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Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime

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Revista Brasileira deHistória da Educação

Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

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Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo Campos Men-donça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialJosé Gonçalves Gondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas(PUC-SP); Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP);Maurilane de Sousa Biccas (USP).Secretaria – Maria Cristina Moreira da Silva

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr. (UFUe Centro Universitário do Triângulo); Denice B. Catani(USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves (UEMS);Jane Soares de Almeida (UNESP); José Silvério Baia Horta(UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG); LúcioKreutz (UNISINOS); Maria Arisnete Câmara de Moraes(UFRN); Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ); Mariado Amparo Borges Ferro (UFPI); Maria Helena CamaraBastos (UFRGS); Maria Stephanou (UFRGS); MartaMaria de Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Portu-gal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes (Por-tugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel (Ca-nadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE),fundada em 28 de setembro de 1999, é uma socieda-de civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direitoprivado. Tem como objetivos congregar profissio-nais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docência em História da Educação e estimular es-tudos interdisciplinares, promovendo intercâmbioscom entidades congêneres nacionais e internacionaise especialistas de áreas afins. É filiada à ISCHE(International Standing Conference for the History ofEducation), a Associação Internacional de História daEducação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Libânia Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte: Titular: Maria das Graças Sá Peixoto Pinheiro(UFAM), Suplente: Andréa Lopes Dantas (UFAC)Nordeste: Titular: Ana Maria de Oliveira Galvão (UFPE)Suplente: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE)Centro-Oeste: Titular: Maria de AraújoNepomuceno (UCG)Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS)Sudeste: Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU)Suplente: Rosa Fátima de Souza (UNESP)Sul: Titular: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR)Suplente: Flávia Werle (UNISINOS)

SecretariaCentro de Memória da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco BTerceira Fase – Sala 40CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3194E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/junho 2005 no 9

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 8 da Revista Brasileira de História da Educaçãocontou com o apoio financeiro do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – EntidadeGovernamental Brasileira Promotora do Desenvolvimento Científicoe Tecnológico.

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-008Campinas-SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoRodrigo Nascimento

Diagramação e ComposiçãoDPG Ltda.

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Arte-finalWesley Lopes de Magalhães

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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Sumário

EDITORIAL 7

ARTIGOS

Tecnologias de ordenação escolar no século XIX: currículo e métodointuitivo nas escolas primárias norte-americanas (1860-1880) 9Rosa Fátima de Souza

Arquivos do Instituto de Educação: suporte de memória da educaçãonova no Distrito Federal (anos de 1930) 43Sonia de Castro Lopes

A produção da infância nas operações escriturísticas da administraçãoda instrução elementar no século XIX 73Cynthia Greive Veiga

Combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica: a experiênciado professor Manoel José Pereira Frazão na Corte imperial (1870-1880) 109Alessandra Frota Martinez de Schueler

Vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanasno pensamento educacional de Fernando de Azevedo 139José Cláudio Sooma Silva

A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa 177António Gomes Ferreira

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Debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 199José Lourenço Rocha

As representações dos professores primários: estratégia políticae habitus professoral 231Rosario S. Genta Lugli

RESENHAS

Os intelectuais na Idade Média 263Por Gesuína de Fátima Elias Leclerc

Manifesto dos Pioneiros da Educação: um legado educacional em debate 271Por Ana Maria de Oliveira Galvão

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 279

CONTENTS281

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Editorial

O número nove da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE)que agora apresentamos tem um significado importante, pois é o primeironúmero a ser publicado após a realização do III Congresso Brasileiro deHistória da Educação. Reafirmando-se como uma publicação consolidadano campo, vem buscando cada vez mais obter o apoio da nossa comunida-de de pesquisadores e também de agências de financiamento a publicaçõesde caráter científico, no sentido de assegurar a sua periodicidade.

Estamos incluindo neste número um novo procedimento que é o deexplicitar as datas de chegada dos artigos, dossiê, resenhas e notas deleitura, bem como o do envio desse material aos pareceristas, e no casode reformulação a data do envio e do retorno. Com isso pretendemos:demonstrar o rigor acadêmico a que temos submetido nossos trabalhos;aprimorar os tempos despendidos para cada uma dessas etapas, assegu-rando assim uma maior rapidez no fluxo e publicação dos trabalhos pro-postos à revista; e por último, assegurar de maneira mais tranqüila aperiodicidade sistemática desta publicação.

Aproveitamos ainda para agradecer a todos os colegas pareceristas,que desde a criação da revista têm realizado um trabalho de fundamentalimportância, colaborando na avaliação cuidadosa e séria de todos os tra-balhos enviados à Comissão Editorial. Sem esse empenho não consegui-ríamos vencer o desafio de fazer circular a revista semestralmente e nãoteríamos a qualidade reconhecida de nosso periódico.

Realizamos ainda neste semestre um levantamento e um cadastramentode todas as bibliotecas de universidades públicas para que possam rece-ber a nossa revista, buscando assim fazer uma maior divulgação e circu-lação da RBHE. Nosso desejo é que esse engajamento e comprometimento

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com o nosso projeto de publicação continuem cada vez maiores, espe-lhando assim o amadurecimento de um campo de conhecimento.

O Editorial deste número comparece com oito artigos bastante inte-ressantes, significativos e importantes para o nosso campo e acompa-nham ainda esta edição duas resenhas. Reiteramos ainda o convite paratodos os pesquisadores da historiografia da educação brasileira que con-tinuem encaminhando de maneira contínua e sistemática artigos, propos-tas de traduções, participando da organização de dossiês temáticos etc.

Por último, a Comissão Editorial apresenta uma retificação referenteao número anterior (julho/dezembro 2004, n. 8). No dossiê Tempos so-ciais, tempos escolares, que foi organizado por Maria Cristina Gouveia eLucia Martinez Montezuma, lamentavelmente só figurou o nome da pri-meira, e por isso gostaríamos de nos desculpar e ao mesmo tempo fazeressa correção.

Comissão Editorial

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Tecnologias de ordenaçãoescolar no século XIX

Currículo e método intuitivo nas escolasprimárias norte-americanas (1860-1880)

Rosa Fátima de Souza*

Este artigo consiste em um estudo sobre a construção do currículo da escola primárianos Estados Unidos e sobre a adoção do método intuitivo nesse país, no período de 1860a 1880. Tomando como fontes de pesquisa os primeiros programas de ensino e os prin-cipais manuais de lições de coisas em circulação na época, o texto examina a renovaçãopedagógica norte-americana que serviu de referência para outros países. A configuraçãocurricular e o método intuitivo são analisados considerando suas implicações para ainstitucionalização da escola primária, particularmente o modelo de escola graduada;eles também são analisados como tecnologias de governo – práticas racionais de contro-le de professores e alunos e de controle do ensino e da aprendizagem.HISTÓRIA DA ESCOLA PRIMÁRIA; HISTÓRIA DO CURRÍCULO; MÉTODOINTUITIVO; CULTURA ESCOLAR; EDUCAÇÃO NORTE-AMERICANA.

This article consists of a study on the construction of the primary school curriculum inthe United States and on the adoption of the object teaching in this country in the periodbetween 1860 and 1880. The bases for the source are the first course of studies elaboratedin the country and the mainly manuals of the object lessons in circulation at the time, thetext exams the American pedagogical renovation which served as the reference for othercountries. The curriculum layout and the object teaching are analized taking into accountits implications towards the institutionalization of the elementary school, particularlythe graded school model; both are also analized as government technologies – rationalpractices of teacher and students control, control of teaching and learning.PRIMARY SCHOOL HISTORY; CURRICULUM HISTORY; INTUITIVE METHOD;SCHOOL CULTURE; NORTH-AMERICAN EDUCATION.

* Doutora em educação, professora do Departamento de Ciências da Educação e doPrograma de Pós-Graduação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Univer-sidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara.

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10 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

A partir da segunda metade do século XIX, selecionar conteúdos eespecificar a sua seqüência e como ensinar em cada série passou a cons-tituir-se em uma prática racional de controle do ensino e da aprendiza-gem nas escolas norte-americanas.

Os primeiros programas de ensino denominados graded course ofinstruction ou course of study surgiram em resposta aos problemasorganizacionais da escola moderna, isto é, a escola graduada fundamen-tada na classificação dos alunos mediante exames, que passou a exigir ainvenção de um sistemático e progressivo plano de estudos. Além dadefinição do que ensinar, tornou-se fundamental a prescrição do méto-do de ensino visto pelos profissionais da educação da época como fun-damento da renovação pedagógica, base racional do trabalho docente econdição de eficiência do empreendimento educativo. Em relação à es-cola primária, a seleção e ordenação do conhecimento escolar e a ado-ção do método intuitivo estiveram intrinsecamente vinculados à con-cepção de criança e como ela aprende. Por isso, a história do currículoda escola elementar está intimamente relacionada à história da constru-ção da criança no discurso educacional.

Dos primeiros esforços de elaboração dos programas para o ensinoprimário na década de 1860, aliados às tentativas de adoção do métodointuitivo, até os debates sobre currículo na virada do século XIX para oséculo XX, a criança e o currículo foram reinventados na sociedadenorte-americana tornando-se objetos de conhecimento e de intervençãopolítica.

Este artigo consiste em um estudo sobre a construção do currículoda escola primária nos Estados Unidos e sobre a adoção do métodointuitivo nesse país no período de 1860 a 1880. Tomando como fontesde pesquisa os primeiros programas de ensino e os principais manuaisde lições de coisas em circulação na época, o texto examina a renovaçãopedagógica norte-americana que serviu de referência para outros paí-ses. A configuração curricular e o método intuitivo são analisados con-siderando suas implicações para a institucionalização da escola elemen-tar, particularmente o modelo de escola graduada; eles também sãoanalisados como tecnologias de governo – práticas racionais de contro-le de professores e alunos e de controle do ensino e da aprendizagem.

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 11

A propósito, convém um esclarecimento conceitual. Os termos tec-nologia de governo, alquimia curricular e tecnologias de ordenação es-colar utilizados no texto fundamentam-se no pensamento de MichelFoucault sobre a relação entre conhecimento e poder (Foucault, 1986,2000, 2001, 2002). Particularmente, eles são usados aqui com base nosestudos de Popkewitz sobre currículo. Partindo da concepção produtivade poder de Foucault, que busca ressaltar como as pessoas produzemconhecimento para intervir nas questões sociais, Popkewitz entende ocurrículo como uma tecnologia disciplinar, uma vez que direciona comoo indivíduo age, sente, fala e vê o mundo e a si mesmo. Decorre, portan-to, o entendimento de currículo como prática de governo – prática dedirecionamento e controle, pois aprender a ler e escrever, assim comoaprender matemática, ciências, história, geografia e outros conteúdos,implica algo mais além da aprendizagem de conhecimentos, implicaaprender certas capacidades, disposições e sensibilidades sobre o mun-do (Popkewitz, 1998; Popkewitz et al. 2001). O termo tecnologia apli-ca-se, portanto, ao mundo social referindo-se à forma pela qual “idéiase práticas diferentes asssociam-se para produzir meios que dirigem emoldam a conduta dos indivíduos” (Popkewitz, 2001, p. 31). No âmbitoeducacional, diferentes idéias e práticas contribuem para a constituiçãoda escola como ela se apresenta em determinado momento histórico. Astecnologias de ordenação escolar envolvem um conjunto de meios or-ganizados com vistas a regular a instituição educativa e aqueles quenela estão envolvidos. Por alquimia curricular, Popkewitz quer indicar“um processo através do qual os campos disciplinares da matemática,da literatura, da arte e das ciências são transformadas em matérias esco-lares” (idem, p. 105). Essa alquimia envolve uma mistura de práticasreguladoras e de instrução e ocorre em três níveis: a) tendo em vista osconteúdos do currículo, isto é, os fragmentos de informação; b) a ênfaseem determinados recursos textuais, especialmente o uso de livros didá-ticos; e c) a ligação do conhecimento com a subjetividade dos alunosgarantida por meio de testes e avaliações. Significa dizer que, na trans-missão do conhecimento, se encontra sempre subjacente algo mais quetem a ver com tecnologias de controle social.

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Em primeiro lugar, o texto examina o processo de implantação daescola primária nos Estados Unidos considerando a introdução do mode-lo de escola graduada. Em seguida, analisa a forma pela qual os progra-mas do ensino primário foram concebidos para atender às necessidadesde racionalização desse modelo de escola. Por último, focaliza a inovaçãoeducacional representada pela adoção do método intuitivo nesse país ecomo tal inovação articulou-se com a racionalização curricular em voga.

A institucionalização da escola elementarnos Estados Unidos da América

Os norte-americanos iniciaram a implantação do sistema público deensino nas primeiras décadas do século XIX. Entre 1830 e 1860, desen-cadearam o movimento em prol das escolas comuns (common schoolsystem). Horace Mann, Henry Barnard e John Philbrick são apontadospela historiografia da educação norte-americana como os principais lí-deres da reforma educacional levada a termo no país nesse período. Elese outros reformadores defendiam o ensino público e obrigatório, a par-ticipação do estado no financiamento da educação, a difusão da escolapara todas as crianças, maior uniformidade no ensino e finalidades polí-ticas amplas para a escola pública (Kaestle, 1999). Os líderes da refor-ma educacional, especialmente Horace Mann e Henry Barnard, busca-ram na Europa o modelo a ser seguido. Esses homens entraram emcontato com os sistemas públicos de ensino europeus mediante viagense visitas a escolas de diferentes países e a leitura de obras educacionais– livros, artigos de revistas e relatórios oficiais sobre o ensino. O siste-ma educacional prussiano foi o que mais atraiu a atenção de HoraceMann na viagem que fez à Europa em 1843. O secretário do Conselhode Educação de Massachusetts surpreendeu-se, especialmente, com aorganização das escolas com base na classificação dos alunos e com osmétodos de ensino empregados.

Adotar a graduação do ensino nos moldes das escolas prussianas foium desafio para os educadores norte-americanos e consistiu em um pro-cesso lento. Até por volta de 1850, o termo grade (série) não se aplicava

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 13

a um nível particular dentro da escola, mas sim à prática de coordenaruma série de escolas de diferentes níveis. De acordo com Kaestle, otermo escola graduada (graded school) significando escola elementar éde uso posterior. Até então, dizer que uma cidade ou vilarejo possuíaescolas graduadas significava dizer que o lugar possuía diferentes ní-veis educacionais, por exemplo, o jardim de infância, a escola primária,a grammar school1 e as escolas secundárias.

A primeira experiência de instalação de uma escola elementar gradu-ada nos Estados Unidos ocorreu em 1848, na cidade de Boston. Na época,o educador John Philbrick convenceu o Conselho de Educação de Bostonde que uma adequada classificação dos alunos requeria um novo tipo deedifício-escola. Em 1848, a nova Quincy School foi instalada e Philbricktornou-se o diretor. O edifício foi construído com quatro andares, um au-ditório para 700 alunos e 12 salas de aula, cada uma destinada a 56 alu-nos. Cada professor tinha uma sala de aula separada correspondendo acada série e cada aluno tinha uma carteira individual. O sistema logo seexpandiu pelas grandes cidades do país (Tyack, 2000, pp. 44-45).

