Segunda parte: o protagonismo da sociedade civil brasileira.

28
Maria da Glória Gohn. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes solidárias Segunda parte: o protagonismo da sociedade civil brasileira

Transcript of Segunda parte: o protagonismo da sociedade civil brasileira.

Maria da Glria Gohn. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes solidrias

Maria da Glria Gohn. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes solidriasSegunda parte: o protagonismo da sociedade civil brasileira

O protagonismo da sociedade civil brasileiraConceito de sociedade civil: passou por diferentes concepes e significados. No Brasil surge, de forma geral, em um contexto histrico, poltico, econmico e social especficos - no final dos anos 1970, em que o governo era ditatorial, nutrindo polticas pblicas que privilegiavam o grande capital e consideravam principalmente as demandas de parcelas das camadas mdias e altas da populao. (70)Sociedade civil torna-se, ento, na linguagem poltica corrente, sinnimo de participao e organizao da populao civil do pas na luta contra o regime militar, e pela aquisio de bens, servios e direitos sociopolticos negados pela ditadura. (71)O protagonismo da sociedade civil brasileiraSociedade Civil: ideia de autonomia - organizao independente do Estado, evitando-se alianas consideradas esprias, para que no houvesse reproduo de prticas autoritrias estatais e nem prticas tradicionalmente de esquerda consideradas, nesse momento, superadas, como o centralismo democrtico. (71)Gohn atenta para as contradies dos movimentos sociais nos anos 1970/80, apontando que, apesar da postura de autodeterminao (para fora), internamente, apesar da dinmica de assemblias, muitos dos grupos se apoiavam no auxlio de assessorias externas. (71)O protagonismo da sociedade civil brasileiraA democracia direta e participativa, exercitada de forma autnoma, nos locais de moradia, trabalho, estudo etc. era tida como o modelo ideal para a construo de uma contra-hegemonia ao poder dominante. Participar das prticas de organizao da sociedade civil signficava um ato de desobedincia civil e de resistncia ao regime poltico predominante (71/72)O protagonismo da sociedade civil brasileiraPautados nas reivindicaes por liberdade e justia social, nos novos movimentos sociais se tornaram os protagonistas da sociedade civil, lutando pelo reconhecimento de direitos sociais e culturais relativos raa, ao gnero, ao sexo, qualidade de vida, ao meio ambiente, segurana, aos direitos humanos etc. Eles expressaram uma ampliao e pluralizao dos grupos organizados, que redundaram na criao de movimentos, associaes, instituies e ONGs. (72)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraGohn observa que houve, no perodo, um deslize conceitual, muitas vezes apresentado como verdadeira teoria gramsciana, na concepo de que sociedade civil era o oposto de militar. Tal confuso gerou, para C. N. Coutinho (apud Gohn), o obscurecimento do carter contraditrio das foras sociais que formavam a sociedade civil brasileira.O protagonismo da sociedade civil brasileiraOs novos movimentos sociais no foram um fenmeno isolado no Brasil. Eles tomaram boa parte do globo, contrapondo-se ideia de que apenas os trabalhadores (proletariado) poderiam realizar mudanas histricas. Outros sujeitos sociais como mulheres, ambientalistas, homossexuais, negros j haviam iniciado uma trilha de lutas independente do mundo do trabalho e se firmado como agentes de construo de identidades e fora social organizada, ajudando a construir novos significados para a poltica, localizando-a no cotidiano, retirando sua exclusividade do campo da representao institucional e do poder, enquanto instncia centralizada no Estado. (vide, aqui, estudos de Foucault, Deleuze, Guatari, Castoriadis etc.) [74]O protagonismo da sociedade civil brasileiraCom a sada dos militares do governo (1985), os movimentos sociais (especialmente os populares) perderam paulatinamente a centralidade que tinham nos discursos sobre a participao da sociedade civil, passando a haver uma fragmentao do que se denominou como sujeito social histrico, centrado nos setores populares, fruto de aliana entre o movimento sindical e o movimento popular de bairro. Surge uma pluralidade de novos atores e de novas formas de associativismo, e a autonomia dos membros da sociedade civil deixa de ser o eixo estruturante fundamental para a construo de uma sociedade democrtica porque, com o retorno dos processos eleitorais, a sociedade poltica (traduzida por parcelas do poder institucionalizado no Estado) passa a ser objeto de desejo das foras polticas organizadas. (74)O protagonismo da sociedade civil brasileiraEnto, novos e antigos atores sociais fixaro suas metas de lutas e conquistas na sociedade poltica, especialmente nas polticas pblicas. 