Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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SUBVERSA VANDER VIEIRA | YURI CLARO DAVID COUTINHO | SABRINA DALBELO GLAUBER COSTA | EDSON AMARO AULUS MANDAGARÁ MARTINS | SAT AM MAURÍCIO GOLDANI LIMA | MIGUEL LEAL Vol. 4 | n.º 08 | maio de 2016 ISSN 2359-5817 Ilustração | MUTES

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Uma Subversa fragmentada

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SUBVERSA

VANDER VIEIRA | YURI CLARO

DAVID COUTINHO | SABRINA DALBELO

GLAUBER COSTA | EDSON AMARO

AULUS MANDAGARÁ MARTINS | SAT AM

MAURÍCIO GOLDANI LIMA | MIGUEL LEAL

Vol. 4 | n.º 08 | maio de 2016 ISSN 2359-5817

Ilustração | MUTES

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WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 4 | n.º 08

© originalmente publicado em 02 de maio de 2016 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

MUTES| BLOG | [email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

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AULUS MANDAGARÁ MARTINS | [O SUICÍDIO DOS AMANTES]|6

DAVID COUTINHO | ARRANHA-CÉU | 8

EDSON AMARO | MADAME SATÃ | 10

GLAUBER COSTA | O MONSTRO FAMINTO | 12

MAURICIO GOLDANI LIMA | UMA BARATA POR DIA | 15

| O EXAME | 20 MIGUEL LEAL

| TRANSCEDÊNCIA | 25 SAT AM

SABRINA DALBELO | FIM DE MIM| 27

VANDER VIEIRA | DESCAMINHO | 29

YURI CLARO | ABRAÇO | 32

SOBRE MUTES: "São danças de uma mão que desenha de

forma despreocupada" | 34

SUBVERSA

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EDITORIAL

A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida.

Cesare Pavese, “Il Mestiere di Vivere”

Um procura algo que lhe favoreça as ideias, outro procura algo que as

destrua.

Georges Braque

Gostar de literatura não é uma decisão simples. Implica se

entregar à possibilidade de se perder em várias direções. Implica

habituar-se à ideia de ter quebra-cabeças na mente, que volta e meia

podem entrar em conflito, questionar a maneira com que os olhos veem

o mundo, as pessoas, a arte e a si próprio.

Gostar de literatura também não é uma decisão temporária. Uma

vez atravessada a linha (ou, como disse Drummond, uma vez “trazida a

chave”), este eterno remontar de peças estará sempre lá, esperando

por novos códigos de montagem, porque gostar de literatura também é

descobrir continuamente novas formas de se comunicar e de ser

comunicado das coisas. Gostar de literatura é, sobretudo, criar um

código próprio de entender e expressar a relação com a realidade,

encontrar uma forma autêntica de viver.

Este número está fragmentado, tanto pela série de textos que

falam de corpos despedaçados, fragmentos de sonhos e esperanças

cortadas, como as imagens do artista plástico português Mutes.

Reconhecido pelo trabalho de desconstrução e decomposição dos

elementos da obra, o artista dialoga com a comunicação do

inconsciente, fragmentária das impressões e emoções que dão sentido

ao existir. Tão perplexas como a arte que aqui se apresenta, nós,

editoras, perguntamos:

Quantos cacos poderão juntar essas páginas?

Desejamos a todos uma boa leitura.

As editoras

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AULUS MANDAGARÁ MARTINS | Pelotas, RS.

o suicídio dos amantes

cada vez que, na cama

entrelaçados numa estranha morte

mergulham num mar de espasmos

[O SUICIDIO DOS AMANTES]

“O rapaz que oferecia couves à rapariga que tocava viola”, tela de Mutes

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depois, nada mais

além de dois corpos

devolvidos à vida

na praia branca dos lençóis

AULUS MANDAGARÁ MARTINS é professor de literatura na Universidade

Federal de Pelotas. Blog: https://aulusmandagaramartins.wordpress.com

| [email protected]

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DAVID COUTINHO | Rio de Janeiro, RJ.

Observava através das janelas o movimento da vida do lado de

fora. A gravata apertava seu pescoço, sua fé afrouxava a imaginação.

