ele. Objetivamos nos aproximar da experiência de
pensamento por ele realizada – que é experiência filosófica, mas que toca o
âmbito do humano como um todo.
Para trilhar os caminhos, tomaremos os rastros, a saber, as palavras
do próprio autor e, como auxílio para que não nos desviemos da trilha original,
traremos as ideias de diversos pesquisadores que se debruçaram sobre a
extensa produção filosófica do pensador alemão. Deste modo, o que aqui
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começamos não é caminho puramente original, mas aberto por Heidegger e
percorrido por muitos outros que vieram. Nem todo o caminho está plenamente
aberto – de alguns, há apenas indicações.
As questões aqui levantadas misturam-se com a questão de como pensar e dizer um pensamento jamais pensado e uma língua jamais pronunciada. Mais do que um delírio de filósofo, de um esteticismo poético ou de qualquer formalismo filosófico e conceitual, o que Heidegger busca pensar e dizer é como o dizer e o pensar são neles mesmos o se pensar e se dizer dos tempos, os tempos em que se acena uma transformação do próprio sentido de transformação, o “outro” começo como um outro sentido de começo no começo de um outro sentido.32
Qual rastro seguiremos? Dos inúmeros textos, poderíamos ter
selecionado diversos que nos permitiriam pensar a proposta heideggeriana da
serenidade como postura diante do mundo. Porém, escolhemos três obras que
nos apareceram com condições de oferecer a base para o caminho que
queremos trilhar. A serenidade deve ser compreendida a partir do contexto de
pensamento que o autor construiu; ou seja, em nosso projeto, o conceito de
serenidade deve ser o ponto ao qual se chega depois do entendimento da
necessidade de uma nova postura.
Que necessidades existem para conseguirmos apresentar o
caminho da serenidade? Primeiramente, temos de entender que o caminho não
é puramente nosso, não é novo e não está terminado. O caminho está aberto e
vamos seguir pisando nas pedras colocadas pelo pensar de Heidegger. A
disposição é necessária não apenas para iniciar, mas, principalmente, a cada
vez que as ideias não se derem de modo claro e direto, exigindo de nós a
parada. As coisas devem se mostrar por si mesmas e nosso esforço será o de
entendê-las no que são ao invés de tentar fazê-las aparecer no nosso padrão
de entendimento. Significa que temos de tomar o que aparece no caminho –
todo elemento do detalhe é importante. Vemos que a serenidade é nosso
objetivo, mas é necessária já desde o primeiro passo.
Ao escrever Serenidade, Heidegger olha para seu tempo e percebe
que o contexto indicava a necessidade de que a questão do pensamento fosse
32 M. SCHUBACK, “Apresentação”, In: P.TRAWNY, Adyton, p.15.
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posta, diante da ameaça da técnica (que apresentava sua força na indústria da
guerra). A guerra veio e mostrou a potência da tecnologia, mas mostrou
também a destruição que era, além de física, espiritual. Em primeiro lugar, a
noção de “espírito” deve estar clara: é o espírito que decai, sendo desligado
daquilo que constitui o humano, para uma vivência voltada unicamente para o
ente. Entendemos que a ideia de Heidegger deve ser alargada, de modo
supratemporal.
Dizer que o homem “está vivendo uma crise espiritual na atualidade”
não é exato – não apenas pela delimitação do significado de “atualidade”, mas
porque a crise é constituinte do homem. Heidegger vivenciou a decadência do
Da-sein em uma época específica e buscou uma saída em seu filosofar,
propondo algo como solução que entendeu como legítima; ele não considerou
totalmente que o vigorar do homem é um sustentar-se que deve se dar na crise
espiritual. O homem como Da-sein se dá no espaço da crise; fora do âmbito
humano, a crise não pode ser pensada com o mesmo sentido. Por outro lado,
pensar um tempo fora da crise seria crença cega em uma verdade temporal
que estabelecesse a plenitude do ser.
O tema “crise”, muitas vezes, é entendido como propriamente
pertencente aos âmbitos da psicologia (crise individual), da economia e
administração (relativa ao mercado), da sociologia (instituições sociais na
relação com o cidadão) e da religião (crença e fé). Vivenciamos uma crise
espiritual na atualidade? Sim; e não importa o “quando” desta atualidade. O
adjetivo “espiritual” não nos remete a concepção religiosa alguma, mas àquilo
que constitui o espírito humano em seu vigorar – o homem se fez homem no
cultivo de seu espírito. Entendendo como núcleo da crise a consciência que o
homem tem de sua não possível dominação plena sobre os entes, o conceito
de “serenidade” apresentado por Heidegger é o que entendemos como
possível para o homem: proposta não é acabar com a crise, mas ter nova
postura, a partir de nova visão. Serenidade é espera em vez de desejo de
controle.
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1.2. A palavra do autor em três textos
Falar da serenidade exige que se compreenda o modo como o
homem está no mundo e com ele se relaciona. Como primeiro ponto,
desenvolveremos a questão do pensamento, pois a relação com o mundo
apenas se dá pela sua mediação: o homem está no mundo e pensa sobre o
que nele aparece. O pensamento sobre as coisas permite um determinado
estar no mundo, que é diverso, diante de coisas diversas e para pessoas
diferentes. Fala-se em “pensamento”, não se tendo ao certo uma definição do
que ele seja e o que pode alcançar.
Na sequência, é necessário que entendamos o que propriamente o
autor entende por “coisa”, podendo identificar alguns elementos que a
constituem. Veremos que o pensamento tem de receber as coisas no que elas
são, para que se possa propor um modo de estar junto a elas. Nem tudo é
coisa, mas tudo pode ser coisa. Que diferença é esta? O que é preciso para
que a coisa seja identificada? Passamos para o terceiro tema: a palavra.
O mundo do homem aparece quando povoado de coisas, ou seja,
quando elas podem ser identificadas e trazidas para tal mundo. As coisas
devem ser nomeadas. Nomear é a experiência que o homem faz com as
palavras, atribuindo-as às coisas, fazendo com que estas sejam trazidas,
aproximadas, e possam vigorar; dizendo de outro modo, o nomear faz com que
o ente seja. Tomaremos a experiência da palavra que o poeta faz; experiência
singular que nos permitirá refletir sobre o mundo do homem a partir de sua
constituição mais original (a criação de seu mundo).
Nossa experiência será a deixar que os próprios textos falem.
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1.2.1. “O que quer dizer pensar?”
Não nos iludamos. Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional, somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda parte. Pois, hoje toma-se conhecimentos de tudo pelo caminho mais rápido e mais económico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece. (Heidegger, Serenidade)
Pensar é ação comum aos seres humanos (tomando-se “pensar” em
uma conceituação primária e geral). Exatamente por tal motivo, a atividade do
pensamento é recebida, na maioria das vezes, como trivial e, assim, como não
carecendo de atenção especial, já que “todos pensam”. Heidegger apresenta
ideia diversa em O que quer dizer pensar?, no sentido de mostrar que a razão
não se identifica com o pensar e, deste modo, a ideia de que “todos pensam”
não se verifica efetivamente.
Quando a ideia de “pensar” cai na trivialidade, é perdida a noção do
alcance do pensamento; como consequência, não apenas o pensar, mas seu
objeto se torna trivial. Tudo o que pode se tornar objeto do pensamento acaba
sendo o mesmo – devemos perceber, então, que toda a realidade se torna um
único objeto. Tal situação pode ser pensada como caminho para o
esquecimento do ser e seu sentido, já que toda questão se equivale em
importância e a primeira necessidade é cuidar das questões mais práticas da
vida – principalmente, as econômicas e sociais.
Pensar sobre algo é ação que se dá (de algum modo e em um grau
qualquer de aprofundamento) a qualquer homem: o homem comum pensa, o
homem da ciência pensa, o homem da filosofia pensa. Em todos os casos, há
um objeto para o pensamento – objeto de modo mais geral possível: toda a
realidade pode ser pensada. Mas Heidegger entende haver algo que ainda
resta a pensar, algo não abarcado pelos diversos pensamentos já
estabelecidos pelas diferentes pessoas em suas diferentes áreas de reflexão.
Há ainda “algo” a se pensar que apenas pode ser alcançado quando a questão
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sobre o que significa pensar for problematizada. Significa dizer que o
pensamento – o ato de pensar – deve se converter em “objeto” do próprio
pensar; esta tarefa cabe aos pensadores, afirma Heidegger.
A experiência humana não abarca o pensamento de modo completo,
visto que, mesmo a experiência racional é transcendida por ele; o pensar “vai
além” dos limites do que a razão pode conceber – isto é observado pelo fato de
não ser qualquer pensamento que passa pelo crivo da razão. Caso tivessem de
ser aceitas plena e unicamente as regras do entendimento racional (na
construção de cadeias lógicas de causa e consequência), deixariam de ser
levados em consideração diversos conteúdos do pensamento, pois as barreiras
lógicas os impediriam de aparecer. O autor indica que a experiência genuína
do pensar não pode aceitar tais barreiras. Mas isto não significa que deva ser
rechaçada a capacidade racional, pois é ela que abre o pensamento – este,
que pode seguir por caminhos ilimitados. A experiência de algo inteligível de
modo racional é a experiência de ideias que se encaixam para falar do real (na
verdade, pode ser vista como a tentativa de encaixar o real nas ideias que a
razão aceita) – é, então, um enquadramento; já a experiência do pensamento é
a possibilidade de deixar o real se mostrar sem enquadramento.
Pensar, no enquadramento racional, é lugar comum ao homem, pois
é o modo como o ente é apresentado a ele – dentro de uma tradição cultural de
pensamento; ou seja, ele aprendeu a pensar deste modo. Logo, não se verifica
uma capacidade inata e plena de pensar no homem. Heidegger entende que
“pensar se aprende” – e apenas o aprendizado de um pensar não cerceado
permitiria o entendimento do que seja o próprio pensar. Para o autor, é
importante indicar tal ideia, pois este “aprender” não é observável como sendo
de interesse do homem: há preocupação grande com o objeto do pensar (por
sua possível utilidade), mas não com o próprio pensar.
Poder-se-ia afirmar que o homem se preocupa com o pensamento
quando se dedica à filosofia; Heidegger diz que não. O pensar difere do
filosofar e, assim, ao se dedicar ao entendimento da filosofia nas ideias dos
diversos pensadores, pode-se “estar aquém” da experiência do pensar.
Filósofo é aquele que se dedica ao conhecimento da História da Filosofia, na
busca de um entendimento de como se desenvolveram as ideias ao longo do
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tempo; pensador é quem quebra as barreiras, não ficando nos limites daquela
história, e consegue fazer uma experiência de pensamento livre.
O pensamento está presente na filosofia, ao longo de sua história;
mas está de modo particular, na experiência pessoal do filósofo com o pensar –
quando, então, ele se realiza como pensador. Significa entender que não é o
conhecimento da história do pensamento que faz o pensador – este se faz ao
se dedicar à experiência única e pessoal com o pensar. Pensadores
“genuínos”, se assim podemos nomear, são os que não apenas desenvolveram
ideias, seguindo corretamente caminhos lógicos a partir de determinado
contexto de pensamento; mas aqueles que lograram nomear algo que
ultrapassa as barreiras da lógica, e o fizeram por meio da radicalidade33 na
reflexão.
Na relação entre ação e pensamento, o autor indica que se vive uma
ilusão34. O homem se ilude com a ideia de que deve agir mais ao invés de se
deter no pensar; ele entende que, diante das necessidades impostas pelo seu
tempo, ainda há muito por fazer no campo da ação e, assim, deixa de lado a
questão do pensamento. “E, no entanto... Talvez, já desde séculos, o homem
vem agindo demais e pensando de menos.”35 O pensamento leva à mudança e
à transformação, sem o qual o fazer é desprovido de sentido. Enquanto o
homem, em sua visão comum, estabelece clara separação entre o pensar e o
agir, a filosofia heideggeriana mostra um pensar que é ação na realidade. A
cisão entre pensar e agir indica que a atividade racional se move em um
ambiente não próprio, mas dirigido pela prática. Falta ainda pensar algo que
seja próprio do pensamento. “O que mais cabe pensar mostra-se no fato de
ainda não pensarmos.”36 Aparece, assim, a necessidade de que se aprenda a
pensar – e pensar aquilo que mais cabe pensar (das Bedenklichste).
33 No sentido de buscar as raízes. 34 A ideia de “ilusão” também é apresentada, em Serenidade, quando Heidegger fala que não nos podemos iludir, achando que o pensamento sempre se dá de qualquer modo e, na verdade, podemos estar na ausência do pensamento. (Cf. M. HEIDEGGER, Serenidade, p.11.) 35 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Und dennoch - vielleicht hat der bisherige Mensch seit Jahrhunderten bereits zu viel gehandelt und zu wenig gedacht”. (Id., Was heiẞt Denken?; In: Vorträge und Aufsätze (VA), p.130)] 36 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Das Bedenklichste zeigt sich daran, daß wir noch nicht denken”. (Id., VA, p.130)]
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Aprender a pensar é, justamente, uma ideia inicial em O que quer
dizer pensar?. Ao se debruçar sobre o que seja o pensamento e o que significa
pensar, o homem constata não estar ainda na plena possibilidade de pensar;
por outro lado, caso não se dedique a tal questão, não tem condições de
perceber o que falta. Heidegger entende que apenas os pensadores se
dedicam à questão do pensamento (e, por isso, assim podem ser chamados) –
apenas eles dão espaço para que o pensar se dê de forma efetiva. Aprende-se
quando se volta o pensamento para o que mais cabe pensar. Mas, ainda, não
são claros os elementos que atestam a efetividade do pensar; portanto, os
pensadores não são aqueles que têm a certeza de que o pensar acontece, mas
aqueles que permitem ao pensar sua realização junto ao homem. Com o
pensador, ocorre um “deixar acontecer” ao pensamento; diferentemente, a
atividade racional (que se acredita ser pensamento) é a tentativa de fazer com
que algo ocorra a seu modo.
Aqui há um jogo de forças. De um lado, o pensamento que, em sua
forma originária, irrompe e mostra que ao homem é possível o pensar; ou seja,
o homem está no âmbito do pensar no qual ele é conduzido. De outro lado,
temos o homem com o mundo que construiu e os méritos alcançados com sua
experiência de pensar – os méritos levariam à ideia de que o homem
transcende o pensamento, como se o pensamento fosse apenas uma
capacidade bem utilizada pelo ente homem.
Heidegger afirma que “ser na possibilidade de algo quer dizer:
permitir que algo, segundo seu próprio modo de ser, venha para junto de nós;
resguardar insistentemente tal permissão”37; o autor faz tal afirmação,
referindo-se à possibilidade que o homem tem de pensar. Neste sentido, dizer
que o homem é o animal racional não equivale a dizer que ele pensa, mas que
ele tem a possibilidade de pensar; ainda, ter a possibilidade (die Möglichkeit)
de pensar, não significa que o homem possa (vermögen); o pensamento ocorre
quando se resguarda a permissão. Este resguardar é hüten, que aparece
mesmo no sentido de “estar atento a algo que pode ocorrer”, vigiando, na
tentativa de permitir que realmente possa ocorrer.
37 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.111. [“…etwas vermögen heißt: etwas nach seinem Wesen bei uns einlassen, inständig diesen Einlaß hüten”. (Id., VA, p.129)]
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Chamamos de “amigável” o que pertence à essência do amigo e dele procede. De forma correspondente, chamamos, agora, de “pensável” aquilo que cabe pensar cuidadosamente. Todo “pensável” dá a pensar. Há, no entanto, uma tal doação somente e sempre à medida que o pensável, a partir de si mesmo, já é o que cabe pensar cuidadosamente.38
Aquilo que vem do amigo, enquanto relação de amizade, é o
“amigável”; do mesmo modo, aquilo que vem do pensar, enquanto ocorrência
efetiva do pensamento, é o “pensável”. Mas o que entendemos, aqui, é o
caminho que vai do amigável para o amigo; ou seja, fazendo parte do que seja
a essência do amigo, o amigável é uma indicação de algo, a saber, do amigo.
Do mesmo modo, o pensável é uma indicação daquilo que é pensamento – de
modo especial, quando o pensável é o que mais cabe pensar.
O pensamento, para que efetivamente se dê, depende menos do
homem que propriamente daquilo que é pensado: “Todo ‘pensável’ dá a
pensar”39. Dá o quê? Dá exatamente aquilo que ele é; neste sentido, é
importante observar que “o que ele é” não se identifica com “o que o homem
quer que seja”. Tal diferenciação é muito importante no pensamento
heideggeriano, pois toca diretamente a ideia de que aquilo que é a realidade
(enquanto aquilo que se dá) não pode ser plenamente abarcado pela razão.
Heidegger fala de um “pensável” que não se identifica com aquilo que
simplesmente é proposto pelo homem à atividade da reflexão (pois, pautada
pela razão, esta lida com a representação de um objeto).
Desde muito tempo já, o homem, ao invés de estar em contato com
a própria realidade, apenas se move em meio às muitas representações que
construiu; a totalidade de representações é o mundo e um dos âmbitos de
representaçãoções da realidade é a ciência. Heidegger fala do pensamento
como experiência do homem que transcende o conjunto de conceitos já
determinados e estabelecidos, a partir dos quais deve ser entendido o mundo.
No âmbito do pensar segundo o que apresenta Heidegger, uma teoria científica
que tentasse alcançar suposta verdade sobre as coisas, caso conseguisse
38 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Unsere Sprache nennt das, was zum Wesen des Freundes gehört und ihm entstammt, das Freundliche. Dem gemäß nennen wir jetzt das, was in sich das zu-Bedenkende ist, das Bedenkliche. Alles Bedenkliche gibt zu denken. Aber es gibt diese Gabe immer nur in so weit, als das Bedenkliche schon von sich her das zu-Bedenkende ist”. (Id., VA, p.130)] 39 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Alles Bedenkliche gibt zu denken”. (Id., VA, p.130)]
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algum progresso, progrediria em falso, sempre patinando nos conceitos que ela
tenta afixar. Quanto mais fixa se pretende uma teoria, mais afastada da
experiência do pensar ela deve estar para alcançar o sucesso esperado. Neste
sentido é que pode ser entendida a ideia de que a “ciência não pensa”40 –
considerando-se o pensar segundo o modo dos pensadores (nämlich nach der
Weise der Denker).
Parece ser positivo, então, o não pensar para a ciência; com este
modo de se estabelecer, ela conquistou grande prestígio e importância ao
longo do tempo. Mas o que faz a ciência? Calcula. O cientista (ou a
comunidade científica) não é responsável por abrir a reflexão para um
pensamento sempre mais amplo e que se desenvolve guiado por caminhos
que a realidade possa indicar; a ele cabe estabelecer certos pontos
relativamente fixos a partir dos quais consegue construir uma verdade. Apenas
dentro do âmbito de tais pontos estabelecidos é que se faz a ciência; quando o
cientista se lança para além dos limites de uma verdade aceita, ele o faz, não
na tentativa de se abrir ao pensamento, mas na busca de alguns outros poucos
elementos que permitam algo que seja considerado “avanço”. O cientista
calcula, pois ele tenta traduzir tudo o que lhe aparece para a linguagem
construída pelos elementos dos quais ele já dispõe; o que não pode ser
traduzido é descartado ou, pelo menos, deixado de lado, até que haja novos
elementos que permitam tratar do que apresenta a realidade.41
A relação entre pensamento e ciência só se mostra autêntica e frutífera quando se torna visível o abismo que há entre as ciências e o pensamento – na verdade, quando este abismo se revela intransponível. Das ciências para o pensamento não há nenhuma ponte, mas somente salto. Este não nos leva somente para um outro lado, mas para uma região inteiramente outra.42
40 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Die Wissenschaft denkt nicht”. (Id., VA, p.133)] 41 A ideia de “cálculo” é a de que se tem certos elementos que, quando relacionados de determinado modo, permitem chegar a “novos” – tais elementos são os entes em geral. Porém, no cálculo já se antevê algo ao qual se pode chegar – é o âmbito consolidado do conhecimento científico. Ao dizer que a ciência calcula, temos a indicação de que ela não abre espaço de liberdade. 42 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Allein, die Beziehung der Wissenschaft zum Denken ist nur dann eine echte und fruchtbare, wenn die Kluft, die zwischenden Wissenschaften und dem Denken besteht, sichtbar geworden ist und zwar als eine unüberbrückbare. Es gibt von den Wissenschaften her zum Denken keine Brücke, sondern nur den Sprung.Wohin er unsbringt, dort ist nicht nur die andere Seite, sondern eine völlig andere Ortschaft”. (Id., VA, p.133)]
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Quando Heidegger fala do abismo e da consciência de que ele é
instransponível, já pode ser antevisto um aspecto da serenidade: a postura
diante da ciência (como tecnologia). O homem pode estar, sem se deixar
corromper; significa enxergar o abismo instransponível e posicionar-se no
âmbito do pensar, ao invés de ser levado pelo cálculo da ciência – pois ela
continuará a falar do ente do seu modo, por conta do des-encobrimento
permitido pela tecnologia. O mundo da ciência continuará sua produção e o
homem do cálculo, cada vez mais, terá os méritos de seu fazer. Diante do
avanço da concepção mundo-ciência-produção, a proposta heideggeriana não
é de aniquilação da tecnologia. Não há desespero, mas postura.
Pensamento e ciência são âmbitos totalmente diferentes; na
confusão do que sejam, pode até parecer que haja grande semelhança, mas o
entendimento melhor se faz quando cada um é entendido na relação que
estabelece com a realidade. Pensamento é Denken, que pode ser relacionado
ao verbo dünken (ter a aparência) e também ao substantivo Andacht
(devoção); ciência é Wissenschaft, termo que está diretamente relacionado ao
verbo wissen (saber). Assim, aparece a noção de que o pensamento está
sempre relacionado a algo (determinado objeto em sua aparência ou diante do
qual se está) e a ciência está relacionada ao próprio homem que conhece, ao
seu ato de saber. Daí, dizer se tratarem de regiões diferentes.
A ideia de salto (Sprung) para passar das ciências para o
pensamento mostra não haver continuidade ou ligação de reflexões em uma
cadeia causal; não há um raciocínio que faça chegar da ciência ao
pensamento. Justamente por ser a ciência um campo fechado em conceitos,
ela não abarca a realidade como o pensamento o faz. “Saltar o abismo” parece
indicar que se deixa a certeza que se fundamenta em pontos fixos e se parte
para a incerteza do que não se conhece, mas se mostra.
Entre ciência e pensamento há um abismo (Kluft); o salto, como
única opção, traz a incerteza do vazio sobre o qual se salta e também a
incerteza do “lugar” de chegada. Quem se dispõe a realizar algo assim precisa,
além de grande desejo, dispor de coragem. Deste modo, o autor dá elementos
que indicam a experiência do pensamento como algo que exige também
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disposição e coragem; o grande desejo de realizar o salto é que fundamenta a
coragem.
Não seria necessária grande disposição ou coragem caso o homem
já vivesse em meio a tal experiência do salto. Mas o homem parece estar
habituado ao âmbito do que a ciência mostra, algo “fixo, certo e seguro”. A
ciência encontra uma linguagem que se fixa a algo e, a partir de então, sempre
servirá como caminho de entendimento/explicação; mas tal linguagem apenas
é possível enquanto este algo for entendido também como imutável – se
houver mudança, a linguagem não mais consegue abarcar esta realidade. Ideia
importante a ser percebida aqui é a de que a ciência apenas se constrói
naquilo que permanece. Heidegger apresenta ideias que mostram o
pensamento como aquilo que “vai além” do que permanece.
O autor afirma que: “Toda e qualquer coisa se deixa demonstrar, isto
é, derivar a partir de pressuposições adequadas. Poucas coisas, porém, e
estas ainda raramente, deixam-se mostrar, isto é, num aceno, liberar para um
encontro.”43 A primeira frase faz referência à ciência que, a seu modo, explica a
realidade com pressuposições adequadas (geeigneten Voraussetzungen); tudo
se deixa explicar assim. Mas a segunda frase indica o que vai além da
demonstração lógica: há algo que não permanece à razão, mas que se deixa
mostrar num aceno. O que deve intrigar é este aceno, pois ele indica aquilo
sobre o que o pensamento pode se debruçar. Não estando preso a uma cadeia
lógico-racional, o pensamento tem condições de se voltar, não para aquilo que
permanece, mas para aquilo que apenas se deixa ver por um instante, por um
aceno, por meio de uma indicação de si (durch ein Hinweisen).
Ainda com relação ao “encontro”, literalmente, Heidegger diz Ankunft
cuja tradução é “chegada” – com ligação etimológica direta de kommen
(chegar). Parece claro que, em certo sentido, chegada proporciona encontro,
mas apenas se houver um outro que está no local da chegada – considerando-
se a necessidade de, no mínimo, dois elementos para um encontro. Mas
“chegada” remete-nos para aquilo que chega; o que está frisado, então, não é
43 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115 ["Beweisen, d.h. aus geeigneten Voraussetzungen ableiten, läßt sich alles. Aber Weisen, durch ein Hinweisen zur Ankunft freigeben, läßt sich nur Weniges und dieses Wenige überdies noch selten”. (Id., VA, p.134.)]
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um fato “neutro” de haver um encontro, mas o fato de que poucas coisas
(Weniges) se liberam para chegar. Outro ponto importante a se frisar é que
Heidegger não diz “um encontro” com artigo indeterminado – ele afirma zur
Ankunft, ou seja, libera “para a chegada”. Ao abrir-se para a possiblidade do
pensamento, resguarda-se a possibilidade da chegada genuína do que vem e
se mostra num instante – mostra-se ao homem e, neste sentido, é encontro.
Temos aqui, ainda, a relação entre “demonstrar” e “mostrar”. O
pensamento se debruça sobre o que se mostra; mas, anteriormente, já foi
indicado que “o pensável dá a pensar”. Assim, o pensável é o que se mostra, o
que “acena”. A demonstração, por sua vez, configura-se como uma “tradução”
da realidade para a linguagem racional; é uma representação – ou re-
apresentação da realidade por meio do argumento. O ato de calcular e
demonstrar a realidade é o modo de pensamento vigente e, assim, pensar
(raciocinar) é perceber: a razão (die Vernunft) tem sua raiz no perceber
(vernehmen). A atividade da razão é perceber a realidade, captando aquilo que
se faz presente, destacando-o e tomando-o como vigente. Deste modo, o
filosofar proposto por Heidegger (a vida do pensamento) se apresenta como
estando fora do âmbito da razão em seu entendimento vigente.
Depois de tais ideias, restaria a dúvida sobre ser ou não esta
atividade racional também pensamento. Heidegger faz, então uma analogia:
este “pensamento demonstrativo” é pensamento fora de seu âmbito efetivo – é
como nadar fora da água. Do mesmo modo como para a prática da natação é
necessário que se saiba nadar e que se disponha do meio adequado para tal
(água), o autor indica que, além de saber pensar (há necessidade de
aprendizado), é preciso que o homem esteja inserido no elemento do pensar. O
homem não pensa por que está fora do meio próprio; ele não atingiu ainda o
âmbito do pensar.
O âmbito do pensar não é onde são criadas as ideias, mas onde
está o pensamento e o homem deve ser inserido. É o pensamento que se dá.
Assim, quando se fala “o homem na atividade do pensamento”, deve-se
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entender o homem “mergulhado” no fazer-se perene do pensar, onde é
possível uma experiência do pensamento vivente.44
Ao tratar da atividade do pensamento, não é necessário indicar que
já se está na realização do pensar; é o pensamento que se volta sobre si. Na
busca do autor, revela-se como intrigante o fato de que, ao se utilizar do
pensamento para descobrir o que seja pensar, ele descobre o homem como
estando fora do âmbito do pensar. Tal fato não apenas intriga, mas instiga a
uma maior atenção sobre a questão: é o pensamento que indica o caminho de
volta para si. O que mais dá a pensar é o fato de que ainda não pensamos;
assim, pode-se concluir com Heidegger que “o que mais cabe pensar mais
cuidadosamente neste nosso tempo é que ainda não pensamos.”45 É o mais
pensável por advir do próprio pensamento como uma questão primeira.
O mais pensável se mostra pelo pensamento, mas como aquilo não
alcançado pelo homem. Por que, neste tempo, o homem não pensa? Por que
tal questão não dá a pensar? De certo modo, há um entendimento comum de
que o pensamento, sendo todo conhecido, dá-se efetivamente. O homem
acredita pensar até demais, quando a realidade exige dele uma ação sempre
imediata diante das situações que o afetam. Tendo-se um contexto que
valoriza mais a ação/produção que o ato de pensar – somado à grande
influência do pensamento científico vigente, que de modo direto representa as
coisas e os seres pelo que deles pode ser captado e destacado, sob o domínio
de uma concepção de “razão” (Vernunft) como perceber (vernehmen) –
44 Analogamente, a imagem que melhor expressa tal ideia pode ser vista em Bergson. Dizemos “analogamente”, pois Bergson está tratando da memória (mémoire) e da duração (durée), que não podem ser postas como equivalentes, seja ao pensamento ou ao ser, em Heidegger; mas a imagem é clara e a tomamos aqui. O solo no fundo do mar não é algo sólido e duro, mas algo pleno de vida, informe, que está em constante mudança; não pode ser dividido, pois ele se dá como um todo, sem partes. Uma sonda pode retirar este conteúdo do fundo e trazer para a superfície, mas ele sofre singular mudança: de massa fluida, passa a ser conjunto de incontáveis grãos de areia descontínuos, duros, petrificados e isolados uns dos outros. (Cf. BERGSON, Cartas, conferências e outros escritos, p. 40) O âmbito do pensamento pode ser entendido como aquele do fundo do mar: não há classificação nem delimitação (coisa que a razão objetivadora faz); é âmbito no qual o pensamento se dá e se move, não de acordo com a direção da razão, mas de acordo com o próprio ser. Deste modo, colocar-se no âmbito do pensar, implica questionar o modo habitual de entendimento da realidade, que é aquele quando a razão traz à luz e solidifica/petrifica, transformando o pensar em “ideia de um objeto”. 45 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.113. [“…das Bedenklichste zeigt sich in unserer bedenklichen Zeit daran, daß wir noch nicht denken”. (Id., VA, p.131)]
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dificilmente a questão do pensamento vai aparecer. É preciso coragem para o
salto.
Porém, não é possível imaginar que, na mudança do contexto
citado, o homem já estaria no âmbito do pensamento, pois o pensável (das
Bedenkliche) dá a pensar (gibt zu denken); ou seja, não é simplesmente o
homem que pensa. O pensamento é pensamento sobre algo, mas não como a
ciência “pensa” (estabelecendo a realidade como a pluralidade de seres que
permanecem); voltar-se para a questão do pensamento é possibilidade dada
quando os entes podem ser conhecidos de modo diferente do habitual. Aqui se
mostra com grande importância a ideia de “desvio” (Abwendung) apresentada
pelo autor: “o próprio a-se-pensar se desvia do homem e até mesmo, de há
muito, dele mantém-se desviado.”46
Aprender a pensar não significa que o homem desenvolveria uma
capacidade efetiva e constante, a partir da qual toda percepção da realidade se
daria a todo tempo. Aprender a pensar significa permitir que o pensamento
ocorra, estando sempre atento e guardando tal permissão. Os elementos
dados por Heidegger indicam que o pensamento pode ocorrer a qualquer
tempo e a constância deve ser do homem em vigiar para que, ao ocorrer, ele
esteja atento. Se o a-se-pensar se desvia do homem, é porque em algum
momento já esteve em tal caminho; para se “des-viar” (abwenden) é preciso
antes se “a-viar” (zuwenden).
A questão que nos ocorre é sobre o porquê do “desvio”;
possivelmente pelo ritmo e interesse impostos à vida comum. O a-se-pensar se
desvia da tentativa de enquadramento da razão científica, e se dá ao pensador
quando for guardada sua possibilidade. Mas se houve desvio, é porque já
esteve no caminho, já deu a pensar: “o a-se-pensar já se aviou para a essência
do homem”.47 O pensador resta só, então, na guarda de um pensamento a
partir do qual o a-se-pensar se dê.
46 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.114. [“…dieses zu-Denkende selbst sich vom Menschen abwendet, sogar langher sich schon abgewendet hält”. (Id., VA, p.132)] 47 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.114. [“Das zu-Denkende hat bei aller Abwendung sich dem Wesen des Menschen schon zugesprochen”. (Id., VA, p.132)]
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Relacionada à ideia de “desvio” está a de “retração”, no sentido de
se esquivar (sich entziehen). Aqui, resta claro o entendimento de que a ciência
(e o pensamento comum nela baseado) não pode alcançar o a-se-pensar, pois,
estabelecendo-se sobre o que é fixo e permanece, ela não dá conta daquilo
que se dá e se esquiva. O pensamento dos pensadores não se dá nem de
modo constante nem de modo linear; mesmo na abertura da ocorrência do
pensamento, fica-se neste jogo de dar-se/retrair-se. O pensador é, na verdade,
o homem que não se ilude com a pretensão de que vai abarcar toda a
realidade com seu pensar – mesmo que haja o desejo, não implica que se
alcance; esta ilusão faz o homem da ciência se lançar em uma busca
desenfreada pelo ente. O pensador busca entender a realidade em tal jogo, no
aceno das coisas que, raramente se liberam para um encontro.
Por conta da retração, o encontro nunca é pleno e, por isso, aquilo
que está para ser pensado não é alcançado em sua totalidade. O pensamento
capta o que se mostra ainda que de um único lance de tempo: é um estar
pronto para receber aquilo que sai da retração e já volta para ela. O próprio a-
se-pensar (das Bedenkliche) que mais cabe pensar (das Bedenklichste), a
saber, que ainda não pensamos, é “algo” que se mostra em aceno;
literalmente, Heidegger usa o termo Hinweis que é “aceno”, mas no sentido de
“indicação”.
Entendemos que, caso os entes fossem todos “claros”,
“transparentes” e “translúcidos”, de modo direto o homem poderia saber deles;
porém isto não acontece: as coisas dão indicação de si. Por isso, a ciência se
debruça a esmiuçar a realidade com a finalidade de conhecê-la.
Diferentemente, o caminho pelo qual o pensamento se dá é o do “puro aberto”
no qual as indicações dão certa direção. Ora, se o caminho está feito ou se
fazendo não de modo determinado, mas montado com as indicações que se
dão, estas são os únicos sustentáculos do caminhar e a maior parte do
caminho se dá na incerteza. Eis o caminho do pensamento.
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O que se retrai recusa o encontro. Retrair-se não é, porém, um nada. Retração é aqui retirada e enquanto tal – acontecimento. O que se retrai pode concernir ao homem de maneira mais essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que aí está e o atinge e o afeta.48
Retrair é um guardar-se que exige a espera do homem. A espera é
algo sempre presenta na serenidade, pois permite ao ente ser o que é.
Diversas imagens podem representar o que indicamos aqui; se partimos do
exemplo caro a Heidegger, podemos falar do camponês – melhor dizendo, da
camponesa, dona dos sapatos da obra de Van Gogh.49
Os sapatos trazem em si a lida diária, o solo pisado quando do
trabalho para manutenção da vida. Eles tomam parte em uma representação
mais ampla, que é o mundo da camponesa; mas eles também trazem a própria
doação da terra, no trabalho que cultiva e espera. A terra se guarda, faça o
sapato (mundo) da camponesa o que fizer. A espera da camponesa é ativa
preparação na incerteza do que se guarda.
Tomando exemplo diverso, podemos falar do pescador: ele prepara
o necessário, posiciona-se e aguarda o peixe, o que o sustenta – sua espera é
ativa na percepção do que pode se mostrar a qualquer momento. Há indícios
que devem ser recebidos em uma “interpretação pré-racional”; é esperar um
dar-se que em nada depende deles (pescador, camponesa, pensador).
Enquanto elemento material, que se guarda, é a terra que se dá no peixe; é
48 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.116 [“Was sich entzieht, versagt die Ankunft. Allein – das Sichentziehen ist nicht nichts. Entzug ist hier Vorenthalt und ist als solcher - Ereignis. Was sich entzieht, kann den Menschen wesentlicher angehen und inniger in den Anspruch nehmen als jegliches Anwesende, das ihn trifft und betrifft”. (Id., VA, p.134)] 49 Heidegger toma o quadro como exemplo, buscando saber o que são a coisa, o utensílio e a obra de arte. (Cf. Id., A origem da obra de arte, p.79.) Costa trata amplamente da interpretação desta obra de Van Gogh feita por Heidegger. (Cf. S. COSTA, Arte & verdade, pp.63-76.)
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incerteza, pois a terra não se dá segundo a vontade e a ação humanas. O
brotar da physis50 independe do Da-sein.
O aparecer que é objeto da ciência obedece ao modo vigente de se
entender a racionalidade, a saber, a partir da razão (die Vernunft) com base no
perceber (vernehmen); o aceno/indicação (Hinweis) é diferente, pois não trata
da realidade que toca e afeta o homem de modo direto. O pensamento é
entendimento que busca o que está além do que simplesmente aparece: é dar
conta do aparece/esconde das coisas. Aquilo que apareceu e se retraiu deixou
um rastro de si; um rastro não é um caminho definido, mas não é também uma
falta de caminho ou um vazio. Do que se retraiu resta a indicação e, nesta, o
pensamento tem muito mais que simplesmente o que aparece. Por isso, a
retração deve ser considerada – ela é, em si mesma, um acontecimento (das
Ereignis); é parte do modo como as coisas são. O que Heidegger mostra é que,
enquanto a razão calculadora se volta apenas para aquilo que aparece, o
pensamento se volta ainda para o que é a retração das coisas.
A retração chama a atenção do homem por ser o que lhe escapa
das mãos – e este ser fica na guarda (hüten) para garantir a ocorrência do
pensamento. O pensamento fica na espera do aceno de “algo” que está lá, mas
se retraiu; e, ao ser ampliado o campo de visão, o que se retrai é a própria
50 O pensador afirma:
A physis, entendida, como sair e brotar, pode-se experimentá-la em tôda parte, assim, por exemplo, nos fenômenos celestes (nascer do sol), nas ondas do mar, no crescimento das plantas, no nascimento dos animais e dos homens do seio materno. Entretanto, physis, o vigor dominante, que brota, não se identifica com êsses fenômenos, que ainda hoje consideramos pertencentes à ‘natureza’. Tal sair e suster-se fora de si e em si mesmo [...] não se deve tomar por um fenômeno qualquer, que entre outros observamos no ente. A physis é o Ser mesmo em virtude do qual o ente se torna e permanece observável. (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, pp.44-45.)