75)O conceito de cidadania, questo que j estava posta nos anos 80 - na qual se destaca a busca pela conquista de direitos civis e polticos, naquele momento focados nos direitos e primeira e de segunda gerao - agora, nos anos 90, forjado no contexto do descentramento do sujeito e da emergncia de uma pluralidade de atores e passa a ser incorporado nos discursos oficiais e ressignificado na direo prxima ideia de participao civil, de exerccio da civilidade, de responsabilidade social dos cidados, por se tratar no apenas de direitos, mas, tambm, de deveres. (75)O protagonismo da sociedade civil brasileiraNesse sentido, os atores sociais passam a ser homogeneizados, sendo envolvidos por deveres que os responsabilizam em arenas pblicas, via parcerias nas polticas sociais governamentais. (75)H um retorno ao atendimento da populao a partir de critrios da idade, gnero e etnia. (76)De um lado, isso expressa uma conquista dos movimentos sociais organizados, garantindo, de certo modo, a auto-estima e o sentido de pertencimento de indivduos a uma certa comunidade, o que pode ser denominado como empoderamento. (76)O protagonismo da sociedade civil brasileiraDe outro lado, por estarem congelados por polticas pblicas, tais novos direitos demandam, para expressarem, de fato, a realizao da democracia, a existncia de espaos pblicos novos para operacionalizar as polticas de forma diferente, que seja realmente representativos, com participao efetiva da comunidade, tais como diferentes tipos de conselhos, audincias pblicas, redes jurdicas locais articuladas a outras de carter regional, nacional ou internacional, fruns temticos ou participao popular. Se isso no ocorrer, estas polticas levaro quebra da unidade na questo da igualdade medida que elas so elaboradas fracionando a sociedade. (76)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs contradies em relao efetivao da cidadania nos termos da real participao dos atores sociais na construo das polticas sociais e pblicas so: a) o fato de que o atendimento das demandas sociais passam, nos anos 90, a ser ordenadas, pelo Estado, segundo critrios da administrao pblica (instncias inacessveis participao da sociedade civil), a maioria elaborados em instncias federais que priorizam os acordos internacionais de pagamento da dvida, ajustes fiscais acertados com o FMI etc.; b) a ameaa da fragmentao do problema social, da individualizao de problemas como o da pobreza ou da misria, a quebra da unidade e da fora da mobilizao em termos de direitos sociais e polticos. (77)O protagonismo da sociedade civil brasileiraOs novos atores que emergiram na cena poltica necessitam de espaos na sociedade civil instituies prprias, para participarem de novos pactos polticos que redirecionem o modelo poltico vigente. (78)Diviso do protagonismo dos movimentos sociais no Brasil: de 1990-95; de 1995 a 2000; de 2000 (...)O protagonismo da sociedade civil brasileira1990-1995 = houve um refreamento nos movimentos populares urbanos, o que se deveu a fatos novos, a saber:O pas saa de uma etapa de conquista de novos direitos constitucionais, a maioria dos quais precisava ser regulamentada;A volta das eleies diretas em todos os nveis governamentais tambm alterou a dinmica das lutas sociais porque se tratava, agora, de democratizar os espaos pblicos estatais;A necessidade de atuao no plano institucional e governamental aumentou;O protagonismo da sociedade civil brasileiraO governo federal passou a implementar as polticas neoliberais, as quais geraram desemprego, aumento da pobreza e da violncia urbana e rural. (79)A crise do movimento social urbano veio acompanhada, no incio dos anos 1990, pelo fortalecimento do MST. Paralelo a isso, novos atores sociais emergem com fora, como ONGs e outras entidades do Terceiro Setor. (80)Na crise do movimento social urbano observa-se tenses entre lideranas na conduo dos movimentos sociais, principalmente em relao a pontos como: institucionalizao, participao ou no em conselhos propostos ou criados pelo poder pblico, participao em programas governamentais etc.(80)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraCom lideranas ascendendo a cargos no poder pblico, criou-se a necessidade de articulaes e a maioria dos movimentos rurais e urbanos passou a atuar em redes e a construir agendas anuais de congressos e manifestaes pblicas, a exemplo do Grito dos Excludos. (81)Tal crise dos movimentos sociais expressava: a) o desmonte de polticas sociais pelas polticas neoliberais e sua substituio por outras polticas, em parceria com ONGs e outras entidades do Terceiro Setor; b) a fragmentao da sociedade pela desorganizao ou flexibilizao do mercado de trabalho levando ao crescimento do setor informal;O protagonismo da sociedade civil brasileirac) a defasagem na qualificao do mercado de trabalho face era da tecnologia, comunicaes e informao, levando a novas exigncias no campo da educao formal e no formal, face ao mundo globalizado.2. Metade dos anos 1990 = maior alterao nos movimentos sociais, a saber:a) crises econmicas internas, em movimentos populares e ONGs cidads que os levaram a repensar seus planos de ao. Algumas entidades sucumbiram, outras se fundiram com parceiras, outras, ainda, mudaram sua rea da atuao para setores especficos, dentro do leque dos programas sociais institucionalizados, governamentais ou de apoio advindo da cooperao internacional;

