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Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação

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Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Revista Brasileira deHistória da Educação

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Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialDiana Gonçalves Vidal (USP); José Gonçalves Gondra(UERJ); Marcos Cezar de Freitas (USF); Maria LuciaSpedo Hilsdorf (USP).

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); Denice B.Catani (USP); Ester Buffa (UFSCar); Gilberto Luiz Alves(UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); José SilvérioBaia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho(UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); Maria ArisneteCâmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A.Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI);Maria Helena Camara Bastos (UFRGS); MariaStephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN);Paolo Nosella (UFSCar).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes(Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel(Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica dedireito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacional deHistória da Educação.

DiretoriaPresidente: Marta Maria Chagas de Carvalho (PUC-SP)Vice-Presidente: Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio)Secretária: Libânia Nacif Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte: Maria das Graças Pinheiro da Costa (UFAM)e Anselmo Alencar Colares (UFPA)Nordeste: Marta Maria de Araújo (UFRN) e AfonsoCelso Scocuglia (UFPB)Centro-Oeste: Silvia Helena Andrade de Brito (UFMS)e Nicanor Palhares de Sá (UFMT)Sudeste: Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ) e JoséCarlos de Souza Araújo (UFU)Sul: Maria Thereza Santos Cunha (UDESC) e MarcusLevy Bencosta (UFPR)

SecretariaCentro de Documentação e Apoio à Pesquisa emHistória da Educação – CDAPHAv. São Francisco de Assis, 218CEP 12916-900 – Bragança Paulista-SPTelefone: (0xx11) 4034-8448Fax: (0xx11) 4034-8044Home page: http://paje.fe.usp.br/~sbhe/E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO E ASSINATURA

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

julho/dezembro 2002 no 4

ISSN 1519-5902

Dossiê “Negros e a Educação”

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS

Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

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Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Dermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

RevisãoSimone LigaboValéria Cristina da Silva

Diagramação e ComposiçãoEdnilson Tristão

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS

Os livros escolares da Bibliothèque Bleue: arcaísmo ou modernidade? 9Jean HébrardLaura Hansen e Maria Rita de Almeida Toledo (tradução)

Celso Suckow da Fonseca e a sua “História do ensino industrial no Brasil” 47José Rodrigues

Sob(re) o silêncio das fontes... A trajetória de uma pesquisa em história daeducação e o tratamento das questões étnico-raciais 75Eliane Peres

Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escritaentre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira 103Maria Cristina Cortez Wissenbach

Educação e escravidão: um desafio para a análise historiográfica 123Marcus Vinícius Fonseca

A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a respeito das práticas deescolarização no mundo escravista 145Adriana Maria Paulo da Silva

RESENHAS

AS LUZES DA EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS, RAÍZES HISTÓRICAS E PRÁTICA DAS AULAS

RÉGIAS NO RIO DE JANEIRO (1759-1834), Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso 167Por Patrícia Cristina Fincatti Moreira

DICTADURA Y EDUCACIÓN, Carolina Kaufmann (dir.), Delfina Doval, Cristina Godoy,Claudio Suasnábar 171Por María del Carmen Fernández

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NOTA DE LEITURA

Serie Clásicos de la Educación 177Comas, Margarita. Escritos sobre ciencia, género y educaciónLuzuriaga, Lorenzo. La escuela únicaNatorp, Paul. Pedagogía social. Teoría de la educación de la voluntad sobrela base de la comunidadPor Kazumi Munakata

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 185

CONTENTS 187

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Editorial

O número quatro da Revista Brasileira de História da Educação temum significado especial para sua Comissão Editorial.

Inicialmente vale notar que este número vem a público logo após o IICongresso Brasileiro de História da Educação, ou seja, esta publicaçãoconfirma a importância de ocupar seu espaço editorial e acadêmico nomesmo momento em que a Sociedade Brasileira de História da Educaçãose consolida. Esse processo legitima a Sociedade e a Revista ao mesmotempo. Ambas conseguem congregar um expressivo número de investi-gadores responsáveis pelo amadurecimento desse campo do conhecimen-to, no Brasil.

Este número também representa uma outra conquista. Foi possívelplanejar e levar a efeito a demarcação de um “território plural de deba-tes” no corpo de nossa publicação semestral. Isso diz respeito àconcretização do projeto de publicação de dossiês como uma “marca re-gistrada” que se quer imprimir à Revista. Neste número apresentamos oprimeiro dossiê de uma série que terá continuidade número após número.

O dossiê Negros e a Educação dá início, com contribuições inovado-ras, ao processo através do qual a Sociedade proporcionará a organizaçãode debates específicos entre pares habitualmente distantes em razão dasdemandas do trabalho universitário mas que, a contar deste número, esta-rão próximos nas páginas da RBHE.

Outros dossiês já estão em andamento e a recepção de artigos paraavaliação cresce continuamente.

As traduções, os artigos aprovados, as eventuais republicações detextos fundamentais relacionados tanto à memória da educação quanto àhistoriografia da educação brasileira, somadas às resenhas e às notas deleitura, compõem um perfil que, doravante, buscará obter as indexaçõesinternacionais necessárias para que a rica produção brasileira chegue aosinterlocutores de outros países.

Comissão Editorial

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Os livros escolares daBibliothèque Bleue1:

arcaísmo ou modernidade?

Jean Hébrard*

Tradução: Laura Hansen eMaria Rita de Almeida Toledo**

1 O tipo peculiar da Bibliothèque Bleue é comparável à literatura de cordel, podendoser o título traduzido por “livros escolares da literatura de cordel”. Optamos pormanter o nome original em francês (nota das tradutoras).

* Jean Hébrard, École des Hautes Études em Sciences Sociales. Paris.** Laura Hansen é formada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo. Atualmente é doutoranda do Laboratoire de Psychopathologie Fondamentaleda Universidade Pars 7 – Denis Diderot.Maria Rita de Almeida Toledo é professora doutora do programa de estudos pós-graduados em educação: história, política, sociedade, da Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo.

O artigo analisa a produção e a circulação dos livros editados pelos impressores daChampagne, destinados aos escolares ou aos leitores que “querem aprender sem mestre”,entre os séculos XVII e XIX , na França. Analisa o itinerário das cartilhas, abecedários,gramáticas e aritméticas editadas sob a fórmula editorial denominada de Bibliohéque Blue,destacando os dispositivos editoriais mobilizados para atingir os diferentes mercados vi-sados por essas edições, assim como as adaptações, modificações e conversões que textosproduzidos com outras destinações sofreram para serem convertidos em livros daBibliothéque Blue.

The article analysis the production and circulation of the books edited by the pressmen ofChampagne, designated to the scholars or readers that “wanted to learn without masters”,in between the XVIIth and XIXth centuries in France. It analysis the itinerary of thespellers, abecedary, grammars and arithmetic’s edited under the editorial formuladenominated Bibliothéque Blue, adopted by these editors, salienting the editorial devicesmobilized to reach the different markets aimed by these editions, as the adaptations,modifications and conversions that the texts produced with others destinations, sufferedto be converted in books of the Bibliothéque Blue.

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Os impressores da Champagne, da primeira metade do século XVII,adotam uma fórmula editorial da qual eles talvez não sejam os inven-tores, mas que graças a eles se impõe durante mais de dois séculos soba denominação de Bibliothèque Bleue2. Conhecem-se sobretudo osalmanaques, os livros farsescos ou os romances medievais. Todavia,os Oudot ou os Garnier – para se restringir às duas principais dinastiasinstaladas em Troyes – cedo tratam outros tipos de textos, como, porexemplo, as obras pertencentes a tradição letrada3 e, ao contrário, osopúsculos de vocação prática ou informativa4. Em todo o caso, os tex-tos são preparados, mis en page e impressos segundo os cânones espe-cíficos que visam adaptá-los a um público maior, eventualmente malalfabetizado e com poder de compra módico. Eles são difundidos pe-los vendedores ambulantes nas cidades rurais e atendem aos leitoresos mais variados5.

Entre os “livros práticos”, os instrumentos da devoção ordinária (ho-ras, salmos, artes de morrer, vida de santos etc.) têm um lugar importan-te. Os livros de informação técnica (receitas de cozinha, de medicina, depredição ou de magia, trato de animais, regras de jogos de sociedade6

2 Existem numerosos estudos sobre a Bibliothèque Bleue. Veja a bibliografiaestabelecida por Giovanni Dotoli e Paolo Carile, “Appendice bibliografica”,Quaderni del seicento francese, vol. 4, La “Bibliothèque Bleue” nel seicento odella letteratura per il popolo, Bari, Adriatica et Paris, Nizet, 1981.

3 Roger Chartier, Figures de la gueuserie, Paris, Montalba, 1982.4 Dois domínios entre esses diferentes tratados práticos foram particularmente mais

estudados: os livros de receitas (La cuisiniere françois, textes présentés par Jean-Louis Flandrin, Philip et Marie Hymen, Paris, Montalba, 1983) e os de secretários(Roger Chartier, “Des ‘secrétaires’ pour le peuple”? Les modèles épistolaires del’Ancien Régime entre littérature de cour et livres de colportage”, LaCorrespondance. Les Usages de la lettre au XIXe siècle, sous direction de RogerChartier, Paris, Fayard, 1991, pp. 159-207.

5 Roger Chartier, “Lectures populaires et stratégies éditoriales”, Histoire de l’édition française, sob a direção de Roger Chartier e Henri-Jean Martin, Paris,Promodis, t.1, Le livre conquérant. Du Moyen Âge au milieu du XVIIe siècle, 1982,pp. 585-603. Ver também a coletânea de textos de Roger Chartier sobre esta ques-tão organizados em Lectures et lecteurs dans la France d’Ancien Régime, Paris,Le Seuil, 1987.

6 Os livros de jogos de sociedade referem-se aos jogos como os de carta, os de estra-tégia (xadrez, dama etc.), jogos de dados etc. (nota das tradutoras).

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os livros escolares da bibliothèque bleue 11

etc.) não são menos numerosos. Encontram-se também, na produção deTroyes, livros didáticos destinados aos escolares ou àqueles que querem“aprender sem mestre”. É nesse aspecto ainda mal conhecido da ativi-dade dos impressores da Champagne que se debruçará este artigo, en-saiando analisar a maneira pela qual a forma “livro de cordel” afeta ostextos específicos destinados à instrução.

As contagens efetuadas por Henri-Jean Martin7 permitem calcularaproximadamente a parte do livro escolar da produção dos impressoresda Bibliothèque Bleue. Após ter comparado o catálogo Alfred Morin(quer dizer, o repertório dos objetos conservados por um colecionador)e o inventário pós-morte do fundo Garnier, em 1789 (quer dizer, o esto-que do impressor), ele considera que, no fim do século XVIII, de 4% a5% dos títulos impressos em Troyes, na forma de livros de cordel, sãolivros escolares stricto sensu. O escore é considerável, mesmo que eleesteja muito atrás dos romances de cavalaria (entre 8% e 13%) e conti-nue inferior aos contos de fadas (entre 5% e 6%) ou os livros de vida desantos (entre 5% e 8%). Pode-se tentar descobrir o que esses númerosencobrem na realidade?

Abecedários aos milhares

Mesmo antes de examinar os tipos disponíveis, é possível imaginaras razões que impulsionam os impressores de Troyes a fabricar livros deuso escolar. Em uma França do Nordeste já bem alfabetizada no séculoXVII, provida de uma importante rede de escolas paroquiais8, esse tipode obra, pela demanda que se pode esperar, representa um importantetipo de renda. No mais, os livros enquadram-se perfeitamente no mode-lo dos impressos da Champagne: livros com poucas páginas, textos que

7 Henri-Jean Martin, “Culture écrite et culture orale, culture savante, et culturepopulaire dans la France d’Ancien Régime”, Journal des savants, juillet-décembre1975, pp. 225-285.

8 François Furet et Jacques Ozouf, Lire et écrire. L’alphabétisation des Français deCalvin à Jules Ferry, 2 vols., Paris, Éd. de Minuit, 1977.

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se repetem indefinidamente, grandes tiragens, larga difusão por meiodos vendedores ambulantes. Entre os livros de uso escolar, o abecedário9

é aquele que, certamente, representa a maior promessa de venda. Com onome de Instruções cristãs – é assim que são chamados na França doLeste –, ele é por excelência livro do escolar iniciante e, freqüentemente,o único livro que ele possui. É verdade que ele oferece, em um mesmoconjunto, os instrumentos da primeira alfabetização e os textos essen-ciais da liturgia católica.

As empresas de Troyes não têm o monopólio de sua produção. Oabecedário é, efetivamente, um dos produtos de base de todos os peque-nos impressores, particularmente, o da província. Uma prensa e algu-mas fundições de caracteres10 são suficientes para imprimir um abece-dário. É o investimento mínimo necessário para o trabalho da cidade naqual vivem os minúsculos ateliês, que ainda são os mais numerosos noséculo XVII. A enquete de 1700, sobre a situação da livraria francesa,explorada por Claude Lannette-Claverie11, permite ver o lugar ocupadopor esses opúsculos nas produções dos impressores.

De fato, no começo do século XVIII, o Bureau de la librairie, queacabara de ser organizado para controlar a produção, procura recensearas impressões em curso. Na comunidade de Limoges, quatro em dezeditores têm abecedários sob a prensa, são os menores entre eles (Pierre

9 Sobre os abecedários na época Moderna, dispõem-se apenas de estudos parciais.Para uma boa introdução sobre a questão, ver Dominique Julia, “Livres de classeet usages pédagogiques”, Histoire de l’édition française. Sob direção de RogerChartier e Henri-Jean Martin, Paris, Promodis, t. 2, Le Livre triomphant (1660-1830), 1984, pp. 468-497. De ambos os lados, do período que nos interessa aqui,pode-se consultar Danièle Alexandre-Bidon, “La lettre volée. Apprendre à lire àl’enfant au Moyen Âge”, Annales E. S. C., juillet-août 1989, 4, pp. 953-992; PierreAquilon, “De l’abéccédaire aux rudiments: les manuels élémentaires dans laFrance de la Renaissance”, L’Enfance et les ouvrages d’éducation, vol. 1, Nantes,1983, pp. 51-72; Segolène Le Men, Les Abéccédaires français illustrés du XIXesiècle, Paris, Promodis, 1984.

10 Para um estudo dos tipos usados no período, consultar Emanuel Araújo, A constru-ção do livro, cap. 5, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986 (nota das tradutoras).

11 Claude Lannette-Claverie, “La librairie française en 1700”, Revue française dulivre, janvier-juin 1972, pp. 3-43.

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Bardou, o grande impressor de Limoges, não faz parte do grupo e ape-nas se ocupa de clássicos para o colégio). Aqueles da Champagne são 8em 27 impressores com suas formas ocupadas pelos abecedários. Anne-Claude Quéry, de Sainte-Menehould, toma o cuidado de precisar queela, ordinariamente, só imprime o “Le trésor dévot,votos de Natal e osABCs para as crianças”. Como os seus confrades de Limousin, ela deveconsagrar o essencial de seu tempo para os trabalhos requeridos pelacidade.

Ao contrário, os seis impressores propriamente de Troyes, que têmem curso a produção de abecedários, são os especialistas da BibliothèqueBleue: Jean Adenet, Gabriel Briden, Jacques Febvre, Pierre Garnier,Jacques Oudot e Jean Oudot, seu irmão. Os mais importantes entre elesassinalam, aliás, a riqueza de seus catálogos nesse domínio. Febvre faz“abecedários de diferentes formas”; Garnier, “alfabetos de uma folha,uma folha e meia e de três folhas”; Jacques Oudot, “ABC de uma folhae de grandes ABCs de três folhas”. Febvre toma cuidado em precisarque ele distribui os seus na livraria parisiense Musier. Trata-se aqui detodo um outro modelo de produção.

O exame dos inventários, realizado em 1722 na impressora dosOudot12, permite refinar a análise. A avaliação acontece, certamente,depois da ascensão de Jean Oudot a mestre-impressor (1699-1745). Esteque, até então, trabalhava como operário com seu irmão Nicolas no ate-liê de sua mãe, Anne Havard, viúva de Jacques II Oudot, encontra-seem posição de aspirar à sucessão familiar, no momento da morte de seuirmão. Como Nicolas tem filhos menores para os quais deveriam serpreservados os direitos, fez-se necessário um inventário de partilha.

O detalhe das folhas impressas entrepostas em diferentes lugares dacasa permite avaliar a importância ocupada pelos abecedários e de ima-ginar o que poderiam ser as tiragens. Encontram-se efetivamente:

12 A. D. Aube, 2E 11/53 – minutes Jolly. Agradeço sinceramente Michel Turquoispela ajuda que ele me forneceu na leitura desse documento e pela retificação queele fez da genealogia geralmente admitida dos Oudot. Sem ele, os acontecimentosque se deram na ocasião desse inventário restariam um negócio obscuro.

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� 25 dúzias de alfabetos por sílabas� 8 doze dúzias de abecedários, metade pergaminho� 30 doze dúzias de ABC em papel� 26 doze dúzias de ABC� 8 dúzias de ABC� 40 dúzias de ABC encapados com papel vermelho.

Perfazem mais de 10 mil exemplares aos quais seria necessário so-mar os alfabetos que se encontram, entre os outros títulos, num lote de198 ramas e 4 mãos de folhas ainda não dobradas. A título de compara-ção, para os livros de salmos, uma das produções importantes da empre-sa, não se contam mais de 6 mil exemplares (mais de uma vintena deramas). Quanto aos livros de horas, fabricados também para as livrariasde numerosas dioceses distantes, encontram-se apenas 1.500 exempla-res no estoque. Uma das outras grandes tiragens, Le Miroir de laconfession, atinge apenas 2 mil exemplares. Isso indica a importânciada produção dos abecedários.

Essa abundância concerne, é verdade, um produto particularmentede baixo preço. O abecedário vale, no impressor, 3 sols a dúzia, quandoé encadernado em pergaminho, e 2 sols e 6 deniers, quando é apenasencadernado em papel. O silabário atinge 16 sols a dúzia. A título decomparação, um livro de salmo ordinário é avaliado em 40 sols a dúzia,o meio encadernado em pergaminho vale 19 sols e o um quarto, 10 sols.No mesmo registro de preços que os abecedários, há as coletâneas decantigas de peregrinação (2 sols e 6 deniers a dúzia), as coletâneas depreces (3 sols) ou Les miroirs de la confession (quase 4 sols). O roman-ce de cavalaria é mais caro (entre 8 sols e 17 sols a dúzia, segundo onúmero de folhas).

Entre o começo e o fim do século XVIII, a produção parece conti-nuar estável para os editores de Troyes. No inventário Garnier de 1789,analisado por Henri-Jean Martin, existem entre 12 mil e 15 milabecedários estocados nas lojas.

Uma tal produção não pode, evidentemente, destinar-se apenas àsescolas da Champagne. Os editores da Bibliothèque Bleue são, avant lalettre, os atacadistas de livros escolares que produzem para atender seus

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confrades das grandes cidades e os alimentam regularmente com livroselementares. Nessa direção, eles trabalham diferentemente dos editoresclássicos que parecem estar, na maior parte, ligados aos colégios dasvizinhanças e fazem, para seu uso e à medida de suas necessidades,pequenas tiragens de textos latinos e gregos e de “folhas clássicas”13.Em Troyes, Jacques Febvre, impressor e livreiro oficial do colégio, é oúnico a praticar esse gênero de impressão como Barbou o faz emLimoges14.

Essa primeira aproximação da edição escolar de Troyes parece che-gar a conclusões que não surpreendem. O abecedário, barato e de fácilprodução, é um pólo importante da produção dos impressores daChampagne. O abecedário situa os impressores ao lado de uma tradiçãoeditorial que se apóia nas obras sem autoria, repostas ano após ano sema preocupação de inovar, em um domínio no qual a permanência e aperenidade continuam os maiores critérios de uma qualidade que seobtém sem grandes despesas. Como seus outros títulos, o abecedárionão está destinado somente ao uso local, mas permite prover os vende-dores ambulantes, assim como os livreiros das grandes cidades que di-fundem produtos desse tipo.

Todavia, o abecedário não é a única obra escolar fabricada pelosGarniers ou pelos Oudots. Encontram-se, efetivamente, nos catálogosdos impressores da Champagne muitos outros títulos de opúsculos quepodem ser utilizados a fim de instruir as jovens crianças escolarizadasnas diversas instituições que, nos séculos XVII e XVIII, compartilhamessa função. No entanto, é delicado consignar cada um desses títulos àordem escolar. As mesmas obras têm, com efeito, múltiplos usos, e a

13 Ver François de Dainville, “Livres de comptes et histoire de la culture”, L’éducationdes Jésuites, textos reunidos e apresentados por Marie-Madeleine Compère, ParisÉd. de Minuit, 1978, pp. 279-307; ver também Dominique Julia, “Livres de classeet usages pédagogiques”, op. cit. Sobre os impressores que trabalhavam para oscolégios, ver L. Desgraves, “Les impressions bordelaises de l’inventaire après décèsde Jacques Millanges”, Revue française d’histoire du livre, 14, 1977, pp. 21-72; eP. Ducourtieux, Les Barbou imprimeurs Lyon-Limoges-Paris, Limoges, 1896.

14 Claude Lannette-Claverie, op. cit.

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transmissão dos saberes elementares não implica obrigatoriamente a suaescolarização. É então necessário, antes de ir além na exploração dosdiversos inventários da Bibliothèque Bleue hoje disponíveis, melhordemilitar os limites de um gênero – o livro escolar – que na época Mo-derna não está desprovido de ambigüidades.

O mercado do livro escolar no tempo daBibliothèque Bleue

O tecido escolar do Antigo Regime é suficientemente diversifica-do15 para que a questão dos livros de classe utilizados nos diferentestipos de escolas permaneça difícil de esclarecer. Do lado da formaçãodos clérigos, as coisas são simples. Os colégios, cujo funcionamentodidático16 começa ser mais bem conhecido, são estruturados segundo asregras das ordens religiosas que os sustentam. Uma certa homogeneidade

15 Roger Chartier, Marie-Madeleine Compère et Dominique Julia, l’Éducation enFrance du XVIe au XVIIIe siècle, Paris, SECES, 1976. Os trabalhos recentes não pa-ram de complicar o esquema tradicionalmente estabelecido que opõe as pequenasescolas paroquiais e as escolas de caridade. As escolas controladas e financiadaspelas autoridades comunais laicas são também numerosas e variadas. Elas empre-gam regentes de diferentes estatutos. Os regentes-escrivães do Languedoc foramestudados por Dominique Blanc (“Les saisonniers de l’écriture. Régents de villageen Languedoc au XVIIIe siècle”, Annales E. S. C., juillet-août 1988, 4, pp. 867-895).É necessário aproximá-los dos regentes-tabeliões que Pierre Gaspard estuda no prin-cipado de Neuchâtel no século XVIII e que são encontrados no Jura (sobre estesúltimos, ver Louis Borne, L’Instruction populaire en Franche-Comté avant 1792,Besançon, Imprimerie de l’Est, 1949, t. I, pp. 35-136). Descobri, além de antigosmestres de escrita e aritmética que abandonaram suas oficinas (é o caso particular, dointerior da região de Marselha, por causa da recusa dos échevins [magistrados muni-cipais] dessa cidade de lhes expedir as cartas patentes para o estabelecimento de suacorporação), os mestres de escrita da “confraria dos mestres-escrivães, gramáticos ede escola” de Dijon, raro exemplo de corporação que aceita nos séculos XVII eXVIII mestres-escola (A. C. Dijon, G39).

16 Marie-Madeleine Compère, Du Collège au Lycée (1500-1850), Paris, Gallimard-Julliard, 1985; assim como Marie-Madelaine Compère e Dominique Julia, LesCollèges français, XVIIe – XVIIIe siècle. Répertoire, Paris, INRP et CNRS, 1984-1989 (2 vols.). Uma nova tradução dos regulamentos pedagógicos jesuítas foi

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preside, portanto, as escolhas efetuadas pelos responsáveis dos progra-mas anuais, mesmo que a produção dos livros clássicos continue local.As contas do livreiro Leroux de Rodez, que serve as famílias das quaissaem as crianças que freqüentam o colégio da cidade, sob o reinado deLuís XIV, permitem que se faça uma idéia dos livros que essas utili-zam17. No essencial são edições “clássicas” das humanidades latinas(Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio etc.) acompanhadas dos manuais (gra-máticas, dicionários, livros de retórica, e coletâneas de lugares-comuns)que possibilitam a leitura e o uso daquelas obras.

A dispersão de títulos, devido à renovação dos programas, os fracosefetivos dos colégios, a especificidade dos cursos colocados em cenapelas diferentes congregações dedicadas ao ensino conduzem às cifrasinsuficientes de tiragens para interessar verdadeiramente os impresso-res da Bibliothèque Bleue.

Em um só momento de sua história, os colégios do Antigo Regimeestiveram na origem de uma tentativa editorial mais ambiciosa do queaquela que consistia em fabricar sob demanda as obras necessárias. Em1776, o editor parisiense Nyon, que tem uma loja perto do colégio dasQuatre Nations, vê-se encarregado pelo Conde de Saint-Germain deimprimir os manuais oficias que o abade Batteux redigiu para o conjun-to das escolas militares francesas. Nyon pensa ter ali um mercado debons resultados18, sem contar com o particularismo das congregaçõesque dirigem essas escolas e que conseguem, na volta às aulas, utilizarseus próprios livros. Os títulos, por volta de 50, que constituem a cole-ção, amontoam-se no depósito do editor e, após a Revolução, ainda sãoliquidados pelos descendentes do editor para os chefes dos estabeleci-mentos que querem utilizar os livros como prêmios.

publicada na França: La Ratio studiorum: plan raisonné et institution des étudesdans la compagnie de Jésus, apresentado por R. P. Adrien Demaustieres e DominiqueJulia, traduzido do latim por Léonine Albrieux e Dolorès Pralion-Julia, com co-mentários de Marie-Madeleine Compère, Paris, Belim, 1997.

17 François de Dainville, “Livres de comptes et histoire de la culture”, op. cit.,pp. 281-282.

18 Dominique Julia, “Livres de classe et usages pédagogiques”, op. cit., pp. 493-495.

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Ao lado dos colégios, desenvolveram-se, ao longo do século XVIII19,de maneira rápida, as pensões particulares (quer dizer, escolas depen-dentes da estrita iniciativa privada do mestre que decide abri-la). Nelassão escolarizadas as crianças das burguesias urbanas e até aquelas danobreza menos abastada. A orientação desses estabelecimentos é influen-ciada pelo Iluminismo e aí se estuda mais o francês que o latim. Issoimplica outras obras diferentes daquelas utilizadas nos colégios: gramá-ticas francesas (e não mais latinas), livros de história da França ou degeografia, livros de ciências etc. São livros complexos, freqüentementeilustrados com gravuras em talho-doce, portanto caros, que supõem cui-dados com a qualidade ausente nas oficinas de Troyes. Eles são, emgeral, feitos em Paris ou em cidades grandes das províncias pelos edito-res generalistas ou que, por vezes, se especializaram em obras dessetipo. Talvez as tiragens desses livros já fossem mais importantes que asdos clássicos latinos e gregos. O fato de as congregações religiosas quetêm escolas para as meninas – aquelas das ursulinas em particular –utilizarem o mesmo tipo de material20 deve, certamente, ter aumentadoum pouco as cifras de tiragem. Nenhum estudo permite, por enquanto,conhecê-las com certeza.

Restam os celeiros de pequenas escolas rurais, de escolas paroquiasou particulares e de escolas de caridade urbanas, e até aquelas minúscu-las regências latinas que concernem aos efetivos de alunos muito mais

19 Philippe Marchand, “Un modèle éducatif original à la veille de la Révolution: lesmaisons d’éducation particulière”, Revue d’histoire moderne et contemporaine, 1975,22, pp. 549-567; Maurice Garden, “Écoles et maîtres: Lyon au XVIIIe siècle, Cahiersd’histoire, 21, 1-2, 1976, pp. 133-156; Marcel Grandière, “L’Éducation en France àla fin de l’Ancien Régime: les maisons d’éducation”, Revue d’histoire moderne etcontemporaine, 1986, 33, pp. 440-462.

20 Martine Sonnet, L’Éducation des filles au temps des Lumières, Paris, CERF,1987. Ver também Isabelle Havelange, “La littérature destinée aux demoiselles,1750-1830”, Le Magasin des enfants. La littérature pour la jeunesse (1750-1830), sob direção de Lise Andriès, Catalogue de l’exposition “Le Magasin desenfants”, Ville de Montreuil, Bibliothèque Robert-Desnos, 1er décembre 1988 –28 janvier 1989, Montreuil, Ville de Montreuil (Bibliothèque Robert-Desnos) etAssociation Bicentenaire-Montreuil, 1988, pp. 9-40.

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expressivos. Fora das escolas de caridade de La Salle21 que, no séculoXVIII, parecem desenvolver muito rapidamente suas próprias redes deedição escolar (os livros são emprestados gratuitamente às crianças), osregentes ou mestres dessas incontáveis classes mantêm o hábito de tra-balhar com instrumentos heterogêneos levados por seus alunos. Hetero-gêneos, mas não heteróclitos. Com efeito, como tentamos demonstrarem outras ocasiões22, a formação elementar que prevalece, na França,na época Moderna, é herdeira das tradições bem estabelecidas e manti-veram desses diferentes modelos instrumentos específicos. Sua coabi-tação nas classes não é um sinal de incoerência pedagógica, mas o indíciode que as diferentes maneiras antigas de se trabalhar, há muito tempodissociadas, estão, entre os séculos XVII e XVIII, em processo deamalgamento.

No fim do reinado de Luís XIV, a preparação para a comunhão e atransmissão dos saberes elementares – ler, escrever, contar – tornaram-se assim os objetivos mais ou menos explicitados da escolarização.Esse programa já moderno resulta da confluência de três correntes dis-tintas, de três tradições culturais. A primeira, certamente a mais antiga,é proveniente da antiga formação dos clérigos que foi organizada naIdade Média em torno dos monastérios, dos cursos episcopais ou dascapelas. A instrução era aí concebida como a transmissão da língua ad-ministrativa e litúrgica, o latim, que convinha aprender a ler e a escre-ver. É esse modelo que progressivamente se seculariza e se torna oponto de partida da educação familiar que precede a entrada na faculda-de de artes ou, a partir do século XVI, no colégio. Quando as famíliaspassam a não ter mais essa condição, as crianças são confiadas a insti-

21 Sobre a modalidade de funcionamento das escolas de caridade, ver J.B. de La Salle,Oeuvres complètes, Paris et Rome, Éditions des Frères des écoles chrétiennes, 1994;Yves Poutet, Le XVIIe siècle et les origines lasalliennes. Recherches sur la genèsede l’oeuvre scolaire et religieuse de J. B. de la Salle (1651-1719), Rennes, Imprimeursreúnis, 2 vols., 1970; Yves Poutet, Genèse et caractéristiques de la pédagogielasallienne, Paris, Éditions Don Bosco, 1995.

22 Jean Hébrard, “A escolarização dos saberes elementares na época moderna”, Teo-ria & Educação, 2, 1990. Não retomaremos a bibliografia indicada nas notas desteartigo dado o rápido resumo que aqui apresentamos.

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tuições escolares provenientes das antigas escolas monásticas ou epis-copais mantidas, desde o fim da Idade Média, pelos graduados das uni-versidades. Essas escolas, geralmente municipais, transformam-se, noséculo XVI, em regências latinas, particularmente quando elas não po-dem ser confiadas a uma congregação suscetível de transformá-las emcolégio. Ler, escrever, aprender os rudimentos do latim são os exercí-cios principais. Eles se fazem sobre o abecedário, os livros de salmos ea gramática latina. A partir do século XVI, essa última é freqüentementeo primeiro volume do Despautère, este, precisamente consagrado aosrudimentos23.

A segunda corrente é proveniente de uma tradição totalmente dife-rente, é aquela que se constitui nas grandes empresas mercadoras dosséculos XIII e XIV, na Itália ou na zona hanseática. Ali se aprende aescrever na língua que se fala todos os dias. Inicia-se a arte da corres-pondência (que trata de transmitir as realizações do comércio ou dasinformações sobre as probabilidades do mercado) e aquela da aritméti-ca que permite manter os livros de contas. A difusão dessa cultura nascamadas da burguesia mercante ou artesã das cidades – a partir do sécu-lo XV na França – constitui um dos eixos importantes da transmissãodos saberes elementares. Os escrivães e aritméticos24, que se instalamquase sempre nas cidades mercantes, como secretários e contadores in-dependentes, transformam-se progressivamente em mestres da escritu-ra e da aritmética. Freqüentemente, organizados em corporações,

23 Jean Hébrard, “L’évolution de l’espace graphique d’un manuel scolaire: leDespautère de 1512 à 1759”, Langue française, 59, septembre 1983, pp. 68-87;Jean Hébrard, “Por uma bibliografia material das escritas ordinárias (França – sé-culos XIX e XX)”, Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, São Paulo,Editora Autores Associados, jan-fev 2001.

24 Sobre o mestre de escrita e aritmética na França, na época Moderna, ver ChristineMétayer, La Corporation des maîtres – écrivains jurés de Paris sous l´AncienRégime, thèse pour la maîtrise dès arts, Quebec (p.Q.), Université Laval, 1989(multigraphié), assim como “De l´école au Palais de Justice: l’itinéraire singulierdes maîtres-écrivains de Paris (XVIe – XVIIIe siècles)”, Annales E.S.C., 5, 1990,pp.1.217-1.237. Ver também Jean Hébrard, “Des écritures exemplaires: l’art dumaître écrivain en France entre XVIe et XVIIIe siècle”, Mélanges de l’Écolefrançaise de Rome, 107/2, 1995, pp. 473-523.

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propõem seus serviços a particulares. Crianças – são adolescentes jáescolarizados – mercadores, ou artesãos vêm procurar nas suas lojas ossaberes que lhes permitirão assumir a sucessão de seus pais: a arte deescrever e aquela da ortografia graças a qual se pode manter uma cor-respondência profissional ou privada, aquela da aritmética e da manu-tenção das contas que permite não mais utilizar as comptes-faits (querdizer, as tabelas com os resultados parecidos com aqueles que Barèmepublicou). Os instrumentos livrescos provenientes dessa tradição são,de uma parte, a aritmética em língua vulgar cuja existência, na França, éanterior àquela da imprensa e, de outra parte, os tratados da ortografiaque dizem – sem as complexidades da gramática – como convém escre-ver as palavras mais difíceis. A eles se juntam, por vezes, as “secretá-rias”, ou seja, as artes da correspondência já evocadas, que dão aos alunosque já deixaram seus mestres os modelos para todas as ocasiões da vidacotidiana ou profissional.

A terceira corrente é mais tardia, porém mais bem conhecida. Nas-cida com as Reformas, também mais protestante que católica, ela é cer-tamente o ponto de partida de uma escolarização largamente popularsenão universal. Sua empresa é, com efeito, a “Ciência da Salvação”que, a partir do século XV, parece – em razão do vigor e da vulgarizaçãodas controvérsias teológicas – não poder mais se abster da escrita, únicagarantia do rigor doutrinal, mesmo quando não concerne mais que aprofissão de fé ou as preces elementares. O sermão ou a catequese oraldominical não são mais suficientes para assegurar a formação cristã. Énecessário, por uma aprendizagem eficaz da leitura, dar a cada um apossibilidade de assegurar sua fé nos diferentes livretos que acompa-nham, desde então, os trabalhos e os dias do cristão: catecismo, artes deconfissão ou de comunhão, artes de morrer, horas, livros de salmos,exercícios cristãos, ou coletâneas de preces e cantos, Évangiles dudimanche ou Imitation de Jésus Christ. No meio protestante, apenas ostítulos mudam. Os diferentes opúsculos em uso, entre a proclamação e arevogação do Edito de Nantes, mostram os mesmos registros. O Psautierde Marot e a Bíblia – mas parece que esta jamais foi, pelo menos naFrança, universalmente possuída – vieram coroar o edifício. Na inten-ção dessa formação cristã, desenvolvem-se, a partir do século XVI, as

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pequenas escolas (paroquiais na França do Norte, mais freqüentementemunicipais naquelas do Sul) e, no final do século XVII, as escolas decaridade.

Os instrumentos de base dessa escolarização são heteróclitos. A ins-peção de todas as escolas de meninos do Reino organizada por Guizot,em 183325 permite avaliar a situação escolar da França rural, antes queresvale na modernidade. Ela permite imaginar o que deveriam ser aspequenas escolas do século XVIII. Os livros usados em suas classesforam recenseados com cuidado. A maior parte deles são obras vindasdiretamente do século anterior. Nas escolas mais pobres, utilizam-se emgeral os Évangiles ou Histoire Sainte (aquela do abade Fleury que, data-da do século XVIII, tem sempre grande renome), um abecedário ou umsilabário, o catecismo da diocese. Para as escolas que recebem criançasde famílias menos pobres, acrescentam-se uma gramática francesa (aque-la do Lhomond) e, mais raramente, uma aritmética e, às vezes, umahistória da França (aquela de Le Ragois, por exemplo). Essas últimasobras pertencem sobretudo à tradição das pensões particulares e só fo-ram divulgadas tardiamente nas pequenas escolas no século XVIII, eem algumas somente após a Revolução, e ainda mais nas cidades do queno campo.

Vê-se assim que a panóplia de livros escolares em uso nos diferen-tes tipos de classe do século XVIII está longe de ser uniforme e que umcontínuo regular conduz os “usos” da diocese (isto é, o conjunto delivros necessários à vida cristã) aos livros que teriam apenas um objeti-vo explicitamente didático. Examinar a relação dos editores de Troyescom a escola e seus instrumentos supõe, portanto, que se amplie a in-vestigação para além dos abecedários.

25 A. N., F17*80-160. Essa enquete está sendo examinada no Service d’histoire del’éducation, Paris, INRP/CNRS.

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Os impressores-livreiros de Troyes, editores degramáticas latinas

Em Troyes, em 1700, no momento da enquete organizada pelo abadeBignon26, apenas Jacques Febvre imprime “clássicos”: fábulas de Fedro,latinas e francesas, fábulas de La Fontaine, em latim e em francês (elassão, freqüentemente, admitidas como traduções de Fedro e, então, desti-nadas aos alunos dos colégios), Cícero, Virgílio e Ovídio. Isso não oimpede de fazer também abecedários e livros de salmos para seu clienteparisiense, o livreiro Musier. Seus confrades contentam-se, fora das pro-duções tradicionais de Troyes, com os alfabetos e os livros de “usos”para crianças (salmos, horas, catecismos da comunhão). Briden, no en-tanto, o impressor do bispado, não parece ser mais especializado do queos outros nesse domínio. É o sinal de que a produção não é somentedestinada ao comércio local. A partilha dos papéis parece então clara.

Será mesmo verdade? No levantamento das “mercadorias encontra-das na loja” do inventário realizado na empresa de Oudot, em 172227,nota-se, além de livros de piedade, dos abecedários e dos de civilidade,aos quais voltaremos, “4 Dispostaires encadernados em pele de carnei-ro e 3 outros também encadernados em pele de carneiro”. É necessárioler aí sete exemplares da famosa gramática latina de Despautère28.Como explicar a presença nesses lugares do livro de base das classes degramática dos colégios depois do começo do século XVI?

26 Claude Lannette-Claverie, op. cit.27 A. D. Aube, 2E 11/53 – minutes Jolly.28 Sobre a obra gramatical de Despautère, ver as páginas que lhe são consagradas em

Jean Claude Chevalier, Histoire de la syntaxe. Naissance de la notion de complémentdans la grammaire française (1530-1750), Geneve, Droz, 1868. Sobre a história datranformação em livro desse texto, ver Louis Desgraves “Contribution à labibliographie de J. D.”, Mémoires de la Société d’Histoire de Comines – Warneton,7, 1977, pp. 385-403; e Jean Hébrard, “L’évolution de l’espace graphique d’unmanuel scolaire: le Despautère de 1512 à 1759”, op. cit.. Sobre o homem e suas liga-ções com o meio humanista, pode-se consultar Constant Matheeussen, “À proposd’une lettre inconue de Despautère”, Lias, 4, 1977, pp. 1-11. Sobre os usos da gra-mática de Despautère nos colégios do século XVI, ver Liesel Franzheim, “DasGymnasium Tricoronatum und sein Lateinunterricht um die Mitte des 16.

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As sete partes dessa obra (Rudimenta, Prima pars, Syntaxis, Arsversificatoria, De figuris, Ars epistolica, Orthographia) foramredigidas pelo gramático de Flandres, Van Pauteren, e impressa emAnvers, Paris, Bergues ou Strasbourg, entre 1511 e 1519, em geral noformato in-4o. Parece que Josse Bade tenha sido o principal editor dessacoletânea que veio pôr fim ao reinado, há muito tempo sem partilha, deDonat, ou da Doctrinale puerorum, de Alexandre de Villedieu. Depoisdele, Robert Estienne, em 1537, reúne esses diferentes livros em umúnico in-fólio.

Não obstante, nesse meio tempo, um regente do colégio de Coqueret,que se tornará o reitor do colégio de Tournon, Jean Pellison, decidereduzir esse vasto conjunto em um “breviário”, em formato in-8o, quenão compreende mais que as quatro partes mais freqüentemente utiliza-das nos colégios: a Prima pars, na qual se encontram as principais de-clinações e as conjugações, a Syntaxis, a Ars versificatoria e o De figuris,isto é, o essencial do programa de gramática e de composição latina dassucessivas classes do colégio. São os impressores de Lyon, em particu-lar Sébastien Gryphe, que, entre 1530 e a primeira metade do séculoXVII, permanecem especialistas desse modelo.

Uma nova versão nasce em Paris, em 1584, na empresa Buon, masrapidamente se encontrava nas lojas de Lyon. Dessa vez, é GabrielDupréau, titular da cadeira de teologia do colégio de Navarre, que seencarrega da adaptação e não deixa de dar uma versão francesa de cadaregra em versos latinos da versão inicial. Está aí a primeira aparição deum uso deliberado das línguas vernáculas, o qual os editores ouadaptadores não renunciarão.

A terceira adaptação, aquela que será precisamente copiada peloseditores de Troyes, é a obra de Jean Behourt, de Rouen, que dirige o

Jahrhunderts”, Jahrbuch des Kölnischen Geschichtsverein, 48, 1977, pp. 139-150que dá indicações para o espaço renano. O estudo mais surpreendente acaba de serpublicado. Trata-se da edição e da análise minuciosa do caderno do estudante, daprimeira metade do século XVI, conservado na Biblioteca Histórica da Cidade deParis. Ver Jean-Claude Margolin, Jan Pendergrass, Marc Van der Poel, Images etlieux de mémoire d’un étudiant du XVI siècle. Étude, transcription et commentaired’un cahier de latin d’un étudiant néerlandais, Paris, Édition de la Maisnie, 1991.

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colégio dos Bons-Enfants, entre 1586 e 1604, depois de ter dirigido umapróspera pensão privada29. A primeira edição conservada de seu traba-lho foi impressa em Rouen, na G. de La Haye, em 1620. O uso da línguavulgar é nela generalizado. Um recorte muito minucioso do texto tendea facilitar a sua memorização. Ele é dedicado – hábil precaução – aospadres da Companhia de Jesus que mantêm na mesma cidade, desde1593, o colégio Bourbon, principal e eficaz concorrente dos Bons-Enfants. Os editores da Normandia (Caen e Rouen) como os de Lyon,os que particularmente têm o hábito de imprimir para grande circula-ção, mantêm esses títulos por longo tempo em seus catálogos. A últimaedição conservada na Biblioteca Nacional é datada de 1759.

Uma última versão do Despautère aparece no Charles Savreux, emParis, em 1663. O adaptador anônimo que se encarrega da revisão dotexto, modificou-o profundamente, redigindo em uma língua menos ar-caica tudo o que achava muito “obscuro”. Ele escolheu imprimir, aomesmo tempo que o texto, as glosas habitualmente ensinadas aos alu-nos pelo regente no momento da praelectio. Além disso, ele faz a tradu-ção, palavra por palavra, da frase latina e, por um engenhoso sistema deletras localizadas sob a linha, dá a ordem na qual se deve reconstruir afrase latina para encontrar a frase francesa correspondente. Esse modeloserá utilizado durante todo o século XVIII e generalizado em todas asgramáticas pelo Du Marsais, a partir de 172230. É o sinal de uma inegá-vel diminuição das capacidades dos alunos de ler o latim.

A presença de um Despautère na oficina de um dos grandes editoresde Troyes da Bibliothèque Bleue é particularmente interessante. Segu-ramente, ela não é suficiente para fazer dos Oudots livreiros especiali-zados no fornecimento dos colégios (não se encontra na sua oficinaqualquer exemplar dos clássicos latinos ou gregos), mas ela é um sinalde que o mercado das regências latinas e talvez aquele dos colégios não

29 Marie-Madeleine Compère et Dominique Julia, Les Collèges français, XVIe-XVIIIesiècles, vol. 2, Répertoire France du Nord et de l’Ouest, Paris, INRP et CNRS,1988, Notices Rouen, collège des Bons-Enfants et collège de Bourbon.

30 Jean Hébrard, “L’exercice de français est-il né en 1823?”, Études de linguistiqueappliqué, 48, 1982, pp. 9-31.

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sejam estranhos aos editores da Champagne. Existe na Biblioteca Nacio-nal um exemplar de um Despautère impresso nos Oudots31 em 1666. Éa versão de Behourt que foi escolhida por Nicolas Oudot (um dos netosdo fundador da dinastia) quase meio século depois de sua primeira apa-rição. Encontra-se também, de um outro editor de Troyes, Jean Le Febvre,uma edição mais tardia e simplificada da mesma série intitulada Le PetitBehourt32. Ela data de 1710, mas é cópia idêntica de uma obra impressaem Paris na oficina da viúva Thiboust et P. Esclassam, de 1674.

Dois exemplares não são suficientes para se ter uma certeza33. Elesmostram, entretanto, que os editores de Troyes – mas também, certa-mente, os outros editores que trabalhavam para a venda ambulante –não desconheceram um dos instrumentos mais típicos da formação lati-na, dado nos colégios (aquele de Troyes tinha uma excelente reputação)ou nas instituições mais modestas, como as regências latinas. Essa quefoi uma das versões que ocupou o mercado mais tardiamente, mas tam-bém por muito tempo, reafirma-nos a idéia de que os Oudots puderamter algum interesse pela possibilidade que oferecia ainda o mercado dolatim escolar no século XVII e mesmo no século XVIII. Evidentementehá aí uma pesquisa mais minuciosa a fazer.

Os impressores-livreiros de Troyes, editores dearitméticas?

A segundo corrente constitutiva da cultura escolar moderna, aquelaproveniente da tradição mercante e dos mestres de escrita e aritmética,

31 Grammatica Joannis Despauterii... in commodiorem... usum redacta... Adjecta est...gallica versuum Despauterii interpretatio per Gabrielem Prateolum necnon etiamlatinae linguae cum graeca collatio necnon quantitatis fusior... explicatio perJoannem Behourt... Additur libellus de bello grammaticali, per puncta divisus, Trecis,N. Oudot, 1666, 668 p. [B.N.X. 8.356].

32 Le Petit Behourt ou le Nouveau Despautère, contenant les fondemens de la languelatine... divisé en trois parties, Troyes, Jean Le Febvre, 1710.