A classificação dos alunos, anunciada pelos primeiros reformadorescomo critério de renovação educacional, tornou-se, nas décadas seguin-tes, um problema institucional. A escola graduada pressupunha o esta-belecimento de critérios de promoção e exames minuciosamente elabo-rados. Isso, por sua vez, significava a exigência de um plano de estudos,ou seja, a estruturação/sistematização do ensino e da aprendizagem. Essaracionalização pedagógica implicava ativar tecnologias de controle e deadministração do conhecimento, dos alunos e professores. A partir dadécada de 1860, o aparecimento e a multiplicação de um novo tipo deliteratura educacional – os manuais didáticos sobre object teaching e osprogramas de ensino – constituem-se em exemplares dessas tecnologiasde controle colocadas em operação para a prescrição da prática educati-va. No início dessa década, termos como graded school e course ofinstruction ainda careciam de explicação e persuasão. Duas décadasdepois, já eram de uso comum no vocabulário educacional.

1. Grammar school refere-se ao segundo ciclo da escola primária nos Estados Unidos.

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Isso pode ser verificado na forma como os termos classe, série, es-cola graduada e sistema graduado de ensino foram definidos na primei-ra enciclopédia de educação publicada nos Estados Unidos em 1877(Cyclopaedia of education: a dictionary of information for the use ofteachers, school officers, parents, and others)2. Classe foi definido como“um número de alunos ou estudantes em uma mesma escola ou colégio,com o mesmo grau de conhecimento, recebendo a mesma instrução efazendo os mesmos estudos” (Cyclopaedia, 1877, p. 137). Uma acuradaclassificação dos alunos era ressaltada como elemento fundamental parao trabalho de instrução.

O termo grade (série ou grau) aplicava-se a dois sentidos: o primeiroreferia-se aos níveis de ensino (elementar, secundário e superior) e o se-gundo às divisões dentro de cada nível considerando o conhecimento e aclassificação do aluno: “Um curso é dividido em séries para conveniên-cia de classificação, e supõe-se que todos os alunos, em cada classe, te-nham o mesmo nível de conhecimento” (idem, p. 375). Série (grade)referia-se às divisões do curso de estudos baseado em várias considera-ções, enquanto classe aplicava-se às divisões da escola com base na uni-formidade de desempenho. A escola graduada (graded school) pressupu-nha a classificação dos alunos e a graduação do conhecimento em séries:

Escolas graduadas são usualmente definidas como escolas nas quais os

alunos são classificados de acordo com o seu progresso na aprendizagem,

sendo comparado o curso dividido em séries, com alunos de mesmo ou simi-

lar grau de conhecimento colocados numa mesma classe. Uma escola não

graduada, por outro lado, é aquela em que os alunos são ensinados indivi-

2. Essa enciclopédia foi editada pelos superintendentes das escolas públicas da cidadede New York, Henry Kiddle e Alexander Jacob Schem. De acordo com os editores, aobra consistia na primeira enciclopédia de educação em língua inglesa e tinha porfinalidade oferecer informações valiosas sobre os assuntos educacionais e estimularo estudo da pedagogia. A enciclopédia compreende um único volume com cerca de900 páginas abrangendo os seguintes tópicos: teoria da educação e instrução (peda-gogia e didática), economia escolar, administração de escolas e sistemas escolares,política governamental para a educação, história da educação, estatística, literaturaeducacional, index analítico. Ver: Cyclopaedia of education, 1877.

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 15

dualmente, cada um avançando tão rapidamente quanto as circunstâncias per-

mitirem, sem considerar o progresso dos outros alunos [idem, ibidem].

Segundo a descrição de Cuban (1984), por volta de 1890, havia vá-rios tipos de escolas públicas primárias nos Estados Unidos. Nas cida-des predominavam as escolas graduadas funcionando nove meses porano e contando com professores com certo nível de formação para omagistério. Enquanto isso, na zona rural predominava a escola multi-seriada de menor qualidade e parcos recursos, embora as mesmas fos-sem responsáveis pela matrícula de mais de 70% de todas as criançasatendidas pelo ensino público no país.

Apesar das múltiplas diferenciações – escolas urbanas e rurais, es-colas públicas e privadas, confessionais e laicas, escolas para brancos,para negros e para imigrantes – no final do século XIX, a institucionali-zação da escola elementar de oito anos de duração já havia se consolida-do nos Estados Unidos.

A alquimia da racionalização curricular

A partir da década de 1860, com a implementação das escolas gra-duadas urbanas, a questão dos programas de ensino foi totalmenteredefinida nos Estados Unidos.

Muitos profissionais da educação, especialmente os superintenden-tes de escolas públicas, passaram a dedicar-se à organização metódica esistemática do conhecimento a ser transmitido na escola primária. Esseesforço de elaboração de um plano racional de estudos vinculou a sele-ção/organização de conteúdos às idéias pedagógicas em vogaconsubstanciadas no método intuitivo ou object teaching fundamenta-do, por sua vez, em uma peculiar concepção sobre a aquisição do co-nhecimento e o desenvolvimento infantil. Ensinar tornava-se uma ativi-dade mais complexa e difícil que exigia eficiência e controle. Os manuaiselaborados a partir da década de 1860 passaram a oferecer não somenteorientações sobre a conduta do professor, mas tecnologias de ordenaçãodo conhecimento escolar.

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16 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

Dessa forma, a concepção de ensino foi redefinida dentro de outraracionalidade, isto é, a da racionalização, organização e administraçãoda escola graduada. O foco da discussão recaiu sobre o programa gra-duado de ensino e o trabalho do professor reconfigurou-se em função dadiscussão sobre conteúdo e método. Ensinar passou a envolver novaspráticas e a exigir diferentes atividades e capacidades do professor. Tra-tava-se de saber selecionar conteúdos, graduá-los de acordo com umaseqüência apropriada, usar o método adequado, avaliar e classificar ade-quadamente os alunos e imprimir eficiência ao ensino.

As expressões em uso – graded course of instruction e course ofstudy – compreendiam todos os elementos de racionalização implica-dos no termo currículo utilizado na época apenas no ensino superior. Aesse respeito, a definição da Cyclopaedia of education é clara:

Programa de instrução (course of instruction) consiste em uma série de

matérias de instrução ou estudo, organizadas na ordem em que elas devem

ser seguidas e agrupadas ou divididas em séries, cada uma a ser completada

em certo tempo. Tal organização dos estudos é algumas vezes chamada de

curso graduado e, especialmente na instrução superior de curriculum. Quan-

do essas várias matérias são organizadas na forma de uma ordem diária de

exercícios mostrando o tempo ou o número de lições a serem dadas a cada

matéria, isto constitui o horário escolar [1877, pp. 190-191]3.

O manual de W. H. Wells, The graded school. A graded course ofinstruction for public schools: with copious practical directions to teachers,and observations on primary schools, school discipline, school recordsetc. (1862), exemplifica uma das primeiras tentativas de implantação deum curso graduado de estudos nas escolas primárias norte-americanas.

Entre 1856 a 1864, Wells trabalhou como superintendente das esco-las públicas de Chicago. Nesse período buscou implantar as escolas pri-

3. Neste texto optamos por traduzir os termos course of instruction e course of studypor programa de ensino cujo sentido era o mesmo empregado no Brasil no séculoXIX e início do século XX. O termo inglês school programme correspondia emportuguês a horário escolar.

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 17

márias graduadas na cidade, defendendo uma adequada classificaçãodos alunos a qual deveria, em sua opinião, vir acompanhada, necessa-riamente, de um programa uniforme de ensino e de exames padroniza-dos. O programa graduado de estudos proposto por Wells no manual erao mesmo adotado nas escolas públicas de Chicago e seu livro foi ampla-mente adotado nas cidades do velho nordeste norte-americano comoprograma oficial de ensino (Tyack, 2000, p. 46).

Porém, na década de 1860, a escola graduada constituía, ainda, umainovação recente. Esse modelo escolar foi concebido nos Estados Uni-dos para uma escola elementar compreendendo dois ciclos: a primaryschool e a grammar school, na qual se destacavam três princípios fun-damentais: a classificação dos alunos, o emprego do tempo e o ensinosimultâneo. Não por acaso, nas primeiras páginas do manual The gradedschool, Wells buscou definir o novo modelo escolar: “uma escola gra-duada é uma escola na qual os alunos são divididos em classes de acor-do com seus resultados e na qual todos os alunos de cada classe assis-tem aos mesmos ramos de estudos ao mesmo tempo” (Wells, 1862, p.7). Em nota de rodapé o autor esclarecia ainda: “todos os alunos emqualquer classe assistem precisamente às mesmas matérias de estudos eusam os mesmos livros” (idem, ibidem).

A propósito, nota-se, por exemplo, uma certa imprecisão a respeitodo tempo de duração de cada série e a correspondência entre classe esala de aula. Wells propunha para a escola elementar um curso gradua-do abrangendo 10 séries – seis referentes à primary school e quatroreferentes à grammar school4. Recomendava ainda que as salas de auladas primeiras séries (9° e 10° graus) fossem divididas em quatro clas-ses; as séries seguintes, 8°, 7°, 6° e 5° graus, em três classes e as salas dagrammar school em duas classes. O termo classe aplicava-se, portanto,às divisões internas de uma sala de aula e denota a transição do ensinoindividual para o ensino efetivamente simultâneo:

4. Inicialmente, utilizou-se a ordenação invertida, isto é, o 10º grau correspondendo àprimeira série do ensino primário e o 1º grau correspondendo à última série dagrammar school, ou seja, última série do ensino elementar que nos Estados Unidoscompreendia os departamentos da primary e grammar school.

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Em cada sala de aula deverá haver uma primeira e segunda classe e é

importante que os mesmos alunos que constituem a primeira classe em uma

matéria constituam a primeira classe em todas as matérias seguidas pela classe.

Por esta organização, enquanto uma classe está recitando, a outra está prepa-

rando para a recitação e um processo alternado é mantido durante o dia dan-

do aos alunos amplo tempo para estudarem suas lições e ao professor amplo

tempo para instruir cada classe [...] É isto que se quer dizer por escola gra-

duada e classificada [Wells, 1862, p. 7].

O manual de Wells propunha um curso graduado de estudos abran-gendo o ensino elementar (primary e grammar schools) e o ensino se-cundário (high schools) e constava de inúmeras indicações sobre crité-rios de classificação e normas para um efetivo ensino simultâneo. Alémda indicação dos conteúdos a serem ministrados em cada série, o autoroferecia indicações metodológicas para o ensino de cada matéria e orien-tações acerca da disciplina dos alunos, aquecimento e ventilação dosedifícios escolares e referências bibliográficas. Dessa forma, The gradedschool é representativo de um novo tipo de literatura pedagógica – osmanuais didáticos de orientação propriamente curricular.

A característica principal desses textos consiste na prescrição minu-ciosa de vários aspectos pertinentes à transmissão dos saberes escola-res, associada, quase sempre, às inovações educacionais, isto é, ao pen-samento pedagógico de caráter inovador. Dessa forma, esses textoscompreendem ao mesmo tempo recursos de normalização e de inova-ção do ensino. A análise de alguns desses textos produzidos entre asdécadas de 1860 e 1890 demonstra como eles constituíram-se em apu-radas tecnologias de governo de professores e alunos operando não ape-nas na indicação de conhecimentos legítimos a ensinar, mas, principal-mente, estabelecendo as regras sobre como ensinar, incidindo, portanto,sobre os aspectos meticulosos da conduta de professores e alunos, esta-belecendo as finalidades do ensino de cada conteúdo e prescrevendo aaquisição de habilidades, conceitos, atitudes e sensibilidades.

Mas foi na ordenação minuciosa do emprego do tempo que se fun-damentou o curso graduado de estudos. Além de estabelecer as séries –arquitetura temporal da graduação escolar – Wells dedicou-se à prescri-

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 19

ção das funções e unidades capilares da atividade escolar, fixando aduração das lições e a distribuição dos conteúdos no horário. Não erarecomendado, por exemplo, que os alunos estudassem muitos conteú-dos ao mesmo tempo: “Não se deve permitir aos alunos estudarem maisdo que três ramos de estudo de uma vez, além de leitura, soletração eescrita; e é geralmente melhor ter algumas lições previstas para diasalternados do que ter até seis exercícios num dia” (Wells, 1862, p. 32).Em relação à duração das lições de recitação:

Em relação ao Departamento de Gramática, as recitações devem ser minis-

tradas compreendendo vinte cinco a quarenta minutos de duração, exceto exer-

cícios em soletração os quais podem ser completados, usualmente, em quinze

a vinte e cinco minutos; nas 5ª, 6ª e 7ª séries o tempo previsto para a recitação

deve ser entre vinte e vinte e cinco minutos, nas 8ª e 9ª séries, de quinze a vinte

minutos; e na 10ª série, de dez a quinze minutos [Wells, 1862, p. 33].

Para cada conteúdo, o autor sugeria uma distribuição do número delições por semana. Por exemplo, nas classes de leitura na 1ª série, deve-riam ser dadas lições duas ou três vezes por semana; na 2ª e 3ª séries, trêsou quatro vezes por semana; na 4ª série, quatro ou cinco vezes, nas 5ª e 6ªséries, cinco a oito vezes e nas 7ª e 8ª séries, oito a dez vezes por semana.

De acordo com Wells, a finalidade do manual não era tolher a indi-vidualidade e originalidade do professor, mas auxiliá-lo no esforço demelhorar o padrão de excelência de seus modos de instrução uma vezque havia princípios válidos que deveriam ser seguidos por todos: “Há,entretanto, certos princípios que pertencem a todos os bons sistemas deinstrução, e o professor que reivindica o privilégio de rejeitá-los porquepensa que ele pode ensinar melhor de outra forma é um membro quenão merece sua profissão” (Wells, 1862, p. 10). Dessa maneira, Wellsreafirmava a concepção predominante entre os profissionais do ensinoda época, segundo a qual havia princípios válidos e verdadeiros paranortear a educação como atividade sistemática. Tais princípios funda-mentavam-se, sobretudo, nas idéias de Pestalozzi e nos seus métodosinovadores de instrução. Wells não se preocupou em apresentar aos pro-fessores os princípios do método, mas a indicar os conteúdos e o modocomo o professor deveria proceder no ensino de cada um deles.

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Em relação à seleção de conteúdos para a escola elementar (primary egrammar schools), Wells sugeria um conjunto de atividades mais quematérias propriamente ditas envolvendo instrução oral, repetição de ver-sos e máximas, leitura e soletração, cálculo, desenho e escrita e exercíciosfísicos. A partir da 5ª série (primary department) acrescentava o ensino dageografia mediante o uso de livro texto e exercício oral, além de declama-ções, recitações e aritmética mental. A gramática era introduzida na 3ªsérie (grammar department) e composição e história na 2ª série.

Nas orientações metodológicas para o ensino das matérias são per-ceptíveis as novas concepções em voga. Em todas as séries, Wells deugrande ênfase à instrução oral que na época se contrapunha ao uso dolivro didático e abarcava as lições sobre as coisas comuns. As lições oraistendo como base as lições de coisas (object lesson) deveriam ser ministra-das diariamente, em todas as séries, com duração de 15 minutos. A propó-sito das lições de coisas, o autor alertava em nota de rodapé a ausência deum sistemático e progressivo programa de lições, pois muitos professoresconduziam tais exercícios sem terem em vista um objetivo determinado.Nas lições de leitura, recomendava a observância da compreensão. Nasoletração, dever-se-ia dar especial atenção à silabação em exercícios oraise escritos. Na escrita, o professor poderia aplicar exercícios simultâneospara toda a classe utilizando o quadro negro. Os exercícios de composi-ção requeriam cuidados dos professores na hora da recitação para desen-volver hábitos de leitura com precisão no uso da linguagem: “Os profes-sores devem ser claros e precisos em suas próprias expressões e enfatizara importância dos alunos selecionarem, todo o tempo, as melhores pala-vras e frases, para que assim, possam formar o hábito de usar boa lingua-gem no início de suas vidas” (Wells, 1862, p. 23).