E M. Zarader indica que Heidegger mostra, com a ajuda de um certo número de exemplos, que esta palavra [physis], para eles [gregos], não começava por invocar, como faria para os modernos, as ideias de aumento, de evolução ou de devir. Entendiam-na num sentido completamente diferente, que pode ser definido pelos três termos avanço (Hervorgehen), desabrochar (Aufgehen) e abertura (Sichöffnen). (...) Seja, por exemplo, o desabrochar de uma rosa: o que é que constitui a especificidade desse acontecimento? (...) [A] rosa desabrocha na medida em que, avançando no aberto, dura nesse aberto, se mantém nele manifestando-se, e assim se oferece ao olhar. (...) [O] que é verdade para a rosa, é evidentemente verdade para tudo o que ‘é’, porque este avançar no aberto é o que permite a qualquer ente, qualquer que ele seja, mesmo se for homem ou deus, vir à presença e instalar-se nela. (...) A φύσις (...) é o desabrochar surgindo do desvanecimento, e é este perpétuo desabrochar para fora do desvanecimento, logo, esta relação entre os dois, esta unidade forjada no combate (...). (M. Zarader, Heidegger e as palavras da origem, pp.44;45;55)
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realidade, a partir das coisas que a compõem. Pode ser, então, entendida a
ideia do autor sobre o homem como sinal:
Somos à medida que sinalizamos para o que se retrai. Enquanto o que assim sinaliza, o homem é o sinalizador. Na verdade, o homem não é primeiramente homem e então por acréscimo e talvez ocasionalmente ainda um sinalizador, mas o homem antes de tudo e antes de mais nada é homem atraído no retrair-se, no elã para este e com isso sinalizador da retração. Seu modo próprio de ser constitui-se nisso, a saber, em ser um tal sinalizador. Chamamos de sinal àquilo que, segundo sua constituição mais própria, é algo que sinaliza. Retraído no impulso para o retrair-se, o homem é um sinal.51
A atenção do homem se volta para aquilo que se retrai; pode-se
dizer que o “retrair” leva a um “atrair”. É exatamente um atrair, pois o que se
retrai indica a possibilidade de si em ser “algo” além do que está vigente – isto
se torna instigante ao homem. O “sentir-se atraído para...” se revela de dois
modos diversos: por meio da razão científica, ao ser atraído por algo que se
retrai, o homem quer fazer com que este algo não se retraia, mas se mostre;
por outro lado, por meio do pensamento, o homem fica atento na espera de
que algo se dê. Assim, nos dois modos, o que se tem é o fato de que o homem
é atraído; a atração dirige a atenção do homem e ele volta seu olhar para algo,
na espera. Este olhar que se volta é uma indicação apenas possível ao
homem; por isso ele é o sinalizador. O homem é sinal pois é o único ser que
abre a possibilidade do pensamento e, assim, fica na espera do aceno: ele é
impulsionado para aquilo que atrai sua atenção, que é a retração.
O homem é o sinalizador. Heidegger diz exatamente que ist der
Mensch der Zeigende. Verificando mais detidamente, o autor utiliza Zeigende
que vem do verbo zeigen que, por sua vez, literalmente é “mostrar”; deste
modo, o homem é o “mostrador”; o homem sinaliza no sentido de mostrar
“algo”, que é aquilo que se retrai. Mas se o homem mostra, se ele é sinal, ele
deve indicar para um sentido: o sentido do que se retrai. Porém, o homem
51 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.116-117. [“Wir sind, indem wir in das Sichentziehende zeigen. Als der dahin Zeigende ist der Mensch der Zeigende. Und zwar ist der Mensch nicht zunächst Mensch und dann noch außerdem und vielleicht gelegentlich ein Zeigender, sondern: gezogen in das Sichentziehende, auf dem Zug in dieses und somit zeigend in den Entzug ist der Mensch allererst Mensch. Sein Wesen beruht darin, ein solcher Zeigender zu sein. Was in sich, seiner eigensten Verfassung nach, etwas Zeigendes ist, nennen wir ein Zeichen. Auf dem Zug in das Sichentziehende gezogen, ist der Mensch ein Zeichen”. (Id., VA, p.135)]
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sinaliza sem trazer o sentido. O autor toma um verso de Hölderlin para refletir
sobre tal ideia, a saber: “Somos um sinal, sem sentido...”52
Na verdade, die Deutung (termo que foi traduzido como “sentido”) é
“interpretação”; assim, o homem é o sinal sem interpretação (deutungslos).
Aqui, podemos entender que não cabe interpretação para a retração: a
atividade da razão, na tentativa de esmiuçar e esgotar a reflexão sobre o que
se retrai, não encontra caminho – não há entendimento último, pois não há
possibilidade de esgotamento diante do que não se completa para a
experiência do homem. Estar diante da retração sem interpretação alguma é
atividade do pensamento.
O verso de Hölderlin que traz a ideia de deutungslos pertence a um
poema do qual um dos esboços traz o título Mnemosyne (gr. Μνημοσύνη).
Mnemosyne é uma titanide, a Memória; porém, Heidegger reforça não se tratar
simplesmente de uma faculdade sobre a qual se volta a psicologia (a memória):
Mnemosyne é a memória enquanto fonte do passado e fundamento para o que
persiste na realidade do homem.
Memória é, aqui, a concentração do pensamento que, concentrado, permanece junto ao que foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes de tudo e antes de mais nada. Memória é a concentração do pensar da lembrança daquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabe pensar.53
Para que se esteja atento à possibilidade da ocorrência do pensar, é
necessário não deixar fugir da memória (das Gedächtnis) – e a memória
significa voltar o pensamento sempre para aquilo que pode ocorrer, significa
reunir o pensamento em um único ponto, em um centro que atém a atenção; tal
centro é aquilo que mais cabe pensar (das Bedenklichste). Daí, Heidegger
52 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Ein Zeichen sind wir, deutungslos (...)” (Id., VA, p.135)] 53 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Gedächtnis ist hier die Versammlung des Denkens, das gesammelt bleibt auf das, woran im voraus schon gedacht ist, weil es allem zuvor stets bedacht sein möchte. Gedächtnis ist die Versammlung des Andenkens an das vor allem anderen zu-Bedenkende”. (Id., VA, p.136)]
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afirmar que “A memória é a concentração do pensamento”54. A concentração é
die Versammlung, é a reunião do pensamento sobre o pensável.
O pensável, como “aquilo que dá a pensar”, é o que instiga o
homem. Instiga-o a permanecer pronto à espera da própria realidade que se dá
e se retrai. A experiência da retração recebida pelo pensamento indica a
existência de “algo” além do que a linguagem habitual pode perceber: algumas
coisas se dão em aceno e o pensamento é o que pode captá-las. A memória é
o pensamento que se concentra no que foi captado, não deixando com que se
perca no tempo. Tal concentração do pensamento no que já foi permite
enxergar a realidade a cada vez “pelo mesmo modo”. A experiência, guardada
no pensamento, torna-se um latente sempre pronto a aparecer – isto que é
memória e pode aparecer fundamenta a percepção da realidade. A memória
traz o que já foi, presentificando-o: é a concentração do pensamento em um
vigente que se sustenta no vigor de ter sido e ser passado; mas, como vigente,
é presente. A experiência que o homem já fez do que mais cabe pensar é solo-
fundamento para novo experienciar. “Memória, o pensar concentrado da
lembrança do que cabe pensar, é a fonte da poesia. Por isso, o modo próprio
de ser da poesia se funda no pensar”.55
De todas as produções humanas, a poesia é um dos caminhos pelos
quais pode ser expressa a experiência do homem junto à realidade que não se
dá de modo completo; outro caminho – pelo exposto – é o pensamento. A
experiência da retração alimenta o modo de espera atenciosa (hüten)
característica tanto do poeta quanto do pensador; o pensar centrado da
lembrança em um passado, que é vigente, fundamenta o poetar. Heidegger
afirma: “Toda criação poética surge quando se cultiva o pensar da
lembrança.”56 É um passado sempre vigente por ser o mais digno a se pensar
desde sempre a para sempre.
54 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.111. [“Das Gedächtnisist die Versammlung des Denkens”. (Id., VA, p.129)] 55 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Gedächtnis, das gesammelte Andenken an das zu-Denkende, ist der Quellgrund des Dichtens. Demnach beruht das Wesen der Dichtung im Denken”. (Id., VA, p.136)] 56 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Alles Gedichtete ist der Andacht des Andenkens entsprungen”. (Id., VA, p.137)]
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O dito poético e o dito do pensamento jamais são iguais. Mas um e outro, de modos diferentes, podem dizer o mesmo. Isto só mesmo tem êxito quando o abismo entre poesia e pensamento se abre clara e decididamente. E isto acontece quando a poética é elevada e o pensamento profundo.57
O salto, citado anteriormente, para a incerteza depende de decisão e
coragem, na tentativa de realizar uma experiência extrema diante da realidade,
na espera de um aceno. Tanto a poética elevada quanto o pensamento
profundo (das Dichten ein hohes und das Denken ein tiefes) têm condições de
alcançar não o conhecimento da retração, mas a “certeza da incerteza” que
sustenta a realidade. Tal incerteza não é assumida pela razão que, de todo
modo, tenta dirimi-la – o que não é possível. Como o autor afirma: como sinal
sem sentido que é o homem, o incerto da retração está em um presente que há
muito dura, em uma demora “para a qual nenhuma contagem da ciência
histórica jamais implantará uma medida”.58
Uma medida (ein Maß) é justamente o mais buscado – de modo
especial, pela razão científica. Língua, letras e números, são os elementos para
os quais toda a realidade tenta ser traduzida; após a tradução, a razão tenta
fazer com que esta mesma realidade obedeça a um cálculo que se cria. O
problema de toda ciência em tal tentativa é que o cálculo apenas funciona
dentro de seu âmbito: a razão fala do que consegue abarcar, mas a realidade
escapa às margens estabelecidas pela racionalidade, indo para o âmbito do
desconhecido, o qual a ciência não ousa enfrentar, por não ter mais a
segurança de suas verdades. O caminho do pensamento é diferente do
caminho da lógica.
O abismo (die Kluft) que se coloca entre o poético e o pensamento
não representa um vazio que separa, mas o vazio no qual ambos se lançam.
Ao se lançarem – poética elevada e pensamento profundo –, ambos se tocam
e falam do mesmo, por estarem em uma mesma incerteza, diante da qual se
demora na espera de um aceno; trata-se de uma mesma experiência que pode 57 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.119. [“Das dichtend Gesagte und das denkend Gesagte sind niemals das gleiche. Aber das eine und das andere kann in verschiedenen Weisen dasselbe sagen. Dies glückt allerdings nur dann, wenn die Kluft zwischen Dichten und Denken rein und entschieden klafft. Es geschieht, so oft das Dichten ein hohes und das Denken ein tiefes ist”. (Id., VA, p.137)] 58 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.119. [“...für die keine Zeitrechnung der Historie je ein Maß aufbringt”. (Id., VA, p.137)]
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ser expressa de modo diverso. Esta espera pelo aceno apenas é possível pelo
que já se mostrou e fica na lembrança como concentração do pensamento. O
impensado aparece como que indicado pelo que já foi pensado: o já pensado
encobre e guarda o impensado.
A poesia fala sem esgotar aquilo de que fala; não é uma expressão
transparente – ao contrário do que pretende a razão. Enquanto a fala racional
busca se apresentar plenamente em clareza (dentro das medidas
estabelecidas), a poética toca a superfície das coisas e as abre para aquilo que
a própria palavra não alcança, não as fechando em conceitos que servem
como medida arbitrária, não buscando a plena clareza em seu falar. Abrir as
coisas para o que a palavra não alcança é deixar o impensado aparecer no
pensado.
O impensado é o meio no qual se dá o pensamento; é o elemento no
qual deve estar inserido o pensamento para que se efetive. A razão também
busca o impensado, porém, um impensado que possa ser traduzido para sua
fala. O pensamento, por sua vez, busca o impensado que é não-traduzível e,
por isso, resta em si mesmo sem conceituação; “e isso, na verdade, porque e
realmente o a-se-pensar retrai-se para nós. (...) Então, só nos resta uma coisa.
Só nos resta esperar – esperar até que o ‘a-se-pensar’ se nos anuncie”.59
Esperar (warten), não pode ser entendido como atitude passiva
diante de algo. Falando do a-se-pensar como sujeito das ações (dar-se/retrair-
se/dar-se) o homem espera, mas não passivamente. A espera é ativa no
sentido de exigir a prontidão alerta para receber algo do que ainda não se sabe
e que pode aparecer (acenar) de diferentes modos. Contrariamente, está a
racionalidade, que pode ser bem exemplificada com a razão científica: é ação
sem espera, mas ação já pré-determinada, diante da qual nada resta a fazer, a
não ser lançar a realidade na forma dos conceitos.
A realidade se dá ao homem com amplidão tal que se mostra
impossível de ser descrita em sua plenitude; diante de tal fato, podemos tomar
59 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.120. [“weil das zu-Denkende sich uns entzieht. (...) So bleibt uns nur eines, nämlich zu warten, bis das zu-Denkende sich uns zuspricht”. (Id., VA, p.139)]
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como exemplos duas atitudes: a poesia como pensamento e a ciência como
razão. A poesia busca compreender a realidade em seus acenos; a ciência
busca explicar a mesma realidade. Diante da incomensurabilidade trazida por
aquela amplidão, há o que escapa de qualquer relação com “algo já
experienciado” e “conceito já estabelecido”. O que escapa, ainda assim, é
trazido pela poesia, que faz novo uso das palavras; a ciência rechaça aquilo
que não consegue abarcar. Heidegger indicou a ausência de pensamento na
ciência; mas é importante observar, ao longo da história, que há cientistas que
pensam: eles é que propõem novos caminhos – mas, no momento seguinte, o
novo se torna ciência, passando a ser nova medida da realidade.
No capítulo seguinte, trataremos mais detidamente do fazer da
ciência. De qualquer modo, é importante ter claro o objetivo de Heidegger: que
a ciência seja considerada exatamente no que ela é (entendimento de mundo
que observa, manipula e relata), sem ser “a” detentora da verdade, mas
construção de verdades sempre ligadas a um contexto espaço/tempo
determinado.
A ciência pensa o que não muda – pelo menos, tanta estabelecer
leis imutáveis que regem a realidade. Por sua vez, pensamento e poesia
esperam diante da mesma realidade e tentam acompanhar aquilo que é o que
pode ser chamado de “movimento vivo” do qual vem o aceno. Enquanto a
racionalidade, ao modelo do cientista, busca tornar estático o real (pois, sem
isso, ela não teria como dele falar), o pensador e o poeta buscam compreender
e falar do não estático. Heidegger toma um verso de Hölderlin que pode indicar
tal ideia:
“Quem o mais profundo pensou, ama o mais vivo.” A proximidade imediata dos dois verbos, “pensar” e “amar”, forma o meio do verso. Com isso, consideramos que o amor se funda no fato de pensarmos o mais profundo. Tal “ter pensado” provém presumivelmente daquela memória, no pensar da qual funda-se o próprio poetar e com ele toda arte.60
60 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.120. [“’Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste’. / Die nächste Nähe der beiden Verba »gedacht« und »liebt« bildet die Mitte des Verses. Demnach gründet die Liebe darin, daß wir Tiefstes gedacht haben. Solches Gedachthaben entstammt vermutlich jenem Gedächtnis, in dessen Denken sogar das Dichten und mit ihm alle Kunst beruht. (Id., VA, p.138)]
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Neste trecho, duas ideias importantes devem ser reforçadas.
Primeiramente, sendo a realidade em si mesma considerada como “o mais
vivo” (das Lebendigste), apenas o pensamento pode levar ao que Hölderlin
chamou de “amor” (die Liebe). O amor pelo mais vivo pode ser entendido como
a expressão do poeta diante de suas vivências; o poeta ama o mais vivo, ou
seja, a realidade, e isto apenas é possível pelo pensamento. Diante daquilo
que é estático, nenhuma necessidade há de que o homem assuma postura
serena; ao invés disso, diante do que não obedece o desejo humano, não há
algo mais adequado que a espera; é a percepção/recepção daquilo que é o
dar-se da própria physis grega, como força que faz o ente viger. A physis não é
simplesmente “o vivente”, mas “o mais vivo”; assim, “amar o mais vivo” é o
extremo deixar-ser. O pensamento que deixa-ser permite o mostrar-se do mais
vivo.
Em segundo lugar, resta clara a indicação de que o poético seja
fonte da arte: dele advêm todas as artes. O poetar é uma postura diante da
realidade, e não uma arte; a escrita poética, sim, é arte. Ao falarmos “postura”,
trazemos a ideia de um estar do homem que depende, diretamente, de um
entender a realidade; postura é, em primeiro momento, um modo de enxergar ,
e apenas depois é que se torna ação. A ação, por sua vez, tem mais a ver com
decisão (diante das coisas, deixando-as), que com fazer. Para Heidegger, o
pensamento é ação.
A postura poética da espera põe o homem na via de corresponder
ao que cabe pensar mais propriamente. Isto significaria a possibilidade de que
o homem fosse inserido no elemento do pensar. Para tanto, a razão (Vernunft)
não poderia ser diretamente relacionada ao perceber (vernehmen). O perceber
destaca o presente, tomando-o como vigente, mas o viger é “mais” que o estar
presente – viger é o sustentar o presente. Heidegger aponta Parmênides como
um pensador que indica o que percebe o pensamento e, a partir dele, o autor
alemão afirma que:
a determinação essencial do pensamento funda-se precisamente no fato de a essência permanecer determinada
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por e a partir disso que, enquanto “percepção”, o pensamento percebe, ou seja, o real em seu próprio ser.61
A essência do pensamento não se dá de modo último e completo:
ela é moldada, a cada vez, não pelo homem em suas capacidades, mas
exatamente por aquilo que o pensar recebe, que é o próprio ser da realidade.
Deste modo, tal essência não é plena, pois o que a molda não se dá de modo
direto, e sim, no dar-se/retrair-se já apontado. A demora do pensamento na
espera do aceno é a demora diante da realidade em seu próprio ser. O que é o
ser do real? Heidegger afirma que o ser do real não é o presente, mas a
presença do presente (Präsenz des Präsenten) e a vigência do vigente
(Anwesen des Anwesendes). “A resposta é um salto no escuro”.62
Na busca de compreender o que o pensamento faz na percepção
das coisas, o autor fala de uma re-apresentação: aquilo que já está diante do
homem é tomado e posto novamente diante do mesmo homem, porém por
meio do lógos (como enunciado, juízo). “O caráter fundamental do pensamento
é o representar. No representar, desdobra-se o perceber. O próprio representar
é re-apresentação”.63 Heidegger se pergunta sobre a necessidade de que as
coisas sejam revestidas do lógos e entende que esta dúvida deveria ser
presente em todo questionar filosófico; para ele, esta é uma problematização
necessária.
O modo de receber a realidade como re-apresentação marca o início
do pensamento ocidental (como indica o pensamento de Parmênides), quando,
então, o pensamento passou a ser história de um pensamento que se instituía
e se solidificava. Esta constituição de um conhecimento sólido depende do
estabelecimento de um padrão delineado por pontos que sejam assumidos
como fixos e certos; por isso é que o pensamento ocidental, desde seu início,
está fora do elemento próprio do pensar. As coisas se dão, apresentam-se em
aceno. Por ser unicamente o aceno, em seu instante, o que a racionalidade
61 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.121. [“Vielmehr beruht die Wesensbestimmung des Denkens gerade darin, daß sein Wesen von dem her bestimmt bleibt, was das Denken als Vernehmen vernimmt - nämlich das Seiende in seinem Sein”. (Id., VA, p.140)] 62 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.122. [“Die Antwort ist ein Sprung ins Dunkle”. (Id., VA, p.141)] 63 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.122-123. [“Der Grundzug des Denkens ist das Vorstellen. Im Vorstellen entfaltet sich das Vernehmen. Das Vorstellen selbst ist Re-Präsentation”. (Id., VA, p.141)]
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pode “segurar nas mãos”, ela toma tal aceno – o presente captado – como
sendo a coisa em sua totalidade. Deste modo, o pensamento vigente desde os
gregos não é pensamento da realidade, mas sim pensamento de um aceno
tomado como totalidade.
Esse aparecer do ser como a vigência do vigente é o próprio começo da história ocidental, desde que compreendamos a história não só segundo seus eventos, mas que a pensemos, primeiro e sobretudo, segundo o que através dela antecipadamente se envia sob a forma de destino, atravessando assim todos os eventos e neles predominando.64
O pensamento como re-apresentação marca o início que delineou
toda a história do ocidente. Com os pensadores da origem do pensar ocidental
tem-se o delineamento de um destino para o homem: o pensamento do vigente
não põe o homem no elemento do pensamento, aquilo que mais deve ser
pensado. Este vigente é presente, mas o conceito tradicional de tempo não
permite a efetiva apreensão do presente vigente; e a redução a tal
entendimento tradicional afasta o pensamento de seu meio mais próprio. O ser
da realidade aparece como o brilho de um instante – “aparecer” (das
Erscheinen) tem raiz em brilhar (scheinen). O brilho mostra que o ser se dá e
se retrai.
A proveniência essencial do ser do real está impensada. O que
realmente cabe pensar mantém-se retraído. Isso ainda não se
tornou para nós digno de ser pensado. Por isso, nosso
pensamento ainda não ganhou propriamente seu elemento.
Propriamente, ainda não pensamos. E, por isso, perguntamos:
o que quer dizer pensar?65
Quando o pensar é tomado como objeto de si próprio, ao invés de se
ter um círculo vicioso e vazio, tem-se a possibilidade de se tomar a realidade
sob outros aspectos, pois, o que era “certo” passa a ser questionado. Na
tentativa de elucidação da questão-título O que quer dizer pensar?, Heidegger
64 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.123. [“Dieses Erscheinen des Seins als das Anwesen des Anwesenden ist selbst der Anfang der abendländischen Geschichte, gesetzt, daß wir die Geschichte nicht nur nach den Geschehnissen vorstellen, sondern zuvor nach dem denken, was durch die Geschichte im vorhinein und alles Geschehende durch waltend geschickt ist”. (Id., VA, p.142)] 65 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.124. [“Die Wesensherkunft des Seins des Seienden ist ungedacht. Das eigentlich zu-Denkende bleibt vorenthalten. Es ist noch nicht für uns denk-würdig geworden. Deshalb ist unser Denken noch nicht eigens in sein Element gelangt. Wir denken noch nicht eigentlich. Darum fragen wir: Was heißt Denken?”. (Id., VA, p.143)]
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abre a discussão a partir da qual o pensar pode ser revisto. É abertura de
caminho, mas nunca ponto final em uma chegada, considerando-se que a
realidade não é moldável àquilo que é a razão.
Até aqui, foi-nos importante, para uma reflexão sobre a serenidade,
a abertura de um novo entendimento do que significa pensar, de modo diverso
do que faz o homem comum. Pensar é uma destinação e um caminho que
permitem ao homem problematizar o ser e seu sentido. O pensamento se dá
quando o homem se dispõe a estar no âmbito do pensar; o pensamento
convoca o homem para que, a partir de sua capacidade, abra espaço para o
que mais cabe pensar.
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1.2.2. “A coisa” Se, porém, as coisas já se tivessem mostrado, como coisas, o ser coisa das coisas, a coisalidade, já se teria manifestado, já teria reivindicado e preocupado o pensamento. (Heidegger, A coisa)
Nas idas e vindas ao texto de um autor, a palavra se revela, a cada
vez, nova. Buscar entender aquilo que há de não dito na palavra significa
perceber sua abertura para algo além de um significado definido e estabelecido
por dicionários e manuais. Tratar da palavra filosófica, de certo modo, é tarefa
ainda mais peculiar, no sentido de ser mais fluida e abrangente, devendo o
pesquisador estar pronto para rever seu entendimento a cada instante com
sempre nova disposição para trilhar os caminhos do pensamento.
Compreender a obra de Heidegger é por-se a caminhar, tendo à frente diversas
possibilidades de caminho.
Serenidade é a prontidão na espera da palavra que deve se revelar.
“Deve”, não no sentido de uma obrigação, mas na esperança de que ela o faz –
e sempre o faz. De que depende o revelar-se da palavra e em que sentido esta
mesma palavra pode levar ao aparecer da coisa? Tal questão nos intriga e nos
acompanhará ao longo de nossa reflexão. Estamos nos colocando em direção
a algo de que temos apenas o rastro deixado na palavra heideggeraina. Aqui, a
própria palavra se faz coisa e a coisa se dá pela linguagem.
As idas e vindas ao texto de Heidegger nos mostram a necessidade
de que se demore na busca de uma revelação da própria palavra, no muito que
ela traz em pouco dizer; isto significa dar atenção à densidade que a constitui.
Para nós, não se trata de aguardar uma tal “vontade da palavra”, no que ela
possivelmente viesse a dizer; trata-se de perceber que a palavra escolhida pelo
autor traz mais que simplesmente o significado denotativo conhecido.
Heidegger é autor de grande número de obras, e a escolha de um texto
depende menos de um projeto traçado, que da necessidade de responder
àquilo que aparece como questão no caminho. Daí a opção por trabalhar A
coisa (Das Ding): o que se mostra como questão a nós é o problema da coisa,
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no sentido de estar ela a povoar o mundo do homem na dependência de que
ele a faça ser coisa. Na verdade, já é questão saber se a coisa depende do
homem para ser.
Ao problematizar a coisa, o autor intenta trazer à luz do pensamento
aquilo que ela é, tomando por base os elementos que estão mais próximos do
homem em seu mundo cotidiano. O mais próximo é o que constitui
verdadeiramente o mundo do homem e, na maior parte das vezes, passa-nos
despercebido. Temos, então, uma necessidade que exige um esforço de
desprendimento das estruturas de pensar já solidificadas, para que se dê uma
nova apreensão da realidade. A experiência humana junto às coisas permite a
problematização apresentada por Heidegger, considerando-se que o mundo do
homem está repleto de “coisas” (no modo como, costumeiramente, é entendida
a realidade). Porém, o autor afirma:
A coisa é pouca coisa: a jarra e o banco, a prancha e o arado, mas, ao seu modo, é também coisa a árvore e o tanque, o riacho e o monte. Coisificando cada vez a seu modo, são coisas garça e corsa, cavalo e touro. Coisificando cada vez de modo diferente, são coisas espelho e broche, livro e quadro, coroa e cruz.66
“A coisa é pouca coisa” (Ring ist das Ding).67 Tal ideia pode parecer,
em primeira instância, estranha, pois o mundo é repleto de coisas (disso, em
um pensamento comum, não há dúvidas). Porém, ao afirmar “a coisa é pouca
coisa”, já se pode entrever que aquilo que o autor chama de “coisa” vai além do
usual e comum entendimento. Se vale a problematização e se nem tudo é
coisa, resta indicado que não basta simplesmente “estar no mundo” para que
uma coisa seja coisa.
Ring ist das Ding. Coisa é pouca coisa. Por que pouca? É como se
disséssemos: “A coisa, ‘coisa mesmo’, que traz em si o que plenifica algo como
coisa, não está em grande número ao nosso redor.” Se bem entendemos, 66 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, pp.159-160. [“Ring ist das Ding: der Krug und die Bank, der Steg und der Pflug. Ding ist aber auch nach seiner Weise der Baum und der Teich, der Bach und der Berg. Dinge sind, je weilig in ihrer Weise dingend, Reiher und Reh, Pferd und Stier. Dinge sind, je weilig nach ihrer Weise dingend, Spiegel und Spange, Buch und Bild, Krone und Kreuz.” (Id., VA, pp.183-184)] 67 Heidegger trabalha com os diversos sentidos do termo ao longo do texto: “der Ring” pode ser traduzido como “anel”, “aliança”, “aro” ou “círculo” – daí também o verbo ringeln, que significa “encaracolar” ou “anelar” (diretamente ligado a der Kreis – “círculo”, “setor”). Mas Ring, ainda dentro da ideia de “círculo” pode ser traduzido como “ringue”, relacionando-se ao verbo ringen (“lutar”) e ao termo das Ringen (“luta”).
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Heidegger apresenta a ideia de que o termo “coisa” foi desgastado por seu uso,
sendo utilizado para todo e qualquer ente sem distinção. Com o desgaste do
termo, perdeu-se muito daquilo que ele nomeia; o entendimento da coisa foi
perdido.
“Pouca coisa” se refere apenas a cardinalidade? Não; e o que nos
auxilia a pensar assim é a tradução francesa do texto. “Ring ist das Ding” foi
traduzido como “Modique est la chose”68, trazendo a ideia de “modicidade”.
Módico é o pouco, o pequeno, mas também o simples. Deste modo, o pouco
da coisa é também sua simplicidade – não é necessário muito; mas a razão
calculativa faz com que as coisas não apareçam assim. O sentido da terra, no
brotar da rosa que traz a beleza a ser oferta, não necessita de cálculos que a
insiram em uma construção lógico-científica. A coisa é pouca; a coisa é
simples.
Coisa é pouca coisa e tudo pode ser coisa: jarra, banco, prancha,
arado etc. A pergunta que resta é, então, sobre o que é necessário para que
um ente seja inserido na categoria de coisa. Isto nos leva a pensar, então, que,
já que ser coisa é situação contingente, ser coisa não dependeria das
características oferecidas pelos entes. Restaria na responsabilidade do homem
o entendimento e a classificação de algo como coisa. Porém, se nos
detivermos em tal questão, não aparece como clara a ideia de que o tornar-se
coisa seja questão de classificação/categorização. Estaríamos falando
diretamente da relação sujeito/objeto? Veremos que não.
Qual seria determinada característica apresentada por um ente,
diferenciando-o em meio a tudo mais, que faria dele coisa? Caso apresentasse
tal determinação, a coisa ainda se mostraria a partir de um “entendimento” do
homem (que deveria reconhecer tal característica). Poderia ser que somente o
que aparecesse naturalmente com a citada característica seria coisa; mas a
ideia não é tão clara como parece, pois, no mesmo trecho, aparece a indicação
de existirem coisas naturais (árvore, riacho, cavalo) e coisas artificiais (arado,
livro, coroa). Isto nos leva a pensar que a coisa não é naturalmente coisa. Mas
ainda assim, algo deve existir de comum entre coisas naturais e artificiais, e a
68 M. HEIDEGGER, La chose. In: Essais e conférences, 217-218.
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descoberta do que seja este algo é que poderá abrir para nós o entendimento
do que seja a coisa. Tudo pode ser coisa, mas nem tudo é.
Até este ponto, os elementos dos quais dispomos podem nos levar a
entender que a coisa é o que está ao redor do ser humano; mas o pouco que
são as coisas não é o mesmo para toda pessoa – daí dizer que “coisa é pouca
coisa”, pois o mundo é algo definido por uma interpretação, que depende da
vivência de cada um. Não existe o mundo das coisas em geral, mas o mundo
do homem determinado, que é repleto de coisas: há entes que estão na
categoria de coisa para alguém e há entes que não estão; do mesmo modo,
em tal contingência, há entes que estão na categoria de coisa para outro. Tudo
pode ser coisa, natural ou artificial, e, ao mesmo tempo, pouco é coisa: apenas
aquilo que está no pequeno círculo ao meu redor.
Ring é um pequeno círculo, e esta imagem nos faz voltar à
problemática inicial de Das Ding, sobre proximidade e distanciamento. “[N]a
proximidade, está o que costumamos chamar de coisa”;69 “pouca coisa” em um
“pequeno círculo” é aquilo que está ao meu redor – mas em um sentido diverso
do físico. Os conceitos de proximidade (Nähe) e distanciamento (Entfernung)
são sempre apresentados em relação ao espaço (Raum), mas o autor
questiona o entendimento comum do que seja a proximidade e, adiante, indica
que este pensamento deve ir além da espacialidade física. A proximidade se dá
em relação ao mundo do homem particular, e isto vai além do “estar perto” de
seu corpo.
No sentido exposto, Heidegger fala da tentativa constante do homem
em reduzir as distâncias: a sociedade tecnológica, com seus aparatos, busca
diminuir o espaço entre homem e mundo em geral e, de certo modo, o faz;
porém, o mundo não foi aproximado do homem, já que o projeto humano não
teve este objetivo, mas tão somente diminuir distâncias no espaço.
E as distâncias foram diminuídas – o exemplo apresentado pelo
autor é o da televisão: com tal aparelho, o homem pode trazer à sua frente
aquilo que o ciclo natural do mundo levaria meses ou anos para fazer aparecer;
69 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.144. [“In der Nähe ist uns solches, was wir Dinge zu nennen pflegen”. (Id., VA, p.168)]
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tudo é colocado diante dos olhos do homem, seja o distante no tempo ou no
espaço. Com tal tecnologia, nada mais se esconde ou é esperado e o
desnudamento do mundo é sempre mais efetivo. Tal des-nudar é, aqui, um
des-velar; é um modo de fazer aparecer o mundo.70 Mas com a anulação da
distância, o mundo ainda não é próximo do homem; tudo está perto, mas não
próximo. Sem distância, mas sem proximidades, situação singular é: tudo flutua
na “monotonia e uniformidade do que não tem distância”.71
Monotonia e uniformidade é a situação na qual os entes são
igualados em uma interpretação que nivela o mundo em um sentido único. Por
conta da situação de monotonia, a classificação de todos os entes como coisa
se justifica; tudo é coisa. Heidegger fala de tal situação como sendo de horror e
terror: “o poder que joga para fora de sua essência, sempre vigente, tudo o que
é e está sendo”72; no desejo de fazer com que tudo esteja próximo,
simplesmente se consegue uma pluralidade monótona e uniforme. Isto é um
perigo não percebido. Mas a re-descoberta da coisa é percebê-la como o que
sai da monotonia e aparece ao homem, em seu brilho. A coisa é o que está na
proximidade, e não o que está perto; simplesmente anulando as distâncias, não
se chega à proximidade.
De há muito, o homem lida e continua sempre a lidar com as coisas, sem, no entanto, pensar, uma vez sequer, a coisa, como coisa! Até hoje, o homem não pensou a coisa, em seu modo de ser coisa, como não o fez também com a proximidade.73
A distância não pode ser simplesmente suprimida; ao contrário,
entendemos sua necessidade. Para que apareça a coisa, é preciso que algo
tenha condições de aparecer como coisa e é a distância que marca um espaço,
distinguindo os âmbitos do homem e da coisa. Quanto mais o homem faz a
coisa se mostrar na medida do humano, menos é possível ter a coisa mesma.
Disto decorre o fato de que o mundo é apenas o mundo humano; além dele, o
70 Tema central de A questão da técnica (Die Frage nach der Technik), texto de 1953. 71 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.144. [“Alles wird in das gleichförmig Abstandlose zusammengeschwemmt.” (Id., VA, pp.167-168)] Vale observar que o trecho original diz gleichförmig Abstandlose, ou seja, uma “uniforme ausência de distância”, mas não cita “monotonia” (al. Monotonie), como traz a tradução brasileira. 72 Id., A coisa; In: EC, p.144. [“Das Entsetzende ist jenes, das alles, was ist, aus seinem vormaligen Wesen heraussetzt”. (Id., VA, p.168)] 73 Id., A coisa; In: EC, p.144. [“Der Mensch hat bisher das Ding als Ding so wenig bedacht wie die Nähe”. (Id., VA, p.168)]
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ser humano não conhece; deste modo, resgatar a coisa como coisa é fazer o
mundo aparecer como mundo.
A relação que Heidegger estabelece entre proximidade e
distanciamento indica a necessidade de se pensar o espaço além da noção
física que se tem da realidade. Aquilo que está próximo do ser humano não é
necessariamente o que está ao seu lado, mas o que é trazido para seu mundo
significado. O próprio modo do homem falar das coisas é excludente, quando
ele fala da realidade a partir de uma sintaxe já pronta que é entendida como
caminho da verdade. Se supusermos, por exemplo, que, na coisa, existe “algo
além” do aceito pelo entendimento humano, isto é desconsiderado por não
caber em tal sintaxe. Daí a necessidade que Heidegger enxerga de que exista
entendimento diverso do que seja a racionalidade para falar do mundo; o
homem constrói seu mundo, dá significado a seu mundo, mas não deixa o
mundo aparecer como mundo, nem as coisas serem coisas. Apenas um
pensamento diverso de tal modelo de racionalidade poderia trazer a coisa
mesma.
Por meio do pensar a coisa, Heidegger quer chegar à própria coisa.
Esta ideia parece soar puramente fenomenológica (ir às coisas), porém é
alterada ao vermos que o círculo do qual tomam parte as coisas é pequeno
pelo motivo de depender do homem. De modo ainda primário, podemos pensar
que, para se chegar à coisa, é preciso, antes, pensá-la; por sua vez, pensar a
coisa significa buscar o sentido que ela traz ou reúne, como veremos adiante.
Assim, o entendimento da coisa poderia ser alcançado pela busca do sentido
que ela traz – este, que pode ser pensado a partir do que é a coisa em sua
essência, em seu coisificar74.
Coisificar (dingen) é o verbo que indica a ação da coisa. Na verdade,
é uma ação passiva, pois indica mais aquilo que é próprio da coisa, o que ela é
74 Autor de inúmeros neologismos, Heidegger busca moldar as palavras de modo a fazer com que elas possam ao menos sinalizar aquilo que indica o pensamento; a palavra, presa a regras de sintaxe estabelecidas, não alcança a experiência do pensar; “os dicionários não dizem nada do que dizem as palavras na experiência originária do pensamento”. (M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.152.) [“...was die Wörter, als gedachte gesprochen, sagen, berichten die Wörterbücher wenig”. (Id., VA, p.176.)]
Allemann indica que o objetivo de Heidegger, ao desenvolver um vocabulário próprio, é “fixer l’integralité des significations venant au langage, et atteindre ainsi, en se retirant de la langue philosophique habituelle, une précision adaptée aux dures exigences de la pensée qui questionne l’être”. (B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, pp.146-147.)
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e reúne em si. “A coisa coisifica...”.75 Se assim ocorre, já nos seria possível
identificar, entre os entes, o que pode ser entendido como coisa: tudo aquilo
que coisifica é coisa. Mas aqui, abre-se nova indicação de caminho, pois há
mudança no que buscávamos entender: agora queremos saber o que é
propriamente o coisificar.