Sentia que mesmo numa cadeira giratória, se fechasse os olhos, poderia

girar pelo mundo. O sol já se preparava para dormir, uma vista

maravilhosa, senão fossem os prédios em volta. De terno amarrotado, só

queria descalçar os pés e se jogar na cama macia. Por hora,

continuava observando toda profusão de pensamentos dentro de si. Ali

pôde notar coisas grandiosas, de maneira que não seria possível

ARRANHA-CÉU

“O burguês no 25 DES`Abril de 2015”, tela de Mutes

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mensurar. Descobriu um verdadeiro mundo por trás dos seus próprios

olhos. Nunca tinha se visto tão de perto, era assustadora a precisão dos

traços. Sentiu vontade de respirar o mormaço da chuva quente que

antes limpou as janelas. Prensado pelo paletó que não lhe dava

descanso, somente inquietação, seu corpo se consumia enquanto

tirava as roupas e saltava em pares os degraus para cobertura; era mais

rápido subir, estava nas alturas, num arranha céu. Decidiu que arranhar

o céu não seria apenas uma regalia dos prédios de concreto. Todo

limite e falha por trás das janelas irrompiam naquele lugar. Correu sem a

preocupação que lhe seguia tombar, e da beira saltou para imensidão

azul: sem gravata, paletó ou janelas. Vislumbrou o sol enquanto pairava

no ar. Finalmente arranhou o céu, com suas unhas bem cortadas e

polidas. Em tanto tempo de existência, pensou consigo, aquele imenso

azul jamais recebeu melhor carinho.

DAVID BARRETO COUTINHO é professor e pesquisador por ofício, escritor por

prazer. É formado em História e possui mestrado em História Política, tendo

assim alguns artigos publicados em revistas especializadas nesse meio.

Atualmente, dedica-se a pesquisas na área de Ciência da Informação e a

divulgação de seus textos literários. | [email protected]

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EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.

MADAME SATÃ

“(DES) Cubismo Contornismo n.º 29”, Tela de Mutes

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Para o bloco carnavalesco “Planta na Mente”

Vi Madame Satã no carnaval

Dançando sem camisa. Que deleite

O umbigo apetitoso, cor de azeite

De dendê esse corpo escultural!

Lábios rubros, bigode fino, qual

Folião que seus beijos não aceite?

Qual cavalo em que um santo bem se ajeite

Girava e se torcia em espiral.

Sambou da Lapa à Praça Tiradentes,

A pele encharcando de suor,

A saia abanando as coxas quentes...

As cinzas dessa Quarta já desfeitas

Das lembranças me restas a melhor,

Travesti que meu bloco bem deleitas...

(11/2/2015)

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública

estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do

romance “Valperga”, de Mary Shelley | [email protected]

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GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

Naquele tempo, ouvia-se muito falar sobre um monstro que

perambulava nos arredores do vilarejo. Os aldeões, todas as noites,

faziam uma fogueira na parte central da vila, como uma promessa aos

deuses, em troca de proteção. Porém, seja pela consciência dos sábios,

O MONSTRO FAMINTO

“Já cheiram mal há muito”, tela de Mutes

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seja pela natureza de toda imaginação sobrenatural, todos tinham em

mente que, a misericórdia dos deuses é pouca e, por isso, um dia

aquele monstro iria invadir tudo e destruir a todos, indubitavelmente.

Apesar disso, o dia a dia na vila era controlado. Tarefas eram bem

divididas e disciplinadamente cumpridas. Homens e mulheres juntavam-

se nas colheitas, na caça e nas atividades domésticas. E no final das

tardes, todos levavam metade de toda a produção, pública ou

particular, para ser oferecida aos deuses, na fogueira.

A vida ali era uma tentativa coletivamente sóbria de adiar a

morte. No entanto, dentro dos lares, tinha certa tensão. À noite, em

algumas cabanas, havia sempre alguma discussão na divisão da

comida, que sobrava sempre pouca, do trabalho coletivo. Em outras,

via-se demonstrações melancólicas de sacrifícios e de generosidade

em prol dos mais jovens. Mas ainda assim, a fome se fazia sempre

presente.

De umas noites para cá, uma das cabanas estava mais

tumultuada do que as outras. Isso porque havia nascido um choroso

bebê. E a sua chegada dava naquela gente um misto de alegria e

apreensão, visível pelas sombras que a grande fogueira fazia daquelas

pessoas à noite. Em uma dessas noites habituais, uma daquelas sombras

se destacou do aglomerado que se fazia na casa da nova criança. Era

a mãe.