33 Uma enquete análoga poderia ser feita sobre as semelhanças entre as coletâneas delugar-comum utilizadas nos colégios, após o século XVI, e os Fleurs de bien dire,impressos pelos editores de Troyes.

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também não deixou indiferentes os impressores de Troyes. Como du-vidar se, seguindo Jean-Paul Oddos34, se faz das prensas de Lyon e,mais particularmente, de Benoît Rigault (ativo entre 1555 e 1597) oberço da Bibliothèque Bleue. É, efetivamente, esse impressor de Lyonque recolhe, nos últimos anos do século XVI, uma linhagem de tratadosaritméticos em língua vulgar, nascida nos Países Baixos no decênio de1500, e remanejada tanto em Lyon como em Paris, ao longo de todo oséculo XVI.

Ora, essas aritméticas de mercadores se encontram nos fundos dosimpressores de Troyes, a partir da metade do século XVII, e é possívelreconstituir o caminho que as conduziu das prensas holandesas para asprensas da Champagne.

Com efeito, Wouter Nijhoff e Maria Elizabeth Kronenberg35 assina-lam na Nederlandsche Bibliographie van 1500 tot 1540 um pequenotratado anônimo de 48 fólios in-8o impresso em 1508 por Thomas vander Noot, em Bruxelas, cujo longo título mostra seu conteúdo: Diemaniere om te leeren cyffren / na die rechte constenAlgorismi. / Intgheheele ende int ghebroken / Tafel der multplicatien. A biblioteca uni-versitária de Amsterdã conserva, por sua parte, uma versão impressapor Willem Vosterman, em Amsterdã, por volta de 1510, de uma obraquase idêntica intitulada Die maniere om te/ leeren cyfferen ende rekenenmetter pennen / end metten penningen na die gherechte / constenAlgorismi... Um Kalengier ende die maniere om te leeren cijfferen po-deria ter sido impresso em Anvers por Jan Seversz em 1527 (assinaladopor Nijhoff et Kronenberg). Desde 1529, o tratado é traduzido para ofrancês por um editor holandês. A biblioteca da Universidade de Harvard,

34 Jean-Paul Oddos, “Simples notes sur les origines de la Bibliothèque Bleue”,Quaderni del seicento francese, vol. 4, La “Bibliothèque Bleue”nel seicento o dellaletteratura per il popolo, Bari, Adriatica et Paris, Nizet, 1981, pp. 159-168.

35 A tentativa de genealogia sobre a qual nos debruçamos aqui apóia-se no repertóriode livros dos mercadores europeus elaborado sob a direção de Jochen Hoock etPierre Jeannin, Ars marcatoria: Handbücher und Traktate für den Gebrauch desKaufmanns, 1470-1820; eine analytische Bibliographie in 6 Bänden, Paderborn,Verlag Ferdinand Schöningh, 1991, Band 1, 1470-1600: mit einer Einführung indeutscher und französischer Sprache, 1991.

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em Cambridge (Massachusetts), conserva um pequeno in-8o de 52 fóliosimpresso em Anvers por Martin Lempereur para Willem Vosterman, em1529, e intitulado: La Manière / pour apprendre à cyfrer, et compter par/ plumes et gects selon la vraye science de / Algorime en nombre entieret rompu36. É esse texto que é copiado e adaptado pelos impressores deLyon por volta de 1535. Encontra-se na Britsh Library La vraye / manièrepour apprendre a / Chiffrer & compter / par plu / me & gectz: selonla science de / algorisme en nombre entier / & rompu: fort facile àappren- / dre a toutes gens / tant pour / lart darismeticque que par /les questions & exemples: / cy dedans insérés & corrigés, impresso porClaude Veycellier em um formato in-12o, contando com 96 fólios. Aúltima versão holandesa (Die maniere omte leeren Cijfferen, Anvers,Jan van Ghelen, 1569) parece ter registrado os adendos da edição fran-cesa porque essa ganha uns 30 fólios em comparação às versões in-8o

anteriores.Desde então, essa aritmética conhece dois destinos editoriais para-

lelos, certamente cruzados por vários momentos de sua história, um emLyon, outro em Paris. Em Lyon, reencontra-se o traço do pequeno trata-do em três impressores da cidade. Cada deslocamento é ocasião paraum adendo ou uma mudança de título. Depois de Claude Veycellier,Thibault Payen, um dos grandes impressores humanistas de Lyon dá,em 1548, um in-8o de 80 fólios: L’Arimetique et Maniere de Apprendreà Chiffrer & Compter, par la Plume et par les Getz ... très utile à toutesgens, de nouveau reveve & Corrigée37. Benoit Rigaud, especializadoem pequenos formatos de grande circulação, imprime o texto, por suavez, em 1588 e em 1594, sob o título Aritmetique / Facile A Apprendre/ A Chiffrer Et / Com- / pter par la plume & par les / Gects: tres-utile à/ toutes gens. / Ensemble plusieurs excellentes sentences moralles, faictespar quatrains, & ordre al – / phabetique: Auec la maniere / de taillerlaplume. / Nouuellement reueuë & corrigee. O formato reduziu-se ainda

36 Um exemplar incompleto encontra-se também na Biblioteca Nacional em Paris(Imprimés, Rés. PV338).

37 Friedrich W. A. Murhard (Literatur der mathematischen Wissenschaften, Bd. 1,Leipzig, 1797) aponta uma edição do mesmo impressor em 1555. Ela não pareceter sido conservada.

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mais, uma vez que os 83 fólios são agora apresentados em in-16o. Pelaprimeira vez em Lyon, e seguindo uma lição de uma edição parisiensesurgida nesse meio tempo na oficina de Jean Ruelle, é de se notar que aManière é explicitamente apresentada como um livro destinado àescolarização das crianças ou dos adolescentes. Com efeito, os“Quatrains”38 exaltados pelo título são no estilo daqueles que MathurinCordier publicou alguns anos antes no seu Miroir de la jeunesse39. Elesconstituem, entre os séculos XVI e XVII, um dos modelos maisfreqüentemente utilizados pelos regentes para treinar as crianças na lei-tura e na escrita40. Eles lembram também os Quatrains de Pybrac edita-dos pelos Oudots desde 173741. O pequeno tratado de afiar a pluma que

38 Estrofes ou pequenas poesias de quatro versos (nota das tradutoras).39 Uma edição de Rouen do tipo Bibliothèque Bleue é apontada por Geneviève Bollème

na sua Bible Bleue. Anthologie d’une littérature “populaire”, Paris, Flammarion,1975, sob o título Le Miroir de vertu et chemin de bien vivre, contenant plusieursbelles histoires, par quatrains et distique moraux, le tout par Alphabet, da oficinade Théodore Reinsart, em Rouen, em torno de 1587.

40 Os Quatrains de Cordier foram largamente utilizados nas classes de abecedáriosdos colégios protestantes. Benoit Rigaud é, portanto, um dos primeiros impresso-res-livreiros de Lyon a se engajar do lado da Contra-Reforma. Ver Natalie ZemonDavis, “Le monde de l’imprimerie humaniste: Lyon”, Histoire de l’éditon française,sous la direction de Roger Chartier et Henri-Jean Martin, t. 1, Le livre conquérant.Du Moyen-Âge au millieu du XVIIe siècle, Paris, Promodis, 1982, pp. 255-278.Sobre os usos dessa aritmética nos meios protestantes de Lyon no século XVI,Natalie-Z, Davis, Les Cultures du peuple. Rituels, savoirs, résistances au XVIesiècle, Paris, Aubier, 1979, pp. 308-365.

41 LES/ QUATRAINS / DU SEIGNEUR/ De PYBRAC, / CONSEILLER DU ROY / enson Conseil Privé. / Contenans preceptes & enseignemens / profitables pour tousChrétiens. / Avec les Quatrians du Président FAVRE. / Ensemble les Quaitrains dela vanité du Monde. / Le tout reveü, corrigé, & augmenté des / Tablettes ou Quatrainsde la Vie et de / la Mort, par P. MATHIEU, Conseiller du Roy. / A TROYES, / Chezla Veuve de JACQUES OUDOT & / JEAN OUDOT fils, Imprimeur-Libraire, / ruëdu Temple. 1737. / Avec Permission., conservada na Biblioteca Municipal de Troyes[B.B.108]. Outras edições na forma de livro de cordel: de Jean Musier (em Troyese em Paris), de 1700, da viúva Nicolas Oudot, em Troyes e em Paris, s.d. Encontra-se também menção desse Quatrains em um catálogo da viúva Jacques Oudot e noda viúva Nicolas Oudot. Lembremos que os Quatrains de Pybrac foram publica-dos pela primeira vez com o título Cinquante quatrains, contenant préceptes etenseignements utiles pour la vie de l’homme, composés à l’imitation de Phocolides,Epicharmus et autres poëtes grecs, em 1574, por Jean de Tarnes, em Lyon (umaedição no mesmo ano, em Paris).

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acompanha remete-se sobretudo à cultura tradicional dos mestres deescrita e aritmética. Pierre Rigaud reedita a versão da Aritmética pro-posta por Benoît em 1607 e 1613.

De Paris, quatro edições foram conservadas: duas dos Jean Ruelle,de 1556 e de 1563; uma de Pierre Ménier, de 1585; e uma de NicolasBonfons, de 1598. Todos estes são especialistas da impressão em línguavulgar, destinada a um público maior. Jean Ruelle retoma a primeiraversão de Thibault Payen (Lyon), juntando-a com Plusieurs questionspar exemples pour faire la science plus facile & plus legiere acomprendre. David Eugène Smith42 acredita ver nessa versão a mão doaritmético Antoine Cathalan. Nada o permite confirmar. Tanto Paris comoLyon, nesses anos, contam com numerosos aritméticos de grande talen-to, na sua maior parte antigos alunos ou continuadores de NicolasChuquet43, de Lyon, que podem ter se engajado em um dos ateliês deimpressores, para remodelar incessantemente o texto holandês. Ruelleparece ser, no mais, o primeiro a utilizar, em sua edição de 1563, o títuloque será retomado pelos editores de Troyes (Instruction / De L’Aris-metique Faci- / le à apprendrea chiffrer & compter / par laplume, & etpar les Gectz, tresuti- / le à toutes gens ...) e a ela juntar os Quatrains dePybrac e a maneira de afiar a pluma para fazer um manual em funçãodos alunos dos mestres de escrita (Ensemble plusieurs / excellentessentences moralles, faictz / par quatrains & ordre alphabetique. / Avecla maniere de tailler la plume. / Nouvellement reveu & corrigé). É ver-dade que esses últimos estão a ponto de obter as cartas patentes que osinstituirão, em 1570, em corporação.

42 David Eugene Smith, Rara Arithmetica. A catalogue of arithmetics writting beforethe year MDCI with a description of those in the library of George Arthur Plimptonof New York, New York, 1970.

43 Graham Fleg, Cynthia Hay, Barbara Moss, Nicolas Chuquet, RenaissanceMathematician. A study with extensive translation of Chuquet’s mathematicalmanuscript completed in 1484, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, 1985pp. 291-330. Nicolas Chuquet, brilhante matemático, é um dos mestres escrivãesde Lyon, do fim do século XV, e com esse título ganha sua vida como seus confrades,fazendo contabilidade e correspondências dos mercadores, e ensinando a caligrafiae a aritmética (G. Fleg et al., op. cit., pp. 14-15).

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Ora, são bem estes os instrumentos dos mestres de escrita e aritmé-tica (aritméticas, livros de ortografia e epistolários) que estão ainda pre-sentes, dois séculos mais tarde, nos inventários dos editores de Troyes.Assim, em 1722 nas oficinas dos Oudots44, podem-se encontrar 18 dúziasde aritméticas, um lote de 163 dúzias de livretos nos quais estão mistu-rados tratados de ortografia e Bâtiment des receptes (essa última obrasendo uma coletânea de preparações meio medicinais, meio mágicas).Aliás, os Secrétaires français e os Secrétaires à la mode estão ainda emfolhas não dobradas, no sótão.

Restringindo-se às aritméticas, que se trate da Instruction de JeanRuelle ou da Arithmétique facile de Benoît Rigaud, o modelo em que seinspiram os editores de Troyes está disponível desde 1563, em Paris, edesde de 1588, em Lyon. Foi necessário esperar até 1670, ou seja, umséculo mais tarde, para que essa aritmética aparecesse nos catálogos daChampagne, isto é, mais de 60 anos depois da aparição dos livros decordel. Pode-se concluir que esses livretos de aprendizagem da aritmé-tica, tão populares nas cidades mercantes do fim do século XVI, foramabandonados durante toda a primeira metade do século XVII, antes deser retomada pelos editores de Troyes, no formato da Bibliothèque Bleue?Sabe-se hoje que, entre os produtos editoriais, qualquer que tenha sidosua difusão, as obras escolares são freqüentemente as menos bem con-servadas. Convém, portanto, ser prudente.

Efetivamente, uma vez instalado o título nos catálogos, são doistipos de aritmética que coabitam na Bibliothèque Bleue e isso ocorretanto nos catálogos dos Oudots quanto dos Garniers. Encontram-seInstructions de l’arithmétique, diretamente plagiadas das obras de Lyonou de Paris, mas também Arithmétiques nouvelles que se diferenciammuito e não parecem se inscrever na mesma tradição.

A primeira Instructions de l’arithmétique de Troyes preservada –ela está hoje na Biblioteca Sainte-Geneviève em Paris45 – foi impressa

44 Inventaire après décès de Jacques Oudot, 17 juillet 1722, A. D. Aube, 2 E11/53minutes Jolly.

45 Sobre a aritmética de Nicolas Oudot, ver J. Linet et D. Hillard, Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, Catalogue des ouvrages imprimés au XVIe siècle. Sciences, techniques,médecine, K. G. Saur, Paris, Munich, New York et Londres, 1980, notice n. 1.084.

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por Nicolas III Oudot, em 1670. Uma Arithmétique nouvelle dans savéritable intelligence (Biblioteca do Arsenal) é proposta por AnneHavard, viúva de Jacques Oudot, datada de 1725. Trata-se certamenteda mesma obra que é assinalada no inventário de 1722. O catálogo damesma Anne Havard oferece uma “Arithmétique à la plume et par pet.in-8o” assim como uma “outra pequena aritmética” que poderiam ser ascopiadas da Instruction... de 1670 (ela é dividida em duas partes: arit-mética algorítmica pela pena e aritmética abacista) e a Arithmétiquenouvelle, de 1725, efetivamente mais modesta. A viúva Nicolas Oudot,instalada em Paris e ativa entre 1670 e 1718, propõe em seu catálogouma “pequena aritmética” e um “livro de aritmética, grande”.

Na oficina dos Garniers, alternam-se também dois tipos de obras:uma Instruction de l’arithmétique que se encontra pela primeira vez noateliê de Pierre I Garnier em 1738 (Biblioteca Municipal de Troyes) euma Arithmétique nouvelle en sa perfection (Biblioteca Mazarine) quesó é encontrada em 1750, na casa de sua viúva, Élizabeth Guilleminot.Essas duas obras se encontram com seus sucessores e seus colaterais atéa Revolução. A última Arithmétique en sa perfection importante encon-tra-se no catálogo da “Cidadã Garnier” que utiliza esse endereço de1795 até o ano XII.

As Instructions de l’arithmétique são muito parecidas quer venhamde uma ou outra casa de edição. São pequenos in-16o relativamente com-pactos (80 fólios na versão dos Oudots, 119 páginas na dos Garniers)que têm em comum a péssima qualidade científica, ainda degradada nasedições mais tardias. Elas pertencem estritamente à tradição dos mes-tres de escrita e aritmética, como comprova a comparação que se podefazer com os cadernos manuscritos redigidos por seus alunos, que estãohoje conservados no Museu Nacional de Educação de Rouen46. Elas sãoefetivamente plagiadas das obras de Lyon ou de Paris já citadas. Entre-tanto, elas não guardaram, nem da tradição manuscrita, nem da tradiçãoimpressa, a relativa boa composição dos textos. Compostas mani-

46 Serge Chassagne, “Comment apprenait-on l’arithmétique sous l’Ancien Régime?”,Mélanges Lebrun, Rennes, Université de Rennes II, 1989.

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festadamente pelos operários que, seja por não dominarem essa ciência,seja pelo pouco interesse de fazer o esforço de rever seu trabalho antesde imprimi-lo, elas suscitam a questão – importante para um certo nú-mero de obras da Bibliothèque Bleue – do uso que podia ser feito dessesobjetos. Tal qual nos chegaram, pode-se ter certeza de que eles não aju-davam quem desejasse aprender a contar. Deve-se propor a hipótese deque elas pertencem (como as “Secretárias”) a um gênero muito específi-co da produção de Troyes que poderia ser situada do lado do exotismocultural? Uma aritmética errônea ou uma coletânea de cartas obedientesa todos os critérios do epistolário precioso não trariam àqueles que ascompram e não sabem, aliás, nem contar, nem escrever, outras satisfa-ções que não as utilitárias?47

As Arithmétiques nouvelles, quer venham das oficinas dos Oudotsou dos Garniers são também aparentadas entre si, apesar das nuançasque separam seus títulos respectivos. Essas “Pequenas aritméticas” sãoin-8o de 24 páginas48 pelos Oudots e de 16 páginas pelos Garniers.Simplificadas ao extremo em comparação às Instructions, desembara-çadas de todas as regras de origem medieval que pesavam nessas últi-mas, assim como do tratado do cálculo com fichas (ábacos), elas seapresentam como verdadeiras obras escolares suscetíveis de serem ossuportes de aprendizagens sérias. Para além da explicação dos princí-pios da numeração de posição, propõem-se as técnicas das quatro ope-rações e de suas provas respectivas, a regra de três e a regra dacompanhia (cálculo proporcional que serve para redistribuir os ganhosentre várias pessoas que entram na mesma operação comercial comcapitais diferentes). Não se esquece de ensinar o cálculo sobre os nú-meros complexos (limitados, porém, àqueles que entram em jogo nascontas financeiras), fornecendo as tabelas das proporções das alíquotasde 20, para a redução da livre em sols, e de 12, para a redução dos sols

47 Sobre essa hipótese do uso não funcional dos livros práticos da Bibliothèque Bleue,ver Roger Chartier “Des ‘Secrétaires’pour le peuple? Les modèles épistolaires del’Ancien Régime entre littérature de cour et livres de colportage”, op. cit.

48 Na verdade, um caderno in-8o de 16 páginas seguido de um caderno in-4o de 8páginas impressas sobre uma meia-folha.

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em deniers. O fato de o livreto terminar com os modelos de cartas queum filho pensionista ou, segundo as versões, que uma filha escreve aseu pai deixa supor que esses textos podem ter sido destinados a alu-nos das pensões particulares ou pensões religiosas. O primeiro exem-plar conservado desses tipos de opúsculos data de 1703 e foi impressoem Annecy, por Humbert Fontane (Biblioteca Municipal de Grenoble).Foi necessário esperar até 1725 para encontrar exemplares conserva-dos impressos em Troyes49. Esse gênero de aritmética pertence, pois,inteiramente ao século XVIII. Nós não temos ainda condição deretraçar sua genealogia50. A produção aritmética dos séculos XVII eXVIII é muito vasta e não permite aproximações fáceis como aquelasdos séculos XV e XVI.

Uma hipótese é tentadora. É no primeiro decênio do século XVIIIque o conflito entre os mestres de escrita e aritmética e os Irmãos das

49 L’arithmetique / nouvelle / dans sa veritable intellegence / Où l’on peut en peu detems, & / même seul, apprendre à compter, / chiffrer, calculer sans Maître / & sansjettons, toutes sortes de / sommes. / Mise dans une facilité toute parti- / culière,dans cette dernière / Édition augmentée. / M. DCC.XXV. Um exemplar dessa edi-ção está conservado na Biblioteca do Arsenal [8oS.13.069].

50 Dois tipos de títulos se encontram freqüentemente e designam, na verdade, o mes-mo objeto: L’Arithmétique nouvelle dans sa véritable intelligence e L’Arithmétiquenouvelle dans sa véritable perfection, A primeira está com os numerosos editoresprovinciais do livro escolar (Annecy, Humbert Fontane, 1703; Troyes, JacquesOudot, 1725; Épinal, Hubert Moralier, 1741; Toulouse, A. Navarre, s. d.). Em 1767,aparece com Jean-Claude Hérissant, em Paris, uma edição reivindicada por umautor, o senhor Valette, que certamente produziu acréscimos necessários para obteruma nova permissão (um pequeno tratado epistolar). A segunda está, ela também,com numerosos editores, mas parece ter sido mais produzida que a precedente pe-los editores de Troyes, particularmente os Garniers (viúva Garnier, 1750, Citoyenne.Garnier, s.d.; Jean Garnier, s.d.; J.-Ant. Garnier, s.d.; Viúva P. Garnier, s.d.). Essetítulo continua a sua carreira depois da Revolução com numerosos editores dasprovíncias (Lyon, n., por volta de 1792; Chartres, viúva Deshayes, por volta de1800; Épinal, Pellerin, s.d. Rouen, Bloquel, 1811; Caen, Chalopin, s.d.; Caen, A.Hardel, s. d.) ou em Paris (P.D.R., an.-V). A partir de 1780, mas jamais com oseditores de Troyes, a assinatura do senhor Valette é lembrada e quase sempre com-pletada com aquela de Clavet. Eu agradeço Pierre Jeannin (EHESS) que gentil-mente me deixou consultar o seu repertório ainda não publicado para completar asindicações dadas pelos principais catálogos.

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Escolas cristãs conhece seu apogeu51. Particularmente 1704 é o ano maisrico do processo. A aparição das Arithmétiques nouvelles não seria umdos elementos da batalha que leva a congregação a ir contra as corpo-rações? Os Irmãos querem estender a alfabetização caritativa do “lersomente” para o ler, escrever e contar e abrir as escolas congregacionistasàs crianças dos primeiros interessados na aquisição desses conhecimen-tos, os lojistas e os pequenos artesãos das grandes cidades. Não se pode-riam confundir estes com os pobres a quem são, normalmente, destinadasas escolas caritativas. Não é senão em 1787 que um tratado de aritméti-ca propriamente de La Salle aparece52. Os editores da Bibliothèque Bleuevêm preencher durante um momento a lacuna do dispositivo pedagógi-co dos Irmãos das Escolas cristãs?

A passagem das Instructions para as Arithmétiques nouvelles pode-ria assinalar uma etapa importante na evolução da escolarização dasaprendizagens aritméticas. As Instructions pertencem a uma cultura,aquela dos mestres escrivães, que está em pleno declínio no começo doséculo XVIII (a versão dos Garniers é claramente mais cheia de erros doque a versão dos Oudots que data do século XVII). Os chefes de tipogra-fia da Champagne não sabem ou não acham que vale a pena corrigir oserros no momento em que as reimprimem. No entanto, essa mesma tradi-ção, desembaraçada de seus arcaísmos, regenera-se nas Arithmétiquesnouvelles. Elas parecem destinadas às escolas de congregações ou àspensões particulares do século XVIII para as quais os impressores deTroyes não desdenham sua demanda, sinal de que esse mercado está emexpansão e que conta já com numerosos clientes potenciais.

A mesma demonstração poderia ser feita sobre os tratados de orto-grafia e sobre os epistolarios fragmentários que acompanham as arit-

51 Yves Poutet, op. cit., t. 2, pp. 77-107; e Georges Rigaut, Histoire générale de l’institutdes frères des écoles chrétiennes, t. 1, L’oeuvre pédagogique et religieuse de saintJean-Baptiste de la Salle, Paris, Plon, 1937.

52 Trata-se do Traité d’arithmétique à l’usage des pensionnaires et des écoliers desFrères des écoles chrétiennes, publicado em 1787, em Rouen, pela viúva LaurentDumesnil. Sobre esse tratado, Rigaut, op. cit., t. 2, Les disciples de saint Jean-Baptiste de la Salle dans la société du XVIIIe siècle, Paris, Plon, 1938, pp. 528-529.

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méticas em outra época e nas formas que tomam as mutações que afe-tam cada um deles.

Os livreiros-impressores de Troyes à frente darenovação da alfabetização do século XVIII?

Resta explorar a última corrente constitutiva da pedagogia elemen-tar do século XVIII para ver o lugar que nela ocupam os impressores daBibliothèque Bleue. Trata-se da corrente, nascida das Reformas, quereúne catecismo e alfabetização e que, na França, encontra seu resulta-do nas escolas de caridade do fim do século XVII.

Ao perseguir esse modelo, é necessário considerar a repartição ge-ralmente feita nas análises de inventários ou de catálogos, entre livrosescolares e livros religiosos53. No inventário de 1722, entram, de fato,no nosso corpus outros livros que não são os livros de salmos e de horasjá citados: as Instructions de la jeunesse, os catecismos, os Chemins duciel e as Pensées chrétiennes, os Exercices chrétiens, as Imitations, asFigures de la Bible, as Vies de Jésus-Christ, assim como as vidas desantos e o Enfant sage. Vê-se que as cifras de produção dos livros deuso escolar devem ser aumentadas e constituem uma parte muito impor-tante da edição de Troyes54.

53 Utilizamos aqui um critério simples. São consideradas obras escolares aquelas queestão ainda em uso nas classes da primeira metade do século XIX, no momento daenquete de Guizot, de 1833. Sabe-se que o material escolar não começa a se moder-nizar antes de 1830 e que a maior parte das obras das quais se servem os alunos docomeço da Monarquia de Júlio são as edições do século XVIII. Nosso inventárionão arrisca, aliás, de ser aumentado.

54 Retomam-se as contagens efetuadas por Henri-Jean Martin sobre o catálogo Morine sobre o inventário pós-morte dos Garniers, em 1789 (“Culture écrite et cultureorale, culture savante et culture populaire dans la France d’Ancien Régime”, Journaldes savants, 1975, pp. 245-248), deve-se adicionar, para se ter uma idéia da produ-ção de uso escolar, as seguintes categorias: história santa e escrituras; instrução eedificação religiosa; abecedários, silabários e ortografias; civilidade; aritmética;modelos epistolares, conversações e jogos. Esta última categoria, muito extensapara nós, é equilibrada pelo fato de não termos tomado nenhuma das entradas dogrupo “ficção”, por vezes utilizada nas classes e em particular aquilo que se trata

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Uma segunda revisão impõe-se logo. Na perspectiva pós-tridentina,a aprendizagem da leitura estava no centro de um processo deescolarização que raramente excedia o estado de uma alfabetização su-perficial. De todo modo, nas cidades do fim do século XVII – no mo-mento em que a Contra-Reforma se exacerba na luta contra os protes-tantes, privados da proteção do Edito de Nantes –, entende-se que umesforço didático deveria ser feito para atrair, com maior eficácia, as crian-ças dos pequenos artesãos e dos pequenos comerciantes para a escola, oque quer dizer para a Igreja. A oferta de uma melhor instrução pode, aomesmo tempo, aumentar os efetivos escolares e melhorar a educaçãocristã das crianças55.

Conhecem-se bem hoje os três principais modelos que serviram dereferência a essa mutação56: aquele de Jacques de Batencour57 que, noquadro da comunidade dos padres de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, emParis, tenta renovar, em 1650, o ensino dado nas pequenas escolas dessaparóquia; aquele de Charles Demia que, em Lyon, entre 1664 e 1685,inscreve seu esforço no quadro paroquial58; aquele outro de Jean-Baptiste

por contos ou romances de cavalaria. Enfim, esse tipo de reagrupamento nos per-mite dizer que dessa parte do catálogo Morin (1.389 edições, almanaques excluí-dos), 19,5% são livros de uso escolar (contra 28,1% para o religioso consideradoglobalmente e 41,4% para o de ficção). Continuando, no inventário Garnier de1789, a cifra aumenta ainda mais, pois ela se situa a 34,2% (contra 28,8% somentepara a ficção e 42,7% para o religioso).

55 Sobre a articulação entre a catequese e a oferta de instrução, o movimento vem aomesmo tempo da Itália do Norte (Xenio Toscani, “‘Scuole della dottrinacristiana’come fattore di alfabetizzazione”, Società e stori, 26, 1984, pp.757-781) edos Países Baixos do Sul (Omer Henrivaux, “Les écoles dominicales de Mons et deValenciennes et les premiers catéchismes du diocèse de Cambrai”, Aux origines ducatéchisme en France, sous la direction de Pierre Colin, Elisabeth Germain, JeanJoncheray et Marc Venard, Paris, Desclée, pp.144-159).

56 Dominique Julia, Marie-Madeleine Compère et Roger Chartier, op. cit., pp. 111-146.57 L’Escole paroissiale ou la manière de bien Instruire les enfans dans les petites

escoles par un prestre d’une paroisse de Paris, Paris, Pierre Targa, 1654. Sobre aatribuição deste texto a Jacques de Batencour, ver Yves Poutet, “L’auteur de l’Escoleparoissiale et quelques usages de son temps”, Bulletin de la Société des Bibliophilesde Guyenne, 32o année, 77, janvier-juin 1963, pp. 27-50.

58 Charles Demia, Reglemens pour les écoles de la Ville et Diocèse de Lyon, Lyon,chez André Olyer, s.d. (postérieur à 1685).

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de la Salle que funda, em 1682, em Reims, a congregação dos Irmãosdas Escolas cristãs59. Sabe-se também que a obra de Jacques de Batencour,L’Escole paroissiale (publicada por Pierre Targa, em Paris, em 1654)certamente influenciou Demia e La Salle e tantos outros criadores deobras de educação depois deles. As inovações de Batencour recaem so-bre dois domínios chaves da pedagogia contra-reformada: a catequese ea leitura.

Dominique Julia estudou as modificações trazidas por Batencourno primeiro desses domínios60. Retenhamos simplesmente de sua análi-se o que ele assinala do uso bastante particular que é feito dos impresso-res do bairro da praça Maubert (perto do colégio da Sorbonne, em Paris)para assentar uma melhor formação cristã nas escolas da paróquia. Acatequese é repartida em três tipos de lição: a catequese dominical, quese faz sobre o catecismo da diocese de Paris e tem lugar tanto na escolaquanto na igreja; o “catecismo dos mistérios do ano”, que, nas festaslitúrgicas, permite iniciar as crianças no ritual particular que caracterizacada uma entre elas; o “catecismo do último quarto de hora”, que se dános dias em que não haviam outros momentos de catecismo, no fim daslições da tarde. As lições excepcionais que preparam as festas litúrgicassão feitas sobre dois tipos de suporte: uma imagem (aquela do santo oudo mistério concernido) que é mostrada e explicada; os “formulários deinstrução” nos quais é aprendida a lição. Esses livretos foram compos-tos por Batencour que, diz ele, os “fez imprimir para esse fim”. Cadaum deles é dividido em quatro partes que podem ser separadas e dadasna classe, para grupos diferentes de crianças, segundo o seu grau deavanço. Aprendidos durante a semana que precede a festa, eles são reci-tados para o mestre na véspera. Batencour previu que os formuláriosfossem levados para as famílias para que as crianças pudessem mostrá-los a seus pais “como devem fazer na celebração desta festa”. Para o

59 Frère Maurice-Auguste, “Conduite des Écoles chrétiennes. Édition comparée dumanuscrit dit de 1706 et du texte imprimé de 1720”, Cahier lasalliens, 24; e J. B. dela Salle, Oeuvres complètes, op. cit.

60 Dominique Julia, “La leçon de catéchisme dans l‘Escole paroissiale de Jacques deBatencour”, Aux origines du catéchisme en France, op. cit., pp. 160-187.

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impressor61, trata-se de uma folha dobrada in-4o ou in-8o, segundo ocaso, que não é nem costurada, nem encadernada e parece ter sido fa-bricada na medida das necessidades ou da inspiração de Batencour. É,aliás, como as “folhas clássicas” destinadas aos alunos dos colégios, umimpresso de consumo rápido destinado a um uso escolar intensivo bemdiferente daquele do manual. A proximidade na qual se encontra Saint-Nicolas-du-Chardonnet do bairro dos gravuristas e dos impressores –eles estão reunidos na rua Saint-Jacques e nas ruelas adjacentes – não étalvez estranha a esse uso tão precoce do impresso na escolarizaçãoelementar.

Ora, os impressores de Troyes mantêm relações muito estreitas comesse bairro parisiense. É o caso de Nicolas III Oudot (1616-1692) quetrabalha para a livraria Raffié em Paris e, mais ainda, de seu filho NicolasIV que toma sua autorização na capital após ter aí se casado com MariePromé e que tem uma loja na rua da Vieille Boucherie, perto da ponte deSaint-Michel, durante toda a segunda metade do século XVII62.

As ligações entre os impressores de Troyes – os Oudots, é claro,mas também todos os outros – e as inovações pedagógicas nascidas nacomunidade de Saint-Nicolas-du-Chardonnet podem ainda ser mais apro-ximadas se se considera a aprendizagem da leitura. Partamos dessa vezda produção da Champagne. Materialmente o ABC é um objeto de pe-queno formato (in-16o ou in-8o que, raramente, ultrapassa dez centíme-tros de altura). Os exemplares do século XVIII foram, em geral,reencadernados pelos colecionadores. Aqueles do século XIX, que pro-vêm do depósito legal na Biblioteca Nacional e que são ainda aí conser-vados63, indicam o que esses livretos podem ter sido. Rapidamente cos-

61 Jacques de Batencour diz explicitamente, em Escole paroissiale, ter passado o co-mando a Pierre Targa que tem uma loja chamada Au Soleil d’Or, na rua Saint-Victor bem próxima da igreja Saint-Nicolas-du-Chardonnet. Pierre Targa é tambémo editor da Escole paroissiale.

62 Louis Morin, Les Oudot imprimeurs à Troyes, à Paris, à Sens et à Tours, Paris,Leclerc, 1901; e Les Febvre imprimeurs et libraires à Troyes, à Bar-sur-Aube et àParis, Paris, Leclerc, 1901.

63 Biblioteca Nacional (X19.675). Este maço foi estudado por Ségolène Le Men emLes Abécédaires illustrés au XIXe siècle, Paris, Promodis, 1984.

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turados, eles são protegidos por uma capa de cartão colado, de velhaspáginas de almanaques, pintada com uma tinta à água que mal cobre opapel, de cor vermelha ou amarela. Para alguns, preferiu-se uma capade pergaminho. Eles não são, portanto, propriamente falando, os livrosde cordel, mas conservam todas suas características: impressos com ti-pos muito usados que pertencem, freqüentemente, a fundições hetero-gêneas, mal justificados, compostos em formas irregulares, todos têmum frontispício (às vezes uma última página) feita de xilogravuras tra-dicionais da Bibliothèque Bleue (Instrumentos da paixão; O enterro deCristo; Apresentação no templo; ou ainda a Virgem com a criança doRafael etc.). Seu conteúdo é homogêneo. Na primeira parte, muito su-cinta, encontram-se diferentes quadros de letras, sinais de pontuação,de abreviações e de ligaduras (em romano e em itálico, em capitais e emcaixa baixa, o todo em dimensão decrescente) quase sempre acompa-nhadas de dez algarismos árabes, enfim, uma polícia de tipos de impres-são. Segue-se então um quadro com as sílabas. Na segunda parte, a maisimportante em número de páginas, dispõem-se as preces essenciais (ora-ção dominical, saudação angelical, símbolo dos apóstolos, benção e gra-ças, confissão dos pecados), o texto da missa, os sete salmos da peni-tência, e as litanias dos santos e da Virgem. Assim, no Alphabet etInstruction chrétienne da viúva Garnier (um in-8o de seis cadernos, nãopaginados, sem data, conservados na Biblioteca Municipal de Troyes),somente 6 das 96 páginas são consagradas ao aparelho didático. Todo oresto da obra constitui, na realidade, o repertório mínimo de textos quedevem ter sido memorizados pelo catecúmeno fora do catecismo pro-priamente dito. Portanto, por detrás dessa aparente homogeneidade, es-condem-se objetos muito diferentes.

Os abecedários de Troyes podem ser classificados a partir de umacombinação de quatro oposições64. A primeira concerne à língua utiliza-

64 Eu completo as tipologias propostas por Dominique Julia, a partir de critérios es-sencialmente tipográficos (“Livres de classe et usages pedagógiques”, op. cit.); epor Ségolène Le Men sobre a do emprego das ilustrações (op. cit.), introduzindouma nova oposição de tipo fonológico (distinção entre consoantes ordinárias e con-soantes líquidas).

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da: encontram-se, com efeito, alfabetos latinos ou alfabetos franceses(evidentemente são as preces que revelam uma ou outra língua). A se-gunda relaciona-se com a ausência ou a presença de uma separação inter-silábica das palavras (essa separação é materializada por um traço oupor um espaçamento, abarcando todo o livreto ou somente a sua primei-ra parte). A terceira oposição distingue os livretos compostos continua-mente em um mesmo tipo daqueles que são feitos com tipos de dimensãodecrescente. A última, enfim, é mais propriamente didática e concernesomente ao quadro de sílabas. Este coloca face a face os abecedáriosque se contentam em compor cada consoante com cada vogal e aquelesque acrescentam a esse quadro de sílabas de duas letras um quadro desílabas de três letras, constituído pelo conjunto consoante – consoantelíquida (como /r/ ou /l/ em francês) – vogal65.

Reconhecem-se por detrás de cada um desses critérios os grandesdebates pedagógicos do século XVII66. Deve-se aprender a ler come-çando pelo latim ou pelo francês? Convém soletrar cada letra e cadasílaba? Devem-se variar os suportes gráficos de aprendizagem? Sobrequal teoria das sílabas deve-se apoiar? Lembremos brevemente as esco-lhas feitas por Jacques de Batencour em Escole paroissiale. Elas sãomuito tradicionais67. Contrariamente aos reformados e aos jansenistasou, mais tarde, à decisão que tomará J. B. de La Salle, ele recomendacomeçar pelo latim. Ele deseja que a ordem letras – sílabas – palavras –períodos seja rigorosamente respeitada e que a criança aprenda a sole-trar antes de aprender a ler. Para isso, é necessário que as sílabas sejam

65 Assim, nos quadros do segundo tipo, a série / ta, te, ti, to, tu / é seguida da série /tra, tre, tri, tro, tru/ ou ainda / pa, pe, pi, po, pu / é seguida da série / pla, ple, pli, plo,plu /.

66 Esses debates são inseparáveis daqueles que, com os gramáticos, se desenvolvemdepois da primeira edição da Grammaire de Port-Royal (1660) e concerne, de umaparte, à descrição fonológica das línguas e, de outra, ao estatuto da sílaba. VerAdrien Millet, Les Grammairiens et la phonétique ou l’enseignement des sons dufrançais depuis le XVIe siècle jusqu’à nos jours, Paris, Monnier, 1933; e SylvainAuroux et Louis-Jean Calvet, “De la phonétique à l’apprentissage de la lecture”, LaLinguistique, 9, 1973/1, pp. 71-88.

67 Escole paroissiale, op. cit., pp. 234-253.

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separadas “pela largura de um teston de France”68. Ele recomenda va-riar os suportes a fim de que seja cada vez mais difícil ler a tipografia:primeiro, um abecedário impresso em “letras comuns, grossas e bemdistintas”, em seguida textos impressos em “letras medíocres e legí-veis”, depois “os livros em latim mal impressos como os salmos im-pressos em Rouen ou em Troyes”. No fim desse périplo, pode-se entãopassar para o francês, mas começando novamente pelos grossos tipos.O único avanço que admite Batencour concerne à teoria fonológica dalíngua. Ele distingue, evidentemente, as vogais das consoantes, mas tomacuidado de observar entre essas últimas a oposição entre 13 consoantes“mudas” que, diz ele, “apenas soam com vogais” e 4 consoantes “líqui-das que podem se juntar com uma vogal e uma consoante para formaruma sílaba”. Essas quatro últimas são /l/, /r/, /m/ e /n/ que, em latim,podem se encontrar nas composições como /ble/, /bre/, /prae/, /mne/, /smi/ etc. Ele recomenda então alocar nos livros destinados aos alunosduas pranchas de sílabas: uma de duas letras, e outra de três. Essa últimacombina /a/, /e/, / i/, /o/ e /u/ com o conjunto /br/, /bl/, /cr/, /cl/, dr/, /fr/,/fl/, /gr/, /gl/, /mn/, /pr/, /pl/, /st/, /sp/ e /tr/69.

Os abecedários impressos em Troyes efetuam escolhas entre as qua-tro alternativas descritas anteriormente. No entanto, todas as possibili-dades não são exploradas. Somente três combinações parecem ter sidoretidas, que caracterizam três tipos de livretos. Os primeiros comportamas preces em latim, sem separar as palavras em sílabas. Eles utilizamabundantemente a diminuição do tipo. Eles têm, em geral, o títuloAlphabet et Instruction chrétienne e não deixam de acrescentar a ele“segundo o antigo uso da Igreja católica”70. Majoritários entre os exem-

68 Antiga moeda gravada com a efígie dos reis da França que circulou de 1513 até oreinado de Luís XIII.

69 Escole paroissiale, op. cit., pp. 234-238. Convém destacar que o autor não dá statusespecífico para a letra /s/ alocada na frente de uma consoante (“Às vezes também o/s/ se junta com um /p/, /t/, como /spi/, /sti/”, p. 236), enquanto não lhe falta umlugar no seu quadro de sílabas de três letras. Ao contrário, ele abandona o /m/líquido para utilizá-lo senão como consoante plena no /mn/.

70 Por exemplo, alphabet / et instruction chretienne / Pour les petits enfans, / Selonl’ancien usage de l’Eglise / catholique. / A troyes / Chez la veuve Garnier, Imprim.

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plares conservados do século XVIII, eles passam sem obstáculos pelaRevolução. Pode-se considerar que eles são prioritariamente destinadosàs pequenas escolas rurais.

Os segundos são também alfabetos latinos, mas as palavras são di-vididas em sílabas, e podem ou não aparecer com tipos de dimensãodecrescente. Eles têm em seu quadro de sílabas conjuntos de três letrascom líquida intercalada. Freqüentemente são denominados Premieralphabet divisé par syllabe e, para um deles, editados por Mme Garnier(sem data), a página de título precisa “Extrato da Escola paroquial71”,fazendo, assim, referência direta ao modelo de Jacques de Batencour.Lembremos ainda que a viúva Nicolas Oudot assinala a seus clientes,em um de seus catálogos, que ela tem à sua disposição exemplares daEscole paroissiale72. Infelizmente nenhum exemplar dessa edição de

/ Libraire, rue du Temple. Trata-se de um in-8o de seis cadernos paginados, semdata (século XVIII), comportando uma xilogravura no frontispício (Circuncisão deCristo). A Biblioteca Municipal de Troyes possui dois exemplares (BB 167 e BB837) que têm assinaturas e xilogravuras diferentes. Sempre dos Garniers, um exem-plar (BB 882) distingue-se dos precedentes por uma cruz acompanhada dos atribu-tos da paixão que serve de vinheta sob a página de título. Existem numerososexemplares dessas Instructions chrétiennes, com a cota X 19.675, na BibliotecaNacional (caixa 29).

71 Por exemplo, Premier / alphabet, / divise / par syllabes, / pour apprendre, avecgrande facilite, / les enfans a epeler. / Extrait de l’Ecole paroissiale. / A troyes, /Chez Mme Garnier, Imprimeur- / Libraire, rue du Temple. Trata-se de um in-8o,sem data (século XIX), com dois cadernos, não paginados, comportando duasxilogravuras (uma da Virgem com o Menino [p. 2] e uma da Entrada em Jerusalém[p.16]), recoberta, no lugar da capa, com uma folha de um canioneiro licenciosopintado com vermelho. Ele está conservado na Biblioteca Nacional, cota X 19.675,caixa 24, na companhia de numerosas edições muito próximas.

72 Alfred Morin, Catalogue descriptif de la Bibliothèque Bleue de Troyes (almanachexclus), Genève, Libraire Droz, 1974, p. 103. Além da primeira edição feita porPierre Targa, em 1654, da qual dois exemplares somente foram conservados, en-contram-se edições copiadas, ou abreviadas: Instruction méthodique pour l écoleparoissiale dressée en faveur des petites écoles dédiée à M. le Chantre de Paris parMIDB prête, de Trichard, em Paris, 1669 depois em 1685; sob o mesmo título, dosG. Ch. Berton, em Paris, rue Saint-Victor (segundo Dominique Julia, op. cit.). Osucesso do École paroissiale ao longo de 1660-1720 leva a crer na existência de umnúmero muito grande de edições.

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Troyes da maior reforma educativa do século XVII parece ter sido con-servado.

Encontram-se, enfim, livros comportando as preces em francês, di-vididas em sílabas na sua primeira parte, depois impressas em palavrasinteiras em uma segunda parte. Eles utilizam a diminuição dos tipos.Eles são denominados Nouvel alphabet français divisé par syllabes esão endereçados freqüentemente, na sua página de título, à “juventudecristã” ou às “escolas cristãs”73. Os exemplares conservados pertencemtodos ao século XIX, mas pode-se lançar a hipótese de que a introduçãodesses objetos na produção de Troyes é mais antiga. As referências aesses “alfabetos franceses” não são raras nos catálogos do século XVIII,aqueles da viúva Nicolas Oudot, por exemplo74. Dessa vez, é Jean-Baptiste de la Salle e suas “escolas cristãs” que se tornam as referênciasimplícitas dos impressores de Troyes. Assim, como se vê, os produtoresda Bibliothèque Bleue estão também presentes no coração do debatepedagógico do século XVIII75.

Seria preciso recomeçar essa demonstração sobre os numerosos mo-delos de civilidade76 que os editores de Troyes colocam em seus catálo-

73 Um exemplo tardio: nouvel / alphabet / en français, / divise par syllabes, / pourinstruire les enfans avec facilite, / a l’usage des ecoles chretiennes. / troyes, / anner-andre, imprimeur-libraire de l’eveche, / face a l’hotel de ville, Norst 5 et 7 / 1845.Trata-se de um pequeno in-8o composto por 104 páginas com uma xilogravura (Cristona cruz) na página 2. Ele é recoberto por um cartão azul e pertence à coleção LouisMorin. Outros exemplares com o mesmo endereço da Femme Garnier (século XIX)com a cota X 19.675 da Biblioteca Nacional.

74 “Alphabet François, avec l’Ordinaire de la Messe, et autres prières en François”,citado por Louis Morin, Catalogue, op. cit., p. 29.

75 Yves Poutet, “Les livres pédagogiques de Jean-Baptiste de La Salle”, Revuefrançaise d’histoire du livre, 26, 1980, pp. 29-67.

76 Sobre os Civilités da Bibliothèque Bleue, ver Roger Chartier, Lectures et lecteursdans la France d’Ancien Régime, op. cit., pp. 45-86; e “Civilité”, Handbuchpolitisch-sozialer Grundbegriffe in Frankreich (1680-1820), sob a direção de RolfReichardt et Eberhard Schmitt, Munich, R. Oldenburg Verlag, 1986, pp. 7-50. Vertambém Yves Poutet, “Les livres pédagogiques de Jean-Baptiste de La Salle”, op.cit. Encontra-se uma lista de edições de Civilité de Jean-Baptiste de La Salle no n. 19dos Cahiers lasalliens, assim como no Frère Albert-Valetin, Édition critique des“Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne”, Paris, Ligel, 1956. Lem-

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gos (estão no inventário de 1722). Encontram-se sob os títulos Civilitéhonnête ou Civilité puérile et honnête77 livretos compósitos que asso-ciam o abecedário e o tratado de ortografia, a aritmética e os preceitosde moral de Pybrac, assim como, obviamente, as regras de conduta so-cial ou religiosa, características desse gênero de obra. Tudo é impressocom os famosos caracteres de civilidade – últimos vestígios de um tipode gótico cursivo na França – e com as licenças do século XVIII. Tam-bém são impressos em Troyes as Règles de la bienséance et de la civilitéchrétienne de J. B. de La Salle que oferece o mesmo texto do pequenolivro que o fundador das Escolas cristãs havia escrito para a sua institui-ção. É verdade que estamos agora no começo do século XIX na impres-sora da viúva André que acumula as funções de impressora do“Monsenhor Bispo” e dos “Irmãos das Escolas cristãs”. Entretanto, deve-se lembrar que entre o Primeiro Império e a Monarquia de Julho, essesúltimos estão nos postos avançados da inovação pedagógica e que seumétodo (o “método simultâneo”) será o preferido de Guizot em vez dométodo das escolas mútuas, apoiado por homens politicamente muitopróximos do ministro, quando for necessário modernizar o ensino pú-blico78.