O coisificar se mostra como algo, de certo modo, paradoxal: é a
ação da coisa, porém não significando que esta vá “agir” de um modo ou outro;
é ação que significa oferecer a capacidade de receber, recolher e reunir.
Reunir, receber e recolher o quê e de que modo? A coisa é aquilo que tem a
capacidade de reunir algo em si – e, a partir disso, oferecer a possibilidade de
trazer um sentido, como veremos adiante. Se a coisa apresenta a capacidade
de receber, aparece-nos aqui um conceito que se mostra necessário, a saber,
o vazio (leer), pois, para que um ente possa receber algo, ele não pode
ser/estar pleno, cheio. Por sua vez, isto significa que apenas o que é vazio tem
condições de ser entendido como coisa. E mais: não simplesmente o que é
vazio, mas o que apresenta o vazio (die Leere) como capacidade de si. “O ser
coisa do receptáculo não reside, de forma alguma, na matéria, de que consta,
mas no vazio, que recebe”.76 A coisa é sempre receptáculo e seu ser reside no
vazio.
Tomemos o exemplo utilizado pelo autor para entender mais sobre o
que são o vazio e o receber da coisa: o jarro (der Krug). O jarro é uma coisa;
uma coisa artificial, um produto. O que foi produzido do jarro foram parede e
fundo (Wand und Boden); e o que existia do jarro antes de ser produzido era
unicamente algo com a capacidade de receber. A coisa é o subsistente que
independe da matéria – no exemplo, é o jarro como receptáculo, antes de
recipiente. Não há necessidade do jarro em si, mas daquilo que ele traz, que é
o vazio; ao se fazer vigorar o jarro, vigora o vazio. Por tal razão, pode o autor
dizer que o jarro não existe por ter sido produzido, mas, ao contrário, teve de
ser produzido por existir.
75 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.151. [“Das Ding dingt”. (Id., VA, p.175.)] 76 Id., A coisa; In: EC, p.147. [“Das Dinghafte des Gefäßes beruht keineswegs im Stoff, daraus es besteht, sondern in der Leere, die faßt”. (Id., VA, p.171)].
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A coisa é sempre aquilo que faz vigorar o vazio. Mas, ao considerar
o vazio como único (não existem dois vazios diferentes), o que faz a
diversidade das coisas é o que exatamente o vazio que elas trazem pode
receber – receber, recolher e reunir. Árvore, riacho, corsa, touro, livro e coroa
podem ser entendidos como coisas e, se o são verdadeiramente, significa que
também trazem um vazio que pode ser preenchido, do mesmo modo que o
jarro. Heidegger dá estes exemplos como sendo coisas, cada uma a seu modo.
Já que exemplos díspares são coisas, a questão que se nos coloca é sobre o
que significa recolher, receber e reunir que se dão tanto para a árvore quanto
para a corsa e a coroa etc.
Heidegger mostra que o pensamento da coisa não se relaciona ao
entendimento de um objeto; isto quer dizer que a coisa independe de ser
colocada como objeto diante de um sujeito. O caminho para o entendimento da
coisa não é o objeto, pois o jarro subsiste como receptáculo e se a-presenta
como coisa antes da re-presentação, como dissemos. Um objeto depende de
um sujeito – a coisa não. E o que dizemos aqui não contradiz o que foi dito
anteriormente: a coisa é o que subsiste independente de um sujeito, é um vazio
que traz a possibilidade de ser preenchido; porém, é sempre para um homem
determinado que algo aparecerá como coisa, destacando-se em meio à
monotonia.
Entendemos aqui o receptáculo como o vazio do jarro capaz de algo
receber; o receptáculo, para viger, tem de ser produzido como recipiente. No
caso do jarro, o recipiente do receptáculo foi produzido; o oleiro (Töpfer) molda
o vazio, dando-lhe parede e fundo. Mas o ser do jarro ainda está fora da
moldagem; o jarro é receber. O que o oleiro quer produzir não é simplesmente
o jarro como parede e fundo, mas ele quer fazer viger o vazio que é receber;
para tanto é que ele molda e produz. Parede e fundo fazem aparecer o vazio; e
este vazio que aparece (físico) é o recipiente do receptáculo que é o receber;
na produção, o produzido é inserido no desencobrimento vigente.
Pois é para o vazio, no vazio e do vazio que ele [oleiro] conforma, na argila, a conformação de receptáculo. O oleiro toca, primeiro, e toca, sempre, no intocável do vazio e, ao pro-duzir o recipiente, o con-duz à configuração de receptáculo. É o
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vazio da jarra que determina todo tocar e apreender da pro-dução.77
Algo que esteja cheio, pleno em si mesmo, não tem condições de
receber; isso indica a importância do vazio para falar da coisa. O jarro, por
exemplo, só pode receber quando está vazio. O estar vazio do jarro permite
que algo seja vazado nele. Pensando, então, de modo mais geral: as coisas,
como o jarro, recebem por estarem vazias. No receptáculo que é o jarro, a ideia
de vazio aparece mais claramente – embora apenas de certo modo, pois, ao
tomarmos o entendimento da física (e, daí a ciência em geral), não há um
pleno vazio (o jarro está cheio de certos elementos que dão lugar a outros).
Mas, supondo-se haver no jarro um pleno vazio, como falar do vazio das
coisas? De que vazio fala Heidegger?
O autor fala de um vazio que não é científico; por sua vez, isso exige
que o próprio falar não seja científico. “A ciência sempre se depara e se
encontra, apenas, com o que seu modo de representação, previamente, lhe
permite e lhe deixa, como objeto possível”.78 A ideia é a de que a ciência, tendo
estabelecido seu modelo de pensamento, apenas recebe aquilo que se
enquadra no mundo que tal modelo permite; a ciência não tem os instrumentos
necessários para lidar com aquilo que está além de sua margem. Ou a ciência
força a conformação do que vai além dela para aquilo que são seus parâmetros
de entendimento, ou então ela rechaça – daí Heidegger dizer que, por meio do
conhecimento científico, “a coisa, como coisa, continua vedada e proibida
(verwehrt), continua reduzida a nada (nichtig) e, neste sentido, anulada
(vernichtet)”.79 É exatamente por conta disso que podemos entender a ideia de
ciência como dotada de força de constrangência (Zwingendes).
É preciso recordar que Heidegger fala do jarro como exemplo para
mostrar algo – algo físico. Partindo do vazio do jarro que recebe, ele fala de
tudo que é coisa; é um exemplo não para indicar que a coisa é vazia, mas que
ela se apresenta como algo com a capacidade de receber. O “vazio” físico do
77 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.147. [“...er gestaltet die Leere. Für sie, in sie und aus ihr bildet er den Ton ins Gebild. Der Töpfer faßt zuerst und stets das Unfaßliche der Leere und stellt sie als das Fassende in die Gestalt des Gefäßes her”. (Id., VA, p.171)] 78 Id., A coisa; In: EC, p.148. [“Die Wissenschaft trifft immer nur auf das, was ihre Art des Vorstellens im Vorhinein als den für sie möglichen Gegenstand zugelassen hat”. (Id., VA, p.171)] 79 Id., A coisa; In: EC, p.148. [“In Wahrheit bleibt jedoch das Ding als Ding verwehrt, nichtig und in solchem Sinne vernichtet”. (Id., VA, p.171)]
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jarro serve para mostrar outro vazio, que seja efetivamente vazio. Fisicamente,
o jarro não está vazio, mas a avaliação feita pelo autor se deixa levar por uma
maneira meio poética (halbpoetische), já que, poeticamente, podemos bem
entender que o jarro esteja vazio para receber algo. O que se apresenta aqui,
então, é a possibilidade de um pensamento que vá além do que permite a
ciência.
Para não perdermos de vista o caminho que iniciamos e queremos
percorrer, vale ressaltar que “ir além do que permite a ciência” é posto como
objetivo para que se receba as coisas do modo como elas se derem, sem
forçar uma direção do modo segundo o qual elas devam se mostrar. O modo
de enxergar da ciência pode, então, ser entendido como oposto ao da
serenidade, que é a postura que deixa ser.
O receber do jarro é aquilo que Heidegger indica como sendo de
dois modos: acolhendo (nehmend) e retendo (behaltend). O jarro acolhe o
vazado em seu vazio; acolhe e retém para, depois, poder doar. Tal ideia é de
suma importância para entendermos a coisa em seu coisificar, pois, do mesmo
modo como ocorre com o jarro, ocorre com todas as coisas: elas oferecem o
vazio de si para receber, quando, então, retêm para doar. No caso do jarro
pode-se entender o que ele pode receber (água, por exemplo); mas de que
modo entender em um sentido mais amplo o que é o receber das coisas? O
que e como as coisas recebem? O que, no caso, vem a ser a doação?
Retomando a ideia apresentada anteriormente, a coisa é o que está
na proximidade. Ao tomarmos o jarro, ele pode receber a água, dentre tanto
que poderia ser; mas, em nosso entendimento, um mesmo jarro cheio de água
pode estar próximo ou não para diferentes pessoas – ou até para a mesma
pessoa, mas em situações diferentes. O estar próximo ou não – o ser coisa –
não depende unicamente do físico que está no jarro, mas sim do não físico que
pode ser preenchido e que, depois, será doação.
Quando e como as coisas chegam, como coisas? Não chegam através dos feitos e dos artefatos do homem, mas também não chegam, sem a vigilância dos mortais. O primeiro passo na direção desta vigília é o passo atrás, o passo que passa de um
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pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo, para o pensamento meditativo, que pensa o sentido.80
A constituição do mundo do homem se dá pelas coisas que fazem
sentido para ele. Sem sentido, uma coisa não vigora. Isto significa que seu
mundo – que é um mundo construído, interpretado – é povoado por tudo aquilo
que pode ser recebido a partir de uma indicação de sentido. Mas nem tudo que
vem ao encontro tomará parte no mundo de alguém; isto quer dizer que nem
tudo se tornará coisa para todos os homens. Como o sentido de um mundo é
composto por um conjunto de significações, para se tornar coisa no mundo é
preciso que algo traga já algum elemento de sentido deste mesmo mundo,
como uma questão de identificação.
Quando o sentido que algo traz pode ser assimilado no sentido do
mundo de determinado homem, este algo se torna coisa e vem para a
proximidade. O passo atrás (Schritt zurück) em direção ao pensamento
meditativo, indicado pelo autor como necessário, é o empenho para se colocar
em postura receptiva diante das coisas que vêm ao encontro. Aquilo que trago
para a proximidade carrega, em seu vazio, o que será doado em meu mundo; o
coisificar da coisa é justamente a possibilidade de trazer sentido e doar – trazer
mundo. Heidegger afirma que:
Ao pensar a coisa, como coisa, poupamo-lhe a vigência de coisa, protegendo-a no âmbito em que ela vige e vigora. No sentido de reunir e recolher diferenças numa unidade, coisificar é aproximar mundo. Ora, aproximar constitui a vigência e o vigor essencial da proximidade. Poupando, pois, a coisa, como coisa, moramos na proximidade. A aproximação da proximidade é a única dimensão própria do jogo de espelho de mundo.81
Pensar a coisa a protege, conservando-a em seu lugar, âmbito de
sua vigência; é o pensamento da coisa que permite guardar o distanciamento
80 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.159. [“Wann und wie kommen Dinge als Dinge? Sie kommen nicht durch die Machenschaft des Menschen. Sie kommen aber auch nicht ohne die Wachsamkeit der Sterblichen. Der erste Schritt zu solcher Wachsamkeit ist der Schritt zurück aus dem nur vorstellenden, d.h. erklärenden Denken in das andenkende Denken”. (Id., VA, p.183)] 81 Id., A coisa; In: EC, p.159. [“Denken wir das Ding als Ding, dann schonen wir das Wesen des Dinges in den Bereich, aus dem es west. Dingen ist Nähern” von Welt. Nähern ist das Wesen der Nähe. Insofern wir das Ding als das Ding schonen, bewohnen wir die Nähe. Das Nähern der Nähe ist die eigentliche und die einzige Dimension des Spiegel-Spiels der Welt”. (Id., VA, p.182)]
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da coisa em relação ao âmbito humano. Proteger a coisa no âmbito no qual ela
vigora é como se fosse permitido que ela viesse ao encontro do homem sem
que seja forjada/forçada pelo desejo humano; então, quando não forçada, é
possível a coisificação. Coisificar é aproximar mundo.
Ao vir ao encontro em sua coisidade, em sua vigência, a coisa
aparece carregada de um sentido que encontra similaridade com o mundo do
homem – ela aparece na proximidade e, consigo, traz mundo. Reforcemos a
ideia de que a coisa é o que está na proximidade e não o que é posto na
proximidade. Aquilo que a coisa traz corrobora ou ratifica o mundo do homem
ao qual ela está relacionada e, por isso, é encontrada na proximidade.
Poderíamos entender que, quando o sentido carregado por algo em nada se
identifica com um mundo particular, este algo não aparece como coisa e,
assim, não aparece na proximidade.
Aqui também pode ser entendida a afirmação de que “O homem só
pode apresentar, de qualquer maneira que seja, o que, antes, já se iluminou e
clareou, por si mesmo e se lhe apareceu, em sua própria luz e claridade”82:
apenas quando o homem recebe aquilo que é a doação de sentido da coisa
(aparecer em sua luz e claridade), é que ela passa a fazer parte de seu mundo.
Novamente, o deixar ser (sein lassen) é aspecto imprescindível para a
constituição originária do mundo do homem.
Aparece na proximidade aquilo que ratifica o sentido de um mundo
determinado – o do homem determinado; tal ocorrência indica a ele que seu
mundo pode ser identificado em algo além dele. O mundo pode ser
reconhecido no mundo particular de um homem; por sua vez, o mundo do
homem, interpretado e carregado de sentidos, é, de certo modo, ratificado
pelas coisas. O homem constrói o mundo a partir de si, de sua interpretação,
mas esta pode não se identificar com as coisas que aparecem para ele. Sem
nenhuma identificação, o homem vive em um mundo “des-ligado” do existir das
coisas – e sua interpretação se mostra como não possível. A conexão com a
realidade se dá quando as coisas confirmam a interpretação do homem como
82 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.148. [“Vorstellen kann der Mensch, gleichviel in welcher Weise, nur solches, was erst zuvor von sich her sich gelichtet und in seinem dabei mitgebrachten Licht sich ihm gezeigt hat”. (Id., VA, p.172)]
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possível – é a possibilidade de seu próprio mundo. O mundo é a abertura para
que as coisas se mostrem, é a possibilidade que se dá à manifestação do ser.
A coisa coisifica, ou seja, reúne sentidos que, por sua vez, levam o
homem a identificar seu próprio mundo: o sentido das coisas mostra que sua
interpretação de mundo é possível. Assim, o homem realiza a experiência de
constituir seu mundo: seu estar no mundo é atividade constante de
interpretação. A constância se dá, pois, agindo ou não, fazendo ou não,
refletindo ou não, a recepção das coisas se dá pela interpretação que o homem
faz delas, em aparente “possibilidade sem limites”. Mas o interpretar chega ao
fim com a última possibilidade do homem, a morte.
A experiência (certeza) da morte indica que há um ponto no qual o
mundo do homem se fecha como um todo de sentido – é o fim das
possibilidades. A ideia de fim é que fecha o conjunto de interpretações em um
todo de sentido. A morte delimita a existência humana, delimita um tempo, que
é o tempo do mortal. “Somente o homem morre...”83 O “tempo entre”
nascimento e morte delimita também um “espaço entre”: nestes tempo e
espaço “entre” é que as coisas podem aparecer. A coisa aparece e traz mundo
em sentido; traz o homem para habitar seu próprio mundo – o mundo do
mortal.
A realidade humana é marcada pelo fim de seu tempo; de modo
algum e em circunstância alguma pode o ser humano deixar a mortalidade.
Mortalidade é o pé no chão da carne que, um dia, será terra. Terra é a matéria
do homem. No sentido que a coisa traz, vem a terra como aquilo que leva o
homem a receber sua certeza de mortal. Mas o homem não é apenas terra; a
possibilidade que ele tem de ser não se dá na terra, mas sobre ela. Homem na
terra é seu deixar de existir, quando então sua vida se desfaz propriamente
como terra. O mundo do homem é, então, o mundo do entre: entre terra e céu
– a terra que mostra seu limite mortal e o céu que mostra o infinito do imortal. O
existir humano é o existir do mortal. Segundo Heidegger, o homem apenas se
reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante
83 M. HEIDEGGER, “… poeticamente o homem habita…”; In: EC, p.173.
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‘desta’ terra, medindo seu existir de mortal diante dos deuses. É no espaço
entre divinos e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está ‘entre’.
Retomando o exemplo do jarro: o jarro pode trazer a água que,
como matéria, é a água em modo único (com possíveis desmembramentos
pela ciência química ou física). Mas a água que o jarro traz pode ser entendida
em seu sentido, quando é aquela que porta a força que vem da terra, das
fontes mais profundas e puras; e ainda porta a força que vem dos céus,
morada dos imortais, água que cai, calma ou devastadora. A água traz seu
brotar da terra e do céu. O que o jarro traz em seu “vazio” físico é o líquido
água; o que o jarro traz em seu vazio poético é a água que reúne terra e céu.
Do mesmo modo, o jarro pode trazer o vinho, bebida que preenche
como conteúdo um objeto de barro. Mas o vazio poético do jarro traz mais:
vinho é uva que brota da terra; uva é mortalidade, é o que passa. A uva é o que
passa, mas não desaparece, pois é transformada pela ação do homem que
entende além da mortalidade da terra. O homem enxerga, na uva, a
possibilidade de algo mais: o vinho traz terra, mas traz o sentido de
possibilidade do céu. Vinho é devaneio que traz o sentido do além da
mortalidade; vinho é sacrificial como oferta aos deuses, é entrega da
mortalidade à imortalidade.
Tais ideias não podem ser pensadas pela racionalidade do modo
como usualmente é entendida. O passo atrás no entendimento da coisa é a
busca do sentido que ela traz. A coisa reúne terra e céu, divinos e mortais – a
união e sentido dos quatro, que Heidegger chamou de quadratura (Geviert84). A
coisa faz a quadratura aparecer e ficar. Afirma o filósofo:
A coisa leva a quadratura a perdurar. A coisa coisifica mundo, no sentido de concentrar, numa simplicidade dinâmica, as diferenças. Cada coisa leva a perdurar a quadratura em cada duração da simplicidade do mundo.85
84 O prefixo “Ge” dá o sentido de união ou coletivo para algo; por exemplo: das Geschwister (coletivo de irmãos), das Gebirge (coletivo de montanhas), das Getier (coletivo de animais). Na construção de “Geviert” temos o mesmo: Ge (coletivo, união) e vier (quatro); das Geviert é a união dos quatro. 85 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.158. [“Das Ding verweilt das Geviert. Das Ding dingt Welt. Jedes Ding verweilt das Geviert in ein je Weiliges aus Einfalt der Welt”. (Id., VA, p.182)]
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E, adiante, prossegue:
No sentido de reunir e recolher diferenças numa unidade, coisificar é aproximar mundo. Ora, aproximar constitui a vigência e o vigor essencial da proximidade. Poupando, pois, a coisa, moramos na proximidade. A aproximação da proximidade é a única dimensão própria do jogo de espelho de mundo.86
A diferença dos quatro é unificada na coisa, no sentido de preservar
terra e céu, mortais e divinos. A coisa aproxima mundo quando traz os quatro;
ou seja, quando o homem recebe a coisa, ele o faz acolhendo o sentido que
ela traz, e este sentido é a abertura de um espaço no qual este mesmo homem
possa estar. A coisa traz os quatro, mas não os anula em uniformidade, já que
os preserva cada um em sua distância. Falar de terra é também trazer a
simplicidade dos quatro...87 É possível perceber que, neste entendimento, o
mundo aparece como um jogo: na coisa, os quatro se dão a cada momento,
mas não de um mesmo modo. “Dá-se o nome de mundo a este jogo em
espelho (Spiegel-Spiel), onde se apropria a simplicidade de terra e céu, de
mortais e imortais”.88
Como em um jogo em espelho, o nó de reflexo se dá na coisa, esta
que “não está ‘na’ proximidade, como se esta fosse um continente.
Proximidade só se dá e acontece na aproximação cumprida pela coisificação
da coisa”.89 E, neste sentido, quando a coisa coisifica, o homem pode
verdadeiramente habitar o mundo, ao invés de simplesmente nele estar. Com a
aproximação à qual a coisa remete o homem o mundo se torna próximo,
mesmo sem diminuir distâncias; e as ocorrências que se dão no mundo se
tornam próximas, ainda que fisicamente distantes.
Na simplicidade deste nó (Gering) refletido dos quatro se dá a coisa;
é esta simplicidade que faz o homem habitar em meio a pouca coisa (jarra,
banco, prancha, arado etc.) – é pouco por conta do sem número que poderia
86 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.158-159. [“Dingen ist Nähern von Welt. Nähern ist das Wesen der Nähe. Insofern wir das Ding als das Ding schonen, bewohnen wir die Nähe. Das Nähern der Nähe ist die eigentliche und die einzige Dimension des Spiegel-Spiels der Welt”. (Id., VA, p.182)] 87 Cf. Id., A coisa; In: EC, p.155. [“Sagen wir Erde, dann denken wir schon die anderen Drei mit aus der Einfalt der Vier”. (Id., VA, p.179)] 88 Id., A coisa; In: EC, p.157. [“Wir nennen das ereignende Spiegel-Spiel der Einfalt von Erde und Himmel, Göttlichen und Sterblichen die Welt”. (Id., VA, p.181)] 89 Id., A coisa; In: EC, p.155. [“Das Ding ist nicht »in« der Nähe, als sei diese ein Behälter. Nähe waltet im Nähern als das Dingen des Dinges”. (Id., VA, p.179)]
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ser coisa e estar na proximidade; é pouco por ser simples. Porém este nó se dá
como nó de luta (Gering des Ringes)90 no sentido de que os quatro se dobram
e se ajustam à sua vigência unificante. Heidegger fala aqui de flexibilidade dos
quatro; assim, nada é puramente terra ou céu, mortal ou divino – por isso, a
diferença das coisas, diferença de sentido, diferença de mundo: as coisas não
são as mesmas para toda pessoa.
Esta passagem de um pensamento para outro não está, sem dúvida, apenas em simples troca de posição. Algo assim já não pode acontecer nunca porque as posições, junto com seus modos de troca, já estão presas ao pensamento representativo. O passo atrás instala-se numa correspondência que, interpelada pelo ser mundo dentro do mundo, responde-lhe em seu próprio âmbito. Uma simples troca de posições não pode propiciar, em nada, o advento da coisa, como coisa, da mesma maneira que, agora, tudo que se põe, como objeto, na ausência da distância, nunca pode simplesmente virar coisa. As coisas nunca chegam, como coisas, por nos desviarmos apenas dos objetos ou por re-cordarmos antigos objetos de outrora que, talvez, já estivessem em vias de se tornarem coisas ou até de serem, como coisas.91
Schritt zurück é o passo atrás, a possibilidade de estabelecer com o
mundo uma relação diversa da que se dá costumeiramente a partir do
pensamento comum vigente. Enquanto o pensar representativo busca
enquadrar o mundo em suas possibilidades, recebendo a coisa simplesmente
como objeto em uma relação de conhecimento, o passo atrás é anterior à
representação da coisa. “Anterior” quer dizer da recepção da coisa em seu
mostrar-se; é permitir que a coisa traga significado específico para o mundo do
homem, não devendo obedecer ao significado tido como o correto.
A ideia de “passo atrás” nos remete a uma parada para melhor
observação. Ou seja, o homem caminha em um determinado ritmo junto às
90 Ver nota 67, p.60. 91 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.159. [“Der Schritt zurück von einem Denken in das andere ist freilich kein bloßer Wechsel der Einstellung. Dergleichen kann er schon deshalb nie sein, weil alle Einstellungen samt den Weisen ihres Wechselns in den Bezirk des vorstellenden Denkens verhaftet bleiben. Der Schritt zurück verläßt allerdings den Bezirk des bloßen Sicheinstellens. Der Schritt zurück nimmt seinen Aufenthalt in einem Entsprechen, das, im Weltwesen von diesem angesprochen, innerhalb seiner ihm antwortet. Für die Ankunft des Dinges als Ding vermag ein bloßer Wechsel der Einstellung nichts, wie denn auch all das, was jetzt als Gegenstand im Abstandlosen steht, sich niemals zu Dingen lediglich umstellen läßt. Nie auch kommen Dinge als Dinge dadurch, daß wir vor den Gegenständen nur ausweichen und vormalige alte Gegenstände er-innern, die vielleicht einmal unterwegs waren, Dinge zu werden und gar als Dinge anzuwesen”. (Id., VA, p.183)]
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coisas, estabelecendo com elas uma relação específica. O passo atrás significa
parar e observar o que costumeiramente ocorre, deixando o dar-se das coisas
sem a interferência humana, em uma atividade “pré-racional” (considerada no
modelo da razão objetivadora), pois com “a ascenção da consciência, cuja
essência é, para a metafísica moderna, a representação, ascende a posição e
a oposição dos objectos”92. Significa considerar a coisa antes de uma direta
classificação dela como simples objeto diante de um sujeito cognoscente.
A coisa é flexível e “[n]esta flexibilidade, eles [os quatro] se ajuntam
dóceis, mundanizando mundo”93 – tal flexibilidade é o que o pensamento
representativo não consegue abarcar. O passo atrás está relacionado ao “ser
mundo dentro do mundo”, e no “pensamento do ser nunca se re-presenta
simplesmente um real e assume este representado como o verdadeiro”.94 A
indicação de Heidegger é a de que o pensamento precisa ser diverso para que
se receba a coisa como coisa e, assim, o mundo como mundo, para que o
homem verdadeiramente habite seu mundo, que é o do entre terra e céu,
mortais e divinos.
92 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.329. 93 Id., A coisa; In: EC, p.158. [“Also schmiegsam fügen sie fügsam weltend die Welt”. (Id., VA, p.182)] 94 Id., A coisa; In: EC, p.161. [“Im Denken des Seins wird niemals nur ein Wirkliches vor-gestellt und dieses Vorgestellte als das Wahre ausgegeben”. (Id., VA, p.185)]
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1.2.3. “A palavra”
As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas São mais doces (...) (John Keats)
Qual o sentido de refletirmos sobre a palavra? De que modo o tema
se mostra com importância, no caminho para a serenidade? A palavra nomeia
as coisas e, por sua vez, o mundo. O modo como se dá o nomear é que vai
permitir – ou não – o deixar-ser da serenidade. Além disso, o questionamento
que se nos coloca é sobre o modo como tal nomear é possibilitado, pois é o
homem que, por meio da palavra, nomeia: é preciso verificar até que ponto
interferem homem e palavra na constituição do que é o mundo.
Para tratar da palavra, Heidegger inicia o texto com um
questionamento relacionado à falta dela: o silêncio. O que instiga o pensador é
o fato de que a palavra pode faltar e o modo como isto afeta o homem em sua
relação com os deuses, consigo e com o mundo. “A proximidade de um deus
acontecia na própria saga de um dizer”.95 Em um dizer, os próprios deuses são
trazidos para a proximidade, tamanha a força da palavra; mas quando ela falta,
tudo silencia. O que teria ocorrido com a palavra? A palavra que silencia revela
um poder talvez mais forte que o de nomear; ao silêncio, Heidegger chamou de
“mistério da palavra” (Geheimnis des Wortes).
Ao olharmos para a etimologia do termo Geheimnis,96 que pode ser
traduzido como “mistério” ou “segredo”, temos a indicação de que o silêncio
não é algo externo àquilo que a palavra é. O termo encontra sua raiz em das
Heim, que é o lar, em todo o significado que abrange: lar é onde o homem “se
sente em casa” e desenvolve o que ele é. Por sua vez, o prefixo “ge” serve
para dar a ideia de coletivo: é a união das coisas que fazem parte de um
mesmo âmbito. Geheimnis é o conjunto de coisas que fazem parte do lar,
trazendo um sentido esotérico de ser fechado em si e aberto apenas a quem
95 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“Im Sagen selbst begab sich das Nahen des Gottes”. (Id., US, p.207)] 96 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.322.
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toma parte do lar. O silêncio está no âmbito da palavra, é parte daquilo que a
palavra também oferece.
Quando o silêncio se apresenta, a palavra falta e os deuses
desaparecem. Desaparecem justamente por ser a palavra o “lugar do
aparecimento” – lugar ou possibilidade de que algo apareça (em primeira
instância, esta determinação não é necessária). O fato é que o mundo aparece
e, de modo quase simultâneo, é nomeado. “Palavra” não significa “palavra
escrita” ou “palavra falada”, mas o modo segundo o qual o mundo aparece e
pode ser interpretado. “A palavra, no modo em que já foi palavra, perdeu-se do
antigo lugar em que deuses apareciam”.97 Encontramos aqui uma referência
histórica que dá indicação de um passado no qual se deu a experiência da
“palavra como palavra”: a Grécia Antiga é o lugar/tempo no qual os deuses
apareciam; a experiência com as palavras na origem do pensamento ocidental
é indício de que a palavra se perdeu.
Com estas problematizações, Heidegger inicia a discussão no texto
A palavra. A relação do homem com tudo o que se dá na realidade é mediada
pelo modo como ele se utiliza da palavra. Em primeiro lugar, a palavra
nomeadora estabelece o lugar dos entes no mundo; porém, de modo habitual,
sempre seguindo a determinação objetivadora da razão científica. Assim, se
pretendemos traçar um caminho para a serenidade, o tema da palavra é um
dos primeiros a serem visitados. Não é possível pensar qualquer mudança na
relação do homem com os demais entes, caso a estrutura de tal relação – que
é dada pela palavra – não seja questionada.
O entendimento do mistério em sua força pode ser buscado na
própria palavra. Na poesia, como expressão máxima da palavra poética, o
autor abre caminho para sua reflexão: toma como indicação uma experiência
que o poeta faz da força e do mistério da palavra. Por que, exatamente, no
dizer do poeta é que deve ser buscada a direção para a reflexão? Porque o
poeta é quem diz pela própria necessidade do a-ser-dito, sem responder a
97 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“Dem einstigen Ort des Erscheinens der Götter ist das Wort verwehrt, das Wort, wie es einmal schon Wort war”. (Id., US, p.207)]
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imposições e necessidades criadas pela razão científica – “é um sopro por
nada”.98 Diz o poema A palavra (Das Wort), de Stefan George:
A palavra Milagre da distância e da quimera Trouxe para a margem de minha terra Na dureza até a cinzenta norna Encontrei o nome em sua fonte-borda – Podendo nisso prendê-lo com peso e decisão Agora ele brota e brilha na região... Outrora eu ansiava por boa travessia Com uma joia delicada e rica Depois de longa procura, ela me dá a notícia: “Assim aqui nada repousa sobre razão profunda” Nisso de minhas mãos escapou E minha terra nunca um tesouro encontrou... Triste assim eu aprendi a renunciar: Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar.99
Heidegger toma a experiência do poeta apresentada no texto como
caminho para se chegar ao citado mistério – o centro do nomear. O último
verso traz a ideia de que “nada pode ser quando falta a palavra” (Kein ding sei
wo das wort gebricht.); o poeta chega a tal “conclusão” depois de percorrer um
caminho na experiência do nomear. Que experiência é esta? Qual vivência do
poeta pode abrir a reflexão sobre o poder da palavra?
A experiência do poeta é a travessia (fahrt) que realiza naquele que
é o seu lugar: ele traz para a margem de sua terra (meines landes saum) tudo
o que aprende, verifica e recolhe; traz aquilo que encontra, mesmo não
sabendo o que é; traz por não ser dele nem ter se originado em sua terra. As
coisas vigoram por meio do sentido que recebem quando o poeta encontra um
98 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: Caminhos de floresta, p.364. 99 Id., A linguagem; In: CL, p.174. [“Das Wort / Wunder von ferne oder traum / Bracht ich an meines landes saum / Und harrte bis die graue norn / Den namen fand in ihrem born – / Drauf konnt ichs greifen dicht und stark / Nun blüht und glänzt es durch die mark ... / Einst langt ich an nach guter fahrt / Mit einem kleinod reich und zart / Sie suchte lang und gab mir kund: / >So schläft hier nichts auf tiefem grund< / Worauf es meiner hand entrann / Und nie mein land den schatz gewann... / So lernt ich traurig den verzicht: / Kein ding sei wo das wort gebricht”. (Id., US, p.208)]
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nome para elas; deste modo, o nomear dará forma à terra, moldando seu
mundo. O homem é criador do mundo, mas não das coisas – elas são trazidas
para a proximidade. Apenas o nomeado pode ser próximo (pode ser coisa),
como se o sem nome não pudesse ser reconhecido:
Para isso, nomes são preciso. Nomes são palavras pelas quais o que já é, o que se considera como sendo se torna tão concreto e denso que passa a brilhar e a florescer por toda parte na terra, predominando como beleza. Os nomes são palavras que apresentam.100
A margem (Saum) é a região que abre o território de sua terra: toda
coisa deve passar pela margem para poder estar propriamente na terra do
poeta. Passando pela margem é que a coisa recebe um nome: as palavras que
o poeta encontra delimitam sua terra, seu mundo; além disso, dão-lhe
propriedade, pois seu nomear é singular. Sem palavra, o poeta não tem
mundo: o que ali não está (não tem nome – palavra), não existe para ele; até
seria possível dizer que existe, mas “não faria parte” de seu mundo.
A importância da palavra como nome é aquilo que o pensador
alemão está apresentando como busca primeira do poeta: trazer para a
proximidade para que se possa falar. Se não se puder dar nome à coisa, dela
não se pode falar; com nome, a coisa se torna concreta e densa (greifbar und
dicht). Há, em alemão, direta ligação etimológica entre dicht (denso) e dichten
(poetar)101; das Gedicht é o poema: o prefixo “ge” como coletivo do que foi
tornado denso. Por meio da palavra (poética), as coisas se tornam densas.
A palavra do poeta caminha contrariamente àquilo que,
costumeiramente, entender-se-ia como esclarecer: a palavra poética não torna
transparente. O poema é o “lugar” das coisas enquanto condensadas. Mas,
ainda, não condensadas como ação do poeta: as coisas são já condensadas
em si mesmas e, no texto do poema, encontram as palavras próprias para
indicar sua densidade. Neste caminhar, entendemos que o mundo depende,
100 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.178. [“Dazu bedarf es der Namen. Dies sind Worte, durch die das schon Seiende und für seiend Gehaltene so greifbar und dicht gemacht wird, daẞ es fortan glänzt und blüht und so überall im Lande als das Schöne herrscht. Die Namen sind die darstellenden Worte”. (Id., US, p.212)] 101 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, pp.219-220.
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diretamente, da relação que o poeta tem com a palavra. A coisa brilha e
floresce (glänzt und blüht), torna-se concreta e pode aparecer
verdadeiramente; em outras palavras, a coisa toma parte no mundo.102
“Existe algo mais provocante e perigoso para o poeta do que a sua
relação com a palavra?”103 Esta pergunta soa de modo afirmativo: a relação é a
mais perigosa e provocadora. Erregen é o verbo “excitar” ou “provocar”; a
relação com a palavra pro-voca o poeta, chamando-o para uma atividade que
apenas pode ser realizada por ele. Provocação poderia bem dizer daquilo que
o incita a algo; e se é a relação com a palavra o que o provoca, o que incita é o
próprio poder do poeta em abrir caminho para as coisas. O poeta é
impulsionado a nomear, pois as coisas se dão a ele e precisam de um nome
para que possam permanecer: o mundo dele depende totalmente do modo
como nomeia as coisas. Por isso é que a relação se mostra perigosa, pois o
poeta faz a seu modo, dentro de sua interpretação da realidade, sem garantia
alguma de que em seu falar/nomear se esteja dando “espaço” para a coisa
mesma.
Ser trazida para o mundo do poeta não faz da coisa sua propriedade
– “longe de querer [guardar] para si, ele quer somente apresentar”104. A busca
pela palavra não encontra raízes em um desejo próprio, não vem de si mesma,
mas de uma reivindicação de nomes (Anspruch auf die Namen). Para que o
mundo do poeta exista, há a reivindicação de que as coisas sejam nomeadas.
102 O poeta mexicano Octávio Paz (1914-1998) fala de modo explícito sobre a palavra do poeta sendo pensada como a que participa da construção do mundo e, de modo particular, da sociedade e suas instituições; no caminho inverso, a própria palavra é construção do mundo (as palavras que podem ser encontradas na fonte):
As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias. Por um lado, são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo: são algo datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um começo absoluto. Sem o conjunto de circunstâncias a que chamamos Grécia não existiriam nem a Ilíada nem a Odisséia; mas sem esses poemas tampouco teria existido a realidade histórica que foi a Grécia. O poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis e um ato anterior e a todas as datas: o ato original com que principia toda história social ou individual; expressão de uma sociedade e, simultaneamente, fundamento dessa sociedade, condição de sua existência. Sem palavra comum não há poema; sem palavra poética, tampouco há sociedade, Estado, Igreja ou comunidade alguma. A palavra poética é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios: no de constituir um produto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade. (O. PAZ, Signos em rotação, p.52)
103 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.175. [“Gibt es Erregenderes und Gefährlicheres für den Dichter als das Verhältnis zum Wort?”. (Id., US, p.209)] 104 Id., A linguagem; In: CL, p.178. [“...er jedoch nicht für sich behalten, sondern darstellen will”” (Id., US, p.212)]
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O poeta deve buscar os nomes onde tal reivindicação possa ser satisfeita –
está em suas mãos esta ação e o que encontrar fará a coisa. É, assim, o
nomear o que estabelece o mundo do poeta, o que dá o modo de ser das
coisas. O poeta se vê provocado para algo que pode, porém percebe que sua
ação é resposta a uma reivindicação que não vem de si.
Seria a poesia uma necessidade da palavra? Caso seja, o poeta
estaria na possibilidade de ser poeta não por si mesmo. Se o homem é
provocado e deve responder à reivindicação, isto poderia ser indício de que
“algo acima da palavra” necessita do nomear – “acima dos deuses e dos
homens”105. O que poderia estar acima de homens e deuses? Entendemos que
o ser venha antes dos próprios divinos e mortais.
As coisas podem ser encontradas, mas não vigoram sem um nome.