Chorosa e aflita, ela saíra de perto das bocas cheias de ameaças

em sua casa. E caminhara em direção à fogueira, que já ardia a todo

vapor.

Deitou o menino raquítico no chão e sentou-se, tristonha. Foi

quando viu uma movimentação por trás da fogueira. Alguns aldeões

estavam jogando madeira no fogo. Porém, aguçando a visão, a mulher

conseguiu ver sob a luz trêmula do fogo, outros carregando os recursos

destinados às oferendas para longe da fogueira. Desesperou-se. Correu,

berrando, a denunciar o desvio de recursos, a fim de solucionar a fome

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do filho, que acabara deixando ali no chão, no impulso de ter, enfim,

encontrado a impossível saída. Sem nem mesmo pensar que isso

implicaria no questionamento ao sistema de crença de toda a sua

terra.

Os gritos da mulher alarmaram o povoado. Todos saíram com

armas na mão, e alguns até gritaram, jurando terem visto o monstro

invadindo a vila. Toda a confusão despertada suprimia a voz da mulher,

que se confundia com a amálgama de gente para todo lado. Até que

um tiro unificou a visão de todo mundo. Era na direção da mata.

Outro tiro, no mesmo lugar, despertou um urro grotesco. Muitos,

então se ajoelharam, suplicando aos deuses piedade. Fez assim

também a mulher, apavorada e sentindo-se absolutamente culpada

pelo despertar do carrasco de todos. Quem não ajoelhou fugiu para

sempre ou foi na direção do berro monstruoso. Alguns desses últimos,

exaltados, apontavam, aflitos, marcas de garras enormes nas árvores e

acabaram ajoelhando-se também. Apenas um homem e uma mulher

sobraram de pé, anunciando terem visto a cara do demônio, e gelaram

paralisados de pavor.

Todos, então, escutaram os berros da fera, cada vez mais altos e

agoniantes, em seu anúncio definitivo do fim daquele povoado. Até

que cessou. Fez-se um silêncio medonho. Após alguns minutos de

angústia resignada, aos poucos, as pessoas começaram a se levantar,

perscrutando se havia ainda vida neles próprios e no lugar, quando

viram o monstro caído, todo ensanguentado e despedaçado no chão,

e por cima dele a criança recém-nascida, devorando-o, com

ferocidade faminta, pedaço a pedaço, a saciar a sua fome.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”,

ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto

“Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume

impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage

do Facebook chamada Manuscritos. | [email protected]

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MAURICIO GOLDANI LIMA | Cachoeirinha, RS.

Um leão por dia

não é um desafio realista

Primeiro porque nunca vi um leão

Segundo:

todas as pessoas que conheço e que viram um leão

o viram em uma jaula de zoológico

doente e mal alimentado

(ninguém tem grana pra um safari na África)

Então, mesmo que fosse um desafio realista

matá-lo não seria difícil

Nos safaris envelhecem e morrem sem nossa ajuda

então pra que interferir?

UMA BARATA POR DIA

“Manifestações Subversivas”, tela de Mutes

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Aqui, para matá-los a negligência

e indiferença nossa

de cada dia

basta

Com baratas o caso é diferente

a negligência as atrai

surgem quando menos se espera

quando estamos distraídos

cuidando de nossas vidas

São rápidas, ariscas

voam, fogem, se escondem, voltam

Claro,

baratas não inspiram tanto medo quanto leões

- embora alguns possam discordar –

e matá-las não é um grande ato de coragem

- idem –

mas

sim

são as pequenas coisas

que podem levar um homem gradativamente à insanidade

como matar baratas todos os dias

ou manter a casa limpa

para que elas não venham

Enquanto escrevia

uma barata surgiu pelo lado do colchão

tomei um susto

e derrubei o copo de vidro que segurava

estilhaçou-se no chão

A dificuldade depois

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foi matar o ágil inseto sem cortar meus pés descalços nos cacos de