Conclusão

Vê-se assim que os livreiros-impressores de Troyes nunca se con-tentaram em produzir obras escolares marcadas por seu arcaísmo paraos circuitos de venda ambulante. Muito pelo contrário, estiveram aten-

bremos que a primeira edição desta civilité é feita em Troyes, em 1703, por umimpressor, François Godard, que tem também loja em Reims, mas ele não é umprodutor habitual dos livros de cordel. A primeira edição do tipo Bibliothèque Bleueparece ser aquela da viúva de Nicolas Oudot, em 1716.

77 Catalogue, Louis Morin, pp. 67-74. Vinte e quatro edições são recenseadas e exis-tem muitas outras em diversas coleções.

78 Christian Nique, La Petite Doctrine pédagogique de la monarchie de Juillet (1830-1840), thèse pour le doctorat d’État, Strasbourg, Université Louis Pasteur, 1987, 2vols.

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tos aos sucessivos debates pedagógicos, adaptaram, sem cessar, sua pro-dução aos avanços da escolarização e tentaram mesmo explorar a possi-bilidade de trabalhar para instituições que estavam em fase decrescimento, como as pensões particulares ou as escolas de caridade. Seeles abandonam esse mercado no século XIX, apesar dos esforços daviúva André, de Anner e André ou ainda dos últimos Baudot, não é emrazão de suas más escolhas editoriais. Continuam, ao contrário, a seinteressar pelas proposições da Sociedade pelo Ensino Elementar comopor aquelas dos Irmãos das Escolas cristãs – as duas forças de proposi-ções mais importantes do período. Na verdade, suas prensas não lhespermitem mais assegurar para a edição em geral e, particularmente, paraa edição escolar, a produção de qualidade e de baixo custo que se espe-rava nesse começo do século XIX. Para servir a escola pública nascentee oferecer obras em ritmo de milhões de exemplares a cada ano, comoexige o Ministro da Instrução Pública, necessita-se de outros meios téc-nicos e outros meios financeiros de que os últimos impressores de Troyesnão dispunham. O tempo dos Oudots ou dos Garniers acabou. É o dosHachettes que começa.

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Celso Suckow da Fonseca e a sua“História do ensino industrial no

Brasil” *

José Rodrigues **

* Talvez caiba esclarecer que o presente ensaio, salvo alguns pequenos acréscimos eatualizações, foi redigido originariamente, em 1990, como monografia para a disci-plina história da educação no curso de mestrado em educação da Faculdade de Edu-cação da Universidade Federal Fluminense, ministrada pelo professor Luís AntônioCunha, a quem agradeço pelas sugestões e críticas, sem obviamente responsabilizá-lo pelo produto final. Agradeço também ao professor Dermeval Saviani pelo incen-tivo a finalmente divulgar este trabalho.

** Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, doutorem educação pela Universidade Estadual de Campinas ([email protected]).

O presente ensaio pretende analisar o pensamento pedagógico de Celso Suckow da Fon-seca esboçado em sua obra clássica História do ensino industrial no Brasil, publicadaoriginariamente entre 1961 e 1962.HISTÓRIA DO ENSINO INDUSTRIAL; BRASIL; CELSO SUCKOW DA FONSECA.

This essay aims at analysing Celso Suckow da Fonseca’s pedagogical thought presentedin this classical work História do ensino industrial no Brasil, originally published between1961 and 1962.HISTORY OF INDUSTRIAL TRAINING; BRAZIL; CELSO SUCKOW DA FONSECA.

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1. Introdução

A História do ensino industrial no Brasil de Celso Suckow da Fon-seca é, sem dúvida, um clássico da historiografia educacional brasileira,principalmente no campo da formação profissional. Constitui-se empassagem obrigatória a todos aqueles que buscam entender a organiza-ção e evolução do ensino técnico brasileiro. Contudo, se, por um lado, aobra é muito citada em textos de história da educação, por outro lado,não existem trabalhos que busquem analisar a obra em si1.

O presente ensaio pretende prover subsídios para a identificação dopensamento pedagógico de Celso Suckow da Fonseca esboçado no tex-to e em suas entrelinhas. Para o leitor ter mais claro sobre que bases sedá a análise das concepções de Celso Suckow da Fonseca, optamos porapresentar um breve panorama da evolução do ensino industrial brasi-leiro baseado – exclusivamente – na leitura de sua obra, salvo algumasnotas explicativas do contexto e de indicações de leitura complementaratualizadas. Foi nosso interesse, portanto, que o próprio panorama járemeta o leitor a algumas das posições mais gerais do pensamento deSuckow da Fonseca. Em seguida, procedemos a apresentação do seupensamento pedagógico propriamente dito, explicitando os procedimen-tos de análise.

2. Celso Suckow da Fonseca e sua obra

Celso Suckow da Fonseca nasceu em 27 de julho de 1905, no Rio deJaneiro, e morreu em Detroit, nos Estados Unidos, em 26 de outubro de1966, onde estava em viagem profissional a convite da Ford Foundation.Formou-se em Engenharia, em 1927, pela então Escola Politécnica doRio de Janeiro, fez o Curso Superior de Locomoções do Centro Ferroviá-

1 Apenas recentemente, em 1999, veio a lume o verbete Celso Suckow da Fonseca,de autoria de Maria Ciavatta Franco e Rebeca Gontijo (1999), inscrito no Dicioná-rio de Educadores no Brasil.

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rio de Ensino e Seleção Profissional (CFESP), em 1939. Nesse mesmoano concluiu o curso da Escola Superior de Guerra (ESG), no qual sedeteve sobre a formação profissional. Nos Estados Unidos, formou-seem Administração de Escolas Técnicas, no State College da Pensilvânia(Franco; Gontijo, 1999, p. 134).

Celso Suckow da Fonseca integra uma geração de engenheiros-edu-cadores, dentre os quais se destacam Francisco Montojos, João Lüderitz,Ítalo Bologna2 e Roberto Mange, que fundiram suas atuações às estra-das de ferro, às indústrias e às escolas técnico-profissionais (Franco;Gontijo, 1999, p. 135).

Em que pese a atuação em diversos espaços institucionais, nota-damente a Estrada de Ferro Central do Brasil, onde instalou dez escolasprofissionais, a trajetória desse engenheiro-educador está intimamenteligada à história da Escola Técnica Nacional/Federal (ETN/ETF).

Com efeito, desde 1967, a então Escola Técnica Federal recebeu onome daquele engenheiro-educador que dirigiu essa escola por quatromandatos, só interrompidos pelo seu falecimento. A partir de 1978, aantiga ETF denomina-se Centro Federal de Educação Tecnológica “CelsoSuckow da Fonseca”.

A obra História do ensino industrial no Brasil foi editada originaria-mente pela Escola Técnica Nacional. A obra, dividida em dois volumes,teve seu primeiro volume publicado em 1961 e o segundo em 1962.

A edição sobre a qual trabalhamos foi publicada, em 1986, peloServiço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). Essa edição, emcinco volumes, veio a lume por ocasião do I Congresso Mundial deFormação Profissional, ocorrido no Rio de Janeiro.

A obra de Celso Suckow da Fonseca, portanto, está dividida emcinco volumes, e o primeiro aborda o ensino desde a época do descobri-mento até as iniciativas da República, passando por uma pequena reto-mada histórica das origens e funcionamento das Corporações de Ofíciona Europa Medieval.

2 Ver também o verbete Ítalo Bologna, de autoria de Gaudêncio Frigotto e JoséRodrigues, na nova edição do Dicionário de Educadores no Brasil (no prelo).

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No segundo volume, o autor aborda as conseqüências da Lei Orgâ-nica do Ensino Industrial de 1942; as iniciativas do Exército e da Mari-nha, no que diz respeito ao ensino técnico-profissional e à questão dasestradas de ferro. O autor dá relevo à atuação do Centro Ferroviário deEnsino e Seleção Profissional – CFESP3.

Já no terceiro volume é abordada a criação do SENAI, a atuação daComissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), a for-mação do professorado e a evolução da filosofia do ensino industrial.Ainda nesse volume, o autor aborda diretamente “A evolução da filoso-fia do ensino industrial”.

Os últimos dois volumes tratam das iniciativas sobre o ensino in-dustrial adstritas às Unidades da Federação.

Aspecto relevante da obra de Celso Suckow da Fonseca é a fartadocumentação nela reproduzida. Possivelmente, muitos desses docu-mentos (e seus respectivos conteúdos) se perderiam se o autor não ostivesse resgatado da sanha dos cupins da memória nacional.

3. Panorama geral do ensino industrial no Brasil4

3.1. Brasil Colônia

Nos tempos do Brasil Colônia – Terra de Santa Cruz –, a sociedadenascente era baseada na figura de um chefe inconteste: o proprietário deterras. Desse patriarca emanava um poder quase ilimitado. Com o pas-sar do tempo, esse poder se disseminou por toda a sua família, passandoa constituir-se, assim, na camada mais alta da sociedade rural. Imediata-mente abaixo dessa camada, vinham os artífices, os mecânicos, os tece-lões. Abaixo desses encontravam-se os indígenas e mais tarde os escravos.

3 Esse é o tema central da dissertação de mestrado de Marluce Medeiros (1987),apresentada ao IESAE/FGV e publicada pelo SENAI.

4 As referências relativas à obra História do ensino industrial no Brasil (Fonseca,1986) serão apresentadas apenas por um número em algarismos romanos, que de-signarão o volume da obra, seguido de outro na forma hindu-arábica, referentes àpágina. Assim, a indicação II: 13 refere-se ao segundo volume, página 13.

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Aqueles que empregavam as mãos para viver “gozavam de certasprerrogativas sociais”, talvez dadas pela extrema e direta necessidadedesses pelas classes dominantes (I: 14). É importante lembrar que atéentão técnicas, tais como tecer, esculpir, trabalhar o ferro, não eram pra-ticadas, ainda, pelos escravos5.

A reprodução desses profissionais, ou seja, a formação de novos artí-fices, através da transmissão de conhecimentos técnicos acerca do mane-jo de ferramentas, dava-se nas próprias fazendas, “nas rudimentares ofi-cinas situadas ao lado das casas-grandes” de maneira assistemática (I: 15).

Com a acumulação de riquezas por parte dos “senhores rurais” e doensino das profissões manuais aos escravos, a condição daqueles quedelas sobreviviam decai muito. Aí estaria a raiz do “abastardamento”das profissões industriais.

Os jesuítas – “iniciadores dos processos de educação no Brasil” (I:16) – também difundiram o ensino de ofícios manuais6. Não por umacrença no valor dessa educação, mas sim “meramente” por necessida-des materiais, tais como a construção de capelas e a confecção de ins-trumentos, como anzóis e facas. Aliás, Suckow da Fonseca consideraMateus Nogueira – “ferreiro de Jesus Cristo” – fundador da metalurgiapaulista (I: 19). Os ensinamentos dos jesuítas não se limitaram aos as-pectos de transformação da matéria, mas se estenderam também à agri-cultura. Cabe ressaltar que:

o ensino elementar das mais necessárias profissões manuais, feito pelos pa-

dres da Companhia de Jesus, fôra determinado pelas circunstâncias e não

tivera caráter sistematizado, nem obedecera a nenhum plano. Tudo confor-

me a exigência do momento, tudo de acôrdo com as necessidades imediatas

[I: 21]7.

5 Para o autor, a transferência do trabalho manual/artesanal aos escravos é funda-mental para a formação de uma concepção negativa sobre o trabalho. Nosella (1993)endossa tal perspectiva.

6 Um importante registro desse trabalho é a obra de Serafim Leite (1953).7 Já se pode notar claramente a importância que o autor atribui ao ensino sistemati-

zado das profissões industriais.

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Com a descoberta do ouro no fim do século XVII, vários engenhoscomeçaram a cessar suas atividades e vilas nasciam da noite para o dia.Vila Rica, Mariana, São João Del Rei, são exemplos notórios. Se, porum lado, o ouro produziu profissões ligadas à lavra do metal e à suafundição, por outro lado, produziu o êxodo para o interior daqueles queexerciam as chamadas “profissões mecânicas”. Assim, para deter talmovimento, foram baixadas Cartas Régias (1703, 1706) que proibiam aida de “homens de ofício” para as minas8.

Até a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, todas as ativi-dades propriamente industriais eram proibidas e, portanto, o desenvol-vimento dos ofícios ligados a esse tipo de atividade estava fadado a nãoprosperar.

Logo que D. João VI permitiu o estabelecimento de indústrias noBrasil, foi criado o Colégio das Fábricas, que se constituiu no primeiroestabelecimento que o poder público instalou no país a fim de atender à“educação dos artistas e aprendizes” (I: 102). Na verdade, o Colégio dasFábricas era mais do que uma escola de aprendizes artífices, era tam-bém um local de abrigo aos artesãos vindos de Portugal.

A transferência da Corte para o Brasil produziu diversos reflexos noensino industrial. O Exército criou uma Companhia de Artífices9, fo-mentou a indústria de armamentos e conseqüentemente os ofícios liga-dos a essa indústria.

Também na esfera da lapidação de pedras preciosas, D. João VIincentivou o ensino daquela arte, mandando vir de Portugal dois mes-tres que deveriam tomar dois aprendizes para ensinar-lhes o ofício.

Mas os sonhos de D. João VI não se limitavam às relações de mes-tre-aprendiz, ele desejava a instalação de cursos que tratassem do ensi-no de ciências, das belas-artes e da sua aplicação à indústria.

8 Com relação à posição social daqueles que se ocupavam dos ofícios ligados à fun-dição do ouro, o autor dá um grande destaque. Segundo ele, esses ofícios eram unsdos poucos socialmente valorizados. Celso Suckow da Fonseca aborda, dentre ou-tros, os ofícios ligados à construção naval, que começaram em meados do séculoXVIII e se estendem até hoje.

9 Essa Companhia, muito tempo depois, se desenvolveu no Arsenal de Guerra doRio de Janeiro. A atual Escola de Arsenal de Marinha está em processo de reorgani-zação.

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Logo, como faltavam pessoas habilitadas para conduzir tais ativida-des, conseguiu uma “pléiade de artistas” e um “punhado de homens deofício”. Tal grupo ficou conhecido como Missão Artística Francesa de1816. No entanto, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que deve-ria ter sido posta para funcionar sob a orientação dos franceses, jamaisocupou o lugar de centro de ensino de ofícios.

Em 1818, D. João VI incorporou à Coroa o Seminário São Joaquim,no Rio de Janeiro, a fim de servir de quartel para o Corpo de ArtíficesEngenheiros que funcionaria também como formador de novos artífi-ces. Nesse Corpo:

não se fazia restrição quanto ao estado social dos jovens a instruir. Não se

dizia que aquela espécie de ensino era para pobres, órfãos ou abandonados.

Antes pelo contrário, desejavam-se os rapazes de boa educação [I: 113].

No entanto, igualmente não ocorreria na Bahia, no Seminário dosÓrfãos, que passaria a ser um marco na mudança da filosofia do ensinoindustrial. Com efeito, a partir daí seriam abertos inúmeros estabeleci-mentos destinados a recolher “marginalizados” e dar-lhes ensino pro-fissional (I: 114).

Assim, para Suckow da Fonseca, o reinado de D. João VI serve demarco positivo na história do ensino industrial, dadas as ações de fo-mento à indústria e direta e indiretamente ao desenvolvimento do ensi-no de ofícios. Além disso, também foi um marco positivo pela instalaçãodo Seminário dos Órfãos, em 1819.

3.2. Brasil Império

Com a Constituição de 1824 – outorgada por D. Pedro I –, chega-ram ao fim as Corporações de Ofício que “se não foi [de existência]brilhante, nem influiu nos nossos destinos, teve, entretanto, bastanteduração” (I: 54).

A Constituição de 1824, se, por um lado, não abraçou, como queriamos legisladores, a idéia de um ensino industrial voltado aos negros, poroutro lado, deixou vago o lugar ocupado pelas corporações, no tocanteao ensino dos ofícios.

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Em 1830, pela primeira vez foi apresentado ao Congresso um proje-to que instituiria o ensino profissional no país, em todo distrito commais de 100 residências. No entanto, o projeto nunca foi aprovado. Se-gundo Suckow da Fonseca, tal idéia seria “romântica”, haja vista a pers-pectiva de o país passar de um número zero de escolas desse tipo atéaquele necessário para cobrir todos os distritos com “cem fogos”, que,aliás, não seria nada pequeno.

Em 1834, com o Ato Adicional, ganha força de lei as idéiasdescentralizadoras (federalistas). Com isso, tornou-se difícil a implemen-tação de uma política nacional de educação, uma vez que ao governocentral só cabia o ensino superior.

É interessante notar o modo como se enxergava o ensino superior.Imperavam à época os cursos de medicina, direito e engenharia, que,embora fossem cursos estritamente profissionais, eram apreciados pelacultura geral que propiciavam. O autor mostra que tal mentalidade le-vou muitos estudantes a sacrificarem o aprofundamento profissional emprol do “conhecimento geral da cultura humana ou ao ideal de um traba-lho literário” (I: 141).

No governo de D. Pedro II, deu-se mais um passo ao “abastarda-mento” do ensino profissional:

O ensino necessário à indústria tinha sido, inicialmente, destinado aos

silvícolas, depois fôra aplicado aos escravos, em seguida aos órfãos e aos men-

digos. Passaria, em breve, a atender, também, a outros desgraçados [I: 147].

O indignado comentário de Celso Suckow da Fonseca é utilizadopara introduzir a informação de que o imperador fundara, em 1854, oImperial Instituto dos Meninos Cegos, e de que dois anos mais tardefundaria o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, ambos com a finalidadede dar profissão àqueles que abrigavam10.

10 Tipografia e encadernação seriam ensinadas aos cegos, enquanto aos surdos-mu-dos caberia a aprendizagem de sapataria, encadernação, pautação e douração. Atual-mente esses institutos são respectivamente denominados Instituto Benjamin Constante Instituto Nacional de Educação de Surdos.

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Tal passagem parece deixar claro o quanto Suckow da Fonseca lu-tou pela dignificação do ensino profissional. Para ele não bastava a ex-pansão quantitativa desse tipo de ensino, mas era fundamental que oensino industrial passasse a ser encarado como educação e não comoapanágio ou castigo.

O autor dá destaque também à atuação de Rui Barbosa em defesa doensino industrial. Com projeto apresentado em 1882 à Câmara, RuiBarbosa pretendia reformar o ensino secundário e superior. No referidoprojeto aparecia “misturado” ao secundário o ensino industrial. No en-tanto, tal projeto não previa a indispensável “parte prática”, mas apenasaulas teóricas (exceção feita aos cursos de relojoaria e instrumentos deprecisão). Esses cursos seriam ministrados pelo, então, Liceu ImperialD. Pedro II (atual Colégio Pedro II).

Rui Barbosa lutou também pela implantação da Escola Normal Na-cional de Arte Aplicada, que deveria ficar entregue à direção de umprofissional contratado no exterior.

Apesar de outras vozes se levantarem em favor daquele deputado,como, por exemplo, Tarqüínio de Souza (em sua obra O ensino técnicono Brasil, de 1886), as propostas de Rui Barbosa jamais foram postasem prática (I: 157).

D. Pedro II, em sua última Fala do Trono (3 de maio de 1889), pediuà Assembléia Geral Legislativa a criação de escolas técnicas.

3.3. Brasil República

A 17 de dezembro de 1906, recebeu o Senado um documento pro-veniente de um Congresso de Instrução, que se realizou à época, suge-rindo várias atitudes governamentais em benefício do ensino industrial.Na opinião de Suckow da Fonseca, tal congresso defendeu idéias avan-çadas, pois chegava a propor a criação de escolas superiores industriais,agrícolas e comerciais, distribuídas por todo o país (I: 171).

Pela primeira vez na história do país, em 1906, um presidente –Afonso Pena – fazia referência ao ensino industrial em sua plataformade governo, no entanto, sem muito entusiasmo.

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Também em 1906, o engenheiro José Joaquim da Silva Freire criou,na Estrada de Ferro Central do Brasil, a Escola Prática de Aprendizesdas Oficinas do Engenho de Dentro. O presidente da República, por suavez, sancionou um decreto que colocou nas atribuições do Ministério daInfra-estrutura (agricultura, comércio e indústria) a responsabilidade dainstrução profissional.

Por ocasião da proclamação do regime republicano, existiam 636estabelecimentos industriais e até 1909 implantaram-se mais 3.362. Issomostra, para Celso Suckow da Fonseca, que o desenvolvimento da in-dústria demandava o ensino profissional. “Urgia ao Govêrno, tomar pro-vidências” (I: 74).

Surgiu em cena então, pelo falecimento, em 14 de dezembro de 1909,de Afonso Pena, o presidente Nilo Peçanha – “fundador do ensino pro-fissional no Brasil”.

Nilo Peçanha já tivera fundado (1906) no Estado do Rio de Janeiro,enquanto fora presidente daquele Estado, quatro escolas profissionais11.

Três meses depois de assumir a Presidência da República, NiloPeçanha tomou uma atitude que o colocaria definitivamente na históriado ensino industrial no Brasil. O decreto n. 7.566, de 23 de setembro de1909, estabeleceu uma Escola de Aprendizes Artífices, destinada aoensino profissional, em cada uma das capitais estaduais12.

Para Celso Suckow da Fonseca, um único aspecto negativo marca-va o decreto n. 7.566. Através dele, o presidente da república endossouaquelas práticas/concepções seculares de destinar o ensino industrialàqueles “desfavorecidos pela fortuna”. No entanto, Fonseca silencia arespeito de que esse ensino, supostamente, promoveria o afastamentodesses “desafortunados” da “escola do vício e do crime” – a “ociosida-de” (I: 177).

11 As escolas situavam-se em Campos, Petrópolis, Niterói e Paraíba do Sul, e as trêsprimeiras eram responsáveis pelo ensino de ofícios e a última destinada ao ensinoagrícola.

12 Cabe perguntar como foi possível – do ponto de vista legal – tal ato, haja vista quea organização republicana de então vedava ao governo central a implantação deescolas nos estados.

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Apesar de as Escolas de Aprendizes Artífices terem se mostradopouco eficientes, marcaram época no Brasil, uma vez que:

representaram uma sementeira fecunda que, germinando, desabrocharia, mais

tarde, sob a forma das modernas escolas industriais e técnicas do Ministério

da Educação [I: 182].

Segundo Fonseca, o curto governo de Nilo Peçanha não desarticu-lou as Escolas de Aprendizes Artífices, porque seu sucessor deu conti-nuidade a sua obra, pressionado por “fatores econômicos”, pelo Senado,pela Câmara e pela opinião pública13.

A 15 de novembro de 1914, assumiu a presidência o dr. VenceslauBrás Pereira Gomes, que endossaria as palavras de Nilo Peçanha inscri-tas no decreto n. 7.566:

A criminalidade aumenta; a vagabundagem campeia; o alcoolismo ceifa, cada

vez mais, [...] porque, em regra, não tendo as pobres vítimas um caráter bem

formado e nem preparo para superar as dificuldades da existência, [...] se

atiram à embriaguez e ao crime [Manifesto de Venceslau Brás apud Fonseca,

I: 187].

E qual seria a solução? O próprio Venceslau Brás a dá:

Dê-se, porém, outra feição às escolas [...], tendo-se em vista que a escola não

é sòmente um centro de instrução, mas também de educação e para êsse fim

o trabalho manual é a mais segura base; instalem-se escolas industriais [...]

que os cursos se povoarão de alunos e uma outra era se abrirá para o nosso

País [idem, ibidem].

Sintomaticamente, Celso Suckow da Fonseca deixa de lado tais pas-sagens, não se contrapõe a tal visão da relação entre trabalho e forma-ção humana.

13 O marechal Hermes da Fonseca substituiu Nilo Peçanha em 15 de novembro de 1910.

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Em seguida, o autor cita vários debates na Câmara em busca damelhoria do ensino profissional, fundamentalmente no tocante às ver-bas àquele ramo de ensino. Mas a situação do país era grave, já queeclodira a Primeira Guerra Mundial. Esse fato simultaneamente atrapa-lhou e contribuiu para o desenvolvimento do ensino industrial no Bra-sil, pois, submetido a um estrangulamento externo, isto é, impossibilitadode importar bens industriais, forçou/propiciou o crescimento da indús-tria nacional14. Com efeito, no período de 1915 a 1919 foram criadas5.936 empresas de caráter industrial. Em cinco anos, a indústria avan-çou mais do que nos 24 primeiros anos da República (I: 190).

Como esse surto industrial se baseara, fundamentalmente, em peque-nas oficinas, o autor afirma que isso teria acarretado uma demanda, nãosó de mais braços qualificados, mas também e sobretudo de uma melhorqualificação. Nesse ponto, Celso Suckow da Fonseca menciona um as-pecto importante no que diz respeito à complexificação do processo pro-dutivo e a sua relação com qualificação profissional – ponto fundamentalpara a discussão atual acerca da relação entre trabalho e educação.

Quanto menor o número de artífices de uma oficina, tanto maior a necessidade

têm eles de conhecimentos profissionais, por precisarem executar uma varieda-

de maior de problemas de ordem técnica, ao contrário do que se dá em grandes

fábricas, onde a aparelhagem mecânica e a produção em série, com conseqüen-

te emprêgo de homens em determinadas tarefas sòmente, permite uma menor

soma de conhecimentos especializados para cada um dêles [I: 191].

Assim, várias inovações/alterações foram realizadas no âmbito doensino industrial, principalmente nas Escolas de Aprendizes Artífices15.

Desde a criação dessas escolas, o governo federal vinha tendo difi-culdades com a falta de professores e mestres. Para Fonseca a questãodocente seria o ponto mais vulnerável da organização escolar à época.

14 Para uma análise aprofundada dessa dinâmica, ver Maria da Conceição Tavares (1977).15 São algumas dessas alterações: o caráter obrigatório do curso primário para todos os

alunos; a redução da idade de ingresso para 10 anos; a obrigatoriedade de concurso(provas e títulos) para o provimento dos cargos de professores e diretores; aberturade cursos noturnos; a regulamentação mais precisa das caixas de mutualidade.

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Diante disso, o governo central encetou discussões com a prefeiturado Rio de Janeiro para que a Escola Normal de Artes e Ofícios VenceslauBrás, fundada em 1917, controlada pelo governo municipal, passasseao âmbito federal. Com efeito, a Escola passou à esfera do Ministério daAgricultura, Indústria e Comércio, em 191916.

Apesar de todos os esforços, as Escolas de Aprendizes Artífices nãoiam bem. Assim, em 1920, o Ministério da Agricultura, Indústria e Co-mércio nomeou uma comissão de técnicos especializados para estudar ofuncionamento das Escolas e propor mudanças no ensino profissional.Tal comissão ficou conhecida como Serviço de Remodelação do EnsinoProfissional Técnico, ou simplesmente, Comissão Lüderitz, já que foichefiada pelo engenheiro João Lüderitz, diretor do Instituto Parobé. AComissão, na verdade, foi composta por administradores e mestres doParobé, sediado no Rio Grande do Sul, pois era considerado o únicoinstituto de ensino profissional a apresentar bons resultados.

A Comissão Lüderitz propôs mudanças na estrutura das escolas enos currículos, introduziu o conceito de “industrialização das escolas”17;traduziu e produziu livros-texto sobre literatura técnica, que até entãonão existiam em língua portuguesa no Brasil.

Tais propostas foram reunidas no Projeto de Regulamentação doEnsino Profissional Técnico e apresentado ao governo central em 1923.De fato, o Projeto nunca foi aprovado, muito embora algumas de suasproposições tenham sido incorporadas paulatinamente.

Com uma “visão profética”, segundo Celso Suckow da Fonseca, o de-putado federal Fidélis Reis propôs, em 1922, um projeto de lei que tornariaobrigatório o ensino profissional em todo o país. Para o autor, esse projetofoi importante porque apontava para uma ruptura na concepção do ensinoprofissional como ensino destinado aos “desvalidos”18.

16 Mais tarde, em 1937, tal escola foi demolida e em seu lugar foi construída, em 1942,o atual Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca”.

17 Atualmente, a idéia de transformar as escolas profissionais em unidades produti-vas é conhecida por “escola-produção”.

18 De certa maneira, o projeto Fidélis Reis guarda similitudes com a lei n. 5.692/71, jáque ambas preconizavam a profissionalização compulsória. É claro que distinçõesexistem; a lei de 1971 estabeleceu que o ensino médio (denominado 2o grau)

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Decorridos cinco anos de debates, o projeto Fidélis Reis foi sanciona-do – sem seu aspecto mais polêmico, a profissionalização compulsória.No entanto, tal lei jamais foi executada, possivelmente pela falta de recur-sos para sua aplicação, já que era prevista a implantação de cursos profis-sionais e a fundação de escolas industriais em todo o território nacional19.

O deputado Graco Cardoso também antecipou outra lei – a “Lei”Orgânica do Ensino Industrial, “aprovada” 25 anos mais tarde – ao pro-por um projeto que remodelava o ensino industrial no Brasil. Tambémesse projeto não foi aprovado20.

Com a Revolução de 30, o Brasil começou deixar de ser um país“essencialmente agrícola” e lançava as bases para se construir comonação industrial21.

Com o governo provisório, instalou-se o Ministério da Educação eSaúde Pública, passando à sua alçada as Escolas de Aprendizes Artífi-ces. O então Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico ésubstituído pela Inspetoria do Ensino Profissional Técnico, órgão liga-do ao Ministério da Educação e Saúde Pública e não mais ao Ministérioda Agricultura, Indústria e Comércio, passando a ser dirigido pelo enge-nheiro Francisco Montojos. Em 1934, novamente o órgão muda de de-nominação, passando a ser designado Superintendência do EnsinoProfissional. Outra mudança ocorre em 1937. O ministro GustavoCapanema22 reforma o Ministério da Educação e Saúde Pública e, comisso, extingue a Superintendência do Ensino Profissional, ou melhor,

fosse compulsoriamente profissionalizante, dando ênfase ao preparo de profissio-nais intelectuais, enquanto o projeto Fidélis Reis não tinha esse objetivo.

19 O motivo alegado para a não aplicação da lei – falta de verbas – constitui-se emoutro ponto de convergência com a lei n. 5.692/71.

20 Cunha (1981), diferentemente do restante da literatura, utiliza a palavra “Lei” (en-tre aspas) para realçar que essa legislação foi na verdade produzida como decreto-lei, portanto, sem discussão no Congresso Nacional. Na bibliografia geral sobreeducação, a palavra “lei” aparece grafada sem aspas, até mesmo em História doensino industrial no Brasil.

21 Sobre o papel estratégico da Confederação Nacional da Indústria nesse processo,ver Rodrigues (1998a).

22 Para uma análise da obra de Gustavo Capanema, ver Schwartzman, Bomeny, Cos-ta (2000).

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transforma-a em Divisão do Ensino Industrial, órgão da Divisão Nacio-nal da Educação. O engenheiro Francisco Montojos continuou à frentedo “novo” órgão.

As Escolas de Aprendizes Artífices passaram a ser denominadas Li-ceus; é extinta a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, tor-nando-se, também, Liceu.

A Constituição de 1937 revela uma preocupação para com o ensi-no industrial, através do artigo 129. O artigo assegurava que o ensinoindustrial/profissional era o primeiro dever do Estado, no que tange àEducação. Celso Suckow da Fonseca lamenta, no entanto, a referênciaao ensino profissional tomado ainda como ensino “destinado às clas-ses menos favorecidas” (I: 231), tal qual o decreto seminal de NiloPeçanha.

Após várias tentativas, o governo federal baixou o decreto-lei n.408, de 22 de janeiro de 1942, criando o então Serviço Nacional deAprendizagem dos Industriários – SENAI – que certamente contribuiupara mudar os rumos da instrução profissional no Brasil.

No entanto, o aspecto preponderante na mudança dos rumos da for-mação profissional foi a já referida “Lei” Orgânica do Ensino Indus-trial, na verdade, mais um decreto-lei da ditadura Vargas.

Com a Lei Orgânica do Ensino Industrial, que Celso Suckow daFonseca “não pode deixar de admirar a minuciosidade, a justeza comque são definidas as bases pedagógicas do problema” (II: 9), estabele-ceu-se as bases da organização e de regime do ensino industrial (enten-dido como o ensino destinado à preparação profissional dos trabalhadoresda indústria, dos transportes, das comunicações e da pesca, cf. II: 10).

Assim, o ensino industrial deixou de pertencer ao grau primário,passando a equivaler, em certo sentido, ao nível médio, embora só per-mitisse ingresso ao nível superior em carreiras correlatas.

Para Fonseca, essa (parcial) equivalência, “abria-se, alargava-se ohorizonte”, passando a haver assim, uma “verdadeira democratizaçãodo ensino” (II: 10). Na visão de Fonseca, o ensino profissional não eramais destinado aos “desfavorecidos da fortuna”, uma nova filosofia pas-sava a imperar: “o país havia atingido o apogeu de sua legislação deensino” (II: 18).

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Em 1946 e 1947, findo o Estado Novo – de caráter centralizador –,a Lei Orgânica do Ensino Industrial foi alterada. Chocavam-se dois pon-tos de vista. Um que propugnava a unificação do sistema escolar, e ou-tro que passava aos estados a responsabilidade da educação, inclusive aadministração das escolas técnicas e industriais da rede federal. O paísingressou, assim, no debate da Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, só concluído em 1961. Em razão de a História do EnsinoIndustrial no Brasil ter tido sua edição original em 1961, o autor nãoregistra o final do embate entre aqueles dois pontos de vista23.

Voltando ao curso das mudanças, em 1953, surgiu a Lei de Equiva-lência, que veio ampliar as conquistas anteriores. Tal lei permitiu o in-gresso ao ensino superior – em qualquer curso – de alunos egressos dosegundo ciclo dos ensinos secundário, industrial, comercial ou agrícola.Segundo Fonseca, a Lei de Equivalência “era a coroação das idéias de-mocráticas da educação: igual oportunidade para todos” (II: 43).

Como a Lei Orgânica não se adequava ao espírito da Constituiçãode 1946, o governo instituiu, em 1955, uma comissão para estudar for-mas de flexibilizá-la.

Em 1959, o presidente Juscelino Kubitschek reformou o ensino in-dustrial em todo o país. Faltava ainda, porém, a regulamentação queveio a 16 de outubro de 1959, através do decreto n. 47.038 – Regula-mento do Ensino Industrial. O aspecto principal dessa regulamentaçãoera a descentralização das Escolas Técnicas Federais – resolvendo oconflito referido anteriormente.

Daí por diante as escolas industriais da rede federal do Ministério daEducação não mais conformariam um sistema (ou rede) de ensino, poispassaram a gozar de autonomia didática, financeira, administrativa etécnica, com personalidade jurídica própria (II: 52).

Entretanto, o governo federal não perderia totalmente seu controlesobre as escolas. A Diretoria do Ensino Industrial ainda era competentepara propor ao governo a distribuição dos fundos necessários ao funcio-

23 Para Otaíza Romanelli (1978, p.181), no entanto, a estrutura tradicional do ensino foimantida, e o sistema de ensino continuou a ser organizado pela legislação anterior.

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namento das escolas, assim como ainda detinha a prerrogativa de insti-tuir as diretrizes gerais dos currículos e preparar o material pedagógico.

Em 1961, o presidente Jânio Quadros, em seu governo relâmpago,resolveu caminhar na direção da fusão dos ensinos profissional epropedêutico, atuando em dois movimentos simultâneos. Por um lado,

criava ginásios industriais dentro dos ginásios secundários, com o que fazia

o ensino industrial invadir a área do secundário, e, ao mesmo tempo, trazia

os egressos dos cursos clássicos ou científicos para o âmbito da ação das

escolas técnicas [II: 63-64].

Por outro lado, tentou levar egressos de outros cursos secundários paraos industriais, dispensando-lhes das disciplinas não-técnicas, ingressan-do, assim, na 3ª série dos cursos técnicos.

Era também pensamento de Jânio Quadros instituir a concepção de“escola-produção” no âmbito das escolas federais de ensino industrial.Mas três dias depois de baixar o decreto n. 51.225, de 22 de agosto de1961, que tratava da implantação da escola-produção, Jânio Quadrosrenunciou. Estava prevista também a criação da Fundação Universida-de Nacional do Trabalho, que congregaria as escolas de engenharia, ad-ministração e escolas técnicas (II: 64).

4. O pensamento pedagógico de Celso Suckow daFonseca

O objetivo deste trabalho não é o de enquadrar ou rotular o pensa-mento pedagógico de Suckow da Fonseca, esboçado em sua obra, massim o de reunir elementos que possam revelar os traços principais desua concepção de ensino profissional, buscando tornar claro aquilo queestá enunciado implicitamente nas linhas da História do ensino indus-trial no Brasil. Talvez fosse melhor falar em concepções, já que o autornão buscou construir um sistema em que traçasse, ainda que em esbo-ço, uma concepção estruturada de educação, ou mesmo de ensinoindustrial.

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Outro aspecto que cabe lembrar é que não se deve cobrar de umautor a imutabilidade de suas próprias posições. Aliás, é também cobrardemais a onisciência sobre uma obra, mesmo que seja a sua própria.Talvez, o domínio mais completo possível sobre uma obra jamais sejarealizado pelo próprio autor, já que ele é sempre prisioneiro de sua pró-pria história.

Celso Suckow da Fonseca levou cerca de dez anos, entre pesquisase redação, para concluir sua obra. Portanto, era natural que o autor mu-dasse algumas de suas posições iniciais.

Um outro risco que corremos é o de imputar posições ao autor, quede fato (?), não as poderia ter, ou que simplesmente não possuía.

Como não é possível confrontar nossas análises com o olhar deSuckow da Fonseca sobre si mesmo, resta-nos o debate científico peloqual pretendemos depurar os equívocos mais grosseiros, buscando, comisso, uma aproximação mais acurada da realidade – mutável e inesgotável.

4.1. As categorias de aproximação

Após leitura do item Panorama geral do ensino industrial no Bra-sil, devem ter ficado claras ao leitor, pelo próprio recorte adotado, algu-mas das posições do autor a respeito do ensino técnico-profissional.

Para efetivar uma análise um pouco mais detalhada, procurou-secategorizar, sem aprisionar, o pensamento de Celso Suckow da Fonseca.

As categorias de análise foram reunidas em quatro grupos, todosrelativos à educação: filosofia, trabalho, organização e ensino. O pri-meiro grupo – filosofia – refere-se àquelas temáticas que apresentam acaracterística de abordar a educação em sua forma mais geral eabrangente. O grupo denominado trabalho é aquele que busca englobaras questões relativas às relações entre trabalho e educação. O terceirogrupo – organização – procura dar conta das discussões acerca da for-ma pela qual o ensino, em particular, o industrial, deveria organizar-se.Finalmente, o grupo ensino visa captar aquelas categorias que se rela-cionam mais diretamente com a prática escolar.

Podem-se, didaticamente, apresentar de modo sistemático, então,os temas de análise da seguinte forma: Filosofia – democratização da

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educação; ajustamento social; profissionalização de jovens; ensino ge-ral e ensino profissional. Trabalho – economia-educação; organizaçãodo trabalho-saber; polivalência da força de trabalho. Organização – es-cola unitária; centralização e descentralização; escola-produção. Ensi-no – vocação; currículos; orientação educacional; relação teoria-prática.

Os grupos não se apresentam estanques, nem definitivos, tampoucoessas categorias são, necessariamente, mutuamente excludentes. Naverdade, muitas das questões abordadas por uma categoria também fo-ram – ou poderiam ter sido – abordadas no âmbito de outras. Apesardessas “imprecisões”, a grade de análise mostrou-se suficiente para seconstruir um quadro geral do pensamento pedagógico de Celso Suckowda Fonseca.

A seguir, portanto, discutiremos algumas das categorias, buscandoexplicitar os respectivos significados, cruzando-as entre si e revelandocomo elas se articulam no pensamento do autor de a História do ensinoindustrial no Brasil.

4.2. Aproximando-se da concepção pedagógica

Para Celso Suckow da Fonseca, certamente a educação é um direitode todos. Em várias passagens, o autor mostra que é necessário genera-lizar a educação a todas as camadas da população. Esse aspecto de seupensamento fica claro quando ele defende a República diante da Mo-narquia, no que diz respeito à democratização da educação: “A Repúbli-ca [...] abriria novos horizontes e indicaria outros rumos à educaçãonacional, democratizando-a” (I: 159).

Mais adiante, critica explicitamente a forma pela qual a Monarquiatratava a educação e a cultura: “O Império caracterizava-se por umaapresentação especial da cultura, sob a forma aristocrática, pois que vi-sava a formação de elites e abandonava a educação da grande massapopular” (I: 159).

No entanto, para Celso Suckow da Fonseca, não bastava estender aeducação à “massa popular”, era preciso que todos tivessem “iguaisoportunidades” para atingir o ponto mais elevado da hierarquia educa-cional – o nível superior. É o que ele nos deixa claro nas passagens que

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comentam os passos dados na direção da equivalência dos diferentesramos de ensino, a partir da Lei Orgânica do Ensino Industrial:

O rapaz que começasse em uma escola industrial poderia chegar a ser um

engenheiro, um arquiteto, ou um químico. Ato de profundo alcance social,

verdadeira democratização do ensino. Antes, só as classes mais abastadas,

aquelas que geralmente se inscreviam nas escolas secundárias, tinham direi-

to a aspirar aos estudos superiores [II: 10] [grifos meus].

Mais adiante, comentando novamente uma lei de equivalência, oautor assume o ideal liberal de educação, ao afirmar que aquela lei “erao coração das idéias democrática da educação: igual oportunidade paratodos” (II: 43).

Pelas passagens destacadas, e por outras não apresentadas, pode-mos concluir que – para o autor – à democratização da educação é sufi-ciente estender a escola a todos e instituir a equivalência – na verdade,formal – entre os diversos ramos de ensino.

Provavelmente, tal raciocínio também estava apoiado na idéia libe-ral de que os mais “aptos” e “capazes” poderiam e deveriam chegar aoápice da pirâmide escolar/social. Essa visão de que os homens possuemaptidões e “dons” inatos está presente claramente na obra de Suckow daFonseca, como fica ratificado pela passagem abaixo, ao comentar a im-plantação de exames psicotécnicos no CFESP, para a seleção de alunos:“Até então não se procuravam os mais aptos, os mais indicados, aquêlesque por suas tendências inatas teriam maior garantia de sucesso no exer-cício de uma profissão” (II: 227).

Essa opinião – que se baseava na certeza de que, ao se estender aeducação a todos, os mais aptos escalariam a pirâmide social – estavafortemente alicerçada na defesa de um sistema escolar unitário24. CelsoSuckow da Fonseca era ardorosamente contrário à segmentação do sis-tema educacional. Tal posição fica clara na defesa incondicional das leis

24 Para uma ótima discussão sobre os conceitos de escola única e unitária, além de umpanorama mundial sobre a construção dos sistemas nacionais de ensino, ver Ma-chado, 1989b.

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que trataram da equivalência entre os ramos de ensino (propedêutico eprofissional), conforme as passagens anteriores.

A defesa da escola unitária – entendida como um fator de unidadenacional –, permeada por uma boa dose de dramaticidade e romantis-mo, fica transparente no excerto abaixo:

Só por milagre essa falta de orientação única dos ensinos elementar e secun-

dários não levou o Brasil à fragmentação, pois que são eles os elementos

mais fortes na formação da unidade espiritual de um povo [I:140].

Nesse ponto cabe ressaltar a existência de uma tensão no pensamen-to de Suckow da Fonseca, no que diz respeito à questão centralização xdescentralização da rede de ensino.

Em 1834, sofreu o ensino no Brasil novas injunções da prática política. [...]

Firmava-se a vitória das idéias descentralizadoras [...] e pelas quais passa-

vam à competência das Províncias os ensinos primário e secundário [...] Tor-

nava-se, assim, difícil uma política nacional da educação [I: 139].

Mais adiante ratifica a defesa da centralização, fruto da política an-teriormente apresentada, comparando os saldos da centralização do en-sino superior e a descentralização dos ensinos primário e secundário:

Com a passagem do ensino primário e do secundário para a alçada das Pro-

víncias sucedera o inevitável: à falta de diretrizes gerais e de condições eco-

nômicas uniformes, a eficiência fôra pequena; em vários casos, o ensino

primário limitara-se, apenas, a ministrar leitura, escrita e contas. Enquanto

isto, o ensino superior dilatara-se em quantidade e qualidade, formando uma

nata de letrados, doutores e bacharéis [I:159-160] [grifo meu].

Como fica claro nessas passagens descritas, Celso Suckow da Fon-seca via claramente vantagens na centralização da rede escolar. Deve-mos deixar claro que tais passagens estão no volume 1 da obra, prova-velmente, o primeiro a ser concluído.

No entanto, outras passagens – volume 2 – mostram, no mínimo, umaaceitação, e até mesmo uma defesa da descentralização da rede de ensino:

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Descentralização apresentada como um imperativo do conhecimento elemen-

tar do processo de ensinar, que pede autonomia de métodos, e como exigên-

cia da imensa extensão territorial do país, que sugere administrações locais,

seguindo o exemplo da solução política que deu ao Brasil uma organização

federativa [II: 33] [grifos nossos].

Mais adiante ratifica esse ponto de vista, afirmando:

Com a autonomia descentralizava-se a administração, com que ficava muito

facilitada a aquisição de materiais [...], contrato de professores [...]. A vanta-

gem que isto representava para o normal funcionamento de cada um delas [das

escolas], sòmente pode ser avaliada por quem quotidianamente acompanha o

desenvolvimento das múltiplas e complexas atividades escolares [II: 55-56].

Somente um “milagre” salvou o Brasil de uma “fragmentação”, dadaa falta de “orientação única” para o ensino, afirmou Fonseca. Descentra-lização é um “imperativo elementar” análogo à “solução política” daorganização federativa do país. Assim, o autor, apoiando-se sempre noconceito de nação, advoga ora a centralização, ora a descentralização,mesmo que em caráter unicamente administrativo. Sabe-se que medi-das administrativas (redução de verbas, proibição de concursos, altera-ção nos critérios de provimento dos cargos de chefia) podem ser eficazesmecanismos de privilegiar, ou desmontar, determinadas políticas enca-minhadas por estados ou municípios. Sem dúvida, Celso Suckow daFonseca conhecia cotidianamente os aspectos burocrático-administrati-vos da gestão escolar.