O poeta se vê diante da coisa que já está; ou seja, não é ele quem a cria. E,
deste modo, a atividade (poder) do poeta é exigida pelo encontro dele com a
coisa mesma. O homem se vê desde sempre diante do ente, diante de coisas
que se dão – tal fato é que reivindica nomes. Antes de qualquer tentativa de
racionalização, o dar-se das coisas exige que elas sejam nomeadas,
justamente para poderem estar na terra do poeta. Se chamamos este “dar-se”
de “existir”, podemos dizer que o existir das coisas fala ao homem desde
sempre em uma linguagem própria e direta que não se prende às construções
racionais – é a linguagem do ser, que provoca o homem a nomear. Porém, o
nomear se cala quando falta a palavra.
A ideia inicial do texto diz que a palavra já foi um acontecer e falar
dos deuses. “A proximidade de um deus acontecia na própria saga de um
dizer”.106 Mas o que teria ocorrido com a palavra, para que o verbo venha no
pretérito (“acontecia”)? O que aconteceu com a palavra é a razão de não mais
os deuses estarem na proximidade – houve mudança naquilo que ocorria; há
um enigma (Rätsel) que se põe: o dizer, que está posto com uma saga, deve
indicar o que ocorreu com a palavra. O pensador se volta para o poema A
palavra não para responder a tal enigma, mas para problematizá-lo, tentando
105 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“über die Götter und Menschen” (Id., US, p.207)] 106 Id., A linguagem; In: CL, p.174. [“Im Sagen selbst begab sich das Nahen des Gottes.” (Id., US, p.207)]
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entender de que se trata. É na travessia do poeta que o pensador encontra
elementos do que constitui o mistério da palavra.
No poema, a travessia do poeta se dá em duas experiências
distintas: na primeira, ele encontra a palavra (chamemos de experiência
positiva), na segunda, a palavra falta (chamemos de experiência nula).
“Encontrei o nome”, diz o poema; assim, é satisfeita a reivindicação. E o poeta
se realiza no poder que tem de encontrar a palavra para a coisa ser – e o,
agora, nomeado “brota [floresce] e brilha” (blüht und glänzt) na terra do poeta.
A experiência positiva, embora traga o poder da palavra em fazer as coisas
serem, põe a mesma palavra como sujeita à ação do poeta; ele busca,
encontra e concede a palavra – ele nomeia.
Enquanto o poeta realiza o nomear, nada aparece como inquietante;
a situação é alterada pela experiência nula, quando ele busca a palavra e, não
a encontrando, não pode nomear. A experiência que o poeta, antes, tinha, não
mais se mostra e ele terá de questionar a si próprio em seu fazer.
Guardados na fonte-borda, os nomes são assumidos como o que dorme, como o que precisa ser acordado, para então ser usado no intuito de apresentar as coisas. Os nomes e as palavras são como uma consistência firme, que se coordena com as coisas e posteriormente se lança para as coisas com vistas a apresentá-las.107
Na experiência nula, na esperança de que pudesse realizar aquilo
que lhe cabe – buscando boa travessia (guter fahrt) –, o poeta chega até onde
são buscados os nomes: em um poço (born)108 no qual as palavras que
nomeiam estão adormecidas até o momento no qual são despertadas e de lá
retiradas para que apresentem a coisa. A palavra no poço é mais que
simplesmente palavra, pois antes de nomear, ela é em si mesma fonte
inesgotável; depois de atribuída para que algo seja apresentado, ela deixa sua
fluidez e é fixada na coisa que apresenta. Desperta (despertada), a palavra se
concretiza; dentro do poema – a terra do poeta – a palavra é concreta. Isso
107 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.179. [“Die Namen, die der Brunnen birgt, gelten als etwas Schlafendes, was nur geweckt zu werden braucht, um als Darstellung der Dinge seine Verwendung zu finden. Die Namen und Worte sind wie ein fester Bestand, der den Dingen zugeordnet ist und nachträglich ihnen für die Darstellung angetragen wird”. (Id., US, p.214)] 108 “Born” é termo antigo que pode ser entendido como “fonte” (“Brunnen”) donde brota a água. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.191)
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significa dizer que o mundo do poeta ganha materialidade na palavra que
nomeia; sem nomes, o mundo do poeta é vazio. Ainda assim, ao ser vista de
fora, a palavra do poema tem concretude sem ser enrigecida.
Nesta experiência nula, o poeta chega ao poço “à margem de sua
terra” (meines landes saum) com uma joia (kleinod). Esta joia precisa de um
nome para ser apresentada e fixada “com peso e decisão” na terra do poeta.
Ainda dicht und stark pode ser traduzido como “denso e vigoroso” trazendo um
aspecto de determinação da coisa. Se nomeada, a joia seria determinada e
poderia vigorar, mas de modo denso, não transparecendo, conservando uma
densidade em si. O nomear do poeta não esgota a coisa em uma nitidez; o
vigorar da coisa na terra do poeta ainda deixa a coisa guardar algo em si. É isto
que parece intrigar o nomeador: a palavra que nomeia, faz vigorar, porém sem
esgotar a coisa em uma determinação última – a coisa é nomeada, mas não é
propriedade daquele que nomeia.
O nomear poético é diferente do falar comum e do falar científico,
pois, na poesia, a palavra, mesmo fora do poço, não se esgota. Com suas
palavras, o poeta “invoca e evoca”, e sua terra “é sua enquanto o domínio
assegurado de sua poesia”.109 E, para que a joia encontrada seja de sua terra,
é preciso que sua poesia a determine, dando-lhe nome. No poço, está o poeta
com a joia nas mãos; porém, em sua experiência nula, a resposta que recebe
da norna (guardiã do poço) é que “aqui nada repousa (schläft hier nichts) sobre
razão profunda”, indicando não haver palavra que possa nomear a joia. Não há
palavra a ser despertada para esta nova necessidade. Heidegger diz que “esta
fonte de onde a saga do dizer poético vinha até então extraindo as palavras,
que como nomes apresentam os entes, essa fonte secou”.110
Não poder nomear a joia traz ao poeta uma experiência singular,
pois ele se vê na impossibilidade daquilo que, antes, era o que fazia de si um
poeta. A experiência da fonte que seca é a experiência da falta da palavra – é
quando a palavra falha. Aquele que não encontra nome para o que se lhe
109 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.178. [“Sein ist das Land als der gesicherte Bezirk seines Dichtens”. (Id., US, p.212)] 110 Id., A linguagem; In: CL, p.179. [“Aber diese Quelle, aus der das dichterische Sagen bisher die Worte schöpfte, die als Namen das Seiende darstellten, spendet nichts mehr”. (Id., US, p.214)]
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apresenta não pode construir mundo. Disso decorre que o poeta se vê abalado
em seu próprio “ter mundo”. A consciência que surge é, como entende
Heidegger, a de que a palavra tem um poder que antecede ao do poeta: a
palavra pode não estar disponível. “Onde a palavra falha, não há coisa. A
palavra disponível é o que confere ser à coisa”.111
Mas o que é o falhar da palavra? É interessante observar que o que
ocorre não é a não experiência da palavra, mas sim a experiência de sua
ausência. A palavra não estar disponível para nomear aquela joia significa
haver algo para o que não há nomear; a joia fica sem nome. Mas a falta de
nome não leva a joia a deixar de existir: ela apenas desaparece, escapando
das mãos do poeta (Worauf es meiner hand entrann / Und nie mein land den
schatz gewann...); ou seja, o tesouro (schatz) que é a joia não poderá tomar
parte de seu mundo.
A experiência nula leva o poeta a estabelecer uma nova relação com
a palavra. Daí vem o aprendizado do poeta quando afirma “eu aprendi” (lernt
ich), deixando claro que alcançou o conhecimento de algo, que visualizou algo
que deve levar para si, mudando a concepção que tem de seu poder de
nomear. A experiência da palavra ausente mostra que há algo além do poetar
do poeta.
E o que o poeta aprendeu? A renúncia (der Verzicht). A renúncia de
um poder que seja total, no reconhecimento do que pode a palavra. “O poeta
deve assim renunciar a ter sob seu poder a palavra enquanto nome capaz de
apresentar o ente por ele mesmo posicionado”.112 Renunciar, por sua vez, não
significa cortar totalmente a relação que antes tinha com a palavra: a
experiência da renúncia mostra o reconhecimento de algo que é próprio da
palavra e que, por sua vez, exige o estabelecimento de relação diversa com
ela. Renunciando, o poeta reconhece que nenhuma coisa pode ser (Kein ding
sei) onde falta a palavra (wo das wort gebricht).
111 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.174. [“Wo das Wort fehlt, ist kein Ding. Das verfügbare Wort erst verleiht dem Ding das Sein”. (Id., US, p.209)] 112 Id., A linguagem; In: CL, p.180. [“Der Dichter muβ darauf verzichten, das Wort als den darstellenden Namen für das gesetzte Seiende unter seiner Herrschaft zu haben”. (Id., US, p.215)]
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A palavra deixa a coisa ser coisa. Isto significa que, ao nomear, o
poeta não esgota a coisa dentro de uma palavra: ela faz a coisa vigorar, mas
sem cerceá-la dentro das possibilidades lexicais. Esta é a densidade
conservada pela palavra; a coisa não transparece. Heidegger ainda questiona
o que propriamente é a coisa, o que é a palavra (e seu poder) e o que significa
ser, para que deste modo se deem ao poeta. No caso da joia, ela desapareceu
pela falta da palavra; desapareceu das mãos, deixando de vigorar na terra do
poeta. “A palavra é o que confere vigência, ou seja, ser, em que algo como
ente aparece”.113 “Vigência” é a tradução de Anwesen, é o ter uma essência, a
possibilidade de estar presente como algo determinado. Deste modo, o que a
palavra faz com a coisa é permitir que ela seja algo; não é simplesmente tomar
algo que já vigora e atribuir um nome, pois o nome é o que faz vigorar. A joia
não vigora na terra do poeta.
A renúncia consente o poder mais elevado da palavra, somente onde a palavra deixa coisa ser coisa. A palavra con-diciona a coisa como coisa. Chamaremos esse poder da palavra de con-dicção. (...) Mas a palavra não dá fundamento às coisas. A palavra deixa a coisa vigorar como coisa. Esse deixar é o que significa con-dicção. Mas o poeta se consente, ou seja, consente em seu dizer o mistério da palavra. Nesse consentir, aquele que renuncia recusa-se à reivindicação que ele antes atendia.114
O renunciar do poeta consente, ou seja, permite, o poder da palavra.
A renúncia do poeta não é apresentada como um retirar-se da relação, mas um
permitir-se estabelecer relação outra. Em tal consentimento, permite o
questionamento de seu fazer poético, permite o reconhecimento de algo que
tira sua segurança: o poeta sempre nomeou, mas agora deve reconhecer o
mistério da palavra, abrindo espaço para o poder dela, a saber, que nenhuma
coisa pode ser onde ela faltar. O poeta renuncia, dá o passo atrás, deixa ser.
113 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.180. [”Dem entgegen verleiht das Wort erst Anwesen, d.h. Sein, worin etwas als Seiendes erscheint”. (Id., US, p.214)] 114 Id., A linguagem; In: CL, p.184-185. [“Das Verzichten sagt sich dem höheren Walten des Wortes zu, das erst ein Ding als Ding sein läβt. Das Wort be-dingt das Ding zum Ding. Wir möchten dieses Walten des Wortes die Bedingnis nennen. (...) Aber das Wort be-gründet das Ding nicht. Das Wort läβt das Ding als Ding anwesen. Dieses Lassen heiβe die Bedingnis. Der Dichter erklärt nicht, was diese Bedingnis ist. Aber der Dichter sagt sich, d. h. sein Sagen diesem Geheimnis des Wortes zu. In solchem Sich-zusagen versagt der Verzichtende sich dem vormals von ihm gewollten Anspruch”. (Id., US, p.220)]
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O poeta, mesmo com todo esforço, nunca conseguirá dominar o a
existência pela sua palavra. Seu mundo é delineado por sua capacidade de
nomear, porém a experiência da palavra que não está sempre à mão faz com
que ele renuncie diante dela. A palavra não dá fundamento (be-gründet nicht) à
coisa, mas a deixa ser, como coisa. O poeta apresenta a coisa ao mundo.
A travessia, em sua experiência nula, abala a alma segura do poeta.
Necessário é pensar o porquê de tal silêncio – há uma indicação, quando
Heidegger diz que o poeta “permitiu que seu dizer futuro e possível se
deparasse com o mistério da palavra, se deparasse com a con-dicção da
coisa”.115 O poeta se depara com algo que, antes, não conseguia enxergar.
Quando passa a ver este “novo” poder da palavra, deve deixar para trás a
pretensão de conseguir abarcar tudo com sua palavra. A palavra falta e o
nomeador passa a enxergar que havia se perdido no que pode ser entendido
como necessidade de nomear, como se fosse condição para sua vida.
Pela ausência da palavra, o fazer do poeta é como que resgatado de
uma queda na “autoconfiança e segurança do anúncio dominador” (herrischen
Kündens). A palavra falta porque o poeta tentou dela tirar até mesmo o que a
ela não cabe. Há algo da linguagem que a palavra poética não alcança
(representado pela joia do poema); isto mostra justamente que o homem (o
poeta) não é o senhor da linguagem do ser – sua palavra não dá nem retira o
fundamento da coisa. A renúncia é o estar propriamente diante de um dizer
indizível (unsäglichen Sage); no poema, o renunciar é um entregar-se à
verdade da palavra. Renunciando, o poeta realiza aquilo que cabe
propriamente à poesia, que é a possibilidade de estabelecer uma relação com
o mundo que não seja de dominação.
O que cabe ao poeta é resgatar a palavra em seu poder,
conservando-a e libertando-a de uma sintaxe que foi assumida como única
possibilidade de falar; a palavra presa a um sentido qualquer estabelecido.
Significa entender que a linguagem não está para obedecer às necessidades
do citado anúncio dominador. Resgatar a palavra em seu poder leva o poeta a
115 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.185. [“sein künftig noch mögliches Sagen vor das Geheimnis des Wortes, vor die Bedingnis des Dinges im Wort bringen lassen”. (Id., US, p.220)]
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um recolocar-se como poeta, repensando seu fazer; deste modo, podemos
pensar o resgate da palavra como resgate do próprio poeta em seu fazer que
caiu na decadência da linguagem.
Ainda resta falar propriamente da joia do texto de Stefan George.
Uma joia que não pode ser nomeada por não ser encontrada palavra para ela.
Em primeiro lugar, é preciso notar que, mesmo na impossibilidade de que seja
encontrado um nome, ainda assim é o poeta quem encontra tal joia delicada e
rica e a traz nas mãos. O que é tal joia, nem mesmo o poeta o pode dizer, já
que, sem nome, ela desaparece de suas mãos e “sua terra nunca um tesouro
encontrou” (Und nie mein land den schatz gewann...).
E o que é que desaparece das mãos do poeta em seu nomear? Qual
é a experiência da falta pela qual passa o poeta? A palavra, antes disponível,
se mostra agora indisponível a quê? “A joia delicada e rica é o vigor velado da
palavra, que, de maneira imperceptível e mesmo indizível, nos pro-picia a coisa
como coisa”.116 Ou seja, aquilo para o qual não há palavra nomeadora é
justamente o poder da palavra, o mistério da palavra que “pro-picia” (darreicht)
a coisa como coisa. Fica respondido o questionamento inicial de Heidegger
sobre o que vem a ser a palavra, para que seja capaz de algo assim: não há
palavra que possa dizer o poder da palavra; não há palavra para seu mistério:
“não há um dizer capaz de trazer à linguagem a essência vigorosa da
linguagem”.117
A joia não nomeada nunca fará parte de sua terra; deste modo, o
poeta é aquele que sabe do mistério e a ele deve corresponder. Corresponder
é, aqui, o próprio renunciar. A experiência nula leva à renúncia diante daquilo
que sequer se pode nomear. Eis o tesouro que a terra do poeta jamais terá
para si: em meio às coisas nomeadas, a joia é algo que não pode vigorar em
sua terra; significa dizer que o poeta não alcança o mistério da palavra.
Tesouro é sempre algo singular, que não pode ser de todos, por não ser
facilmente encontrado. O falar habitual e comum não encontra o tesouro do
116 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.188. [“Das kleinod reich und zart ist das verborgene Wesen (verbal) des Wortes, das sagend unsichtbar und schon im Ungesprochenen das Ding als Ding uns darreicht”. (Id., US, p.223)] 117 Id., A linguagem; In: CL, p.187. [“Für dieses Geheimnis fehlt das Wort, d. h. jenes Sagen, das es vermöchte, das Wesen der Sprache – zur Sprache zu bringen”. (Id., US, p.223)]
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poeta. E o mistério permanece mistério na joia que escapa (entrann) de suas
mãos. O tesouro é a palavra para a essência da linguagem, a linguagem do
ser. A essência da palavra não vem pela palavra, mas pelas mãos do poeta;
ela se mostra e escapa e ele guarda o mistério.
E de onde vem tal joia? “Fica obscura de onde provém esta joia.”118
A origem (die Herkunft) da joia fica na escuridão (dunkel); ou seja, não se “vê”
a origem, indicando que ela vem de algum lugar onde a luz não alcança. A luz
que não alcança a origem da joia é a própria luz da razão – razão do poeta (o
citado anúncio dominador). E isto ainda nos remete ao início do texto, quando o
autor fala da luta entre homens e deuses que é regida por algo acima dos
deuses e dos homens; e cita uma fala de Antígona: “e ninguém jamais
conseguiu ver de onde ela surgiu para brilhar”119. O vigor da linguagem do ser
é o que surge como joia, mas não pode ser nomeada por estar acima dos
deuses e dos homens; é a esta linguagem que o homem (poeta) deve
responder, correspondendo ao mistério da palavra e assumindo para si uma
renúncia. Responder à linguagem é responder ao ser que se dá como
linguagem ao pensamento. O aprender (lernen) do poeta é a consciência que
adquire aquele que vê algo, que em sua travessia alcança a visão de algo. Traz
a joia sem poder ver de onde ela vem e “atravessa na experiência” (Erfahrung),
podendo ver unicamente aquilo a que deve renunciar. No aparecer da coisa é
que o ser se clareia; na falta do nome, ele se esconde.
A experiência que se dá na travessia revela algo que vai além do
próprio fazer: ela mostra o que transcende. Heidegger trata da palavra humana
que nunca alcança a linguagem em seu vigor – por isso é que a joia nunca
vigora na terra do poeta (o indizível continua como indizível). Falta a palavra
para nomear a essência da linguagem; dizendo de outro modo, falta a palavra
para a palavra. É mistério o que merece ser pensado mais dignamente.
Porque a renúncia consentiu o mistério da palavra, o poeta guarda com a renúncia essa joia, na graça do pensamento. Desse modo, o poeta, aquele que diz, privilegia e preza essa
118 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.179. [“Die Herkunft des Kleinods bleibt dunkel”. (Id., US, p.214)] 119 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“...und keiner hat dorthin geschaut, von wo aus er ins Scheinen kam”. (Id., US, p.207)]
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joia frente a tudo mais. A joia passa a ser o que para o poeta é o mais digno de se pensar. Pois para aquele que diz o que pode ser mais digno de pensar do que o encobrir-se do vigor da palavra, do que o desaparecer da palavra para a palavra?120
De tudo o que já passou por suas mãos, a joia é o que de mais
singular há; é aquilo que não vigora no mundo e não mais pode ser visto.
Escapando de suas mãos, o poeta a guarda no pensamento, como recordação
(im Andenken). Enquanto seu mundo é formado pelas coisas que apareceram
e, com as palavras encontradas, podem ser vistas sempre, a joia é o que veio
da escuridão (dunkel) e não mais poderá ser vista, apenas pensada – o mais
digno de se pensar. Deste modo, o pensamento não é o que cabe unicamente
ao pensador, mas ao poeta; e o pensador deve pensar a mesma joia.
“Escutando o poema, pensamos desde a poesia. Desse modo, é a poesia, é o
pensamento”.121 Poesia e pensamento permanecem em significativa
articulação, em uma afinidade, quando se responsabilizam pelo mistério da
palavra. Pensar e poetar são modos diferentes de responder ao apelo da
linguagem; são os dois modos que alcançam uma correspondência a tal apelo.
Na tentativa de falar sobre tal mistério, λόγος (lógos) é a mais antiga
palavra empregada para designar aquilo que é o poder da palavra. Lógos é o
termo grego para o “fazer-se vigor do que é vigente” (das Anwesen des
Anwesenden). Para os gregos, lógos é o que não deixa as coisas ficarem
anônimas. Porém, Heidegger entende que esta experiência do ser/palavra
como lógos, foi esquecida ao longo da história da filosofia (que o autor chamou
de “metafísica”).
Eis o que é o mais digno de se pensar: a relação entre o dizer e o
ser, pois tudo o que vigora, em seu vigor, indica um pertencer mútuo entre
palavra e coisa; isto não é algo claro. O modo como palavra e coisa pertencem
(gehören) um ao outro ainda é velado (verhüllten). Poeta e pensador (Dichter
120 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.188. [“lnsofern der Verzicht sich dem Geheimnis des Wortes zugesagt hat, behält der Dichter das Kleinod durch den Verzicht im Andenken. Auf diese Weise wird das Kleinod zu dem, was der Dichter als ein Sagender allem anderen vorzieht, über alIes übrige würdigt. Das Kleinod wird zum eigentlich Denkwürdigen des Dichters. Denn was kann es für den Sagenden Denkwürdigeres geben als das sich verschleiernde Wesen des Wortes, das entscheinende Wort für das Wort?” (Id., US, p.224)] 121 Id., A linguagem; In: CL, p.188. [“lndem wir das Gedicht hören, denken wir dem Dichten nach. Auf solche Weise ist: Dichten und Denken”. (Id., US, p.224)]
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und Denker) são os que devem guardar o mistério da palavra; a eles resta tal
ação, no contato com o mundo, na apresentação da coisa. Neste caminho,
resta a tarefa de um enfrentamento com a filosofia em seu fazer ao longo de
sua história, na percepção do como esta dirigiu sua reflexão em meio aos entes
(acreditando esgotá-los em sua linguagem). Pensamento não é simplesmente
o desenvolvimento alcançado pela filosofia ao longo do tempo – a tal
desenvolvimento, Heidegger dá o nome de “metafísica”. Pensamento é o que
abre ao homem a possibilidade de problematizar o que significa ser. Apenas a
poesia pode se equiparar ao pensamento.
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Capítulo 2 – Pensamento, ciência, experiência – qual o espaço
para a serenidade?
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2.1. O interessante e o que cabe pensar
A questão do pensamento é algo não posto como questionamento
de modo radical pela ciência em geral – mesmo as reflexões de cunho
biológico ou psicológico são tentativas de explicar o funcionamento de uma
capacidade humana, não se tomando o pensar pelo próprio pensar. Esta
reflexão é algo que cabe, de modo singular, à filosofia, que toma caminho
diverso daquele seguido pela ciência. Mas dizer “filosofia” ainda não toca o que
exatamente Heidegger entende, pois, a filosofia é, no entendimento geral, o
conteúdo que foi desenvolvido ao longo da história ocidental, da metafísica
tradicional que, para ele, é a história do esquecimento do ser. A questão do
pensamento não é, então, algo que cabe aos filósofos, mas aos pensadores.
Os pensadores são em verdade chamados decididamente de “pensadores” porque, como se diz, eles pensam “fora de si”, e, nesse pensar, eles se colocam a si mesmos em jogo. O pensador responde, ele mesmo, às questões colocadas por ele próprio. Pensadores não anunciam “revelações” do deus. Não relatam inspirações de uma deusa. Dizem tão-somente a própria evidência.122
Este “pensar fora de si”, colocando-se como objeto do próprio
pensar, é algo não permitido ao homem comum. No dia a dia, a sociedade
exige que o homem responda a diversas necessidades que não a necessidade
do pensamento. “Sem pensamento”, o homem é levado pelo fluxo do
desenvolvimento técnico-político-social. O homem já não pensa, mas com a
impressão de que o faz123. E Heidegger não está propondo que todo homem
seja pensador à maneira dos pensadores, segundo sua concepção. O autor
fala justamente que, diante do turbilhão que faz o homem se perder é preciso
ter uma postura, que é a serenidade. A serenidade dá ao homem a capacidade
de decidir por si, mesmo diante do mundo em suas necessidades.
122 M. HEIDEGGER, Parmênides, p.19. 123 “Não nos iludamos.[...] A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda parte.” (Id., Serenidade, p.11.)
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A serenidade depende de um novo modo de “pensar o pensamento”,
revendo o entendimento que se tem do homem em sua direta relação com o
mundo – não falando de um “homem em geral”, tomando-se uma essência a
partir da qual ele se mostraria no mundo: Heidegger fala sempre do homem
determinado, impossível de ser pensado fora de um contexto. Entendemos,
assim, que esta proposta de serenidade não serve a um pretenso homem ideal,
mas ao homem singular. A mesma serenidade possibilita este novo pensar.
O homem pensa aquilo que desperta seu interesse – neste sentido,
ele pensa o interessante. Mas a questão se torna intrigante ao ser levado em
consideração o fato de que a configuração do mundo “atual”124 faz se tornarem
“interessantes” todas as coisas, tendo por base um desejo de fundo sempre
movido por questões econômicas. Tudo passa a ser interessante, de acordo
com o contexto; na mesma velocidade, tudo se torna desinteressante e
entediante. A questão não é, simplesmente, de importância das coisas, mas
sim do sentido atribuído a elas, fazendo-as ganhar importância.
A experiência de um pensamento livre propõe ao homem a revisão
da ideia de “interessante” para o que se quer pensar. Dizendo de outro modo, a
determinação psicossocial do que seja “o interessante” (que “deve” despertar o
interesse) é um direcionamento dado ao homem. Quando falamos em
“pensamento livre”, ainda é preciso indicar que a liberdade do pensamento
possibilita a liberdade do ente em sua verdade; dizendo de outro modo, a
liberdade do pensar é liberdade da mostração do ente.
Liberdade do pensar não quer dizer deixar o pensamento sem
direção alguma e liberá-lo para construções teóricas quaisquer, de todo modo
possível. A liberdade é dar condições para que o pensamento vá até onde o
ente se mostra; neste sentido, é liberdade do pensamento e é liberdade do
ente. Significa não serem estabelecidos parâmetros dentro dos quais o
pensamento deve funcionar ou o ente deve se dar. Entendendo-se que é o ser
que se dá nos entes, falamos da liberdade para a manifestação do ser.
Por conta do desenvolvimento tecnocientífico, as rápidas mudanças
no modo de viver do homem criam novos modos de conviver e se relacionar
124 Um “atual” desde muito tempo, no qual vigora o modelo científico de racionalidade.
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com o mundo. Tais mudanças criam a ideia de “necessidade” que o homem
teria de certos objetos, recebidos apenas por sua instrumentalidade. Ao ser
conquistado um objetivo, outras necessidades vão sendo configuradas e as
primeiras delas vão deixando de ter sentido. Este “sentido” não é percebido
como algo que está propriamente no ente, naquilo que ele é em seu modo de
aparecer, mas se refere à sua usabilidade, dentro da ideia de “servir para...”.
Com novas necessidades, os antigos “necessários” perdem “sentido”.
Quando o pensamento, saindo de seu elemento, chega ao fim, compensa essa perda, valorizando-se como techne, isto é, instrumento de formação, para se tornar, com isso, atividade acadêmica e, posteriormente, atividade cultural. A filosofia se vai transformando, aos poucos, numa técnica de explicação pelas últimas causas. Já não se pensa.125
A razão, assim, segue os ditames da ciência e a filosofia, os
caminhos da técnica. Tendo raízes na experiência do pensamento, a filosofia
deveria ser caminho para a experiência do pensar, mas acaba sendo uma
explicação da história do pensamento ocidental; o “fato de mostrar-se um
interesse pela filosofia ainda não revela, de modo algum, uma disponibilidade
para o pensamento”126. Não estar em seu elemento significa que o pensamento
se torna “discurso sobre...”, e não experiência do pensar127.
Ao se tentar esclarecer as questões do pensamento, o
verdadeiramente interessante é o que mais cabe pensar: aquilo sobre o que
sempre interessou perguntar. “Aprender a pensar” significa por o pensamento
na direção do “a ser pensado por primeiro” – neste sentido, não se trata de
“buscar saber”, “conhecer”, “produzir”, no sentido ativo de um fazer.128 O
pensamento é a disposição diante de algo: é atividade de não imposição de um
modelo ou enquadramento. Pensar é ouvir e silenciar diante do que se dá. O
ser se dá – e o faz nos entes.
Qual a necessidade que o pensador tem de pensar? Ele responde a
quê? Em primeira intância, tais questões não são de simples resposta e, assim,
nos aventuramos a uma aproximação daquilo que pode responder. O pensador
125 M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, pp.30-31. 126 Id., O que quer dizer pensar? In.: EC, p.113. 127 Fazemos alusão à obra de Heidegger Aus der Erfahrung des Denkens, de 1947, GA 13. 128 A crítica de Heidegger toca exatamente aquilo que o fazer técnico passou a fazer da Academia: o local de geração sempre maior de conhecimento, mensurável por número de pesquisas e consequente “produção” (em série) de artigos.
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é aquele que percebe a falta, a ausência de sentido no dar-se do ente –
“sentido” que não se relaciona a uma fé ou crença religiosa qualquer. Sentido é
o que permite a todas as coisas um “estar” na mesma realidade; é o que
possibilita uma conexão, um vínculo entre as coisas, simplesmente por serem.
A possibilidade de pensamento mostra ao homem – de modo especial, ao
pensador – que, em meio a tanto que se fala (na tentativa de preencher a vida),
há um vazio não explorado. O pensador adota uma postura de busca diante
deste não explorado; não há um deus que dele exija uma resposta: a própria
existência (como totalidade do ente) o chama.
Os pensadores pensam a evidência.129 Por isso é que há dificuldade
no entendimento do que é o pensar, por parte do homem comum – para ele, a
evidência não deve ser pensada, já que seria uma verdade que se dá, sem
espaço para questionamento. Por entender algo como “evidente”, o homem
comum deixa de se preocupar com ele, pois, reforçando uma concepção de
utilidade, é preciso gastar tempo pensando “o que merece ser pensado”. O
pensador, por sua vez, entende que não há o que seja evidente; normalmente,
o que assim é consideradado é o que está mais próximo do homem e, por isso,
não é pensado. No fundo, o ser é o mais próximo do homem e, por isso, é
esquecido, sem deixar de ser o que mais merece ser pensado.
Estamos no caminho de um novo pensar que, por sua vez, permite
nova postura do homem – a serenidade. Esta indicação se faz importante, para
que seja entendida a serenidade não como um pensar, mas o pensar que é
ativo em uma espera, na construção da realidade liberta de amarras
conceituais que enquadram os entes em compartimentos fora dos quais não
poderiam ser pensados. Neste sentido, a serenidade exige um pensar fora da
caixa.
Imageticamente, podemos falar do pensar calculador/objetificador
como aquele que enxerga o mundo dentro de uma área plana; será pensado e
considerado o que estiver dentro de seus limites. Temos, em tal situação, a
demarcação de possibilidades para o ente, dentro do que permite a razão no
modelo científico. Do mesmo modo que a Igreja de outrora, teríamos aqui a
129 Cf. M. HEIDEGGER, Parmênides, p.19.
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concepção “fora da ciência não há salvação”.130 A delimitação traz ao homem a
ideia de que domina o que pode ser pensado, “tendo nas mãos” o ente em sua
totalidade.
A proposta de um “pensar fora da caixa” pode ser pensada na
imagem também de uma área, mas tridimensional. Enquanto a imagem anterior
(plana) delimita uma área na realidade da terra, dos entes, no pensar científico,
agora queremos representar um espaço aberto que vai da terra ao céu. Apenas
o homem pode habitar este espaço e nele pensar, transcendendo sua
realidade ôntica, alcançando a dimensão ontológica de ser.131 Neste espaço
aberto, o cálculo da razão objetivadora também funciona, porém “algo mais” é
tomado em consideração, a saber, um projetar-se junto ao mundo, como Da-
sein. O novo espaço de pensamento leva ao novo pensamento – por sua vez,
surge a necessidade de nova linguagem que possa ser sua expressão.
Heidegger tomará a linguagem da poesia.
Há uma necessidade de pensamento. Heidegger, entendendo que o
pensar tradicional (modelo científico, calculador e objetivador) não dá conta de
abarcar os novos elementos (o inominável, o incomensurável etc.) que se
davam a ele na reflexão sobre o ser, buscou um pensar que tivesse força
tamanha para se libertar dos padrões estabelecidos. Era preciso um pensar
que não deixasse de ser racional, mas que fosse pautado em uma
racionalidade diversa, integradora e não excludente. Mais que uma
130 Originalmente “extra ecclesia nulla salus”; pode ser pensada a ciência como a salvadora dentro do que propôs, por exemplo, o positivismo comteano, de concepção cientificista, cujos resquícios vêm ao longo do tempo. Faz-se necessário entender a origem do pensamento basilar da ciência contemporânea – o que podemos encontrar na tese de doutoramento de Aurélio Alves Ferreira, intitulada A discussão de M. Heidegger a respeito de o que significa pensar. Nos caminhos da reflexão heideggeriana, o autor indica, no capítulo 1, de que modo se constituiu a razão calculadora no tempo. Costumeiramente, fala-se de tal constituição apenas a partir da obra de René Descartes; mas o autor da tese indica que o pensar inaugurado pelo francês tem como fundamento a obra de Tomás de Aquino e da tradição tomista que, por sua vez, faz eco da obra de Aristóteles. Diz-se do pensar da ciência, a partir da modernidade, como aquele que calcula; mas tal característica viria de onde? Aurélio segue os passos de Heidegger e mostra que o centro do pensar grego é o que chama de o matemático (tá matemáta) que, não se reduzindo a aspectos numéricos de cálculo, trata de um aprender/ensinar a partir da descoberta do que, nas coisas, pode ser apreendido. O matemático não desaparece após a Antiguidade e mesmo Descartes desenvolve sua filosofia em tal base. Mas os caminhos diversos de desenvolvimento acabaram por privilegiar o aspecto numérico. O matemático permite a concepção numérica da realidade, mas não se restringe a ela. (Cf. A. A. FERREIRA, A discussão de M. Heidegger..., pp.18-79) 131 O ôntico se relaciona ao âmbito dos entes, no conhecimento possível na relação que o homem estabelece com eles no mundo; o ontológico é o conhecimento alcançável pelo homem, enquanto Da-sein, na relação que unicamente este ente pode estabelecer com o ser, na escuta de seu apelo. Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo.
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determinação de certeza (objetivo da ciência) o objetivo era o de encontrar
caminhos mais amplos para que o mundo fosse pensado.
As interpretações sobre Hölderlin decorrem de uma necessidade de pensamento. Este parece ser o caminho: a poesia, sobre a qual incidem essas interpretações, é invocada exclusivamente a partir de uma questão de pensamento.132
O pensar é o que cabe ao homem – é o que ele deve querer;133 a
partir do pensamento, será possível a afirmação do Da-sein como ente que se
diferencia dos demais. O que se ganha com o pensar? Nada, caso estejamos
no raciocinar científico. Quando se fala em “ganhar” já se está dentro de um
visão de mundo que busca saber da utilidade das coisas e das ações. Caso
uma resposta positiva fosse exigida para a pergunta, poderíamos dizer: o
homem pode ganhar a si próprio com o pensamento.
Heidegger abriu caminhos de reflexão sempre orientados por uma
mesma questão – a questão do ser e seu sentido. Quanto mais se deteve no
pensar, diversos outros caminhos foram abertos. Somos incitados a perguntar
sobre o que foi alcançado: A questão do ser foi bem posta? Chegou-se à
verdade do ser? O Da-sein se plenificou em sua propriedade? Percebemos que
a resposta é negativa para tais questões. A própria obra Ser e tempo não pode
ser completada em seu projeto e a direção tomada foi outra. Seria sinal de
insuficiência ou incapacidade na reflexão do autor e de todos os que seguiram
os caminhos por ele abertos? Não se trata de falta alguma: o alcançado é
justamente a questão do pensamento.134
132 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.27. 133 Ferreira indica que o pensar
só pode guiar-se pensando se nós mesmos conseguirmos entrar no âmbito do pensável, o que pode ocorrer à medida que o homem se encontrar na proximidade daquilo que se dá a pensar e, em consequência dessa proximidade, e, juntamente com isso, se ele mesmo se mantiver atento, com uma atenção dirigida para aquilo que precisa ser pensado, aí então pode ser que ele seja presenteado pelo pensável. Isso, contudo, não é nenhuma garantia, não há nenhuma certeza de que se dará o pensamento. Essa é uma possibilidade do homem, uma vez que o a-se-pensar, o grave, aquilo que precisa ser pensado é algo que, de início, e na maioria das vezes, foge. Daí a necessidade do querer, pois, caso o homem desista de pensar, pode ser que não se dê pensamento algum. (A. A. FERREIRA, A discussão de M. Heidegger..., pp.143-144)
134 “En este caso, pensar el ser es algo así como pensar el objeto interno del pensar; como pensar lo que quiere decir pensar, lo que exhorta a pensar: el pensamiento ‘abstracto’, ‘absoluto’ o ‘intransitivo’ [...].” (J-F. COURTINE, Logos – Dichtung, In: F. DUQUE, Heidegger: sendas que vienen, p.275.)
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O ser se dá e se retrai, deixando impossibilitada uma compreensão
plena; se tomarmos o pensar objetivador, não é possível sequer uma
compreensão parcial. O ser, como questão do pensamento, se mostra como o
que deve ser pensado perenemente. O pensamento deve ser o guardião da
chama acesa do ser; poetas e pensadores são vigias para que o pensamento
esteja sempre voltado para o ser. O estado de vigília é partilhado em uma
espera ativa de um pensar que se debruça incansavelmente; significa suportar
a espera – coisa que a razão objetivadora não consegue. É na postura da
serenidade que encontramos a possibilidade de que a questão se mantenha
como chama acesa.
De modo costumeiro, e seguindo a razão objetivadora, diante de um
mistério, o homem deve lutar para que se alcance a revelação.