vidro

Outro dia

quando fui ao banheiro

vi que havia esquecido um copo sujo na pia

- onde lavo a louça por falta de uma pia no quarto/sala/cozinha –

nele jazia uma barata morta

afogada

Despejei a água no vaso

e puxei a descarga

Ela não afundou

Naquela semana

a casa ficou fedendo

e desconfiei que havia sido por causa da barata

embora possa estar errado

Ela só afundou depois que a enrolei em papel higiênico

Teve também a vez

que eu estava sentado no vaso

cagando

só de cueca e meias

quando uma barata surgiu serpenteando por entre meus pés

Não entendi se ela queria fugir

me atacar

ou se só estava confusa, perdida

Fiquei na dúvida

sacolejando meus pés para lá e para cá

numa espécie de samba que se faz cagando e sentado

ora desviando

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ora tentando acertá-la

até que ela fugiu pelo vão da porta

Matei-a apenas após

no corredor que dá para a rua

mas pode muito bem ter sido uma outra barata qualquer

Numa outra ocasião

estava cozinhando

e uma barata caiu dentro da panela de arroz

A dificuldade

além de tirá-la de lá e tentar matá-la

foi decidir se jogava o arroz todo fora

ou se tentava cuidadosamente selecionar

os grãos de arroz intocados pelo sujo animal

Sim

são as pequenas batalhas

As batalhas sujas

que não são contadas

As baratas sujas

que surgem nos sujos cantos

por entre os vãos das paredes

Hoje eu dormia

quando na escuridão

você surgiu

rastejando com suas minúsculas patinhas

sobre meu rosto

Acordei de sobressalto

e ainda meio desacordado

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joguei meu chinelo tentando acertar

Errei

Você fugiu

acho que tão assustada

quanto eu

e se escondeu em alguma fenda da parede do meu quarto vazio

MAURICIO GOLDANI LIMA esqueceu o lirismo no chão do quarto. Baratas

levaram para o ninho no esgosto. Para alguns escrever é uma espécie de

parto. Para ele é uma espécie de aborto. |

[email protected]

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MIGUEL LEAL| Loulé, Portugal

O EXAME

“Coluna Central de um (des) governo corrupto”, tela de Mutes

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Obrigado Maurix!

António L. tremia as pernas enquanto esperava diante do gabinete do

juiz dos serviços de vigilância do cidadão. As algemas, que sufocavam

qualquer movimento seu, chocalhavam com a mesma frequência dos

seus tremores. Este nervoso miúdinho que costumava invadir qualquer

prisioneiro devia ser algo a que o guarda que o vigiava já se habituara,

tanto que bateu com o bastão na palma da mão e apontou-o para L..

- Não te iludas. - disse ele.

O prisioneiro levantou a cabeça, cruzando o olhar com o do vigilante.

- O que há para iludir-me? - perguntou L..

- A tua memória. - disse o guarda, e depois perguntou: - Nunca leste o

livro do senhor juiz?

- Não sabia que tinha escrito um livro. - respondeu L.

- É mais um manual de direito, mas escreveu. Nunca o li, pelo que te vou

contar apenas o que me disseram. - informou o guarda. - Está no livro

do senhor juiz escrito assim: "Aparece-me um homem a quem, por

ordem superior, fora indulgenciado. Contudo, é sabido que a

indulgência não significa libertação. O prisioneiro tem que ser

interrogado por um juiz da vigilância do cidadão, onde o primeiro, por

intermédio da consulta do diário que descreve cada acontecimento

da sua vida, deve encontrar e estar ciente do episódio primeiro que o

levou a cometer o crime."

L. interrompeu o guarda prisional:

- Quem é que escreve esse diário?

- São os serviços de vigilância do cidadão. A cada pessoa está

atribuída um vigilante que regista tudo o que faz num diário. Por

exemplo, o seu tem o título de "Diário do Cidadão António L.". - disse o

guarda. Depois, prossegue a contar a história do manual do juiz. - O

senhor juiz continua lá escrevendo assim: "Portanto, tenho o homem

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sentado do outro lado da secretária, à minha frente, procurando no seu

diário o tal episódio. Folheia aquelas páginas dactilografadas, algumas

delas amareladas, e, a certa altura, aponta para um parágrafo e

procura-me o olhar em busca de confirmação. Abano a cabeça e

explico-lhe que é possível que não tenha sido esse episódio a

desencadear o crime. "Mas foi aqui que disparei a pistola", diz ele. Peço

então que procure o episódio anterior, aquele que causou o disparo da

pistola. Folheia o livro durante mais alguns minutos, e aponta para uma

frase. Sei qual é o episódio, e pergunto-lhe, "Tem a certeza?". "Foi aqui

que me apaixonei por ela", diz ele. Insisto, "Mas, tem a certeza?". Ele

responde-me, "Certeza, certeza, não tenho...". "Sem a sua certeza nada

posso fazer", digo-lhe. Acendo um cigarro e fico observando o homem

enquanto folheia o seu diário por mais uma hora. Está calor e as gotas

de suor escorregam-lhe pela testa até empaparem as sobrancelhas.