Não se deve pensar, no entanto, que tal tensão se mostra como umaruptura no pensamento liberal, muito pelo contrário. É o que aponta apassagem, continuação daquela imediatamente anterior, em que o autordefende a articulação dos processos unificação-diferenciação:

A tese da descentralização defendia o ponto de vista da unidade no objetivo e

variedade nos métodos para alcançá-lo. Dêsse princípio concluíam seus de-

fensores que a unidade do sistema educacional brasileiro deveria ser

conseguida pelas variedades estaduais obedecendo elas à equivalência e não

à uniformidade pedagógica. A unidade na variedade [II: 33].

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Como foi mostrado, a democratização da educação é uma idéia (eum ideal) central no pensamento de Celso Suckow da Fonseca, incluídaaí a perspectiva de generalização do ensino industrial e não da escola“acadêmica”, assim como a suposição da existência de “dons” inatos.

Pode-se entender que os ideais de democratização da educação sematerializariam numa escola – unitária – que abrangesse a instrução detodas as classes sociais – “classes cultas” e “trabalhadores” (III: 203).

Suckow da Fonseca não preconiza a extinção imediata dos diversosramos de ensino, em benefício do ensino profissional, mas entende queo sistema educacional deveria caminhar para um fusão entre os doisramos: “vislumbrar-se, embora ao longe, uma época em que o primeirociclo das duas espécies de ensino [secundário e industrial] será unifor-me e incluirá a aprendizagem em oficinas-ambiente” (III: 202).

A idéia de uma superioridade do ensino industrial sobre o ensinoacadêmico está presente em toda a obra de Celso Suckow da Fonseca.Com efeito, a História do ensino industrial no Brasil tenta mostrar amarcha inelutável do ensino industrial sobre o ensino acadêmico. Aofim dessa jornada, o ensino profissional:

atingiria o mais alto escalão do prestígio social, pois partira de um grau situado

abaixo do primário e se colocava, afinal, no nível universitário. Séculos haviam

sido necessários ao ensino industrial para atingir aquela culminância [II: 84].

Fonseca não defende, no entanto, a implantação de um ensino de“mera instrução de ofício”. A sua indicação é por um ensino que secoloque no âmbito muito maior, no campo da “formação humana, so-cial e econômica”. Para o autor, essa concepção de formação humana semostra necessária diante da “crise social que assoberba o mundo e quejá aflige o Brasil” (III: 203):

Dando ao pessoal da indústria não sòmente instrução profissional, mas edu-

cação no sentido mais geral do têrmo, faz com que lhe seja possível subir ao

nível das classes mais cultas e nelas penetrar, diminuindo, assim, razões de

queixas e atritos. Por outro lado, permitindo aos elementos dessas outras

classes seguirem os mesmos currículos e executarem trabalhos idênticos,

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que antes só eram feitos pelos futuros trabalhadores, facilita a compreensão

dos problemas da vida proletária por parte da camada situada em plano eco-

nômico mais alto, uma vez que lhe é dado sentir, com mais realismo, as

dificuldades daqueles que lutam pela subsistência [III: 203-204].

Reduzindo, assim, a luta de classes a “queixas e atritos” por partedos trabalhadores, Celso Suckow da Fonseca fecha o volume 3 de suaobra, apresentando a sua fórmula ideal da conciliação das classes:

Olhado por êsse prisma, o ensino industrial assume um aspecto que reco-

menda aos olhos dos governos verdadeiramente democratas, pois sua expan-

são será decisiva no equilíbrio social da nação [III: 204].

Mas essa defesa do ensino industrial parece estar calcada na com-preensão de que existe uma relação direta entre instrução e desenvolvi-mento econômico. Ou seja, o autor entende que, se o país não é desen-volvido, é porque lhe faltam trabalhadores preparados para encaminharo processo de industrialização. Como todo pensamento que segue nessadireção, Celso Suckow da Fonseca acaba, por vezes, a indicar, que, dadoum certo nível de desenvolvimento econômico, teria o Estado o dever desuprir a indústria com mão-de-obra tecnicamente capacitada:

O desenvolvimento da indústria indicava a necessidade do estabelecimento do

ensino do ensino profissional. Urgia, ao Govêrno, tomar providências [I: 174].

A intenção de ligar diretamente a educação à questão do trabalhoindustrial/produtivo traz conseqüências à concepção de instrução pro-fissional preconizada. Como já colocado anteriormente, Suckow da Fon-seca não defende uma profissionalização estreita. Assim, de que “tipo”então seria esse ensino industrial unitário?

Um aspecto bastante abordado pelo autor, que parece estar bem de-lineado em seu pensamento, é a necessidade de formar trabalhadoresque possam atuar em vários setores/postos de trabalho na produção. Talcapacidade de rotação é conhecida por polivalência da força de trabalho(cf. Frigotto, 1991).

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Fazendo referência à estrutura do Instituto Parobé, que, como foidito, era a única escola industrial que “apresentava resultados animado-res”, Fonseca indica o processo que ele denominava “desespecialização”(ver III: 192):

Outra característica que diferençava profundamente o ensino na Parobé da-

quele ministrado nas escolas federais, era a que se relacionava com a manei-

ra de fazer o aluno percorrer as diferentes oficinas. [...] no Instituto Parobé

[...] o jovem freqüentava um grupo de oficinas correspondente a uma mesma

família de ofícios [...] especializando-se sòmente no quinto [I: 202].

Nessa passagem, no entanto, não fica clara a intenção de tal rotati-vidade. Não se percebe se o núcleo central da preocupação de formarum trabalhador menos restrito estaria voltado – prioritariamente – parao educando, ou se a intenção era beneficiar o sistema produtivo.

Apreciando a Lei Orgânica do Ensino Industrial, Celso Suckow daFonseca afirma que essa:

procurava defender uma fácil adaptação profissional ao trabalho futuro, evi-

tando, durante o período de formação nas escolas, uma excessiva especiali-

zação. Assim, em seus cursos industriais faria com que os alunos aprendessem

não só uma técnica, mas grupos de ofícios afins, de maneira a poderem, com

maior facilidade, encontrar ocupação na nossa indústria [II: 14].

Daí podemos atribuir uma certa preocupação com o “futuro”, já quea polivalência facilitaria o encontro de uma nova “ocupação na nossaindústria” por parte dos egressos das escolas industriais.

No entanto, condizente com outras posturas aqui expostas, não en-contramos passagens que revelassem uma preocupação com uma for-mação humana mais abrangente como sinônimo de instrumentalizaçãona luta dos trabalhadores contra a visão unilateral de homem.

A preocupação de Suckow da Fonseca mostra-se mais imediata,menos ligada ao trabalho do que ao emprego. Tal afirmação pode serratificada pela leitura da seguinte passagem:

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As escolas [...] passavam a ser encaradas como formadoras de elementos

capazes de desempenhar qualquer função na indústria, sem limitações quan-

to a especializações. Visaram, pois, muito mais ao interêsse do jovem apren-

diz, em virtude das maiores facilidades de conseguir trabalho, do que

propriamente à indústria, que se via sem profissionais peritos preparados

especialmente para as várias técnicas de que necessitava [III: 193].

Como se pôde perceber, as várias passagens apresentadas mostramque o autor não desprezava, nem um pouco – apesar da citação anterior –os interesses da indústria. Essa posição fica ratificada pela leitura de maisum excerto de História do ensino industrial no Brasil, referindo-se criti-camente às escolas da prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro),modificadas pela Reforma Anísio Teixeira (1934), onde:

já não se procurava mais ensinar uma profissão, mas facilitar a escolha de

um ofício, que era encarado mais pelos seus fundamentos técnicos e

educativos, do que pelos seus fins comerciais [III: 197-198].

Com efeito, Celso Suckow da Fonseca, apesar de suas preocupa-ções democráticas, não poderia concordar com uma formação tão de-sinteressada. Para ele o ensino industrial tem como objetivo fundamentala “formação de elementos para a indústria” e não a busca pela liberdadeno trabalho. Para Anísio Teixeira, segundo o próprio Fonseca, o quevalia naquele tipo de educação era a “iniciativa pessoal dos alunos, asua capacidade criativa e inventiva”, além de uma “capacidade e inte-resse pela experimentação científica, e hábitos de saúde, leitura e traba-lho”, com os quais Suckow da Fonseca parece não concordar, haja vistao objetivo do ensino industrial – “ministrar o ensino mais prático e des-tinado à preparação para a indústria” (III: 198).

Assim, apesar de toda defesa do trabalho e do ensino industrial,Suckow da Fonseca permanece adstrito à concepção burguesa de traba-lho e formação humana. Para o pensamento burguês, mesmo que demo-crático, o Capital é encarado como demiurgo do Trabalho.

Assim, se uma relativa capacidade de polivalência irá beneficiar ostrabalhadores (seja lá de que maneira for) é porque – obviamente – o

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Capital já o fora inicialmente. Em outras palavras, a condição debeneficiamento do Trabalho é o beneficiamento do Capital. Esperar umaposição diferente dessa é imputar a Suckow da Fonseca posições quenão são suas, pois não pertencem ao quadro mais geral do pensamentoburguês com o qual ele nunca rompeu25.

A análise aqui desenvolvida buscou mostrar que Celso Suckow daFonseca, se, por um lado, defendia uma formação profissional mais am-pla, por outro lado, sempre propugnava essa formação numa perspecti-va funcional ao Capital.

Sua visão de ensino industrial estava muito adstrita ao conceito (atual)de polivalência da força de trabalho, não alcançando a concepção deeducação politécnica26. A perspectiva de formação profissional poliva-lente, se, por um lado, pode ser favorável à classe trabalhadora, poroutro lado, integra uma estratégia mais geral de diminuir a porosidadedas relações de produção, de diminuição do valor da força de trabalho e,portanto, de aumento da produtividade.

Cabe por fim sublinhar, mais uma vez, a relevância do papel deCelso Suckow da Fonseca através de sua História do ensino industrialno Brasil, tanto pelo trabalho historiográfico, quanto pela sua defesaintransigente do valor do ensino industrial e, portanto, do trabalho comoprincípio educativo.

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25 Para uma análise do pensamento pedagógico industrial, ver Rodrigues (1998a).26 Para uma análise da concepção de educação politécnica, ver Rodrigues (1998b).

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Sob(re) o silêncio das fontes...A trajetória de uma pesquisa em história da

educação e o tratamento das questões étnico-raciais

Eliane Peres*

Descrevo, neste trabalho, o processo de pesquisa sobre os cursos noturnos da BibliotecaPública Pelotense (BPP), dando ênfase à questão da presença dos negros nesses cursos.Analiso a trajetória social e profissional de alguns alunos negros da “escola da Bibliote-ca”. Discuto, também, a partir dessa experiência de pesquisa, a questão dos limites e daspossibilidades das fontes para a história da educação no que diz respeito ao tratamento daproblemática étnico-racial.QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS; HISTORIOGRAFIA; FONTES HISTORIOGRÁFICAS;CURSOS NOTURNOS; BIBLIOTECA PÚBLICA PELOTENSE.

The paper describes a research process on night classes at Biblioteca Pública Pelotense(BPP) emphasizing the question of black people’s attendance to these courses. Social andprofessional careers of some black students of “The Library School” are analyzed.Grounded on the research experience, the problem of limits and possibilities of sources aHistory of Education concerned with racial-ethnical issues is also discussed.RACIAL-ETHNICAL ISSUES; HISTORIOGRAPHY; HISTORIOGRAPHICAL SOURCES;NIGHT CLASSES; BIBLIOTECA PÚBLICA PELOTENSE.

* Eliane Peres é licenciada em pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina(UEL,1989), mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS, 1993) e doutora em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG, 2000), com estágio de pesquisa na Universidade de Lisboa (Portugal, 1999).Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (RS) epesquisadora do CEIHE (Centro de Estudos e Investigações em História da Educação– FaE/UFPel). Desenvolve pesquisas sobre a história da escola, da pedagogia e daprofissão docente.

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1. Considerações iniciais

Realizei, entre 1993 e 1995, uma pesquisa denominada “Templo deLuz”: os cursos noturnos masculinos de instrução primária da Bibliote-ca Pública Pelotense – 1875-19151. O objetivo principal do estudo foi oresgate histórico da experiência dos cursos noturnos de instrução primá-ria criados em 1877 na Biblioteca Pública Pelotense (BPP). Algumasquestões centrais foram sendo definidas ao longo da investigação: por queos cursos noturnos de instrução primária, durante 38 anos (1877-1915),foram freqüentados apenas por homens? Como e por que as mulheresforam excluídas? Se houve, porém, um processo de exclusão das mulhe-res, outro segmento social foi incluído no projeto dos cursos noturnos: osnegros. Eu considerava, no início da pesquisa, que a presença dos negros– porque era uma exceção à época – teria maior “visibilidade” nos jornaise documentos pesquisados. No entanto, há um silêncio nas fontes sobrea presença desse segmento da população nos cursos noturnos. Foi preci-so trilhar um longo caminho até descobrir que alunos negros freqüenta-ram as aulas da BPP. Depois, foi preciso outra empreitada para descobrirse freqüentavam na condição de escravos – o que seria ainda mais inusi-tado – ou se apenas aos livres e aos libertos2 estava garantido esse aces-

1 Pesquisa desenvolvida no programa de pós-graduação em educação da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS) entre 1993 e 1995 e apresentada como requi-sito parcial para obtenção do título de mestre em educação sob a orientação da profes-sora doutora Guacira Lopes Louro. O título do trabalho não foi escolhido ao acaso.Ele está diretamente relacionado à história da Biblioteca de Pelotas e à visão de seusidealizadores, que entendiam que era preciso iluminar o povo e elevar a cidade noplano intelectual, idéias explicitadas nas palavras de Antonio Joaquim Dias, um dosidealizadores da BPP: “o progresso intelectual de qualquer localidade deve estar emrelação com seu progresso material” (Correio Mercantil, 10/11/1875). Nesse sentido,a expressão Templo de Luz é carregada de significados. Essa era uma das principais erecorrentes denominações da BPP – além de outras, como santuário, Pórtico Ático,augusto santuário das letras, templo da ciência, farol brilhante, templo do saber, bene-mérita instituição, instituição de caridade espiritual. O recorte temporal da pesquisa(1875-1915) foi feito, considerando a criação da BPP (1875) e o ano que marca a reor-ganização dos cursos noturnos com o ingresso das mulheres (1915). A análise que sefez, portanto, é do período em que a “escola” foi exclusivamente masculina.

2 Livre era o indivíduo que nunca tinha sido escravo, ao passo que o liberto eraaquele que, tendo sido escravo, fora alforriado.

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so. É necessário considerar que a realidade brasileira em 1877 era a deuma sociedade escravocrata – logo, racista –, em que os negros, mesmoos livres e libertos, constituíam um grupo social marginalizado, discrimi-nado e vivendo sob o jugo do preconceito. Com isso, outras questões co-locaram-se como desafio de pesquisa: como os homens negros tiveramacesso aos cursos noturnos da BPP? E por que os homens brancos da elitese propuseram a oferecer aulas noturnas na Biblioteca aos negros, aindadurante o período da escravidão? A questão de pesquisa complexificou-se ao longo do processo de investigação, uma vez que constatei que es-ses cursos foram projetados e criados por um grupo da elite pelotense edestinados aos “filhos do trabalho” (Diário de Pelotas, 23/11/1879).Então, outros questionamentos surgiram: por que homens da elitepelotense se preocuparam com a instrução dos homens das classes popu-lares a ponto de criar os cursos noturnos? Que idéias e projetos estavamimplícitos (ou explícitos) nessa iniciativa? A análise dessa história, emfunção das principais questões de pesquisa, foi então pautada por trêscategorias: gênero, classe social e grupo étnico. Examinar aqueles atoressociais – homens das classes populares e da elite, negros e brancos, na-cionais e estrangeiros –, considerando essas características sociais e cul-turais de forma articulada, para compreender a dinâmica dos cursosnoturnos, foi a tarefa empreendida durante todo o processo de pesquisa.

Os cursos noturnos da BPP iniciaram suas atividades no dia 1o defevereiro de 1877 e os últimos registros nos livros de matrículas datamde 1940. No entanto, em alguns documentos da BPP, há menção dasaulas até 1956. Portanto, se tomarmos essa data como limite, a históriados cursos noturnos seria uma história de, pelo menos, 79 anos. Trata-sede um largo período de que ficaram registros em apenas 3 livros dematrículas, algumas fotos das décadas de 1940 e 1950, poucos relató-rios manuscritos, uma carta de um professor (relatórios e carta “perdi-dos” em pastas com outros tantos documentos de natureza diversa)3,duas carteiras usadas nas salas de aula dos cursos, hoje mantidas noMuseu da Biblioteca, e muitas notícias nos jornais da época. Evidente-

3 O material manuscrito referente aos cursos noturnos está atualmente guardado noMuseu da BPP (Pastas 642 e 155).

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mente, os últimos anos de existência desses cursos ainda estão regis-trados, também, na memória de ex-alunos e ex-funcionários da BPP4.

Sendo assim, esta foi uma pesquisa exaustiva, que se iniciou nocontato com os 3 livros de matrícula dos cursos, principal registro daexistência das aulas na Biblioteca. Os livros indicam apenas nome, ida-de, nacionalidade, profissão e filiação dos alunos, além de observaçõesque, na sua maioria, registram: “expulso por indisciplina”. A curiosida-de e as interrogações surgidas com o manuseio e leitura dos livros dematrícula tornaram necessário percorrer cuidadosamente os jornais doperíodo compreendido entre 1875 e 1915, para, entrecruzando dados,comparando fontes, cruzando notícias, “recompor” a história dos cur-sos noturnos e chegar, então, a uma das questões fundamentais do traba-lho: os negros freqüentaram ou não as aulas da BPP ainda antes do finaldo período escravista? Era preciso, portanto, “conhecer” alguns alunosdos cursos noturnos. A princípio essa parecia uma tarefa impossível.Como dar voz, rosto, identidade, pertencimento, aos alunos?

Inicialmente, um pouco sem saber no que isso resultaria e tendocomo critério trimestres anuais, recolhi 1.522 nomes nos livros de ma-trículas (anotados manualmente) nos anos compreendidos pela pesqui-sa. A questão que se colocava era: como descobrir se esses alunos atua-vam em outros espaços sociais, políticos e culturais da vida pelotense?Como saber quem eram eles efetivamente, além de saber nome, idade,profissão e nacionalidade? O objetivo principal era conhecer mais emelhor os alunos, principais atores dessa história, e conseqüentementeampliar a compreensão de quem efetivamente procurou e se instruiunos cursos noturnos entre 1877 e 1915, incluindo aí o pertencimentoétnico-racial dos alunos.

Não havendo indícios de como realizar essa tarefa, ocorreu-me apossibilidade de cruzar os dados disponíveis dos alunos com os de par-ticipantes em associações populares, especialmente as carnavalescas,dramáticas, abolicionistas, entidades de classe e, também, a imprensa

4 Como delimitei o período da pesquisa entre 1875 (criação da BPP) e 1915 (final daetapa exclusivamente masculina dos cursos), apenas lancei mão das fontes quediziam respeito a essa periodização.

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produzida por negros5. Essas instituições eram bastante comuns e im-portantes em Pelotas, no final do século XIX e início do século XX, con-gregavam grande número de trabalhadores, e algumas eram compostasespecificamente de negros, como o caso do Clube Carnavalesco Nagô.

Pode-se dizer, em relação às entidades carnavalescas pelotenses –especialmente aquelas como o Clube Carnavalesco Nagô –, que tinhamum caráter irreverente e buscavam, pelo Carnaval, protestar contra acondição dos negros e, ao mesmo tempo, divulgar suas culturas. A im-prensa produzida pelos negros, em Pelotas, foi, também, uma das maisimportantes do Rio Grande do Sul e quiçá do Brasil – especialmente ojornal A Alvorada. Isso me instigou, também, a descobrir e analisar sealgumas das lideranças ou dos participantes das mais diversas entidadesque se destacaram nas causas populares em Pelotas haviam freqüentadoa “escola da Biblioteca”. Se a participação nas aulas dos cursos notur-nos teve influência ou não sobre as idéias e as atividades desses ho-mens, é difícil afirmar, nem foi esta a minha pretensão com o estudo.Mas é certo que o domínio do código escrito foi uma das condiçõesbásicas para a atuação, o engajamento e a luta de alguns alunos ementidades e movimentos populares. Em relação aos alunos negros, foiisso que procurei mostrar na pesquisa.

Os jornais locais do período possibilitaram o levantamento de da-dos sobre as diversas associações, suas diretorias e associados. Alémdos nomes dos alunos da “escola da Biblioteca”, coletei mais 400 no-mes das diversas associações, ligas e clubes e, cruzando os dados (deforma bem artesanal, listando os nomes em conjunto e classificando-ospor ordem ascendente), encontrei alguns alunos como atuantes em as-sociações de classes e carnavalescas (selecionava e “perseguia” os no-mes que “conferiam”: das aulas da BPP e das associações).

Ao fazer esse levantamento, tive a possibilidade, também, de perce-ber, em certa medida, os espaços sociais em que circulavam, viviam e

5 Os nomes dos participantes das associações, todos homens, foram retirados dasseguintes agremiações: Classes Laboriosas, Clube Beneficente Harmonia dos Ar-tistas, Liga Operária, Recreio dos Artistas, União Humanitária, Clube Carnavales-co Nagô, Clube Satélites de Momo, Clube Sectários de Momo, Sociedade DramáticaFilhos da Thalia, Associação Abolicionista, diretoria e redatores do jornal A Alvo-rada (imprensa negra).

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lutavam as classes populares pelotenses e os espaços nos quais essaparticipação lhes era restrita, senão vedada (especialmente aos negros).Evidenciaram-se, assim, fortemente, as delimitações de classe social eos limites impostos pelo pertencimento étnico-racial na sociedadepelotense. Esse procedimento metodológico, de cruzar alguns nomes dealunos com as diretorias de associações e entidades pelotenses, teve,obviamente, limites, pois abrangeu com um número restrito de sujeitos,relativamente ao contexto das classes populares pelotenses e dos gru-pos negros. Entretanto, como o objetivo não era fazer generalizações,foi extremamente válido e foi a única possibilidade de afirmar a presen-ça dos negros nesses cursos.

Antes de passar à apresentação de como lidei, na época da pesquisa,com as questões conceituais e apresentar alguns resultados da investi-gação em relação à presença dos negros na “escola da Biblioteca”, gos-taria de fazer uma distinção, esclarecer algo em relação à pesquisahistórica e contribuir com o debate da relação negros x educação x pes-quisas acadêmicas em História da Educação. Temos, por um lado, umconjunto de estudos que partem das questões étnico-raciais: estudos queabordam, por exemplo, a criação de escolas, de instituições educacio-nais e assistenciais, de centros culturais por e para grupos negros, cam-panhas de alfabetização e escolarização voltados para a população negra,ações educativas, culturais e políticas dos negros etc.; ou seja, é umaanálise de dentro, no sentido de que a presença da população negra éincontestável e, em termos de pesquisa histórica, a problemática estácolocada a priori. Por outro lado, temos a pesquisa histórica lato sensu(na falta de um termo melhor!); isto é, a pesquisa que toma os maisvariados objetos e temas para análise. Nesse caso, é preciso, cada vezmais, criar uma cultura acadêmica que trabalhe com a pluralidade, coma diversidade, ou seja, concretamente, que incorpore as questões étnico-raciais (e outras diferenças!) nos estudos, por exemplo, da história daescola, da profissão docente, das políticas públicas, da educação de adul-tos, da educação infantil, do ensino noturno, da universidade etc. Ambasas perspectivas isoladas não são suficientes. Se, por um lado, é precisofomentar a pesquisa histórica no campo da relação entre negro e educa-ção, por outro, é preciso problematizar os lugares-comuns e incorporar

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essa questão nas “pesquisas nossas de cada dia”. Nesse caso, então, seránecessário reinventar o trabalho com as fontes historiográficas.

2. A questão conceitual: raça, etnia, grupo étnico ougrupo étnico-racial? Uma difícil e polêmica definição

Pretendia efetivamente, em minha pesquisa, “visualizar” os alunosdos cursos noturnos da BPP. Tinha a intenção de problematizar essa“clientela” para além de meramente afirmar que eram homens trabalha-dores ou dizer genericamente que os cursos eram para a classe traba-lhadora. Mais do que afirmar que eram homens das classes populares,queria nomeá-los, incluí-los em seus grupos sociais, culturais e políti-cos e analisar espaços de vivências e os projetos pessoais, profissionais,políticos e culturais desses sujeitos. Ou seja, queria resgatar-lhes seupertencimento concreto. Para isso, saber de sua condição étnico-racialera fundamental. Aceitei o desafio da busca e da análise e incluí a di-mensão étnico-racial (que poderia ter simplesmente deixado “esqueci-da”!) e a questão da presença ou ausência dos negros nas aulas da BPP.

Tratar da questão étnica teve como motivação duas razões princi-pais: primeiro, porque desconfiava de que uma sociedade como apelotense, com um alto índice de população negra com organizações eparticipação efetiva na vida social, econômica e cultural, com um acir-rado debate sobre escravidão/abolição, marcadamente dividida entreescravocratas e abolicionistas, com forte influência positivista e maçô-nica (os maçons foram um dos principais grupos fundadores da BPP),não desconsideraria a questão da educação da população negra. Consi-derava que seria uma possibilidade ímpar para “revelar” a presença dacomunidade negra em experiências formais de escolarização e ajudariaa desmistificar a idéia corrente e generalizada de que os negros nãosabiam ler e escrever, não estudavam ou não freqüentavam escolas noséculo XIX. Segundo, porque desde então (1995) se proclamava já anecessidade desta articulação: educação x diferenças étnico-raciais. Os/as pesquisadores/as que vêm se dedicando ao estudo das experiênciaseducativas dos grupos negros no Brasil argumentam que a história des-se segmento da população tem sido pouco considerada. Regina Pahim

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Pinto (1992) denunciava que, na verdade, o tema “não conseguiu sensi-bilizar pesquisadores da área de Educação, que raramente incluem adimensão raça/cor em suas investigações” (p. 44). Regina Pahim Pinto(1992) chama atenção para o fato de que a história da educação tambémnegligenciou essa perspectiva de análise. Afirma a autora:

A História da Educação, por sua vez, também vem ignorando sistematica-

mente as iniciativas de grupos negros no campo da educação, tais como a

criação de escolas, centros culturais, seu engajamento em campanhas de al-

fabetização visando a população negra, ou mesmo suas propostas de uma

pedagogia que leve em conta a pluralidade étnica do alunado [p. 47].

A investigação que originou este trabalho foi, portanto, uma tentati-va de, ao resgatar a experiência dos cursos noturnos da BPP, compreen-der, também, o significado da participação dos negros em tais cursos,num momento histórico da sociedade brasileira em que esses indiví-duos sofriam toda espécie de discriminação, sendo o não-acesso à escola-rização uma de suas manifestações mais explícitas.

Convém explicitar, do ponto de vista conceitual, a opção pelo termogrupo étnico ou grupo étnico-racial, uma vez que, na área de educação,o termo raça era mais comumente usado – na época em que a pesquisafoi realizada –, sobretudo quando o objetivo era referir-se aos negros.Os poucos trabalhos que tomavam por objeto as experiências educativasdos grupos negros usavam, sem uma maior preocupação conceitual,expressões diversas: ora grupo étnico, ora raça e, por vezes, cor depele. Sem pretender esgotar esta complexa e difícil questão – e não semproblematizá-la – optei pelo conceito de grupo étnico. Por ocasião dapesquisa (1993-1995), avancei na direção que indico adiante.

Num primeiro aspecto, pode-se dizer que a opção foi também polí-tica, pois qualquer teoria ou trabalho empírico que não levar em consi-deração a linguagem “não saberá perceber os poderosos papéis que ossímbolos, as metáforas, e os conceitos jogam na definição da personali-dade e da história humana” (Joan Scott, 1990, p. 11).

Além disso, não se trata apenas de uma mudança de terminologia,mas sim de conceitos que diferem entre si. Com a contribuição da antro-

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pologia, é possível concluir que raça está relacionada a uma visãoevolucionista e biológica. Segundo Verena Stolcke (1991), raça comocategoria antropológica foi condenada e em seu lugar foi proposta aexpressão grupo étnico e o termo etnicidade. Segundo a autora, raça foiassociada ao reino da natureza, “em contraste com a ‘etnicidade’ com-preendida como identidade cultural” (p. 107). Manuela Carneiro daCunha (1987), ao discutir os critérios de identidade étnica, tambémapresenta essa mesma idéia. Diz a autora que, durante longo tempo, adefinição de grupo étnico esteve inscrita na biologia. Um grupo étnico,afirma Cunha, era um grupo identificável somaticamente. “Com estecritério, raríssimos e apenas transitórios seriam quaisquer grupos étni-cos” (pp. 113-114), uma vez que, “a não ser em casos de completo iso-lamento geográfico, não existe população alguma que se reproduzabiologicamente, sem miscigenação com grupos com os quais está emcontato” (p. 113). Outro antropólogo, Dennis Werner (1992), tambémdemonstra o caráter arbitrário das divisões dos grupos humanos tendocomo critérios diferenças físicas ou genéticas. Segundo esse autor, nãose trata de negá-las, mas de perceber que é possível escolher qualquertraço – cor da pele, tipo de cabelos e olhos, tipo sangüíneo, a predispo-sição para determinadas doenças – para classificar os grupos humanosem raças; daí seu caráter arbitrário. Mais problemáticas que as classifi-cações são as formulações simbólicas feitas tomando os critérios físicose geográficos, como, por exemplo, atribuir incapacidade aos negrosafricanos e superioridade aos brancos europeus – pensamento comumno imaginário brasileiro do século XIX.

Stolcke (1991) demonstra como o uso da expressão grupo étnicoe do termo etnicidade é recente, ao contrário do uso do termo raça, deorigem mais antiga. A autora atribui tal substituição ao reconhecimento,por parte dos estudiosos, de que, em termos estritamente biológicos,não existem raças entre os seres humanos. O termo etnicidade/grupoétnico ganhou mais força, segundo a autora, no pós-guerra, numa tenta-tiva de refutar as doutrinas nazistas. Stolcke afirma que: “A intenção eraenfatizar que os grupos humanos eram um fenômeno histórico e cultu-ral, e não categorias de pessoas biologicamente determinadas exibindotraços hereditários comuns em termos morais e intelectuais” (p. 106).

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Regina Pahim Pinto, no texto “A escola e a questão da pluralidadeétnica” (1985), também chama atenção para o uso incorreto do termoraça e suas limitações como fator explicativo das diferenças humanas.

Considerando todas essas observações, grupo étnico foi empregadona pesquisa com o intuito de transcender os aspectos biológicos e desig-nar grupos de pessoas identificadas histórica e culturalmente. O critérioda cultura, segundo Cunha (1987), foi tomado por um grande número deantropólogos que se ocuparam das relações étnicas. Assim, grupo étnicoé definido como grupo que compartilha valores, formas e expressões cul-turais. A autora chama a atenção, porém, para a necessidade de, ao adotaro critério de cultura como fator de identificação de grupos étnicos, obser-var duas questões: a primeira delas é não tomar a existência da culturacomo característica primária, quando se trata de conseqüência da organi-zação de um grupo étnico. A segunda é não supor que a cultura partilhadapor um grupo étnico seja, obrigatoriamente, a cultura ancestral (p. 115).Isso significa não tomar a cultura como algo estático, homogêneo,reificado, cristalizado, mas entendê-la na sua dinamicidade e variabilida-de. Afirma a mesma autora que “os traços culturais poderão variar no tem-po e no espaço sem que isso afete a identidade do grupo”, já que a culturaé algo “essencialmente dinâmico e perpetuamente reelaborado” (p. 116).

Por fim, vale salientar que grupo étnico supõe uma auto-identifica-ção e uma identificação da própria sociedade. Nesse sentido,

grupos étnicos distinguem-se de outros grupos, por exemplo, de grupos reli-

giosos, na medida em que entendem-se a si mesmos e são percebidos pelos

outros como contínuos ao longo da história, provindos de uma mesma ascen-

dência e idênticos malgrado separação geográfica. Entendem-se também a si

mesmos como portadores de uma cultura e tradições que os distinguem de

outros [Cunha, 1987, p. 117].

Nessa perspectiva, o conceito de grupo étnico impôs-se como fun-damental na análise dos cursos noturnos. É preciso considerar que asaulas da BPP eram freqüentadas por brancos e negros, que se auto-iden-tificavam e eram identificados como pertencentes a grupos diversos,fosse pela língua, pelo lugar de origem, por necessidades econômicas,

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como, ainda, pela discriminação e opressão a que estavam sujeitos emrazão da cor da pele.

3. Alguns resultados da pesquisa: a presença dos negrosnos cursos noturnos de instrução primária da BPP

Pela sua intensa atividade industrial e comercial, a cidade de Pelotas,no século XIX, concentrou grande número de escravos e trabalhadoresnacionais livres. Para Pelotas deslocaram-se, ainda, grandes contingen-tes de imigrantes de várias nacionalidades. Embora boa parcela dessapopulação estivesse ligada às atividades da zona rural, especialmente àindústria do charque e de seus derivados, outra parte desses indivíduosconcentrou-se na zona urbana. Havia, ainda, os que trabalhavam tem-porariamente nas charqueadas e, durante a entressafra, viviam e traba-lhavam na cidade (a safra do charque era de novembro a abril, duranteos meses de mais calor, quando o boi engordava e a carne secava maisfacilmente). Na cidade, os negros escravos, livres e libertos, com osbrancos pobres, ocupavam-se das atividades domésticas e da produçãode bens e de serviços. Os imigrantes pobres também viviam dessas ati-vidades, além de muitos deles atuarem no comércio. Isso significa quehavia uma “clientela em potencial” para um projeto como o das aulasnoturnas da BPP que, na visão das elites, além da instrução, deveriapreocupar-se em oferecer também educação moral.

Os cursos noturnos de instrução primária, projetados desde 1875como uma das atividades da BPP, iniciaram suas atividades em 1877 –mais precisamente no dia 1o de fevereiro daquele ano – registrando umnúmero considerável de alunos matriculados. No total foram 77 meni-nos e homens matriculados para a primeira e a segunda aula. Destes, 42eram nacionais e 35 estrangeiros; 33 eram menores e 44, adultos, comidades variando entre 9 e 48 anos. Se havia tais diferenças de idade enacionalidade, o que havia de comum entre os alunos? Como gruposocial, a condição de classe e o gênero, ou seja, o que os “igualava” erao fato de serem todos do gênero masculino e pertencentes às classespopulares, trabalhadores, futuros trabalhadores ou desempregados. As-sim, os Livros de Matrículas registram profissões ligadas especifica-

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mente aos trabalhos manuais e aos trabalhos domésticos. Os alunos eram,na sua grande maioria, criados, artistas6, marceneiros, carpinteiros, sa-pateiros, alfaiates, caixeiros, chapeleiros e ferreiros. Era comum quemuitas destas atividades fossem desempenhadas por crianças, a partirde 7 ou 8 anos de idade.

Em maio de 1877, quando as aulas noturnas já aconteciam haviaquatro meses, o Correio Mercantil registrava o caráter masculino doscursos com as seguintes palavras: “Ainda não está completa a matrículados freqüentadores efetivos e aceitam-se gratuitamente todos os homensou meninos livres” (Correio Mercantil, 17/5/1877).

Nesse pequeno aviso, explicita-se a exclusão de dois segmentos so-ciais: as mulheres e os escravos. A fração da elite pelotense, à testa doprojeto, em que pese seu vanguardismo, não se propunha a romper comtodos os padrões vigentes na sociedade. Os negros podiam freqüentar asaulas, desde que livres ou libertos. No entanto, a presença deles nas aulasda Biblioteca pode ser considerada um avanço para a época, uma vez queo fato de ser negro era motivo suficiente para que o indivíduo sofressetoda espécie de rejeição e preconceito. Em uma sociedade escravocrata ediscriminatória, em que a imagem do negro era associada somente a as-pectos negativos, como inferioridade, incapacidade, indolência, vícios,imoralidade, barbarismo, violência..., abrir-lhes as portas de uma insti-tuição como a BPP, criada e mantida pela elite, parece surpreendente. Masjustamente porque o objetivo era manter a ordem, disciplinar, incutir pre-ceitos de moralidade e civilidade, palavras constantemente utilizadaspelos dirigentes e professores dos cursos noturnos, é que as aulas nãopodiam, na visão destes, prescindir da presença dos negros.

Após a notícia do Correio Mercantil de maio de 1877, há poucoreferida, em várias outras notícias, relatórios, avisos e chamadas de aber-tura das matrículas, a condição masculina dos alunos foi claramenteexposta, como se até então essa condição não tivesse sido assumida.Vejam-se os exemplos a seguir:

6 O indivíduo que se ocupava de algum tipo de trabalho manual, artesanal, era cha-mado, na época, de artista.

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A manutenção dos cursos noturnos da BPP, para a freqüência de crianças e

adultos do sexo masculino, seria suficiente para recomendar esta instituição

ao apreço de todo o Brasil... [Relatório de mês de fevereiro de 1882. Elabo-

rado pelo diretor do mês, J. J. Cezar, grifo meu].

No início do século XX, isso é referido de forma mais contun-dente. O jornal Correio Mercantil publicou, em 1904, a seguinte nota:

Só poderão freqüentar o curso noturno os rapazes e adultos que não pude-

rem freqüentar as aulas públicas, como os empregados de fábricas, serventes

de casas de família, e outros que se acharem nestas condições.

A matrícula no curso noturno é feita com a maior facilidade, bastando os

patrões se dirigirem à Biblioteca onde lhes serão fornecidas todas as expli-

cações que carecem [20/1/1904, grifos meus].

O tutelamento por parte dos patrões é um aspecto que sobressai nes-sa notícia do Correio Mercantil. Os Livros de Matrículas registram, emvários anos, “figuras ilustres” da sociedade pelotense que se “responsa-bilizavam” por alguns alunos, principalmente os menores. O aluno quefosse matriculado nas aulas da Biblioteca sob a responsabilidade de umapessoa “bem nascida” tinha um status diferente no grupo, já que suafigura era sempre associada à de seu “protetor”. Isso aumentava a res-ponsabilidade do aluno em relação ao seu próprio comportamento e aoprocesso de aprendizagem: ele tinha o dever de ser um bom aluno emtodos os aspectos.

Esse tutelamento estava, em grande parte, associado ao fato de quea elite considerava as classes populares incapazes, além de naturalmen-te inclinadas para o mal, para a desordem, enfim, para o mundano. Asclasses populares eram, no Brasil do século XIX, segundo SidneyChalhoub (1986), sinônimo de classes perigosas, com tendências à ocio-sidade e aos vícios. Em relação aos alunos menores da BPP, havia umsentimento de que estes necessitavam de uma “proteção” especial, alémde exemplos e referências “civilizadoras”, posto que também à infânciapobre se associavam sentimentos negativos. Essa proteção e esse exem-plo civilizador só poderiam vir da elite, que se considerava hierarquica-

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mente superior e melhor. Segundo Margareth Rago (1987), na represen-tação imaginária que os dominantes faziam da infância, esta era perce-bida como “superfície chata e plana, facilmente moldável, mas por ou-tro lado, como ser dotado de características e vícios latentes que deveriamser corrigidos por técnicas pedagógicas para constituir-se em sujeitoprodutivo da nação” (p. 122).

Esse imaginário da infância pobre como grupo dotado de vícios edefeitos propiciava à elite pelotense experimentar uma certa rejeiçãoem relação aos alunos menores. Eles eram constantemente desquali-ficados, principalmente porque muitos não se adequavam facilmente àsnormas de disciplinamento prescritas. Estava presente – estreitamenteassociada à condição de classe dos menores-alunos – a idéia de infânciaperversa, ou, para usar uma expressão de Philippe Ariès (1981), querevela a visão da elite em relação aos menores, a infância e a juventudeeram consideradas idades da imperfeição.

Outro fator a ser considerado é que os cursos noturnos foramprojetados não exclusivamente, mas principalmente, para os trabalha-dores pelotenses. E era sobretudo na condição de trabalhadores que crian-ças do sexo masculino podiam freqüentar as aulas, visto que o trabalhoinfanto-juvenil era uma realidade em Pelotas. Para ser aceito no curso, acondição de trabalhadores sobrepunha-se à faixa etária, ou seja, ao fatode serem crianças. Tratava-se de indivíduos das classes populares, jáinseridos no mercado de trabalho e vivenciando relações de trabalhoconcretas. Era como trabalhadores, e não como crianças, que estes su-jeitos tinham acesso aos cursos. Ser trabalhador, porém, era antes umajustificativa que uma exigência.

A exploração da mão-de-obra infantil em Pelotas no século XIXfavorecia, naturalmente, os proprietários, uma vez que as crianças eramaprendizes de ofícios e não recebiam salários ou, quando isso acontecia,estes eram insignificantes7. Era também relativamente comum que, nes-

7 Em 2/4/1955, Rodolpho Xavier (líder negro e operário, ex-aluno da BPP), comen-tando em A Alvorada sua própria trajetória profissional, que incluiu, entre outrasatividades manuais, a de pedreiro, escreveu sobre a situação dos aprendizes deofício no século XIX: “Nessa época [década de 80 do século XIX] encontramos asdiárias de meio patacão a quatro patacas aos ajudantes de pedreiro (de um cruzeiroa um cruzeiro e 28 centavos por dia) e os aprendizes de 400 a 600 réis, estes

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te período, crianças trabalhassem apenas em troca de moradia e comida,principalmente em serviços domésticos. O trabalho para essas criançasera pesado e as exigências muitas, pois a elite mantinha um estilo devida com muitos “rituais”8, o que exigia um trabalho minucioso porparte dos “criados”. Além disso, essa elite habitava amplos casarões,aumentando significativamente o trabalho doméstico.

Desde as primeiras décadas do século XIX, há referências a crian-ças negras prestadoras desse tipo de serviço. August de Saint-Hilaire(1974), nos relatos de viagem ao Rio Grande do Sul no século XIX,descreveu, ao visitar a residência de um charqueador pelotense, as con-dições de trabalho de um pequeno negro de 10 ou 12 anos. O autorregistrou as seguintes palavras: “não conheço nenhuma criatura maisinfeliz que essa criança, jamais sorri e em tempo algum brinca!” (p. 28).Saint-Hilaire escreveu ainda que “não é a única casa que usa esseimpiedoso sistema: ele é freqüente em outras” (p. 28).

Nesse sentido a realidade e a presença de crianças na “escola daBiblioteca” merecem maiores considerações. Pelo registro nos Livrosde Matrículas das profissões dos alunos – de artistas ou de serviçosdomésticos, em grande número –, das idades e dos nomes dos homensque se responsabilizavam por esses alunos menores, suponho que estafosse a realidade de um número significativo de crianças que freqüenta-vam as aulas da BPP. Não há dúvida de que havia menores aprendizesde ofícios e crianças que se ocupavam dos serviços domésticos; traba-

na categoria de meio-oficiais. Não se tinha horários, trabalhava-se desde o ama-nhecer até a boca da noite, fora dos descansos das refeições, nos dias maiores, eram12 horas de trabalho e ninguém se queixava e não tinha para quem apelar”. Nessamesma matéria, Xavier diz que iniciou no ofício de pedreiro em 1888, com 14 anosde idade, e, segundo ele, antes disso já havia aprendido o ofício de vassoureiro,colchoeiro e maleiro em 1886 e 1887. Essa trajetória é um indício da situação dascrianças aprendizes de ofício em Pelotas no século XIX.

8 Um interessante detalhamento dos “rituais” da elite pelotense no século XIX, quetornavam complexos serviços simples como servir refeições, colocar uma mesapara o jantar, aparece no segundo volume de Um castelo no Pampa: Pedra daMemória (Mercado Aberto, 1994), obra literária de Luiz Antonio de Assis Brasil.Há uma passagem em que a Condessa prepara uma moça para servi-la como copeira.As exigências e rituais são tantos que a moça é obrigada, até mesmo, a aprenderfrancês. Pelotas foi chamada, no século XIX, de Atenas rio-grandense.

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lho, porém, com a hipótese de que algumas dessas crianças eram negrosnascidos depois da Lei do Ventre Livre (1871), que viviam sob otutelamento de alguma família de posses, desempenhando trabalhos noâmbito doméstico. É o que depreendo dos Livros de Matrículas e denotícias como esta: “Faleceu o aluno Francisco Detroyat, de 8 anos deidade, sendo o seu encarregado o Sr. Hypólito Detroyat nosso compa-nheiro de diretoria” (Do relatório do mês de fevereiro de 1882. Diáriode Pelotas, 12/4/1882, grifo meu).

A denominação “encarregado” sugere que Hypólito Detroyat, mem-bro da diretoria da BPP, não era pai do menino, pois dificilmente a mor-te de um filho de alguém na posição de Hypólito seria noticiada dessaforma. O uso, por parte dos escravos e ex-escravos, do sobrenome dossenhores, foi uma prática corriqueira, não apenas no Brasil, mas emtodos os países americanos – fato assaz testemunhado tanto pelahistoriografia como pela literatura e a memória remanescente da escra-vidão. Acrescente-se a isso o fato de que as crianças nascidas após a Leido Ventre Livre, filhas de escravas, ficavam sob responsabilidade dossenhores dos seus pais. Esses senhores deveriam sustentá-las até queatingissem a maioridade, podendo, em contrapartida, usufruir plenamenteda sua força de trabalho. A exploração do trabalho infantil de criançasnascidas legalmente livres que daí decorria é óbvia. Outro aspecto a serconsiderado – constatado por Agostinho M. Dalla Vecchia (1994) emseu trabalho com descendentes de escravos na região meridional do RioGrande do Sul – era a existência, relativamente comum, dos chamados“filhos de criação”, crianças entregues para serem criadas em famíliasde condições socioeconômicas favoráveis. Esses “filhos de criação”, narealidade, desempenhavam as tarefas domésticas, sem receber qualquerremuneração pelos serviços, e viviam, segundo o autor, em regime deservidão. Todos esses fatos somados sugerem a possibilidade de existi-rem alunos menores que subsistiam numa ou noutra dessas condiçõesde dependência e subordinação.

Dada essa realidade dos trabalhadores-crianças, a “escola da Biblio-teca”, que nasceu originalmente para ser uma escola de adultos, tornou-se escola para menores e adultos. Se o objetivo primordial era atendertrabalhadores, era impossível delimitar a faixa etária.

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Assim, tendo adultos e crianças-trabalhadoras – alguns deles tidosna conta de incorrigíveis – como alunos, os cursos noturnos priorizaramuma instrução que estivesse associada à educação moral. “Não é bastan-te instruir. É necessário educar. Educar para o trabalho, educar para obem e para o útil. Instrução e educação constituem elementos essenciaisao progresso das nações e à felicidade dos povos”, defendeu o CorreioMercantil em 11/1/1884. O projeto de aliar a educação – entendida comomoralização do povo – à instrução – compreendida como acesso a al-guns conhecimentos eruditos – foi levado a efeito nas aulas da BPP, prin-cipalmente porque uma parcela da elite pelotense assumiu como seu papelsocial oferecer instrução e educação para as classes populares.