Incansavelmente, a razão não pode se dar por vencida e o esforço passa, ao
longo do tempo, por aqueles que se dispõem a desvendá-lo. Há um mistério
(Geheimnis) da realidade – aquilo que pertence a ela de modo singular. A
filosofia se dedica, desde sempre, filósofo por filósofo, a esclarecer o mistério
como verdade – filosofar é buscar a verdade. Em Heidegger, temos
posicionamento diverso: a constatação do que seja, efetivamente, o mistério,
deve levar o pensador a não buscar a revelação. Significa a consciência de
algo que não cabe como tarefa; o homem, estando na realidade, não tem como
desvendá-lo ou conhecê-lo plenamente. Não se trata de um segredo que deve
ser dito, mas de algo inalcancável que deve ser mantido como mistério do ser.
Neste sentido, a tarefa não é resolver o mistério, mas encontrar, reconhecer e
fazer perdurar a questão do ser.
O pensar é ação, pois constrói mundo e o sustenta. Pensar a
serenidade é já constui-la. Neste sentido, não existe uma reflexão que deva ser
feita e que, como consequência, tenha a serenidade. A serenidade é postura
alcançada no pensamento, e não depois dele. Dizendo de outro modo, o
homem não deve, primeiro, mudar sua reflexão para que, posteriormente,
mude seu agir junto aos entes, deixando-lhes a possibilidade de ser; a
mudança de pensar faz vigorar a serenidade como deixar-ser.
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2.2. Mundo e experiência
O homem está no mundo – Heidegger diria “lançado”. O mundo é o
aberto, é a realidade na qual o homem se vê e tem de se realizar como Da-
sein135; ele não escolheu nem construiu o lugar no qual está. Como ente
mundano136, o homem deve lidar com as coisas com as quais se depara, e elas
passam, de algum modo, a fazer parte de seu mundo. Entender que ele “se
depara” com as coisas já indica não serem suas criações, nem aparecerem
simplesmente por um ato de sua vontade137. O dar-se das coisas ocorre de
modos diversos e não controláveis pelo homem – ele apenas recebe, e tal
receber significa “ver, ouvir e apreender” aquilo que se dá e do modo que se
dá; é propriamente interpretar uma linguagem. Falamos, aqui, da linguagem do
próprio existir, na qual o homem está inserido138. Considerando-se que tal
linguagem é apreendida nas coisas que são, a linguagem do existir é a
linguagem do próprio ser, cujo apelo deve ser ouvido pelo homem. O ser não
“é” algo – ele simplesmente “se dá” nas coisas que são; mas o pensamento é
que recebe o ser que se dá, e “no pensamento, o Ser se torna linguagem”.139
Inicialmente, o ser-aí compreende, ou seja, está na compreensão na medida em que se compreende lançado em projetos existenciais, e se envolve, ou seja, está envolvido numa disposição com um mundo por meio dos chamados humores [Stimmungen], para depois somente explicar ou interpretar discursivamente esse mundo. O processo não parte de uma explicação ou “teorização” discursiva “sobre” o mundo, para depois ocorrer a compreensão, uma vez que o modo de acesso primário ao mundo não é teórico.140
A atenção dispensada (ou não) aos apelos do ser define a relação
que será estabelecida com as coisas e, consequentemente, o modo de estar o
135 “Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser-com-os-outros.” (O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.74) 136 No sentido de não apenas “estar no mundo”, como ocorre com outros entes, classificados por Heidegger, em Ser e tempo, como intramundanos. 137 Tratamos aqui de uma experiência inicial do homem com as coisas, quando, então, elas apenas se dão e o homem está diante do aparecer delas. É preciso considerar que, ao longo de sua história, o homem passou a desenvolver/criar novas coisas, pela técnica. A técnica é um modo de fazer aparecer: “Ela des-encobre o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá e propõe, podendo assim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil.” (HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p,17) 138 “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem.” (Id., Sobre o humanismo, p.24) 139 Id., Sobre o humanismo, p.24. 140 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.30.
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homem no mundo. Neste sentido é que não nos é possível falar de algo como
“o mundo”, plenamente objetivo, pois, ao longo do tempo, o homem
estabeleceu diferentes relações com as coisas; podemos dizer que, ao longo
do tempo, vigoraram diversos mundos. Também não podemos nos esquecer
de enxergar que o homem não participa do mundo do outro; já que há um
interpretar, há diversos mundos que coexistem. É neste ponto que deve ser
entendida a proposta de destruição/desconstrução (Destruktion) da ontologia
tradicional, já proposta no §6 de Sein und Zeit: o modo como o mundo (as
coisas) foi recebido no fazer histórico ocidental revela o esquecimento do
próprio ser em seu apelo.
A filosofia, como metafísica tradicional, considerou as coisas apenas
em seu presente; ou seja, elas se revelariam plenas no que o homem pode
delas apreender. Neste sentido, significa entender também que o próprio ser
teria se dado plenamente nas coisas, pois nada restaria além do presente
delas. A manifestação do ser seria, assim, entendida como plena, em um
presente a partir do qual poderia ser conhecido o mundo em si mesmo. Em tal
consideração, o ser já se teria revelado verdadeiramente, levando à concepção
de que sua problematização se configuraria como questão trivial, já que o ser
se mostraria como conceito universal em grau máximo, não sendo definível e
podendo ser entendido por si mesmo.141 Revelou-se aí, o desejo de plena
objetividade com aquilo que se mostra – potencializado pelo fazer científico, no
intento de conhecer integralmente aquilo que se dá. Mas o mistério persiste.
A metafísica tradicional entendeu, então, que o presente das coisas
são as coisas em sua plenitude e o ser em sua máxima revelação. Mas
Heidegger entende que a “linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia
e se esconde”.142 O ser não se dá plenamente (dá-se e retrai-se), pois as
coisas mesmas não são plenas no presente levado em consideração:
Pelo contrário, é o grito inesperado de um pássaro numa abafada noite de Verão; é a extravagância de uma flor de um cacto que completa a frugal suculência do seu portador de um modo maravilhoso que não podia ter sido antecipado ou mesmo imaginado de antemão; é o vento norte ou o vento
141 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, pp.35-39. 142 Id., Sobre o humanismo, p.45.
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nordeste que é talvez estatisticamente provável nesta estação mas que no entanto causa sempre espanto, sublimemente inquietante à sua sombria e portentosa chegada. Mesmo a cadeia montanhosa rochosa, não apreendida na sua “estrutura geológica ou localização geológica” mas tal como ali está perante nós “na paisagem”, não é rigidamente presente numa suposta fixidez do presente. (...) [O] verdadeiro ritmo do ser não é de permanência ou presença constante, mas sim o de uma emergência abrupta ou súbita que demora e perdura.143
Há sempre “algo além” do apreendido no presente das coisas: a
cada momento, elas se apresentam com elementos não apresentados
anteriormente. A experiência do homem com as coisas mostra a
impossibilidade de conceituação última da realidade (entendida como conjunto
das coisas que são); consequentemente, não é possível apreender o ser
plenamente, pois ele se dá de outro modo. O ser se dá em emergências
contínuas que não obedecem a qualquer tipo de previsão humana objetivada.
A ontologia tradicional tomou justamente o ser em sua aparência (ou
“aparecência”) estática, acreditando-se na posse do conhecimento do ser e da
realidade; isto nos leva a entender que a tentativa de enquadramento da
realidade nos parâmetros do entendimento humano deixa de considerar muito
do que ela propriamente é.
Apreender o ser pelos entes que são, no projeto da tradição,
significou tomar o apresentar-se das coisas e, dele, presumir o ser; porém,
aqui, falamos do “ritmo” do ser como “clarear e esconder” ou “emergência
abrupta”. Com isto, temos de trazer para a reflexão a ideia de “aceno” (capítulo
1): a apreensão do ser apenas se dá pela espera de seu acenar – espera na
demora; ainda assim, tal apreensão é indicação do dar-se do ser, já que o
aceno se dá nas coisas que, por sua vez, não têm um aparecer constante. O
citado “ritmo” não se relaciona, então, a uma cadência regular.
É aceno como brilho e deixada de um rastro. O ser, como
fundamento da filosofia, deu-se em tal brilho no início do pensar ocidental, na
143 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.76.
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experiência grega, a experiência original144. Depois de tal experiência, o ser
caiu no esquecimento e a filosofia – a partir da platônica –, começou a construir
as bases do conhecimento estático da realidade que se solidificou como
metafísica tradicional. O projeto heideggeriano busca retomar o filosofar grego
dos primeiros pensadores da Grécia Antiga, os pensadores-poetas, no intento
de verificar o que resta impensado daquela experiência com o ser e recolocar a
filosofia (pensamento meditativo) em seu caminho, com o ser em seu centro.
O que ficou então impensado nesta experiência grega do ser foi a presença na sua interacção com a ausência, presença na sua aproximação e retirada, isto é, presença como ocorrência ou evento. O que ficou impensado foi o ser na sua total temporalidade, precisamente porque o ser enquanto tal permaneceu impensado. Em vez disso, o ser foi interrogado apenas no seu caráter de fundamentação ou explicação dos entes.145
Dizendo de outro modo, o questionamento que deve ser feito é pelo
ser em si mesmo, e não dirigido pela questão do ente. Apreensão do ser deve
se dar como aquilo que ocorre – é o ocorrente. Mas o mais significativo nesta
situação é a consideração de que a ausência (retirada ou retração) faz parte do
ser, e não como uma falha, mas como uma marca de sua completude. As
ideias de “aceno”, “brilho” e “clarão” expressam exatamente o ser como o que
se apaga logo depois de aparecer. Eis o que não foi abarcado pela tradição e
que a racionalidade do modelo científico não consegue alcançar.
2.3. A fixidez do presente: a ciência e a subordinação do ser ao ente
Pelo indicado até este ponto, resta clara a ideia de que as coisas se
mostram – elas existem de um modo que vamos classificar como “dinâmico”,
ao contrário de “estático”. A este conjunto de todas as coisas que se mostram e
144 Não é experiência “original” por estar no “início” do pensamento ocidental, mas por se ligar à questão original, a saber, do ser. A origem é o princípio: “é o que na história essencial vem por último. Naturalmente, para um pensar que conhece somente a forma do cálculo, a frase ‘o princípio é o último’ permanece um contra-senso. Antes de tudo, porém, o princípio aparece, em seu início, oculto num modo peculiar. Por isso surge o fato surpreendente de que o princípio, facilmente, é tido como o incompleto, inacabado, grosseiro. É chamado, também, de ‘primitivo’”. (M. HEIDEGGER, Parmênides, p.14) 145 B. FOLTZ, Habitar a terra, pp.78-79.
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constituem mundo vamos chamar, por sua vez, de “natureza”146: é a natureza
que brota e se faz vigente. Em meio, então, à natureza, está o homem, que
deve construir seu mundo.
Considerando a manifestação do ser no ser da natureza, as coisas,
em um dar-se e retrair-se constante, manifestam aquilo que é próprio do ser:
acenar, por meio dos modos segundo os quais elas aparecem. O aparecer da
natureza indica que o ser se dá sempre de modo incompleto, não último,
segundo aquilo que está dentro das possibilidades de apreensão da
racionalidade humana. Significa entender que a capacidade racional não
alcança a verdade da manifestação do ser; apenas há indícios que devem ser
considerados a partir da experiência com os entes.
O homem não tem o domínio das coisas que se manifestam e, deste
modo, acaba tendo de acompanhar o dar-se da natureza (o dar-se do ser no
ser das coisas); mesmo com o que o homem fez de si ao longo do tempo –
“cheio de méritos”, dizemos com Hölderlin e Heidegger –, a realidade escapa
de suas mãos e ele resta tendo de se fazer neste “turbilhão” dos entes. Não se
trata apenas de entender como certa insatisfação do homem por não poder
dominar o curso da existência; é mesmo uma situação de insegurança diante
daquilo que vai além de suas capacidades.
Pelo contexto, é necessário um modo de fazer com que as coisas
estejam “nas mãos” do homem: a ciência é a máxima expressão desta
tentativa, no intento de obter a certeza – e a consequente segurança – sobre
aquilo que se mostra como natureza. O ponto aqui não é fazer julgamento
como algo “certo” ou “errado” nesta construção de mundo – mas o autor indica
que o modo como o homem se firmou em seu mundo ao longo do tempo, a
partir das relações que estabeleceu com a natureza, não dá condições de se
considerar verdadeiramente a questão do ser, pois o homem se perde em meio
aos entes.
Falar da subordinação do ser ao ente, nada mais é que entender o
modo como o homem buscou o ser, a saber, não nele mesmo, mas nos entes –
146 A natureza também é a physis, ou o ente-na-totalidade.
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os que, por primeiro, estão para a experiência humana. Os entes são a
primeira via de acesso, mas este foi entendido como claro e objetivo modo de
se dar; enquanto o que ocorre é que, nas diversas manifestações do ente, o
ser se dá em relance, em desvio. O ato de fixar a realidade e receber as coisas
em uma fixidez do que sejam, dá condições de conhecer a verdade, mas
apenas em certo âmbito, pois, neste caso, as coisas devem se conformar
àquilo que é a proposta de compreensão humana. O ser, assim, não tem
condições de se dar, pois as coisas não são encontradas em seu desvelar
(alétheia), mas em um forjar de seu aparecer.
É um “forjar” diante de uma experiência que apenas pode ocorrer
dentro dos parâmetros estabelecidos, dentro de uma pré-concepção que
entende os entes apenas em seu estar-à-mão primeiro. A ciência, neste
sentido, é o caminho entendido como o único a levar o homem para a
“verdadeira” experiência junto às coisas – tanto é assim, que o primeiro
discurso a ser buscado (e o que ganha maior confiança inicial) é aquele
baseado na descrição científica do mundo. Percebamos que esta concepção
de que os entes sejam totalmente apreensíveis pelo que mostram de si na
experiência é exatamente o projeto da metafísica tradicional criticado por
Heidegger; neste sentido, podemos dizer que a ciência moderna – e,
consequentemente, a técnica e a tecnologia – é o ápice, na realização de tal
projeto. A natureza seria aquilo que “vemos” (olhar científico) dela – assim é
que a questão do ser passou de problema, com os gregos antigos, para auto-
evidência. Como “presença constante”, o ser estaria totalmente nas coisas.
Este desvio da questão do ser é identificado por Heidegger como
tendo se dado na mudança de concepção sobre a verdade (αλήϑεια) ainda no
contexto da Grécia Antiga: o ser passou a ser considerado a partir das coisas
que são (entes) – consideração dirigida pela razão. Mas o ser não é: ele se dá
(e se retrai); esta ideia caiu no esquecimento desde que o homem passou a
considerar apenas os entes presentes na consideração do próprio ser147.
Enquanto o homem dirige, ele não “deixa-ser” (sein lassen) e, na tentativa de
147 “... o elemento da auto-emergência, com o seu elemento concomitante de auto-retirada, é a breve trecho ofuscado pela metafísica grega e a sua predilecção pela presença não mitigada.” (B.FOLTZ, Habitar a terra, p.96)
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ter mais segurança, perde muito da realidade e deixa escapar o ser. Falar do
“deixar-ser”, é falar da liberdade como aspecto essencial da verdade.
As coisas são verdadeiras em si mesmas, mas quando têm a
possibilidade de aparecer no que são.148 A ciência não deixa as coisas
aparecerem, mas as obriga ao aparecimento, principalmente por meio da
tecnologia. Tal obrigação ocorre, ainda, na tentativa de dirigir os caminhos
pelos quais as coisas podem se mostrar – tudo o que não se adequar ao
modelo é rechaçado, desconsiderado. O homem assiste à manifestação dos
entes que é criada por ele mesmo, sempre no falar científico149 – que traz não
apenas o desejo de conhecer, mas o de dominar que vem junto.
O tema da ciência aparece no capítulo 1, seja de modo direto, ou
mesmo sustentando a crítica feita ao modo habitual de entendimento de
mundo. A ciência cria um conjunto de leis, dentro do qual transita, lidando com
os elementos passíveis de mensuração dentro do cenário; neste sentido, “cada
‘ciência’ é um conhecimento de dominação, um sobrepujar e um ultrapassar,
quando não simplesmente um passar por cima do ente. Isso se realiza no
modo da objetivação”.150 Neste modo de se fazer – com força de
constrangência –, o mundo não aparece como natural, mas sempre já algo que
deve ser interpretado (e “tomado nas mãos”) de um modo específico,
148 A verdade das coisas aparece como jogo, nó e luta, restando o vigente como o que aparece diante do que permanece velado. Duas indicações podem fundamentar nossa ideia:
1) “Des-encobrimento” pode também significar que encobrimento, simplesmente, não é admissível, que este, embora sendo possível e constantemente uma ameaça, não existe e pode não surgir. [...] Na essência da verdade como do des-encobrimento vige uma espécie de luta com o encobrimento e com o retraimento. (M.HEIDEGGER, Parmênides, p.30)
2) A verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do ainda-não- (do não-) revelado, no sentido do velamento. Ao mesmo tempo, no des-velamento como verdade vige o outro “não” de um duplo vedar. A verdade vige como tal na oposição de clareira e duplo velamento. A verdade é a disputa originário-inaugural na qual sempre de um certo modo se conquista o aberto, no qual, tudo, que como sendo se mostra e subtrai, se situa, e a partir de qual tudo se retrai. (Id., A origem da obra de arte, pp.153;155)
149 Uma analogia com uma peça teatral pode bem representar o que dizemos: a ciência “cria um cenário” de entendimento, dentro do qual as coisas podem aparecer. Imaginando-se o homem (em sua busca pelo conhecimento da verdade) como espectador, ele vem assistir à apresentação do que seja o mundo, buscando entender melhor as coisas no modo como aparecem. A ciência dirige tal apresentação e, deste modo, põe no conjunto da cena apenas o que ela pode conceber, e tudo o que for apresentado o será dentro unicamente das possibilidades dadas. Mas a realidade, que “vai além” da experiência construída pela ciência, deve se adequar para entrar em cena vestida no que lhe é, ali, possível; a realidade deve se adequar, ou não entra em cena. Nas palavras do próprio Heidegger: “Todo novo fenômeno numa área da ciência será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da respectiva teoria”. (Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.49) 150 Id., Parmênides, pp.16-17.
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previamente determinado. O simples exemplo do “puro vazio” do jarro, que a
ciência não pode conceber, já indica que as coisas não têm como se mostrar
de um modo que chamaremos aqui de “completo”. Trata-se da lente (im)posta
para entendimento de mundo.
Entendendo a ciência como instrumento de dominação, o que ocorre
com o ente em geral? Heidegger indica que o ente fica para trás (passa-se por
cima); significa dizer que o ente não é considerado em si mesmo, mas apenas
dentro de um projeto de conquista – dominar é assenhorar-se das coisas,
exigindo que elas sejam o que o desejo humano sugere. O que poderia
considerar o ente é o pensamento, mas, como já foi dito, a ciência não pensa.
De modo singular, entendemos que a afirmação do autor de que a
ciência não pensa seja indicativo do que propriamente são a ciência e o
pensamento. A ciência calcula e o pensamento busca o sentido. O pensamento
cabe aos pensadores; significa dizer que, estes, têm a responsabilidade sobre
um tipo de reflexão própria – que podemos entender como pensar meditativo151
(besinnliche Nachdenken). A afirmação heideggeriana, de modo algum, busca
apresentar ciência e pensamento como excludentes: o objetivo é distinguir o
que lhes cabe, delimitando tipos diferentes de reflexão.
O pensar meditativo se coloca no caminho do ser, não seguindo a
lógica da razão técnica, que busca tudo definir e classificar em conceitos
últimos, mas estando a postos em postura de ativa escuta em atenção aos
apelos do ser. O primeiro questionamento de tal pensar é sobre a própria
atividade do pensamento, como “traço distintivo da essência do homem”.152
O que falta à ciência para ser pensamento? Talvez, a questão não
seja esta a ser posta, pois já se estaria tentando colocar uma na direção do
outro. A indicação de que a ciência não pensa soa, de certo modo, agressiva e
merece nossa atenção para ser melhor entendida. “Agressiva”, pois,
entendendo-se o homem como “o” animal ao qual compete o pensamento de 151 “Meditación sería, pues, pensar en la dirección del camino en el que el ser mismo nos ha encaminado, introduciéndose como conviene en ella –la dirección–, y en él –el camino–. La meditación –pensar el sentido–, recae, pues, sobre el ser, sobre la esencia. No es algo diferente al pensar mismo, al pensar del ser, al pensar esencial, al corresponder como conviene a la interpelación del ser.” (J.A. GUERRA, La frase de Heidegger..., p.21) 152 M. HEIDEGGER, Serenidade, p.31.
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modo singular, dizer que a ciência não pensa parece algo arrogante e
pretensioso, da parte de um filósofo. Mas o que Heidegger mostra é a
necessidade de que sejam aclarados os âmbitos e identificados os caminhos e
limites – significa reconhecer o abismo (Kluft) entre ciência e pensamento153.
Na objetidade da natureza, que corresponde à objetivação da física, reina um incontornável em duplo sentido. Quando conseguimos vê-lo e pensa-lo mais ou menos numa ciência, nós o percebemos com mais facilidade em qualquer outra.154
A objetidade (Gegenständigkeit) da natureza é o que pretende a
ciência alcançar em sua máxima extensão; é tornar a natureza plena em
objeto, abarcando seu manifestar em toda e qualquer situação na qual se
apresente. Deste modo, poderia a ciência falar com plena segurança sobre as
coisas que se dão, pois o entendimento esgotaria aquilo que tais coisas são.
Isso ocorre com “a ciência”; ou seja, o autor indica que as ciências particulares
seguem um mesmo modo de se relacionar com o mundo. Mas um elemento se
nos aparece de modo significativo, exigindo que nos debrucemos sobre ele: o
incontornável (das Unumgängliche).
Em duplo sentido aparece o incontornável, pois: 1) é o que não
permite contorno, no sentido de definição e delimitação (é dizer que, mesmo na
tentativa de fazer da natureza pleno objeto a ser observado e considerado, há
“algo” que não pode ser abarcado pelo fazer científico); 2) é o que não permite
ser deixado de lado, não havendo possibilidade de desvio (o que significa que
a ciência sempre se depara com este “algo” que deve ser considerado). Este
incontornável está diretamente ligado à ideia de dação e retração do ser no ser
dos entes; é o que está lá, sem desvio, mas não é abarcável pela ciência.
Mesmo com todo esforço de enquadramento da natureza em uma
determinação qualquer, ela escapa e se faz nova. “A ciência põe o real”155
enquanto âmbito da vigência156, ou seja, determina o cenário no qual a
153 Cf. M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.115. 154 Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.53. 155 Ibid., p.48. 156 “Pensando-se de maneira bem ampla, ‘realidade’ (Wirklichkeit) significa, então, estar todo em sua vigência, significa a vigência em si mesma acabada do que se pro-duz e se leva ao vigor de si mesmo. (...) Pensamos a vigência, como a duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-se, assim perdura e permanece.” (Ibid., pp.42-43)
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natureza pode ser – e o faz, na tentativa de encontrar (“estabelecer”) uma
explicação que seja universal157.
A natureza não se deixa prender ou ser determinada – ela escapa,
mas não permite contorno ou rechaça; porém, a ciência considera o ente e
nada mais.158 Enquanto a ciência (razão calculadora) deixa de lado o que não
consegue abarcar, o pensamento (meditativo) toma o ente do modo como ele
se dá, não rechaçando este “algo além” da experiência. A ciência não pensa ao
modo dos pensadores, como indicado no capítulo anterior – ela não o faz, nem
o deve fazer (é uma necessidade para que seja ciência).
Para ser ciência, a razão “congela” a realidade, pois o cálculo não
seria possível na consideração de um objeto que não se deixa “agarrar pelas
mãos”. Neste sentido, a natureza deixa de ser “algo” em si, passando a ser
apenas representação: os entes são categorizados a partir de padrões de
manifestação que, sendo estabelecidos, regem a mensuração de todos os
entes. Falar que uma lei científica é “descoberta”, significaria entender que ela
já existiria e que o universo a ela obedeceria – o esforço do homem estaria
apenas em conseguir identificar e traduzir tal lei para a linguagem da razão.
Mas o universo (a natureza, a existência, o ser) não obedece à racionalidade; a
natureza não se conforma à lei – motivo pelo qual a verdade científica é
relativa. Assim, entendemos que a lei científica é sempre “estabelecida”: o
cientista encontra a “palavra” que consegue expressar sua experiência de
racionalidade junto ao mundo.159
O que ocorre com a natureza na razão científica, em tal
“congelamento”? É perdida sua auto-emergência – aquilo que é propriamente a
physis. A partir daí, toda experiência é montada e não mais natural – todas as
coisas são retiradas de seu contexto e isoladas do mundo em um “lugar” único.
157 Chegar a uma única lei que possa explicar a existência de modo completo. 158 A temática deste “nada” é tratada em Que é metafísica?, publicada no volume 45, da Coleção Os Pensadores: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1973. 159 Exemplo simples de se pensar é o de Sigmund Freud, quando se atribui a ele a “descoberta” do inconsciente – na verdade, ele encontrou um modo, na linguagem, de apresentar aquilo que é parte do homem.
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Na verdade, na ciência “todos os lugares são iguais”160 e, ao invés de
aproximar mundo e homem, ocorre o distanciamento das coisas.161
A razão científica lança os entes em um “lugar” comum, que é a
consideração de que eles simples e plenamente “estão aí”, dando-se ao
conhecer humano. Em tal situação e, se tomarmos a concepção apresentada
no capítulo I (sobre o ser que se dá no aparecer das coisas como aceno, como
um clarão que se dá e se apaga logo em seguida), a uniformização do espaço
não permite o aparecer dos entes. É importante lembrar que tal uniformização
é necessária para a produção do conhecimento científico e pode ser expressa
pela ideia de círculo vicioso: é ambiente controlado, no qual a experiência de
mundo é montada e nunca natural – significa fazer do mundo um grande
laboratório, no qual deve se dar a experiência desejada para confirmação de
um entendimento que se tem do próprio mundo (entendimento que vem da
própria razão científica).
A uniformização não é apenas do “espaço” no qual deve se dar a
experiência, mas também – e, de modo especial – da própria direção a ser
seguida; significa dizer que, mesmo com as especificidades de cada ramo
científico, tal caminho é único. Eis o que leva à citada monotonia: é permitido
um único tom de manifestação dos entes – o que, por sua vez, afasta sempre
mais o homem da experiência com o ser. Estabelecer um único caminho, único
tom, único modo, é delimitar o horizonte de manifestação do ser.
A celebrada objectividade da ciência dissolve a própria natureza na sua própria representação (Vorstellung) da natureza precisamente através da sua determinação como um objecto (Gegenstand), como algo cuja estância deriva da sua contra-relação com um sujeito. (...) [O] objecto científico é colocado ou posto (stellt) diante do sujeito pelo sujeito; não está ali por si. Além disso, este objecto é feito para estar contra (gegen) o sujeito; a sua presença não é natural e indiferente,
160 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.90. 161 A ideia de que tudo esteja recolhido a uma mesma situação pode ser melhor entendida com os conceitos de monotonia e uniformidade (ver cap. 1, p.55).
Horror e terror é o poder que joga para fora de sua essência, sempre vigente, tudo o que é e está sendo. Em que consiste este poder de horror e terror? Ele se mostra e se esconde na maneira como, hoje, tudo está em voga e se põe em vigor, a saber, no fato de, apesar da superação de todo distanciamento e de qualquer afastamento, a proximidade dos seres ainda estar ausente. (M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.144.)
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tal como acontece com o ente que está meramente presente, mas sim de confrontação com o sujeito.162
“Conceituar” significa “delimitar” algo em uma definição que, por
consequência, já determina um modo de existir; no conceituar, já se diz o que
um ente pode ser. A concepção que se tem da natureza como objeto dirige as
possibilidades de conhecimento e, consequentemente, permite diferentes
modos de relação entre homem e mundo. Como entender o objeto? No
alemão, para “objeto”, temos dois termos: um, que nos auxilia pouco para esta
reflexão, que é “Objekt” – derivação do termo latino “objectum”; e outro, que
mais nos interessa, que é o termo “Gegenstand”163. Heidegger fala do objeto da
ciência como Gegenstand. Encontramos a raiz de “stand” no verbo “stehen”:
representa diretamente aquilo que está parado, posto em pé – é o que fica, o
determinável. O termo “gegen” é a preposição “contra”, que está na formação
de inúmeros outros termos – indica aquilo que está “oposto a...”. Neste sentido,
“Gegenstand” fala “daquilo que é determinado e está posto em contraposição
a”.164
A natureza é des-naturada pelo homem quando passa a ser objeto
pronto, pleno e determinado, contraposto a um sujeito. A ciência deseja
(necessita) que a natureza seja tal objeto, pois, de outro modo, ela não teria
condições de contê-la. A natureza não é recebida, então, em sua própria
manifestação; também não é o ente simplesmente dado que “está presente”. O
homem não está “diante de”, mas “oposto a”: o rio e a árvore não são entes em
si mesmos que se apresentam em sua especificidade (não fixa) para o homem;
eles passam a ser um conjunto de menores elementos e relações entre tais
162 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.87. 163 O termo passou a ser um substitutivo para “Objekt” a partir do século XVIII. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.321) 164 Heidegger indica:
O homem coloca a Natureza à sua beira e levanta o mundo de tal modo que o enfrenta. Este colocar à beira, este elaborar, devemos entendê-lo na sua essência lata e multíplice. O homem cultiva a Natureza quando ela não basta para responder às suas expectativas representativas. O homem elabora coisas novas quando elas lhe fazem falta. O homem muda as coisas de lugar, quando elas o incomodam. O homem remove as coisas quando elas se desviam do seu propósito. O homem expões as coisas, quando as recomenda para compra ou para utilização. O homem expõe quando exibe as suas próprias capacidades e quando faz propaganda do seu ofício. Em todas estas formas multifacetadas do produzir, o mundo é posto de pé e trazido a uma posição. O aberto torna-se objecto e, assim, é rodado para enfrentar o homem. Enfrentando o mundo como objecto oposto, o homem expõe-se a si mesmo, e levanta-se como aquele que consegue impor propositadamente todo este elaborar. (M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.331)
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elementos que podem ser medidos e compreendidos. Por meio da razão
científica, o homem não mais “está diante” (gegenüberstehen) dos entes, face
a face, para perceber, receber e descobri-los, mas está diante de objetos que
estão para ser desmembrados, decompostos e conhecidos. Assim, o homem
produz, elabora165, seu mundo.
2.4. O ente para além de Gegenstand: o Geviert
Quando a ciência afirma “conhecer” o mundo, poderíamos dizer que
ela considera apenas um modo de se relacionar com este objeto que chama de
“mundo”; na verdade, não existe tal “considerar”, já que sequer é aventada uma
possibilidade diversa do caminho já estabelecido pela razão científica. A
ciência conhece por meio daquilo que se mostra, de certa forma, estático à
experiência dos sentidos – esta, que foi alargada na medida em que os
instrumentos, criados pela técnica, foram se tornando extensão dos sentidos.
Perceber que os limites do conhecimento são alterados com os instrumentos,
não significa entender que se tenha chegado ao conhecimento “verdadeiro” do
mundo com a ciência: tem-se apenas uma nova margem do que pode ser
conhecido, podendo ser apenas novos âmbitos da caverna.166
A proposta heideggeriana é entender o ente de modo diverso, no
intento de se receber o modo segundo o qual o ente se mostra – significa
receber o próprio ser em seu dar-se de diversos modos nos entes.
(...) Encaminhar na direção do que é digno de ser questionado não é uma aventura mas um retorno ao lar.
O alemão sinnan, sinnen, pensar o sentido, diz encaminhar na direção que uma causa já tomou por si mesma. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido.
165 Na nota do tradutor – nota 6 –, temos: “O verbo alemão herstellen significa produzir, elaborar. No entanto, com a introdução do hífen em her-stellen, e tendo em conta o contexto, a forma verbal significa nitidamente ‘colocar à beira’.” (M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.331) 166 Fazendo-se alusão ao pensamento platônico, do mesmo modo que a ciência é saída da caverna, corre o risco de ser apenas novo modo de se estar nela; dizemos isto, não no sentido de que o conhecimento científico seja simples opinião (doxa), mas no intuito de verificar que, ao se estabelecer como “o” conhecimento do real, acaba por se fechar em um entendimento que só permite à realidade aparecer dentro de certos parâmetros de mensuração.
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Este significa mais do que simples consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser questionado.
No pensamento do sentido, chegamos propriamente onde, de há muito, já nos encontramos, embora sem tê-lo experienciado e percebido. No pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo que fazemos ou deixamos de fazer.167
A partir do trecho, temos a indicação do que deve buscar o
pensamento, a saber, o sentido dos entes, que é o sentido do próprio ser. A
ciência não capta o sentido, por não ser seu objetivo captá-lo – se o fosse, ela
teria de se abrir para novo modelo de racionalidade.168 Heidegger fala do
pensamento que é meditativo e que, assim, pode almejar alcançar o sentido.
Quando o ente em geral não é tomado unicamente como o que está
diante de/contra um sujeito, ele aparece como diverso. O pensamento não olha
para o objeto, mas para seu aparecer; significa ver o ente não isolado, mas
167 M. HEIDEGGER, Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.58. 168 É preciso indicar que o pensamento – do modo como entendemos em Heidegger – não está presente na ciência como possível caminho de reflexão racional; mas falamos, aqui, em uma macro visão que pode ser lançada sobre a ciência: de um modo geral, ela não busca o sentido. Mas há os cientistas que, de modo singular, embrenham-se na busca de “algo além” do lugar comum – é quando o pensamento toca a ciência. Como exemplo, citamos a obra A ilha do conhecimento; os limites da ciência e a busca por sentido (M. GLEISER, 2014); o autor entende que os limites não podem ser barreiras, mas possibilidades para um novo conhecer, a partir de novas concepções da realidade e novos modelos de racionalidade. O autor indicado apresenta um caminho de reflexão nesta temática já em diversas obras anteriores. Para este autor, a ciência, claramente, cria uma linguagem, um modo de dizer o mundo; no fundo, a ciência “cria” os próprios objetos. Para exemplificar, ao falar do pensamento de Newton, Gleiser afirma que “[e]xiste algo de intangível na matéria” (M. GLEISER, A ilha do conhecimento, p.87) e isso não é facilmente tratado pela ciência, o que leva os cientistas a estabelecerem pontos fixos para o discurso sobre a realidade. O autor deixa isso claro, afirmando:
Massa e carga não existem per se; existem apenas como parte da narrativa que nós humanos construímos para descrever o mundo natural. Da mesma forma que, quinhentos anos atrás, esses conceitos não existiam, provavelmente serão superados por outros daqui a quinhentos anos. Em outras palavras, se outras inteligências existirem no cosmos, sem dúvida terão também explicações sobre os fenômenos que observam. Mas supor que seus conceitos sejam idênticos aos nossos é lamentavelmente preconceituoso e antropocêntrico, pois pressupõe que existe algo de universal nas descrições que inventamos. (Ibid., p.88)
Além de criar seus objetos, o cientista tem de lidar com o fato de que o objeto da ciência é modificado pelo próprio sujeito que conhece:
Nomeadamente, a física nuclear encontra-se encurralada numa situação que a obriga a verificações desconcertantes: a saber, que a aparelhagem técnica utilizada pelo observador numa experimentação co-determina aquilo que de cada vez é ou não é acessível a partir do átomo, quer dizer, das suas manifestações. E não significa menos do que isto: a técnica é co-determinante no conhecer. (HEIDEGGER, Língua de tradição e língua técnica, p.23)
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carregado do que o faz vigorar em um contexto, que é o sentido – é mudança
de olhar, pois já atravessa tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Pensar o
sentido (Besinnung) implica postura diante da realidade (serenidade –
Gelassenheit): não é estar apenas na consciência, mas relacionar-se com o
que é, o ente.
O modo como os entes aparecem, na representação racional
científica, pode ser entendido, imageticamente, como uma fotografia: o que
aparece é captado pelos sentidos, representado pela razão (que se utiliza de
um número de elementos representacionais aceitos) e estatizado em seu ser.
Em uma fotografia, a natureza é “plena” naquilo que é registrado. Para a
ciência, tal modo de conceber o mundo é necessário, pois o objeto não lhe
escapa – ao menos, não tão rapidamente. Em tal contexto, não cabe o
pensamento sobre o sentido, pois nada vai além de sua representação. O
homem habituou-se a pensar as coisas de um certo modo.
O que nos aparece como natural é provavelmente apenas o habitual de um longo hábito que esqueceu o in-habitual do qual aquele se originou. Um dia, contudo, aquele in-habitual tomou de assalto, como um estranho, o homem e levou o pensar para a eclosão do admirar.169
Ao afirmar o autor que “[n]o pensamento do sentido, encaminhamo-
nos para um lugar onde se abre, então, o espaço (...)”170, resta indicada a
necessidade mudança: de onde está o homem, não é possível estabelecer
relação com os entes no que propriamente são. Assim, o homem deve se
colocar em um lugar (Ort) que permita a abertura de um espaço (Raum) no
qual, por sua vez, a coisa possa se mostrar em seu sentido. Abrir espaço para
que a coisa se mostre é, também, abrir espaço “na” própria coisa – antes,
entendida como “plena”. O sentido é algo que na coisa se deposita.
O espaço que o homem abre é a possibilidade de novo
entendimento: as coisas deixam de aparecer como em uma fotografia,
passando a carregar um vazio (Leere) que, por sua vez, permite que seja
depositado o sentido. Geviert é caminho de entendimento sobre o que está
presente no modo como o ente aparece (pois não é simplesmente o
169 M.HEIDEGGER. A origem da obra de arte, p.55. 170 Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.58.
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“visível”).171 O ente, como coisa, reúne algo em si ou, dizendo de outro modo, é
o ponto no qual o sentido se dá, na reunião dos quatro: céu e terra, divinos e
mortais. A racionalidade científica não alcança tal concepção; assim, a via de
acesso é o pensar meditativo (pensar do sentido), no caminho do poético. Para
entender o conceito de Geviert é necessário falar da disposição ou tonalidade
fundamental.172
Tenhamos em mente os quatro elementos que Heidegger apresenta
como sendo os que dão forma ao mundo. Consideremos que, na verdade, tais
elementos são os que permitem ao homem dar forma ao mundo. A construção
que o homem faz de seu mundo é marcada pelo modo como ele recebe as
coisas no âmbito do “jogo de espelhos” de céu, terra, divinos e mortais. Não há
homem sem mundo (é importante lembrar que, desde Sein und Zeit, o homem
nunca é uma essência ou um ser em abstrato, mas sempre um ente
contextualizado, um “quem” determinado); neste sentido, seja o homem
comum, seja o de ciência ou o poeta: o mundo nunca pode ser univocamente
entendido.