Para o ensino da moral e maneiras o professor deveria utilizar pe-quenas histórias e exemplos: “Boa moral está intimamente ligada a boasmaneiras e os professores devem aproveitar cada oportunidade para in-culcar lições de diligência e cortesia” (idem, ibidem)5.

5. O gênero indicado por Wells era a anedota (anecdote) que em língua portuguesacorresponde ao mesmo sentido na língua inglesa, isto é, um relato sucinto de umfato jocoso ou curioso ou particularidade engraçada de figura histórica ou lendária.Ver Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

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O manual de Wells demonstra como foi possível conciliar o modelode escola graduada com os princípios do método intuitivo, isto é, comas idéias de renovação pedagógica fundamentada na educação dos sen-tidos e na criança como centro do processo educacional. Em realidade,Wells incorporou apenas aquilo que era compatível com um programade ensino baseado na lógica dos conteúdos. No caso, utilizou a instru-ção oral como espaço curricular para as lições de coisas e acrescentounas indicações metodológicas os princípios do ensino ativo e concreto.

O método intuitivo nas escolas primáriasnorte-americanas

Nos Estados Unidos, o método intuitivo foi denominado objectteaching6. De acordo com a Cyclopaedia of education, o termo com-preendia:

[...] um método de instrução no qual os objetos são empregados como meio

para desenvolver as faculdades dos jovens alunos com um triplo objetivo:

(1) cultivar os sentidos; (2) treinar as faculdades perceptivas de forma que a

mente possa armazenar idéias com clareza e nitidez e, (3) simultaneamente

com isto, cultivar o poder de expressão pela associação com as idéias forma-

das pela linguagem apropriada [1877, p. 658].

O verbete da Cyclopaedia esclarecia que o mérito pela introduçãodo object teaching como um método especial de instrução elementarpodia ser atribuído a Pestalozzi, mas os princípios do método podiamtambém ser encontrados em outros autores como Comenius, Locke,

6. Na Inglaterra, os princípios pedagógicos de Pestalozzi foram vulgarizados pelotermo object lesson. Os Estados Unidos utilizaram o termo inglês object lesson edifundiram outra expressão, isto é, object teaching. Na França, de acordo comBuisson, a expressão leçon de choses foi popularizada por Mme Pape-Carpantier apartir da Exposição Universal de 1867, mediante a tradução literal das palavrasobject teaching, object lessons, oriundas do senso prático dos norte-americanos.Ver Buisson, 1887.

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Rousseau, Basedow, Rochou, entre outros. Afirmava ainda quePestalozzi, inspirado pela leitura de Emílio de Rousseau no estudo dasfases do crescimento mental, chegou à conclusão de que o ensino deseus dias estava totalmente errado, pois violava as leis do desenvolvi-mento mental. Essas leis, na opinião de Pestalozzi, consistiam em que:

(1) o conhecimento das coisas pudesse preceder o das palavras; (2) para a

aquisição desse conhecimento, o único agente efetivo no primeiro estágio de

desenvolvimento mental era os sentidos, principalmente a visão, (3) os pri-

meiros objetos a serem estudados pelas crianças deveriam ser aqueles que

estivessem no seu entorno e somente em suas formas e relações simples; e

(4) tendo esses objetos como centro, a esfera do conhecimento poderia ser

alargada de forma gradual mediante a observação de objetos distantes

[Cyclopaedia of education, 1877, p. 342].

Nos Estados Unidos, o termo object teaching foi empregado emvários sentidos: de forma mais ampla para referir-se aos princípios ge-rais para a educação formulada por Pestalozzi e outros, isto é, um méto-do geral para o ensino e, em sentido mais restrito, como um conteúdoparticular do programa do ensino primário incluído na rubrica instruçãooral ou lições de coisas.

Em realidade, nesse país, a difusão das idéias de Pestalozzi iniciou-se nas primeiras décadas do século XIX, mediante a publicação de rela-tórios oficiais e traduções de artigos e obras do referido educador e deseus discípulos. Os pioneiros em defesa da implantação do sistema pú-blico de ensino, nas décadas de 1840 e 1850, utilizaram politicamenteos princípios do método intuitivo para reforçar o programa da reformaeducacional fundamentado na articulação entre a criação de uma novaescola e o ideal de formação do cidadão republicano para viver numasociedade em processo de modernização (urbanização/industrialização).Horace Mann, por exemplo, buscou convencer a opinião pública emrelação à superioridade do sistema escolar prussiano pelo fato de utili-zar os métodos renovados de ensino7.

7. Ver, por exemplo, Mann, 1844.

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Henry Barnard foi outro entusiasta das idéias de Pestalozzi. Nas pá-ginas de sua monumental revista The American Journal of Education8,dedicou-se à publicação de traduções de obras de Pestalozzi como Leonardand Gertrudes e How Gertrudes teach her children; e ainda, publicaçõesde biografias desse educador, relatórios de contemporâneos e ex-alunos edebates em relação à aplicação do método nos países europeus e nos Es-tados Unidos. Boa parte desse material publicado na revista foi posterior-mente organizado em três livros editados por Barnard: Pestalozzi andPestalozzianism: life, educational principles and methods of John HenryPestalozzi; with biographical skeches of several of his assistants anddisciples (1862); Object teaching and oral lessons on social science andcommon things, with various illustrations of the principles and practicesof primary education as adopted in the model and training schools ofGreat Britain (1860); Pestalozzi and his educational system (1874).

Mas de fato, object teaching tornou-se popular nos Estados Unidosentre 1860 e 1880. Nesse período, várias iniciativas de adoção do méto-do foram implementadas como a experiência de Edward Sheldon emOswego9, a introdução das lições de coisas nos programas de ensino das

8. De acordo com o próprio editor, a revista destinava-se exclusivamente à história,discussão e estatística de sistemas, instituições e métodos em educação em dife-rentes países e especialmente às condições do ensino nos Estados Unidos (Prefá-cio, v. I, 1855).Os historiadores da educação norte-americana atestam a pequena circulação dessarevista, especialmente, entre os professores, contudo, ressaltam a sua importânciana literatura educacional servindo como uma enciclopédia sobre educação. Numminucioso estudo sobre a revista, Thursfied considera os 31 volumes publicadosentre 1855 e 1881, o mais ambicioso projeto jornalístico empreendido e sustentadopor um norte-americano individualmente no século XIX. Sobre essa revista verThursfield, 1945.

9. Nas décadas de 1860 e 1870, Oswego foi considerada a meca da renovação doensino nos Estados Unidos. A escola normal – Oswego Primary Training School,dirigida por Edward Sheldon – foi responsável pela formação de alunos vindos dediferentes regiões do país e até mesmo do exterior. Além disso, serviu de referênciapara a criação de outras escolas normais com a mesma organização e currículo fun-damentados no object teaching. Profissionais da educação norte-americanos viamem Oswego a consolidação dos seus ideais de renovação do ensino. Norman A.Calkins, superintendente das escolas públicas de New York, em comunicação apre-sentada na reunião da National Teachers’ Association, em 1862, sobre a história do

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escolas públicas primárias, a publicação de manuais didáticos e a multi-plicação de artigos em periódicos educacionais. Ao longo do século XIX,os princípios de Pestalozzi consubstanciados no método intuitivo foramapropriados de forma peculiar para a sua adoção na escola primária gra-duada. Os manuais de lições de coisas tiveram um papel importantenessa tradução.

Os manuais de lições de coisas produzidosnos Estados Unidos

Em 1861, Norman Allison Calkins10 publicou Primary objectlessons, for training the senses and developing the faculties of children.A manual of elementary instruction for parents and teachers, um dosprimeiros e bem-sucedidos manuais de object lessons escrito por umeducador norte-americano. O manual de Calkins teve uma projeção sig-nificativa na época. Em 1870 chegou à 15ª edição e dez anos depois à40ª edição. A obra foi traduzida em outras línguas, duas versões emespanhol (Montevideo, 1872, 1878), uma em português (Brasil, 1886) euma versão japonesa (1877), e foi citada em inúmeros manuais didáti-cos contemporâneos, especialmente, nos programas do ensino primárioadotados nas escolas públicas de New York em que Calkins trabalhoucomo superintendente assistente por mais de três décadas e em progra-mas de outros estados do norte dos Estados Unidos11.

object teaching, ressaltou o sistema de Oswego como o primeiro esforço sistemáti-co de introdução do método nos Estados Unidos e o melhor exemplo da possibili-dade de adoção do mesmo (Calkins, 1862, p. 643). Sobre o movimento de Oswegover Dearborn, 1925 e Barlow, 1977.

10. Norman Allison Calkins (1822-1895) iniciou sua carreira no magistéiro primárioem 1840 em Castile, New York. Foi assistente superintendente das escolas primá-rias da cidade de New York entre 1862 e 1895. Concomitante a essa atividadeatuou como professor de princípios e métodos de educação nas classes de sábadoda New York Normal School entre 1864 e 1882. Calkins teve participação ativa naNational Education Association como presidente do departamento de escolas ele-mentares (1873), presidente do departamento de superintendentes escolares (1873)e tesoureiro (1883-85), presidente (1886) e diretor da mesa curadora (1886-95).

11. Além desse manual, Calkins publicou outras obras, tais como: How to teach phonics:ear and voice training by means of elementary sounds of language (1889); Prang’s

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Contudo, na historiografia contemporânea da educação norte-ame-ricana, a obra de Calkins tem sido sistematicamente ignorada como, deresto, tudo o que diz respeito a object teaching e ao movimento de reno-vação pedagógica de meados do século XIX.

Quando Calkins publicou Primary object lessons, já havia outrosmanuais de lições de coisas em circulação naquele país, principalmente,os manuais de Elizabeth Mayo: Lessons on objects: their origin, natureand uses for the school and families (1831) e Lesson on shells: as givenin a Pestalozzian school at cheam, survey (1832)12.

Em realidade, esses dois trabalhos de Elizabeth Mayo tornaram-seobras muito populares entre os professores primários britânicos e norte-americanos. Nesses manuais, o primeiro voltado para o ensino de crian-ças entre 6 e 8 anos e o segundo para crianças entre 8 e 10 anos, ElizabethMayo desenvolveu uma interpretação própria das idéias de Pestalozzi13.A autora buscou a aplicação prática dos princípios educacionais desseeducador preservando a idéia, mas mudando a forma como explicaCharles Mayo:

Profundamente convencido das verdades das concepções de Pestalozzi e pre-

venido contra seus erros por meio de longas e atualizadas observações de suas

conseqüências, o escritor destas notas introdutórias determinado a tentar intro-

natural history senses for children (1878); First reading: from blackboard to books,with directions for teachers; to accompany Calkin’s reading cards (1883); Teachingcolors, notes from lectures delivered before primary teachers at the Saturday sessionof the New York Manual College (1877); How to Teach: a graded course ofinstruction and manual of methods for the use of teachers (publicado juntamentecom Henry Kiddle e Thomas Harrison em 1873).

12. Várias edições dos manuais de Mayo foram publicadas nos Estados Unidos. Lessonson Objects teve uma edição em Boston pela Carter Hendell Bascock em 1831, duasem Philadelphia: uma pela Haswell & Barrington em 1839 e outra pela J. B.Lippincott em 1857, outra em Chicago pela Ivison/ Blackeman em 1863. Lessonson Shells foi publicado pela Peter Hill & Co, New York em 1834.

13. Charles Mayo passou três anos na escola de Pestalozzi em Yverdon (1819 a 1822)estudando o seu método. De volta à Inglaterra buscou implantar o método nasescolas de Epson e Chean. Mayo contou com a colaboração de sua irmã ElizabethMayo que se tornou a principal responsável pela publicação de manuais didáticose experimentação prática dos princípios de Pestalozzi (Cf. Brown, 1986).

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duzir seu método na Inglaterra, preservou religiosamente a idéia, mas adaptou a

forma das mesmas às circunstâncias nas quais elas podem ser utilizadas14.

Essa aplicação prática consistia em oferecer aos professores liçõessobre objetos, apresentados na forma de perguntas e respostas, compre-endendo séries graduadas tendo em vista o grau de dificuldade e a pro-gressão gradativa do aluno.

As lições sobre objetos diversos – vidro, couro, açúcar, esponja,água, pão, sementes, leite, arroz, sal, caneta, cadeira, chave, copo, te-soura, maçã, cola, mel, manteiga, ferro, agulha, pimenta, óleo, vinagre,tinta, vela, lã, chumbo, ouro, prata, cobre, entre outros – eram apresen-tadas aos professores enfatizando a observação e tendo em vista o de-senvolvimento da linguagem, número e forma. Cada passo deveria seriniciado e controlado pelo adulto e muitas lições enfatizavam um aspec-to moral. Dessa forma, Elizabeth Mayo oferecia aos professores umaestratégia prática para a adoção do método moderno de ensino. A lição-modelo compreendia, portanto, num instrumental a ser colocado em exe-cução. Isso, por um lado, explica o sucesso dos manuais uma vez quepodiam ser tomados como um guia da ação. Por outro lado, a ênfase naorientação e conduta do professor acabou resultando em um formalismoabstrato, em recitações monótonas de lições sobre objetos (Brown, 1986).

Não obstante, à medida que as idéias de renovação do ensino propa-gavam-se nos Estados Unidos crescia a demanda pelos manuais de li-ções de coisas motivando a reimpressão e novas edições ampliadas ereescritas dos textos em circulação, além do aparecimento de novosmanuais. Os manuais de Elizabeth Mayo e o trabalho desenvolvido pelaHome Colonial Society foram uma referência importante15. No início dadécada de 1860, vários educadores norte-americanos dedicaram-se aesse empreendimento. Em 1860, Henry Barnard organizou em forma de

14. Charles Mayo, no prefácio do livro de Elizabeth Mayo Lessons on objects, ediçãode 1843, p. VI.

15. A Home and Colonial Infant School Society iniciou, em 1836, suas atividades des-tinadas à formação de professores. A atuação de Charles Mayo e James Greevescontribuiu para que a Sociedade se tornasse um centro de referência e de difusãodas idéias de Pestalozzi na Inglaterra e suas colônias.

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livro vários textos sobre object teaching publicados na década anteriorna revista American Journal of Education. O livro foi intitulado: ObjectTeaching and oral lessons on social science and common things, withvarious illustrations of the principles and practice of primary educationas adopted in the model and training schools of great britain. Em 1861,Norman A. Calkins publicou Primary object lessons e em 1862, EdwardSheldon publicou A manual of elementary instruction, for the use ofpublic and private schools, and normal classes, containing a graduatedcourse of object lessons for training the senses and developing thefaculties of children. Em 1863, Sheldon publicou uma versão ampliadada 14ª edição do manual de Elizabeth Mayo que havia sido publicadaem Londres em 1855, intitulada Lessons on objects, graduated series,designed for children between the ages of six and fourteen years,containing also, information on common objects.

Na edição norte-americana, Sheldon reordenou as lições e ampliouo manual: “Um número de lições foram omitidas e outras substituídas,muitas informações sobre objetos comuns foram acrescentadas. No tra-balho original havia apenas poucas Lições Modelo; nesta, um grandenúmero adicional foi inserido” (Sheldon, 1863, p. 3).