O trabalho dos professores da BPP era enaltecido especialmente pelotipo de clientela que os cursos atendiam: homens adultos e menores dasclasses populares, negros e brancos, nacionais e estrangeiros. Essamultiplicidade de homens fazia dos cursos da Biblioteca um espaço deconvivência e de relações, às vezes tensas, permeadas por disputas, porrivalidades, tanto dos alunos em relação aos professores – o que sempreacabava em suspensões e expulsões – como dos professores para comos alunos e, ainda, entre os próprios alunos. Tal realidade é sugeridaespecialmente pela carta que o professor Bento José Taveira escreveupara a diretoria da Biblioteca, em 1881, em que refere o mal-entendidoque havia entre alunos de idades e cores diferentes (Carta manuscrita,1881). A carta manuscrita é única. Nela o professor Bento José Taveiraregistrou algumas das divergências que havia entre menores e adultos,sendo também esta a única referência explícita das rivalidades entrenegros e brancos nas aulas:

[...] Assim temos por esta forma contínua e sucessivamente de lidar sempre

com os mais incapazes, os refratários e os novos admitidos: com tais elemen-

tos e ainda o mal-entendido [...] que os alunos de maior idade têm de se

emparelharem com os pequenos e uns com outros de cores diversas, não é

provável que se possa jamais conseguir satisfatoriamente uma criteriosa de-

monstração pública como é nosso espírito [Carta manuscrita, 1881, grifo meu].

Descobrir que os negros freqüentavam as aulas noturnas da BPP nãofoi, conforme afirmei, nada fácil. Assim como há, na fase inicial dos

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cursos noturnos, um silêncio sobre a ausência das mulheres – já que ocaráter masculino dos cursos só se explicita quando as aulas já estão empleno andamento –, há um imenso silêncio sobre a presença ou a ausên-cia dos negros nas aulas. Ao contrário do gênero, que se colocava pelaobviedade dos nomes nas listas de matrículas, o fato de os alunos seremnegros ou brancos não está registrado em lugar algum. Ao “conhecer”alguns alunos negros, entre eles Rodolpho Ignácio Xavier, aluno em1883, com 10 anos, Boaventura Ignácio Xavier e seus filhos Pedro,Boaventura e Mathias, que estudaram na escola na década de 80 do séculoXIX e nos primeiros anos do século XX, e os irmãos Juvenal e DurvalMoreno Penny, alunos em 1899, é que foi possível concluir que os negrospodiam efetivamente matricular-se como alunos dos cursos noturnos.Esses alunos se destacaram em Pelotas na luta pelas causas negras. Osirmãos Penny fundaram, em 1907, o jornal A Alvorada, que tinha comoprincipal objetivo “a defesa de todo aquele que fosse atingido pelo pre-conceito de cor dentro ou fora do país” (A Alvorada, 5/5/1956). RodolphoIgnácio Xavier, um dos mais importantes líderes sindicais do início doséculo XX, foi um dos principais redatores do jornal por longos anos.

O Clube Carnavalesco Nagô foi, também, um indicador da presençados negros nas aulas da Biblioteca. Entidade de prestígio no Carnavalpelotense, era formado apenas de negros, que usavam as ruas da cidadedurante o período carnavalesco para protestar quanto à condição de vidados negros na sociedade. Membros da diretoria na década de 1880, comoAlfredo Teixeira de Moraes e José Maria dos Santos, foram alunos dasprimeiras turmas dos cursos noturnos da BPP (Correio Mercantil, 23/1/1884 e 29/08/1886).

A reprodução no Correio Mercantil, em 1884, da fala de um negro,pai-de-santo, o Pai Domingo di Cancela, é surpreendente e inusitada. OCorreio Mercantil reservava espaço para as manifestações do ClubeCarnavalesco Nagô. Ainda não dominando o código oral e escrito dacultura branca, os negros expressavam-se misturando sua língua mater-na, o Iorubá, e o Português. No dia 6/2/1884, o Pai Domingo di Cancela,ao referir-se ao desfile do Clube Carnavalesco Nagô, mencionou a par-ticipação dos negros na “escola da Biblioteca”: “[...] Povo ziperotensezipera, nosso oj está negro severizado, já prendeu na icolla de briotheca,

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protanto abre o io comnosco; nosso vai faze turumbanda ni cabeça desumce” (grifo meu).

A manifestação do Pai Domingo indica que o domínio da leitura,escrita e oralidade na língua portuguesa se tornou importante para essesegmento da população. Marco A. Mello (1994), analisando o episódio,argumenta que o que houve “foi um processo longo e penoso [...] noqual os negros dessacralizaram a escrita, forjando um projeto de inter-venção social notável que combinava parte de suas tradições tribais como domínio de um novo código lingüístico – o dos brancos [...]” (p. 90).

Os fatos mencionados mostram explicitamente a presença dos ne-gros nas aulas noturnas. Mais do que isso, a questão foi compreender seos homens negros romperam com a discriminação e o preconceito parafreqüentarem a BPP na condição de alunos, ou se justamente a discrimi-nação e o preconceito fizeram dos negros alunos dos cursos.

É necessário considerar que a Biblioteca era uma instituição queconcentrava alguns abolicionistas pelotenses9 e como tal era “foco” dedisseminação dessas idéias. Não só cedia seu espaço para reuniões emanifestações abolicionistas, como também arrecadava fundos, entreseus associados, para comprar cartas de alforria de escravos. O jornalCorreio Mercantil registrou, em 5/12/1876, uma dessas situações emque um sócio da BPP propunha uma campanha para arrecadar a quantiade 50$000 réis para alforriar uma escrava de nome Genuína, de 70 anos,cuja venda estava anunciada nos jornais locais. O Correio Mercantilinicialmente elogiava a iniciativa, afirmando que isso demonstrava quea diretoria da Biblioteca sabia compreender perfeitamente os dois gran-des pensamentos da época: instrução e liberdade, para a seguir publi-car os termos da proposta:

Com o fim de praticar um ato de caridade, resolvi implorar um óbolo para

livrar das garras do cativeiro a infeliz Genuína de 70 anos [...]

Na qualidade de membro da Biblioteca faço um apelo aos meus distintíssimos

consócios, aqueles que trabalham em prol da sublime causa da instrução para

que me auxiliem neste propósito.

9 Entre estes abolicionistas, estava Piratinino de Almeida, um dos fundadores e pre-sidente do Clube Abolicionista pelotense, e Francisco de Paula Pires, secretário domesmo Clube.

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Com este procedimento mostrarão que os conhecimentos difundidos pela

instituição que sustentam, esclarecendo a inteligência, guiam o coração à

prática das mais nobres virtudes.

O homem amante do adiantamento intelectual não pode ser indiferente à

sorte dos seus semelhantes, jungidos ao despótico carro da escravidão.

Em nome da humanidade, do progresso, da civilização, em nome da liberda-

de – luz puríssima e esplêndida que dirige o homem à senda dos mais arroja-

dos cometimentos – peço o óbolo da caridade em favor da infeliz Genuína.

Salas da BPP, 2 de dezembro de 1876.

Felicíssimo Paulo de Freitas [grifo meu].

Se, por um lado, o abolicionismo era um ideal recorrente entre al-guns membros da diretoria, o que talvez explique a presença dos negrosnas aulas noturnas, por outro, é necessário considerar que os negrosestigmatizados pela escravidão eram associados à “raça degenerada”que precisava ser controlada e constantemente vigiada, especialmenteno período pós-abolicionista. As mesmas características negativas atri-buídas às classes populares de um modo geral, no século XIX, eramainda mais acentuadas quando, associada a uma condição socialdesprivilegiada, havia condição de ser negro.

Os atributos negativos endereçados aos negros estão explícitos nes-ta matéria do jornal Correio Mercantil, dois anos após a abolição daescravidão em Pelotas:

[...] Grande parte deles [os libertos], homens ou mulheres, deixaram a casa de

seus senhores para aglomerarem-se nos cortiços e nos centros de perdição.

As mulheres cedendo aos impulsos enervantes da raça, entregaram-se em

grande número à prostituição, como meio fácil de granjearem a subsistência,

pouco se lhes importando os princípios civilizadores e adiantados do agrupa-

mento social em que vivem hoje.

[...] É preciso sem demora atenuar, se não se puder de todo extinguir, as

tendências do liberto para a inatividade e para a prostituição, tendências

com que ele entra para a comunhão social porque não as deixa na senzala ou

no eito [Correio Mercantil, 18/2/1886, grifos meus].

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Na matéria transcrita, as tendências de inatividade e prostituiçãoeram apresentadas como características naturais dos negros. Se as desi-gualdades de gênero se explicavam pelas diferenças biológicas e eraminstituídas e legitimadas pelas práticas sociais e pelos discursos médico,jurídico, educacional, as desigualdades dos grupos étnicos não eramvistas de forma diferente. A inferioridade atribuída aos negros estavaassentada, também, nas diferenças físicas. Ser negro ou ser branco, nasociedade pelotense, era ser detentor de determinadas capacidades ouincapacidades sociais, morais e intelectuais. Fortemente ancoradas emum pressuposto essencialista, as diferenças físicas explicavam as desi-gualdades dos grupos étnicos. No imaginário social, estava presente aidéia de que era inerente, próprio dos indivíduos negros, um comporta-mento selvagem, bárbaro, anti-social. Célia M. Azevedo (1987) consta-tou em seu estudo que, do ponto de vista intelectual, os negros eramrepresentados como grupos de baixo nível mental. Veja-se que em Pelotasessas idéias também estavam fortemente presentes:

[...] Tratando-se de pessoas nas condições dos pretos libertos, que não po-

dem ter aspiração à carreira literária ou científica, é claro que o sistema de

educação a adotar-se é muito simples e muito fácil.

[...] Instrução primária acompanhada de princípios morais e religiosos [...]

[Menezes, 1869, Material do Clube Abolicionista de Pelotas].

Muitos seriam os exemplos ilustrativos que estão registrados nosperiódicos pelotenses a respeito das características dos negros. Visandoargumentar que os negros foram aceitos como alunos nos cursos notur-nos (antes da Abolição apenas os livres e libertos) porque era necessá-rio, na visão das elites, prepará-los para as novas relações de trabalho epara sua inserção na vida em sociedade como indivíduos livres, é preci-so conhecer, ainda, outras idéias sobre os negros, vigentes na vidapelotense. O Correio Mercantil apresentava os ex-escravos como gru-pos “completamente atrasados, alheios a todas as formas de existênciasocial, sem profissão determinada, sem princípio de vida livre, [...] en-tes desamparados” (16/11/1883). Na mesma matéria do jornal, a con-clusão sobre as possibilidades de reverter esse quadro:

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Abram-se escolas por toda a parte; convidem-se os libertos a virem tomar

assento nos bancos do estudo e do saber; dê-se-lhes a doutrina moral, o

conhecimento necessário dos seus deveres de homem perante a sociedade

em que vivem; mostrem-se-lhes as vantagens do trabalho, da ocupação sé-

ria e honesta, em uma palavra, habilite-se à economia social, à aplicação das

suas forças ativas, a fim de que à liberdade se sigam imediatamente a paz, a

ordem e a felicidade desejáveis [grifos meus].

No entanto, se o intuito das elites que fundaram a Biblioteca PúblicaPelotense e com ela propuseram aulas noturnas para as classes popula-res (incluindo os negros livres e libertos) era disciplinar, normatizar eprescrever normas, padrões e comportamentos, os homens que freqüen-taram essa escola não se sujeitaram passivamente a esse projeto. Ascondições de classe e de grupo étnico dos alunos forjaram diferentesformas de luta.

As últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XXmarcaram um momento significativo de organização dos trabalhadorespelotenses. Organizados em clubes, associações, sindicatos, eles luta-ram contra as condições de vida e de trabalho a que estavam submeti-dos. Havia solidariedade de classe, percebida, entre outras coisas, pelonúmero de associações de amparo, de auxílio mútuo, de assistência e decategorias profissionais específicas que os próprios trabalhadores orga-nizavam. Os negros, por sua vez, imprimiram formas específicas de luta,tanto contra os estereótipos de classe e grupo étnico a si atribuídos quantopara conquistarem espaço na sociedade pelotense e melhorar sua condi-ção de vida duplamente marginalizada. Na forma de clubes carnavales-cos, irmandades, batuques, os negros tiveram uma ampla participaçãona vida local. Marco A. Mello (1994) afirma que em Pelotas, entre osnegros escravizados e libertos, muitas foram as formas de “manifesta-ção da chamada cultura de resistência” (p. 53). O autor dedica especialatenção às expressões da religiosidade e às formas de lazer dos negrospelotenses nas últimas décadas do século XIX e conclui que, entre ou-tras coisas, essas manifestações religiosas e culturais tinham o intuitode manter a identidade étnica dos negros.

Alguns alunos dos cursos noturnos participaram dessa realidadecomo líderes operários ou dos movimentos negros do início do século

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XX. Uns estiveram à frente de associações de classe ou entidades cultu-rais – como Classes Laboriosas, Grêmio dos Tipógrafos, Clube Benefi-cente Harmonia dos Artistas, Sociedade Dramática Filhos da Thalia –;outros, participaram como membros de entidades negras – especialmenteo Clube Carnavalesco Nagô e o jornal A Alvorada10. Se foi possívelvisualizar essa realidade é porque a dominação não se impôs de formaabsoluta.

Foi o caso, já mencionado, dos negros Rodolpho Ignácio Xavier edos irmãos Juvenal Moreno Penny e Durval Moreno Penny. Alunos doscursos noturnos na década de 80 do século XIX, os irmãos Penny fun-daram, em 1907, o jornal A Alvorada11, do qual Rodolpho Ignácio Xavierse tornou um dos mais importantes redatores. A história do jornal AAlvorada confunde-se com a própria trajetória dos irmãos Penny e deXavier12. O semanário registrou em 5/5/1948, no seu 41o aniversário:

[...] Durante trinta e oito anos Juvenal Penny manteve inabalável a direção

deste semanário, auxiliado por seu digno irmão e nosso amigo Dr. Durval

Penny e uma plêiade de colaboradores espontâneos e abnegados como

Rodolpho Xavier, o mais antigo e cuja pena nunca se desviou do caminho

retilíneo de uma conduta elogiável, abordando assuntos de interesse coletivo

e combatendo os espesinhadores e inteligências tacanhas e arrogantes.

Muito tempo depois, e mesmo sem a liderança dos irmãos Penny, asreferências sobre os objetivos pelos quais o jornal fora criado continua-ram sendo motivo de matéria a cada aniversário do periódico – 5 demaio. Tais finalidades expressavam-se com as seguintes palavras: “o

10 Dos alunos cujos dados obtive, todos participavam destas associações de classe,culturais ou carnavalescas, ocupando cargos nas diretorias.

11 O Museu da BPP guarda exemplares do jornal A Alvorada de 1946 até 1957. Essesjornais foram todos consultados e é a partir desse material que faço as considera-ções a seguir.

12 Juvenal Moreno Penny manteve-se como proprietário do jornal A Alvorada até1946, portanto durante 39 anos. Seu irmão Durval Moreno Penny, diretor do jornal,afastou-se antes dessa data para estudar medicina. A partir de 1946, o semanáriopassa a ser de propriedade de um grupo liderado por Rubens Lima, além de CarlosTorres e Armando Vargas.

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porta voz de uma raça e o defensor dos oprimidos” (A Alvorada, 5/5/1948). Rodolpho Xavier, em matéria publicada, expressou que o jornalesteve, desde seu início, “lutando [...] pela emancipação dos descenden-tes da África heróica e distante” (A Alvorada, 5/5/1955); “na defesa dainstrução, da unidade racial e do progresso e interesses da terra pelotense”(A Alvorada, 5/5/1957).

Os irmãos Penny foram figuras que alcançaram projeção na socie-dade pelotense. Juvenal Penny, além de proprietário do jornal, era tam-bém comerciante, dono da fábrica de fogos “São Veríssimo” (A Alvorada,13/1/1951). Depois que o jornal deixou de ser de sua propriedade, eracomum que elogiosas matérias sobre seu desempenho à frente dessesemanário fossem publicadas. Em 1952, uma breve descrição da traje-tória do jornalista foi referida. Segundo essa matéria, na época da fun-dação do jornal, Juvenal Penny trabalhava durante o dia como tipógrafodo jornal federalista A Reforma e durante a noite compunha o jornal AAlvorada, que era impresso em oficinas de outros periódicos, uma vezque não possuía oficina própria (A Alvorada, 5/5/1952 e 5/5/1957). Atrajetória de Juvenal Penny indica que ele foi um homem extremamenteengajado e comprometido com as lutas de seu tempo.

Durval Moreno Penny trabalhou como diretor do jornal, abandonan-do o semanário para estudar medicina. Segundo A Alvorada, “lutador des-de sua mocidade, entregue ao estudo, conseguiu pela força de vontade,perdendo horas de descanso, formar-se por correspondência, em medici-na” (A Alvorada, 4/4/1953)13. Durval era proprietário de uma farmácia,onde “dava consultas” e era chamado de “médico dos pobres” (A Alvora-da, 4/4/1953). Lutou pela causa dos negros, não apenas através do jornal,como também participando da diretoria do Instituto São Benedito – parameninas negras. No embate político, esteve à frente da campanha do ne-gro Monteiro Lopes para deputado federal (idem).

Na trajetória desses ex-alunos da “escola da Biblioteca”, RodolphoIgnácio Xavier ocupou um lugar de destaque, encabeçando o movimen-to negro e operário pelotense. Antes de tornar-se redator de A Alvorada,

13 Segundo A Alvorada de 5/5/1948, Durval M. Penny formou-se em medicina peloInstituto Nacional de Ciência em 30/4/1914.

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em 1907, desempenhou várias atividades profissionais, todas ligadas aotrabalho manual. Em rápida “autobiografia”, escrita e publicada no jor-nal nos dias 2/4 e 10/4/1955, Xavier diz que aprendeu os ofícios devassoureiro, colchoeiro, maleiro em 1886 e 1887, acabando por traba-lhar como ajudante de pedreiro a partir de 1888, então com 14 anos deidade. Em 1891, segundo ele, aprendeu o ofício de chapeleiro, isso por-que “quando sempre terminadas uma ou duas ou três construções, fica-va-se sem trabalho” (A Alvorada, 2/3/1955). O autor, antes de concluir amatéria, indica: “em 90 [1890], antes de irmos aprender o ofício dechapeleiro, andamos vendendo carnes e miúdos numa carroça indo buscá-los nas charqueadas do ‘Passo dos Negros’ ou nas charqueadas da ‘Cos-ta’ por comprá-los mais barato” (idem).

Como redator de A Alvorada desde a sua fundação em 1907, Xavierescrevia matérias semanais no jornal sobre os mais diversos assuntos.Abordava freqüentemente a situação social, econômica e política mun-dial, nacional e local, estabelecendo relações entre os problemas do Brasile de outros países, como Estados Unidos, França, ex-URSS e os paísesda América do Sul. Ocupou-se, por várias vezes, do problema do altocusto de vida, dos salários e das condições de moradia, de alimentação,dos serviços básicos como fornecimento de luz, água, saneamento etransporte coletivo para a classe trabalhadora. As leis trabalhistas, ocooperativismo e o sindicalismo foram temas tratados reiteradamentepor Rodolpho Ignácio Xavier, que lutou, à frente do jornal A Alvorada eda União Operária, pela obtenção das oito horas diárias de trabalho.João B. Marçal (1985, p. 115) registrou a presença de Rodolpho IgnácioXavier na diretoria da União Operária como 1o secretário, em 1908.

Suas matérias no jornal foram, também, espaço de denúncia dasituação dos negros no Brasil e em Pelotas. Várias matérias tratavam,ainda na década de 1940 e 1950, do “preconceito de cor” que haviaentre os pelotenses. Xavier relatou situações em que os negros – e namaioria dos casos experiências vivenciadas por ele próprio – eram im-pedidos de entrar em vários locais de lazer na cidade. Em uma dessasmatérias, intitulada “O estribilho é sempre o mesmo” (A Alvorada, 4/2/1951), o autor relembrou casos de preconceito racial de que fora vítimadesde a adolescência em lugares como no “baile dos brancos” no cha-mado “Jardim Scotto, no Teatro Guarani, no cine Capitólio, no Café

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Lamego”. O redator também fazia questão de enaltecer “figuras ilustresda raça” como em matérias, por exemplo, sobre José do Patrocínio (AAlvorada, 17/5/1952) e sobre o deputado negro Carlos da Silva Santos(A Alvorada, 24/2/1951).

Um pouco da história desses três ex-alunos da “escola da Bibliote-ca” indica que, se no cotidiano das aulas foram submetidos a um pro-cesso de disciplinamento, esse espaço ao mesmo tempo contribuiusignificativamente subsidiando alguns homens das classes populares comum dos instrumentais necessários e fundamentais na luta social: a leitu-ra e a escrita.

4. Considerações finais

Conforme afirmei no início deste trabalho, considerava que a pre-sença dos negros teria maior “visibilidade” nas fontes pesquisadas. Comomostrei, foi preciso “trilhar” um longo caminho até descobrir que alu-nos negros freqüentaram as aulas. E depois foi preciso outra empreitadapara descobrir se freqüentavam na condição de escravos ou se apenasaos livres e aos libertos estava garantido esse acesso.

Com relação à presença desse grupo, surgiu uma aparente contradi-ção: de um lado, um sentimento de caridade que se expressava pela ade-são ao abolicionismo e que, na BPP, se concretizava em campanhasrealizadas entre alguns dos seus sócios para a compra de escravos e pos-terior manumissão; de outro lado, uma rejeição aos indivíduos desse gru-po étnico, expressa em matérias nos periódicos locais e no própriomaterial que circulava entre os membros do Clube Abolicionista. Assim –sem pretender encontrar uma causa única e absoluta para explicar a pre-sença dos negros na Biblioteca –, um certo paternalismo racista, que pro-curava libertar, ajudar e proteger os negros por considerá-los inferiores e,por isso, incapazes de fazerem-no por si mesmos, e que via na educaçãoe, mais especificamente, na escolarização elementar a possibilidade deintegrá-los à vida social, pode ser considerado o principal fator que pos-sibilitou a “abertura” da escola a esse grupo.

Finalmente, é óbvio concluir, em relação aos cursos noturnos daBPP, que as classes populares passaram, paulatinamente, a valorizar o

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processo de escolarização. Isso ocorreu, principalmente, em razão daampliação do comércio, da urbanização, de uma incipiente industriali-zação e das oportunidades crescentes nos serviços públicos e privados.Nessa “nova” realidade da vida urbana pelotense, o processo de leitura,escrita e cálculo obteve maior valorização e significou, concretamente,a chance de novas oportunidades de trabalho. Há que considerar tam-bém que alguns homens que passaram pelos bancos escolares da Biblio-teca, ao se apropriarem da leitura e da escrita, fizeram delas ferramentasimportantes na luta por uma sociedade mais igualitária e menos opres-sora e hierarquizada. Com isso, é possível dizer que, se o projeto da“escola da Biblioteca” tinha entre seus objetivos formar e conformar oshomens para a aceitação das relações e das condições capitalistas detrabalho, na prática, provocou também o oposto. Os líderes negros eoperários foram um exemplo dessa realidade.

Para concluir e retomar a discussão da questão do silêncio das fon-tes da história da educação em relação ao pertencimento étnico-racialdos sujeitos, é necessário dizer que, se chegamos a um consenso de quea problematização negro x educação é fundamental no campo da pes-quisa educacional, em geral, e histórica, em especial, urge, mais do queampliar o conceito de fontes, reinventar formas e estratégias de trata-mento dessas fontes; ousar e criar; operar com uma boa dose de sensibi-lidade e intuição, de persistência e paciência. Uma história da presença/ausência das comunidades negras em processos de educação/escolarização remete-nos e possibilita-nos fazer e pensar uma outra his-tória da educação no contexto brasileiro.

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Jornais e documentos consultados

Local de consulta: Museu da Biblioteca Pública Pelotense

A AlvoradaA DiscussãoA ReformaCorreio MercantilDiário de PelotasDiário PopularEcho do SulJornal do ComércioOnze de JunhoOpinião PúblicaPervigil

Progresso LiterárioRadical

Anais da BPPAtas da BPPCarta Manuscrita – Prof. Bento JoséTaveira, 1881Livros de Matrículas dos Cursos No-turnosRelatório manuscritos – 1884-1904

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Maria Cristina Cortez Wissenbach*

Cartas, procurações, escapuláriose patuás:

os múltiplos significados da escrita entre escravos eforros na sociedade oitocentista brasileira

Tendo como ponto de partida a apresentação de cartas escritas por escravos em São Paulona segunda metade do século XIX, a intenção do artigo é refletir sobre algumas questõesdecorrentes de sua interpretação histórica: entre outras, a consideração de escravos alfa-betizados e a averiguação das condições históricas que propiciaram tal aprendizado, asocialização das práticas de escrita em direção a grupos mais amplos, o sentido mágicodas palavras escritas e sua aproximação à oralidade predominante na sociedade da época.Pretende-se, além disso, sublinhar a relevância da dimensão histórica do passado escravistanas discussões sobre a questão da educação na organização social das populações negrasno pós-Abolição.ESCRAVIDÃO; PROCESSOS DE ALFABETIZAÇÃO; IDENTIDADES ÉTNICAS; CAR-TAS DE ESCRAVOS; SOCIABILIDADES URBANAS.

This article aims to present and discuss letters written by slaves in the XIX century, foundbetween judicial documents of São Paulo. How the slaves are introduced into the world ofthe alphabet; in which historical conditions they learned to write and to read; how thisapprenticeship had enlarged into a wider group of slaves and freedman that worked andlived in the cities; the magic sense of the words and letters of freedom, the frontiers betweenthe oral and write culture are some of the questions brought with the main theme. Thisarticle is also a contribution to the discussion of the meanings of formal and informaleducation between the black populations in the Brazilian society after the Abolition in 1888.SLAVERY; LITERACY OF SLAVES; ETHNICS IDENTITIES; LETTERS WRITTEN BYSLAVERS; URBAN SOCIABILITY.

* Historiadora, doutora pela Universidade de São Paulo, pesquisadora responsávelpelo Núcleo de Projetos Históricos do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisaem História da Educação – e professora do programa de estudos pós-graduados emeducação, linha de pesquisa História da Educação, na Universidade São Francisco.

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Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão no Brasilconheceu mudanças significativas e, em seus novos rumos, algunsenfoques interpretativos têm se mostrado particularmente produtivos,especialmente aqueles que, partindo da consideração do escravo comoagente histórico, romperam com as visões tradicionais que insistiam nareificação do cativo e também em sua vitimização1. Marcados por umesforço empírico redobrado capaz de documentar a vida escrava em suacomplexidade, foram estudos que lançaram mão de tipos diferenciadosde fontes, sobretudo inventários e testamentos, processos criminais, autoscíveis e registros paroquiais, ampliando os horizontes da pesquisa his-tórica e reinterpretando aspectos da organização social e cultural não sódos escravos como também dos grupos egressos da escravidão. Para oestudo da escravidão, os efeitos desses esforços foram substantivos, poismultiplicaram as possibilidades de serem superados pressupostoshistoriográficos que vinham se tornando inquestionáveis, quase entra-ves epistemológicos – entre outros, a crença na anomia das estruturasfamiliares e sociais existentes entre escravos e libertos; a idéia dadespersonalização subjacente à extrema violência do regime; a ênfaseno desenraizamento a que haviam sido sujeitos os africanos na diásporae, conseqüentemente a assertiva do vazio cultural deixado pelas ruptu-ras inerentes à escravização.

Sem dúvida, na busca das fontes da escravidão, os pesquisadorestiveram que lidar com uma série de dificuldades, decorrentes não só daescassez de documentos sobre o tema da vida escrava, mas também,principalmente, daquelas causadas por uma incompatibilidade intrínse-ca entre as fontes oficiais e a história dos despossuídos ou dos domina-dos que se procurava resgatar2. Em linhas gerais, foi preciso reconstituir

1 Vários ensaios críticos discutem as tendências da historiografia brasileira sobre aescravidão, especialmente a partir dos anos de 1980, listando os principais títulosda nova produção. Destaco, entre outros artigos, o de Stuart Schwartz (2001, pp.21-88). Para uma bibliografia mais ampla (incluindo as produções recentes sobre otema na América Latina e Caribe), ver Horácio Gutiérrez e John M. Monteiro (orgs.)(1990).

2 Um dos textos inaugurais que sublinhou a urgência de pesquisas nos arquivos daescravidão brasileira foi o de R. Slenes, escrito em 1983, instigantemente intitulado

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a vida social e cultural das populações de africanos e afro-descendentesa partir da leitura de documentos comprometidos com a visão de mundodas classes dominantes; lançar mão de testemunhos que foram produzi-dos no esteio do controle social, da disciplina e da repressão montadascontra setores sociais vistos como perigosos, indisciplinados e margi-nais. Foi necessário também contornar a frieza de informações desper-sonalizadas ou puramente quantitativas, filtrar os testemunhos, ler nasentrelinhas e abstrair, no máximo do possível, os preconceitos, as visõespreestabelecidas, as situações de constrangimentos, nas quais réus, es-cravos e forros se colocavam diante de juízes, policiais e escrivães paraserem julgados.

Nos anais da história da escravidão brasileira e das populações deafro-descendentes, foram raros ou raríssimos os depoimentos diretosdeixados por esses setores sociais. Mas, mesmo excepcionais, quandolocalizados, exerceram um papel significativo nas revisões historio-gráficas que vimos discutindo. Como exemplo característico, pode-selembrar o documento que o historiador norte-americano Stuart Schwartzencontrou no acervo do Arquivo Público da Bahia (Schwartz, 1977, pp.79-81; Schwartz, 2001, pp. 119-121). Datado de finais do século XVIII,conhecido como o Tratado de Paz dos escravos rebelados do engenhoSantana, de Ilhéus, o texto mantém até hoje a capacidade de surpreen-der, sobretudo quando informa as exigências que os escravos impuse-ram ao senhor para retornar ao trabalho. Nesse documento, encontram-seexplicitados não só detalhes das condições do trabalho escravo e davida dos plantéis nos engenhos baianos do século XVIII, como tambémdemonstrada a capacidade dos escravos em reinterpretar a escravidãoem seus próprios termos: o conhecimento e o controle do tempo de tra-balho nos engenhos de açúcar, a organização das tarefas e o número detrabalhadores necessários para cada uma delas, a divisão sexual e étnicade determinados encargos, o interesse em manter a posse das ferramen-tas, a necessidade de dias de repouso, a preferência em serem supervisio-

“O que Rui Barbosa não queimou – novas fontes para o estudo da escravidão noséculo XIX”, Estudos Econômicos, IPE/USP, vol. 13, n. 1, pp. 117-149.

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nados por feitores de sua escolha. Também expressaram a consciênciados direitos que tinham: sobretudo, o reconhecimento de roças de sub-sistência e de outras atividades realizadas de maneira autônoma (entreoutras, a pesca, o plantio de arroz e o corte de madeira), o direito aganhos próprios obtidos com a venda de seus produtos no mercado deSalvador. Na interpretação de Schwartz, muitas das reivindicações apre-sentavam-se como decorrência de direitos costumeiros, práticas acor-dadas entre senhores e escravos para a manutenção da sobrevivênciados plantéis e para viabilizar a dominação escravista. Ainda segundo ohistoriador, entre as reivindicações feitas destacava-se ainda aquela queera a prova mais clara da humanidade dos cativos: o direito ao lazer. Noartigo final, exigiam explicitamente: “Poderemos brincar, folgar, e can-tar em todos os tempos que quisermos, sem que nada nos impeça e nemseja preciso licença”.

Apesar da polêmica instaurada pela publicação e interpretação dessedocumento e dos argumentos apresentados por alguns historiadores so-bre o perigo de sua generalização em direção a uma concepção abranda-da da escravidão brasileira (Gorender, 1991, pp. 5-18; Gorender, 1983,pp. 7-39), ou mesmo sobre o caráter excepcional do tratado3, o impactofez-se sentir, alterando algumas das mais arraigadas interpretações sobrea história dos escravos no Brasil. Sem querer exagerar seus efeitos, masconsiderando as múltiplas facetas do viver escravo que o documento apre-sentava e impondo a lógica da reciprocidade para a compreensão das

3 Sobre a questão da excepcionalidade de determinadas fontes históricas, a suarepresentatividade principalmente num contexto de escassez de testemunhos, veras colocações feitas, no âmbito da história da educação, por Dominique Julia (2001).Vale a pena registrar suas considerações a respeito de biografias tidas a princípiocomo atípicas: “Mas se tal percurso pode ser interessante pela sua própria estranhe-za, não podemos evidentemente atribuir-lhe uma representatividade que não pos-sui. Se é verdade, no entanto, que os documentos não são abundantes para os períodosantigos, é certo que os historiadores os procuram com a tenacidade demonstradapor Armando Petrucci na Itália, reconstituindo, a partir da análise paleográfica doregistro de contas de uma salsicharia do bairro do Tratevere, em Roma, as práticasde escrita utilizadas nos meios da Cidade Eterna no século XVI [...] Como repetiaincansavelmente Armando Momigliano, as fontes podem ser encontradas se temosa tenacidade de ir procurá-las” [p. 19].

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relações de dominação, provocou ao menos o reconhecimento da capaci-dade dos escravos de terem sua própria visão da escravidão e a existênciade largos espaços de uma vida cultural, econômica e social autônoma.

Numa outra escala, e de forma um pouco mais esparsa ou diluída, adocumentação judiciária (processos criminais e inventários, sobretudo),além de constituir uma das principais fontes da nova historiografia social,guarda igualmente, aqui e ali, registros diretos de aspectos da vida daque-les que foram enredados pelas malhas da justiça. No caso da sociedadeescravista, indiciando réus escravos e forros, ouvindo testemunhas deigual condição, nos processos encontram-se transcritos fragmentos delinguajares, percepções e visões de mundo particulares. Por vezes, issotransparece em trechos de diálogos que as autoridades judiciárias preferi-ram manter literalmente, para captar as motivações dos crimes ou infor-mações adicionais que, de outra forma, poderiam passar despercebidas:

Respondeu – Quem anda fugido deve andar aprecatado. Que explicasse o

seu dito. – Um indivíduo que anda fugido está sujeito a onças e a Capitão-do-

Mato e por isso e para não ser presa fácil deles comprara a garrucha. [AESP,

A Justiça versus Apolinário, escravo de Francisco Nogueira, 1872]4.

Por outras vezes, anotando as trocas de ameaças e a violência quecadenciavam o dia-a-dia dos habitantes livres e escravos e seus encon-tros pelos arredores da cidade de São Paulo, na segunda metade do sé-culo XIX:

– Se João da Várzea viesse com garõas era um escravo a menos que Nhô

Gole tinha! [AESP, Justiça versus Bento de Oliveira Valente, 1860];

4 Grande parte dos autos citados neste artigo foram utilizados no texto de minhaautoria, publicado em 1998: Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos,vivências ladinas – escravos e forros em São Paulo (1850-1880), São Paulo, HUCITEC;História Social / USP, 1998. Vale lembrar que, neste artigo, a grafia dos documen-tos foi relativamente modernizada para facilitar sua leitura; essa é uma observaçãoimportante sobretudo no que diz respeito à transcrição e interpretação das cartas,objeto do estudo. Mas em dois dos documentos mais significativos a grafia foimantida à guisa de apresentação.

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– Deixe estar o meu compadre Vieira, que se anoitecê hoje não há de amanhacê

amanhã [AESP, Justiça versus Inocencio, escravo de Prudente Padilha, 1863].

Além desses casos, em circunstâncias um pouco diferenciadas, aosautos judiciários foram anexadas pequenas peças escritas utilizadas,geralmente, como evidências dos crimes — curtos bilhetes (alguns en-dereçados pelos réus presos às autoridades policiais); listas de objetos(feitas com a intenção de assegurar posses, especialmente quando seuautor se encontrava foragido); rezas e preces colocadas no interior deescapulários e amuletos, que homens e mulheres portavam como ele-mentos de proteção; e, finalmente, cartas escritas de próprio punhopor escravos e que, transformadas em peças incriminatórias, nuncaforam endereçadas5. Peças que formam uma série de papéis manus-critos que, em seu teor mais geral, aproximam-se de outras formas deescrituras ordinárias, tal como vem sendo caracterizados as práticas eos usos da escrita em suas dimensões ordinárias e cotidianas (Albert,1993; Fabre, 1993).

Em 1868, foi essa a origem das cartas anexadas a um processo cri-minal, da comarca de São Paulo, escritas pelo pedreiro Claro Antôniodos Santos, escravo de ganho, pertencente ao cônego Fidélis Alves deMoraes, a mando da africana Theodora Dias da Cunha, escrava do cô-nego Terra, ambos residentes na cidade de São Paulo, e que constituem,

5 Noticiando uma pesquisa sobre a linguagem falada dos bandeirantes, afirma Silviode Almeida Toledo Neto a importância das fontes cartoriais: “Muita gente caracte-riza a linguagem dos cartórios como cheia de fórmulas, incapaz de refletir o dia-a-dia [...] Mas é possível encontrar em muitos casos não apenas o texto feito peloescrivão, mas também bilhetes, recibos ou, mais raramente, diários de quem estavanuma armação ou foi listado numa partilha de bens. [...] A importância desse tipode registro, feito com mãos inábeis, como a gente costuma dizer, é muito grande.Esses rabiscos apressados testemunham o conhecimento do português e um conta-to, ainda que limitado, com a cultura escrita. Nos inventários constam, também,ainda que raramente, livros impressos: hagiografias (biografias de santos), cartilhas,obras devocionais, às vezes registradas com o título em latim errado”. Entrevistaconcedida a Reinaldo José Lopes, “A língua dos bandeirantes – pesquisadores des-cobrem traços do português dos séculos 17 e 18 na fala de habitantes das regiõespercorridas pelas expedições paulistas”. Suplemento Mais!, Folha de S. Paulo, 10/3/2002.

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aqui, objeto de interpretação. Na apresentação desse material, o objeti-vo é chamar a atenção sobre a importância da fonte criminal para oestudo do significado das práticas de escrita entre escravos e forros nasociedade escravista brasileira. Discutindo aspectos relevantes na suainterpretação, a intenção é também refletir, de maneira preliminar, sobrea existência de escravos alfabetizados, sublinhando as situações históri-cas que provocaram tal aprendizado, especialmente no século XIX bra-sileiro; destacar ainda a importância da averiguação desses usos e práticasno contexto da sociedade escravista como fulcro para se pensar a pro-blemática e o significado da educação entre as populações negras nopós-Abolição.

Antes de tudo, no entanto, um aspecto deve estar sempre presentena abordagem do tema: o sentido e a simbologia quase mágicos que ahabilidade de escrever, ou ainda a simples posse de “papel e de canetade pena”, assumiu entre escravos e libertos no processo de afirmação desua identidade social. Nesse sentido, é pertinente lembrar que, no Brasilcolonial e imperial, numa sociedade com baixos índices de letramento eentre frações sociais no geral analfabetas ou semi-alfabetizadas, alémde a compra da alforria ser o grande objetivo da maioria dos escravos, a“carta” – como era familiarmente conhecida por eles –, transformava-seem materialidade da liberdade desejada e obtida, constituindo-se, defato, no único documento capaz de distinguir os forros dos escravos.Tratava-se de comprovação que deveria acompanhar os libertos em suavida diária, até mesmo para protegê-los de serem confundidos pelaspatrulhas policiais com escravos fugidos. Sentido mágico das palavrasescritas, a carta de alforria aproximava-se aos escapulários e aos amuletosque os afro-brasileiros traziam consigo, no interior dos quais guarda-vam orações dedicadas a santos católicos e trechos dos livros sagradosdos muçulmanos.

Assim, considerar processos de letramento em seus múltiplos signi-ficados entre escravos e forros é uma vez mais penetrar no campo dasevidências inesperadas que a pesquisa histórica teima em nos oferecer.Sobre o assunto e nas histórias de vida que recolheu, aludindo aos pro-cessos voluntários de aprendizado entre crianças de diferentes estratossociais, Zeila Demartini (2001) observou que muitas delas haviam sido

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introduzidas no mundo da leitura por suas babás, geralmente ex-escra-vas, ou ainda por filhos de escravos, companheiros das crianças brancasem seus jogos infantis. Dessa maneira, à informação da existência deescravos alfabetizados, acrescenta-se, segundo ela, um elemento a maisnão imaginado pela literatura sobre a história da educação: “que os ne-gros, pobres, pudessem estar introduzindo crianças brancas e ricas nomundo da leitura”. Ou, como observa a autora em outro trecho, ao ma-nifestar sua surpresa diante do fato de que:

[...] a vontade de aprender a ler da criança branca estivesse ligada às relações

de amizade com crianças negras e o papel de alfabetizadores que muitos

negros desempenharam em várias famílias, sem que lhes tivessem sido reco-

nhecida esta função [Demartini, 2001, p. 138].

A pesquisa aos processos criminais em que se viram envolvidos es-cravos e forros em São Paulo na segunda metade do século XIX ofereceelementos para se refletir sobre diversos aspectos relativos à difusão daescrita entre escravos. Inicialmente mostra a relação desta prática comas condições peculiares em que se dava a organização do trabalho escravonas cidades, à rede de sociabilidades que se fazia aí presente. Remetetambém às condições históricas existentes na época, particularmenteaos processos que marcaram a sociedade brasileira da segunda metadedo século XIX, como a projeção da legislação emancipacionista e a in-tervenção crescente do poder público no âmbito das relações entre es-cravos e senhores, o movimento abolicionista nas cidades e o adventoda estrada de ferro.

Tomando como ponto de partida as condições que propiciaram aalfabetização de escravos e de forros, tal como referida na documenta-ção, dois aspectos chamam de imediato a atenção: em primeiro lugar, apresença de hábitos de escrita e de leitura difundidos principalmenteentre plantéis pertencentes às ordens religiosas e ao clero; em segundo,sua associação a situações singulares do trabalho urbano, mas, princi-palmente, a trabalhadores que exerciam atividades autônomas. No pri-meiro caso, tal como vem sendo colocado pela historiografia queexaminou a questão da escravidão no contexto das ordens religiosas e

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do clero secular6, seria esta uma das regalias de que gozavam os cativosassenhorados pelos homens da Igreja, refletindo o fato de que entre elesexistiria uma relativa preocupação quanto às condições de vida dosplantéis, à promoção de atividades de adestramento profissional, à in-sistência na organização familiar e educação religiosa7. Na segunda cir-cunstância, o domínio da escrita estaria ligado não só às regalias, comotambém às exigências decorrentes do desempenho autônomo de escra-vos que, com seus ofícios especializados, eram obrigados a participarde um mercado de trabalho competitivo e agenciar por conta própriaseus serviços. Assim, os processo criminais associam ao escravo de ga-nho, tipo de trabalhador caracteristicamente urbano, não só a habilidadeem ler e escrever, a posse de papel, lápis e canetas, como também umacerta destreza em contabilizar e administrar ganhos monetários. É o caso,por exemplo, de Pedro, africano de múltiplas habilidades, escravo doarcediago Fidélis Alves de Moraes que, em 1858, diante da suspeita daorigem ilegal de seus pecúlios, listava de memória as obras em que ha-via trabalhado e os correspondentes ganhos que havia adquirido:

Respondeu que desde que veio para essa cidade há seis anos não pára e tem

estado ocupado em diferentes obras em que ganhou dinheiro, sendo na de

Taborda 237 mil-réis, na de Derdeis 19 mil e 400, na do Dr. Anacleto 98 mil

e 800, na casa do falecido Bierrenback 185 mil e 550, na casa de Joaquim

6 Ver, por exemplo, o significativo trabalho de Luiz Gonzaga Piratininga Jr., Dietáriodos escravos de São Bento, São Paulo, HUCITEC; Prefeitura de São Caetano do Sul,1991, no qual o autor, descendente dos antigos escravos de São Bento, realiza agenealogia de várias das famílias originárias de ex-escravos dos beneditinos.

7 Além dos documentos aqui analisados, outros processos mencionam escravos al-fabetizados entre os plantéis pertencentes ao mosteiro de São Bento, ao conventodo Carmo, bem como ao clero secular. São escravos que, na cidade, se empregamtanto nas obras da construção civil, como em funções ligadas aos negócios dasfazendas rurais que os beneditinos, principalmente, ainda possuíam nas adjacênciasda cidade. É lícito lembrar que as condições relativamente diferenciadas de vida ede trabalho que os escravos da Igreja vivenciavam não necessariamente abranda-vam a situação do ser escravo e os antagonismos com seus senhores. Um dos pro-cessos consultados envolveu escravos do convento do Carmo, acusados de assassinaro prior, em 1859, crime que agitou a pequena e aparentemente pacata cidadeescravista que foi São Paulo durante séculos.

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Elias 34 mil e 540, de Sales 785 mil e 600, na de Guilherme Castanho da

Silva 23 mil e 600, que soma 786 mil e 30, tendo mais a acrescentar que na

obra de Pires 17 mil e 280, na casa do Dr. Pinto 39 mil e 40 e na obra de

Joaquim Tamanca 90 mil e 720 [...] [AESP, Justiça versus Pedro, escravo do

Reverendo Archediago Fidélis José de Moraes, 1858].

Mais do que isso, segundo ainda a documentação, a capacidade daescrita estava imbricada a vivências relativamente independentes. A al-fabetização, implicando a aquisição e o uso de um código até entãoprerrogativa dos brancos, adequava-se a valores e necessidades dos ca-tivos e às circunstâncias do ser escravo e transformava-se em elementode afirmação social, não só nas relações com a sociedade mais ampla,mas também naquelas estabelecidas intragrupos sociais; no contextodos relacionamentos existentes entre os dominados e como forma deafirmar as hierarquias existentes entre eles. Era, aliás, segundo as infor-mações trazidas pelos autos, habilidade a ser exibida com bastante or-gulho entre parceiros, homens e mulheres, escravos e forros, da mesmamaneira que faziam questão de ostentar suas armas, suas posses mone-tárias, o usufruto de condições de relativa autonomia, tais como morarsó, agenciar seus trabalhos, ter suas amantes, gozar da liberdade de ir evir. Como decorrência ainda desse atrelamento à autonomia, a escritaaparece como instrumento capaz de legitimar posses, numa sociedadeque, de fato, não reconhecia legalmente as propriedades dos escravos,até pelo menos a lei de 1871. Antes de fugir, o escravo Claro fez questãode deixar seus bens detalhados e avaliados em seus valores correspon-dentes, depositados com um parceiro, escolhido por ele para ser seuprocurador:

Em São Paulo, no dia 21 de fevereiro de 1867:

1 colete de seda preta com uma gravata 9$000

1 dito xale de lã branco 7$000

1 dita calça de seda preta 12$000

1 dita calça de casimira preta 22$000

1 dita calça de brim 9$000

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1 dito paletó de lã 6$000

1 dita camisa de lã vermelha 5$000

4 camisas de morim fino 24$000

2 camisas de baeta 33$000

mais um dito estojo de navalha 3$000

mais um chapéu de cabeça 3$000

Passo esta procuração para o Senhor Francisco Benedito de Assis, pela or-

dem minha. Claro Antônio dos Santos [AESP, A Justiça versus Claro e Pedro,

escravos do cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes, 1868-1872].

Entre os sentidos que venho apontando, o mais significativo é que,embora qualidade individual exercida por poucos (ou por raríssimosescravos), a arte da escrita ligava-se direta ou indiretamente às sociabi-lidades existentes no mundo das cidades, entretidas entre escravos, for-ros, negros nascidos livres, brancos pobres – em uma sociedade e numtempo, como diz Fabre, em que “uns lêem, outros escutam, ou simples-mente vêem, mas todos aproximam-se bem ou mal da escrita, todospercebem-na e experimentam sua presença” (Fabre, 1985, p. 233). As-sim, podendo aparecer ora atrelada a comportamentos solidários, oratransvestida em mercadoria passível de ser comprada e vendida, a arteda escrita e da leitura de alguma forma espraiava-se em direção a gru-pos mais amplos.