Caso se dispusesse de apenas um elemento, que fosse tomado por
base no fazer-mundo do homem, não teríamos como conceber o aparecimento
da diferença. Esta última apenas surge por conta do modo como o “jogo de
espelhos” permite a visão da realidade: o vigorar das coisas vai depender do
brilho a elas possibilitado. O autor aponta os quatro (céu, terra, divinos e
mortais) no esforço de traduzir em ideia aquilo que pode ser entendido como o
âmbito no qual o homem se realiza como ente. Na verdade, trata-se do mesmo
âmbito no qual todos os entes assim se realizam, pois as coisas aparecem
para o homem. O “lugar” que permite a experiência173 do homem é aquele que
se abre entre terra e céu; na terra, o homem está diante do céu e daqueles que
nele habitam – e sua medida é a relação entre o limitado e o sem-limite. O
homem não se compreende e nada pode receber fora de tal espaço.
171 Os conceitos de “vazio”, “quadratura” e “sentido” foram apresentados no capítulo 1 (pp. 59-75), ao falarmos da coisa. 172 “Heidegger emprunte donc à Hölderlin l’idée de la ‘tonalité fondamentale’ qui doit s’imposer nécessairement à l’ensemble d’un poème de telle manière que le lecteur saisisse, selon l’expression du poète, ‘tout ce qui est essentiel et caractéristique, tous les enchaînements successifs’, en parvenant à reprendre ‘dans leur connexion les parties composantes de cet enchaînement’.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.121) 173 “Experiência” não se refere aos sentidos.
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O conceito de “mundo” é entendido aqui como aquele conjunto de
coisas que aparecem de determinado modo – este que, por sua vez, é
possibilitado pela disposição (Befindlichkeit) do homem. O termo alemão tem
raiz no verbo finden que significa “encontrar”; entendamos a disposição do
homem como sua “encontrabilidade”, ou seja, a maneira como o homem é
encontrado, como ele se situa e situa os entes em geral.
No realizar-se do homem no mundo, diversas relações ele
estabelece com tudo aquilo que lhe pode aparecer. A cada momento, novas
situações exigem que se posicione, ou seja, que se assuma uma postura
diante da realidade – e adotar uma postura não implica que se tome a mesma
ação sempre. A postura revela a tonalidade do mundo do homem: pode ser
identificado um “tom que perpassa” o vigorar das coisas. Falando do mundo do
poeta, temos o tom que sua poesia dá às coisas, ligando-as em um sentido.
Aqui, “disposição” e “tonalidade” dizem do mesmo aspecto.
Retomemos a ideia de monotonia:174 o modelo de racionalidade
baseado na ciência dis-põe todas as coisas de modo a fazer delas um mesmo
“conjunto fechado” de objetos. No fundo, é tratar o ente como um mesmo
objeto – o mundo –, que está para ser “tomado nas mãos” pelo homem, para
ser conhecido e utilizado. Em tal concepção, reinam (ou é intenção fazer reinar)
a constância e a regularidade. Mas as coisas não se dão do mesmo modo e
nem ao mesmo homem; assim, o conceito que pode indicar reflexão diversa é
o de harmonia. Não existe harmonia composta por um único elemento, pois ela
depende de elementos que se entrecruzam de modo a permitir o que podemos
chamar de “equilíbrio” ou “combinação”. O mundo sem harmonia (cosmos) é
desordem (caos).
Ao falarmos “harmonia”, não buscamos indicar que elementos
estejam em consonância, mas sim que eles sempre são encontrados em uma
dada configuração relacional – dão as condições de configuração de mundo,
no qual é possível constatar uma tonalidade. A harmonia – ou relação – entre
os quatro (céu e terra, divinos e mortais) permite um determinado modo de
174 “Tudo está sendo recolhido à monotonia e uniformidade do que não tem distância.” (M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.144)
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aparecer das coisas, dentro do qual o homem pode ser encontrado. O Geviert
é a configuração de mundo que permite às coisas um aparecer singular, não
pronto, nem pré-determinado.
A coisa leva a quadratura a perdurar. A coisa coisifica mundo, no sentido de concentrar, numa simplicidade dinâmica, as diferenças. Cada coisa leva a perdurar a quadratura em cada duração da simplicidade de mundo.175
Falar da quadratura é perceber que o existir do homem apenas é
possível dentro de um determinado “espaço”. O entendimento do homem como
livre para possibilidades infinitas é algo pleno de significado nos âmbitos social,
ético, político ou psíquico, por exemplo; mas, da maneira como tratamos a
questão aqui, as possibilidades são infinitas somente dentro de um quadro, que
é a quadratura. Neste quadro é que as coisas podem ser; o modo como elas se
mostram aparece como o modo permitido para aparecer, dentro de um
contexto, um jogo, uma luta176.
O ser se dá ao homem e este percebe que existe junto aos demais
entes; para ele, o ser se torna linguagem de ser. O homem apenas leva em
consideração aquilo que pode ser relacionado a seu modo de existir; significa
entender que o mundo do homem é moldado pelo ser do próprio homem. O
único ponto de não-ultrapassagem é a mais singular possibilidade da não-
existência. Tudo ele pode enquanto não deixar de existir – até a morte é uma
possibilidade dentro da totalidade do ente. É o reconhecimento de sua
mortalidade, que se dá na terra. Como limite da mortalidade está a situação da
não-mortalidade, que apenas cabe aos divinos, os imortais – no céu.
Todo o aparecer das coisas no mundo do homem depende do modo
como se dá a relação entre os quatro, ou seja, do modo como o homem se
entende na realidade em que se encontra. A quadratura se dá como harmonia
de sentidos. A diferença entre as coisas aparece no modo como os quatro 175 M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.158. [“Das Ding verweilt das Geviert. Das Ding dingt Welt. Jedes Ding verweilt das Geviert in ein je Weiliges aus Einfalt der Welt.” (Id., VA, p.182)] 176 A constituição do mundo do homem (neste trabalho, especificamente do mundo do poeta) se dá pelo modo como, na consideração das coisas, se dá o jogo entre os quatro – quatro vozes do ser, quatro polos do mundo. Assim como ocorre com uma poesia, o mundo apresenta uma tonalidade fundamental que, por sua vez, depende da harmonia entre os quatro – um remetendo ao outro: “Tous ces sons harmoniques sont engendres naturellement, il faut y insister, par la résonance d’une seule note fondamentale qui ne peut atteindre l’un de ses harmoniques sans passer par les harmoniques intermédiaires.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.123)
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permitem o estar do homem; os quatro se dão como quadratura: as diferentes
combinações harmônicas. Torna-se possível, então, falar de tonalidade e
disposição. Neste sentido, falamos de harmonia da realidade como um todo, no
aparecer dos entes; mas também falamos da harmonia entre homens e coisas
em geral, ou seja, entre os entes como um todo, pois, do mesmo modo que os
entes são manifestação do ser, o homem também o é – a diferença é que,
enquanto os entes em geral são indício da manifestação, o homem, como Da-
sein, é indício e leitura do manifestar.
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Capítulo 3 – Poesia e pensamento – a fala da serenidade
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3.1. A linguagem, a palavra e a poesia
Na busca pelo ser, no ouvir seu apelo e na problematização de seu
sentido, Heidegger mudou significativamente o caminho que percorria.
Primeiramente, o homem como Da-sein era entedido como “local” da resposta
pelo ser; mas o autor percebeu que “os existenciais do ser-aí ainda ficavam
excessivamente ligados à cotidianidade mediana, não sendo capazes de
realizar o salto para dentro do problema do ser”.177 Em Ser e tempo, pouco
espaço foi dedicado às temáticas da poesia e da linguagem; na verdade, o
tema da linguagem foi brevemente problematizado, apenas no §34, enquanto a
poesia foi apenas citada. A situação foi alterada nas obras seguintes, quando
muito o autor falou das duas temáticas, tendo sempre a reflexão sobre a
linguagem precedendo a reflexão sobre poesia.
O tema da linguagem se dá entrelaçado aos temas do ser e do
pensamento. A linguagem do ser exige, do homem, um dizer; porém, quando o
ser passa para o dizer, a restrição deste faz com que se perca o sentido do ser,
já que o intento seria dizer o indizível. O ser se torna linguagem, no
pensamento – linguagem que vem da quietude original do indizível do ser.
Tornar dizível o indizível seria fazer o ser deixar de ser.
No entanto, para se entender como as palavras são ditas e como o dito é pensado, isso somente pode tornar-se claro e rigoroso se soubermos o que é pensado e o que necessita vir à fala.178
Do indizível vem a linguagem como aceno e toda tentativa de
acesso a este, exige do homem um salto, pois não há continuidade entre um
etendimento inicial do ser e um dizer do homem – enxergar o citado aceno é
ouvir o apelo do ser. Para que a linguagem vigore como linguagem do ser, é
preciso encontrar caminho que não se restrinja aos ditames do dizer
objetivador – como não há caminho, o salto é exigência daquilo que deve ser
pensado e necessita vir à fala.
177 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.17. 178 M. HEIDEGGER, Parmênides, p.15.
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O aceno do ser depende da escuta do homem aos apelos do próprio
ser. O aceno se dá ao homem, de modo primeiro, na consciência de que ele é
algo – é ente. A consciência de ser ente vem ao homem não por palavra de um
dizer, mas pela linguagem do próprio ser que se dá a ele; ele sabe de si por
primeiro (fora qualquer conotação psicológica) e se vê inserido na possibilidade
de saber “algo” além de si. O homem se experiencia como ente desde cedo,179
enxergando-se na linguagem do ser, mas esta consciência cai na trivialidade.
O salto indicado deve ser em direção a esta primeira experiência, indizível,
saindo do trivial do pensamento objetivador.
As ciências em geral falam sobre a linguagem, mas não da
linguagem. De quais ciências falamos? Apenas como exemplos, podemos citar
a linguística, a psicologia, a antropologia, as ciências médicas etc.; cada uma
delas tem um discurso elaborado que busca entender e apresentar o que seja
a linguagem. Na verdade, ratificando o pensar científico, elas acreditam ter a
apreensão e o domínio (quase) plenos do objeto; são diversos os edifícios
teóricos tentando exaurir o entendimento. O questionamento a ser feito é: de
onde se fala? A partir de que “lugar” se fala? Vemos que cada uma fala a partir
de si própria, sobre o objeto que é a linguagem. A ciência nunca dá o salto,
pois ela necessita da segurança de seu solo.
Dar o salto significa sair em direção a outro lugar que não o meu;
isto permite falar a partir da própria linguagem, e não apenas sobre ela. A ideia
de falar a partir do objeto não é original de Heidegger, sendo característica
própria do filosofar, que leva o homem a entender “por dentro”. O que se exige
deste homem em tal situação? Em primeiro lugar, a coragem para se lançar
dentro de algo que não se conhece e que vigora por si. Quando o homem se
179 Sem referência a qualquer definição temporal, o aceno a ser resgatado ocorreu na descoberta de si como ente, momento no qual ele percebe que existe em uma experiência ainda não dita; é experiência de corpo em um espaço, mas ainda sem qualquer definição do que isso signifique – é a pura experiência de existir que chama para a ação. Embora o problema tratado (relação corpo/espírito) e o caminho sejam outros, é o mesmo que afirma Bergson:
No entanto há uma [imagem] que prevalece sobre as demais na medida em que a conheço não apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções: é meu corpo. Examino as condições em que essas afecções se produzem: descubro que vêm sempre se intercalar entre estímulos que recebo de fora e movimentos que vou executar, como se elas devessem exercer uma influência maldeterminada sobre o procedimento final. Passo em revista minhas diversas afecções: parece-me que cada uma delas contém, à sua maneira, um convite a agir, ao mesmo tempo com a autorização de esperar ou mesmo de nada fazer. (H. BERGSON, Matéria e memória, pp.11-12)
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lança na linguagem, ele não quer discursar, mas ouvir a partir de uma
experiência que não finda – é como o exemplo da massa viva e informe que
fica no fundo do mar.180
A razão objetivadora da ciência não consegue abarcar tal âmbito da
linguagem – por conta disso é que o pensamento do sentido, pela postura de
serenidade, é que abre o caminho para um entendimento da realidade que é
diverso do habitual do homem comum. O pensador se lança; o pensamento
mostra a linguagem como dar-se/retrair-se do ser; a serenidade é mais que um
simples “estar diante de”: ela é o permitir à linguagem o mostrar a si e a partir
de si.
A linguagem fala. O que acontece com essa sua fala? Onde encontramos a fala da linguagem? Sobremaneira no que se diz. No dito, a fala se consuma, mas não acaba. No dito, a fala se resguarda. No dito, a fala recolhe e reúne tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala perdura – seu perdurar, seu vigorar, sua essência. Contudo, na maior parte das vezes e com frequência, o dito nos vem ao encontro como uma fala que passou.181
É a partir da palavra que é possível se colocar a caminho da
linguagem. É no dito que a fala da linguagem se dá, porém ela não se esgota.
Entendemos, então, que o dito não pode ser tomado como expressão da
linguagem em sua essência. Esta é a critíca que Heidegger faz à razão
objetivadora da ciência: ela toma um ponto da realidade (que é um “instante-
já”182 ou apenas o clarão deste), tradu-lo para o dizer e estabelece este dito
como verdade plena e última.
O pensamento do sentido tem o mesmo contato que a ciência tem
com o dito do instante. A ciência toma o instante como a plenitude do que pode
ser; dizendo de outro modo, a razão científica considera o instante como
180 Ver nota 44, p.44. 181 M. HEIDEGGER, A linguagem, In: CL, pp.11-12. 182 Clarice Lispector fala do instante:
Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. (C. LISPECTOR, Água viva, pp.8-9)
Vê-se a identificação do que é o próprio homem: instantes que não podem ser desconectados uns dos outros, já que há dependência para que o sucessor ocorra. O instante da roda do carro não pode ser visto apenas nele, para que se possa enxergar um acontecer de instantes que leva de um lugar a outro. Do mesmo modo, o instante da existência não diz tudo, não levando ao sentido do ser.
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superfície e profundidade daquilo que aparece (o que é possível captar do ente
é o que ele é em si). O pensamento toma o mesmo instante, mas apenas como
indicação e um modo de aparecer do ente, na espera do que ainda pode haver
de não manifesto. A ciência diz o que é o ente; o pensamento sonda o ente.
Resta-nos, ainda, falar do nomear. O homem comum nomeia
segundo a necessidade prática de seu fazer diário – podemos dizer se tratar de
um nomear instrumental; sem nomear, ele não pode dispor dos entes que
devem estar à mão para seu fazer. O mesmo homem também nomeia como
ciência: por meio dos nomes, torna-se possível tomar e catalogar os entes em
geral – apenas assim se torna possível o cálculo da razão, pois o nome
transforma o ente em seu objeto. Vale lembrar que a ciência apenas nomeia o
que é de seu interesse e se mostra dentro de sua capacidade de entendimento
(parâmetros da razão objetivadora). A palavra, no discurso comum e no da
ciência, é algo sempre disponível, pois não carece de profundidade alguma,
devendo ser clara e objetiva. A ação é puramente daquele que nomeia, como
se as palavras fossem simples crachás que devem ser atribuídos às coisas.
Mas é o poeta quem nomeia de modo original. Para nós, isto é de
grande importância, pois o deixar-se da serenidade depende, de modo
singular, do nomear como ação que faz o ente vigorar em uma palavra que
preserve a manifestação do ser no ente. No nomear poético, o esforço do
poeta está na busca da palavra que, como nome, não esgote as possibilidades
de ser do ente. Aqui, o nomear é a permissão de, no mesmo nome, nova
manifestação do ser. Por isso, a busca é incessante, é trabalho que exige
esforço, e a palavra não está sempre disponível. Esta indisponibilidade da
palavra revela sua força: nem tudo pode ser nomeado de qualquer modo. É a
espera ativa que conduz o nomear do poeta.
3.2. Poesia e pensamento
Nem sempre é possível enxergar, no homem em um dado contexto
(seu mundo), a harmonia entre os elementos que o constituem. Assim, um
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verso fora do poema pode ser o homem quando o abismo (Abgrund) que é sua
existência não pode ser expresso em seu falar. Mesmo no vazio de tal
ausência de fundamento (Grund) há apoio para a relação com o mundo, que se
dá como discurso com o ente; mas Heidegger questiona sobre qual dizer
poderia dar conta de tal experiência. Não pode ser o dizer da razão (enunciado
representativo e lógico da ciência), já que este requer constância em solo firme,
como indicamos no capítulo anterior.
O projeto de Ser e tempo não foi levado a cabo e Heidegger muda
de caminho, embora ainda na direção do ser; mas voltar-se para a poesia de
Hölderlin não foi tentativa de escapar de um projeto que não seria terminado –
a poesia foi necessidade do pensamento. O projeto filosófico de um poetar
pensante não foi tentativa de encontrar novo caminho a esmo; ou seja,
Heidegger não iniciou a reflexão sobre a poesia sem um sentido determinado
que pudesse mantê-lo no caminho do ser. A palavra poética era já entendida
como elemento para a superação da metafísica.183 “A questão que permanece
para ser resolvida se refere à possibilidade de dar conta desse abismo no qual
o homem desde sempre está inserido. Aqui, vai-se exigir um dizer mais
rigoroso e penetrante. Para captar o ‘incaptável’.”184 A reflexão heideggeriana
sobre o poético indica exatamente a busca deste dizer com rigor – a
possibilidade de “dizer o indizível” e “captar o incaptável”.
Heidegger entende que o “que se passa com o dizer poético,
acontece de forma análoga – e não igual – com o dizer pensante da Filosofia.
Numa verdadeira aula de Filosofia, não importa realmente o que é dito de uma
forma imediata, mas sim o que é calado neste dizer”.185 Esta ideia traz
elementos importantes para se pensar a relação entre filosofia e poesia.
Um primeiro ponto a ser frisado, é com relação à escrita da palavra
“Filosofia” com letra maiúscula:186 não se trata de “qualquer filosofia”, como
algo simplesmente trazido na forma de uma das manifestações de ideias na
história do pensamento ocidental (lembremos o objetivo de “destruição” da
183 Cf. B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.135. 184 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.41. 185 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.47. 186 Considerando-se que, em alemão, todo substantivo é escrito com letra maiúscula, a tradução portuguesa dá ênfase ao sentido do que disse o autor.
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história da ontologia tradicional). A Filosofia à qual, aqui, o autor se refere se
trata do “dizer pensante” – é propriamente aquilo que chamou de “pensamento”
ou “pensamento meditativo”.187
O raciocínio serve também para a poesia. Do mesmo modo como
Heidegger entende que a Filosofia não pode ser simplesmente encontrada no
dizer de qualquer filósofo, a poesia (diríamos “Poesia”) não pode ser
identificada com o dizer de todo poeta. Aquilo que o autor chama de “poesia
genuína” é algo que deve ser buscado insistentemente na fala dos poetas;
dizendo de outro modo, significa que nem todo poema leva verdadeiramente à
essência do que seja a poesia:
... travar conhecimento com um poema, mesmo que vá aos mais ínfimos pormenores, não significa ainda estar na esfera de poder da poesia. Pois temos de superar o poema enquanto um trecho meramente existente. O poema tem de se transformar e de se evidenciar enquanto poesia.188
O caminho sobre o qual foi construída toda a filosofia heideggeriana
é o da busca pela existência (adjetivemos como “efetiva”) que se dá pelo ser. O
ser se revela e o autor buscou indicação de tal revelação – primeiramente, no
próprio homem e, depois, na linguagem do existir dos entes. Filosofia e poesia
tratadas como vizinhas são exatamente as que estão em perene vigia,189 na
espera da revelação do ser. Apenas com estas especificações, é possível falar
de uma relação entre elas.
Filosofia e poesia são dizeres. O dizer não se identifica com “palavra
dita, escrita ou falada”, mas trata-se de um mostrar. Deste modo, filosofia e
poesia são dizeres no sentido de mostrarem algo – no caso, a revelação do ser
(indícios, acenos, rastros). O entendimento que se tem destes dois dizeres não
187 A distinção feita entre filosofia e pensamento é marca singular no segundo Heidegger: de modo geral, a filosofia é a fala da tradição, é o falar sobre o ser, enquanto o pensamento é o ouvir o apelo do ser – que tem também o dizer como consequência. Analogamente, Foucault busca conceituar um tipo de reflexão que se volta para a verdade e que difere do projeto tradicional da filosofia, que ele chamou de “espiritualidade”. Muchail afirma que “Foucault e Heidegger, cada um a seu modo, encontram na Antiguidade grega as origens deste vínculo: as práticas da espiritualidade (ou as experiências de pensamento), em suas formas variáveis, não se dissociam dos atos filosóficos”. (S.T.MUCHAIL, Transversal: entre Heidegger e Foucault, pp.98-99) 188 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.28. 189 A vizinhança, na verdade, apenas vem pelo mesmo posicionamento de vigília constante: “La possibilité du dialogue entre pensée et poésie tire son origine de cette vigilance”. (B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.142)
- 125 -
pode, então, ser resumido (simplificado) no fato de ser o homem a expressar
algo, pois o centro não é o homem, mesmo que seja ele quem diz. Filosofia e
poesia são caminhos pelos quais o homem pode chegar à experiência do ser
(que, “no pensamento, se torna linguagem”190); mas também, de modo inverso,
ambas são caminhos pelos quais chega o ser ao homem – elas são o mostrar
do ser. “Pensar e poetar são duas modalidades de dispor o pensamento a
serviço da linguagem, duas maneiras de habitar po(i)eticamente a
linguagem.”191
O ser se dá em linguagem de ser – ele o faz independente de ser
assumido pelo homem, dedique-se ou não este ente à sua questão. Mas é
apenas este ente o que tem condições de se voltar para o ser, ouvindo seu
apelo; neste sentido, apenas o homem está na abertura da existência. A
compreensão de uma completude do existir é “algo além” da experiência
humana, o que nos leva a entender que sua linguagem não é de qualquer
modo compreensível para o entendimento comum de racionalidade.
Expressando de outro modo, a tentativa humana de enquadrar o ser em um
dizer dirigido pela razão (entenda-se: no modelo técnico-científico) não pode
ser vista como efetiva via de acesso.
Para tentar alcançar o ser, o dizer humano deve deixar o ser se
mostrar nas coisas que são. Filosofia e poesia, no caminho do ser, são um tipo
de dizer que se realiza como um ouvir – é um falar que se expressa também
como um calar (“aquilo que é calado neste dizer”). Poesia e pensamento são
vias diferentes pelas quais a experiência do ser se torna linguagem – tal
experiência é única.
3.3. Poesia – da experiência do mundo para o acontecimento no mundo
Tratar de temáticas que fazem referência à poesia acaba por levar o
leitor para um caminho pré-começado. Mas de qual leitor falamos e o que
190 Cf. M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p.24. 191 O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.46.
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entendemos por “pré-começado”? Não fazemos distinção do leitor – é
simplesmente o homem, pois, diante da poesia, do modo como aqui a
tratamos, todo homem é leitor comum. Afirmamos isto, no intuito de indicar que
o poético ainda é desconhecido. Costumeiramente, fala-se de “poema”,
“poesia”, “poético”, como se fossem conceitos claros e evidentes. Na verdade,
entende-se que sejam, pois o leitor comum concretiza tais conceitos com a
ideia de “coisa escrita” – de modo simples, seria a concreção, em forma de
palavra, da vivência de um sentimento.
Em tal caminho, o leitor comum fica na superfície de uma imagem
criada, da fantasia; para ele, a fantasia do poema é semelhante à da invenção
infantil. Não queremos desconsiderar a poética que se dá na infância, pois bem
sabemos que a vivência infantil é poética de modo original, na experiência do
aparecer das coisas no mundo. Cabe até mesmo nos perguntar, já que
tratamos da serenidade, se não seria a serenidade uma característica da
vivência de mundo infantil, que não é preocupada com a submissão dos entes.
Pode até ser; porém, a palavra infantil não alcança de modo pleno a
profundidade do condensamento – a experiência pode ser intensa, mas a
palavra ainda é leve. Com tudo isso, queremos dizer que o homem tem um
caminho pré-começado na poesia, mas ele se perde na “razão adulta”, que
calcula e avalia possibilidades.
O leitor comum segue pelo caminho pré-começado pela experiência
da infância – experiência “original” – que ficou na palavra infantil. E o poético
acaba reduzido à poesia escrita que fabula um mundo de sonhos: é tomada
como experiênica literária de homens que souberam se utilizar da linguagem
de modo belo, mas que nem sempre toca a realidade. Com a filosofia
heideggeriana, a proposta é outro modo de enxergar a realidade e, assim,
entender a poesia. A poesia tem um aspecto fantasioso, mas que não é como a
fantasia da criança – o fantasioso do poético que aqui tratamos é o
condensado de uma possibilidade diversa dos parâmetros do leitor comum.
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Dichtung é a experiência poética de mundo.192 Dichten é o verbo
“poetar”, mas também “condensar”. O questionamento que se nos aparece é:
como ligar a ideia de “condensar” à experiência infantil e, em seguida, à
experiência do poeta?
O poema fala de algo que o poeta ouve da realidade. Para este
ouvir, é preciso que o poeta esteja aberto a uma experiência diferente daquela
do homem comum, principalmente porque este foge do vazio, acabando por
fugir também do próprio sentido; o homem comum se abriga em conceitos e
concepções prontas. A experiência do poeta é radical, no sentido de que ele
está posto diante da realidade, em espera ativa, disposto a enfrentar a verdade
que lhe vier, sem refúgio. Já que o poeta não se pauta naquilo que está pronto
e definido, ele tenta fazer com que as palavras existentes expressem sua
vivência, ou seja, o que ele ouviu. Porém, as palavras já seguem uma pré-
determinação de como podem responder à necessidade humana. Aí é que o
poeta subverte a língua, para que ela seja expressão da verdade do ser; deste
modo, a língua é a mesma, mas o significado é outro. Uma única palavra que
pode ser de simples entendimento ao homem comum se transforma em um
condensado da experiência humana nas mãos do poeta.
A experiência infantil é densa, mas ela dispõe de termos que são
insuficientes para se expressar. Na passagem do infantil para o adulto, o
homem se enriquece enquanto vocabulário, mas empobrece enquanto
experiência com a palavra. A criança tem poucas palavras à mão, mas elas
ainda são fluidas no poço de onde vêm; o adulto dispõe de muitas palavras,
mas ele já as tem como endurecidas em definições que servirão para a razão
que calcula.
Neste caminhar, poderíamos dizer que a experiência de mundo na
infância é legítima experiência de serenidade? Não nos arriscamos a fazer tal
192 Werle indica que
A poesia enquanto Dichtung possui uma abrangência de conteúdo muito maior que a poesia enquanto Poësie, pois esta perfaz somente um setor “ôntico” literário da Dichtung, que, por seu lado, sempre envolve toda a produção relativa à arte e à sua essência como abertura de mundo. Dichtung provém de dichten: “aproximar”/ “juntar”/ “fabular”, no sentido do caráter poético imanente à postura humana fundamental diante da abertura de mundo. (M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.25.)
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afirmação, mas percebemos que tal época da vida do homem é indício de que
a serenidade apresentada por Heidegger dá sinal de sua possibilidade, ainda
que de modo incipiente.
Ouvir o que diz Heidegger abala a crença do leitor comum; é a
tentativa de ir além do comum: é tentar ouvir o que o autor ouviu.
Na medida em que o aberto é experienciado por Rilke como o inobjectivado da Natureza plena, o mundo do homem que quer surge-lhe em oposição, necessariamente e de modo correspondente, como sendo o objectivado. Ao invés, um olhar sobre a totalidade íntegra do ente é susceptível de observar, a partir da invasão do progresso técnico, de que lado poderia surgir uma ultrapassagem da técnica, portadora de mais originalidade.193
Por meio da linguagem (falada, escrita ou muda) é que o homem sai
de si em direção ao mundo, sai do ente e se reconhece como Da-sein em
direção ao ser, podendo testemunhar sua existência como acontecimento. Não
estando presa a um determinado modo de enquadramento da realidade, a
poesia se mostra como abertura da linguagem para aquilo que se manifesta ao
homem.194 Neste sentido, o que aparece para o homem tem condições de ser
expresso por uma palavra que não intenta esgotar a manifestação em um
modelo de racionalidade. A noção de que as coisas podem – e devem – ser
esgotadas em suas possibilidades é algo diretamente ligado ao modelo de
razão científica que, de algum modo, estende-se para o pensar do homem
comum.
Quem diz a poesia não é o homem comum, nem o homem da
ciência, mas o poeta. A este, cabe um estar diante das coisas que não apenas
fala, mas que ouve e lê o mundo na linguagem do próprio ser. O dar-se do ente
nunca é o mesmo, mostrando-se, a cada mirada, em nova manifestação do
ser; assim, o ver do poeta nunca é estático.
É interessante o poeta em seu fazer, pois ele será tanto maior poeta
quanto mais desaparecer em sua poesia – trata-se da autonomia que esta
ganha em relação a ele. “A grandeza de uma obra consiste, na verdade, em
193 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.334. 194 “Manifestação” é sempre “ao homem”, considerando-se se ele o único ente com a possibilidade de estabelecer relação com os demais entes e, assim, com o próprio ser.
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que o poema pode negar a pessoa e o nome do poeta”.195 Esta afirmação de
Heidegger nos leva a questionar sobre o que resta após o poema, com a
negação do poeta. Somos remetidos a outra ideia que já indicamos
anteriormente, sobre a fala da linguagem: no poema, é a língua (como
expressão da linguagem) que fala nas palavras do poeta; o que resta é o que
foi expresso com tais palavras.
O poeta não poetiza para aparecer, mas para que uma necessidade
seja satisfeita – necessidade da linguagem, que chama o homem para a
expressão. Isto ocorre não apenas com o poema, mas com toda obra
artística.196 O modo como Heidegger entende o poeta, em seu poetar, permite-
nos falar da poesia como discurso singular que funda mundo em um espaço
entre duas realidades, a saber, a dos divinos e a dos mortais.
Com a poesia, enquanto fala original, abre-se a possibilidade para
nova experiência histórica do homem – trata-se de fazer acontecer um novo
começo na mesma grandiosidade do que ocorrera com os gregos pré-
socráticos. No poetar, o pensamento – que, comumente, volta-se totalmente
para o mundo como conjunto de entes-objetos – tem sua direção invertida para
si próprio, na busca de um acontecer do tempo originário. Neste sentido, a
poesia de Hölderlin é histórica, não como algo que toma os acontecimentos
como historiografia, mas como o que devolve o homem para um acontecer
originário que inicia o próprio tempo.
O que Heidegger propõe é um pensamento que dá espaço à
interpelação do ser – este, que deixa de ser um objeto pensado por um sujeito.
O ser é o acontecer de um desocultamento que se dá na abertura da clareira
onde seus acenos podem ser vistos. A apreensão deste acontecer se dá
poeticamente, na postura de escuta ativa da serenidade.
Si no se piensa el ser a partir del sujeto, esto es, como una realidad objetiva, sino en el sentido de un acontecer, de un desocultamiento en el que nosotros estamos implicados en tanto que sujetos, entonces un pensar que meditara en este desocultamiento debería embarcarse en un proceso de
195 M. HEIDEGGER, A linguagem, In: CL, p.13. 196 No prefácio de sua famosa obra, o escritor inglês Oscar Wilde escreve, no mesmo sentido: “Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte.” (O. WILDE, O retrato de Dorian Gray, p.5)
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experiencia que, como en la experiencia mística, condujese más allá o, mejor, al interior de sus relaciones mundanas objetivas. La experiencia deja de significar entonces la acumulación de contenidos objetivos que dispersa nuestra atención en distintos campos de objetos, y es, por el contrário, una concentración y un recogimiento meditativos que permiten que la interpelación del ser llegue al habla desveladamente y libre de las determinaciones que nuestras representaciones le confieren (...).197
A experiência que o homem realiza do mundo é sempre individual,
pois, mesmo que ele compartilhe o mundo com outros homens em um mesmo
tempo/espaço, não há como compartilhar uma experiência. Cada homem pode
falar de sua experiência e, no todo, podem ser buscados pontos comuns, mas
a experiência em si não é partilhada. Porém os parâmetros, segundo os quais
os homens interpretam a experiência, são padronizados, seguindo os ditames
da razão científica objetivadora. É como se houvesse compartimentos dentro
dos quais o homem devesse depositar sua experiência esmiuçada – o que faz
com que ela nunca seja experiência de totalidade do homem no mundo. A
experiência é uma e una, mas passa a ser dividida nos compartimentos
disponíveis – muitas vezes, ela nem se dá, mas é provocada e dirigida. E a
vida segue o ritmo “normal”.
Dar espaço à interpelação do ser é permitir um rearranjo da
experiência humana, que não mais tem de ser enquadrada nos parâmetros
vigentes – significa, para o homem, ter a experiência do ser como um todo, que
se dá como existência. No espaço aberto, como uma clareira na floresta, o ente
se dá na totalidade que é recebida como totalidade. Não há palavra para o
acontecimento, como experiência plena do ser – do mesmo modo como não há
palavra para o mistério da palavra;198 não é possível um entendimento lógico-
racional, pois a compreensão se dá apenas pelo poético.
Ponto importante a observar na última citação é a referência à
experiência mística. Diferentemente de qualquer vivência religiosa instituída, o
místico realiza uma experiência direta com o mundo, sem intermédio que não
seja uma compreensão aberta de recepção. O místico se enxerga como
197 V. RÜHLE, La temporalidad de la experiencia, In: F. DUQUE, Heidegger: sendas que vienen, p.305. 198 Ver capítulo 1 (pp.76-90).
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clareira na qual a existência se dá como mundo, na qual o mundo aparece; ele
não necessita da palavra, pois é experiência solitária. Neste sentido é que
entendemos ter o poeta uma vivência mística com o mundo, porém, com ele,
há um chamamento do mundo à expressão do ser como linguagem, em
palavra.
A partir de sua vivência, Hölderlin fala de um tempo indigente – há
uma falta, mas o homem não se dá conta dela. Deste modo, há muito que é
posto no lugar do ausente, não como preenchimento, mas mascaramento. É
como distração, para que não se perceba a indigência e o homem, cheio de si
e de seus méritos, continue no vazio de sentido que, por sua vez, é o
empobrecimento do existir humano: o homem está no mundo, deseja algo
melhor, acredita agir para tal conquista, mas se entrega sempre mais a uma
escravizante concepção de dominação do mundo. O homem escraviza, mas,
na verdade, ele mesmo é escravizado pela exigência de exploração do mundo.
O apelo de Hölderlin, colocado por Heidegger como apelo do ser ao
homem, é para que se constate a possibilidade de outro estar no mundo, pleno
em sentido; mas, antes, é preciso saber que é a libertação do ente que
promove tal novo estar – será possível quando o homem habitar a terra de
modo genuíno, poeticamente. O poeta não é entendido como um tipo de
salvador, pois isto seria entendê-lo como o que traz em si mesmo a solução
para a situação como um todo. O poeta é um libertador das palavras, tirando as
amarras que dão aparência de segurança; ele abre caminho para uma solução
que depende do pensamento como ação de cada homem. A libertação da
palavra leva à proposta de um novo pensar, pois desestrutura o pensar vigente.
O tempo da indigência é o apagar do brilho da divindade no mundo
do homem – não como um deus personificado, mas como o sagrado de existir
que transcende o viver individual. O saber de algo que há, além da experiência
possível, é a constatação da transcendência. O poeta faz vigorar a
transcendência ao parar diante do indizível; ele enfrenta a falta da palavra. O
homem comum, crente na razão científica, entende este parar como fraqueza,
já que se habituou com a ciência, que “tem de poder falar” de tudo. O poeta é,
na verdade, o que se faz forte e caminha até o abismo da falta da palavra. O
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poeta é forte porque recebe nas mãos os raios do deus “com a cabeça
descoberta”;199 o fazer poético é a tradução do poder do sagrado. O poeta
afronta, pois perceber e enfrentar a indigência é perigo para o poder da razão.
3.4. A medida da ciência e da poesia
Conhecimento, controle e dominação caminham juntos no fazer da
ciência. O homem, em última instância, reflete e desenvolve pesquisas com a
finalidade de conhecer puramente a realidade, mas, acima de tudo, há o desejo
de fazer do mundo simplesmente o “mundo humano”. Para tanto, as coisas
devem estar adequadas àquilo que se objetiva construir: tudo deve obedecer
aos ditames da razão que se instrumentaliza por meio da técnica – as
ferramentas de intervenção são cada vez mais poderosas e eficazes. Ainda,
por conta do que se conquista com a tecnologia, em muitos sentidos, o desejo
puro de desenvolver cada vez mais os aparatos tecnológicos sobressaem ante
a realização humana.
De modo geral, o homem explora as coisas e forja o mundo dos
entes, acreditando conseguir, assim, estabelecer o seu domínio, aquilo que é
próprio de si. Porém, ocorre que, em uma sede desmedida, o mundo forjado
não dá chances para que o homem seja si mesmo e se realize essencialmente;
o homem se perde em meio aos entes e, com isso, perde o ser. Ao invés de se
debruçar sobre as coisas em seu aparecer, no intento de compreender a
existência e seu lugar nela, o homem busca o ente pelo ente e nada mais200.
E por que este homem não muda seu caminho? Por que não toma
outra direção, já que muitos problemas que enfrenta201 podem ser entendidos
199 No poema Assim como em dia santo..., Hölderlin indica: “E por isso bebem fogo celeste agora / os filhos da terra sem perigo. / Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus, / ó poetas! permanecer de cabeça descoberta, / e com a própria mão agarrar o raio do Pai, / o próprio raio, e oculta na canção, / oferecer ao povo a dádiva celeste.” (M. HEIDEGGER, Explicações da poesia de Hölderlin, p.63) 200 Ver nota 158, p.108. 201 Foltz afirma: “Há já algum tempo, tem sido generalizadamente aceite que a nossa relação característica com o ambiente natural resultou numa degradação tão extensa do último que a sua capacidade de suportar a habitação humana no futuro pode estar criticamente ameaçada”. (B. FOLTZ, Habitar a terra, p.21.)