No prefácio da primeira edição de Primary object lessons, Calkinsinseria sua obra entre os esforços dos educadores da época em transfor-mar princípios filosóficos postulados por Comenius e Pestalozzi em ati-vidades de ensino16. Dessa forma, diferenciava princípios de suas for-mas de aplicação. Enquanto os primeiros eram válidos e imutáveis, asformas de aplicação poderiam ser modificadas. Segundo o autor, a fina-lidade de seu manual era contribuir para uma radical mudança no siste-ma de instrução primária dos Estados Unidos, uma mudança que subs-tituía o exercício da memória pelo desenvolvimento dos poderes deobservação, da educação artificial para o plano natural. Para a preparaçãoda obra, dizia ter consultado outros trabalhos, tais como o de Wilderspin,

16. Para as considerações feitas na sequência do texto utilizamos a 40ª edição revisadado manual de Calkins, Primary object lessons for training the senses and developingthe faculties of children: a manual of elementary instruction for parents and teachers.Nessa edição encontram-se os prefácios escritos pelo autor para a 1ª, 15ª e 40ªedições.

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Stow e Currie na Europa e o praticado pela Home and Colonial SchoolSociety de Londres, especialmente os manuais de Elizabeth Mayo. Con-tudo, explicitava em que o seu manual se diferenciava dos demais:

O trabalho difere de outros trabalhos preparados para professores nesta

importante característica: ele ilustra como os professores devem proceder

em cada passo sucessivo no desenvolvimento da mente das crianças. Dizen-

do o que deveria ser feito, procede a mostrar como fazer por meio de exem-

plos ilustrativos [Calkins, 1885, grifos do autor].

Assim como outros educadores da época, Calkins acreditava que ométodo intuitivo consistia em princípios válidos, verdadeiros e apro-priados para a educação das crianças. O desejo de controlar a práticaeducativa fazia parte de um mesmo raciocínio e inteligibilidade, isto é,estabelecida a existência de um método verdadeiro de educação, cabiaaos professores aplicar com acuidade os princípios e regras do método.Ensinar e aprender eram vistos como processos racionais passíveis deorientação, direcionamento, regulação e controle: “Quando um profes-sor torna-se familiarizado com um sistema correto de leis da instrução,todas as dificuldades relacionadas a que método deve ser usado em qual-quer caso desaparecerão rapidamente” (Calkins, 1885, p. 23).

No entanto, princípios e métodos eram ressaltados como aspectosdistintos da ordenação do trabalho docente. De acordo com Calkins:“um princípio de ensino é uma lei baseada nas condições da mente e dosmateriais a serem ensinados. Um método de ensino é simplesmente aforma ou modo de apresentar as matérias de instrução” (Calkins, 1885,p. VI). Método de ensino referia-se, portanto, à indicação prática, aomodo de transmissão de conteúdos mais voltados para os procedimen-tos e atividades de ensino, concepção bastante difundida na época, apli-cada aos conteúdos, isto é, métodos de ensino da leitura, da escrita etc.Calkins dizia ter devotado o seu trabalho quase inteiramente aos méto-dos de ensino desenvolvendo no manual uma série de lições graduadasem diferentes conteúdos objetivando, dessa forma, levar os professoresa entenderem os princípios sobre os quais recaíam corretamente os mé-todos de instrução.

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tecnologias de ordenação escolar no século xix 29

Nas representações dos profissionais do ensino primário norte-ame-ricanos na época, o como ensinar compreendia uma questão fundamen-tal. Conhecer as matérias que se vai ensinar era considerado um pressu-posto básico do trabalho docente. Porém, a adoção do método corretode ensino era a garantia do sucesso da atividade educativa. E dessa for-ma, o método transforma-se numa tecnologia de eficiência escolar.

Em 1886, no discurso proferido na sessão de abertura da reuniãoanual da National Education Association, Calkins afirmou mais umavez a concepção sobre a renovação do ensino predominante nos Esta-dos Unidos na segunda metade do século XIX dando ênfase aos proces-sos de aquisição do conhecimento:

A demanda atual na educação não consiste tanto em reivindicar o predo-

mínio de muitas e novas matérias, mas sim o desenvolvimento completo dos

poderes da mente e a formação de hábitos de investigação e pesquisa que

marcam a grande diferença entre aqueles cujas memórias tornaram-se prin-

cipalmente depósitos para o que outras pessoas dizem ou escrevem e aqueles

que foram ensinados a observar, a pensar, e a descrever e que aprenderam

onde e como obter conhecimento desejado. [...] Hábitos corretos de pensa-

mento, de estudo, de investigação, a possibilidade de obter conhecimento de

objetos que estão no meio, junto com a habilidade de aplicar conhecimentos

proveitosamente nos afazeres da vida, constitui o modelo para a educação de

hoje [Calkins, 1886, p. 75].

Portanto, continuava Calkins, havia duas qualificações necessá-rias para assegurar o sucesso dos professores: conhecer e conhecercomo fazer: “O conhecimento é uma enorme capacidade que todosdeveriam empenhar-se em obter; saber como fazer é a arte mais eleva-da que se torna uma garantia permanente para uso de métodos bemsucedidos de ensino, e para a realização dos resultados mais valiososno treino educacional” (Calkins, 1886, p. 75, grifos do autor). Calkinsfalava para educadores num contexto social e educacional muito dife-rente da década de 1860 quando ele escrevera pela primeira vez seumanual Primary object lessons. Nas décadas finais do século XIX, ométodo object teaching ainda ecoava no ensino primário norte-ameri-

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cano em manuais didáticos e artigos em periódicos. Mas já não exer-cia a atração de outrora.

No início do século XIX, os manuais de lições de coisas inaugura-ram um novo tipo de literatura pedagógica, isto é, textos didáticos vol-tados para a orientação de pais e professores na prática de exercíciospara o treino dos sentidos e desenvolvimento das faculdades infantis(Brown, 1986). Pelas suas próprias características, isto é, o de sereminstrumentos auxiliares do ensino, portadores de estratégias de orienta-ção da prática educativa, esses manuais tornaram-se um dos principaisveículos de difusão do método intuitivo, mesmo que em diferentesenfoques (Valdemarin, 2004).

O deslocamento do foco da transmissão de conhecimentos para osprocessos de aquisição do conhecimento é revelador da emergência denovas concepções sobre ensinar e aprender vinculadas à novastecnologias de governo da criança e do professor. O ensino ativo, con-creto e racional fundamentava-se em práticas produtivas de governo,em técnicas sutis de disciplina do corpo e da mente. Da observaçãoacurada à formação das idéias claras e distintas pressupunha-se umintrincado processo de regulação do intelecto e dos sentidos. A educa-ção seguindo as leis da natureza punha em funcionamento uma enge-nharia de minuciosos controles e relações de poder. O discurso educa-cional de meados do século XIX compreendia, pois, a instituição dessasnovas práticas racionalizadas de governo.

Posta a distinção entre princípios e métodos, cada vez mais as liçõesde coisas foram concebidas como procedimento-atividade restrito às li-ções sobre os objetos ou lições sobre coisas comuns (lessons on commonthings). Os manuais de lições de coisas ingleses foram os primeiros aassociarem object teaching às lições orais e ao ensino dos objetos co-muns. Por exemplo, o livro publicado por Henry Barnard Object teaching(1860), adaptado ao trabalho desenvolvido no Model and trainingschoools of great Britain fazia essa associação17.

17. Nesse livro, consta artigo de Thomas Morrison intitulado Oral lessons on commonThings. Nele o autor afirma que a instrução oral poderia ser empregada juntamentecom todos os ramos ordinários da educação escolar. Tal instrução poderia recairsobre lições orais acidentais sobre história natural e ciência natural.

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Muitos educadores norte-americanos passaram a associar essas li-ções com a instrução oral muito em voga na época. A noção de instruçãooral significava a transmissão de conteúdos sem o uso do livro didático:

É um termo técnico em uso nas escolas comuns dos Estados Unidos para

referir-se à instrução, sem o uso de livro-texto, sobre a natureza e uso dos

objetos comuns, e também sobre os elementos das ciências naturais. Em certo

sentido, toda instrução dada pelo professor na sala de aula [...], pode ser decla-

rada como oral. Ela é distinta das lições de coisas porque ela não se restringe a

ensinar mediante objetos sensíveis [Cyclopaedia of education, 1877, p. 668].

Renovar o ensino pelo uso do método object teaching ou objectlesson significava para o professor primário um enorme esforço deredefinição de suas concepções de educação e de suas práticas de ensi-no. Os manuais ofereciam modelos de lições ou orientações acerca dosprocedimentos, mas cabia aos professores a tarefa de reorganizar as li-ções de coisas em planos de estudos seguindo a racionalidade da escolagraduada. Embora os modelos de lições se restringissem à exploraçãodos objetos, a configuração das lições pressupõe o ensino em classesgraduadas e a simultaneidade das atividades e exercícios. No modelo delições de coisas, o professor apresenta o objeto para a classe e conduzmediante perguntas a observação e as respostas individualizadas ou co-letivas dos alunos. Dessa maneira, as características da escola graduada,indicadas por Wells em 1862, eram mantidas: os alunos são divididosem classe de acordo com o grau de adiantamento, todos os alunos deuma classe assistem à mesma aula, isto é, ao mesmo conteúdo, todosfazem os mesmos exercícios, observam os objetos ou gravuras e res-pondem as perguntas propostas pelo professor simultaneamente, todosutilizam os mesmos livros18.

18. Isso pode ser observado claramente no livro Devoir de Écoliers Américaine, orga-nizado por Ferdinand Buisson e apresentado ao Ministério da Educação francêscomo anexo do relatório sobre a Exposição de Filadélfia (1876). O livro reunindoexemplares de trabalhos de alunos exibidos na Exposição Universal de Filadélfia,contém tipos ordinários dos principais gêneros de exercícios de todas as séries ematérias do ensino primário, inclusive de lições de coisas. Ver Buisson, 1881.

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Em que pese a relevância dos manuais de lições de coisas para con-formação do campo do magistério primário norte-americano, tudo levaa crer que os programas de ensino (course of studies) atuaram comodispositivos de normatização mais eficazes para ordenação da escolaprimária tanto para os professores quanto para os órgãos da administra-ção do ensino. Ao prescreverem o que e como ensinar, os programasestabeleceram uma dada concepção sobre a adoção do método intuitivonas escolas norte-americanas, isto é, alguns princípios foram incorpora-dos como indicações metodológicas inovadoras para o ensino das maté-rias e as lições de coisas passaram a figurar como parte do programa,uma rubrica entre os demais conteúdos, como se verá a seguir.

Os programas de ensino e a consolidaçãode um modelo de racionalização curricular

Em 1873, Norman A. Calkins juntamente com outros dois superin-tendentes das escolas públicas de Nova York, Henry Kiddle e ThomasHarrison, publicaram How to teach. A graded course of instruction andmanual of methods for the use of teachers. Em realidade, como afirmamos autores no prefácio da edição, tal publicação correspondia ao Manualde instrução e disciplina elaborado anteriormente por eles para orientar otrabalho dos professores nas primary e grammar schools da cidade.

A análise desse manual consiste em um interessante exemplo decomo os profissionais da educação norte-americanos conciliaram osprincípios do object teaching com a racionalidade do curso graduado deinstrução.

Na década de 1870, o sistema graduado de ensino tornara-se de co-nhecimento comum e não necessitava mais de esclarecimentos e justifi-cativas acerca de sua funcionalidade e relevância. No entanto, outroproblema permanecia, isto é, a necessidade de sistematização do planode estudos. Por isso, a discussão sobre conteúdo e método estava nocentro da discussão do manual How to teach. Questões como seleção,distribuição e ordenação (seqüência) dos conteúdos mobilizaram a aten-ção dos três superintendentes:

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O terreno a ser coberto em um completo plano escolar de educação, embo-

ra elementar, é bastante extenso, e portanto necessita ser dividido e subdivi-

dido de acordo com certos princípios estabelecidos. Dessa maneira a mente

do instrutor não desviará do que deve ocupar sua atenção imediata, pela ne-

cessidade de considerar e escolher o melhor meio para supri-lo [Kiddle et al.,

1873, p. 3].

Para os autores, o sucesso do novo modelo escolar dependia de umplano de estudos e de uma orientação segura para os professores, umguia, elaborado por educadores como eles, com grande experiência naprática de ensino. “Este curso, com suas divisões em graus, constitui,entretanto, somente a estrutura para uma série de sugestões práticas des-tinadas a orientar os professores no desempenho de suas obrigações –ou seja, em certa medida, mostrar a eles o que ensinar, da mesma formaque como ensinar” (Kiddle et al., 1873, p. 4, grifos dos autores).

Conteúdo e método foram concebidos nesse manual como ativida-des essenciais do trabalho docente consistindo, também, em questõescentrais da formação dos professores. As considerações que os superin-tendentes fazem na introdução do manual revelam as concepções emvoga na época em relação à profissionalização do magistério. De acor-do com os autores, todo professor deveria conhecer as leis da mente eseu desenvolvimento. Era importante, pois, que os professores estives-sem familiarizados com as idéias gerais da ciência mental. Mas o co-nhecimento do método não era suficiente, era também preciso que elesestivessem familiarizados com as matérias a serem ensinadas, o quesignificava o conhecimento das disciplinas (conteúdos) e a forma deordená-las. A propósito, afirmavam: “a mais importante indagação emrelação à maneira correta de apresentar as matérias deve ser dividí-lasem tópicos, explicar como esses tópicos devem ser organizados e queordem devem seguir [...]” (Kiddle et al., 1873, p. 15).

Comparado com o manual de Wells (1862), How to teach compreen-de um texto mais elaborado e sistematizado. O curso graduado de estu-dos proposto pelos superintendentes da instrução utiliza técnicas aindamais racionais de ordenação do conhecimento. Como em The gradedschool, o curso graduado para o ensino elementar foi dividido em dez

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graus ou séries – cinco para a primary school e cinco para a grammarschool19. Nesse manual, o tempo de duração de cada série é variável:para as cinco séries da primary school os autores sugeriam cinco mesesde duração, para a 5ª e 4ª séries da grammar school cinco meses, para a3ª série de 8 a 10 meses, para a 2ª série 10 meses e para a 1ª, 12 meses.A concepção de ano letivo ainda não estava completamente definidanessa época. Para cada série, é apresentado em primeiro lugar o progra-ma compreendendo o rol de matérias a serem estudadas. Em seguida,uma seção extensa intitulada “Como ensinar” contendo as orientaçõesmetodológicas. Para as séries iniciais do ensino primário, o curso deestudos compreendia linguagem envolvendo leitura, fonética e soletra-ção; aritmética, lições de coisas, desenho e escrita. O ensino de geogra-fia era proposto a partir do 7° grau (ou 3ª série) do ensino primário.

Os conteúdos para o ensino elementar são praticamente os mesmospropostos por Wells, abrangendo basicamente os saberes elementares –leitura, escrita e cálculo. No entanto, destaca-se a racionalização do pro-grama pela sua forma esquemática apresentando divisões e subdivisõesdas matérias. Mais que uma finalidade cultural, o conhecimento escolaré concebido como meio para o desenvolvimento das faculdades men-tais. Por isso, os professores deveriam ter em mente que os hábitos erammais importantes que os fatos: “não é a quantidade de conhecimentoadquirido que constitui o critério de avanço mental, mas o modo deemprego das faculdades mentais – o hábito de pensamento no qual amente organiza suas aquisições e as aplica” (Kiddle et al., 1873, p. 15,grifos dos autores).