Pouco falta para que estas também pinguem suor para o papel.

«Eis que me aponta para outro episódio, mas antes que eu lhe pergunte

se tem a certeza, refere outro episódio anterior ao que acabara de

referir, e depois outro ainda mais anterior, e por aí adiante até atingir

uma conclusão. "Por isso, está a dizer-me que matou-a porque nasceu,

ou, reformulando, que foi o episódio do seu nascimento que provocou a

morte da mulher?, pergunto. "Foi isso mesmo que disse", responde o

prisioneiro. "Está certo disso?". "Sem dúvida.". "Portanto, só para que não

restem dúvidas, se você não tivesse nascido a mulher não teria morrido.

Confirma?". "Confirmo". "Pois bem, pode ir embora. Logo saberá a

minha decisão", digo-lhe enquanto apertamos as mãos. Nota-se o alívio

do homem através de um expiro seu.

«O guarda entra dentro do gabinete para o levar, por fim. Então, fecho

o seu diário e volto a guardá-lo na estante. Se o prisioneiro afirma que o

motivo do crime, e, por consequência, da prisão, foi ter nascido, então

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não posso assinar a sua liberdade. Riscar o seu nascimento do diário

seria apagar todo o registo enquanto cidadão, e como se o matasse.

Ora, nenhum cidadão deve permanecer no anonimato."

António L. continuava a olhar o guarda, e perguntou-lhe:

- Mas não é a função do senhor juiz eliminar do diário o episódio da

nossa vida que favoreceu o crime, e, como tal, libertar-nos?

O guarda soltou uma gargalhada, e disse:

- Pareces-me um tipo às direitas, e é por isso que te conto isto. Não estás

a perceber. O problema é que o senhor juiz influenciou a decisão do

prisioneiro. Repara que o prisioneiro não se consegue decidir porque

aquilo que lê no diário não coincide com as memórias que guarda.

- Diz que o diário está errado?

- Não. Nós é que podemos falsear as nossas próprias memórias com o

decorrer do tempo.

- Então é por isso que o homem não tem a certeza de nenhum dos seus

episódios, a não ser ter nascido?

- Exacto. - diz o guarda. - Não está sequer certo de que se de facto

matou a amante.

- Ou seja, nem sabe por que está preso. - concluiu L.

- Ora, era aí onde queria tu chegasses. Se a culpa é de ter nascido, logo

não tem consciência do verdadeiro motivo para estar preso. Ora,

libertar um homem que não sabe por que razão cometeu um homicídio

é tão grave quanto perigoso.

No momento em que António L. e o guarda prisional terminam o

diálogo, a maçaneta gira e a porta abre-se. Sai um outro prisioneiro

acompanhado de outro guarda que o leva corredor afora.

- Seguinte! - grita o diretor dos serviços de vigilância do cidadão,

escondido no fundo do escuro do gabinete, sentado atrás da

secretária.

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O guarda prisional ajuda L. a levantar, pisca-lhe o olho, e entram no

gabinente. Entretanto, a porta fecha-se para entregar a mais um

prisioneiro o exame de acesso à liberdade.

MIGUEL VIEGAS LEAL tem 20 anos, é de Loulé, Algarve, mas actualmente

estuda na Universidade da Beira Interior, Covilhã. Começou a escrever aos 14

anos, logo que compreendeu que através da escrita podia acessar mundos

que de outra forma seriam impossíveis de visitar. Tem contos publicados em

vários sítios na internet, além de livros infantis em fase de edição nos EUA, em

português e inglês. Obteve uma menção honrosa no II Concurso Literário

Francisco Guerreiro, na vertente de prosa, com o conto "a menina que queria

desafinar". Espera aprender a escrever cada vez melhor e que possa fazê-lo

por muitos anos vindouros. | [email protected]

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SAT AM | Curitiba, PR.