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como consequência de uma deturpada compreensão de mundo? Isso pode ser
explicado, pensamos, por uma falsa sensação que advém de certa noção de
controle que a dominação alcançada traz. O homem pensa que pode tudo
controlar e dirigir o todo do ente em suas manifestações. Para estabelecer este
controle “pleno”, é necessário que se estabeleça um modo de avaliar que, por
sua vez, exige um parâmetro, um modelo.
Para o que indicamos, de modo geral, como controle e dominação,
foi preciso estabelecer uma medida. Na verdade, diversas medidas, nos
diversos âmbitos do conhecer e da atuação humanos; acima das medidas
estabelecidas, está o entendimento do que seja propriamente a mensuração.
Sem medida, um juiz não julga, um biólogo não cataloga e um médico não
cura; vale reforçar que os mesmos atos de julgar, catalogar e curar ocorrem
para o homem comum, porém sob outros padrões.
O ato de medir permite classificar as coisas; a partir disso, é possível
julgar, tomando-se um padrão de comparação. Este conjunto de ações traz ao
homem a segurança de poder estar em uma realidade controlada por si, dentro
da qual nada poderia escapar e atrapalhar seus planos. Mas a medida
estabelecida está, ainda, dentro do âmbito da racionalidade tradicional,
entendendo haver nas coisas, apenas o que é mensurável. Heidegger indica
haver “algo além”, pois nada se apresenta em sua totalidade ao homem,
podendo, a cada vez, mostrar algo novo de si.202
A busca pelo ser, expressa na filosofia heideggeriana, de ponta a
ponta, revela a necessidade de que o padrão de racionalidade seja revisto.
Neste sentido, a própria medida acaba questionada, pois, o ato comumente
aceito como “medir” está sob tal padrão, com as regras ditadas por ele. Desde
muito tempo, o homem mede apenas aquilo que ele mesmo define como
mensurável, ou seja, ao que obedece ao padrão racional. Tomando-se a
proposta heideggeriana de um novo pensar meditativo que vai além do pensar
calculativo, questionamos: o “algo além” da experiência da razão (esta, que
202 O entendimento do ser como o que se dá e se retrai faz com que os entes se mostrem não estáticos em seu aparecer.
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nomeia dentro de suas regras), pode ser medido de alguma maneira? E,
dizendo de modo mais desafiador: é possível medir o incomensurável?203
Heidegger entende que sim, interpretando Hölderlin: de modo
singular, a poesia se revela como o caminho para que o homem meça o
incomensurável. Na verdade, o poema mostra a linguagem em uma expressão
que não simplesmente traduz uma experiência racional, mas abre o mesmo
homem para a experiência das coisas em seu fugir (retirada do ser). “Para
captar o ‘incaptável’ [Abgrund] faz-se necessário, (...) o dizer poético, que
sempre está acima do dizer dos mortais comuns”.204
Duas indicações feitas pelo pensador, trazemos aqui como
significativas: a de que é preciso destruir (desconstruir) a metafísica da
tradição,205 para que nova concepção possa se dar e seja possível a chegada
ao ser, tendo o homem (Da-sein) por caminho; outra é a de que a linguagem
deveria ser revista206 para que estivesse de acordo com o que exigia o projeto.
A linguagem é o caminho (e não mais o homem) que leva à experiência do ser;
“[a] linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia e se esconde”.207
Por que a linguagem poética é caminho? Pois ela difere
essencialmente do que são as linguagens comum e científica (não igualamos
estas duas; ocorre que a linguagem comum, em grande medida, segue o que é
proposto – ou imposto – pela científica). Tendo como fundamento a
racionalidade em sua concepção tradicional, a linguagem científica não
expressa algo diferente do cálculo da realidade. Enquanto a ciência busca
adequar a realidade à sua linguagem, a poesia apresenta uma linguagem
“aberta”, que consegue abarcar a realidade em suas manifestações. A
linguagem poética se entrega para que a linguagem do próprio ser vigore.
A linguagem do ser é o incomensurável. De diferentes modos, a
poesia faz viger a existência e, assim, o ser – no pensamento, o ser vige como
linguagem. Em Hölderlin, o “poeta dos poetas” (Dichter des Dichters), 203 “Incomensurável” é aquilo que não se enquadra na medida estabelecida pela razão. 204 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.41. 205 Cf. HEIDEGGER, Ser e tempo, §6. 206 “Libertar a linguagem da gramática, para um contexto Essencial mais originário, está reservado ao pensar e ao poetizar”. (Id., Sobre o humanismo, pp.25-26) 207 Ibid., p.45.
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Heidegger encontra o poetar sobre a poesia e sobre o próprio poetar – o que
abre as portas para a essência da poesia, cujos elementos foram indicados
pontualmente em Hölderlin e a essência da poesia.
Para refletir sobre o tema da medida, tomamos, de maneira singular,
o poema In lieblicher Bläue... – no português, traduzido como “No azul
sereno...”208 – de modo especial, os versos:
Tanto mais simples as imagens, mais divinas, a ponto de muitas vezes realmente se temer descrevê-las. Os celestiais, porém, que são sempre bondade, tudo ao mesmo tempo, como reinos, possuem essa virtude e alegria. Isso o homem deve imitar. Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida, levantar os olhos e dizer: assim quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto ao coração a amizade, Pura, o homem pode medir-se sem infelicidade com o divino. É deus desconhecido? Ele aparece como céu? Acredito mais que seja assim. É a medida dos homens. Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra. Mais puro, porém, do que a sombra da noite com as estrelas, se assim posso dizer, é o homem, esse que se chama imagem do divino. Existe sobre a terra uma medida? Não há nenhuma. É que os mundos do criador jamais inibem o curso do trovão.209
No trecho, o poeta fala diretamente sobre a medida e a pergunta que
fazemos é se há ou não uma medida sobre a terra. Há indicações claramente
diversas, pois é dito que “o homem pode medir-se” e “[é] a medida dos
homens”; mas, adiante, temos que “[n]ão há nenhuma [medida]”. Na reflexão,
algumas ideias se nos apresentam de modo mais incisivo:
1. O simples é expressão do divino e o homem dele pode
falar apenas enquanto pureza.
208 Cf. M. HEIDEGGER, EC, pp.254-259. O texto é apresentado de forma bilíngue e, não considerando a questão de que uma tradução é já interpretação do tradutor, temos de indicar haver erros crassos na reprodução do texto em alemão – para a temática deste nosso estudo, o mais significativo foi a supressão de um pequeno trecho, especificamente o que fala do imitar: onde se lê “Der Mensch / Aufschauen, und sagen: so / Will ich auch seyn?” deveria constar “Der Mensch darf das nachahmen / Darf, wenn lauter Mühe das Leben, ein Mensch / Aufschauen, und sagen: so / Will ich auch seyn? ”. 209 Ibid., pp.255-257.
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2. Descrever é medir; por isso, há temor em descrever o
simples.
3. O homem deve imitar – isso é o medir-se com o divino.
4. O divino aparece como céu – eis a medida.
5. Sobre a terra não há medida.
O simples é característica do divino. O que se nos apresenta é a
ideia de que o divino, por ser simples, é justamente aquilo que se dá ao homem
sem exigir instrumentos racionais que lhe permitam ser conhecido. Na verdade,
a exigência é contrária: é preciso se desfazer dos instrumentos racionais para
que o simples possa se mostrar no que é, sem classificação. Significa saber
daquilo que se dá por primeiro na experiência do mundo, mas que o homem
não consegue “enxergar” com filtros.
Na percepção do simples que se dá, a ação de traduzir tal
experiência (descrever) não é trivial, pois, considerando-se ter a razão dado
espaço para o aparecer, ela agora é retomada para transmitir o vivenciado.
Descrever é já um medir que toma as palavras em determinada concepção; a
ciência, por exemplo, é a tradução/descrição do mundo que pretende ser a
máxima expressão da razão e, assim, da verdade. Há temor em descrever o
simples – e por quê? Simplesmente por não haver certeza de que se consiga
abarcar o vivenciado de um modo total, no que ele é; a questão não é sobre
possibilidade/impossibilidade de descrever, mas sim sobre certeza/incerteza. A
impossibilidade seria já uma certeza; mas o que causa temor é a incerteza do
que se pode alcançar na descrição. De certo modo, é arriscar fazer o simples
perder sua simplicidade.
O simples, que é próprio do divino, mostra-se como o que deve ser
imitado. O texto diz que “[i]sso o homem deve imitar” (darf das nachahmen). O
homem deve querer ser como os celestiais, medir-se com os divinos. Imitar é
tomar uma medida, mas, neste caso, não com o que é próprio do homem, mas
com aquilo que é dos celestiais, a saber, a simplicidade – as imagens são mais
divinas (heilig) quanto mais simples (einfältig) forem. “Imitar” tem um
correspondente alemão de origem latina: imitieren; porém, temos no poema o
verbo nachahmen que, etimologicamente, indica de modo mais direto a ligação
- 137 -
que tem com o ato de mensurar: ahmen vem de āmen que, por sua vez, é
ausmessen “mensurar” e o prefixo nach dá a ideia de “aproximar-se” ou “ir em
direção a...”; disso, temos que nachahmen está no sentido de nachmessen.210
Imitar é mensurar.
O pleno de simplicidade – o divino, em sua essência – aparece
como céu; a medida do ser do homem deve vir deste simples. O poema indica
que o céu faz com que o oculto se mostre, o ausente se torne presente e o
negativo, positivo. Heidegger diz:
O que é a medida para o medir constitutivo do homem? Deus? Não! O céu? Não! O aparecer do céu? Não! A medida consiste no modo em que o deus que se mantém desconhecido aparece como tal através do céu. O aparecer de deus através do céu consiste num desocultamento que deixa ver o que se encobre [...,] no sentido de resguardar o que se encobre em seu encobrir-se.211
Mensurar significa perceber que o deus se mostra como céu, mesmo
não sendo o céu. O céu revela a presença daquilo que está em ocultamento;
porém, “revelar a presença” não significa, ainda, desnudar – o deus não está
desnudo (ou poderíamos dizer “transparente”), mas está lá. A medida é, assim,
saber deixar o velado em seu velamento, porém com a indicação, o traço ou o
rastro de que ele está lá. Para o pensamento comum do homem, “medir”
deveria ser entendido como “delimitar”; mas, agora, o medir aparece como uma
abertura, ao invés de delimitação. Estabelecer a medida (e, a partir dela, a
mensuração do mundo) relaciona-se à concessão de uma liberdade para que o
mundo se mostre no que é. Resta clara a oposição com a medida científica.
Pelo exposto, chegamos à ideia de que não há medida sobre a terra.
A medida pode ser encontrada pelo céu que remete para o deus, que, por sua
vez, está oculto. Quando o homem se volta apenas para esta terra – seu
mundo – o que se dá é a tentativa de cercear o aparecer das coisas para que
cumpram apenas o que lhes for permitido pelo desejo humano. Sobre esta
terra, não há medida, pois, a ciência – que se propõe como o medir verdadeiro
e, assim, caminho para a verdade – é um medir do homem para si próprio. O
210 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch. 211 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.174.
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homem, neste caminho, não descobre o mundo em seu manifestar, mas sim
sua própria imagem refletida (forjada) no mundo. Enquanto a medida tomada
do céu é a possibilidade de que o homem faça as coisas aparecerem, a ciência
é a medida tomada do homem, fazendo com que as coisas o imitem (no
sentido de nachahmen, o científico tenta fazer com que o mundo vá em direção
– nach – ao homem, tomando este como medida – ahmen).
A ciência não permite tomar o céu como medida; os méritos
alcançados pelo homem em seu fazer mundo não lhe dão a possibilidade de
tomar a medida do céu, pois, como indicado, a ciência é medida humana. A
pergunta que fazemos é sobre como poderia este homem tomar a medida fora
– ou além – daquilo que é seu limite de mensuração. Porém, o poeta já indica o
caminho e Heidegger se debruça sobre ele: apenas poeticamente é possível
alcançar a medida – é o que permitirá a habitação do homem nesta terra.
O habitar poético, ao invés de arrancar o homem da terra, na
verdade lança tal ente na terra – ‘nesta’ terra. Heidegger diz que a poesia “não
sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela.
É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um
habitar”.212 De que modo pode ser pensado o dar-se do ente, então, para que
somente o poético faça o homem, verdadeira e genuinamente, ‘criar raízes’
nesta terra? O poético, mais que falar do mundo, propõe uma escuta daquilo
que é a linguagem do ser; é o próprio receber o mundo naquilo que ele se
mostra e entender-se (o homem) como parte de uma mesma realidade – o fato
de ser ente. O poético pode ser entendido como “a revelação primordial do
significado”;213 é na construção do sentido que o homem consegue habitar.214
O mundo da poesia é singular: é o mundo entre homens e deuses; é
o mundo do lançar-se do homem; é o mundo do projetar-se. No tempo da vida
humana, o mundo instaurado pelo poeta é aquele que permite ao homem um
modo de estar na finitude, sem cair no desespero diante do deixar de ser. Isto
porque, talvez, o poético seja o que verdadeiramente sustenta o próprio
212 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.169. 213 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.190. 214 Cf. M. HEIDEGGER, Op. cit., p.169.
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habitar215. O mundo do poeta não é a poesia, mas aquilo que a poesia mostra,
instaura.
Ser homem é ser mortal. Segundo Heidegger, o homem apenas se
reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante
desta terra, medindo a si próprio diante dos deuses. É no espaço entre divinos
e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está entre. “O divino é a ‘medida’
com a qual o homem confere medida ao seu habitar”;216 e este mesmo homem
pode até deturpar tal modo de medir, porém nunca pode se furtar a ele, pois é
este ‘entre’ que sustenta o habitar – é medida ‘estranha, perturbadora e
desconfortável’ para o viver cotidiano. O poético significa estabelecer este
‘lugar’ de morada dos mortais.
Na poesia, acontece com propriedade a tomada de uma medida. No sentido rigoroso da palavra, poesia é uma tomada de medida, somente pela qual o homem recebe a medida para a vastidão de sua essência. O homem se essencializa como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser capaz da morte como morte. Somente o homem morre – e, na verdade, continuamente, enquanto se demora sobre esta terra, enquanto habita. Seu habitar se sustenta, porém, no poético.217
É no espaço aberto pela poesia – o ‘entre’ céu e terra – que o
homem pode estabelecer contato de modo genuíno com seu Da-sein. Significa
habitar humanamente: o homem percebe seu existir como travessia, que o leva
para uma plenificação como mortal. O outro do humano é o divino, o celestial, e
o medir é justamente o colocar-se diante da realidade não como quem dita,
mas como quem recebe o que é ditado; esta é ‘a’ experiência singular e
originária, e
quem leva adiante essa experimentação original do mundo e produz uma linguagem originária, é o poeta. As formas de expressão são múltiplas, os estilos mudam no tempo histórico e no espaço cultural, as teorias de interpretação seguem as modas, mas o fenômeno do poetar-pensante é um fenômeno que acontece no processo de criação artística. Onde há arte no sentido de um fazer criativo, acontece a linguagem poética, enquanto linguagem hermenêutica. Linguagem que ao mesmo
215 Cf. M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.166. 216 Ibid., p.172. 217 Ibid., p.173.
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tempo capta, presentifica numa imagem, numa forma, numa palavra, a mensagem.218
O poetar é o fazer a palavra se libertar da medida humana, ao ponto
de conseguir alcançar a medida do céu – o pensador afirmou que, na poesia,
“acontece com propriedade o que todo medir é no fundo de sua essência”;219 é
tomada de medida (ausmessen) que nos leva a nachahmen. A poesia,
enquanto medida, é imitação – ou abertura para uma imitação. No poetar, o
homem pode se abrir para uma nova relação com o mundo e, então, habitar.
Se queremos compreender a natureza na sua primordialidade, o nosso pensamento tem que começar com o encontro poético da natureza. Concretamente, pensar – ao contrário da ciência – deve sempre proceder de uma habitação que repouse sobre a terra que está sob os céus, de uma habitação que seja autenticamente poética.220
3.5. Para que poetas e pensadores?
O poeta sempre fala; ele diz do mundo aquilo que seu olhar
proporciona. Tal olhar é o que difere o poeta dos outros homens; porém, no
mesmo caminho, este olhar é o que aproxima o poeta do pensador – ambos
põem o mesmo mundo diante de si. Ainda assim, este “por” o mundo não
significa “dirigir” o mundo para que apareça de tal ou tal modo; trata-se mais da
direção/correção do olhar.221 Esta correção é, além da mudança do “lugar para”
onde se olha, é mudança do “lugar de” onde se olha
Mesmo com toda aproximação, poeta e pensador não são o mesmo:
seus dizeres são diferentes. O que os aproxima é aquilo que têm diante de si: a
mesma realidade que fala a linguagem do ser. A razão calculadora (modelo
científico) enxerga a realidade como superfície plana que pode ser
218 L. HÜHNE, O poetar pensante, p.80. 219 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.173. 220 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.103. 221 Esta ideia toca diretamente tema apresentado por Heidegger em Platons Lehre von der Wahrheit: a correção do olhar passou a ser entendida como essência da verdade. Com a mudança da essência, muda o lugar da verdade, pois o desvelamento é algo que ainda pertence ao ente (em seu mostrar-se) enquanto a correção é algo que pertence ao homem (como aquele que se põe diante do ente).
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simplesmente “descrita em suas leis”; o que falta é sair da superfície para
adentrar no ser das coisas.222
Em O que quer dizer pensar?, é apresentada a ideia da necessidade
de que se aprenda a pensar.223 O pensador não é o detentor do conhecimento
ou plena capacidade de pensar, mas aquele que se põe a caminho, nas vias do
pensamento. E o pensamento não ocorre efetivamente caso não esteja no que
seria seu “meio próprio”, retomando a analogia de apenas ser possível nadar
efetivamente em um meio próprio, a água. O pensador é, então, aquele que,
não simplesmente se coloca nas vias do pensamento, mas traz as coisas para
dentro do meio próprio, que é o âmbito da questão do ser. O pensar se dá ao
serem colocadas as coisas, adequadamente, para o pensamento.
Um outro aprendizado – e, agora, não mais do pensador – é
significativo para esta nossa reflexão: Rainer Maria Rilke (1875-1926) fala do
aprender a ver. O poeta diz que está aprendendo a ver;224 tal aprendizado não
vem de uma pretensão do poeta, pois ele mesmo não sabe o que este novo ver
significa – ele sabe de sua consequência, que é tocar algo que, antes, sua
visão não tocava. “Aprender a ver” é, aqui, a possibilidade de se enxergar “algo
além” do que se apresenta de modo direto à razão calculadora; é o que se
aproxima do pensar do sentido, do pensamento meditativo. O que o pensador
faz com o pensamento, o poeta faz com o olhar.
O ver do poeta toma as coisas e as põe de um modo tal que um
mundo é configurado por meio do aparecer das coisas, e não do desejo da
razão calculadora. Do mesmo modo que o pensamento do pensador, o ver do
poeta se efetiva quando as coisas são vistas dentro do âmbito d’“aquilo que
222 Neste sentido, mesmo quando as ciências da natureza conseguem trazer para a linguagem racional o modo de acontecer de um detalhe da realidade, ainda assim, permanece na superfície, não indo “até às ranhuras” do real; por exemplo, uma lei física, ou biológica, nunca fala da realidade mesma, tocando apenas uma parte do aparecer da realidade – parte que pode ser traduzida para a razão. 223 Heidegger afirma:
(...) é preciso que, de nossa parte, aprendamos a pensar. O que é aprender? O homem aprende à medida que traz todos os seus afazeres e desfazeres para a correspondência com isso que a ele é dito de modo essencial. Aprendemos a pensar à medida que voltamos nossa atenção para o que cabe pensar cuidadosamente. (M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.112.)
224 “Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não para o lugar em que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava. Agora tudo vai dar aí. E não sei o que aí acontece.” (RILKE, apud. M. A. LIMA FILHO, A escuta, a espera e o silêncio, p.31)
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deve ser visto por primeiro”; queremos dizer que a correção do olhar do poeta é
que lhe permite conhecer a realidade. A ação do poeta se singulariza ao
enxergar o invisível e torná-lo dizível:
A poesia de Rilke, como uma ponte de acesso ao mistério das coisas do mundo, penetra nas suas dobras menos visíveis e, dentro delas, descobre o seu Invisível tornando-o dizível. Ao longo de toda a sua vida, associará sua tarefa poética a essa responsabilidade cuidadosa e difícil: falar e proclamar esse Invisível.225
O poeta, do modo como Heidegger interpreta este “modelo de
homem”, pode ser melhor entendido dentro da configuração de mundo que é
marcada pela indigência. Esta caracterização vem do verso de Hölderlin, da
elegia Pão e Vinho, que diz: “... e para quê poetas em tempo indigente?” (“...
und wozu Dichter in dürftiger Zeit?”). A indicação é a de que a figura do poeta
resta questionada em uma determinada situação: na indigência (Dürftigkeit),
qual responsabilidade (ou importância) recai sobre o poeta? Antes, é preciso
saber o que é este “tempo indigente”.
“Indigência” é situação de carência e penúria, quando o homem luta
para sustentar seu modo de ser (Da-sein); porém, sem conseguir os elementos
dos quais precisa, não tem algo em que se apoiar ou agarrar – é a experiência
da falta do necessário fundamento (como solo). O homem produz demais e
pensa de menos; deste modo, acaba se perdendo em meio ao sem número de
produções. O mundo vive um tempo indigente, por não ter mais uma base
sólida que possa dar sentido ao seu fazer e às coisas em geral; observemos
que a indigência não se dá, propriamente, com relação ao sentido, mas com
relação ao fundamento que permite o sentido das coisas. Aqui, o ponto singular
a ser assinalado é o da ausência dos deuses.
A falta de Deus anuncia, porém, algo de muito pior. Não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor da divindade. O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta.226
Os deuses não estão mais junto ao homem – este chegou tarde e
aqueles se foram. Esta ausência deixa um vazio que não pode ser preenchido
225 M.A. LIMA FILHO, A escuta, a espera e o silêncio, p.33. 226 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.309.
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pelo fazer do homem: ele cria muitas coisas, mas não tem condições de criar o
fundamento – isto cabe apenas a um deus. O trecho indica claramente que
Heidegger não fala de um deus específico, como personificação de uma
entidade divina: o fulgor da divindade se apagou. Significa dizer que, mesmo
com diferentes imagens deísticas, não vigora mais a figura daquele ser que
detém o poder de centralizar a atenção do homem como base para todo
sentido.
Em A palavra, Heidegger cita Hölderlin, questionando: “Por que
também estão em silêncio, eles, os antigos e sacros teatros? / Por que não
mais se alegra a dança consagrada?”227 A imagem é a daquele que chega ao
lugar depois que os deuses se foram. E, logo em seguida, continua: “A palavra,
no modo em que já foi palavra, perdeu-se do antigo lugar em que deuses
apareciam.”228 Quando o homem chega e se depara com a ausência, paira o
silêncio; resta a dúvida na falta dos deuses. Com estas ideias, o autor mostra
exatamente o tempo de indigência – é o tempo da noite do mundo; a situação
ainda se complexifica ao afirmar que o nível de indigência é tamanho que nem
a falta de deus aparece como falta.
A indigência, tempo de escassez, como ausência de fundamento
(com a fuga dos deuses), deixa o homem absorto diante da realidade, e resta
um abismo (Abgrund), que é a ausência de fundamento (Grund). Em tal
cenário, cabe perguntar: para que poetas? O poeta é aquele que realiza
experiência singular de não-consciência.
Quanto mais elevada for a consciência, tanto mais excluído do mundo estará o ser consciente. O homem encontra-se em frente do mundo. Ele não habita diretamente na corrente e no vento da conexão completa.229
A ideia de “consciência” pode ser tomada de diferentes modos e a
partir de diversas conceituações. Mas, para afirmar que a consciência implica
uma exclusão do mundo, é preciso indicar o que significa propriamente o “estar
no mundo”. Heidegger indica que o ente em sua totalidade está lançado no
aberto – que podemos entender como “aberto do existir”; significa enxergar que
227 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. 228 Ibid., p.173. 229 Id., Para quê poetas?, In: CF, p.329.
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não há barreira no ato de ser. Os entes, simplesmente, existem; eles estão
lançados no aberto, sem delimitação ou conceituação. Os entes aparecem ao
homem como um sentido; não significa entender que há sentido no aparecer
dos entes. O sentido dos entes é ser. Uma árvore, por exemplo, existe no todo
que constitui o mundo – não há função, objetivo ou qualquer outro tipo de
direcionamento.
“Estar incluído” no mundo é não impor restrições ao brotar da physis.
Os entes estão no mundo como são e não como devem ser; a noção de que há
um modo específico de ser, ao qual as coisas deveriam obedecer, é noção
originada pela consciência. “Florestas deitam-se/ Riachos arrojam-se/
Rochedos duram/ Chuva desliza./ Planícies esperam/ Fontes jorram/ Ventos
permanecem./ Fecundidade medita.”230 Estes versos indicam claramente o ser
das coisas – elas a nada obedecem: simplesmente são.
Com os versos do parágrafo anterior, Heidegger parece indicar a
realidade dos entes como diversa da realidade do homem. Seria algo como
uma “segunda realidade”? De certo modo, sim. A realidade humana é artificial
por conta de sua consciência e representação.231 Enquanto as coisas são, o
homem, além de ser, tem a consciência do ser – de si e das próprias coisas.
Embora, para o homem, nesta realidade construída, a consciência seja
condição primeira, no ente como um todo não é assim: primeiramente, as
coisas são.
A citada “conexão completa” do mundo apenas pode ocorrer para os
entes em geral, menos para o homem – ele “não habita diretamente na
corrente e no vento”. Sendo o ente consciente por excelência, o homem
também é, então, o ente excluído do mundo por excelência. “As plantas e os
animais estão inseridos no aberto”232 – eles estão, assim, no acontecer do ser,
no desdobrar da physis. O homem, por sua vez, não está no aberto; o mundo
que o homem constrói, pela consciência, é fechado para a experiência
irrestrita, que é o aberto. A consciência não consegue conceber a existência
230 M. HEIDEGGER, Da experiência do pensar, p.51. 231 Que é, também, uma re-apresentação. 232 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.329.
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sem um sentido determinado233 que deve ser descoberto pelo homem. Estar na
conexão completa é participar de uma mesma realidade, junto dos demais
entes; o homem sai desta realidade e põe o mundo diante de si.
Diante das coisas, de modo particular, mas diante do mundo, o
homem se põe em postura de oposição. O homem não está no aberto e situa
os entes como puros objetos para utilização (instrumentos) – é a ideia
apresentada de objetualização como Gegenstand. Estando em frente ao
mundo, o que lhe resta é falar como quem assiste a algo e não como quem
participa; por sua vez, no falar sem a participação, o homem não toca as coisas
em seu ser, elas ficam desprovidas do que são e afastadas dele. A perda do
sentido é, em última instância a “fuga dos deuses”.
No Da-sein, como modo de ser do homem, vai junto um risco, que é
a possibilidade sempre presente de não ser “de modo próprio”. O risco é a
queda no cotidiano, no palavrório (“primeiro Heidegger”); é a queda na
linguagem desgastada (“segundo Heidegger”). De qualquer modo, o risco
termina no não contato com o ser, em seu apelo. O tempo indigente é marcado
por queda, perda, risco – abismo. A queda no palavrório é recurso para não
enfrentar o abismo – a palavra, em tal situação, disfarça e desvia a atenção do
risco. Isso é fruto da consciência, cada vez mais afastando homem e mundo.
No tempo indigente, o homem perde as coisas e a si próprio, quando
perde o sentido de ser do ente que ele mesmo é; dizendo de outro modo: o
homem se perde nas coisas. O que reina neste tempo é a técnica, ou o espírito
técnico que impulsiona (empurra) o homem para dentro de um mundo que
passa a ser enxergado a partir “do” modelo de racionalidade (que calcula). E o
homem é levado a des-encobrir234 as coisas do mundo. Mas, considerando-se
a ausência do sentido, este “espírito técnico” povoa de necessidades a
233 Esta ideia de haver um sentido que deve simplesmente ser descoberto e dito pela razão dá segurança e sustenta a racionalidade ao modelo científico, conforme apresentado no capítulo 2. 234 Por isso, a essência da técnica também se relaciona com a verdade, alétheia. Porém, a técnica mesma, em sua prática, é entendida por Heidegger como um desejo ilimitado de fazer as coisas aparecerem. Junto a tal desejo, que deve ser obedecido, vem a crença de que, realmente, o homem deve e pode fazer do mundo o que quiser. Heidegger afirma: “Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem. Esta aparência faz prosperar uma derradeira ilusão, segundo a qual, em toda parte, o homem só se encontra consigo mesmo”. (M. HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p.29.)
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realidade humana, com a noção de que seja preciso fazer, construir, produzir,
armazenar, gerar, forçar, reter, acumular etc. – tudo desregradamente.
Neste contexto, temos poesia e poeta com qualidades singulares: 1)
a poesia é a fala que permite a reinserção do homem no mundo – a palavra
poética não expressa o aberto, mas o indica; e 2) o poeta é o que se põe diante
do abismo. Enquanto a palavra ordinária (comum ou científica235) é
aperfeiçoada sempre dentro das necessidades do fazer técnico, em um padrão
regrado e cerceador, a palavra poética abre o mundo para o contato com o
homem, reinserindo este no âmbito das coisas. Enquanto o homem ordinário
(comum ou científico) se perde em um fazer desmedido que, na maioria das
vezes, sustenta a crença de segurança em meio àquilo que constrói, o poeta se
lança diante do abismo.
Reinserir o homem no mundo, de modo algum significa igualá-lo aos
animais e às plantas. A consciência o põe fora e a poesia permite o estar com
os demais entes. Interpretando a poesia de Hölderlin, Heidegger desenvolve a
reflexão sobre a ideia de que o homem realizou muito, ao longo de seu fazer
histórico: ele produziu, construiu mundo – “criou” e modificou a realidade, como
fruto da consciência; ou seja, ele tem méritos no que fez, porém, apenas
poeticamente tem condições de habitar esta terra.
A representação do mundo implica o afastamento do mundo. Este
representar é sempre a tentativa de enquadramento da realidade em certos
padrões e com determinados elementos que neles “cabem”. A própria
experiência da palavra que fala o mundo é experiência de restrição.
Entendendo-se que a representação seja ato segundo no mundo (o primeiro, é
o próprio dar-se do ente), a tentativa aqui é a de propor um pensamento que
seja pré-racional que, seguindo o raciocínio, é pré-representacional. O que
existe antes da representação é a própria coisa, é o mundo – é physis.
Heidegger propõe a experiência, não do sentido dado pelo homem, mas do
235 Não é tão simples o entendimento de separação daquilo que é o comum e o científico, principalmente quando consideramos que a ciência é o próprio senso comum maximamente explorado tecnicamente.
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sentido do próprio ser das coisas – ele entende que tanto o pensamento
meditativo quanto o pensar da poesia fazem isso.236
Diante do abismo está o poeta. O poeta encontra a palavra diante do
inominável, diante do ente em sua totalidade; em uma palavra, diante do ser.237
Diante do mesmo inominável, o pensador deixa que o pensamento se mostre,
ao invés de dar um direcionamento dentro de um conceito de “possível”.238 Mas
o homem comum, diante deste inominável, procura falar, pois não está
preparado para ouvir. Este homem não conhece a postura de serenidade.
O homem comum vive a cegueira de seu mundo, que não lhe
permite enxergar além do que aparecem como “necessidades da vida” –
principalmente a necessidade de produção. Não habitando, o homem apenas
se entende como explorador do mundo, para que as coisas forneçam o que é
lhe necessário. Em tal situação, o homem é “apenas” o produtor e a coisa é
“apenas” a matéria-prima dentro de uma armação (Ge-stell).239 A cegueira
indica a indigência do mundo.
Diante do silêncio, o homem quer falar. A fala é um modo de
linguagem, mas esta é maior. A investigação sobre a linguagem é abertura
para a questão do ser. Neste âmbito, a linguagem humana é reflexo e uma
possibilidade deste ente: o homem fala, pois a existência é linguagem e, nela,
ele está. É o que Heidegger indica, ao dizer que não é o homem quem possui a
linguagem, mas o contrário.240
236 É importante entender que a proposta de Heidegger apenas pode ser entendida em um novo conceito de “racionalidade”. Neste ponto, corremos o risco de entender seu pensar como algo que se fecha em si, tornando-se extremamente esotérico; porém, devemos nos lembrar da imagem do bosque: apenas adentrando nele, podemos perceber que ser totalmente fechado é impressão de quem o observa de fora. 237 Em Contato, o autor-cientista põe na boca de sua personagem-cientista a ideia de que o poeta tem mais condições de experienciar o grandioso; diz ela: “Deviam mandar para ali jovens poetas e compositores, (...) [pessoas] que não estivessem inteiramente escravizadas às burocracias sectárias”. (C. SAGAN, Contato, p.275.) 238 De certo modo, esta experiência diante do inominável, que exige a quebra de padrões de racionalidade, é semelhante à experiência mística vivenciada pelo homem ao longo da história. 239 Gestell, termo traduzido como “armação” ou “composição”, é apresentado por Heidegger como sendo “a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade. Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna mas que, em si mesmo, não é nada técnico.” (M. HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p.24.) 240 Id., Sobre o humanismo, p.24.
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Ser possuído é, para o homem, ter algo que o dirige no que ele é.
Linguagem não é caminho, mas a possibilidade de ser – nela (linguagem), se
dá o jogo no qual o homem pode ou não ter a posse de si e estar
“genuinamente” no mundo. Mas o que significa este estar “genuinamente” ou
“propriamente” no mundo? Entendemos que se refere à diferença ontológica do
homem como Da-sein. O homem não é um ente como os outros, pois seu
mundo se dá no “entre” céu e terra, divinos e mortais. Quando o homem ouve o
apelo de seu “ser entre” é que vive genuinamente; é viver segundo o que ele é,
não se perdendo entre os entes, como se fosse apenas mais um.
Há uma necessidade de ser de modo próprio; trata-se de um
chamamento. E o homem é o ente que responde – e apenas pode fazê-lo por
ouvir. Serenidade é o não perder-se em meio à avalanche que segue seu
curso; é estar em vigília, na guarda do dar-se do ser. Pensadores e poetas são
vigias do ser.241
Mas a prontidão de poetas e pensadores não é condição necessária
apenas a eles: a serenidade é caminho a ser percorrido pelo homem. Neste
sentido é que vale tomar o exemplo caro a Heidegger: o camponês. Este está
pronto para escutar o chamamento que vem das coisas que são em seu
mundo. É na terra, como seu chão (de sua história), que o camponês vê brotar
o chamamento do ser; ele cultiva, mas ouve e espera. O camponês responde
como lavra e cultivo. O poeta responde como nomear. O pensador responde
como pensamento. Nos três casos, é a physis que brota como palavra, ideia e
planta.
Em tal contexto, quando poetas e pensadores falam, abrem caminho
para postura diversa, que é a serenidade. Talvez este seja o principal motivo
de serem, poeta e pensador, incômodo na sociedade, pois apresentam
possibilidade diversa da comumente aceita ou imposta.
Uma percepção profunda o bastante do que é a com-posição, enquanto destino do desencobrimento, não poderia fazer brilhar o poder salvador em sua emergência?242
241 M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p.25. 242 Id., A questão da técnica, In: EC, p.31.
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Esta percepção profunda é o que o homem não tem. Trata-se de
perceber que o homem é levado ao des-encobrimento técnico desenfreado,
não por algo que acredita ser de valor e, daí, necessário. A produção técnica
tem origem no próprio homem; porém, a criação foi introjetada no criador, de
modo tal que este não consegue mais enxergar caminho sem ela – torna-se
uma crença na técnica e no fazer da ciência como um todo. Esta é a indigência
do nosso mundo: tudo perde seu sentido próprio – sentido do ser –, passando
a ter espaço apenas no desenho estabelecido pelo fazer técnico. Pensadores e
poetas são necessários em tal contexto, para que se dê a percepção e se
constitua o “poder salvador”.
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Conclusão
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Quem é que, hoje em dia, se atreve a considerar-se familiarizado com a essência da poesia, bem como com a essência do pensamento e achar-se ainda suficientemente forte para conduzir ambas as essências à mais extrema das discórdias, assim estabelecendo a sua concórdia? (Heidegger, Serenidade)
Uma conclusão seria entendida como o fechamento do iniciado. Mas
nossa conclusão não encerra, pois o caminho que percorremos abriu vasto
campo para pensar. O ponto ao qual chegamos condiz com o que entendemos
ser a necessidade apresentada por Heidegger e abordada por nós. Trata-se do
pensamento que, incessantemente, volta-se sobre si mesmo e possibilita a
abertura para a manifestação do ser.
Heidegger afirma que, tanto no “poetar do poeta, como no pensar do
filósofo de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma
árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde tôda (sic)
monotonia e vulgaridade”.243 Quando o mundo, que é harmonia, é entendido
apenas como monotonia, a realidade (os entes em sua totalidade) não pode
ser conhecida, pois, sendo os entes a manifestação do ser, eles não têm a
possibilidade de ser propriamente. Pensador e poeta caminham sobre um
único solo e se deparam com a mesma realidade; ainda que seja com suas
diferenças, cada um a seu modo expressa e faz vigorar o mundo. Desta
constatação é que partimos para os encaminhamentos finais deste trabalho.
I. Dos caminhos da serenidade: poesia e filosofia no encontro com o mundo
À dicção do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de filósofo: serenidade. Não um lamento, uma demonização da tecnologia. Ao contrário, ele prenuncia uma relação pensante com o segredo até hoje velado na essência da técnica. A palavra de Heidegger diz: serenidade para com as coisas, cuidado preocupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo – ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de um pensamento que é, em si mesmo, ação (...).244
243 M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.55. 244 O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.104.
- 152 -
Poetas e pensadores são homens que, em tempo de calmaria,
pouco aparecem; na verdade, pouca é a atenção voltada a eles. Em tempo
diverso, a saber, de revoluções e crises, naqueles nos quais o homem fica
perdido diante do movimento da realidade, a situação muda: poeta e pensador
ganham voz por serem os que conseguem se desprender de um modo de
pensar habitual (que responde às necessidades vigentes) e lançar olhos para o
que pode ser mais fundamental e basilar. Quando o homem se vê perdido em
tal crise, são os poetas (pensando-se o poético não apenas com relação à
poesia, mas como sustentação de toda arte) e os pensadores que devem se
posicionar; são os libertos da palavra. Não é um povo nem um poeta que dão
origem à necessidade de falar: o ser exige o falar dos poetas e o pensar dos
pensadores, quando, então, o homem se reúne e se põe a ouvir. Toda palavra
é política e é por isso que os mais libertos na palavra são os mais fortes,
quando a organização político-social busca restringir a realização do ente.