A educação como estratégia de governo da criança é claramenteressaltada pelos autores: “o controle dos alunos – o treino de suas sensi-bilidades, suas emoções naturais, seus impulsos – instilando princípioscorretos de conduta – tudo isso constitui a maior parte do que pode serchamado de boa educação, mais que o ensino dos rudimentos dos sabe-res” (Kiddle et al., 1873, p. 20).

19. A ordenação das séries segue a ordem decrescente, isto é, o 10º grau correspondeao início do ensino primário e o 1º grau à última série da grammar school.

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Ainda na introdução do manual, os autores buscam reafirmar os prin-cípios educacionais em voga posicionando-se contra o verbalismo, amemorização e o uso abusivo do livro-didático, prática usual nas esco-las norte-americanas e condenada freqüentemente pelos profissionaisda educação. A esse respeito, assinalavam o lugar de destaque assumidopelo método intuitivo (object teaching) e a instrução oral (oralinstruction) nos planos racionais de ensino. Ambos os termos excluíamo uso do livro didático:

Ensinar pelos objetos é meramente treinar a criança a adquirir conheci-

mento de uma forma sistemática, pela sua própria experiência, isto é, pelo

exercício regular de suas faculdades de observação. Isso pressupõe a apre-

sentação do objeto real durante os primeiros estágios do trabalho, de maneira

que, as percepções podem passar para a mente e assim as idéias sejam obti-

das [Kiddle et al., 1873, p. 19].

Em todos os conteúdos indicados – linguagem, aritmética, lições decoisas, desenho e escrita –, a referência bibliográfica apontada era omanual de Calkins, New primary object lessons. Vemos dessa forma,como os três superintendentes das escolas de Nova York, Kidlle, Harrisone Calkins procuraram conciliar os princípios do método object teachingcom a racionalidade dos programas pela ordenação dos conteúdos. Ométodo intuitivo era um princípio geral para o ensino, mas convinhaassegurar nos programas um tempo específico para o treino sistemáticodos sentidos, isto é, para as lições de coisas propriamente ditas.

Dos princípios do método à racionalizaçãodos conteúdos

Uma das portas de entrada para entender a circulação e apropriaçãodo método intuitivo como modelo pedagógico nas escolas primáriasnorte-americanas é verificar de que forma foi possível conciliar os prin-cípios do método com a racionalização curricular estabelecida nos pro-gramas graduados de ensino que passaram a ser adotados amplamenteno sistema educacional dos Estados Unidos a partir da década de 1870.

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Enquanto os manuais de lições de coisas buscavam normatizar e re-gular o treino dos sentidos, os programas constituíram-se em instrumen-tos mais abrangentes de regulação do ensino. Adotados como orientaçãooficial, esses textos prescritivos eram mais diretivos, tinham uma ordena-ção mais incisiva e facultavam maior uniformidade e padronização.

Isso pode ser percebido na análise de outros três programas de ensi-no adotados nas cidades de Buffalo (A manual of the graded course ofinstruction for the public schools of Buffalo, with direction andsuggestions to teachers, 1872), Indianopolis (Manual of instruction toteachers and graded course of study of the public school of Indianopolis,1876) e Milwaukee (Graded course of the Milwaukee public schools. Amanual of matter and method, 1885).

Com exceção do programa de Buffalo (1872) que se restringe à apre-sentação dos conteúdos por séries seguido de breves indicaçõesmetodológicas e bibliográficas, os programas de Indianópolis (1876) ede Milwaukee (1885) seguem o estilo do manual How to teach, isto é,trazem indicações sobre os princípios fundamentais da educação e indi-cações metodológicas detalhadas para o ensino das matérias.

O programa adotado na cidade de Indianópolis, Manual of instructionto teachers and graded course of study of the public school of Indianopolis(1876), compreende duas partes: uma dedicada à discussão dos princí-pios do trabalho escolar considerados fundamentais a todos os graus deensino e a outra contendo indicações detalhadas dos conteúdos a seremministrados aos alunos em cada série.

Em relação aos princípios gerais, o programa destaca as caracterís-ticas que deveria ter um professor para alcançar bons resultados no en-sino: honestidade, justiça, gentileza, simpatia e atitude firme. Algumassugestões para a condução do trabalho eram oferecidas, por exemplo, amanutenção da limpeza e ordem na sala de aula e no quadro de giz,(cuidado com) aparência pessoal, uso apropriado da linguagem, prepa-ração cuidadosa do trabalho do dia, meticulosidade, eficiência, compor-tamento moral adequado.

Em relação aos alunos, o programa buscou caracterizar o desenvol-vimento infantil concebendo a criança como um ser composto de corpoe mente. Conseqüentemente, os professores deveriam dar atenção aos

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exercícios físicos e ao desenvolvimento das faculdades mentais. Essasfaculdades ou poderes da mente seguiam uma ordem de desenvolvi-mento: primeiro as faculdades perceptivas (sensação, atenção, percep-ção), depois as faculdades de retenção (memória, associação, sugestão)e, por último, as faculdades reflexivas (imaginação, razão, julgamento).O primado da educação do sentido era reafirmado: “A criança adquire oconhecimento primeiramente através dos sentidos” (Manual ofinstruction – Indianópolis, 1876, p. 8).

O desenvolvimento infantil obedecia a uma ordem: primeiro a per-cepção ou os poderes de obtenção concreta dos fatos, depois a memória,a imaginação, a razão e o julgamento. As crianças adquiriam as trêsprimeiras faculdades na idade de 5 a 8 anos. Nessa idade, o mais apro-priado, portanto, era o ensino da leitura, escrita, soletração, desenho,contagem e combinação de números, uso correto da linguagem, liçõessobre formas, cores etc.

A concepção moderna de educação que ressalta a compreensão e osignificado pressupõe, não obstante, a auto-disciplina da criança, aapreensão de condutas implícitas, que configuram novos dispositivosde controle da conduta infantil. Por exemplo, no ensino de caligrafia, oprograma destaca a relevância da habilidade de escrever para o trabalhono comércio. Não importa como a mão fique, se a 52°, 75° ou 90° dohorizontal, importa a legibilidade, a rapidez, a facilidade. Mas a posiçãopara escrever é fundamental:

A real fundamentação deste trabalho reside na posição correta. A posição

dá poder para mover a mão e o braço em qualquer direção, no comando da

vontade, sem a qual não se pode escrever com facilidade e graça. Todos os

professores, dos mais baixos e elevados graus, devem ensinar do princípio

ao fim posição correta, movimentos e forma. Devem fazer de cada exercício

escrito uma lição de escrita [Manual of instruction – Indianópolis, 1876, p.

34, grifos do autor].

Após as orientações gerais sobre o ensino de história, geografia,aritmética, desenho, caligrafia e música, nos quais se ressalta mais acompreensão e o significado que a memorização, o programa traz o rolde conteúdos para cada série.

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O programa adotado na cidade de Milwaukee, Graded course of theMilwaukee public schools. A manual of matter and method (1885), pre-ocupou-se em oferecer orientações metodológicas detalhadas para cadauma das matérias de cada série. Na introdução da 2ª edição, o superin-tendente WM. E. Anderson apontava como finalidades do manual dis-criminar o conteúdo e instruções para cada série desde o kindergarten àhigh school; apresentar para cada porção de trabalho referente a cadaconteúdo, poucas e resumidas sugestões sobre o método apropriado acada conteúdo e à idade e capacidade dos alunos, e, por último, divulgaras regras do school board sobre classificação e promoção de alunos,conservação de arquivos, de documentos e relatórios de alunos.

Os conteúdos estabelecidos para as escolas elementares deMilwaukee eram os mesmos dos demais programas assinalados ante-riormente, ou seja, leitura, soletração, escrita, aritmética, exercícios fí-sicos. A geografia era introduzida na 2ª série e lições orais e objectteaching é indicado apenas na 1ª série.

Os princípios do object teaching são assinalados brevemente e emseguida o programa apresenta um rol de lições progressivas de instruçãooral e sobre objetos adaptadas para todas as séries. Mais uma vez, o ma-nual de Calkins New primary object lessons é a indicação principal.

A análise dos três programas citados mostra a uniformidade da sele-ção cultural para as escolas elementares norte-americanas na segundametade do século XIX. Essa seleção envolvia basicamente os sabereselementares: ler, escrever, contar, além de lições morais, exercícios físi-cos e noções de geografia nas séries finais do ensino primário. O treinodos sentidos mediante as lições de coisas também se encontra presenteem todos os manuais correspondendo à iniciação ao estudo das ciênciasfísicas e naturais. Os princípios do método intuitivo são incorporadosnas indicações metodológicas para o ensino das matérias e as lições decoisas adquirem um sentido mais restrito tornando-se mais uma matériado programa. Em realidade, tais lições aproximam-se muito da concep-ção de instrução oral, um modo de ensinar que privilegia a exposiçãooral do professor e o uso de objetos em substituição ao uso do livrodidático.

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A organização do currículo por disciplinas (matérias) vai se impon-do rapidamente no âmbito do ensino elementar e amalgamando práti-cas de transmissão dos saberes elementares (leitura, escrita e cálculo)com os rudimentos das ciências sociais, físicas e naturais. O aspectológico sobrepõe-se ao psicológico. Os programas ratificaram o princí-pio da divisão e fragmentação do conhecimento e esquadrinharam aação pedagógica em calendários, horários, séries, unidades, lições. Nesseprocesso a renovação pedagógica pelo método intuitivo revela-se comomais uma face do processo de racionalização e regulação do ensinoprimário.

Nas décadas finais do século XIX, o termo object teaching, tão proe-minente em décadas anteriores caíra em desuso no discurso educacionalnorte-americano. Substituído por concepções consideradas mais cientí-ficas, especialmente pela difusão das idéias de Herbart e a constituiçãoda psicologia como campo de conhecimento, object teaching foi relega-do ao passado, considerado uma posição ultrapassada na educação nor-te-americana, vinculada a concepções educacionais românticas postu-ladas por pensadores como Pestalozzi, Rousseau, Comenius, entre outros.

O pensamento científico emergente negou, de certa forma, suavinculação com essa tradição romântica e buscou instaurar-se como onovo em educação (new education) opondo-se não ao movimento derenovação pedagógica prevalecente em meados do século XIX, no qualobject teaching fora uma de suas mais importantes expressões, mas àeducação memorística e verbalista considerada tradicional. O apaga-mento da memória foi uma estratégia discursiva amplamente utilizadana disputa pela hegemonia no campo educacional nesse momento. Arelação entre a renovação do ensino pelo método intuitivo no séculoXIX e o movimento do progressivismo (Escola Nova) no século XX,não problematizado pelos educadores norte-americanos na transição doséculo XIX para o século XX, é questão importante para se compreen-der as continuidades e descontinuidades no pensamento educacional. Aquestão é também relevante para a investigação da cultura escolar nadiscussão sobre apropriação de modelos, instituição e transformação depráticas.

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Recebido: 8 de jun. de 2004Aprovado: 30 de mar. de 2005

Modificado: 17 de abr. de 2005

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A Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro foi o primeiro cursosuperior destinado a formar docentes para a rede escolar “primária” do então DistritoFederal. Em nosso entender, essa instituição procurou materializar a idéia de que todosos professores, de todos os graus de ensino, deveriam ter sua formação elevada ao nívelsuperior, conforme sugestão do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicadona mesma data da criação do Instituto (19 de março de 1932). Este artigo busca com-preender aspectos da cultura escolar da nova instituição, por meio do periódico Arqui-vos do Instituto de Educação. Atribuímos a esse veículo a função de suporte de memória– produto da estratégia desenvolvida por seus autores com o objetivo de marcar umanova cultura pedagógica, legitimando, assim, o movimento renovador do qual o Institu-to de Educação seria o locus referencial.EDUCAÇÃO NOVA; INSTITUTO DE EDUCAÇÃO; ESCOLA DE PROFESSORES;CULTURA ESCOLAR; MEMÓRIA.

The Education Institute Teacher’s School of Rio de Janeiro was the first superior courseto graduate docents for primary school in Federal District. As we believe, this institutionintended to materialize the idea that every teacher, from every levels of teaching, shouldhave their formation elevated to the superior level, as suggested in the New EducationPioneer’s Manifest, published on the same date of the Institute’s foundation (March19th, 1932). This article intends to understand school culture’s aspects of the newinstitution through the journal Arquivos do Instituto de Educação. We impute to thisvehicle the function of memory’s support – product of the strategy developed by theirauthors with the purpose of registering a new pedagogic culture, offering legitimacy tothe renovating movement whose reference’s locus would be the Education Institute.NEW EDUCATION; EDUCATION INSTITUTE; TEACHER’S SCHOOL; SCHOOLCULTURE; MEMORY.

Arquivos do Instituto de Educação

Suporte de memória da educaçãonova no Distrito Federal (anos de 1930)

Sonia de Castro Lopes*

* Doutora em Ciências Humanas – (Educação) da Pontifícia Universidade Católica(PUC-Rio).

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Há pouco mais de duas décadas, as pesquisas no campo de históriada educação têm sido revitalizadas em função da ascensão da históriacultural no panorama historiográfico mundial. Por essa ótica, sujeitos,saberes e práticas escolares têm adquirido centralidade como objetos depesquisa, estabelecendo assim as necessárias conexões entre história ehistória da educação. Paralelamente a esse alargamento de objetos as-sistiu-se também a uma diversificação no repertório do corpus docu-mental, permanentemente problematizado e reinterpetado à luz de no-vos referenciais teóricos.

Tomando como referência a década de 1930 como um momento deprofundas mudanças no cenário político e educacional do país, este arti-go procura reconstruir algumas práticas escolares desenvolvidas no Ins-tituto de Educação do Rio de Janeiro, à luz das inovações pedagógicaspreconizadas pelos educadores ligados ao Movimento da Escola Nova.Criado em 1932, durante a gestão de Anísio Teixeira à frente da Direto-ria da Instrução Pública do Distrito Federal, o Instituto de Educaçãotornou-se uma unidade educacional completa, da qual faziam parte umaescola secundária nos moldes da reforma implementada pelo ministroFrancisco Campos (decreto n. 19.890/1931) e uma escola de professo-res, em nível superior, além dos campos de aplicação para as práticasdocentes: a escola primária e a pré-escola.

A nova instituição passaria a ser o centro responsável pela formaçãoe aperfeiçoamento dos profissionais que deveriam reger as classes dealunos da rede educacional da cidade e sua escola de professores desta-cou-se por ser o primeiro curso superior destinado a formar professoresprimários no Brasil, ainda que por breve tempo, conforme demonstradona tese de doutorado (Lopes, 2003). Esse curso, na verdade, parece tersido o ponto de partida para a realização de um projeto mais ambicioso:a Universidade do Distrito Federal (UDF), cuja criação em 1935 foiinterpretada por Mendonça (2002) como o “ponto culminante de umprocesso que se iniciara com a transformação ampliativa da Escola Nor-mal em Instituto de Educação” (p. 30).

Tal acepção permite argumentar que o Instituto não representa umasimples extensão ou aperfeiçoamento da escola normal, cujas raízes seencontravam no Império, mas foi criado com o objetivo de fornecer a

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estrutura de que necessitava a UDF, materializando a idéia veiculadapelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, segundo a qual a for-mação do magistério em todos os níveis deveria ocorrer em cursos su-periores ligados à universidade. Por isso, talvez não seja mera coinci-dência o decreto de criação do Instituto ter sido assinado na mesma dataem que todos os jornais do país publicavam o referido Manifesto 19 demarço de 1932.