Em outras palavras, nas condições da escravidão urbana, em que seintensificavam as trocas e os contatos entre os setores despossuídos dasociedade, homens e mulheres de diversas procedências, ofícios e con-dições, o código da escrita poderia ser ampliado para além dos segmen-tos alfabetizados. Foi desta maneira que se apresentou, num primeirocontato ocorrido nas ruas de São Paulo, a figura do pedreiro Claro navisão atenta de Theodora:

Respondeu que uma vez vindo de um armazém, na Rua de São Gonçalo, em

uma casa dos fundos dos Remédios, a qual estava sendo assoalhada por Cla-

ro viu que ele escrevia e por isso dando seis vinténs, a respondente pediu-lhe

que ele escrevesse uma carta para o filho e marido da respondente e que

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ainda escreveu mais outras [...] [AESP, A Justiça versus Claro e Pedro, es-

cravos do cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes, 1868-1872].

Ou em outro trecho de seu interrogatório, ao ser perguntada de ondeconhecia o escravo, respondia:

De o ver reparando tábuas no terreiro da casa dele no remédio com um papel

na mão na ocasião em que a respondente passava pela rua para ir fazer com-

pras. Perguntada se costumava ir a casa do Cônego Fidélis. Respondeu que

costumava ir até a pouco só. Fazer o que? Respondeu que com papel para lhe

ensinar a como ler e escrever. Quantas cartas mandou escrever por Claro?

Respondeu que cinco, tendo dado seis vinténs para o correio [...] [AESP, idem].

No caso da africana, escrava doméstica, a escrita aparece em seusentido mais corriqueiro e trivial: esperava que, por meio das cartas, seconcretizasse a possibilidade de localizar e entrar em contato com seumarido e seu filho, dos quais havia sido apartada já algum tempo, exi-gindo-lhes parceria na busca e na realização de seus objetivos maiores –reunir a família, juntar o pecúlio necessário para a compra da liberdadee, finalmente, voltar à terra natal, a África. Anexadas aos autos crimi-nais como prova da possível participação da africana num roubo prati-cado na casa em que morava com o seu senhor, as sete cartas de autoriade Claro/Theodora tiveram diferentes destinatários e a maior parte de-las seria endereçada ao marido, cujo destino ela tão-somente intuía.Acompanhar o texto da primeira delas, mantendo-se um pouco a suagrafia, ajuda a esclarecer o sentido geral de todas as demais:

Meu Marido Snr° Luis

Muito heide estimar que esta va achar voçé esteije com saude que meu deseijo

voçe me mande contar para hande voçé esta morando. Quem me arematou

foi um moçó muito rico de campinas o homem chama Marciano quina eu fis

uma pormeça em comgo voçé não esta lembrado da pormeça que voçé que

eu fis voçé não esta lembrado que voçé pai vendeu voçé para se lembra da

pormeça que me avisou de noite eu estava dormindo. Rainha tem compa-

nheiro de fase pormeça e não compir e agora ella esta persa no lmal e poriço

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facillital com santos e poriço voçé veija que a rainha e maior do mundo e esta

persa no mal e não pode se salvar porque São Bendicto perdeu ella no mar

não pode se çalvar e poriço eu não facilito com santos eu espero hinda compir

ainda que esteja com cabelos bracos [...] [AESP, idem]

Tanto a história de Theodora quanto o conteúdo central das cartas re-metem-se a situações e a vivências relativamente comuns entre as popula-ções escravas daquela época, sobretudo as urbanas. Proveniente daÁfrica, a escrava foi inicialmente destinada a uma propriedade ruralescravista, no interior de São Paulo, sendo depois separada do marido(também africano) e do filho e vendidos isoladamente a diferentes pro-prietários. Trazida para a cidade de São Paulo, passou a juntar esforços,argumentos e dinheiro necessários para obter sua alforria. Diante das difi-culdades que encontra – sobretudo frente às insignificantes quantias queconsegue arrecadar, pedindo esmolas ou vendendo água aos soldados atrês vinténs –, visualiza, na reunião da família e no convencimento de seusenhor, as únicas chances de realizar suas intenções. Os argumentos utili-zados em suas comunicações são, em sua maioria, morais e religiosos –reclama ao marido a parceria no cumprimento de uma promessa; exigeigualmente do senhor a responsabilidade na mesma. No conjunto das car-tas, é também bastante significativa aquela que foi enviada ao senhor:

Meu Senhor,

Eu tive hum avizo de noute vinha eme falava dizendo que compriçe a promeça

que promiti de vortar para minha terra esta conga que fala comigo dis que

ceu morendo a qui nao comprarei pormeça que nem eu enxú. Vnce nao cupri

d’esta prorça por meu pai foi compado deu ser vidia porque deos não quer

que se aparte coga de preto de agola meu sinhor Vnce e responsado de ajun-

tar cem eu iso querede me fora quero Vnce de lisensa para eu tira ismola nos

domingo pª hirdando pª sinhor eu ja tenho 4 milreis e vnce ja ten 9 mil reis na

sua mão

iscrava de Vnce – Tiodora [AESP, idem].

Único destinatário que de fato a leu – a carta enviada ao senhorguarda, sintomaticamente, uma estrutura diversa das demais. Sem preâm-

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bulos, nela predominam o sentido exato do conteúdo, as cobranças deTheodora, em exigências que são acompanhadas por argumentos religio-sos claramente utilizados para sensibilizá-lo. Entre eles, aquela contidanuma frase marcante que revela, acima de tudo, a solidez das uniõesfamiliares dos africanos, mesmo diante das intempéries impostas pelaescravidão. Dirigindo-se ao senhor, evoca sua responsabilidade:

por que meu pai foi culpado de eu ser vendida, porque Deus não quer se

aparte Conga de negro de Angola [AESP, idem].

Supondo terem sido escritas por um mesmo escriba (mais provavel-mente por dois, uma vez que as cartas apresentam diferenças de grafia),excluindo a que foi endereçada ao senhor, o texto das demais cartasoferece repetições e características peculiares. Em quase todas elas, ostrechos iniciais e finais apresentam saudações que se repetem, imagina-das possivelmente por quem escreve (Claro) ou intuídas pela própriaescrava – como atributos próprios à natureza de correspondências. São,no entanto, curtas formalidades que introduzem, numa seqüência ime-diata, a afirmação das intenções da escrava:

Muito heide estimar que esta va achar voce esteije com saude que meu deseijo

voçe me mande contar para hande voçé esta morando [...]

Muito estimo a sua saude como pra mim desejo noto bem para vance me faça

o favor de ajuntar [aquele dinheiro]

Eu heide estimar que esta [...] gozando a sua felicidade como para mim desejo

noto bem para mi fazer o favor de vir [falar comigo sem falta] [AESP, idem].

Algumas variações são apresentadas quando se trata de outros des-tinatários, que não os pertencentes ao círculo intimo da escrava; porexemplo, na carta ao irmão do senhor de seu marido os dizeres são maisformais e o movimento da escrita mais lento:

Eu heide estimar que esta va achar o V. S. com muita felicidade com para

mim desejo noto bem que v. s. me faça o favor de mi mandar esta carta [...]

[AESP, idem].

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Além desses detalhes relativos ao conteúdo e à forma da correspon-dência de Theodora, o que se observa em geral é uma escrita que denotanítidas características de oralidade, supostamente decorrente do fato de te-rem sido ditadas. No geral curtas, quase pequenos bilhetes, guardam umritmo todo particular, na quase ausência de pontuações gráficas, nainexistência de pausas, no uso de elementos de ligação (por exemplo, a ex-pressão “no mais”) e, principalmente, na rapidez em que a seqüência de as-suntos vai sendo articulada, como se tratasse de associação livre de idéias:

Meu marido Luís, São Paulo

Muito hei de estimar que Vancê esteja com saúde eu estou aqui na cidade eu

vos escrevo para Vancê se lembra daquela promessa que nos fizemos eu hei

de procurar por você mando muita lembrança para você ajuntar um dinheiro

lá se puder vir falar comigo venha senão puder me manda a resposta e di-

nheiro vá juntando lá mesmo se caso eu me arranjar por aqui mando propio

lá. Dessa vossa mulher Teodora escrava do cônego terra que fui vendida na

vacaria [AESP, idem].

Em outro trecho, a escrava reitera, dessa forma rápida, livre e, so-bretudo, contundente, as exigências ao marido, revelando ao final umacerta desesperança:

[...] para me fazer o favor de vir [...] falar comigo sem falta me falta 198

mireis para a minha liberdade no mais me mande a resposta desta para o

senhor domiciano na cidade de sorocaba sem falta no mais eu estou pagando

como uma escrava deste padre malvado no mais a Deus a Deus ate um dia

que Deus me ajude com sua graça divina misericórdia no mais sou a sua

mulher teodora da cunha dias [AESP, idem].

Na feição de uma escrita que se aproxima de maneira acentuada àoralidade, é de se considerar a imagem de uma negra, relativamenteidosa (levando-se em conta as concepções da época e os desgastes físi-cos inerentes às idades da escravidão) e contadora de histórias, atributoque transparece especialmente quando narra seus sonhos, ou quandoevoca as obrigações religiosas feitas com o marido:

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Eu tive um aviso de noite vinha eme falava dizendo que cumprisse a promes-

sa que prometi de voltar para minha terra esta conga que fala comigo diz que

se eu morrendo aqui não cumprirei promessa que nem eu enxú [...]

[...] Rainha tem companheiro de fazer promessa e não cumpriu e agora ela

está presa no mal e por isso facilita com santos e por isso você veja que a

rainha é maior do mundo e esta presa no mal e não pode se salvar porque São

Benedito perdeu ela no mar [AESP, idem].

Nos termos de uma interpretação mais profunda das cartas, é ne-cessário ter em mente outras ordens de questões. A primeira delas érelativa à referência étnica presente nas observações feitas pela escra-va, levando-se em conta não só sua procedência, como a menção indi-reta à travessia marítima e aos santos afro-brasileiros, ou seja, aelementos que lembram as raízes culturais de um passado que não seapresentava tão distante, nas lembranças e nas expectativas deTheodora. Embora conteúdo de difícil explicitação nas trajetórias bio-gráficas dos escravos brasileiros, a relação entre identidade étnica,vivência da escravidão e elementos culturais retidos e revividos pelosafricanos e seus descendentes no Brasil devem estar sempre pontua-dos, mesmo que resultem, por falta de evidências, em simples conjec-turas. E isso exatamente porque aparecem, direta ou indiretamente,como conteúdos de auto-identificação8. Em sua qualificação, ao serinterrogada pelas autoridades policiais e judiciárias, Theodora fazquestão de afirmar sua africanidade:

Respondeu chamar-se Theodora, ignora sua idade que representa ser 50 a 60

anos, casada com Luís que se acha vendido em Campinas, filha de Balanger

carpinteiro, ignora o nome da mãe, ambos da Costa, Conga, natural da Costa,

escrava do ofendido, cozinheira, não sabe ler nem escrever [AESP, idem].

8 Entre os estudos que investigam a questão da etnicidade africana no Brasil, desta-cam-se aqueles que sublinham a importância das nações diaspóricas e o poder deaglutinação que identidades como a dos nagôs, malês, iorubás e bantos tiveramentre os escravos do Brasil, no século XIX. Matory (1998); Slenes (1995); Soares(2000); Oliveira (1997).

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A segunda ordem de questões diz respeito às fronteiras entre oralidadee escrita. Na perspectiva dos novos estudos, bem como na produçãosobre história da cultura e da leitura, a tendência é que sejam diluídas,cada vez mais, as distâncias entre cultura oral e cultura escrita, entre aliteratura erudita e o universo de tradições populares, fronteiras estasque, no geral, haviam sido maximizadas pelas vertentes mais tradicio-nais da etnologia e da antropologia9. À luz dessa linha de interpretação,expressões da cultura escrita que circulavam entre escravos e livres po-bres, habitantes da cidade, devem ser entendidas em suas intersecções aoutros aspectos da sociabilidade urbana, entre eles a maneira pela qualas notícias se espalhavam entre essas populações, os hábitos de leituraem voz alta, o diz-que-diz, o ouvir falar, as novidades que iam e vinhamdas cidades em direção às fazendas do interior e vice-versa, propagadasnos novos ritmos trazidos pela estrada de ferro. Fazendo ampliar a per-cepção dos direitos que tinham na época, essas dimensões devem sercompreendidas inseridas numa conjuntura particularmente agitada,marcada pelas leis emancipacionistas (das quais os escravos tomavamrapidamente conhecimento), pelo aumento das agitações da escravaria(em revoltas que tendiam a se espalhar, sobretudo nas últimas décadasda escravidão) e pelo crescente comprometimento de largas parcelas dasociedade urbana com o movimento abolicionista (Machado, 1994). Se,nos tempos do Brasil colonial e no Império, a relação entre cultura orale cultura escrita era mediatizada pelos bandos e pregões lidos nas pra-ças públicas, a partir da segunda metade do século XIX, as informaçõesespalhavam-se através das linhas de trem e da imprensa que ampliava oconhecimento e a interpretação das notícias. São aspectos que devemestar referidos nos esforços de historicizar hábitos de leitura e de escritaentre escravos e escravas, crioulos e africanos que viveram nessa época.

Nessa direção, dilui-se cada vez mais a idéia de escravos apartadosdo contexto político e dos movimentos que resultaram a derrocada finaldo regime da escravidão. A reintegração dos escravos à história, como

9 Ver além do estudo de Albert, anteriormente citado, a produção sobre a literaturade cordel em Portugal e no Brasil. Entre outros estudos: Abreu (1999, 2000;Galvão, 2001).

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agentes, o reconhecimento dos níveis de consciência e de atuação quetiveram e nos quais agiram, o pressuposto de que, em certo sentido, eleseram senhores de si, implica ao final uma revisão profunda dos chama-dos efeitos negativos ou maléficos da escravidão – e que vinham seconvertendo em limitações à interpretação, sobretudo quando observa-dos à luz dos comportamentos dos ex-escravos na vivência da liberda-de. Na ótica da história social dos inícios do século XX, maisespecificamente no que diz respeito à história da educação10, o que deveser ressaltado é que a Abolição, mesmo significando um corte profundocom a situação pregressa não significou a ruptura total com as experiên-cias vividas nos limites e nas possibilidades do ser escravo. A idéia deruptura que por tanto tempo impregnou os estudos sobre a modernidade,numa sociedade formada exclusivamente por homens livres, cidadãosem potencial, trazia implícito o anseio em escamotear escravos e forroscomo grupos socialmente ativos, transformando-os em seres destituí-dos de experiências historicamente constituídas. No sentido oposto, asevidências documentais sugerem que a busca em reorganizar famílias eparentelas, a procura por territórios sociais onde preexistiam coletivida-des de forros, e principalmente o pertencimento a associações culturais,educacionais e religiosas, demarcaram linhas de continuidade entrevivências concebidas, no geral, opostas. É claro que a idéia da liberdadee os meios de concretizá-la passavam necessariamente por aquilo a quehaviam sido impedidos como escravos, mas era referenciada tambémpor aprendizados sociais anteriormente adquiridos.

10 Sobre a questão dos processos de escolarização e alfabetização das populaçõesnegras, especificamente na cidade de São Paulo ver, entre outros: Demartini (1989).Sobre as direções historiográficas no tratamento do tema, ver Regina Pahim Pinto.“A educação do negro – uma revisão da bibliografia”. Cadernos de Pesquisa, Fun-dação Carlos Chagas, São Paulo, n. 62, pp. 3-34, 1987.

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Educação e escravidão:um desafio para a análise historiográfica

Marcus Vinícius Fonseca*

Neste artigo realizamos uma análise teórica que detecta uma certa tensão entre educaçãoe escravidão na produção historiográfica. Ao tratar dessa tensão, procuramos defender aidéia de que o processo de formação do trabalhador escravo pode ser entendido comouma prática educativa. Em uma dimensão mais geral, realizamos um esforço para aproxi-mar as discussões relativas à história da escravidão com a história da educação, tentandocompor uma perspectiva analítica que possa contribuir para se ampliar a compreensão doprocesso de organização da sociedade escravista.HISTÓRIA; ESCRAVIDÃO; EDUCAÇÃO; TRABALHO; CRIANÇA ESCRAVA.

This paper is a work of abstracts analysis that reveal a tense between the education andthe slavery in the history production. It defense the idea that formation process of theslave worker it may be understanding how a education pratic.The debate approximate theanalysis about slavery history whit education history introducing an analytic perspectivethat permit to extend the comprehension of slave society.HISTORY; SLAVERY; EDUCATION; WORK; CHILD SLAVE.

* Mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de MinasGerais (UFMG) e professor de filosofia da educação na Fundação Mineira de Edu-cação e Cultura (FUMEC).

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Introdução

Este artigo tem como objetivo estabelecer uma problematização doprocesso de formação dos trabalhadores escravos a partir da idéia deeducação. Para tal, procuramos estabelecer uma relação entre escravi-dão e educação, tentando demonstrar que é possível integrar a dimensãoeducacional aos modelos explicativos relativos à sociedade escravista.

Nessa perspectiva, a argumentação percorre duas dimensões espe-cíficas: primeiro, procura realizar uma crítica a alguns estudos referen-tes à escravidão; segundo, busca empreender a análise de um conceitode educação que possa dar alguma inteligibilidade ao processo de for-mação dos trabalhadores escravos. Do ponto de vista da crítica aos estu-dos atinentes à escravidão, tenta demonstrar que a educação pode serincorporada aos enfoques que desde o início da década de 1980 vêmcriando novas formas de entendimento da escravidão no Brasil.

No que se refere ao conceito de educação, a argumentação visa in-vestigar a possibilidade de aplicação do conceito de educação tradicio-nal, cunhado pelo historiador Justino Magalhães (1996) em sua análiseacerca da sociedade portuguesa entre os séculos XVI e XIX. É atravésdesse conceito que buscaremos estabelecer algumas possibilidades decompreensão da formação dos trabalhadores escravos como um proces-so que pode ser interpretado como uma prática educacional.

É preciso destacar que se pretende aqui estabelecer uma aproxima-ção de forma bastante inicial entre escravidão e educação. Trata-se dereflexões provisórias e preliminares que necessitam de um desenvolvi-mento mais rigoroso e, sobretudo, que sejam submetidas a confirma-ções empíricas1. No entanto, esse caráter preliminar não invalida a

1 A reflexão que aqui desenvolvemos é teórica, mas é proveniente de duas pesquisasque trataram da relação entre educação e escravidão: a primeira, uma dissertaçãode mestrado – defendida junto no programa de pós-graduação da Faculdade deEducação da UFMG –, em que foi analisada uma política pública voltada para aeducação dos negros durante a abolição da escravidão no Brasil; a segunda, umapesquisa realizada no concurso “Os negros e a educação”, promovido pela ANPED eAção Educativa, na qual se identifica o processo de abolição da escravidão como o

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tentativa de aproximar esses dois campos, pois reuni-los poderá repre-sentar a articulação de dois conceitos fundamentais para compreenderos mecanismos de dominação que se encontram na base do processo deconstrução da sociedade brasileira.

Apontamentos para o estabelecimento de umarelação entre escravidão e educação

Não é comum falar de educação quando se trata de escravos. Em umcerto sentido, isso se justifica por uma tradição de entendimento tipica-mente moderna que tende a associar a educação ao processo de esco-larização. As práticas educativas voltadas para a formação dos trabalha-dores escravos em nada se assemelhavam à escolarização, mas a educaçãonão é prerrogativa da escola. Antes de o modelo escolar tornar-se espaçoprivilegiado da atividade educacional, outras formas de educação foramresponsáveis pela incorporação das novas gerações às diversas formas deorganização das sociedades. Justino Magalhães, abordando essa questãode uma perspectiva histórica centrada na longa duração, afirma que,“como ponto de partida, uma cronologia do fenômeno escolar, desenvol-vida na longa duração e centrada nas sociedades ocidentais, não deixaráde compreender as seguintes fases: uma educação sem escola; uma edu-cação pela escola; uma educação fora da escola. É nos dois últimos sécu-los que se observa uma expansão e uma universalização dos processosescolares, no entanto, desde os finais da Idade Média que o modelo esco-lar se vem firmando como principal meio de informação e formação dasnovas gerações” (Magalhães, 1996, p. 10).

Ao fazer referência à educação dos escravos, devemos ter em menteas práticas educacionais que eram anteriores ao modelo escolar e quenão possuíam qualquer semelhança com as práticas generalizadas a par-tir do processo de escolarização.

período em que a educação moderna começou a ser aplicada em relação aos negrosno Brasil. Os dois trabalhos trataram do processo de abolição da escravidão, e pos-sibilitaram perceber que a educação não era algo alheio à sociedade escravista.

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Quanto aos escravos, é preciso deixar bem claro que trataremos dascrianças nascidas como escravas no Brasil. Entendemos que a concep-ção de educação que tentaremos relacionar à escravidão diz respeitosomente às crianças que nasceram escravas e foram socializadas a partirdessa condição. No que se refere aos negros que foram escravizados etrazidos da África, acreditamos que se faz necessária uma análise espe-cífica quanto ao seu processo de incorporação à sociedade escravista,pois esta se diferenciava do processo através do qual se dava a sociali-zação da criança que havia nascido como escrava no Brasil. Parte dessadiferença atribuímos ao fato de que as crianças nascidas como escravasdeveriam ser socializadas a partir da sua própria condição de elementoservil. Elas não haviam conhecido a liberdade, tampouco um outro mo-delo de organização social. Os que foram trazidos da África eram naverdade ressocializados, e esse processo se dava em conflito com todasas referências que traziam de um mundo onde haviam nascido comoseres livres2.

Nesse sentido, as crianças escravas eram indivíduos que, como qual-quer outro, em qualquer tempo e lugar, nasciam em um mundo que lhesera completamente estranho. A educação era o instrumento que permitiaum reconhecimento deste mundo tal como se encontrava organizado,ou, como afirma Hannah Arendt, na sua caracterização do fenômenoeducacional: “a educação está entre as atividades mais elementares enecessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, po-rém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novosseres humanos” (Arendt, 1972, p. 234). Esses seres humanos devem serincorporados à sociedade e, independentemente da forma como esta es-teja organizada, essa incorporação se dá através da educação, que, con-forme destaca a autora, é uma atividade elementar no processo deorganização de qualquer sociedade.

Assim, de forma semelhante a qualquer criança, nascida em qualquertempo e lugar, a que nascia como escrava chegava a uma sociedade quelhe era absolutamente estranha: desconhecia a sua organização, suas re-

2 Para uma análise acerca do processo de incorporação dos africanos à sociedadeescravista, ver Mattoso (1982).

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gras e não tinha conhecimento da sua condição de um ser humano redu-zido juridicamente à condição de objeto e que poderia ser utilizado comoinstrumento de trabalho por alguém que ela deveria chamar de senhor.

A criança escrava, para o pleno cumprimento das obrigações ine-rentes à sua condição, deveria ser preparada para tomar parte das injus-tas relações sociais que caracterizavam o mundo escravista, e acredita-mos que essa preparação ocorria através de procedimentos que podemser entendidos como educacionais3.

A formação do trabalhador escravo: adestramento,violência ou educação?

O processo responsável pela incorporação das crianças escravas àsociedade tem sido muitas vezes desconsiderado pelos estudos que sevoltam para o entendimento do escravismo no Brasil. Quando não édesconsiderado, geralmente é mal compreendido, resultando em abor-dagens que tendem a tratar a questão do processo de formação dos es-cravos com base em procedimentos típicos da relação estímulo-resposta.Esse tipo de abordagem pode ser caracterizado pelo estudo de JoséRoberto Goes e Manolo Florentino sobre as crianças escravas: “Por voltados 12 anos, o adestramento que as tornava adultos estava se concluin-do. Nesta idade os meninos e as meninas começavam a trazer a profis-são por sobrenome: Chico Roça, João Pastor, Ana Mucama” (Goes &Florentino, 1999, p. 184, grifo meu).

A maneira como estes autores registram a inserção da criança es-crava no mundo dos adultos restringe a possibilidade de caracterizá-locomo uma atividade educacional. Isso ocorre porque afirmar que o pro-

3 Pode-se dizer que o índice de natalidade não era o elemento central do processo dereposição de mão-de-obra na sociedade escravista, pois o tráfico de escravos afri-canos foi, até por volta de 1850, o elemento responsável pela introdução de novosescravos na sociedade brasileira. No entanto, tal fato não torna sem importância aquestão relativa à educação da criança escrava e pode até mesmo ajudar a compreen-der aspectos econômicos do escravismo, como o problema apontado por Mattoso(1982) a respeito do elevado preço de um escravo nascido no Brasil.

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cesso de aprendizagem das crianças escravas estava reduzido a um ades-tramento, significa qualificá-lo como algo que, pode-se dizer, se resu-me ao condicionamento de habilidades manuais que devem ser exerci-tadas docilmente4.

No entanto, era impossível que alguém viesse a se tornar Chico Roça,João Pastor ou Ana Mucama, por mero adestramento. As habilidadesque passavam a ser incorporadas ao próprio nome dessas crianças nãopodiam ser aprendidas exclusivamente por condicionamento, e, emborafosse o trabalho um aspecto central do aprendizado, não era a únicacoisa que lhes cabia dominar para desempenharem a função social im-posta pelo mundo escravista5.

Os escravos, mesmo reduzidos juridicamente à condição de obje-tos, não deixavam de ser seres humanos. Na inserção gradativa dessesseres humanos no cotidiano da sociedade escravista, havia estratégiasque objetivavam sua preparação para travar um conjunto de relaçõessociais da qual, em parte, dependia a própria estabilidade do escravismo.Essas estratégias não podem ser reduzidas a um adestramento, devemser entendidas a partir de um conceito mais amplo de educação, ou seja,comportando ritos e finalidades – relativamente controladas6 – que pro-

4 Goes & Florentino chegam a intuir uma pedagogia utilizada em relação à criançaescrava, mas, o conceito de pedagogia senhorial por eles utilizado não ganhacontornos definidos, tornando-se ainda mais obscuro quando afirmam que “o ades-tramento da criança também se fazia pelo suplício” (Goes & Florentino, 1999,p. 185). Nesse sentido, o conceito de pedagogia centrado na ação dos senhorestermina por representar a educação como um adestramento.

5 O termo adestramento é uma representação conceitual freqüentemente utilizada paracaracterizar o treinamento de animais, mas não é algo estranho aos debates educa-cionais: “Em educação, o termo tem sido utilizado para designar o ato ou o efeito dahabituação de alguém fazer docilmente e regularmente um programa preciso e pres-crito. Com esse sentido, a formação de habilidades esteve, durante muito tempo,vinculada à idéia de desenvolvimento da destreza manual, da agilidade e da capaci-dade de se submeter a uma dada disciplina” (Fidalgo & Machado, 2000, p. 15).

6 Ao falarmos de ritos educacionais relativamente controlados, referimo-nos não sóaos senhores, mas também à comunidade escrava. No entanto, a análise desenvol-vida neste artigo estará mais voltada para o entendimento de aspectos atissente àrelação da criança escrava com o mundo dos senhores, pois este é um dos focosprivilegiados da história da escravidão no Brasil. Mas isso não quer dizer que ossenhores eram os únicos a tomar parte na educação da criança escrava, eram apenas

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curavam garantir uma função específica para o trabalhador cativo naorganização e no funcionamento da sociedade escravista.

Pode-se dizer que é algo estranho acreditar que o escravo não per-corria todo um processo de aprendizado sobre a sua condição, ou seja, odoloroso processo que buscava criar um indivíduo com característicasbastante específicas.

Ignorar os processos educacionais que perpassavam este movimen-to de construção social do trabalhador escravo implica a crença no ades-tramento como sua única instância formativa e o estabelecimento daviolência física como instrumento privilegiado para subjugá-lo comocativo. A noção de adestramento está intimamente ligada à excessivavalorização que a violência adquiriu nos modelos explicativos acercada sociedade escravista. Sidney Chalhoub, em análise acerca da produ-ção teórica relativa à escravidão, qualifica estas interpretações de teoriado escravo-coisa:

Além da demonstração da violência cotidiana das relações escravistas, esses

estudos concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cati-

veiro haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem

bem sucedidos na vida em liberdade. A escravidão teria destruído os hábitos

de vida familiar dos negros, os teria tornado incapazes de se disciplinarem

para o trabalho, sendo-lhes estranhas a idéia de acumulação de riqueza. Houve

mesmo quem afirmasse que o homem formado dentro desse sistema social (a

escravidão) apresentava um rudimentar desenvolvimento mental. Essas afir-

mações a respeito dos negros se fundamentavam naquilo que poderíamos

chamar de teoria do escravo-coisa [Chalhoub, 1989, p. 38].

Essa posição apresentada por Chalhoub (1989) visa criticar as inter-pretações que negam qualquer dimensão subjetiva na existência dos ne-gros escravizados, conferindo-lhes uma incapacidade de pensar o mundoa partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídospelos senhores, fazendo dos escravos um mero reflexo da escravidão.

alguns dos sujeitos de um complexo processo educacional que, possivelmente, ti-nha na própria comunidade escrava um dos seus principais agentes.

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A teoria do escravo-coisa é uma perspectiva teórica que surgiu emreação às posições defendidas por Gilberto Freyre em relação à escravi-dão. Gilberto Freyre, em seu famoso livro Casa-grande e senzala, apre-sentou uma visão romântica da escravidão, minimizando os conflitosraciais e praticamente retirando a violência do contexto da relação entresenhores e escravos. Rejeitando as teses de Gilberto Freyre, vários estu-dos voltaram-se para o mundo escravista, colocando em destaque a vio-lência como um elemento imperativo naquela organização social,trazendo, de forma implícita, a idéia de que a violência física era o ele-mento responsável pela formação dos escravos.

Um dos principais partidários dessa tese e do movimento de reaçãoàs idéias de Gilberto Freyre foi Jacob Gorender. Coube também a ele areação contra o posicionamento inovador defendido, a partir dos anosde 1980, por autores como Sidney Chalhoub e Kátia Mattoso. Em seulivro A escravidão reabilitada (1991), Jacob Gorender não poupa críti-cas às novas abordagens que a violência recebe nas interpretações acer-ca da sociedade escravista. Numa análise criteriosa da produção sobre ahistória da escravidão realizada a partir dos anos de 1980, cujo marcopor ele estabelecido é o livro de Kátia Mattoso, Ser escravo no Brasil(1982), caracteriza dessa forma as novas abordagens:

Mas, se a historiografia brasileira pretensamente nova quis recuperar a sub-

jetividade autônoma do escravo, não o fez para destacar as reações anti-

sistêmicas, como os levantes, quilombos, atentados e fugas. Ao contrário,

subiram ao primeiro plano as estratégias cotidianas e suaves de acomodação

do escravo ao sistema escravocrata. Recuperou-se a subjetividade do escra-

vo para fazê-lo agente voluntário da reconciliação com a escravidão

[Gorender, 1991].

Para Gorender, o esforço de recuperar a subjetividade do “escravocomum” em seu cotidiano, e não necessariamente do escravo que dei-xou marcas flagrantes de sua rebeldia, não representa uma reinterpretaçãodo agir político, mas um retorno a Gilberto Freyre e uma reabilitação daescravidão como uma instituição em que senhores e escravos coexisti-ram sem conflitos.

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Igualar o posicionamento dessa nova perspectiva da historiografiada escravidão com a posição de Gilberto Freyre é um equívoco e umexagero. Trata-se de um equívoco porque não se pretende minimizar osconflitos, pois o que historiadores como Chalhoub tem demonstrado éque os escravos estavam longe de aceitarem a escravidão, mas, a reaçãodestes não se dava necessariamente através da organização de revoltas,ocorria sim em todos espaços onde os negros escravizados estavam pre-sentes e, por vezes, utilizando as próprias possibilidades encontradasdentro da sociedade escravista. Não se trata da desqualificação dos mo-vimentos quilombolas e nem de outros movimentos, como a Revoltados Malês, e sim da demonstração de que o escravo, no seu cotidiano ea partir das mais diversas possibilidades, reagia às condições difíceisque lhe impunha o mundo escravista.

Quanto ao exagero, podemos dizer que estamos longe de encontrarqualquer semelhança entre os níveis de resistência que essa historiografiaapresenta e a visão construída por Freyre. Ao recuperar a subjetividadedo “escravo comum”, percebe-se que revolta e rebeldia não foram prer-rogativas de alguns poucos escravos que tiveram a possibilidade de cons-truir movimentos “organizados”, mas uma constante e que pode serencontrada em vários escravos, mesmo naqueles que não nos seriamúteis para alimentar o heroísmo, como mito que povoa o nosso imaginá-rio e a própria narrativa histórica. Essa idéia pode ser entendida de for-ma clara na passagem em que Chalhoub contrapõe a figura de Zumbidos Palmares e a da princesa Isabel:

Algumas pessoas ficarão decepcionadas com as opções desses escravos que

lutaram pela liberdade, certamente de modo resoluto, mas sem terem se tor-

nado abertamente rebeldes como Zumbi. Essa é uma decepção que precisa-

mos aceitar e pensar sobre ela. Pois para cada Zumbi existiram com certeza

um sem número de escravos que, longe de estarem passivos ou conformados

com sua situação, procuraram mudar sua condição de acordo com estratégias

mais ou menos previstas na sociedade a qual viviam. Mais do que isso, pres-

sionaram pela mudança, em benefício de aspectos institucionais daquela so-

ciedade [...] na verdade, combater no campo de possibilidades largamente

mapeados pelos adversários é exatamente o que fazem ao insistirem em Zumbi

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e na rebeldia negra. A inversão de mitos resulta antes de tudo em mitos inver-

tidos, e estes repetem os originais em aspectos essenciais. Assim, o fato é

que, com princesa ou com Zumbi, as opções de luta pela liberdade de uma

massa enorme de negros ficam arrogantemente condenados à sarjeta da his-

tória [Chalhoub, 1989, p. 40].

O que é aqui colocado em destaque é o fato de que a resistência negracontra a escravidão esteve no horizonte da ação dos escravos em todo ocotidiano da sociedade escravista e que essas ações não são menos signi-ficativas que a rebeldia declarada, como no caso de Zumbi. Eleger a açãode escravos que se rebelaram como Zumbi e desqualificar a ação dos es-cravos que mantiveram seu descontentamento no limite de possibilidadescolocadas pela sociedade escravista é desqualificar a grande maioria dosescravos que viveram durante a escravidão e privilegiar formas de resis-tências que, sem dúvida, foram importantes, mas que talvez não foram asmais utilizadas pela maioria dos cativos que viveram no Brasil.

Nada do que apresentamos anteriormente pode ser comparado à vi-são romântica construída por Gilberto Freyre. Portanto, trata-se de umexagero a afirmação de que investigar as estratégias dos escravos combase no cotidiano é uma reabilitação da escravidão.

Esse debate tem implicações para a abordagem da escravidão a par-tir da educação, pois é inegável a presença da violência como mecanis-mo de coerção sobre os escravos, mas sua visão como elemento presenteno cotidiano da sociedade escravista deve ser relativizada, abrindo es-paço para análises que possibilitem um entendimento maior dos proces-sos sociais que envolviam a relação entre senhores e escravos, até mesmodo ponto de vista educacional.

Para uma caracterização do processo de relativização da violência,podemos tomar como ponto de partida a própria obra apontada por JacobGorender como um marco de mudança nas análises sobre a escravidãono Brasil, ou seja, o livro Ser escravo no Brasil, de Kátia Mattoso:

Os castigos corporais também servem para manter a ordem através do exem-

plo. Mas sua aplicação não fazia parte absolutamente da vida diária do escra-

vo. Ninguém nega tenha havido senhores ou senhoras sádicos. Contudo, de

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modo geral, nem o senhor nem o feitor passeiam entre os escravos, chicote

na mão, para repreender qualquer pecadilho. Os meios utilizados para asse-

gurar a obediência no trabalho e a humildade nas relações com senhores

são mais sutis. O senhor procura fazer os escravos ligarem-se a ele por laços

afetivos, tenta, em primeiro lugar, inspirar-lhe consideração e quando o tra-

balho é bem feito termina por gerar um respeito mútuo. O chicote, o tronco,

a máscara de ferro, ou o pelourinho, são o último recurso dos senhores inca-

pazes de manter a disciplina. São utilizados somente em caso de inadaptação

do escravo à sua condição [Mattoso, 1982, p. 117, grifo meu].

Todos esses procedimentos que buscavam fazer com que a violênciaficasse de fora da relação direta entre senhor e escravo consistem em umconjunto de elementos manipulados pelos senhores e que, desde a infân-cia da criança escrava, objetivava sua preparação para adequá-la às rela-ções que permeariam sua existência na condição de trabalhador cativo.

Segundo o estudo de Chalhoub (1990), mesmo quando a violênciaemergia como um ato do senhor dirigido a corrigir o escravo, ela nãosurgia aleatoriamente. Fazia-se necessário um motivo que fosse, peran-te o escravo, reconhecido como justo. Caso fosse a violência exercidade forma exagerada ou injustificada, poderia representar um perigo parasenhores e feitores que se encontravam, na maioria das vezes, em me-nor número diante do plantel de trabalhadores escravos.

Essa noção de castigo por motivo justo é demonstrada pelo autorpela análise de uma série de processos judiciais envolvendo escravosque foram acusados de cometer delitos que os levaram perante a Justiça.“Eles (os escravos) aprenderam a fazer valer certos direitos que, mesmose compreendidos de maneira flexível, eram conquistas suas que preci-savam ser respeitadas para que seu cativeiro tivesse continuidade: suasrelações afetivas tinham de ser consideradas de alguma forma; os casti-gos precisavam ser moderados e aplicados por motivos justos” (grifomeu). E ainda,

Manoel Moçambique deu uma facada no caxeiro da casa de negócios de seu

senhor porque este lhe havia castigado sem motivo justo. O caxeiro achava

que o negro havia se demorado na rua vadiando ao ir buscar água; o escravo,

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contudo, explicou que qualquer pequena demora no seu serviço fora devida a

ter de esperar que o Inspetor do Chafariz abrisse as torneiras. Consumada a

agressão, Manoel Moçambique saiu com destino a Polícia [Chalhoub, 1990,

pp. 59-177, grifo meu].

O escravo envolvido nessa querela judicial revelou que tinha a no-ção precisa da ligação entre castigo e justiça, e também que possuíaexata dimensão do seu ato, pois dirigiu-se à polícia após ter cometido aagressão. Fora essa história, Chalhoub (1990) coloca em destaque vá-rias outras cujo teor era o mesmo: escravos que cometeram atos de vio-lência por terem sido submetidos a castigos entendidos por eles comoinjustos.

Aqui a violência se encontra no mesmo lugar que a colocou KátiaMattoso: não se tratava de um recurso a ser utilizado aleatoriamente noprocesso de disciplina e correção do escravo.

Explorando uma outra dimensão da relação entre senhores e escravos,Marilene Rosa N. da Silva (1988) também interpreta de forma diferenteo problema da violência na sociedade escravista. De acordo com essaautora – em estudo sobre os escravos de ganho no Rio de Janeiro –, arelação entre senhores e escravos era permeada de acordos e negociaçõesque implicavam a própria estabilidade do escravismo.

No Brasil como em qualquer outra parte da América, quer seja nos campos

ou nas cidades, sempre existiram acordos não revelados [...] Esta afirmação

pode ser facilmente comprovada pelo simples exame de participação quanti-

tativa da população escrava no Brasil, em comparação com a branca, livre

dominante. Percebe-se que, além do tempo histórico inegável das revoltas,

existiu um tempo de longa duração das normalidades. O escravo enfrentava

o sistema muitas vezes com as armas oferecidas pelo próprio sistema – o

corpo-mole, o boicote. Relativamente poucos assassinaram seus senhores,

ou participaram de rebeliões, enquanto a maioria, por estratégia, invenção ou

sorte, ia vivendo. Acreditamos que seria impossível manter o sistema apenas

pela repressão; não haveria feitores bastantes para controlar um número tão

grande de escravos. Era através de acordos implícitos nas relações que se

mantinha o sistema [Silva, 1988, p. 112].

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Na perspectiva apontada por essa autora, os acordos eram elemen-tos essenciais para a manutenção do sistema escravista. Era através de-les que a violência ficava em segundo plano, pois, como mecanismo decoerção, a violência não era algo que o escravo atrairia gratuitamentesobre si. É algo bastante razoável acreditar que o escravo procurava detodas as formas se esquivar da correção por meio da violência física. Noentanto, não se tratava de instrumento que oferecia garantias aos senho-res, e, por mais sádicos que esses pudessem ser, usar a violência físicaconstantemente poderia representar perigos e estimular revoltas entreos próprios escravos. Dessa forma, para não ter que se servir freqüen-temente da violência, os acordos entravam em cena, e tanto senhorescomo escravos aceitavam tal fato em nome de uma certa “estabilidade”no domínio das relações sociais travadas no mundo escravista. É o queMarilene Rosa N. da Silva (1988) demonstra em relação aos chamadosescravos de ganho, que, em troca do pagamento de uma diária ao se-nhor, adquiriam uma certa liberdade de movimentação na cidade.

Entretanto, não é somente em relação ao escravo de ganho, comoum trabalhador ligado ao mundo urbano, que se verifica a possibilidadeda existência de acordos. O mesmo fato é registrado em relação ao espa-ço rural, onde existiram casos de escravos que possuíam concessão dossenhores para cultivar pequenas partes de terras como forma de comple-mento para sua alimentação, ou da realização de um pecúlio através dacomercialização do excedente (Cardoso, 1988).

Em ambos os casos, há um acordo implícito em que os escravos,com a concessão dos senhores, servem-se de prerrogativas que não es-tariam necessariamente embutidas naquilo que caracterizava a relaçãode dominação na sociedade escravista. Se os escravos de ganho adqui-riam liberdade de movimentação, ou se os escravos que plantavam nasterras dos senhores adquiriam direito de utilização ou comercializaçãodo que era por eles produzido, era através de acordos que se chegava atal condição. Nesses acordos as duas partes faziam concessões visandoa interesses concretos: no caso dos senhores, segurança e produtivida-de; no caso dos escravos, a melhoria da sua existência como trabalhadorcativo e a ampliação de sua margem de liberdade.

A partir do momento que a historiografia começa a considerar essaspossibilidades de entendimento, em que são admitidos acordos e a violên-

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cia passa a ser relativizada na relação entre senhores e escravos, somoslevados a construir uma visão bem mais complexa do mundo escravista.

Para dar conta dessa complexidade, é necessário incorporar a edu-cação no entendimento dessas relações. Isso porque, primeiro, não hásociedade, por mais cruel e injusta que seja, que não utilize práticaseducacionais; segundo, é difícil pensar que os trabalhadores cativosadentravam as relações que caracterizavam o mundo escravista sem umperíodo de preparação que, em última instância, visava tornar a escra-vidão uma instituição legítima perante os próprios escravos.

O processo de inserção dos negros escravizados nas duras relaçõespropiciadas pela escravidão era realizado por procedimentos que tinhamcomo objetivo prepará-los para ser, ao mesmo tempo, submissos e pro-dutivos. Acreditamos que esses procedimentos podem ser entendidoscomo estratégias educacionais que buscavam introduzir nos escravos ashabilidades necessárias à sua atuação como trabalhador e a naturaliza-ção das relações entre dominador e dominado.

Nesse sentido, as práticas educativas podem ser tomadas como par-te do processo de dominação dos escravos. Admitir essa possibilidadenão implica tornar a escravidão mais amena, tampouco representa umaabordagem que vá distender os mecanismos de dominação que eramutilizados em relação aos escravos. Muito pelo contrário, acreditamosque abordar o mundo escravista a partir da educação significa a possibi-lidade de compreensão dessa dominação de uma forma mais ampla e autilização de uma idéia que é chave no entendimento de qualquer formade organização social, pois é preciso sempre lembrar que não há socie-dade que não utilize práticas educativas que respondam por sua organi-zação e seu funcionamento.

O conceito de educação tradicional e a formaçãodo trabalhador escravo

Com base na problematização que até aqui realizamos acerca dasociedade escravista, podemos destacar alguns elementos que foram tra-tados anteriormente e que permitem explicitar um conceito de educação

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que seja capaz de revestir de sentido o processo de formação do traba-lhador escravo: primeiro, trata-se de algo absolutamente inadequadoentender a inserção das crianças escravas no mundo dos adultos comoum simples adestramento; segundo, a violência, como elemento res-ponsável pelo processo de formação do escravo necessita ser relativizada;por fim, a educação, como atividade básica de qualquer forma de orga-nização social, deve ser utilizada no entendimento das relações que ca-racterizavam o mundo escravista, reunindo os diversos procedimentosatravés do qual o escravo era educado, ou seja, não procede privilegiarapenas um elemento em detrimento dos demais. Os escravos eram edu-cados por um conjunto de procedimentos que apontam para a existênciade um modelo educacional com características bastante específicas.

Gostaríamos mais uma vez de afirmar que aqui não responderemosa essa necessidade de estabelecer uma relação categórica entre escravi-dão e educação. Isso ocorre porque uma abordagem que se proponha aenfrentar essa questão – nos seus mais diversos aspectos, inclusive asespecificidades regionais da escravidão no Brasil – exige procedimen-tos de análise que estão além daqueles que utilizamos na elaboraçãodesta reflexão que, como colocamos anteriormente, é ainda inicial. Aquinos limitamos a problematizar a produção teórica a respeito do processode formação dos escravos, tentando estabelecer algumas possibilidadesque permitam entendê-lo como uma atividade educacional.

Investigar o processo de formação dos trabalhadores escravos, le-vando em conta a questão educacional, é algo importante para que estapossa ser tomada como parte dos instrumentos de análise utilizados nacompreensão da sociedade escravista, possibilitando uma visão de con-junto da forma como se articulavam as práticas de dominação esubalternização dos negros escravizados nessa sociedade.

Para conseguirmos uma aproximação com essas práticas, é necessá-rio tratar conceitualmente a questão. Precisamos nos servir de uma con-cepção educacional que possa dar alguma inteligibilidade ao processode formação dos trabalhadores escravos.

Nesse sentido, podemos nos aproximar do conceito de educaçãotradicional utilizado por Justino Magalhães (1996). Segundo esse au-tor, as práticas educativas que antecederam às modernas concepçõeseducacionais caracterizavam-se por sua ligação com o mundo privado:

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Esses processos educativos decorrem em espaços familiares, nas oficinas e

locais de trabalho, nas praças e lugares públicos, nas festas, nos jogos, nos

actos de culto e sob uma acção pedagógica, ora mais, ora menos organizada

e formal. Deste modo os pais, ou quem os substitui, os eclesiásticos, os mes-

tres da corporação, os responsáveis pelos destinos da comunidade, os órgãos

do poder, não deixam de desempenhar importantes funções educativas [Ma-

galhães, 1996, p. 10].

Com a emergência das modernas concepções educacionais – cujamarca se encontra na escolarização –, o espaço privado não deixa de sereducativo, mas seu campo de ação “tende por conseqüência a reduzir-secom a progressiva escolarização dos saberes, práticas, competências eestratégias de socialização e por outro lado com maior intelectualizaçãodas atitudes e ações do quotidiano” (idem, ibidem).