Nessa carcaça vazia os vermes fizeram morada,

Naquilo que um dia foi um alguém.

Essas gotas frias de colossal magnitude se chocam contra o

solo,

E o estrondo que se ouve é ensurdecedor,

Assim como um dia minha voz no escuro,

Chocou-se contra o vácuo produzido pelo limbo do

esquecimento.

TRANSCENDÊNCIA

“(DES) Cubismo Contornismo n.º 26”, Tela de Mutes

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Ninguém me notou, andando entre sombras perdidas de um

cosmos vazio.

A matéria negra exalada de minha boca criou novas mortas

estrelas,

E o caos que pôde ser visto em cores translucidas; verde,

amarelo,

A fosforescência assombrosa que leva ao delírio do “o que

existe lá?”.

E agora esse exuberante timbre que rasga meus tímpanos.

Você não sabe sobre os horrores que me visitam em sonhos

de loucura,

Não imagina as abominações que me foram apresentadas,

Sequer pode imaginar aquilo que da escuridão ronda meus

dias,

E me leva a esquecer...

Onde aquele pássaro fora pousar?

Ele ainda vive, ou apenas continua vagando entre planetas

antigos?

Circundando-os em velocidade sônica,

Deixando para trás seu rastro de penas vermelhas caídas

sobre constelações.

SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do

Paraná. Desde que se entende por gente, escreve poesia/músicas

como válvula de escape. Seus textos sempre estão carregados dos seus

pensamentos: Ódio, raiva, terror, luxúria, são temáticas recorrentes nos

meus trabalhos. | [email protected]

Page 27: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS.

Num berçário de crianças mortas

Almas reféns repousam em luto

Aturdidas atrás das portas

“Pelo meu relógio são horas de pintar”, tela de Mutes

FIM DE MIM

Page 28: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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Desfiguradas dançam em vultos

Má sorte, ódio, decisões tortas

Não se sabe ao certo qual o tributo

O grande vazio que a vida comporta

Embarreirada no absoluto

Brinquedos coloridos intocados

Lembram a festa que não será

Anunciam ausência de convidados

Beijos frios, abraços não trocados

Cobram uma vida que só passará

Do ventre seco de frutos desejados

SABRINA NUNES DALBELO é gaúcha, graduada em Direito, servidora pública do

Ministério Público Federal e escritora de tudo um pouco. Participa de vários

grupos literários e mantém as páginas do Facebook “Se Tem Nome Existe”,

onde publica contos, poesias e algumas poucas crônicas; e “Pensamento Sem

Moldura”, com aforismos e pensamentos. Já participou de algumas antologias

poéticas pelas Editoras: Poesias Escolhidas (Belo Horizonte), Grupo Pastelaria

Studios (Lisboa – Portugal) e LiteraCidade (Macapá), mas ainda não publicou

seu livro solo. Utiliza-se das dualidades e dos paradoxos para contar as coisas

da vida. Escreve sobre tudo um pouco, e a qualquer momento, e tem como

característica não revisar seu texto, que comumente é postado online, na hora

em que é criado. | [email protected]

Page 29: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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VANDER VIEIRA | Vitória, ES.

DESCAMINHO

“Não à pedofilia”, tela de Mutes

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A Luiz Antônio do Nascimento

São indigestas estas veredas:

pedras e facas cegas,

doses de pouco amor.

Se bifurcam pra lá e pra cá

e acolá não se bifurcam:

pedras e facas cegas,

meias palavras, conversa fiada.

Meias palavras,

densas ausências e pesadas

fraturas – passos e mais passos,

os mesmos rumores

e estilhaços:

pedras e facas cegas,

farpas na carne do dedo.

Sai ferido o sangue,

o coração sai em pedaços,

os membros inferiores, pâncreas

e fígado, todo um corpo

maltrapilho, quase sucumbindo:

pedras e facas cegas,

todo um corpo maltrapilho.

Sem riso pelas águas jogadas

escada a baixo,

as águas que não são de rio ou de mar,

Page 31: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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as águas que já foram minhas águas

e não mais retornarão:

em meio aos escombros do corpo

e da casa,

pregos, cães dilacerados,

em meio aos escombros do corpo

e da casa.