Selecionamos como principal fonte documental para embasar nossaargumentação o periódico Arquivos do Instituto de Educação, por en-tender como Catani e Bastos (2002) a imprensa educacional como “umtestemunho vivo dos métodos e concepções pedagógicas de uma épocae da ideologia moral, política e social de um grupo profissional” (p. 5).A revista, publicada anualmente por iniciativa do diretor geral da insti-tuição, professor Lourenço Filho, destinava-se a divulgar os relatóriosdas atividades administrativas e relatos de práticas pedagógicas e cultu-rais, contando com a colaboração de professores dos vários cursos man-tidos pelo instituto e alguns alunos da Escola de Professores que se dis-punham a narrar experiências e pesquisas ali realizadas.

A hipótese central desta pesquisa baseia-se na idéia de que o referi-do impresso além da função de objeto cultural (Chartier, 1990), ou seja,um veículo de práticas escolares e dispositivos normatizadores de sabe-res destinados a um determinado público, propõe-se também a funcio-nar como suporte de memória (Nora, 1993), devido à estratégia desen-volvida pelo seu produtor a fim de marcar uma nova cultura pedagógicaentre professores e alunos, com o objetivo de legitimar o movimentorenovador do qual o Instituto de Educação seria o locus referencial.

Vale observar que a revista, sobretudo a publicação de 1934, tem sido,de forma recorrente, utilizada como referência documental por diversostrabalhos que elegeram como objeto o Instituto de Educação do DistritoFederal na década de 1930. Em especial, nos referimos às pesquisas deLiétte Accácio (1993), que busca realizar uma análise histórica da forma-ção do professor primário no Rio de Janeiro, recuperando a organização etransformação por que passou o Instituto de Educação desde o projetoinicial de sua criação com Fernando de Azevedo até a integração à UDF,e de Diana Vidal (2001), que focaliza fundamentalmente essa escola-la-

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boratório, na qual realiza uma investigação profunda sobre as práticas deformação docente, sobretudo as de leitura, inventariando as obras dispo-níveis na Biblioteca Central de Educação, bem como a freqüência comque seus usuários a consultavam. Destaca-se ainda o esforço pioneiro deLéa Viveiros de Castro (1986), que lançou luz sobre as práticas docentes/discentes desenvolvidas na escola de professores.

Nos limites deste texto, opta-se por dividir a exposição em três mo-mentos: em primeiro lugar, procede-se à análise do periódico, destacan-do seu papel de lugar de memória material do movimento de renovaçãoeducacional implementado na capital do país; em seguida serão tecidasconsiderações acerca de práticas escolares desenvolvidas em algumasescolas do Instituto de Educação, com destaque para a Escola de Profes-sores e a escola primária, e, finalmente, o relato de fragmentos de algu-mas dessas práticas por meio das lembranças de antigas alunas-mestras,que possibilitaram trazer à tona questões nem sempre contempladas naspáginas dos Arquivos.

Os Arquivos como lugares materiais de memória

A especificidade do título escolhido para o periódico – Arquivos doInstituto de Educação – demonstra com clareza os objetivos persegui-dos por seu criador, pois embora pertencendo ao domínio da materiali-dade (um arquivo) aparentemente simples registro de dados, esse tipode suporte penetra também no terreno do simbólico e do funcional, umavez que se propõe a marcar o “seu tempo” como revolucionário, ado-tando um tipo de linguagem e práticas específicas de um determinadogrupo, autor de um projeto para a nação pela educação renovada. Se-gundo Nora (1993, p. 22), “a razão fundamental de ser um lugar dememória é parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixarum estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”.

Para o historiador francês, os lugares de memória surgem a partir doesquecimento das tradições, dando ensejo à criação de uma memóriavoluntária que começa a ser construída em função da inevitável perdada própria memória. Percebendo a importância de seu cargo e a instabi-

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lidade do momento em que vivia, Lourenço Filho provavelmente culti-vou essa memória como um dever, com um sentido de pertencimento,segredo da própria identidade individual e coletiva. Incomodava-o ofato de alguém referir-se ao Instituto pelo nome da instituição que oprecedera. Escola normal era uma expressão que condenava. “Pois nãose estava realizando uma verdadeira revolução? Métodos e nomes anti-gos indicam uma resistência ao progresso” (Brito, 1959, p. 72).

Durante sua gestão frente ao Instituto, foi publicado o primeiro vo-lume dos Arquivos, composto por três números: 1934 (vol. 1, n. 1),1936 (vol. 1, n. 2) e 1937 (vol. 1, n. 3). O cuidado com essas ediçõesrevela a estratégia do produtor no sentido de legitimar o projeto de re-construção do país pela educação, dar-lhe maior visibilidade, tomandopor base a experiência desenvolvida no Instituto de Educação do Distri-to Federal, escola laboratório e referencial para todo o país.

O conjunto dos três primeiros volumes apresenta-se em formatobrochura, com dimensões padronizadas (0,17 x 0,22 cm), capa marrom,com título centralizado em letras pretas, caixa alta, trazendo abaixo, emletras menores, a referência ao órgão responsável pela publicação: Insti-tuto de Educação do Distrito Federal – Rio de Janeiro – Brasil. O núme-ro referente ao ano de 1935 é inexistente, sendo eliminada da publica-ção de 1936 qualquer referência ao conflito político que resultou nademissão de Anísio Teixeira da Secretaria de Educação do Distrito Fe-deral, em conseqüência das supostas “afinidades” do educador com olevante comunista deflagrado em novembro de 1935. Aliás, a sugestãode continuidade da obra educacional torna-se a característica marcantedo primeiro volume desse periódico, a começar pela numeração contí-nua de páginas entre os três números e pela temática abordada.

Na ausência de um editorial, os Arquivos trazem impressos no ver-so da folha de sumário, a seguinte inscrição:

Estes Arquivos têm por fim registrar e divulgar trabalhos e investigações

sobre ensino e organização escolar, realizados no Instituto de Educação, do

Rio de Janeiro, Brasil. Toda correspondência deve ser remetida ao Prof. Lou-

renço Filho, Diretor do Instituto de Educação, Rua Mariz e Barros, 227, Rio

de Janeiro, Brasil.

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Evidenciava-se assim o caráter modelar da escola-laboratório e afunção de suporte de memória conferida aos Arquivos. Produzido nagráfica da Secretaria de Educação do Distrito Federal, o periódico pos-suía divulgação e circulação garantidas em todo o país, pois era enviadogratuitamente a toda rede escolar do Distrito Federal, bem como às se-cretarias estaduais de educação. Na verdade, a circulação do periódicoultrapassava mesmo os limites nacionais, sendo divulgado também noexterior, como é o caso, por exemplo, da Universidade de Harvard, nosEstados Unidos, em cuja biblioteca se encontram alguns exemplares,em bom estado de conservação (Almeida, 1998, p. 224).

Os Arquivos de 1934, que particularmente nos interessam como fontedocumental para elucidar a estrutura e o funcionamento da Escola deProfessores nos dois primeiros anos de existência, contêm duas formasde suporte: registros escritos e fotográficos. Ambos revelam a intençãonão só de dar publicidade à obra de educação renovada que eraimplementada no Instituto de Educação, mas sobretudo registrá-la, per-petuando-a para a posteridade.

A preocupação com a unidade da obra que se estava erigindo podeser sentida pela amostra significativa de textos produzidos por repre-sentantes dos vários segmentos que compunham o Instituto. Em relaçãoaos cursos com maior representatividade nesses Arquivos, há uma visí-vel supremacia de artigos produzidos por docentes e alunos da escola deprofessores (seis artigos) enquanto a escola secundária se encontra re-presentada em três artigos, a escola primária em dois e o jardim-de-infância em um artigo. Essa amostra é reveladora da missão incorpora-da pelo instituto – formar mestres através de sua Escola de Professoresem nível superior. A inclusão de experiências desenvolvidas nos demaissegmentos revela a dimensão integradora que se queria imprimir à ins-tituição, uma vez que o papel da escola secundária era absolutamenterelevante, no sentido de selecionar e desenvolver as aptidões dos futu-ros mestres. Da mesma forma, as escolas de aplicação para o professo-rado primário – escola primária e jardim-de-infância – consagravam-secomo campos de aplicação e laboratórios para as novas experiênciaseducacionais que se desejava irradiar para toda a rede escolar do Distri-to Federal.

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Acentua-se, pelo texto dos Arquivos, a idéia de um sistema educa-cional completo, com oportunidade de educação em todos os graus, emque o mesmo aluno poderia passar dezesseis anos seguidos (três no jar-dim-de-infância, cinco na escola primária, seis na escola secundária edois ou mais na Escola de Professores). Essa circunstância permitirianão só a observação contínua da criança e do adolescente, nas fases demaior interesse para a educação escolar, a conseqüente experimentaçãocom rigoroso controle dos resultados dos processos didáticos preconi-zados pela Escola Nova, bem como facilitaria o armazenamento de da-dos objetivos para o estudo da educação brasileira – um verdadeiro la-boratório de práticas e pesquisas educacionais. Além disso, possuíacaráter seletivo, uma vez que o acesso à instituição se dava por concur-so de admissão à escola secundária.

Do ponto de vista metodológico, os Arquivos configuram-se comouma produção textual composta por uma série de aspectos inter-relacio-nados que dizem respeito às escolhas temáticas, ao tipo de linguagemutilizada, aos autores (de onde falam e em que contexto histórico), aosinteresses em jogo, objetivos a serem alcançados e, sobretudo, a quemse dirigem. A esse respeito, Chartier (1990) nos previne que as diferen-tes maneiras de agir e pensar se articulam aos “laços de interdependên-cia que regulam as relações entre os indivíduos e que são moldados, dediferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas do poder”(p. 25). Portanto, a leitura não se configura como uma relação transpa-rente e direta entre o texto e o leitor, mas é mediada por apropriaçõesvariáveis, construídas pela prática histórica e social.

Tomando como referência a reflexão de Chauí (1982), podemosqualificar o discurso presente nos Arquivos discurso competente, nãosó porque utilizava uma linguagem institucionalmente permitida ou au-torizada para legitimar-se, mas sobretudo por sustentar uma ideologia.De acordo com a autora, “o campo da ideologia é o campo do imaginá-rio, não no sentido de irrealidade ou fantasia, mas no sentido do conjun-to coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como ca-pazes de explicar e justificar a realidade concreta” (p. 19).

Assim, a grande virtude do discurso ideológico consiste em trans-mitir credibilidade exatamente por não dizer tudo o que pretende. Sua

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força origina-se a partir de uma lógica que Chauí nomeia “lógica dalacuna”. “Se disser tudo o que pretende, se preencher todas as lacunas,ele se auto-destrói como ideologia” (p. 22). É exatamente por essa óticaque o texto dos Arquivos deve ser analisado.

Registro de práticas escolares: a Escola deProfessores

A estrutura e o funcionamento da Escola de Professores talvez seja apeça central do primeiro número da revista, como sugere o subtítulo doartigo de Lourenço Filho: “A Escola de Professores do Instituto de Edu-cação – notícia histórica” (Lourenço Filho, 1934).

Nesse artigo, o organizador do Instituto de Educação expõe a estru-tura curricular do curso de formação de professores, caracterizado pordisciplinas agrupadas em seções de ensino: biologia educacional e hi-giene, educação, matérias de ensino, desenho e artes, música, educaçãofísica, recreação e jogos, prática de ensino.

Pelas informações colhidas no periódico, no primeiro ano da Escolade Professores, estudavam-se, prioritariamente, os fundamentos da edu-cação e no segundo, a aplicação. Compreendendo o último trimestre do1º ano e parte do 2º ano, para unir a parte teórica à parte essencialmenteprática do ensino, encontravam-se os estudos de caráter intermediário,pelos quais os princípios da teoria e os problemas da prática eram con-frontados.

Como cada ano letivo se dividia em três períodos, no 1º ano cursa-va-se intensivamente, nos três períodos: a) biologia educacional, b) psi-cologia educacional; c) sociologia educacional. Paralelamente, por to-dos os períodos, estendia-se o curso de história da educação, além doscursos de artes, música e educação física. Era ministrada, ainda no 1ºano, uma disciplina denominada introdução ao ensino, apresentando umpanorama geral das questões a serem estudadas, nas quais se destaca-vam as funções da escola e as competências do professor.

O 2º ano, de aplicação, tinha como ponto alto a prática de ensino,desenvolvida em três fases: observação, participação e direção de clas-

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se. Mais da metade da carga horária semanal era dedicada à prática etodas as demais matérias a ela se articulavam. Os estudos intermediá-rios, iniciados no ano anterior, tornam-se intensivos no 1º trimestre do2º ano e, ao final, os alunos eram levados aos debates das questões pro-postas pelo curso de filosofia da educação.

Os chamados estudos intermediários compreendiam a seção de ma-térias de ensino. Tratava-se, na prática, de uma adaptação dos “conheci-mentos vistos do ponto de vista do ensino”, peculiar aos TeachersColleges norte-americanos e que não se confundiam com didática oumetodologia. Estudava-se individualmente e com professores especia-lizados: cálculo, leitura e linguagem, literatura infantil, ciências natu-rais e estudos sociais.

A importância dispensada às matérias de ensino na grade curriculardo curso da escola de professores traduzia-se como produto das reflexõesde Anísio Teixeira à luz do pensamento de John Dewey, para quem omaterial básico de estudo não poderia ser colhido de maneira acidental edesordenada e sim da experiência atual do aluno, em que residem as fon-tes dos problemas a serem investigados (Dewey, 1971, p. 80). Partindodesse princípio, Anísio justificava a inclusão dessas matérias no currículoda Escola de Professores:

As matérias, nas escolas normais, não devem ser ensinadas com o cará-

ter do ensino de nível secundário, nem com o caráter especializado do en-

sino de nível superior ou universitário. São ensinados do ponto de vista da

profissão do magistério. Se o grau do magistério é o primário, os cursos de

matérias serão cursos especiais em que se ministre o conhecimento da ma-

téria apropriada às crianças da escola primária, e o conhecimento das difi-

culdades dessas crianças em aprendê-la, dos métodos especiais de organizá-

la, dosá-la e distribui-la para o ensino, e sempre que possível, da história

do seu desenvolvimento e da sua função na educação da infância [Teixeira,

1934, p. 7].

Era fundamental para Anísio que as matérias de ensino partissem dequestões propostas pelos programas da escola primária, que por sua vezdeveriam ser construídos tendo em vista o crescimento da criança e a

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realidade da vida social1. Essas sugestões do educador serviam para to-das as escolas do Instituto e pautavam-se nos pressupostos de Dewey eKilpatrick, apropriados por Anísio em um pequeno texto que seria maistarde desenvolvido na sua Educação progressiva: uma introdução à Fi-losofia da Educação2.