Esses aspectos colocados em destaque por Justino Magalhães a res-peito da educação tradicional e sua ênfase no espaço privado podemrevestir de sentido o processo de educação dos escravos. No entanto,esse conceito não pode ser usado indiscriminadamente em relação aosescravos, tampouco em relação ao Brasil durante a Colônia e o Império.É preciso submetê-lo a uma certa crítica e situá-lo de acordo com asprincipais características que davam forma à sociedade brasileira.

Assim, para tornar o conceito válido, é preciso, em primeiro lugar, levarem consideração o fato de que os escravos eram parte de um grupo comcaracterísticas muito peculiares, como, por exemplo, no que diz respeito àcomposição da família, a relação com o mundo do trabalho e ao próprioespaço privado, onde praticamente encerrava toda sua existência. Grandeparte da vida dos escravos transcorria no espaço privado, em um cotidianoem que se movimentavam entre o mundo do trabalho e uma rígida hierar-quia social na qual ocupavam o nível mais baixo de inferioridade.

Mas esse mundo cotidiano e privado no qual o escravo praticamen-te encerrava toda sua existência, não é, de forma alguma, aquele quecaracteriza a sociedade portuguesa a qual se refere Justino Magalhães.No contexto do mundo europeu, o público e privado eram, desde o iní-cio da era moderna, esferas que se encontravam imbricadas, mas quecomportavam um certo grau de distinção que permitia uma separação.

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No Brasil Colônia, essa imbricação entre as duas esferas era muitomaior e de difícil separação7. Essa separação só começou a se delinearcom maior nitidez a partir do século XIX, com a constituição de umespaço público, pois, como salienta Laura de Mello e Souza (1997), opúblico e o privado são conceitos polares que guardam um alto grau deinterdependência, a ponto da inexistência de um implicar o atrofiamentodo outro: “No decorrer do século XIX, muita coisa mudaria, e certa-mente o espaço da privacidade iria se ampliar, melhor definindo, contu-do, os seus contornos. A vinda da família real seria, sem dúvida, umponto de inflexão. Mas nunca uma ruptura, como, aliás, também não oseria a independência de 1822 [...] no século XIX, a escravidão continu-aria qualificando a vida privada brasileira” (Souza, 1997, p. 444).

Portanto, o público e o privado são, no Brasil do século XIX, espaçosque vão sendo gradativamente construídos através de uma separação queos tornava cada vez mais diferenciados. Essa separação foi demarcadapela constituição de um poder público que foi progressivamente assumin-do tarefas que até então estavam vinculadas ao mundo privado.

No entanto, o que caracterizaria a vida privada brasileira ainda noséculo XIX, é, segundo Souza (1997), exatamente a escravidão. É nomundo privado que livres e escravos estavam em permanente contato eé nele que desde o nascimento as crianças escravas eram socializadas. Énesse espaço altamente hierarquizado que as crianças escravas absor-viam as competências que tornavam a sua presença suportável, ou seja,uma habilidade para o trabalho, o que iria conferir uma certa distinçãosocial aos seus senhores.

É difícil imaginar que a educação dos escravos não se dava sob essaprimazia do privado, pois tal espaço era permeado de exigências e essas

7 Analisando a forma como frei Vicente caracteriza a Colônia no século XVII,Fernando Novais (1997) chega à seguinte conclusão: “Ora, escrevendo na terceiradécada do século XVII, esse incrível frei Vicente do Salvador já nos aponta suascaracterísticas essenciais: em primeiro lugar, a profunda imbricação das duas esfe-ras de existência, aqui na Colônia, e isto, que já não seria pouco ainda não é tudo.Pois, em segundo lugar, o arguto cronista deixa claro que os níveis do público e doprivado, para além de inextricavelmente ligados, apresentam-se da mesma formacuriosamente invertidos. Pois, como terá de imediato notado o atento leitor, a in-versão é também uma forma de articulação” (Novais, 1997, p. 14).

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lhes eram gradativamente transmitidas com o objetivo de torná-los efi-cientes para o trabalho e tão submissos quanto possível, para que nãoviessem a representar uma ameaça à vida dos senhores. No mundoescravista, as ameaças não vinham necessariamente das ruas, mas en-contravam-se estabelecidas no próprio lar, onde dominador e dominadoeram expostos a uma intensa convivência. Isso obrigava os senhores aserem cuidadosos no tratamento dos escravos. Parte desse cuidado im-plicava o direcionamento de sua criação, tornando-os, através dos maisvariados ritos, integrados ao espaço privado, onde a coexistência eraabsolutamente necessária.

A maneira pela qual se buscava a formação desse trabalhador tinhana convivência um aspecto central. Essa convivência não deve ser en-tendida somente no sentido de “viver junto”. Em um mundo hierarqui-zado, era ela mesma revestida de um sentido pedagógico que buscavatransmitir à criança os conteúdos necessários à sua condição de escrava.

Esse processo de transmissão dos conteúdos pode ser representadopor aquilo que Justino Magalhães vincula diretamente à educação tradi-cional: uma transmissão por impregnação. “Mais que pela aprendiza-gem, é partilhando gradualmente tarefas e responsabilidades com osadultos que as gerações novas se iniciam aos diversos papéis e desem-penhos que a vida proporciona” (Magalhães, 1996, p. 10).

O processo de aprendizagem na educação tradicional operava-senuma linha de continuidade com o mundo privado, tendo na impregna-ção proporcionada pelas vivências do cotidiano seu principal mecanis-mo de transmissão dos conteúdos de uma geração para outra. Nessaperspectiva, entendemos que era na convivência com os senhores e, so-bretudo, com os escravos adultos que a criança tomava conhecimentode sua condição e todas as implicações que isso representava.

Os estudos que têm procurado desvendar o cotidiano da sociedadeescravista detectam alguns procedimentos que apontam para a idéia deimpregnação como uma maneira de formar o escravo. Entre esses estu-dos destacam-se aqueles que têm o seu foco sobre a criança escrava.

Maria Lúcia Mott et al. (1988), em “A escravidão e a criança ne-gra”, afirma que, mesmo antes dos 5 anos, o pequeno escravo estavaentregue aos trabalhos com a turma de escravos adultos e esses iam

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progressivamente o orientando no domínio das tarefas: “muitas vezes,desde pequenas as crias eram obrigadas a acompanhar suas mães aocampo e com elas compartilhavam várias atividades agrícolas: tiravamervas daninhas, semeavam, apanhavam frutos, cuidavam dos animaisdomésticos” (Mott et al., 1988, p. 21).

No exercício dessas tarefas, o que estava em jogo não era a produti-vidade, como um atributo que era exigido a qualquer escravo adulto,mas a aprendizagem das tarefas que competiam a sua condição de es-crava e que, possivelmente, acompanhariam por quase toda vida.

José Roberto Goes e Manolo Florentino (1999), que qualificaram oprocesso de formação da criança escrava como adestramento, apontamaspectos que vão na mesma direção do estudo que anteriormente cita-mos: “alguns haviam começado cedo. O pequeno Gastão, por exemplo,aos quatro anos já desempenhava tarefas domésticas leves nas fazendasde José Araújo Rangel. Gastão nem bem se pusera de pé e já tinha umsenhor. Manoel, aos oito anos, já pastoreava o gado da fazenda Guaximba,pertencente à baronesa de Macaé” (Goes & Florentino, 1999, p. 184).

Essas crianças aprendiam essas tarefas na convivência com os de-mais escravos do plantel. Era sobretudo no convívio com escravos adul-tos que a criança absorvia as habilidades necessárias ao exercício do seupapel de escrava.

Embora as citações que destacamos registrem esse aprendizado ten-do apenas como finalidade o trabalho, é difícil acreditar que nessa ativi-dade se esgotava o aprendizado das crianças escravas. Provavelmente, aprimeira etapa do seu aprendizado era compreender a diferença que asseparava das pessoas livres. É difícil imaginar que esse aprendizado sedava fora do mundo do trabalho, mas, mesmo que as duas coisas lhesfossem transmitidas conjuntamente, talvez uma carga maior de intensi-dade fosse empregada na comunicação de sua condição de escrava.

Kátia Mattoso (1988), em estudo a respeito dos filhos das escravas,estabelece algumas considerações que caminham nessa direção:

Mas a vida dos folguedos infantis é curta. É nos seus sete para oito anos que a

criança se dá conta de sua condição inferior em relação principalmente às

crianças brancas. As exigências dos senhores tornam-se precisas, indiscutíveis

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[...] Ainda novo, o filho da escrava é olhado como escravo em redução, somen-

te diferente do escravo adulto que mais tarde será, pelo tamanho e pela força.

É-lhe agora necessário adquirir todos os saberes, conhecer todas as artimanhas

que vão lhe permitir, o mais rápido possível, tornar-se aquele escravo útil que

dele se espera ser. Assim, o curto período na vida da criança que vai dos três

aos sete para oito anos é um período de iniciação aos comportamentos sociais

no seu relacionamento com a sociedade dos senhores, mas também no seu

relacionamento com a comunidade escrava [Mattoso, 1988, pp. 43-52].

Essa comunicação da sua condição e das competências que lhes eramafins se realizava na convivência com senhores e escravos. Ambos ti-nham algo a ensinar à criança acerca da sua condição e quanto à manei-ra mais conveniente de se movimentar na sociedade hierarquizada,minimizando os riscos inerentes ao seu cativeiro. Esse aprendizado sefazia por uma impregnação proporcionada pelas relações travadas nocotidiano. Aquilo que não fosse absorvido por esse processo era trans-mitido através do chicote que, como instrumento disciplinar, definiacom precisão o que deveria ser aprendido como habilidade e o lugarexato ocupado pelo escravo na organização da sociedade.

Portanto, acreditamos que a partir da educação tradicional, comoum processo que transcorria em meio ao cotidiano do mundo privado,onde os ritos e os ofícios voltados para o trabalho ganham uma dimen-são pedagógica, é possível visualizar de uma forma coerente a forma-ção das crianças que nasciam escravas e que deveriam rapidamenteaprender como lidar com essa escravidão que as deixava expostas aosmais variados perigos.

Considerações finais

O processo de formação dos trabalhadores escravos parece passívelde uma abordagem educacional. Esta deve levar em conta as práticaseducacionais que são anteriores ao modelo escolar e avaliar em quemedida foram elas adaptadas aos cativos.

Nesse sentido o conceito de educação tradicional, tal como foi utili-zado por Justino Magalhães para o entendimento da sociedade portu-

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guesa, parece ser bastante coerente para a compreensão do processo deformação do trabalhador escravo no Brasil. Esta coerência se evidenciapela ênfase no espaço privado e pelo sentido pedagógico que empresta àconvivência, que é erigida à categoria de método de transmissão de con-teúdos de uma geração à outra.

Tendo como referência os novos estudos que buscam compreendero cotidiano da sociedade escravista, particularmente aqueles que se vol-tam para as crianças, podemos dizer que tanto o espaço privado como osentido pedagógico da convivência eram aspectos muito presentes navida das crianças escravas.

Esses aspectos nos levam a crer que a relação entre educação e es-cravidão deve merecer uma atenção maior por parte dos estudos que sevoltam para o escravismo. Através da educação, o processo de forma-ção dos escravos pode ser evidenciado de maneira ampla, congregandono seu interior as mais diversas formas de subalternização que foramempregadas em relação a esses trabalhadores e os aspectos que foramvitais para a organização e manutenção da própria sociedade escravista.

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Adriana Maria Paulo da Silva**

A escola de Pretextato dos Passos eSilva:

questões a respeito das práticas deescolarização no mundo escravista*

O presente trabalho procurar discutir a utilização de discursos estereotipados a respeitoda trajetória histórica da população afro-descendente no país – em geral, consideradavítima do tráfico intercontinental e da escravidão –, partindo do pressuposto de que, paraa primeira metade do século XIX e antes, faz-se necessário considerar a enorme presençade escravistas não-brancos atuando na sociedade brasileira e legitimando, por conseguin-te, a própria instituição da escravidão.HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; RACISMO; HISTÓRIA DOBRASIL; IMPÉRIO DO BRASIL.

The present work tries to make a discussion about the false analysis related to the historicaltrajectory of afro-Brazilians in the country – in a general view considered as victims ofinter continental slave traffic, starting from the assumption that before the 19th Centurythe existence of “not white” slaves completely integrated in a Brazilian society reforcethe slave institution.SLAVE HISTORY; EDUCATION HISTORY; RACISM; HISTORY OF BRAZIL; BRAZILIANEMPIRE.

* O presente texto faz uma síntese e rediscute algumas questões dos capítulos III, IV eda Conclusão do livro Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para me-ninos retos e pardos na Corte (Brasília, Editora Plano, 2000). A autora é particular-mente grata aos pareceristas da Revista Brasileira de História da Educação pelassugestões por eles propostas para a publicação deste artigo.

** Doutoranda em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestreem educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).E-mails: [email protected] e [email protected].

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– Escuta aqui, ó crioulo... O que foi? Você andou dizendo por aí que aqui no Brasil

existe racismo.

– E não existe?

– Isso é negrice sua. E eu que sempre te considerei um negro de alma branca. É,

não adianta. Negro quando não faz na entrada...

– Mas aqui existe racismo.

– Existe nada. Vocês têm toda a liberdade, têm tudo que gostam. Têm carnaval,

têm futebol, têm melancia... E emprego é o que não falta. Lá em casa por exemplo,

estão precisando de empregada. Para ser lixeiro, para abrir buraco, ninguém se

habilita. Agora, para uma cachacinha e um baile estão sempre prontos. Raça de

safados. E ainda se queixam!

– Eu insisto, aqui tem racismo.

– Então prova, beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara? Naquela vez que te

encontrei conversando com a minha irmã, não te pedi com toda a educação que

não aparecesse mais na nossa rua? Hein, tição? Quem apanhou de toda a família

foi a minha irmã. Vai dizer que nós temos preconceito contra branco?

– Não, mas...

– Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha confundido a

menina com alguma empregadona de cabelo ruim, não, que foi só um engano

porque negro é burro mesmo. Fui teu amigão. Isso é racismo?

– Eu sei, mas...

– Onde é que está o racismo, então? Fala, Macaco.

– É que outro dia eu quis entrar de sócio em um clube e não me deixaram.

– Bom, mas péra um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês não têm o clube de

vocês? Vão querer entrar nos nossos também?

– Mas isso é racismo.

– Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz diferença entre as pes-

soas por causa da cor da pele, como nos Estados Unidos. É uma coisa completa-

mente diferente. Nós estamos falando do criouléu começar a freqüentar clube de

branco, assim sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.

– Sim, mas...

– Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar no clube de vocês? Deus me livre.

– Pois é, mas...

– Não, tem paciência. Eu não faço diferença entre negro e branco, para mim é tudo

igual. Agora, eles lá e eu aqui. Quer dizer, há um limite. Pois então.

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a escola de pretextato dos passos e silva 147

– O...

– Você precisa aprender qual é o seu lugar, só isso...

– Mas...

– E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil. Porque aqui o negro

conhece o lugar dele.

– É, mas...

– E enquanto o negro conhece o lugar dele, nunca vai haver racismo no Brasil.

Está entendendo? Nunca. Aqui existe o diálogo.

– Sim, mas...

– E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba aí que é isso que

tu faz bem.

Vítimas, discriminados, injustiçados, marginalizados, marginais, vio-lentados, violentos, ignorantes, ignorados, pobres, explorados, abandona-dos, excluídos, serviçais, incultos, ingratos, descontrolados, imper-tinentes, lascivos, domesticáveis, animalizados, alcoolizados, recalcados,preguiçosos, burros, feios, carnavalizados, analfabetos, brutos, primiti-vos, sujos...

Seria cansativa a tarefa de elencar os inúmeros estereótipos ima-géticos que identificam os indivíduos fenotipicamente considerados“negros” ou “afro-descendentes” no Brasil. As várias formas de discri-minação, de todos os tipos, ancoram-se na assertividade, na repetitividadee no acriticismo deste tipo de fala arrogante que se julga apta a dizer,economizando palavras, o que o “outro” é. Sua eficácia reside, justa-mente, nessa economia e nessa repetitividade que tendem, até mesmo, apromover a subjetivação desses atributos por parte daqueles aos quaisse dirigem (Albuquerque Jr., 1999, pp. 15-21).

Recebi o texto anterior pela internet e, confesso, fiquei chocada porter reconhecido ser bastante provável que ele foi, esteja ou estará sendotravado aqui e ali, agora, ontem ou amanhã. Seu autor, seja lá quem for,reatualizou uma série de imagens e conceitos radicados na construçãodaquilo que somos como pessoas negras ou não.

Eu mesma, ao reproduzi-lo aqui, também o estou atualizando. Sei dis-so. Entretanto, meu intuito, para além do incontrolável desejo de criticar aexistência deste tipo de prática discursiva e desta forma de atribuição de

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sentidos, é tentar propor que, talvez, nós sejamos (inclusive aqueles quese dizem contrários a textos, práticas e discursos desse tipo) os responsá-veis pela manutenção deste terrível lugar social destinado aos “negros”no nosso presente, e não no nosso passado, notadamente, escravista.

O passado, “lá onde ele aconteceu” é impossível de ser tocado, re-produzido, trazido intacto até nós. Do nosso passado só temos vestígiose eles são tudo o que temos. Tais vestígios não contam, por eles mes-mos, uma história. Antes disso, eles só fazem sentido a partir de umadeterminada arrumação que sustente aquilo que nós, que lidamos comeles, queremos contar e dependem de uma série de questões: da nossaformação, das nossas posições (sempre) políticas, dos nossos projetosde vida, das pressões às quais estamos submetidos, dos autores com osquais trabalhamos, dos tipos de vestígios que temos disponíveis, enfim,das nossas próprias histórias (De Certau, s/d., pp. 31-66).

Somos nós, historiadores, que decidimos, dentro das limitações im-postas ao nosso ofício, o que vamos construir, ressaltar (e eternizar) e,na mesma medida, querendo ou não, o que vamos omitir (e jogar no es-quecimento). Cabe ao historiador, nas sociedades ocidentais, produzirtanto uma parte da nossa memória (que também é produzida pela lin-guagem, pelas imagens, pelas práticas sociais, pelos gestos comuns, pe-los espaços públicos etc.), quanto os nossos “esquecimentos”. Toda novahistória construída, por mais abrangente e engajada que seja, pretendecriar uma nova memória a respeito de um determinado tempo ou evento,em contraposição às memórias anteriores que deles se tinham. Ou então,serve para fazer as pessoas lembrarem de tempos ou eventos que as so-ciedades, grupos ou indivíduos “preferiam” ter esquecido. E, à medidaque uma nova história consegue se afirmar, as histórias anteriormenteconsagradas ou mais antigas (que outrora foram firmes também) tendema cair no esquecimento. Da mesma forma, enquanto houver pessoas lem-brando de coisas que outras queriam ver esquecidas, estas coisas conti-nuarão sendo lembradas (Burke, 2000, pp. 67-90). Isso é válido para asnossas análises historiográficas e para os nossos próprios trabalhos.

O objetivo das páginas a seguir não será inverter a direção do discur-so da estereotipia. Não se tratará aqui de mostrar o quanto tais discursossão mentirosos e o quanto os discriminados são os portadores de uma

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verdade que necessita ser revelada com vistas à superação da discrimi-nação da qual são vítimas. Isso porque, conforme penso, subjetivar avitimização implica, por um lado, reforçar e reatualizar esse tipo de dis-curso. E, por outro lado, implica pressupor que exista “fora de nós” umafala exterior, uma ação da qual não participamos, que nos oprima, nosexplore ou nos subjulgue. Diferentemente disso creio ser justamente porestarmos imersos e sermos co-partícipes das relações de poder que atra-vessam todas as nossas práticas que podemos lutar contra as estereotipiasou reforçá-las. Podemos ou não ocupar os lugares sociais que construí-mos e que nos constroem (Albuquerque Jr., 1999, p. 21).

Há tempos apontei algumas possibilidades para a construção de umahistória a respeito das práticas de escolarização formal de uma parcelasignificativa da população afro-descendente e da legislação educacional,na Corte Imperial, da primeira metade do século XIX. O presente traba-lho pretende reapresentar algumas das várias questões para as quais ain-da não encontrei respostas, problematizar algumas conclusões que talveztenham sido construídas de forma estereotipada e apresentar outras in-quietações decorrentes da minha caminhada até aqui.

A escola do professor Pretextato dos Passos e Silva:questões

Tratou-se de uma escola primária particular, desvinculada do apren-dizado de ofícios específicos e urbana (na freguesia de Sacramento),destinada a atender meninos “pretos e pardos” – cuja maioria dos paisnão possuía sobrenome e nem assinatura própria –, criada em 1853 porum certo professor que se autodesignou “preto”. Ele requereu, em 1856,ao então inspetor geral da Instrução Primária e Secundária da Corte(Eusébio de Queirós), algumas concessões para a continuidade do fun-cionamento dessa escola1.

1 Sobre o requerimento de Pretextato: ANRJ: IE 1.397. Arranjo Boullier. Série Edu-cação. Gabinete do Ministro. Ministério do Império. Requerimentos sobre instru-ção em ordem alfabética (1850-1890). Documentação avulsa.

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Pretextato dos Passos e Silva pediu ao inspetor sua dispensa dasprovas de capacidade (um exame oral e um escrito), na época, uma exi-gência legal para o exercício do magistério.

Eusébio de Queirós, a quem eu acompanhava (ou perseguia) na do-cumentação analisada recusando vários pedidos deste tipo2 – inclusiveaos professores da Sociedade Amante da Instrução da Corte –, não sóaconselhou ao Ministro do Império (Couto Ferraz) a deferir este pedido,como também fez uma breve defesa a respeito da necessidade de existi-rem escolas destinadas àquele tipo de público3.

A rigor, de acordo com o decreto n. 1.331-A, de 17 de fevereiro de18544, que sancionou o Regulamento da Instrução Primária e Secundá-ria do Município da Corte – cujo principal objetivo foi sistematizar ocontrole do Estado sobre os professores em geral e, especificamente,sobre os alunos das escolas públicas –, para que Pretextato abrisse for-malmente uma escola ou continuasse a exercer o magistério, deveria:ter a prévia autorização do inspetor geral; ser maior de 25 anos; declararatestados de capacidade profissional e moralidade; submeter-se ao exa-me profissional diante das autoridades da Inspetoria e declarar qual ha-via sido o seu meio de vida nos últimos cinco anos anteriores ao pedidode autorização. Além dessas exigências, deveria ainda apresentar umprograma de estudos da sua escola; um projeto de regulamento internodo seu estabelecimento; a descrição da situação física da casa onde lecio-naria; uma listagem contendo os nomes e as habilitações dos professo-res já contratados ou a serem contratados pelo requerente5.

Para obtenção do deferimento, o professor montou um dossiê noqual apresentou dois abaixo-assinados dos pais dos seus alunos em de-fesa da continuidade do funcionamento da sua escola; um atestado de

2 ANRJ: IE 4 2. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário [e primário].Ministério do Império. 2ª seção. Instrução Pública no Município da Corte. Lança-mento do Expediente. Rel.29, p. 9. n. 552. Documentação encadernada, pp. 17-19.

3 ANRJ: IE 4 4. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário [e primário].Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios do Inspe-tor Geral. 1º semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.

4 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, t. 17, parte 2ª, 12ª seção, 1854, pp. 63-64. Arespeito dessa legislação, consultar o excelente trabalho de Martinez (1996).

5 COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, t. 17, parte 2ª, seção 12ª, 1854, pp.63-64.

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um vizinho seu; um abaixo-assinado de pessoas que o conheciam; umatestado do inspetor de seu quarteirão enviado ao subdelegado da fre-guesia de Sacramento e um documento, escrito de próprio punho, aoinspetor. Nesse documento redigiu uma súplica emocionada na qual fezquestão de ressaltar a imensa timidez (e quase covardia) que o impediade prestar os referidos exames feitos em presença das autoridades daInspetoria. Vale dizer que vários outros professores que pleitearam amesma concessão também argumentaram serem muito tímidos. A dife-rença, repito, foi que Eusébio de Queirós indeferiu todos os pedidospresentes na documentação analisada, a exceção desse. Comecemos pelofim do texto do professor:

[...] e como o suplicante, Exmo. Senhor, se bem que não ignora estas matérias

[Leitura, Doutrina, as quatro principais operações da aritmética e Escrita pelo

método de Ventura]; contudo é assaz acanhado, para em público responder com

prontidão, todas as perguntas de um exame; e esta é a razão porque vem peran-

te V. Exa. implorar a graça de o dispensar deste ato, que não recusaria se não

conhecesse a sua falta de coragem e de desenvolvimento momentâneo [...]6.

Entretanto, no arrazoado que antecede a sua súplica, também dife-rentemente de todos os outros professores e professoras da Corte quetentaram algo semelhante, Pretextato fez uma crítica contundente aoracismo das escolas da Corte, nas quais os meninos “pretos e pardos”,ou eram impedidos de freqüentar ou, em freqüentando, não recebiam“uma ampla instrução” porque eram pessoal e emocionalmente coagi-dos. E em razão de ele também ser “preto”, os pais daqueles meninosimploram-lhe para que desse aulas aos seus filhos e ele o fez. Vejamos.

Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro de Estado, Inspetor Geral da Instrução Primária

e Secundária da Corte

6 ANRJ: IE 13 97 – Arranjo Boullier. Série Educação. Gabinete do Ministro. Minis-tério do Império. Requerimentos sobre instrução pública em ordem alfabética (1850-1890). Documentação avulsa. Este foi o documento principal ao qual todos os outros(os abaixo-assinados, o atestado) foram anexados e cujo conjunto nomeei de“dossiê”.

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Diz Pretextato dos Passos e Silva, que tendo sido convocado por diferentes

pais de famílias para que o suplicante abrisse em sua casa uma pequena esco-

la de instrução primária, admitindo seus filhos da cor preta, e parda; visto

que em algumas escolas ou colégios, os pais dos alunos de cor branca não

querem que seus filhos ombriem com os da cor preta, e bastante se extimulhão;

por esta causa os professores repugnam admitir os meninos pretos, e alguns

destes que admitem, na aula não são bem acolhidos; e por isso não recebem

uma ampla instrução, por estarem coagidos; o que não acontece na aula es-

cola do suplicante, por este ser também preto.

Por isso, anuindo o suplicante a estes pedidos, dos diferentes pais e mães dos

meninos da dita cor, deliberou abrir em sua casa, na Rua da Alfândega n.

313, a sua Escola de Primeiras Letras e nela tem aceitado estes ditos meni-

nos, a fim de lhes instruir as matérias que o suplicante sabe, as quais são,

Leitura, Doutrina, as quatro principais operações da aritmética e Escrita, pelo

método de Ventura [...].

Eusébio de Queirós, ao aconselhar o deferimento da súplica do pro-fessor ao Ministro do Império, omitiu justamente as especificidades doquesito cor, tanto com relação ao professor, quanto aos seus alunos.

Ilmo. Exmo. Sr.

Pretextato dos Passos Silva, diretor de uma escola de Instrução Primária des-

tinada para meninos de cor, pede no requerimento junto dispensa das provas

de capacidade para continuar a dirigir seu estabelecimento.

O Conselho Diretor à vista dos documentos que junta o suplicante ao seu

requerimento, e atendendo a conveniência de haver mais estabelecimentos

em que possam receber instrução os meninos a que se refere o suplicante,

julga que se lhe poderia conceder a dispensa que requer.

Deus Guarde Vossa Excelência.

Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz

Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império.

Eusébio de Queirós Coutinho Mattoso Câmara7.

7 ANRJ: IE 4 4. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário (e Primário).Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios do Inspe-tor geral. 1o semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.

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Durante a primeira metade do XIX – época na qual a experiência dePretextato se desenrolou –, as “cores”, além de uma caracterização racial,indicavam também os lugares sociais (incluindo a nacionalidade) dos in-divíduos por elas designados. Dessa forma, de acordo com um dos traba-lhos no qual me baseei, o qualificativo “pardo” podia designar uma“condição mais geral de não-branco” nascido livre, brasileiro ou não; eos qualificativos “crioulo” e “preto” tendiam a designar os escravos oulibertos brasileiros e africanos, respectivamente (Castro, 1995, pp. 33-35).

Com base nessas considerações, qual seria o sentido de uma escola,politicamente criada como uma alternativa ao racismo de então,vivenciado por “pretos”, “pardos”, “crioulos” e “cabras”, que restringiuseu público apenas aos dois primeiros? Quem seriam os pais daquelesalunos (que não cometeram crimes e nem deixaram bens na Corte)?Seriam ingênuos ou libertos? Quem foi Pretextato? Onde aqueles meni-nos teriam estudado antes de tornarem-se alunos de Pretextato? Comquem Pretextato havia aprendido?

Eusébio de Queirós, além de silenciar a respeito da cor de Pretextato(algo fundamental para o argumento em prol do funcionamento da suaescola), chamou indistintamente os meninos “pretos” e “pardos” de“meninos de cor”. Se o leitor ou a leitora quiserem voltar ao texto, per-ceberão que Eusébio de Queirós nada falou a respeito da cor de Pretextato.Aliás, esclarecendo um pouco o percurso da pesquisa, vale dizer que oprimeiro documento com o qual me deparei foi o deferimento de Eusébiode Queirós e, daquele momento até o dia em que encontrei o dossiê doprofessor Pretextato, confesso, não pensei que se tratasse de um profes-sor “preto”. Foi Pretextato quem especificou, quem detalhou a sua cor eas cores dos seus alunos.

Será que, para Eusébio de Queirós, aquelas distinções não faziamnenhum sentido ou ele usou um eufemismo? Por que motivos ele, umgovernante absolutamente comprometido com a manutenção da escra-vidão, teria concedido àquele professor – sem que o mesmo cumprissecom quase nenhuma das exigências legais requeridas para o exercíciodo magistério – o deferimento do seu pedido?

Encontrei na documentação da polícia da Corte, em 1853, um nego-ciante chamado José Gonçalves de Carvalho Júnior, pedindo autoriza-

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ção ao governo imperial, por intermédio da polícia, para que pudessereceber: “[...] recomendado de Benguela, um pequeno de cor preta, me-nor de idade, de nome Guilherme da Costa Teixeira, filho legítimo deGuilherme Teixeira”, o qual iria “educar-se num colégio da Corte porordem de seu pai, sendo o dito menor nascido de ventre livre”8. O mi-nistro da Justiça, Souza Ramos, autorizou a entrada do menor.

Considerando a crítica de Pretextato ao racismo de então, vivenciadoespecificamente pelos alunos de cor preta, onde, na Corte imperial, essemenino estudaria naquela época?

O texto introdutório ao pedido de autorização acima descrito assimdisse: “sabendo que pela repartição da Polícia são obrigados a assinartermo de reexportação os indivíduos pretos e pardos que da Costa daÁfrica” quisessem aportar na Corte etc.

É claro que pode ser apenas uma coincidência o fato de no mesmoano da criação da escola de Pretextato ter chegado à Corte, para estudar,um jovem africano que, do ponto de vista da designação racial/social,enquadrava-se perfeitamente no público-alvo do professor preto. Con-tudo pode também não ser coincidência.

Poderíamos estar diante de uma das inúmeras formas que os trafi-cantes de gente arrumaram para burlarem a lei que pôs fim ao tráfico deescravos em 1850, ou não.

A escola de Pretextato funcionou legalmente, no mínimo até 1873,quando foi despejado da casa onde lecionava9. Um ano antes foi listado,com outros donos de estabelecimentos particulares da Corte – aquelesque eram reconhecidos pelas autoridades públicas da Corte e, creio que,

8 ANRJ: IJ 6 216. Série Justiça. Requerimentos da Polícia. Ofícios com anexos (1853).9 Para o ano de 1872, encontrei a escola do professor Pretextato listada em meio aos

estabelecimentos particulares de instrução primária masculina da freguesia de Sa-cramento nos “Ofícios das delegacias em resposta a circular de 8 de janeiro de1872”, pp. 26-27, os quais compõem o Apêndice ao Relatório da Inspetoria Geralda Instrução Primária e Secundária da Corte que, por sua vez, é parte integrante doRelatório do Ministério do Império (RMI), Ministro João Alfredo Corrêa Oliveira,Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1872. E para o ano de 1873, encontrei oprofessor sendo despejado do prédio que ocupava em razão da falta de pagamentode dois meses de aluguel à Santa Casa de Misericórdia. Cf. ANRJ: Juízo da 3ª VaraCível. Processo 8080 – caixa 1037.

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eram uma minoria –, no relatório do ministro do Império. Nesse registrosua escola contava com 15 alunos: 14 nacionais e um estrangeiro10. Tam-bém nesta documentação, nenhuma menção foi feita à sua cor ou àsespecificidades étnicas de seus alunos11. Levando-se em consideraçãouma possível manutenção da especificidade do público ao qual Pretextatodestinou seu magistério décadas antes, seria aquele estrangeiro umafricaninho, ou não? Quantos meninos passaram por Pretextato? Quantosoutros Pretextatos atuavam na Corte da década de 50 ou antes? Quempoderia pagá-lo, se é que ele cobrava, por seu magistério? Como funcio-naria aquela escola e outras daquele tipo?

Com relação a possíveis informações sobre a história pessoal dePretextato, bem como sobre as histórias dos pais dos seus alunos, porenquanto, nada mais consegui. Pretextato, conforme afirmei, nada apre-sentou à Inspetoria sobre o seu passado, estado civil e meio de vidaanteriormente ao magistério. Ele não deixou bens na Corte e, até agora,continuo sem outras pistas a seu respeito.

Sobre os pais dos seus alunos, eles perfizeram um total de 15 pesso-as que aparentemente estavam representando, cada uma, uma família.Ou seja, não me parece que casais tenham assinado o abaixo-assinado,mas apenas um dos pais das crianças.

Dessas 15 pessoas, 11 eram homens e nenhum deles deixou bens naCorte e nem cometeu nenhum delito (o que dificulta encontrá-los nadocumentação disponível no Arquivo Nacional). Dentre os homens, 5tiveram suas assinaturas feitas a rogo de e todas as mulheres o tiveram.Ou seja, rogaram (pediram) a outras pessoas que sabiam ler e escreverque assinassem seus nomes. Dos que assinaram, e que supostamentesaberiam ler e escrever, 4 possuíam uma letra sofrível, o que poderiaindicar que pouco praticavam a escrita. Dois homens e duas mulheresnão possuíam sobrenomes e apenas um homem, além de assinar firme-mente seu sobrenome no abaixo-assinado, ainda declarou morar na Rua

10 RMI, “Apêndice ao Relatório da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundá-ria da Corte”, op. cit., p. 26.

11 Nesta listagem, os padrões de especificação dos alunos foram a idade (maiores oumenores de 7, 14 ou 21 anos); a nacionalidade (brasileiros ou estrangeiros) e acrença religiosa (católicos ou “acatólicos”). RMI, Apêndice op. cit, pp.3-63.

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do Sabão, n. 22. Caso houvesse mais informações sobre essas famílias,seria possível articulá-las aos recentes estudos sobre a família escrava(e liberta), os quais têm demonstrado, para as regiões de plantations doSudeste, principalmente, a regularidade, a longevidade das uniões fami-liares e a importância da presença paterna nos laços familiares estabele-cidos entre cativos e seus descendentes (Slenes, 1999; Castro, 1995;Florentino & Góes, 1997).

A escola dos meninos pretos e pardos, o empenho dos seus pais e doseu professor e a aceitação silenciadora de Eusébio sugeriram-me a pos-sibilidade de o decreto n. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, ter tenta-do criar – para além de uma instância centralizadora da instrução públicaprimária e secundária no município da Corte e de uma série de mecanis-mos de controle do trabalho docente –, interdições ao ingresso, nas es-colas públicas, daquele público para o qual Pretextato lecionava.

O artigo 64 desse decreto determinou que os pais, tutores, curadoresou protetores de meninos maiores de 7 anos eram obrigados a lhes pro-porcionar o aprendizado das primeiras letras, sob pena de multa, fosseem escolas públicas, privadas ou no ambiente doméstico.

Vale a pena fazer uma breve digressão neste ponto, para o fato deque, enquanto fazia esta pesquisa, encontrava, principalmente nas fon-tes governamentais, queixas freqüentes por parte das autoridades da Cortea respeito do “desleixo” das famílias pobres em não cumprirem a lei daobrigatoriedade, em não cuidarem que seus filhos freqüentassem as es-colas e permanecessem nelas. Pois bem, em um dos abaixo-assinadosdos pais dos meninos de cor preta, datado de janeiro de 1855, creio quejustamente essa legislação foi utilizada como um segundo argumentoem prol da continuidade do funcionamento da escola:

Nós abaixo-assinados vendo que os meninos de cor preta pouco ou nenhum

adiantamento obtém nas atuais aulas, instamos e pedimos ao ilustríssimo

senhor Pretextato dos Passos e Silva, a fim de que o mesmo senhor se incum-

bisse de ensinar nossos filhos contentando-nos com que eles soubessem ler

alguma coisa desembaraçado, escrever quanto se pudesse ler, fazer as quatro

espécies de conta, e alguma coisa de gramática. O dito senhor, anuindo ao

nosso pedido, abriu em sua casa uma escola para a qual entraram nossos

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filhos e alguns tinham de entrar neste ano. Por cujo motivo nós lhe estamos

muito obrigados e muito satisfeitos com o seu ensino, moralidade e bom

comportamento. Todos nós fazemos votos para que o mesmo senhor conti-

nue a dirigir a dita escola, porque só assim nossos filhos saberão alguma

coisa, ainda que não seja com perfeição, ao menos melhor do que até agora.

E por ser tudo isso verdade, nos assinamos [grifos meus]12.

E no artigo 69 daquele regulamento apareceu explicitamente, pelaprimeira vez, na legislação educacional da Corte, o tipo de aluno quepoderia ser matriculado e freqüentador das escolas públicas.

O texto da lei aponta para a possibilidade de haver, à época, duasformas de freqüência às escolas públicas: havia os matriculados e osfreqüentadores.

No artigo 69: “Não serão admitidos à matrícula, nem poderão fre-qüentar as escolas”, a presença dos advérbios de negação “não e “nem”indicam que podia haver duas situações: crianças matriculadas e crian-ças que apenas freqüentavam as escolas. Nesse sentido, o que a lei fezfoi determinar que as crianças, para estarem em qualquer uma destassituações (de freqüentadoras ou de matriculadas) deveriam ser livres (oque não era uma novidade à época), não portadoras de doenças contagio-sas e estarem (esta foi a novidade) vacinadas.

Naquela época, basicamente três doenças assolavam o Império: atuberculose – para a qual não havia vacina –; a febre amarela – para aqual também não havia vacina e que atacava, principalmente, a popula-ção branca imigrante; e a varíola – cuja vacinação fora introduzida noImpério em 1804 e que atacava, principalmente, os negros e seus des-cendentes.

Estudos recentes já apontaram a resistência da população em geral àvacinação antivariólica e as origens culturais dessa resistência em meioà população negra e seus descendentes.

Tratando-se então de possibilidades, se aos escravos já não era pos-sível freqüentar as escolas públicas de primeiras letras, para os libertossadios – também teoricamente obrigados a providenciarem a escola-

12 RMI: Ministro João Alfredo Corrêa de Oliveira, op. cit.

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rização de suas crianças – a obrigatoriedade da vacinação pode ter cria-do mais uma interdição cultural àquele acesso. Talvez tenham ido pro-curar outras escolas, as privadas, populares e silenciadas, como a dePretextato.

Com relação à posição de Eusébio – angolano; filho de um altofuncionário da coroa portuguesa tanto em Angola quanto no Brasil; ex-aluno da Faculdade de Direito de Olinda e membro da sua primeiraturma; ex-juiz do crime da freguesia de Sacramento na Corte; ex-chefede polícia da Corte; ex-ministro da Justiça e um dos artífices da leiantitráfico (Sisson, 1999, pp. 25-31) –, admito vê-la com uma certa des-confiança, no mínimo, porque, conforme aprendi com Mattos (Mattos,1990), Eusébio, Couto Ferraz e Rodrigues Torres compuseram a cha-mada “trindade Saquarema”. Além disso, a seu respeito, obtive umapista com Holloway que, ao descrever as ações de Eusébio como Chefede Polícia, em 1839, quando tinha apenas 26 anos, considerou-o quaseum filósofo do bom policiamento:

Assim como as épocas de maior ventura para as nações são as que menos

campo oferecem ao historiador, assim também quanto mais feliz tem sido a

polícia preventiva tanto menor é o número de fatos que ela pode referir

[Holloway, 1997, p. 171].

Enquanto Holloway interpretou o texto anterior como uma demons-tração do quanto a polícia carioca, após 1831, passou a ocupar-se com aprevenção criminal, eu o considerei uma pista acerca da atuação deEusébio (e quem sabe, posteriormente, dos Saquaremas) na conduçãoda administração e controle públicos, com base na qual procurou, talvezdeliberadamente, não apenas assegurar a implementação da hegemoniaSaquarema, mas também construir uma história. Não creio ter sido vãsua menção ao ofício do historiador. Encarei essa assertiva como umprincípio político fundamental da sua ação.

Quando eu chamo atenção para os cargos que Eusébio exerceu, nãoestou querendo, com isso, sustentar que sua presença no aparelho deEstado seja significativa por si mesma. Afinal, os Luzias também ocu-param cargos no Estado, e no entanto, como bem demonstrou Mattos,

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foram os Saquaremas que, efetivamente, conseguiram imprimir umadireção à política imperial, estando dentro e fora do Estado (Mattos,1990, pp. 155-157).

O que me chama atenção nessa assertiva de Eusébio é justamente ofato de ela expressar uma determinada concepção de como deveria ocor-rer a orientação dos registros criminais da Corte. O chefe de políciademonstrou preocupar-se não com o presente, mas com a forma como arepresentação daquele presente serviria para a construção de um futuro.Preocupou-se com interpretação que as gerações futuras fariam do devir,sugerindo que aquele presente deveria se encarregar de moldá-lo, pelomenos quanto à eficácia da sua polícia.

Na medida em que encarei essa assertiva como um princípio de di-reção política, creio que ele a levou consigo ao Ministério, à Inspetoriade Instrução e a todos os lugares por onde tenha passado.

Com Mattos aprendi que, quando da abolição do tráfico, coube àdireção Saquarema, da qual um dos expoentes era Eusébio, encarre-gar-se de apresentá-lo não como o resultado das indiscutíveis e intole-ráveis pressões britânicas sofridas pelo Império à época, mas sim comoum fruto “da honra e da soberania nacionais” (Mattos, 1990, p. 165).Para exercerem uma dominação e imprimirem uma direção ao Impé-rio que procuravam consolidar – consolidando e expandindo seus in-teresses como classe senhorial –, os Saquaremas necessitaram, também,construir uma história. E a Corte, como palco privilegiado desse pro-cesso, guarda os gritos e os silêncios tanto da história que se preten-deu construir quanto da história que se pretendeu ocultar. Talvez opróprio Eusébio seja, ele mesmo, um indivíduo de fronteira: nas rela-ções das elites africanas, brasileiras e portuguesas, nas relações entreo poder e o vulgo, entre livres e escravos, entre a história contada ehistória vivida.

Creio ser possível pensar as experiências de letramento vivenciadaspelos homens e mulheres submetidos ao cativeiro e seus descendentesainda como algo especial, sem dúvidas. No caso de Pretextato, suaintencionalidade política, às vezes captável aos olhos do historiadorcontemporâneo e às vezes fugidia, pode ser compreendida em razão deele também ter transitado nas fronteiras de vários tipos de experiências

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culturais: de classe, de raça, de estatuto jurídico, de nacionalidade, dereligião13. O fato de seu pedido ter sido excepcionalmente deferido indi-ca que ele conseguiu, no mínimo, acionar em que seu favor as práticasclientelistas características da sociedade imperial. Mas qual terá sido osentido da sua luta contra o racismo? Lutar contra o racismo teria signi-ficado lutar contra a escravidão?

Propondo um outro olhar...

No caso da atuação de Pretextato na Inspetoria, considerei-a, na épocaem que fiz a dissertação, estratégica. Ou seja, ele provavelmente teriautilizado em seu favor alguns dos estereótipos que identificavam os in-divíduos “pretos” na sociedade escravista para conseguir sensibilizar asautoridades educacionais da Corte e conseguir o deferimento para a con-tinuidade da sua escola, sem que necessitasse prestar os exigidos exa-mes profissionais. Nesse sentido ele, inteligente, crítico, esperto eengajado, teria agido daquela forma para burlar as duras regras da socie-dade escravista a qual o oprimia e aos seus alunos.

Olhei para Pretextato com muita alegria e construí uma argumenta-ção razoável para sustentar o argumento anteriormente descrito, tendo,até mesmo, apresentado outros exemplos de práticas semelhantes – a par-tir de outros trabalhos (Villalta, 1998; Chalhoub, 1990; Carvalho, 1998;Wissenbach, 1998) – de uso político das letras, cuja intencionalidade seriapotencialmente transformadora de uma dada situação ou uma dada rea-lidade, por parte de escravos, ex-escravos e seus descendentes.

13 Quando pensei esta questão, considerei-a um insight meu. Entretanto, conversandocom o professor Marcus Carvalho (UFPE), ele chamou minha atenção para o fato deque Kenneth M. Stramp, em 1956, havia proposto claramente essa possibilidade paraa sociedade escravista norte-americana. Tendo em vista que o trabalho de Stramp foia grande obra de referência sobre a escravidão norte-americana até o aparecimentode “Roll, Jordan Roll” de Eugene Genovese (publicado no Brasil pela Paz e Terra eCNPq, em 1988, com o título A terra prometida: o mundo que os escravos criaram),suponho que essa perspectiva me deva ter sido ensinada em algum momento destesanos de formação e que somente há pouco tempo necessitei “acioná-la”. Cf. Stamp,1956. Ver especialmente o capítulo VIII: “Between two cultures”.

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Entretanto, numa tentativa de autocrítica, fico me perguntando porque será que não ressaltei, carregando nas tintas, o fato de que não sóaquele professor, mas também vários outros, utilizaram o mesmo argu-mento da timidez e não foram bem-sucedidos? Por que será que não meperguntei se esse argumento poderia, talvez, na época, corresponder maisaos estereótipos referentes ao mal falado ofício do magistério que aosnegros, pretos ou pardos? Teria eu incorrido no outro extremo do discursoda estereotipia e teria tentado “revelar” a “verdadeira intencionalidade” daexperiência de Pretextato, a saber, a liberdade; como se esta fosse, neces-sariamente, a única coisa que um “preto” (vitimado por não tê-la) pudessequerer numa sociedade que escravizava os seus, a meu ver, iguais?

No ano seguinte do decreto n. 1.331-A, os professores particularesda Corte devem ter passado por um susto que, talvez, Pretextato tivesse,até por vias particulares – algo tão comum na sociedade imperial – que-rido evitar. De acordo com o registro do Relatório do ministro do Impé-rio, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, dos 77 professores chamados arealizarem o exame de habilitação profissional, apenas 31 foram apro-vados. A respeito daquele resultado, o ministro comentou que: “[...] deper si só demonstra a todas as luzes da evidência o quanto a especulaçãotinha invadido o ensino e quanto se abusava da boa-fé dos pais de famí-lia, a custa do seu dinheiro e, o que é mais grave, viciando-se a inteli-gência de seus filhos”14.