Eu não colherei os frutos maduros

dos teus lábios

tampouco sentirei o teu pulmão

novamente colado ao meu:

por que diabos esperar a primavera

quando já não há mais dia?

VANDER VIEIRA é poeta, mineiro do interior e tem 26 anos.É filho do Luiz e

da Eunice e tio da Maitê. Mestrando em Filosofia pela Universidade

Federal do Espírito Santo - UFES, vive em Vitória/ES desde 2009. Publicou

há poucos meses seu primeiro livro, "Descaminho", pela editora Multifoco

(http://editoramultifoco.com.br/loja/product/descaminho/) e também já

foi publicado pelas revistas Subversa, Samizdat, Diversos Afins e

Mallarmargens. | [email protected]

Page 32: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.

Não permitem as forças que possuo

nos meus braços

te abraçar até que

se despedace

em tantos vocês

numa profusão

de sangue e vísceras

pelo chão,

ABRAÇO

“O homem que praticava descompressão manual na tela”, tela de Mutes

Page 33: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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meu amor.

mas, se num arroubo desses

que pode por vezes acontecer

a fragilidade da nossa humanidade

me acometesse desumana, tal força

então apertaria cada pedaço

como se dele fosse nascer uma nova você

à moda das caravelas que vivem

em recônditos abissais

no profundo do mar

Cuidaria então

de cada fragmento

para que não apodrecessem

deixaria no gelo, leria-te histórias

e nos pedaços do seu crânio, pentearia

os tufos irregulares cacheados despontando

dormiria entre fragmentos entalhados

dos teus ossos, em fraturas expostas

e beijaria teus coágulos, de dias, manchando as paredes

da nossa sala.

Então, quando me cansasse

e haveria de cansar

abraçaria de volta todos os pedaços

num amontoado

com força, sobrenatural

até ser você de novo.

YURI CLARO é estudante das letras na Universidade Estadual do Norte de

Algum Lugar, passa a maioria do seu tempo a sentar-se em diferentes lugares

e sofrer por esse mundo de hoje. Sua idade não importa, mas se importasse,

teria 19. | [email protected]

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MUTES (França, Margny Les Compiegne, 1976) passou a

viver em Portugal em 1986. Frequentou a escola até ao 12º

ano, onde depois decidiu dedicar-se ao rock and roll. Pintor

autodidata, iniciou a sua carreira nas artes em 2000. Fez

algumas incursões pelo mundo da música e do teatro, foi

baixista da Banda Primitive Noise, e DadaBeat, entre 1995 e

2005. Trabalhou no coletivo de teatro experimental A Traça.

Expõe com regularidade desde 2004 em Portugal e no

Estrangeiro, em exposições individuais ou coletivas. Está

representado em diversas coleções nacionais e estrangeiras

nos 5 continentes. É amante do Cubismo, trabalha a corrente

pictórica (DES) Cubismo Contornismo e as suas inúmeras

Sobre MUTES: "São danças de uma mão que

desenha de forma despreocupada"

Page 35: Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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figuras mutantes e imaginárias numa explosão de cores e

danças de estranhos movimentos. Organiza e projecta várias

exposições, foi fundador e curador dos colectivos de pintura,

M4K1, Um Coletivo no Individual, H.e.x.a e M.O.C.A.

Frequentou alguns ateliês onde aprendeu técnicas do

contornismo, acabando por fundir com a sua forma de fazer

Cubismo. Mutes pinta o estado de espírito, aquilo que o

rodeia, por vezes o momento, a crítica social ou religiosa,

tudo aquilo que lhe serve como força interior para projectar

na tela.

“As influências na minha fase inicial foram sem dúvidas a

escola do grande Jackson Pollock. Com o passar dos anos

desenvolvi o meu próprio traço e a minha forma de pintar. Na

minha colecção designada (Des) Cubismo Contornismo,

busco a desestruturação da obra em todos os seus

elementos. Decompondo a obra através de figuras mutantes

imaginárias, registo os elementos em planos sucessivos numa

visão total da figura, contornando-a nas suas dimensões, sob

estranhas e variadas formas com o predomínio de linhas

curvas e rectas, numa estruturação das figuras e dos objectos

desajustados. São danças de uma mão que desenha de

forma despreocupada, usando o (DES) Cubismo como forma

de se afirmar”.

Mutes

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

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