Anísio acreditava que “a aprendizagem é intrínseca à vida, funcio-nando no seu lugar real, no próprio processo de viver”3, enquanto aaprendizagem escolar é geralmente extrínseca à vida, sem relação comela. A escola seria a instituição pela qual a sociedade transmite à criançaa experiência adulta, e para que os resultados educacionais sejam segu-ros e completos é preciso que haja, por parte do aluno, interesse paraaprender a fim de que a nova atividade seja articulada à sua personalida-de que, por sua vez, induzirá e orientará seus esforços para desenvolvernovas atividades. A aprendizagem reside, portanto, na reconstrução daexperiência que se opera por meio desse processo. “O saber acumuladoda espécie humana estimula, pois, a aprendizagem e fornece os meios eos modelos pelos quais se pode vir a adquiri-la”4.

Em seu entender, a nova pedagogia deveria privilegiar a organiza-ção psicológica da criança, de caráter generalista, contrapondo-se à or-ganização lógica do especialista. Por essas novas bases, o ensino deve-ria ser ministrado através de projetos, em vez de lições. Os projetos nãoacompanhariam a seqüência lógica em que a matéria normalmente éapresentada ao aluno, mas seriam organizados em harmonia com os in-teresses, tendências e capacidades das crianças. As matérias fluiriamnaturalmente, à medida que fossem necessárias, na seqüência de cadaprojeto. Dessa forma, concluía:

1. Orientação aos professores do Instituto de Educação para o preparo de progra-mas. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC/FGV. AT pi 1932.00.00.

2. A obra pela primeira vez publicada em 1934 encontra-se na 6ª edição (2000) com otítulo: Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a trans-formação da escola.

3. Alguns aspectos da teoria de Dewey. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. ATpi 27/36.00.00/3

4. Alguns aspectos da teoria de Dewey. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. ATpi 27/36.00.00/3

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A escola deve ter por centro a criança e não os interesses e a ciência do adulto;

o programa escolar deve ser organizado em atividades, unidades de trabalho ou

projetos; o ensino deve ser feito em torno da intenção de aprender da criança e

não da intenção de ensinar do professor; a criança, na escola, é um ser que age

com toda a sua personalidade e não uma inteligência pura, interessada em estu-

dar matemática ou gramática; essas atividades devem ser reais, semelhantes à

vida prática, e reconhecidas pelas crianças como próprias [p. 90].

Passamos a entender a razão de inserir no currículo da Escola deProfessores o que Lourenço chamou de estudos intermediários que, naverdade, se traduziam nas matérias de ensino, já desenvolvidas noTeachers College, e que se constituíam na grande inovação implementadana matriz curricular dos estudos superiores do magistério primário. Taismatérias, estudadas à luz da ciência articulavam o saber científico daseção de educação com a prática docente. Não se tratava apenas de trans-mitir conhecimentos básicos, entretanto não se resumiam a simples mé-todos, mas um processo global pelo qual o conteúdo e a metodologiaapresentavam-se inseparáveis, rompendo as fronteiras disciplinares, de-senvolvidos na forma de projetos, a partir dos interesses do aluno.

De acordo com os Arquivos, inferimos que três características fun-damentais informavam a estrutura interna da Escola de Professores: afeição profissional que se procurou imprimir ao curso, a integração en-tre os níveis de ensino e a flexibilização – não só das matérias entre si,mas das seções de matérias em relação umas às outras e da escola emrelação aos demais segmentos em que se dividia o Instituto.

A idéia de unidade – integração entre as várias partes em que secompunha o Instituto – materializava-se em dois níveis: no critério deadmissão à escola de professores, só permitida aos alunos que ingres-sassem no 1º ano da escola secundária do próprio Instituto, e na verda-deira articulação que a Escola de Professores operava com a escola ele-mentar – as classes primárias e o jardim-de-infância – verdadeiroslaboratórios em que os professorandos observavam, pesquisavam e pra-ticavam a fundamentação teórica obtida no curso superior. A relaçãoteoria/prática ali se efetivava, seja pela participação das professoras pri-márias na prática de ensino, cujo desenrolar acompanhavam meticulo-

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samente, seja por meio da seção das matérias de ensino, em que as alu-nas estudavam a fundo os conteúdos a serem ensinados nas classes daescola primária. Era por essas matérias que a teoria aprendida no núcleodos fundamentos da educação se articulava à prática docente.

Os Arquivos nos revelam que na escola de professores os futurosmestres se instrumentalizavam para abraçar o ofício escolhido, seja peloaprofundamento nas disciplinas de fundamentos, seja na prática de en-sino. A impressão que se tem, pela leitura do periódico, é a de que nessaescola não se encontrava a estrutura habitual dos cursos superiores comuma divisão clássica de disciplinas, isoladas umas das outras, mas umgrande agrupamento de matérias, numa perspectiva interdisciplinar, re-produzindo o que naturalmente se realiza nas escolas primárias. Perce-bia-se o conhecimento como um todo, mas um todo articulado, cujaspartes se relacionavam, se interpenetravam de tal forma que era impos-sível separá-las numa visão disciplinar e estanque de especialistas. Sepensarmos que o ensino primário possui um caráter generalista, pois acriança apreende o conjunto, muito mais do que as partes; assim tam-bém os mestres primários deveriam ser generalistas quanto ao conteú-do, porém especialistas no que se refere aos processos de ensino.

Para Anísio Teixeira, a formação de professores assim concebidaseria de tal forma prática que o eixo central da escola seria os estabele-cimentos anexos de ensino primário e a pré-escola, verdadeiros labora-tórios de observação, experimentação e aplicação do ensino. Dessamaneira, projetava-se uma escola que fosse realmente um instituto paraa formação profissional do mestre e que, elevado a nível universitário,pudesse mais tarde consagrar-se como centro de pesquisas e de culturasuperior na área educacional.

Relatos de experiências na Escola Primária

Exemplos de apropriação, muitas vezes de forma reducionista, dosprincípios da Escola Nova por parte dos agentes envolvidos em suaimplementação podem ser encontrados nos diversos artigos que com-põem a revista, revelando uma certa urgência em demonstrar a utilidade

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dos novos métodos, que deveriam atender às transformações por quevinha passando a sociedade. Nesse sentido, são relevantes os artigosdas professoras Ondina e Orminda Marques, ambas assistentes de práti-ca de ensino da Escola de Professores que se propõem a relatar pesqui-sas implementadas na escola primária do Instituto de Educação.

A freqüência insatisfatória dos alunos levou a professora OndinaMarques a realizar sua experiência, tendo em vista os dados estatísticospublicados pelo Departamento de Educação em 1932, segundo os quaisa rede pública da cidade atendia apenas a 45% de crianças em idadeescolar. Uma providencial nota de pé de página atualiza a informação,assegurando que a situação se modificou sensivelmente no ano de 1934,momento em que o relatório foi redigido (Marques, 1934).

Segundo a professora, em razão da dificuldade de absorção de todasas crianças em idade escolar pela rede pública, seria inadmissível o des-compromisso dos alunos matriculados com a freqüência às aulas. Apósuma preleção sobre o valor educativo da freqüência do ponto de vistamoral, tendo em vista a “necessidade da formação de caracteres moraismuito fortes pelas tentações da vida moderna” (p. 92), a professora afir-ma que, antes de tudo, “é preciso que a criança sinta a necessidade defreqüentar a escola, e tenha nisso interesse vivo” (p. 93).

Para educar a criança, a escola precisa oferecer os aspectos da própria vida,

fazendo-a perceber como as faltas e impontualidades repercutem negativamente

no trabalho do grupo. [...] Toda a habilidade do educador está em trabalhar,

discretamente, apenas sugerindo, indicando, mas nunca impondo atividades.

Deixar à criança o prazer de investigar, de concluir, é dar vida à escola [p. 94].

Pelas observações realizadas diariamente nessa escola, concluiu-seque apenas 40% dos faltosos o faziam por motivos de doença, enquantoa maioria por motivos comuns: compras, visitas a parentes, consultasmédicas, questões religiosas5. Aqui se evidenciava, segundo opinião da

5. As questões religiosas a que se refere o relatório da professora diziam respeito aalguns alunos judeus que, habitualmente faltavam as aulas de sábado, tendo em

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autora, a falta de compreensão das famílias, que deveriam ser sensibili-zadas pelas próprias crianças para que colaborassem com a escola. Osalunos construíram então um gráfico da percentagem diária e, em cadaturma, um aluno ficava encarregado de registrar a percentagem do dia.

Com base nos interesses das crianças, como afirma a professora, nasturmas de 3ª e 4ª séries surgiram dúvidas sobre cálculo de percentagem,ocasião em que se introduziram exercícios dessa natureza, assim como anecessidade de saberem os motivos pelos quais os colegas faltavam, re-sultou numa regular correspondência que trouxe vantagens para o ensinode linguagem. A campanha, ao que parece, surtiu efeito, aumentando oíndice de freqüência às aulas e, em seu entender, dois fatores foram con-clusivos para explicar o seu êxito: a compreensão dos alunos sobre asvantagens de uma boa freqüência às aulas e o fato de se assinalar no grá-fico geral, semanalmente, a turma menos faltosa, distinguindo-a das ou-tras com uma bandeira nacional, colocada na sala da turma vitoriosa.

[...] Foi, portanto, a emulação que concorreu de uma forma decisiva para o

bom resultado de nosso trabalho, mas emulação que não deve ser condenada,

por não ser individual e em torno dela desenvolveu-se um produtivo traba-

lho, não sendo verificado nenhum sentimento de rivalidade entre elas. Hou-

ve sim, sadia emulação entre as classes, de que resultou maior freqüência

para a escola [p. 97].

Se alguns princípios da escola renovada encontram-se presentes nodiscurso da professora – o compromisso social com o grupo, o interessevivo da criança pelas atividades desenvolvidas, o entrelaçamento dos con-teúdos disciplinares com a questão real vivenciada pelos alunos, a atitudediscreta do mestre, sugerindo, sem impor as atividades aos alunos – con-traditoriamente, parece que outros valores subjazem a essa prática. Méto-dos ativos coexistem com processos tradicionais de ensino, seja pela for-

vista seus hábitos religiosos. Curiosamente, Ondina parece desvalorizar esse traçocultural de seus alunos, uma vez que engloba as faltas por motivos religiosos no roldos motivos comuns, como visita a parentes, compras etc.

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mação de caracteres morais diante das tentações da vida moderna ou orecurso da emulação como estímulo ao trabalho dos alunos. Tratava-se,portanto de inovar os métodos de ensino sem alterar a realidade social,confirmando-se o sentido da escola como legitimadora da ordem vigente.

Em outra pesquisa experimental, Orminda Marques (1934), orien-tada pelo professor Lourenço Filho, defende o uso de uma didática ra-cional da escrita, a partir do uso da caligrafia como forma de obter umaescrita clara, legível e mais rápida para atender às exigências da vidamoderna (p. 58). Apropriando-se dos pressupostos teóricos de Lister,Palmer, Thorndike e Freeman, autores americanos preocupados com aimportância do ensino da caligrafia nas escolas primárias dos EstadosUnidos, a professora expunha argumentos que justificavam a utilizaçãodo novo método:

[...] A escrita, como meio de comunicação exige legibilidade, clareza, unifor-

midade na inclinação, nas ligações e nos espaçamentos, permitindo leitura

fácil e rápida;

[...] A escrita exige rapidez, velocidade, para que possa atender às exigências

da vida moderna, em que o fator tempo é capital;

[...] Pela disposição elegante, e certa liberdade de execução, a escrita concorre

para a educação artística, e como tal, deve ser encarada na escola [pp. 59-60].

A pesquisa baseava-se nas teorias que defendiam a escrita por tra-ção, em que o lápis ou a caneta deslizam sobre o papel, tornando a escri-ta mais clara e legível, em detrimento da escrita por pressão, a caligrafiavertical, tradicionalmente utilizada. Segundo Lister, defensor da técnicade caligrafia muscular baseada na inclinação, o bom desempenho de-penderia dos movimentos desembaraçados do antebraço, conferindo maisrapidez e legibilidade à escrita. A experiência de treino do sistema decaligrafia muscular, ao que parece, foi introduzida na escola primáriado Instituto, tal como era utilizado nas escolas de Nova Iorque.

Passaram a ser realizados exercícios caligráficos diários nas turmasda escola primária do Instituto, sendo de 15 minutos para as turmas de 1ºe 2º anos e trinta minutos para as turmas mais adiantadas. Na experiência,a professora dispensou especial atenção à posição correta do corpo, do

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papel, da caneta e aos exercícios preparatórios que deveriam anteceder ouso do lápis ou da caneta que envolviam movimentos do antebraço, dasmãos e dos dedos. A aprendizagem previa dois momentos: no primeiro,haveria a preocupação com a qualidade da letra, a escrita clara e legível;no segundo, em intensificar os exercícios de treino, no sentido de conse-guir aumentar a velocidade da escrita. Entretanto, segundo suas própriasconclusões, “na medida em que se observava o progresso dos alunos emrelação à qualidade da escrita, também se observavam progressos na ve-locidade, que se desenvolvia naturalmente” (p. 74).

Com base nessa experiência, Diana Vidal (2000, 2001) analisa aspráticas de escrita e leitura na escola-laboratório do Instituto de Educa-ção do Rio de Janeiro na década de 1930, pela inspiração dos princípiosda escola renovada, orientadas pelo professor Lourenço Filho. Sobre aprática da escrita baseada na caligrafia muscular nos diz a autora:

A velocidade acelerada das transformações sociais e a preocupação com a

otimização das tarefas levaram os educadores renovados a considerar manei-

ras de “racionalizar” a técnica da escrita. Apesar de não hegemônica a pro-

posta da “caligrafia muscular”, que associava à disciplinarização corporal do

aluno um controle mais minucioso do tempo individual, permitia compreen-

der os novos desafios da escrita [Vidal, 2000, p. 500].

De acordo com o relatório da professora-pesquisadora, na escolaprimária do Instituto, a experiência foi bem recebida pela quase totali-dade de professoras e alunos e a caligrafia muscular trouxe melhorescondições quanto à higiene da escrita, bem como à sua rapidez. Entre-tanto, submetido à apreciação das professoras da rede escolar do Distri-to Federal, a proposta da caligrafia muscular não foi bem aceita, levan-do em conta que das 83 professoras consultadas, apenas 9,64%declararam que seus alunos melhoraram em clareza e objetividade, apósoito meses letivos de treino. Cerca de 78,32% declararam preferir o tipovertical porque é mais fácil de ensinar, embora a pesquisadora reveleque dessas, cerca de 70% utilizavam habitualmente a letra inclinada.Vale observar que a principal razão da resistência apresentada pelas pro-fessoras da rede em relação ao treinamento da caligrafia muscular resu-

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mia-se ao argumento de que “não deve haver sistematização em relaçãoà escrita “ ou “as crianças devem escrever com a máxima liberdade”(p. 81).

Na conclusão final de sua experiência, Orminda observa que “Esco-la renovada não significa abandono das técnicas fundamentais da esco-la primária e a escrita tem nela uma importância tanto no valor estético,hábitos de ordem e asseio, educação social e disciplina mental” (p. 86).

A inculcação de hábitos, tais como a necessidade de ser pontual aoscompromissos ante as demandas da organização do novo mundo do tra-balho ou o treino de caligrafia para tornar a escrita mais clara e rápida,adequando-a às novas exigências da vida moderna, forneceram argu-mentação a alguns críticos da Escola Nova, que aproximaram o treinode caligrafia de um projeto mais técnico e racional, comprometido coma consolidação de uma ordem capitalista, beneficiando sobretudo a bur-guesia, classe em ascensão6.