O protagonismo da sociedade civil brasileirab) introduo de novas pautas como a de se trabalhar com os excludos sobre questes de gnero, etnia, idade etc.;c) desmotivao da populao necessitada para participar de reunies e demais atividades do movimento em razo do desemprego e do aumento da violncia urbana, como o trfico de drogas;d) a ideologia de que os programas devem ser propositivos e no apenas reivindicativos, na perspectiva de poltica de distribuio e gesto de fundos pblicos em parceria com a sociedade organizada por projetos pontualizados como as crianas, os jovens, as mulheres etc. (mobilizar passou a ser sinnimo de arregimentar e organizar a populao para participar de programas e projetos sociais. (82, 83)O protagonismo da sociedade civil brasileiraGohn observa que o panorama dos movimentos sociais nos anos 2000 pode ser descrito em torno de 13 eixos temticos, quais sejam:1) Movimentos sociais ao redor da questo urbana, pela incluso social e por condies de habitabilidade na cidade = redes compostas por intelectuais de centro-esquerda e movimentos populares (como o MTST), os quais participaram da construo do Estatuto da Cidade; movimentos de camadas mdias contra a violncia urbana e pela paz; movimentos pela recuperao de estruturas ambientais e de equipamentos e servios pblicos (83/84)O protagonismo da sociedade civil brasileira2) Mobilizao e organizao popular em torno de estruturas institucionais de participao na gesto poltico-administrativa da cidade, como o Oramento Participativo e os Conselhos Gestores (Sade, Educao etc.); como os Conselhos de Populaes Afrodecendentes, da Condio Feminina etc.3) Movimentos pela educao, no setor da educao formal e na rea da educao no formal (84/85)4) Movimentos em torno da questo da sade5)Movimentos de demandas nas reas de direitos humanos e culturais6) Mobilizaes e movimentos sindicais contra o desemprego (86)O protagonismo da sociedade civil brasileira7) Movimentos decorrentes de questes religiosas de diferentes crenas, seitas e tradies religiosas8) Mobilizaes e movimentos dos sem-terra, na rea rural e suas redes de articulaes com as cidades via participao de desempregados e moradores de ruas9) Movimentos contra as polticas neoliberais por reformas estatais, polticas e sociais e reformas dos aparelhos estatais10) Grandes fruns de mobilizao da sociedade civil organizada contra a globalizao, como o Frum Social Mundial, Fruns Culturais, da Educao (Mundial) etc. (87)O protagonismo da sociedade civil brasileira11) Movimento das cooperativas populares, fundamentados na economia solidria, organizado em redes autogestionrias e solidrias12) Mobilizaes do Movimento Nacional de Atingidos pelas Barragens, hidroeltricas, implantao de reas de fronteiras de explorao mineral ou vegetal etc.13) Movimentos sociais no setor das comunicaes, como o Frum Nacional pela Democratizao da Comunicao (88)O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs ONGS:Nos anos 1970/80 as ONGs funcionaram como instituies de apoio aos movimentos sociais e populares (89)Nos anos 1990 surgem entidades autodenomiadas como terceiro setor, mais articuladas s empresas e fundaes, ao lado de ONGs cidads, que militam junto aos movimentos sociais e populares, as quais passam a assumir postura mais intervencionista junto a tais movimentos (89)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs ONGs cidads passam a se especializar e trabalhar em redes temticas de abrangncia local, regional, nacional e trasnacional. (90)O terceiro setor, por sua vez, cresceu em perspectiva pouco politizada, preocupado basicamente com a incluso social em termos de integrao social ao status quo vigente, trabalhando com projetos e programas focalizados para clientelas especficas, desconsiderando a possibilidade de universalizao das demandas. (91)O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs ONGs cidads passaram a qualificar seus agentes, e se voltar a clientelas das polticas em parceria, promovendo cursos, seminrios, capacitaes e at treinamentos, dentro da lgica dos critrios impostos pelos organismos internacionais. Nesse sentido suas prticas so muito parecidas com as do terceiro setor. No fosse o seu vetor cidado, no se distinguiria deste. (92)O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs ONGs cidads, tambm, mudaram seu referencial de trabalho: se antes se preocupavam com a transmisso de saberes (no modelo do educador social), nos anos 90 passaram a se preocupar com prticas comunicacionais em termos de interatividade, levando em considerao a pluralidade de seu pblico. No importa, mais, a ideologia poltica, mas a criao de sujeitos polticos ativos com capacidade de intervir na economia (informal) para melhorar a sua qualidade de vida e de sua famlia. (93)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraTerceiro Setor: organizado sob diferentes lgicas, que vo da tica do mercado a entidades com projetos emancipatrios. Seus paradigmas de abordagem podem ser:Utilitarista pautada na lgica racional;Assistencial/integradora fundada no voluntariado e voltada para eliminar tenses e conflitos sociais;Ator social emergente busca-se desenvolver as noes de pertencimento e de empoderamento (95/96)

O protagonismo da sociedade civil brasileiraAs ONGs que desenvolvem servio de carter educativo, por oposio ao assistencialismo, no seguem a lgica do mercado, mas a da cooperao e da solidariedade, recolocando o tema da igualdade, embora no consigam desenvolver conhecimentos universalizantes, ficando refns do trabalho com projetos localizados e focalizados. (97)Gohn demonstra uma expectativa em relao s ONGs cidads de que criem condies para vincularem-se mais a processos do que a projetos: para vincularem-se com os movimentos sociais e populares, com as associaes de moradores, com todos os grupos organizados que lutaram e lutam pelos direitos sociais no Brasil. (106)