Ainda em 1856, Eusébio de Queirós assumira a Inspetoria da Instru-ção e, conforme a direção do projeto Saquarema de consolidação impe-rial, do qual foi um dos artífices, creio que tenha atuado até mesmo paradar continuidade ao processo de reabilitação do magistério e, conseqüen-temente, de convencimento social acerca dos benefícios da escolarizaçãoprimária submetida ao controle governamental. Esta tentativa indica oquanto o magistério era, pelo menos na visão governamental, uma profis-são socialmente desprestigiada. Caberia ao governo, convencido dessedesprestígio em meio à população em geral, redimir publicamente aquelesprofissionais para que seu projeto lograsse o sucesso almejado.

14 RMI: Ministro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Rio de Janeiro, Typographia Nacio-nal, 1856, p. 61.

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Não basta porém decretar a instrução primária [e gratuita] como uma

necessidade social e proclamá-la como primeiro elemento de civilização e

progresso: é mister também que o legislador, para não tentar uma obra im-

possível e consagrar um princípio estéril, eleve e reabilite perante o público

aqueles a quem encarrega o ensino da mocidade, inspirando-lhes a consciên-

cia de sua importante missão e o sentimento da própria dignidade [...]15

Tenho a impressão de ter limitado, reduzido Pretextato apenas à suacondição mais geral de “preto” sem procurar vê-lo, conforme deveria,como um professor da Corte. Teria eu sucumbido, sem querer, à tese deBernardo Pereira de Vasconcelos que, nos idos de 1826, sustentou que,do ponto de vista jurídico, “a presunção é que um homem de cor preta ésempre escravo” (apud Carvalho, 1998, p. 248)?

Retomando o início deste texto e, neste momento, limitando-me apensar apenas nos estudos sobre o século XIX e sobre o escravismobrasileiro, estou convencida de que é preciso evitar os anacronismos eos excessos militantes no trato da trajetória histórica da população afro-descendente no país.

Enquanto vigeu a escravidão, isto é inegável, homens e mulheresafricanos ou afro-descendentes foram escravizados e, como escravos,estiveram submetidos aos limites da violência que esse tipo de relaçãode produção, na modernidade, foi capaz de forjar. Entretanto, isso nãosignifica que todos os não-brancos foram escravos e que todos eles luta-ram deliberadamente, desde tempos remotos, pela liberdade ou pelo fimda escravidão como instituição.

A historiografia recente sobre escravidão tem demonstrado, paraa primeira metade do XIX e para o período colonial, o quanto a pro-priedade escrava era pulverizada, em diversas regiões do Brasil, entrepobres e ricos, brancos e não-brancos e o quanto essa pulverização foifundamental para a manutenção da legitimidade da escravidão. Ouseja, diferente do estereótipo do “senhor de engenho” ou do “barão docafé” – homens brancos, muito ricos e donos de algumas dezenas (às

15 Relatório do Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte, Eusébiode Queirós Coutinho Mattoso Câmara. Anexo ao RMI, 1856, op. cit. p. 5.

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vezes, centenas) de escravos –, a trajetória escravista brasileira, peloscampos e cidades, contou, em quase todas as regiões, com a presençade senhores e senhoras donos de um ou dois escravos. Gente de todotipo, brancos ricos, brancos pobres, pretos, pardos e cabras nascidoslivres ou libertos, inclusive escravos, puderam (quiseram e lutarampor isso) ser donos de gente até a primeira metade do XIX (Barickman,1999, pp. 30-31; Castro, 1995).

Particularmente, o trabalho de Barickman, a respeito da impressio-nante presença de senhores não-brancos no Recôncavo baiano – quecorrespondiam a mais de um terço dos senhores das duas freguesias queo censo analisou, pertencentes a uma região considerada um dos princi-pais centros escravistas do Brasil e das Américas nesse período –, é bas-tante esclarecedor. Esse autor argumentou, muito convincentemente, quenem a “brancura” definia exclusivamente o senhorio e muito menos a“pretura” definia exclusivamente a escravidão. Além disso, brindou-noscom a tradução de um trecho da rara “biografia” – publicada em Detroit,nos idos de 1854 – de um certo Mahommah G. Baquaqua, um ex-escra-vo africano que trabalhou no Brasil, no auge da escravidão, segundo oqual, no dizer de Barickman:

“‘A posse de escravos, gera-se do poder. Quem tiver os meios para com-

prar seu semelhante com o metal mesquinho pode se tornar um senhor de

escravos, independentemente de sua cor, seu credo ou sua pátria... o ho-

mem de cor (colored man) escravizaria seu semelhante com a mesma rapi-

dez que o branco, se tivesse o poder’. Ao fazer esses comentários,

Baquaqua valeu-se das suas próprias experiências; pois, na África, foi re-

duzido à escravidão não por europeus, mas sim por seus conterrâneos afri-

canos. Ainda na África, passou pelas mãos de mais de um senhor africano.

Depois, enquanto esteve no Rio de Janeiro, ‘um homem de cor’ tentou

comprá-lo, mas, por um motivo ou outro, não chegou a fechar o negócio”

[Barickman, 1999, p. 34].

Embora seja desconfortante essa argumentação, ela é necessária.Necessária não para negar o racismo ao qual estamos submetidos e que,em larga medida, recriamos; tampouco para fazer reviver os tristes ven-

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tos teóricos decorrentes da tese da “democracia racial”. Também não setrata de insistir no cinismo das argumentações que sustentam serem osnegros mais racistas que os brancos ou vice-versa.

Trata-se, sim, de tentar romper com esses discursos que, por umlado, culpabilizam e, por outro, vitimam brancos e não-brancos, respec-tivamente, por todas as mazelas historicamente construídas ao longo dequase 500 anos de escravidão no Brasil, cuja força da tradição é tãogrande que parece impedir uma atuação enérgica para superação dasgraves desigualdades que atravessam todas as nossas práticas, dentreelas nossas reflexões teóricas.

Contrariamente às imagens produzidas pela maior parte da historio-grafia da educação, notadamente republicana, o caso de Pretextato, acontinuidade do estudo de outras escolas ou práticas de escolarizaçãosemelhantes à dele, anteriormente aos anos de 1970 – quando, em tese,por conta da emergência da problemática da abolição do trabalho servila temática da educação popular tomou fôlego –, podem nos ajudar arepensar a idéia, algo difundida, de um Império de iletrados, dominadounicamente por brancos cruéis e governantes deliberadamente obtusos,que relegaram ao analfabetismo e à miséria os “coitados” dos escravos eseus descendentes – cujos ancestrais foram inocentemente arrancadosda sua terra natal – que, se tivessem tido as oportunidades que lhes sãodevidas, teriam feito deste país um torrão feliz e livre das desigualdades.Com base nesse tipo de argumento, creio, a nossa jovem República criousua própria história e insiste (com poucas resistências) em perpetuá-la.

Fontes e bibliografiaManuscritos citados no texto

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ):

IE 4 2 – Arranjo Boullier. Série educação. Ensino Secundário (e primá-

rio). Ministério do Império – 2ª seção. Instrução Pública no Município da

Corte. Lançamento do Expediente. Documentação encadernada.

IE 4 4 – Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário (e primário).

Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios

do Inspetor Geral. 1º semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.

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IE 13 97 – Arranjo Boullier. Série Educação. Gabinete do Ministro. Mi-

nistério do Império. Requerimentos sobre instrução pública em ordem

alfabética (1850-1890). Documentação avulsa.

IJ 6 216 – Série Justiça. Ministério da Justiça. Ofícios da Polícia (1853).

Juízo do Direito da 3ª Vara Cível. Processo n. 8.080 – caixa 1.037.

Fontes impressas citadas no texto(RMI) Relatórios do Ministro do Império de 1856 e 1872

Relatórios do Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte

de 1855-1856.

Artigos e livros citados no texto

ALBUQUERQUE, Jr. (1999). A invenção do Nordeste e outras artes. Recife, FJN:Ed. Massangana; São Paulo: Cortez. Prêmio Nelson Chaves de 1996 naárea de História.

BARICKMAN, B. J. (1999). “As cores do escravismo: escravistas ‘pretos’, ‘par-dos’ e ‘cabras’ no Recôncavo baiano, 1835”. População e família, São Pau-lo, n. 2, pp.7-59.

BURKE, Peter (2000). Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira.

CARVALHO, Marcus J. M. de (1998). Liberdade: rotinas e rupturas do escravismono Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de (1995). Das cores do silêncio: os significadosda liberdade no sudeste escravista- Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Ar-quivo Nacional.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de & SCHNOOR, Eduardo (orgs.) (1995). Resgate –uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks.

CHALHOUB, Sidney (1990). Visões da liberdade: uma história das últimas déca-das da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras.

. (1999).Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial.2. ed. São Paulo: Cia. das Letras.

COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL (1854). Rio de Janeiro, t. 17, parte 2ª,seção 12ª.

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DE CERTAU, Michael (s/d.). A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitária.

FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escra-vas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira.

GENOVESE, Eugene (1988). A terra prometida: o mundo que os escravos cria-ram. Rio de Janeiro, Brasília: Paz e Terra, CNPq.

HOLLOWAY, Thomas H. (1997). Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistên-cia numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação GetúlioVargas.

MARTINEZ, Alessandra Frota (1996). Educar e instruir. A instrução popular nacorte imperial (1870-1889). Dissertação (Mestrado em História) – Univer-sidade Federal Fluminense, Niterói.

MATTOS, Ilmar Rohloff de (1990). O tempo Saquarema. A formação do EstadoImperial. 2. ed. São Paulo: Hucitec.

PAULO DA SILVA, Adriana Maria (2000). Aprender com perfeição e sem coação:uma escola para meninos pretos e pardos na Corte. Brasília: Editora Plano.

SISSON, S. (1999). A Galeria dos brasileiros ilustres. 2 vols. Brasília: SenadoFederal.

SLENES, Robert W. (1999). Na senzala uma flor: esperanças e recordações dafamília escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Frontei-ra.

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Resenhas

As luzes da educação: fundamentos, raízeshistóricas e prática das aulas régias no Rio deJaneiro (1759-1834)

autora Tereza MariaRolo Fachada Levy Cardoso

cidade Rio de Janeirouniversidade UFRJano 1998outro Tese de doutorado

Lançando luz sobre a educação brasileira

Um rico e importante relato do processo de implantação e do fun-cionamento do sistema de aulas régias entre 1759 e 1834 no Rio deJaneiro. Essa é uma boa definição para a obra As luzes da educação:fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio deJaneiro (1759-1834), tese de doutorado defendida por Tereza Cardoso,em 1998, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A autora produz uma importante referência para a compreensãode seu objeto de estudo, desenvolvendo um quadro contextual amplo(abrangendo os séculos XVI, XVII e XVIII) e fundamental para en-tender as relações existentes entre o cenário europeu da época – aRevolução Científica que ganhava força, as novas teorias filosóficassobre a sociedade e o progresso científico-tecnológico – e os aconte-cimentos em Portugal. A partir disso, é possível saber que a expulsãodos jesuítas e as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombalestão intimamente relacionadas às revoluções ocorridas na ciência,na filosofia, na cultura e na mentalidade européias, inserindo-se numcenário que evidenciava o abandono e crítica da tradição escolástica,o desejo de domínio sobre a natureza, a crença no progresso inexorávele benéfico e a proliferação dos ideais do despotismo esclarecido. Aeducação passava a ser aclamada por todos os entusiastas da novaordem por seu potencial de equalizar e redimir a sociedade, sendoencarada como um instrumento de formação dos cidadãos deste Esta-

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do moderno em gestação e de desenvolvimento nacional em todosos sentidos.

Nesse contexto, Portugal foi a nação pioneira no tocante às refor-mas que apontavam para a instituição de uma Monarquia nos moldesdo despotismo esclarecido, e a ordem dos jesuítas, com sua ratiostudiorum calcada na tradição escolástica e seu poder sobre a popula-ção indígena brasileira, passou a ser vista como um obstáculo àreestruturação do Estado português. Diante disso, foi primeiro decre-tada a Lei do Diretório – que obrigava o ensino da língua portuguesaaos indígenas e laicizava as missões – e posteriormente a expulsão detodos os jesuítas. Rompia-se assim com a tradição para dar lugar aonovo projeto político, conforme exigia o movimento da Ilustração.

Ao debruçar-se sobre as reformas efetuadas – mais especifica-mente a Reforma dos Estudos Menores, de 1759, e dos Estudos Maio-res, de 1772 –, Tereza Fachada tem o cuidado de recuperar umasignificativa produção historiográfica a respeito do tema, passandopor diversos autores e suas interpretações acerca dos fatores quemotivaram a Reforma, as quais responsabilizam ora a economia,ora a luta contra a Igreja, ora o Iluminismo ora o projeto político.Diante desse quadro, porém, a autora limita-se a concluir que a Re-forma deve ser compreendida no contexto da implantação do despo-tismo esclarecido, o que talvez revele sua opção por produzir antesum relato minucioso do período em questão do que uma ampla eprofunda reflexão sobre a motivação e o significado da instituiçãodo sistema de aulas régias.

Com a Reforma dos Estudos Menores (que correspondem aoensino atual em seus níveis fundamental e médio), efetivada atravésdo Alvará de 28 de junho de 1759, expressavam-se definitivamenteas principais intenções da Coroa Portuguesa: criar um sistema deensino público e utilizá-lo como lhe conviesse. Sinal disso é que alegislação a respeito do que deveria ser ensinado era extremamenterígida e detalhada, o que soa paradoxal frente às condições objetivasprecárias encontradas à época, tanto em Portugal quanto nas colô-nias. Isso, aliás, torna-se claro durante o relato dos percalços encon-trados pelo diretor geral de estudos, Tomás de Almeida, que se vêobrigado, ante o descaso do rei D. José, a improvisar decisões esoluções. Além disso, Almeida foi obrigado a tolerar o boicote doMarquês de Pombal às suas iniciativas, já que era um dos únicos

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que não temiam o ministro. Esse conflito culmina com a vitória dePombal e a extinção do cargo de Tomás de Almeida, em 1771, o queencerra a primeira fase da Reforma. A avaliação dessa fase de im-plantação pode ser resumida em uma única palavra: falta. Falta deprofessores, de materiais, de verbas, de salários. No Brasil, a situa-ção era ainda mais penosa, pois a ele haviam sido destinados apenas5% de todas as aulas régias oferecidas pelo governo e, além disso,até 1765 não havia sido nomeado um só professor público, o quedeixava a educação a cargo da iniciativa privada da elite.

A certeza do fracasso da primeira fase lança as bases para aReforma dos Estudos Maiores (correspondentes ao atual ensino su-perior), trazendo novas preocupações: o emprego de princípiospedagógicos que contemplassem os novos valores científicos a de-senvolver na Universidade de Coimbra; o financiamento de todosos aspectos do novo sistema educacional através de um novo im-posto denominado Subsídio Literário e a implantação efetiva emassiva das aulas régias.

O relato do desenrolar da Reforma leva à percepção de que,apesar das boas intenções da Coroa Portuguesa – principalmente deD. João VI, monarca interessado e informado sobre o estado em quese encontrava a educação de seu reino –, o contraste com as condi-ções objetivas era gritante, e muito pouco era feito em termos con-cretos. A situação dos professores era especialmente difícil, poiseram vítimas de enormes exigências e de um profundo descaso.

Ao analisar a implantação do sistema de Aulas Régias no Riode Janeiro, Tereza Fachada traça um perfil da vida cultural da cida-de e mostra as profundas mudanças que a chegada da Corte Portu-guesa em 1808 operou nesse sentido. A educação brasileira, aquientendida como instrumento de formação de quadros administrati-vos, de difusão da cultura e de realização do ideal de felicidade pú-blica, também sofreu o impacto do governo de D. João VI e poste-riormente dos imperadores, influenciados que eram pelo pensamentoliberal. Assim, cursos superiores foram criados, a discussão sobre anecessidade de um Tratado sobre educação foi fomentada e as in-tenções de universalização e ampliação da oferta escolar eram asmelhores possíveis, mas nada disso acarretou qualquer melhora nocenário educacional do país. Isso ocorreu porque um dos traços fun-damentais da elite agrária brasileira da época era a adoção de um

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discurso liberal aparente e superficial, que nunca serviu efetivamentepara regular qualquer prática, refletindo a contradição entre as in-fluências iluministas vindas da Metrópole e o desejo de manutençãoda ordem colonial.

O último capítulo da obra, dedicado à descrição detalhada daspeculiaridades da estrutura de funcionamento do sistema de aulasrégias na cidade do Rio de Janeiro, é marcado pela profusão de do-cumentos oficiais, relatos e exemplos. Isso tudo revela a profundapesquisa da autora sobre a realidade das condições do sistema edu-cacional brasileiro e o cotidiano escolar que as aulas régias encerra-vam. Nesse capítulo percebem-se algumas características marcantesdo sistema, tais como a rígida fiscalização exercida pelo Estado e adesvalorização da figura do professor, alvo de vigilância constantee pago com baixos salários.

Além disso, outra marca do texto de Tereza Fachada é a prima-zia da descrição dos fatos sobre a crítica deles. Talvez isso seja umainfluência do referencial teórico utilizado – a vertente da históriapolítica, que adota a política como articuladora da sociedade –, poistanto a afirmação de que a educação era parte de uma estratégia demanutenção do poder da Coroa e constituía uma importante armade controle quanto a explicitação do caráter excludente da políticaeducacional pombalina são pontos mencionados de forma recorren-te, porém rápida.

Tal fato, contudo, não diminui em nada a extrema importânciada obra no rol dos estudos sobre a educação brasileira no cenáriodas reformas pombalinas. Isso ocorre porque o leitor tem diante desi uma clara e precisa articulação entre o contexto da RevoluçãoCientífica e do Iluminismo, a administração pombalina e o projetodesta para a educação, seguida de um profundo mergulho na reali-dade educacional gerada de fato por este período de profundas trans-formações. Evidencia-se, portanto, que na educação brasileira, aenorme distância existente entre ideais e realizações não é algo novo.

Patrícia Cristina Fincatti MoreiraAluna do curso de pedagogia da

UNICAMP. Bolsista de iniciaçãocientífica – CNPq.

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Dictadura y Educación

autores Carolina Kaufmann (dir.),Delfina Doval, CristinaGodoy, Claudio Suasnábar

cidade Madrideditora Miño y Dávila Editoresano 2001páginas 221

El libro que comentamos constituye un aporte significativo parael campo de producción de conocimientos relativos a las cienciasde la educación en general y en particular al área histórico-educativa.Da cuenta de una investigación sólida y rigurosa basada en el análisisde fuentes documentales pertenecientes al período investigado. Eneste sentido, los capítulos que componen este tomo corresponden aáreas problemáticas que se estudian en el Proyecto TIPHREA(Tendencias ideológico/pedagógicas en la historia reciente de laeducación argentina), investigación inscripta en el Programa deHistoria y Prospectiva de la Facultad de Ciencias de la Educación dela Universidad Nacional de Entre Ríos.

El libro se centra en las memorias históricas universitarias quecaracterizaron al ámbito pedagógico en el período seleccionado. Estasmemorias que parecen inmovilizadas no son ajenas a las escasasinvestigaciones acerca de la historia educacional reciente en la Ar-gentina, en especial aquellas dedicadas a profundizar el proyectoeducativo de la dictadura. Este tema es objeto de análisis en el capí-tulo I del libro Silencios inviables.¿Investigar en la historia educa-cional reciente? de Carolina Kaufmann. Dado que la dictadura y lasconsecuencias del terrorismo de Estado en la Argentina han sidopoco investigadas por los medios académicos disciplinares históri-cos y pedagógicos (a diferencia de otras áreas del conocimiento comola ciencia política, la economía, el derecho, la filosofía etc.), la auto-ra se pregunta acerca de los motivos que han dificultado y que

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dificultan la producción historiográfica al respecto, entendiendo quela misma, además de sintetizar un compromiso ético, contribuye adesentrañar el “entramado de la desmemoria”. En el texto se abordantanto los obstáculos que condicionan la producción científica, comolos vacíos o “silencios inviables” relacionados con la historia educa-cional reciente. Con respecto a los primeros, no sólo responden aaspectos epistemológicos, sino que también comprenden aspectospolíticos: la cultura del miedo como herencia de la dictadura, lastrabas burocrático-administrativas que restringen el acceso a lasfuentes documentales, los grupos vinculados al pasado autoritario y“reciclados” en las instituciones democráticas, las estrategiaseditoriales, la ausencia de una red de investigadores dedicados alestudio de la historia educacional reciente. Entre los segundos cabemencionar: las políticas educativas implementadas por las gestionesministeriales nacionales y provinciales, el funcionamiento de las“comisiones asesoras” en esos mismos ámbitos, los procesos dedepuración ideológica en las instituciones educativas, las caracterís-ticas de los estudios pedagógicos promovidos por el gobiernoautoritario, las relaciones entre los grupos de poder y los gruposacadémicos, la historia de la cotidianeidad escolar, los ámbitos deresistencia, los actos de control ideológico y su impacto en el pre-sente.

En el Capítulo II “Memorias públicas e historia: un diálogo enclaroscuro”, Cristina Godoy realiza un análisis de la “historia de lamemoria”. Se trata de un ensayo crítico que profundiza en los olvidos,omisiones y silencios presentes en el campo historiográfico. Para laautora, la ausencia de una “política de la memoria” compromete eltraspaso generacional, la efectividad de la justicia y la estabilidaddemocrática, es decir, compromete al presente y también al futuro.Las relaciones entre memoria y justicia y entre memoria y miedoson especialmente abordadas. El miedo genera una desestructuraciónde las identidades tanto individuales como colectivas que afecta alas nuevas generaciones. Para que el futuro sea posible esimprescindible el imperativo de justicia y ello requiere una historiade las memorias. El diálogo entre memoria y justicia no puede serobturado, ya que como recuerda la autora “en estos años de demo-cracia, los argentinos hemos aprendido que el opuesto de memoriano es el olvido sino la justicia” (p. 76).

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En general los textos que estudian la política educativa imple-mentada por la dictadura tienden a enfatizar aquello que nos fue nega-do, prohibido, suprimido, excluido, censurado. Pero simultáneamentecon esa operación de vaciamiento el régimen militar apeló a laconstrucción de una propuesta pedagógica oficial orgánica que seinstaló en todos los niveles del sistema educativo. “Las ‘ComisionesAsesoras’ en Dictadura. FCE, UNER, Argentina” es el título del Capí-tulo III. Su autora, Carolina Kaufmann, aborda el proceso demilitarización sufrido por la enseñanza pública, en particular en elámbito universitario. El modelo educativo que se generó articuló losvalores militares tradicionales (orden, disciplina, jerarquía etc.) y losvalores confesionales. Kaufmann analiza la política universitaria apli-cada en la Universidad Nacional de Entre Ríos, específicamente en laFacultad de Ciencias de la Educación. En esa institución la dictaduraimplementó las mismas medidas que en el resto del ámbito educativo:censura, silenciamiento, uniformización del pensamiento, destruccióndel patrimonio cultural, sanciones, expulsiones etc. Pero la origina-lidad de este texto radica en que se profundiza en actos institucionalesy responsabilidades individuales y colectivas, particularmente en los“grupos académicos” que conformaron la comisión Asesora quecontribuyó a poner en marcha un “nuevo ordenamiento” en la biblio-teca. En los hechos esto significaba retirar, trasladar y dar de bajatextos y distintos materiales de estudio, previo estudio de la Comisión.La autora entiende que para lograrse el pretendido “reordenamiento”académico-institucional se requería, por un lado, de funcionarios quecoincidieran con los postulados ideológicos de la dictadura, y, por elotro, una actitud corporativa interna a los efectos de establecerlealtades entre ellos. Esta comisión, ejerciendo un poder inquisitorial,elaboró “listas” bibliográficas de las cuales quedaron excluidos yfueron trasladados textos, revistas, separatas, informes etc. Este capí-tulo da cuenta de una sólida investigación acerca de cómo la dictaduranecesitó de grupos académicos que oficiaran de soporte ideológico(en la medida que adherían a valores vinculados al perennialismopedagógico, integrismo moral y religioso y autoritarismo) queasumieran tareas de control, supervisión y ejecución de una políticaacadémica militarizada.

Delfina Doval es la autora del capítulo IV, “Una escuela depensamiento. Universidad y dictadura: un estilo de vida misional” y

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se centra en el análisis de los temas educativos publicados en el pe-ríodo seleccionado por la revista Mikael (órgano de difusión ydiscusión académica del Seminario Arquidiocesano de la ciudad deParaná, Entre Ríos) y sus vínculos con los grupos académicosconstituidos en la Facultad de Ciencias de la Educación de laUniversidad Nacional de Entre Ríos. Es importante recordar que enel período de aparición de la revista, estuvo a cargo de la Arquidiócesisde Paraná Monseñor Tortolo quien a la vez era vicario generalcastrense de las Fuerzas Armadas de la Nación. La autora analiza losartículos que responden a una visión integrista y cuyo corpus ideo-lógico se construye en la superposición de catolicidad y nacionalidad;esto es en una identidad entre confesión religiosa y ciudadanía,fundante del “ser nacional” argentino. La intención de Mikael fueaportar en la tarea de clarificación en el campo de la cultura y en ladefinición de un estilo universitario similar al eclesiástico y al mili-tar. Su finalidad fue la evangelización cultural, por cuanto entendíaque se estaba frente a una cultura materialista y atea, a través de latransmisión de verdades filosófico-teológicas. La revista no sólo sedifundió sino también fue recomendada por distintas cátedras de laFacultad de Ciencias de la Educación. A su vez, algunos docentesque se desempeñaron en la institución fueron los autores de algunosde sus artículos. Estos grupos académicos conformaron, a juicio dela autora, una verdadera escuela de pensamiento que remedó prácticaspreconciliares y totalitarias en la convicción de que sólo su pensa-miento era válido y verdadero. En palabras de la autora “esta escuelade pensamiento produjo un juego de espejos deformantes, querecogían la opacidad de quienes sólo aspiraban ver el reflejo de losdivulgadores canónicos, de los maestros de la verdadera sabiduría,que debían acallar el disenso y postrar la universidad argentina anteel altar de la Pedagogía de la Renuncia para contribuir a laReorganización Nacional” (p. 142).

La transición a la democracia recibió, entre otras muchasherencias, espacios académicos conformados durante la dictadura.Uno de ellos fue el Instituto Rosario de Investigaciones en Cienciasde la Educación (IRICE) dependiente del Consejo Nacional deInvestigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) y de la UniversidadNacional de Rosario. Carolina Kaufmann ha investigado acerca delfuncionamiento de los grupos de investigación nucleados en el insti-

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resenhas 175

tuto, presentando así una síntesis en el capítulo V “La Siberia rosarina.IRICE-CONICET-UNR, Argentina (1977-1983)”. El IRICE se creó en elaño 1977, con el objetivo de desarrollar investigaciones en cienciasde la educación, instrumentar programas de recursos humanos ypromover la transferencia de conocimientos pedagógicos. La autoramuestra cómo esa institución ilustra aspectos de la política económica(las características de la entrega de subsidios para su funcionamientopor parte del CONICET y el papel que jugaron fundaciones y centrosen tanto administradores, demostrando el desvío de fondos públicosa la esfera privada) como de política educativa de la época. El IRICE

se constituyó como un “centro especializado en investigacióndidáctica” con un “enfoque central y unificador”, cuyo corpus teóri-co correspondió al modelo matético desarrollado por el Prof. RicardoBruera y que orientó todos los proyectos de investigación y todas laspublicaciones. Una de ellas, el Boletín Informativo, en algunos ca-sos fue indicado como bibliografía obligatoria en cátedras del De-partamento de Pedagogía de la Facultad de Humanidades y Artes,UNR. El ámbito de aplicación de los resultados de las investigacionesrealizadas en el instituto fue el Colegio Rosario, que se convirtió enun verdadero “laboratorio didáctico”. Kaufmann señala que el IRICE

llevó adelante una política de becas acorde con el objetivo de formarrecursos humanos o de “reclutamiento de personal”. Con la mismaintención se abrió el curso de posgrado en ciencias de la educación yla carrera de doctorado en ciencias de la educación. Cabe recordarque en la puesta en marcha y consolidación del IRICE jugó un papelfundamental el profesor Bruera, quien, además de un “teórico de laeducación”, fue el primer ministro de Educación de la dictadura ydocente de la UNR. Una vez caído el régimen de facto, el IRICE

continuó monopolizado por Bruera y su equipo de investigadores.Este capítulo cuenta con un anexo documental que muestra cómo yquiénes conformaron los equipos y cuáles fueron la temáticasinvestigadas y los proyectos, quiénes los dirigían, quiénes fueronlos doctorandos y los directores de tesis.

Por último, el capítulo VI “REVISTA PERSPECTIVA UNIVERSITARIA.Voces disidentes en dictadura”, de Claudio Suasnábar, tiene por obje-tivo analizar los contenidos de esa revista que nucleó a un grupo dedocentes e investigadores universitarios, en la medida en que consti-tuyó una publicación político-cultural donde se manifestó parte de

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la disidencia intelectual durante la dictadura. La revista, que tomócomo eje los problemas de la universidad, reflejó, por un lado, unadiversidad de posturas y, por el otro, la convicción de que un modelode universidad siempre está en íntima relación con un modelo depaís. El autor señala que si bien entiende que esta publicación atravesópor tres etapas, en el presente capítulo se centrará en la primera y enla segunda. La primera, desde su creación en 1976 hasta 1979, incluyóla caracterización de las primeras medidas de la dictadura en materiauniversitaria. Los artículos se ocuparon del éxodo de técnicos yprofesionales, de la falta de una política de desarrollo científico etc.A pesar del control y la censura impuesta, desde la revista se realizaronseñalamientos críticos a la política universitaria oficial, crítica queno tardaría en convertirse en denuncia, no sólo de temas universi-tarios, sino que progresivamente fue incorporando cuestiones relati-vas a la política nacional. La sección dedicada a entrevistas permitiódar la palabra a políticos e intelectuales que en esos momentos notenían otro espacio de expresión. La segunda etapa, que se extendióhasta 1982, profundizó los rasgos anteriores, adoptando una actitudde abierta oposición al régimen militar. En síntesis, se trató de unapublicación que en un momento histórico donde imperaba la censu-ra y la cultura del miedo, intentó articular diferentes manifestacionesde desacuerdo o disidencia político-cultural.

El tomo I de Dictadura y educación, bajo la dirección de Caro-lina Kaufmann, representa un significativo esfuerzo para esclarecerel proyecto educativo universitario llevado adelante en uno de losperíodos más dolorosos de nuestra historia. Además constituye unaporte valioso en la reconstrucción y recuperación de la memoriahistórica colectiva, enfrentando olvidos, anudando eslabones, renun-ciando al silencio. Porque, como señala Eugene Enríquez, “Cuandouna sociedad quiere olvidar sus ‘agujeros negros’, sus fallas, sustraiciones, corre el riesgo de dar de nuevo nacimiento a lo ‘infame’que yace en ella y de repetir sus errores y sus crímenes”.

María del Carmen FernándezDocente en la Facultad de Humanidades y Artes

de Rosario (UNR). Magister en Educación en Facultad

de Ciencias de la Educación de Paraná (UNER). Argentina.

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Serie Clásicos de la Educación

Nota de Leitura

Comas, Margarita. Escritos sobreciencia, género y educación. Madrid:Biblioteca Nueva, 2001.

Luzuriaga, Lorenzo. La escuela única.Madrid: Biblioteca Nueva, 2001.

Natorp, Paul. Pedagogía social. Teoríade la educación de la voluntad sobrela base de la comunidad. Madrid: Bi-blioteca Nueva, 2001.

Em 8 de outubro de 2001, Antonio Viñao Frago (Universidad de

Murcia) enviou um carta aos associados da entidade que preside, a

Sociedad Española de Historia de la Educación (SEDHE), comunican-

do o lançamento de um empreendimento editorial que:

não apenas pretende facilitar a leitura de obras de diíficil acesso,

mas também oferecer estudos introdutórios renovados a cargo de

especialistas, os quais recolhem as investigações mais importantes

dos últimos anos sobre os autores selecionados, assim como estu-

dos sobre a sua recepção no mundo da fala espanhola

Tratava-se do lançamento da “Serie Clásicos de la Educación”,

dirigida por Agustín Escolano Benito (Universidad de Valladolid) e

Gabriela Ossenbach Sauter (Universidad Nacional de Educación a Dis-

tancia), contando com um alentado Conselho Assessor (do qual parti-

cipam pesquisadores da Espanha, do México, da Colômbia, da

Argentina e de Portugal) e com a colaboração da própria SEDHE. Na

orelha esquerda dos volumes dessa série, um texto, infelizmente anô-

nimo, anuncia:

Cada tempo, e o nosso também, decide que autores e que textos

têm de ser resgatados ou requalificados como clássicos. Esta série

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178 revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002

de Clásicos de la Educación nasce para facilitar a leitura dos livros

que nos ajudarão a entender quem somos e onde temos chegado.

Mediante o diálogo com eles, os professores e pedagogos da nossa

época intalar-se-ão criticamente na tradição de uma cultura educativa

ainda viva, da qual não é possível nem razoável prescindir.

A série, por sua vez, faz parte da coleção “Memoria y Crítica de la

Educación”, também dirigida por Agustín Escolano Benito, e consti-

tui um louvável esforço da editora espanhola Biblioteca Nueva, sediada

em Madri. A nós outros, da fala portuguesa com sotaque brasileiro, só

nos resta saudar a iniciativa, não sem uma pontada de inveja, já que os

volumes que compunham uma coleção semelhante, brasileira, a “Atua-

lidades Pedagógicas”, são hoje itens encontráveis apenas nas biblio-

tecas e nas lojas de livros usados, constituindo acervo que pouca

gente freqüenta, à exceção de alguns obstinados pesquisadores –

entre eles Maria Rita de Almeida Toledo, autora da magistral tese de

doutorado intitulada Coleção Atualidades Pedagógicas: do projeto

político ao projeto editorial (1931-1981), defendida em 2001.

O primeiro lote da “Serie Clásicos de la Educación” é formado por

três obras. A primeira é uma coletânea denominada Escritos sobre

ciencia, género y educación, de Margarita Comas, com edição e intro-

dução de José Mariano Bernal Martínez (Universidad de Murcia) e

Francesca Comas Rubí (Universitat de les Illes Balears). A segunda é

La escuela única, de Lorenzo Luzuriaga, para cuja edição e estudo

introdutório concorreu Herminio Barreiro Rodríguez (Universidad de

Santiago de Compostela). A terceira obra é Pedagogía social, de Paul

Natorp, com edição e introdução de Conrad Vilanou Torrano

(Universidad de Barcelona). Segundo o informe, acima mencionado, de

Viñao Frago, os próximos títulos a ser lançados serão: El descubri-

miento de la infancia, de Maria Montessori; Sobre Educación, de José

María Blanco White; Experiencia y educación, de John Dewey;

Memorias de un educador. Escritos sobre o sistema preventivo, de

Don Bosco; e La revolución en la escuela, de Rodolfo Llopis.

Entre os três títulos que inauguram a série, a autora da primeira

obra, Margarita Comas (1892-1973), talvez seja a menos conhecida do

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nota de leitura 179

público brasileiro. A sua biobibliografia, no entanto, revela uma per-

sonalidade e uma obra cujo interesse não se restringe às fronteiras

espanholas. Uma das primeiras mulheres na Espanha a obter, em 1928,

o título de doutor em Ciências Naturais, foi também a primeira mulher

a lecionar na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Autónoma

de Barcelona. Esse pioneirismo não poderia deixar de transparecer em

seus escritos, em que faz defesa fervorosa da coeducação dos sexos,

à época um verdadeiro tabu não apenas naquele país de forte tradição

católica ultramontana, mas também em outras partes do mundo. Outro

conjunto de textos que completa a coletânea refere-se às reflexões e

propostas da autora a respeito do ensino das ciências. Para ela, pen-

sar sobre esse ensino é, antes de tudo, indagar quais seus objetivos,

que, acredita, devem visar à formação dos homens:

Há uma porção de facetas da alma humana que um bom ensino

científico, melhor que nenhum outro, pode cultivar na escola, tais

são, por exemplo, o espírito de observação, a serenidade, o domí-

nio de si mesmo, o costume de buscar as causas das coisas, a

ordem, a cautela nas afirmações, a admiração pela natureza, a mo-

déstia, a tolerância etc. [Comas, 2001, p. 210].

Bem se vê que há aqui um fértil material para os historiadores

das disciplinas escolares para decifrar o enigma da composição dos

conteúdos desse curioso saber escolar, que recolhe temas da física,

da química, da biologia, da nutrição, da saúde e da higiene, da ecolo-

gia etc., sem se confundir com a mera vulgarização de nenhuma des-

sas ciências.

A segunda obra, do célebre educador espanhol Lorenzo Luzuriaga

(1889-1959), constitui um enérgico libelo em favor da chamada “escola

única” – termo que adotou após ter hesitado por outras denominações

(“escola unitária nacional”, “escola em unidade”, “escola unificada”),

conforme esclarecem Herminio Barreiro Rodríguez, em sua utilíssima

“Introdução”, e o próprio autor no início do seu texto (pp. 45-46). A

escola única, segundo Luzuriaga, é o coroamento das aspirações pro-

clamadas pelo “movimento de educação popular iniciado no século

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180 revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002

XVIII”, que se efetiva seja como “escola pública”, seja como “educa-

ção nacional”, “isto é, a educação acima das classes, a do povo em

sua totalidade”. Esse movimento:

encontra sua plena realização no século XX, que estabelece defini-

tivamente a escola pública, gratuita, obrigatória e nacional em todo

o mundo civilizado [...]. A escola única aspira a facilitar a fusão de

todas as classes sociais, de todas as forças políticas, de todas as

confissões religiosas em uma unidade espiritual superior, a alma

nacional, que inspire a todos e a cada um de seus membros

[Luzuriaga, 2001, pp. 51-52].

A obra de Paul (ou Pablo, como está grafado na capa e na página

de rosto) Natorp (1854-1924) difere das anteriores em pelo menos dois

aspectos: o autor não é espanhol, mas alemão, e o seu texto represen-

ta um esforço de constituir o campo pedagógico pela via especulativa

(no sentido empregado pelo idealismo alemão). Situando-se na tradi-

ção kantiana e neokantiana, o empreendimento desse continuador de

Pestalozzi consiste em formular a idéia da educação como formação

(Bildung) do homem visando à comunidade humana, somente na qual

e pela qual “o homem se faz homem” (p. 169) – daí o caráter necessa-

riamente social da sua pedagogia:

O conceito da pedagogia social significa, portanto, o reconheci-

mento fundado em princípios de que a educação do indivíduo, em

toda direção essencial, está condicionada socialmente, assim como,

por outro lado, uma conformação humana da vida social está fun-

damentalmente condicionada por uma educação adequada dos in-

divíduos que vão tomar parte nela. Conforme a isso é também

preciso que se determine o problema último e mais compreensivo

da cultura para os particulares e para todos os particulares. As

condições sociais da cultura, portanto, e as condições culturais da

vida social: tal é o tema desta ciência [Natorp, 2001, p. 178, grifos

do autor].

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nota de leitura 181

Talvez, ao ler as análises e as propostas desses autores, o leitor

de hoje seja tomado por um sentimento de estranhamento e decepção.

Ao que escreveu Margarita Comas – admitem Bernal Martínez e Co-

mas Rubí, que a apresentam –,

de uma perspectiva de análise feminista, poderiam surgir algumas

objeções [...] Por um lado, com sua formação em Ciências, mais

que romper com o modelo educativo masculino, o que conseguiu

Margarita Comas foi integrar-se nele, poder-se-ia dizer que “che-

gou ao mesmo nível intelectual de alguns homens”. Por outro lado,

[...] Margarita dedicou-se ao ensino [...] Dir-se-ia, pois, que esco-

lheu o caminho profissional socialmente melhor aceito para uma

mulher [Comas, 2001, p. 20].

Luzuriaga, por sua vez, ao propor a “escola única”, parece des-

considerar a profunda divisão social que marca a sociedade contempo-

rânea, burguesa, a mesma coisa acontecendo com Natorp, cuja idéia de

educação não prescinde da religião, embora secularizada, reduzida aos

limites da própria humanidade. Em suma, esses autores partilham da

profunda ilusão burguesa de universalidade, em que sucumbem as mais

belas almas e intenções. Mas com um pouco mais de atenção não é im-

possível perceber certas nuanças na noite escura da ideologia.

Lorenzo Luzuriaga, em 1922, fundou a Revista de Pedagogía, em

torno da qual gravitam importantes educadores espanhóis, entre os

quais Margarita Comas. É essa geração que assiste à proclamação da

Segunda República na Espanha, em 1931, e se lança às reformas edu-

cacionais que acredita ser as exigidas pelos novos tempos. Se Luzuriaga

imagina uma escola única capaz de superar a divisão social, não é

porque foi tomado por um romântico sonho (burguês) de conciliação

de classes, mas por acreditar que essa República só poderia prosperar

se possibilitasse a emancipação dos trabalhadores. Diz ele:

O movimento pedagógico de nosso tempo não é apenas produto

da maior intervenção do Estado, mas que teve também como mo-

tor a tendência cultural ascendente das classes trabalhadoras. Es-

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182 revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002

tas não quiseram ficar relegadas nos confins da educação elemen-

tar, e tem pedido cada vez mais facilidades para sair desta. [...] E

esse é o sentido da aspiração socialista em todas as partes. A

educação não patrimônio de uma única classe social, mas aberta e

possibilitada a todas, de modo especial à classe trabalhadora. Mas

isso não no sentido um tanto abstrato da educação nacional, uni-

versal, mas no mais concreto, da educação social [Luzuriaga, 2001,

pp. 52-53].

Não por acaso a expressão “educação social” remete à “pedago-

gia social” de Natorp. Como assinala Conrad Vilanou Torrano, que

apresenta a obra de Natorp,

a Pedagogia Social entrou na Espanha por meio do núcleo de

intelectuais (Fernando de los Ríos, María de Maetzu, García

Morente, Lorenzo Luzuriaga) que, seguindo os passos de Ortega

y Gasset, marcharam à Alemanha para estudar filosofia e pedago-

gia em Marburgo, onde lecionavam precisamente Cohen e Natorp

[Natorp, 2001, pp. 52-53].

Desse grupo de educadores, Fernando de los Ríos é autor de O

sentido humanista do socialismo, inspirado em Natorp. A propósito

deste, sugere Vilanou Torrano:

Talvez não seja exagerado detectar na filosofia de Natorp algumas

notas daquele socialismo utópico de primeira hora, ainda mais se

considerarmos o seu desejo de constituir verdadeiras comunida-

des de trabalho presididas por uma vontade humana definitiva-

mente harmonizada. Em todo caso, o socialismo da escola de

Marburgo se aproxima das teses social-democratas [...] [Natorp,

2001, pp. 42-43].

Na Espanha, as propostas assentadas nesse desejo de emancipa-

ção foram esmagadas pelo regime franquista que se consolidou após

a Guerra Civil (1936-1939). Margarita Comas e Lorenzo Luzuriaga tive-

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nota de leitura 183

ram de abandonar o país e ambos morreram no exílio: ela, na Inglaterra;

ele, na Argentina.

Hoje, talvez seja difícil concordar com as propostas desses três

autores, que parecem pecar por profunda ingenuidade, que as faz

presas fáceis da ideologia dominante. Mas o desejo e a vontade que

os alimentam ainda ecoam nesses tempos tão céticos e cínicos. Não

cabe, então, aprovar ou refutar-lhes as teses; o tempo destas já pas-

sou. Mas é possível pensar com eles, ou a partir deles, das suas

inquietações, seus sonhos, suas utopias. Por isso, a eles se aplicam

os comentários de Merleau-Ponty (1962) no “Prefácio” de Sinais:

A história do pensamento não pronuncia sumariamente: isto é ver-

dadeiro, aquilo é falso. Como qualquer história, tem decisões sur-

das: liberta ou embalsama certas doutrinas, transforma-as em

“mensagens” ou em peças de museu. Existem outras, pelo contrá-

rio, que mantém em atividade, [...] porque continuam falando para

lá dos enunciados, das proposições, intermediários a que estamos

vinculados se queremos ir mais além. São esses os clássicos [p. 18].

Não por acaso a série de que esses livros fazem parte denomina-

se “Serie Clásicos de la Educación”. Diz Ítalo Calvino (2001): “Um

clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para

dizer” (p. 11).

Kazumi MunakataPrograma de estudos pós-graduados em educação:

história, política, sociedade, da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo.

Referências bibliográficas

CALVINO, Ítalo (2001). Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhiadas Letras.

MERLEAU-PONTY (1962). Sinais. Lisboa: Minotauro.

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e historiografia da educação, de autores brasileiros ou es-trangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o direi-to de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, podendo versar sobre textos re-centes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessária a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo, seu nome, titulação e instituição a que está vincu-lado, projetos de pesquisa dos quais participa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas no âmbito da Comis-são Editorial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3 cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2 cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem seguir a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30.000 caracteres a 60.000 caracteres (aproxi-madamente de 15 a 30 páginas);

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revista brasileira de história da educação n°4 out./dez. 2002186

• Resenhas – de 8.000 caracteres a 15.000 caracteres (apro-ximadamente de 4 a 8 páginas);

• Notas de leitura – de 2.000 caracteres a 4.000 caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, dentro do texto, devem vir no for-mato sobrenome do autor, data de publicação e número da páginaentre parênteses, como, por exemplo (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados comoutras configurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Osdireitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidospor um ano à Revista Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cincoexemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberádois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, comsede no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em Históriada Educação – CDAPH, Universidade São Francisco, Av. São Fran-cisco de Assis, 218, Bragança Paulista-SP, CEP 12916-900.

Informações adicionais podem ser obtidas nos [email protected] e [email protected] ou notelefone (0xx11) 4034-8448, das 8h às 12h.

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CONTENTS

EDITORIAL 7

ARTICLES

The books of Bibliothèque Blue: archaism or modernity? 9Jean HébrardLaura Hansen and Maria Rita de Almeida Toledo (Translation)

Celso Suckow da Fonseca’s “História do ensino industrial no Brasil” 47José Rodrigues

Limits ans possibilities of historiographical sources... The trajectory of aresearch in history of education and racial-ethnical issues 75Eliane Peres

Letters, proxies, talismans and “patuás”. The meanings of literacy betweenslaves and freemen in the brazilian 19th century 103Maria Cristina Cortez Wissenbach

Education and slavery: a challenge for history 123Marcus Vinícius Fonseca

The Pretextato dos Passos e Silva’s school: literacies practices in the slavery world 145Adriana Maria Paulo da Silva

BOOKS REVIEW

AS LUZES DA EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS, RAÍZES HISTÓRICAS E PRÁTICA DAS AULAS

RÉGIAS NO RIO DE JANEIRO (1759-1834), Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso 167By Patrícia Cristina Fincatti Moreira

DICTADURA Y EDUCACIÓN, Carolina Kaufmann (dir.), Delfina Doval, Cristina Godoy,Claudio Suasnábar 171By María del Carmen Fernández

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READING NOTES

Serie Clásicos de la Educación 177Comas, Margarita. Escritos sobre ciencia, género y educaciónLuzuriaga, Lorenzo. La escuela únicaNatorp, Paul. Pedagogía social. Teoría de la educación de la voluntad sobrela base de la comunidadBy Kazumi Munakata

GUIDES TO THE COLLABORATORS 185

CONTENTS 187