A força da palavra liberta permite ao poeta chegar ao abismo no qual
se dá o perigo ao homem; é de lá que pode ser pensada a mudança de
postura. É no íntimo do perigo que poeta e pensador se colocam para abrir
caminho; é como estar no olho do furacão: de lá, tudo se pode enxergar e as
conexões políticas e sociais podem ser melhor entendidas.245 Neste “lugar” se
encontra a segurança para nomear e fazer, da palavra, manifestação do ser.
Diante do perigo, o homem comum se retrai, afastando-se em direção ao que
pode parecer ofertar segurança. O homem comum teme, pois a palavra, como
linguagem e manifestação de si próprio, está presa à estrutura que é abalada.
A palavra presa é a palavra da monotonia. Por outro lado, aqueles que já são
libertos, em consequência da palavra liberta, têm forças para enfrentar e guiar,
por saberem que o maior risco é o da fuga sem volta dos deuses, que traz a
perda do sentido.
245 Também neste sentido, a capacidade do poeta é apresentada nos versos: “Saiba que os poetas como os cegos/ Podem ver na escuridão” (C. BUARQUE, Choro bandido). De certo modo, todo período de crise é período de escuridão.
- 153 -
Heidegger fala de crise espiritual,246 mas considera apenas sua
época, sem indicar que se trata de algo que se repete ao longo do tempo. Ele
entendia que aquele momento era singular, por constituir o ápice da realização
da metafísica tradicional que traz a técnica como condutora. Mas é importante
enxergar que ele tinha um projeto (filosófico-político-poético) por trás de seu
filosofar. Um projeto assim não foi novidade na história da filosofia.247 Ele
falava da grande crise por poder apresentar uma grande solução.
A filosofia heideggeriana é política, mas não por conta do
famigerado envolvimento político com o movimento nazista – é política por
tratar da palavra e se voltar ao poético. Não há sistema que persista sem uma
palavra que o sustente, pois a palavra é política em si mesma; ela erige e faz
viger o mundo do homem. E ainda deve ser considerado o poético: toda poesia
é luta e resistência no questionamento do poder da palavra instituída.
A palavra instituída é determinada pela razão objetivadora e
sustenta uma realidade de submissão do mundo pelo homem – e até mesmo
do homem pelo homem, indicada pelas diferenças e preconceitos de todos os
tipos. O poetar pensante é luta no resgate da experiência do ente no ser, que
não pode ser banalizada – é tentativa de des-encobrir (trazer a verdade) o
brotar da physis que se dá simplesmente e apurar a percepção humana para
os acenos e apelos do ser. O pensamento de Heidegger é este próprio aceno
que vem do pensamento e mostra a possibilidade de um outro estar do homem
na terra. Mas suas próprias ideias se tornam filosofia e caem como tradição: os
grandes homens são os momentos de propriedade do homem; mas o Da-sein
decai na cotidianidade – assim ocorre também com a filosofia do próprio
Heidegger e a daqueles que nela se basearam.
A serenidade é a proposta heideggeriana diante do perigo do
ocultamento do ser e de tornar o homem mero produtor que está intimamente
246 “Espírito é a potenciação das potências do ente, como tal na totalidade. Onde domina o espírito, o ente se torna, como tal, sempre e cada vez mais ente.” (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.75) 247 Apenas como um exemplo, pode ser trazida a filosofia socrático-platônica: no chamamento de Sócrates, para que o homem se voltasse às questões da alma e não se perdesse naquilo que era a necessidade corrente; do mesmo modo, o próprio Platão deve ser considerado 1) em seu entendimento de que o poder político deveria estar nas mãos dos filósofos e 2) em suas incursões políticas (insucesso) junto ao governo de Siracusa.
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ligado aos instrumentos que auxiliam na produção. O autor fala claramente
sobre a postura que é a serenidade:
Podemos utilizar os objetos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen).248
Entendemos que a serenidade deva ser postura não apenas diante
dos entes, mas diante da própria filosofia, pois esta não pode ser algo que
simplesmente obedece aos interesses da razão calculadora. Aguardar o ser,
estando atendo para ouvir seus apelos, é deixar o pensamento acontecer, não
sendo origem, mas porta voz dele. Poetas e filósofos levam o homem para o
encontro com o mundo, deixando o mundo ser – não o sujeitando aos desejos
da técnica – e deixando este mesmo homem livre, diante dos entes e dos
instrumentos da técnica.
II. Da experiência do poetar como pensamento: serenidade
Indicamos a serenidade como caminho. Talvez, caminho “maior”,
que possa ser entendido como o que abre espaço para um novo habitar do
homem. O risco que corremos foi, de modo inicial e certo, o de tomarmos uma
conceituação primária e comum do que seja a serenidade enquanto postura.
Acreditamos ter passado pelas dificuldades de se quebrar o conceito,
passando do âmbito comum para o filosófico (ou, como Heidegger diria,
“âmbito do pensamento”). O que o autor expressou, de modo especial, em
Serenidade (Gelassenheit), não se restringe à ideia de “calmaria diante de” ou
“tranquilidade não perturbada”; não é passividade diante de um mundo que
vigora nas coisas que ocorrem diante do homem – a serenidade é atividade do
248 M. HEIDEGGER, Serenidade, pp.23-24.
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homem que age como pensamento, ouvindo o ser no ente e permitindo que as
coisas sejam.
Dizendo que a serenidade é “caminho maior”, trazemos a ideia de
que há caminhos menores que permitem ao homem chegar até ela. Tanto
filosofia quanto poesia são caminhos que aproximam o homem da serenidade;
filósofos e poetas são os que cuidam para que as possibilidades de
experienciar o mundo não sejam desgastadas ao ponto de serem reduzidas ao
entendimento comum da razão. Os entes podem ser pensados sem a restrição
racional que enquadra cada um deles em um desenho pré-concebido. O
filósofo, do mesmo modo que o poeta, busca realizar a experiência do
pensamento de modo transcendente. Dizendo de outro modo, significa permitir
ao pensamento chegar a um “espaço” situado “fora” ou “além” da razão; se o
pensamento alcança, é porque lá os entes se mostram, ainda que sob outra
medida.
Poetar e pensar não são o mesmo, mas abrem o homem para uma
experiência; os dois não são “maneiras diferentes de se dizer o mesmo”; mas
são portas que levam a um “lugar”. E que lugar é este? É a clareira.
No meio do sendo na sua totalidade vige um lugar aberto. É uma clareira. Pensada a partir do sendo, ela é mais sendo do que o sendo. Por isso mesmo, este meio aberto não está envolto pelo sendo, mas é o próprio meio clareante que circunda todo sendo como o Nada que mal conhecemos.249
A possibilidade desta clareira, como abertura para uma
compreensão de ser, instiga e incomoda o poeta, tanto quanto o pensador –
eles ouvem mais e, por isso, têm de responder. É experiência de saída do
habitual, do certo, para o âmbito do desconhecido e incerto, que está lá e
chama. O homem é chamado a estar de outro modo no mundo; para tanto, é
chamado a assumir-se, em sua essência mortal, no tempo, no dar-se e retrair-
se do ser, no viger das coisas. Serenidade é deixar as coisas serem, não como
um simples espectador, mas como o agente pensante que faz com que elas
possam ser.
249 M. HEIDEGGER, A origem da obra de arte, p.133.
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Um questionamento que se nos coloca é se a serenidade teria algo
a ver com a citada monotonia, sobre a qual falamos para tratar da coisa. Caso
sim, a postura serena do homem seria a simples consideração de tudo que há
em um mesmo tom, sem grandes nuances ou diferenciações. Esta questão da
tonalidade é bastante importante na reflexão heideggeraiana e é preciso que
seja enxergada sob dois ângulos: o do homem e o das coisas.
Para falarmos sobre o tom, podemos tomar dois campos nos quais
ele aparece propriamente, a saber, o âmbito do som e o da cor. Em ambos,
falamos em graus do que aparece, graus de ondas visuais ou sonoras – o tom
lhes é constituinte: a cor é sempre de determinado tom, não podendo aparecer
fora de tal categoria, e com o som ocorre o mesmo. No nosso caso, podemos
entender que todas as coisas têm seu tom e, para que estejam juntas em um
mesmo mundo, devem estar em um mesmo tom, como característica forte de si
para composição, ainda que sejam diferentes umas das outras.250
O tom pode ser entendido como uma linha de sustentação de uma
essência que é comum às coisas que estiverem nas gradações dele. As coisas
podem ser diferentes, mas participam de um mesmo tom. O tom une o
diferente sem transformá-lo em igual. A linha de sustentação do mundo do Da-
sein pode ser entendida como o que Heidegger chama de tonalidade afetiva:
nela, as coisas participam, não como monotonia, mas como o que são,
constituindo a harmonia de tonalidades.
Voltando ao questionamento que fizemos logo acima, podemos
afirmar, então, que a serenidade é a vivência do homem, em sua tonalidade
afetiva de mundo, abarcando as coisas como elementos constituintes. Se
tomarmos o exemplo do som, para falarmos da tonalidade da vida, o mundo de
cada homem é uma música executada na união dos elementos que, mesmo
existindo separadamente, são origem à música como um todo sem partes. Tal
música permite 1) o aberto no qual as coisas se dão e 2) o diálogo entre céu e
terra, divinos e mortais.
250 Como exemplo, o acorde de Dó Maior (C) é composto por três notas diferentes (dó, mi, sol) e a escala de C se abre para um campo hamônico de acordes que, por sua vez, são formados por outras notas que se dão em harmonia.
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É a serenidade que permite o novo pensar ou o contrário? Na
verdade, ao longo deste nosso caminho, tal questão se mostrou complexa, no
sentido de não termos como estabelecer clara divisão entre os dois. A
serenidade é uma postura; uma nova postura, por sua vez, depende do que
chamamos de um novo pensar. Daí, concluiríamos que a serenidade apenas
poderia ser consequência. Mas o novo pensar apenas é permitido quando o
homem se coloca de modo diverso no mundo, diante das coisas; a nova
relação (de deixar-ser) permitiria o novo pensar sobre o mundo. E o novo
pensar seria consequência. A pergunta, na verdade, não tem sentido nesta
problemática, até porque estaríamos tratando do tempo no qual dois elementos
se dão, mas isto não cabe, já que nos colocamos na busca de uma experiência
original, o que, por sua vez, coloca-nos em entendimento diverso do tempo.
No âmbito da serenidade, o novo pensar se dá desde a concepção
que o homem tem dele: o pensar é a possibilidade de abertura e diálogo com o
mundo – é a própria possibilidade de fundar um mundo. Neste novo
entendimento, o pensamento é dom, dádiva ao homem; ou seja, não é
nenhuma consequência de qualquer ação humana, nem simples fruto de uma
evolução casual.
O homem se reconhece, como diferente, na recepção de uma
dádiva e fazer-se homem significa realizar plenamente aquilo que recebeu.
Neste sentido, ao pensar, o homem “faz brotar” o que recebeu – no mesmo
sentido que é o brotar da physis. Quando, no pensamento, o ser se torna
linguagem e é expresso na palavra – seja do pensador ou do poeta – o pensar
do homem passa a ser resposta e, mais que isso, é agradecimento pelo dom
recebido. O exercício do poetar pensante é canto que brota como resposta,
que é ação de graças.
III. A discussão que leva ao devaneio: o exercício do poetar pensante
Ao longo desta tese, realizamos uma experiência de pensamento,
tendo como fundo a filosofia heideggeriana. Para tanto, vimos que perpassa
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todo seu fazer filosófico um chamamento para um novo raciocinar, deixando o
pensamento comum, em seu modo reflexivo calculador, em busca de uma
nova racionalidade capaz de abarcar a construção teórica do autor – entenda-
se abarcar a manifestação do ser, ouvindo seu apelo. Há uma insistência, de
modo especial em Serenidade,251 para que não se busque representar o que é
posto ao pensamento, não forçando as ideias a obedecerem a algo já
determinado. A necessidade é a de aguardar, para que o pensamento se dê.
Interessa-nos indicar que, em determinado momento da discussão
(entre o investigador, o erudito e o professor), temos: “Parece-me que esta
noite excepcional vos leva a ambos a devanear”.252 Devaneio sóbrio é o
exercício do poetar pensante – situação na qual o esforço do homem não mais
é o de prender os entes como objetos de pensamento, mas o de se manter na
espera, aguardando. É deixar o movimento de pensar acontecer por si, a partir
do que se dá ao homem na experiência.
Qual homem existe e o que dele se espera? Existe o homem que foi
construído dentro de um projeto político, social e interpretativo; um ente que
está do modo como aprendeu a estar. Na sociedade do efêmero e do
espetáculo (dominada pelo falatório e pelas necessidades de cada vez maior
dominação e sujeição do ente para produção), não é simples estabelecer um
modelo de homem; grande dificuldade, porém grande necessidade. Não
havendo um “céu de essências” carregado do sentido dos entes, perguntamos
quem é o homem, a partir do qual será possível uma nova relação com o
mundo.
Heidegger fez suas escolhas, tomando os poetas que entendia
serem os sinais balizadores para a reflexão. Faremos também nosso devaneio
por meio de nossas escolhas, começando por Cecília Meireles; voltamo-nos
para o poema Motivo:
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
251 Cf. M. HEIDEGGER, Serenidade, pp. 36; 39; 42; 51. 252 Ibid., p.60.
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Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.253
O homem se realiza como Da-sein em uma realidade não escolhida
por ele; nela, ele se vê esfacelado diante das necessidades às quais deve
responder. Por sua vez, tais necessidades não contribuem para que o homem
se compreenda e ouça o chamado do ser: ele se perde, sem encontrar sentido
e acaba esfacelado em meio à oferta de infindáveis modelos de vida (encontrar
algo que sirva como sólido fundamento para a realização humana individual
torna-se tarefa de grande complexidade).
‘Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa’. A
ideia de completude vai no caminho contrário da realidade indicada: enquanto
o homem tenta sobreviver, em uma vida que é dividida, o poeta tem sua vida
completa. O poetar leva à completude; cantar é o agir do poeta – depois disso,
nada mais é necessário, pois a vida se completa. E isso não ocorre em uma
realidade diversa, fora do tempo e do espaço conhecidos – ele canta porque o
instante existe. Esta pequena parte do tempo é suficiente para o cantar,
sustenta já a ação do poeta sem exigir algo mais, completando-o.
O poeta percebe o tempo e, nele, ouve e deixa ser o mundo; no
instante, ele se demora e permite-se uma experiência, com os entes, que não é
técnica e racional do modo científico. Mas o estar do poeta não se dá em um
único instante: ‘Atravesso noites e dias’. O verso dá uma indicação de quem é
o homem: aquele que está a caminho; o homem é o ente, o sendo, na
253 C. MEIRELES, Cecília de bolso..., p.29.
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travessia. E o que este homem sabe de si é apenas que sua vida é caminho,
caminhar sem parada e sem paragem. Parar significaria não mais ser.
Enquanto o homem existe – sabe de si –, atravessa o tempo que, no
poema, é indicado por ‘noites e dias’. Mas se é travessia, deve ser para chegar;
porém, chegar já seria parar e, assim, não mais ser. Algo importante que se
nos coloca é o fato de que o ser humano percorre um caminho, que é seu
próprio viver, esperando nunca chegar. Mas ele sabe que vai chegar – a vida
chega ao fim. O ser humano é algo não terminado, não plenificado (talvez, não
terminável e não plenificável), pois, enquanto ele existe, há sempre um “ainda”.
Mas, se a serenidade deve dar condições para que o homem integral apareça,
qual o sentido de se dizer que ele aparece apenas quando chega ao fim e
deixa de ser?
Heidegger afirma254 que a morte é uma possibilidade para o homem
– é a possibilidade mais própria do Da-sein. Trazer diante de si a morte como
possível a cada momento é o que abre o homem para seu poder ser mais
próprio; como um jogo, o que se abre ao homem é a possibilidade de ser ou
não si mesmo. A serenidade é postura diante de si, diante do tempo, diante dos
apelos do ser, mesmo que tudo ocorra de um modo que não seja fruto de sua
decisão.
O homem em sua integralidade é aquele que tem condições de se
enxergar como Da-sein e se projetar, fazendo-se, antes que o fim chegue. É a
consciência do fim – morte – que pode ser vista na travessia. ‘Atravesso noites
e dias’: atravesso no tempo. E como se dá tal consciência é algo sem
determinação, mas que aparece. Não sabemos aonde pode chegar o homem,
a menos que seja à morte. E isso a razão nem sempre consegue expressar do
melhor modo; alcança-se pela palavra poética, que quebra as cadeias lógicas,
podendo apresentar “algo além” do racional.
254 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, pp.723; 725.
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‘E um dia sei que estarei mudo: /– mais nada.’ O poema termina
dizendo da consciência que o poeta tem do fim de seu tempo; o poeta fala,255
mas um dia estará mudo. A mudez do poeta pode ser entendida como a morte
em si para o homem. Estará mudo e mais nada. Este ‘mais nada’ é exatamente
a consciência de que é preciso se fazer e cantar o tempo (instante) que existe;
sabe-se disso e não se espera algo mais. Esta consciência do fim pode ser
encontrada de diversos modos no dizer poético, nunca deixando de aparecer.
No poema Aprendizado, Ferreira Gullar diz:
Agora porém depois de tudo sei que apenas morro
sem ênfase256
Depois de tudo vivido, de tudo aprendido, de tudo sabido, o que
resta é o saber do fim, que permite ao poeta assumir integralmente aquilo que
é: homem. E ainda mais: ‘sem ênfase’. Qual seria o significado da ênfase, além
da não aceitação da efemeridade da vida? A ênfase é desejada por quem não
quer passar, e aquele que tem tal desejo entende a ausência da ênfase com
ausência de significado da vida vivida. A serenidade é deixar a vida ser,
inclusive em seu acontecer derradeiro, entendendo que isso não se relaciona à
falta de sentido. Serenidade é postura de consciência. Este é o caminho, o fim
ao qual leva a travessia humana. Ser homem significa saber-se mortal. Mas
isto não é algo traduzível com facilidade para o dizer.
No poema intitulado NÃO-COISA, o poeta diz o que intenta em seu
ofício:
No entanto, o poeta
255 Sobre o falar do poeta:
Ainda não tínhamos pensado numa coisa, a saber, que a voz do dizer tem de estar afinada, que o poeta fala partindo de uma disposição interior, que define o território e impregna o espaço, sobre o qual e no qual o dizer poético instaura um ser. Chamamos a esta disposição a disposição fundamental da poesia. No entanto não entendemos por disposição fundamental um sentimentalismo precário que se limite a acompanhar o dizer; pelo contrário, a disposição fundamental abre o mundo que recebe, no dizer poético, a marca do Ser. (M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.81.)
256 F. GULLAR, Muitas vozes; poemas, p.45.
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desafia o impossível e tenta no poema dizer o indizível: subverte a sintaxe implode a fala, ousa incutir na linguagem densidade de coisa sem permitir, porém, que perca a transparência já que a coisa é fechada à humana consciência.257
É nesta liberdade da palavra poética, não sendo obrigada a
responder a toda construção lógico-racional, que o poeta tenta dizer o indizível.
Tenta e consegue fazer aquilo que o discurso racional não faz, a saber, trazer
para a percepção humana a problemática do fim. Para o homem, a morte, o
fim, é o plenamente indizível. É na experiência poética permitida pelo poema
que se torna possível aprender sem ter de dar conta do discurso que já vem
pronto em uma sintaxe definida.
‘Não sinto gozo nem tormento’, diz ainda o poema de Cecília
Meireles: é o modo como tal homem se coloca na vida. A serenidade diante do
mundo possibilita a consciência de que ele nunca se plenifica e deve sempre
se lançar para algo ainda não conhecido; é quando o homem se reconhece
como um ser livre a se fazer. ‘Não sinto gozo nem tormento’ não indica de uma
relação apática com a vida em seu acontecer, mas indica uma não perturbação
diante daquilo que se dá na travessia – sua decisão é apenas sobre o que cabe
unicamente a si.
Atravessando no tempo, é ‘no vento’ que o homem realiza sua
travessia: o vento é o que tira a calmaria, balançando e atrapalhando a
caminhada, seja no persistir em um caminho, seja no enxergar claramente o
chão que se pisa. No tempo (noites e dias), este homem tenta se manter firme
diante da força que, soprando, pode desviá-lo – ele deve continuar por sua
força a percorrer o caminho, conscientemente.
257 F. GULLAR, Muitas vozes; poemas, p.54.
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Na filosofia de Heidegger, o vento pode ser visto como a avalanche
de necessidades de dominar, deter, armazenar, produzir etc., que povoam o
mundo no qual o homem está inserido; ele se perde nas obrigações que lhe
são impostas e a vida já não se mostra como algo a se fazer, não é projeto.
Interesses diversos dividem o homem em partes e este ser, que se pretende
‘humano’, passa apenas a responder às exigências que um mundo pronto lhe
faz. E o poético se perde no perder-se do próprio homem.
A serenidade é a conquista de um posicionamento dentro do mundo
que não desconsidera os “ventos”, mas permite ao homem reconhecer-se
como o ente que responde aos apelos do ser e não puramente aos chamados
da técnica. A serenidade permite que não se esvazie o espírito humano. Diante
do vazio espiritual que assola, está a coragem do poeta em se postar diante do
abismo, à procura dos deuses fugidos. É a experiência de um pensar na poesia
que constrói a serenidade.
Seria possível tal serenidade? Entendemos que sim; não como uma
fantasia mágica, de “libertação” do homem diante do mundo, mas como re-
significação, a partir da qual o estar no mundo, junto aos entes, modifica-se.
Re-significando, o homem passa a estar em outro mundo, mas é um “outro” no
qual já sempre esteve. E a serenidade seria possível a quem? A todo homem.
Poesia e pensamento são “caminhos que levam a...” e não são restritos ao
poeta e ao pensador, embora não seja simples ao homem comum se libertar
das necessidades (razão calculadora) em direção ao aberto (pensamento do
sentido). Um simples desejo de mudança no olhar não traz o novo pensar – é
atividade de tempo, parada e escuta que exige esforço. A serenidade é
possível ao homem; significa dizer que ela é possível como postura no aspecto
vivencial comum que, por consequência, reflete nos aspectos intelectual,
ambiental, político e econômico, entre outros.
Se forçarmos a reflexão sobre a serenidade, podemos pensar ainda
uma aproximação semântica entre o homem sereno e o sereno da noite.258 Em
que medida poderíamos falar dos dois sentidos de “sereno”? O sereno cai à
258 É importante observar que isto apenas é possível no português, pois os termos têm uma mesma raiz; no alemão, temos die Gelassenheit (serenidade) e das Nachttau (sereno).
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noite e repousa sobre as folhas; não age, não ataca e não altera o curso do
que deve ser; sem barulho e sem alarde, recai no silêncio e aguarda o dia que
vem. O homem sereno também aguarda o dia das coisas que vêm para vigorar
no ser – ele espera no silêncio que é escuta ativa e no agir que é deixar-ser. A
serenidade é o retorno do homem como participante de uma mesma realidade
que os outros entes.
‘Sentir-se em casa’ significa entender o ‘aqui’ como seu lugar; é
fazer o homem verdadeiramente encarnar-se nas possibilidades que tem de
ser, como aquele que atravessa noites e dias no vento, sendo si próprio. A
realização humana nunca será “plena” enquanto o indivíduo se sentir
estrangeiro nesta terra; mesmo depois, o conceito de “plenitude” é algo
questionável. Mas o homem não sabe desta terra nem sabe de si – por isso é
que não se realiza. Atividade poética é aquela que encarna o homem naquilo
que ele mesmo é. Significa atuar transcendendo aos ‘ventos’ que se dão na
caminhada. Serenidade é resgate, regresso, retorno – re-inserção do homem
no todo do sentido.
Diferentemente daquilo que se possa pensar como ‘um novo lugar
para um novo homem’, o homem deve ser recolocado no lugar onde já está. O
existir como poético é o lugar comum do homem – é verso já conhecido, mas
que foi perdido, desgastou-se. Afirma Heidegger:
Para os mortais, falar é evocar pelo nome, é chamar, a partir da simplicidade da di-ferença, coisa e mundo para vir. Na fala dos mortais, o dito do poema é puro chamado. Poesia nunca é propriamente apenas um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrário. É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não
mais ressoa.259
259 M. HEIDEGGER, A linguagem, In.: EC, p.24.
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A vida cotidiana é, aqui, apresentada como fala desgastada
enquanto poema, pois o próprio estar no mundo se desgastou enquanto tal.260
E, neste poema, o homem está como verso que se perde por perder a essência
poética do habitar. “...poeticamente o homem habita...” – se fosse dito ‘os
poetas habitam poeticamente’, a ideia seria transparente, mas isso não ocorre,
pois quer-se mostrar que o homem (todo homem) habita poeticamente. O
poético é caminho para a serenidade. Habitar genuinamente não pode ser
entendido como o simples estar sobre esta terra. Se assim fosse, o estar do
homem em nada diferiria do estar de outros seres; mas difere.261 A mesma
ideia é apresentada, em palavra poética, por Fernando Pessoa:
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter cor? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente.262
O habitar poético não é algo ligado, simplesmente, a fazer poesias
ou a elas se dedicar. O texto poético, em sua liberdade das cadeias lógico-
racionais, cria um mundo a partir daquilo que é o desejo do poeta; o texto
poético fantasia. Porém, o habitar poeticamente não implica viver na fantasia
criada.263 O habitar, que, acima, tratamos como o ‘sentir-se em casa’, não fala
de uma morada física; “é a poesia que permite ao habitar ser um habitar.
Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio”.264
260 A relação entre a fala (poema ou prosa) é diretamente relacionada ao existir e ao pensar:
O ritmo não só é o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como ainda não é difícil que seja anterior à própria fala. Em certo sentido, pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou, pelo menos, que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem. Assim, todas as expressões verbais são ritmo, sem exclusão das formas mais abstratas ou didáticas da prosa. Como distinguir, então, prosa e poema? Deste modo: o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema; só com o mesmo, não há prosa. O ritmo é condição do poema, enquanto que é inessencial para a prosa. Pela violência da razão, as palavras se desprendem do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não regem as leis do discurso e sim as de atração e repulsão. Mas este desenraizamento nunca é total, porque então a linguagem se extinguiria. E com ela, o próprio pensamento. (O. PAZ, Signos em rotação, pp.11-12)
261 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.59. 262 F. PESSOA, Ficções do interlúdio, p.243. 263 Cf. M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In.: EC, p.166. 264 Ibid., p.167.
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Pensando de tal modo, o habitar costumeiro (não poético), não cai
de todo em desmerecimento. Não se quer lançar para longe tudo o que o ser
humano já realizou ‘sobre esta terra’, mas o poeta quer mostrar que, mesmo
com tudo o que existe e é fruto dos objetivos e esforço humanos, ainda assim,
falta algo para que este humano possa habitar. O homem tem seus méritos
naquilo que construiu do mundo, mas este construtor acabou por se perder em
meio ao que fez surgir; ele construiu, mas não habita, tentando fazer o habitar
se dar apenas nos limites do que foi construído.
O que existe como fundamento de nossa tese é, então, uma questão
que não é nova: de que necessita o homem para bem viver? Ele precisa se
sentir em casa, pisando o solo de seu mundo e estando junto aos outros entes,
deixando-os serem. No mesmo sentido, deixar os entes serem implica deixar
que o ser se dê e que apareça no vigorar dos entes, o que exige capacidade de
compreensão do sentido da physis como o brotar de um mundo que aparece
apenas no mundo do homem.
O poético pode ser entendido como “a revelação primordial do
significado”.265 O mundo da poesia é singular: é o mundo entre homens e
deuses; é o mundo do lançar-se do homem; é o mundo do projetar-se, criando
raízes cada vez mais profundas nesta terra. O mundo do poeta não é a poesia,
mas aquilo que a poesia mostra e sustenta.
O existir humano é o existir do mortal. O homem apenas se
reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante
‘desta’ terra, medindo seu existir de mortal diante dos deuses. É no espaço
entre divinos e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está entre; e este
mesmo homem pode até deturpar tal modo de medir, porém nunca pode se
furtar a ele, pois é este ‘entre’ que sustenta o habitar – é medida ‘estranha,
perturbadora e desconfortável’ para o viver cotidiano. O poético abre as portas
e a serenidade é o modo de estar.
Como o sereno da noite, o homem repousa no espaço entre. O outro
do humano é o divino, o celestial, e o medir é justamente o colocar-se diante da
265 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.190.
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realidade não como quem dita, mas como quem recebe o que é ditado; esta é
‘a’ experiência singular e originária, e
quem leva adiante essa experimentação original do mundo e produz uma linguagem originária, é o poeta. As formas de expressão são múltiplas, os estilos mudam no tempo histórico e no espaço cultural, as teorias de interpretação seguem as modas, mas o fenômeno do poetar-pensante é um fenômeno que acontece no processo de criação artística. Onde há arte no sentido de um fazer criativo, acontece a linguagem poética, enquanto linguagem hermenêutica. Linguagem que ao mesmo tempo capta, presentifica numa imagem, numa forma, numa palavra, a mensagem.266
O pensar meditativo e a poesia, em um diálogo de quem está
próximo, mas no cume de montanhas distintas, oferecem ao homem esta
experiência de ser si mesmo, recebendo a realidade em seu mundo de mortal.
O poetar-pensante situa o homem no ‘entre’ que é o habitar mais genuíno. O
habitar deixa a terra ser terra, deixa os entes serem entes, e faz o homem
deixar a si próprio ser homem, mortal, na travessia – é a “salvação da terra
como terra”.267 A linguagem do ser é única e aos pensadores e poetas cabe
cuidar dela; para tanto, vislumbra-se claramente uma revisão de todo o fazer
filosófico em seu falar para poder se mostrar como verdadeira.
O diálogo propriamente dito com a poesia de um poeta só pode ser um diálogo poético: a conversa poética entre poetas. Todavia, um diálogo do pensamento com a poesia é também possível e de tempos em tempos até necessário porque ambos encontram-se numa relação privilegiada, não obstante distinta, com a linguagem.268
Aquilo que o poeta faz é o que o pensar nos apresenta. As coisas
fogem e o tempo do homem deve ser gasto na tentativa de apreender o que se
dá. O ser se dá. O ser fala como linguagem de existir e chega ao homem
desde sempre. Em Serenidade, Heidegger fala de “enraizamento” (die
Bodenständgkeit) como o que deve situar o homem em sua terra – em tal
condição é que pode viger a obra humana.
O poeta é ‘irmão das coisas fugidias’; o pensador é ‘irmão das
coisas fugidias’. O homem deve aprender-se ‘irmão das coisas fugidias’. As
266 L. HÜHNE, O poetar pensante, p.80. 267 Cf. B. FOLTZ, Habitar a terra, p.198. 268 M. HEIDEGGER, A linguagem na poesia, In: CL, p. 28.
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coisas fogem no tempo da travessia humana sobre esta terra e sob o olhar
celestial. O poeta se torna irmão do que foge do ente – todo homem pode o
mesmo. Irmanar-se do que foge traz a ideia de que se participa de uma mesma
realidade. O poeta não é irmão dos deuses, mas das coisas que fogem e
reluzem por um instante no existir; o aceno do ser é o que há de mais fugidio.
No existir poético o homem pode se entender como habitante, em um habitar
neste ‘entre’ céu e terra no qual o ser das coisas é fugidio. Esta é a postura de
serenidade.
Enquanto perdurar esse advento da benevolência [a amizade junto ao coração para com o espaço aberto], o homem tem a felicidade de medir-se com o divino. Se esse medir-se acontece com propriedade, o homem dita poeticamente a partir da essência do poético. Se o poético acontece com propriedade, o homem habita esta terra humanamente (...).269
A linguagem cotidiana se expressa pela palavra, mas de tal modo
que se mostra como uma fala que passa brevemente, não perdurando no
tempo. O dito na ordinariedade da vida se mostra, mas se esquece; o dito
poético, por sua vez, é uma fala que não passa, mas permanece no tempo.
Enquanto o ser humano pode se afogar no cotidiano de sua vida, perdendo-se,
prendendo-se no que não dura, desesperando-se diante da angústia da
finitude, a poesia é, acima de tudo, resistência – não simplesmente lutando
dentro do mundo já pronto, mas estabelecendo outro mundo (não na criação de
entes imaginários, mas na liberdade que permite ao mundo mostrar-se em si
mesmo). Daí a singularidade do habitar poético, que é a possibilidade de entrar
no tom da realidade, permitindo o habitar de modo “genuíno”, fazendo o
homem deixar de ser estrangeiro (da terra e de si próprio), pisando esta terra
como casa sua.
Encerrando esta tese, entendemos que a serenidade é a postura
que abre o ser humano para algo diverso do que as experiências de sua vida
habitual permitem. Por sua vez, devemos entender “realização” de modo
amplo, não restringindo a “social”, “política” ou “psicológica”. Assim, para o
homem, a realização deve ser a situação na qual, como Da-sein, na
propriedade de si, ele possa se enxergar como um projetar-se no mundo.
269 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In.: EC, p.180.
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Serenidade é ter diante de si a manifestação do ser nos entes e, mesmo na
possibilidade de prender e dominar, deixar o aberto para que a manifestação
ocorra.
Mas a serenidade tem a necessidade de um falar que a permita. O
falar poético tem condições de oferecer o novo experienciar do homem quando
do embate com a razão instituída. Esta situação é de constante tensão e é
quando os poetas são perigo para a sociedade. Mas são perigo justamente por
serem aqueles que conseguem enfrentar os perigos que mais amedrontam o
homem. E são perigo, de modo especial, para os sistemas instituídos de
exploração humana e do mundo em geral. As duas ideias merecem nossa
reflexão.
O perigo que é aquele que enfrenta o perigo. O perigo maior é o de
o homem se ver lançado no vazio de sentido, no qual não há elemento ao qual
ele possa se agarrar. Significa a situação de ausência toda de segurança. O
homem comum busca algo que lhe dê segurança – muitas vezes, a superficial
crença religiosa ou concepção política. Diferentemente do que se possa
pensar, estes “refúgios” acabam por mascarar um vazio aproveitado por
oportunistas que convencem. E o convencimento se dá em uma construção
imagética de segurança plena e salvação total do perigo. Poeta e pensador não
aceitam algo deste tipo e enfrentam o vazio, levando a experiência até a borda
do abismo do ser. Mas haver quem enfrenta é denunciar quem se esconde e
abalar quem se aproveita. Esta ideia implica a que segue.
O perigo que é a resistência e a apresentação do novo. Deixando as
coisas serem, sem mascaramento, abre-se caminho. Isto faz com que
caminhos pré-estabelecidos e determinados como “corretos” percam validade.
Enquanto as situações/necessidades da vida empurram o homem comum para
o fechamento de seu pensar em uma aceitação cega (disfarçada de
pensamento e decisão), a nova via se mostra como resistência à pressão; ao
invés de se abrigar, toma a palavra e enfrenta. O poeta é quem sempre
apresenta o novo, e isso causa medo. No poetar, o novo é sempre, pois ele
aguarda e não dirige o pensamento; ele ouve, não se perdendo no falatório; ele
escuta os apelos do ser.
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Desenraizado é o homem que segue sem ouvir; toda sua vivência
cai em um sentido que é o mesmo para qualquer situação ou ente – apenas é
preciso obedecer àquilo que já está pronto e determinado para ser. O homem
se torna apático, quase sem vida; pois, aquilo que podemos chamar de
“impulso vital” teve de ser dividido com sua criação técnica. O homem passa a
fazer parte da grande engrenagem tecnológica – esta, que ganha impulso de
vida. O poético enfrenta o espírito da época270 e sua fala é luz para que o
homem enxergue algo diverso, que é a abertura para o mundo, na
possibilidade de fincar raízes mais profundas.
No poema que apresentaremos a seguir, para finalizar nossa
reflexão, F. Pessoa indica que a melhor fala para a experiência com o mundo
não vem de Aristóteles, mas de Epicuro. O pouco da coisa, como simplicidade,
é o necessário para que o homem habite esta terra; quanto menor a
necessidade (imposta pela racionalidade técnica), maior a liberdade. A
essência da verdade está na liberdade.
O poeta traz a exigência de um modo de vida que se pauta pelo
sóbrio raciocinar, que depende apenas do homem, e não do mundo instituído –
este homem pode chegar a uma felicidade que não difere da felicidade dos
deuses. O sol do pensamento não é o sol do tempo. Assim, o que ilumina e
aquece o estar do homem, em uma essência pensante, é o mesmo brilho que
atravessa a história e toca todo pensar. Desterrado e desenraizado, só por
pensar nos deuses (idos), o homem se recoloca no mundo, diante das coisas,
diante da vida. Do helenismo, resgata-se o campo, ao invés da pólis – é uma
nova sensibilidade a partir da qual o mundo é recebido. A serenidade é postura
assumida, mas que retroage, sendo sustentáculo para a manutenção do
homem em relação com os entes e com o ser. A serenidade é esforço perene
que aparece na história, desde a Antiguidade e se repete, aqui, em Heidegger;
ela se aproxima da ataraxia epicurista, como situação de imperturbabilidade da
alma. O pensador e o poeta, no exercício de aprenderem a ver e a pensar a
realidade, constroem a serenidade e mostram que ela não é privilégio de
homens especiais, mas que pode ser construída por quem põe seu esforço no
270 “... a perda do enraizamento provém do espírito da época, no qual todos nós nascemos.” (M. HEIDEGGER, Serenidade, p.17)
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aguardar, ouvindo os apelos do ser, sereno e deixando a vida acontecer.
Vamos ao poema:
A palidez do dia é levemente dourada. O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos de ramos Secos. O frio leve treme.
Desterrado da pátria antiqüíssima da minha Crença, consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me trêmulo A outro sol do que este.
O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole O que alumiava os passos lentos e graves
De Aristóteles falando. Mas Epicuro melhor
Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno e vendo a vida À distância a que está.271
271 F. PESSOA, Poesia completa de Ricardo Reis, pp.34-35.
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