É possível notar por meio do texto uma resistência expressiva emrelação à racionalidade dos novos métodos empregados, bem como àdisciplinarização dos hábitos impostos pelas experiências implementadasna escola-laboratório, sobretudo por parte de professoras de outras es-colas da rede. Infere-se pelo relato dessas práticas, como observa Julia(2001), que a cultura escolar7 não pode ser compreendida sem o examedas relações que a mesma mantém com o conjunto das culturas que lhesão contemporâneas – realidades sociais, políticas, econômicas, religio-sas – e como, muitas vezes, essa relação encontra-se carregada de con-flitos e resistências.

6. Refere-se especificamente à obra de Saviani, 1999. Ver ainda Brandão, 1999, notrabalho em que discute as diversas tendências historiográficas sobre a obra dosPioneiros da Educação.

7. Na concepção de Julia (2001), entende-se por cultura escolar “um conjunto denormas que definem conhecimentos a ensinar, condutas a inculcar e um conjuntode práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporaçãodesses comportamentos” (p. 9).

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Para além dos Arquivos: fragmentosde memórias e práticas escolares

Convém examinar o funcionamento interno da escola para que seperceba como as lutas, concorrências e mecanismos de apropriação e/ou resistência se estabelecem dentro dela, relativizando a ilusão de po-der absoluto que se costuma conferir a esse tipo de instituição (Julia,2001). Cruzando as informações obtidas no anuário Arquivos do Insti-tuto de Educação com vestígios das práticas escolares e a memória deantigas alunas, talvez seja possível traçar um quadro aproximado dacultura escolar que ali se desenvolvia, desvendando um pouco do quenão interessava aos Arquivos divulgar.

As lembranças de ex-alunas nos fornecem uma idéia aproximada decomo se processavam as práticas escolares no interior da instituiçãodurante a década em que por lá passaram. Vejamos o que elas nos dizemsobre os novos métodos de ensino ali implementados:

Os novos métodos eram empolgantes, eu gostava. Foi uma evolução, o

pessoal se dedicava, aceitávamos com muito prazer. A Escola Nova foi uma

coisa formidável, havia uma contradição muito grande com o sistema antigo,

nem há comparação. A criança era respeitada na sua individualidade [...] Tra-

balhei com método de projetos na Escola Sarmiento e na Escola Uruguai. Na

Escola Argentina tive uma turma muito boa que alfabetizei com o método

fônico. Havia três métodos: a palavração, a sentenciação e o método fônico.

O método da sentenciação era o mais empregado. Introduzia-se uma senten-

ça, depois destacam-se as palavras, chegando até às letras. O fônico era um

pouco mais difícil, mas era aplicado a turmas de crianças mais apuradas,

hoje não, se mistura tudo, botam todas as crianças juntas, um aprende rápido,

depois fica sendo um elemento de conduta difícil, porque não há aquela

homogeneidade. Eu acho que grupo é tudo [Alda, turma de 1934].

A nossa situação não nos permitia analisar se aquilo era bom ou ruim. Era

prestar atenção e fazer as coisas direitinho [...] Mas hoje eu acho que a Esco-

la Nova era tão boa que chega às raias da fantasia, ou melhor, da utopia[...] A

gente, sempre que podia, tentava fazer [...] [Baptistina, turma de 1936].

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Só se trabalhava com método de projetos, não havia outro jeito...Eu tinha

uma turma de segundo ano, muito boa. Isso era resolvido com as crianças,

não era imposto. Ficou resolvido fazer uma casa de bonecas, compramos

madeira e fizemos. Então todo o trabalho era em redor da casa de boneca,

tudo o que você precisava dar tinha que ser encaixado naquele projeto. Partia

do interesse da criança. Em parte era a pedagogia da Escola Nova, mas gra-

ças a Deus, ainda tinha muito da tradicional [...] Em outras escolas em que

trabalhei era difícil aplicar esses métodos. Era tudo muito bonito, mas na

prática, a realidade era outra [Marília, turma de 1937].

As entrevistadas concluíram o curso na década de 1930. Alda eBaptistina pertenceram às primeiras turmas, que tiveram o sistema de es-tudos adaptados por força do decreto 3.810, Marília cursou seis anos deescola secundária e dois da Escola de Professores que a partir de 1935passou a chamar-se Escola de Educação com a criação da Universidadedo Distrito Federal. Porém, apenas as duas últimas, formadas respectiva-mente em 1936 e 1937, puderam exibir, com certo orgulho, o diplomaexpedido pela UDF, visto que um ano depois a universidade seria extinta.

A maneira como as antigas alunas qualificavam as inovações opera-das na cultura escolar refletem, de certa forma, diferentes visões demundo. Apesar de inseridas na mesma década e partilharem uma me-mória comum sobre o período, vivenciaram conjunturas políticas dis-tintas no interior da instituição. O fato de Alda tecer elogios aos novosmétodos, bem como a facilidade que dizia ter em empregá-los, qualquerque fosse a escola ou categoria socioeconômica de seus alunos, eviden-cia não apenas a internalização da ideologia contida no discurso do po-der, mas também uma percepção do momento peculiar pelo qual não sóa instituição, mas o país passava até 1935. Se a legitimidade do movi-mento dos Pioneiros e, sobretudo de Anísio Teixeira, nesse primeiromomento era reconhecida, o mesmo não aconteceu na fase posterior, naqual essa imagem foi maculada pelos acontecimentos políticos que re-sultaram em seu afastamento da administração do Distrito Federal eque, obrigatoriamente, repercutiram junto à opinião pública.

De qualquer forma, apenas esse fato não é suficiente para explicar aresistência de Marília aos métodos impostos pelo novo sistema de ensi-

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no. A prática era realmente bem diversa da teoria, como ela nos diz, ou“utópica”, como assinala Baptistina. Professores intransigentes, siste-ma de avaliação rígido, disciplina vigiada pela temível inspetora-chefe,dona Palmira que as impedia de falar alto, deslizar pelos corredoresencerados, limitando seus gestos e espaços, mesmo no recreio ou à saí-da das aulas. “Havia muito da escola tradicional, graças a Deus!”. Ob-serva Marília, aos 85 anos, que se orgulha de não sorrir muito para seusalunos, exigindo-lhes disciplina e respeito, ao mesmo tempo que reco-nhece ter aprendido a respeitar a individualidade de cada um, identifi-cando problemas, seja de ordem física ou emocional.

Estudávamos muita psicologia, justamente para entender a criança, seus pro-

blemas, suas limitações e seus interesses. Eu tinha uma turma indisciplinada

de 3ª série [...] Pois bem: consegui disciplinar a turma com um esqueleto que

nós estudávamos todos os dias nos últimos quinze minutos da aula. Aprende-

ram o nome de todos os ossos, para que serviam as articulações [...] O esquele-

to me serviu muito. Quando deixei a turma, as crianças choraram [...].

Marília driblava a agitação de seus alunos utilizando uma atividadeque lhes despertava o interesse: “Criança só aprende quando se interes-sa pelo assunto” repete ainda hoje, naturalizando um dos princípios daEscola Nova, ainda que a apropriação desses métodos tenha ocorridopela via utilitária.

Ao revelar que estudava muita psicologia e que se utilizava de umesqueleto humano para prender a atenção da turma, Marília, sem o sa-ber, referia-se à privilegiada carga horária que os fundamentos biopsi-cológicos da educação desfrutavam na matriz curricular da Escola deProfessores: biologia (7h) e psicologia (12h) em detrimento das outrasdisciplinas, como história da educação (4h), sociologia (6h) e filosofia(4h)8. Na verdade, psicologia era oferecida nos três trimestres do 1º ano

8. A carga horária referente às disciplinas constantes da grade curricular da Escola deProfessores encontra-se no documento Estrutura do Instituto de Educação locali-zado no Arquivo de Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Série Temática. LF/Institutode Educação, pasta II.

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dividida em psicologia da criança (4h/a no 1º trimestre) e psicologia educa-cional (6h/a no 2º trimestre e 2 h/a no 3º trimestre).

Revelou-nos ainda a entrevistada que “seus professores eram quasetodos médicos” e que muitos levavam os alunos para assistir às aulaspráticas no Hospital Gafrée Guinle. O relato sobre a utilização do esque-leto para conseguir a atenção das crianças para sua aula e o orgulho comque argumenta saber diagnosticar várias enfermidades e perturbações nascrianças pequenas que qualifica como “fatores dificultadores da aprendi-zagem” revelam, em larga medida, uma realidade que a matriz curricular,como instrumento material das práticas pedagógicas, de fato, confirmam.

Tomando por base os trabalhos de Apple (1982, 1989) entendemosque o currículo não se configura como um corpus neutro de conhecimen-to, inocente e desinteressado, ou seja, o conhecimento presente no currí-culo é selecionado e resulta de um processo que reflete interesses de de-terminados grupos. Esses conhecimentos, tidos como legítimos, são sempreconsiderados verdadeiros em detrimento de outros. Na perspectiva do autor,para quem o currículo é sempre um espaço de lutas e resistências, logoum espaço de poder, faz-se necessário indagar que interesses mobilizam aseleção desses conhecimentos e quais as relações de poder envolvidas noprocesso de escolha de um currículo específico.

Se nos reportarmos aos núcleos institucionalizados de saber exis-tentes no Brasil até as duas primeiras décadas do século XX, como o fazMariza Corrêa (1998), é possível constatar a presença de diversos higie-nistas, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, antropólogos,criminólogos egressos do campo do saber médico, atuando no processode “medicalização” da sociedade. A fé que esses homens, partidários doevolucionismo, tinham no progresso do país pela modernização era amesma que tinham no progresso da raça humana pela higiene; assim,propunham “medicamentar” todas as áreas do conhecimento, sobretudoa educação, utilizando-se de leis eugênicas como instrumentos deprofilaxia e correção para desvios morais e comportamentais. Afrenologia, ciência emergente, defendia a predisposição biológica da“natureza criminosa”, afirmando que essa inclinação poderia ser deter-minada e “corrigida” pelo exame preventino, com base em característi-cas físicas peculiares. Mesmo recebendo críticas de seus contemporâ-

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neos por seu reducionismo, essa teoria informou as práticas da medici-na, higiene, direito e educação durante a primeira metade do século XX.

Propostas de higienização do social, associadas à eugenia, circularamintensamente no Brasil dos anos de 1920-1930, sobretudo na capital fede-ral, dispondo-se a disciplinarizar a cidade, vítima dos vícios e flagelosdecorrentes do alto grau de miscigenação étnico-cultural a que era sub-metida, especialmente por encarnar a missão de “vitrine do Brasil”.

Entretanto, é preciso considerar que, a partir dos anos de 1920, ocor-rem mudanças no discurso pedagógico, em direção a uma visão maisotimista da criança e de sua natureza, quanto ao seu poder de ação, esem tantas limitações deterministas. Uma nova compreensão da vidacomo mundo da indústria e da técnica subsidiava algumas interpreta-ções da pedagogia da Escola Nova, definida como progressista e reno-vadora. A biologia e a higiene tiveram um papel central para fundamen-tar essa nova pedagogia, por um lado, oferecendo meios de desenvolvera “base biológica” por meio da defesa da saúde individual, por outro,dotando o professor de uma sólida base científica. A fundamentaçãobiológica que justificava a importância das individualidades e dos pro-cessos de adaptação social, bem como a fisiologia da aprendizagem,foi, de certa forma, encampada pela área de conhecimentos psicológi-cos, que tomou a biologia como fonte científica.

Visto que os estudos de caráter objetivo da psicologia tiveram iníciono campo da medicina, ou mais precisamente, no campo da psiquiatriae medicina social, foi neste último que os esforços dos médicos se arti-cularam aos dos educadores, fundamentando princípios de higiene mentale possibilitando a prática de diagnósticos, por meio da introdução dostestes mentais9.

9. No capítulo sobre psicologia, parte da obra organizada por Azevedo – As ciênciassociais no Brasil (1955) – Lourenço Filho comenta a dificuldade encontrada pelapsicologia para tornar-se um campo autônomo da medicina, fazendo menção àreação negativa diante da proposta de se estabelecer o 1º laboratório de psicologiaexperimental no Rio de Janeiro em 1897, uma vez que, na opinião dos opositores,“seria ridículo pretender levar as faculdades da alma à análise de aparelhos”. Tam-bém Farias Brito, em 1912, teria sentenciado a falência dos estudos da psicologiaempírica, enquanto Almáquio Diniz defendia que a psicologia nada mais era “doque a extensão da Fisiologia” (vol. 2, p. 267).

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No início do século XX, em 1905, foram criados os testes de Binetque foram usados para mensurar a inteligência e para, de certa forma,justificar as diferenças sociais como diferenças individuais. Foram mui-to utilizados pela sociedade norte-americana e serviram como legitima-dores e perpetuadores das diferenças sociais e do racismo, pois os sujei-tos sociais marginalizados (prostitutas, latinos, hispânicos, negros,presidiários etc.), ao serem testados, apresentavam sempre um coefi-ciente intelectual abaixo do normal. Ou seja, os testes anteriormentemencionados foram construídos para a cultura dominante, sem levar emconta as demais variantes culturais, afastando da escola os alunos quepossuíam o coeficiente abaixo da média, exercendo, portanto, uma fun-ção de controle e seleção.

O primeiro teste aplicado em grande escala foi o teste Alfa, do Exér-cito dos Estados Unidos, durante a primeira guerra mundial e, por incrí-vel que pareça, esse mesmo teste era aplicado às crianças que se aventu-ravam a concorrer às poucas vagas existentes para a escola secundáriado Instituto de Educação durante as décadas de 1930-1940. A partir doteste Alfa muitos outros foram produzidos para serem utilizados na in-dústria, seleção de pessoal e em todos os níveis do sistema educativo.

Segundo Lourenço Filho (1955), a consolidação da psicologia comociência e campo disciplinar foi viabilizada pelos movimentos da reno-vação escolar e pela racionalização do mundo do trabalho, quando edu-cadores e administradores, interessados nos problemas de formação eseleção de pessoal, “mais rapidamente estabeleceram liames de enten-dimento e colaboração” com especialistas médicos10.

Na verdade, bem antes do movimento da renovação educacional,surgiram, no Rio de Janeiro, tentativas experimentais como a instalaçãode um laboratório de psicologia pedagógica no Pedagogium, instituiçãocriada por Benjamin Constant em 1890, que funcionou como museu

10. Em 1914, especialistas estrangeiros são convidados a vir ao Brasil a fim de instalarlaboratórios de psicologia aplicada à educação em São Paulo, à psiquiatria, no Riode Janeiro, em 1922 e à organização do trabalho, em São Paulo, 1929. Ver Louren-ço Filho, 1995, p. 268.

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pedagógico – um centro de cultura superior aberto ao público – até ofinal dos anos de 1910. Esse laboratório, entregue à supervisão de ManoelBonfim, médico e professor da escola normal, funcionou por quinzeanos, produzindo pesquisas, algumas delas publicadas na revista Edu-cação e Pediatria11.

Mas foi no início dos anos de 1930 que dezenas de educadores pas-saram a receber cursos de especialização em psicologia nas universida-des norte-americanas, ao mesmo tempo em que vários especialistas sãocontratados para atuar em escolas brasileiras. Consuma-se, então, a au-tonomização da disciplina, que adquire um peso significativo nos currí-culos dos primeiros cursos de aperfeiçoamento para professores primá-rios – em Minas Gerais e São Paulo – e nos primeiros cursos de formaçãodo magistério primário em nível superior – os Institutos de Educação doDistrito Federal e de São Paulo – ligados, respectivamente, à UDF e àUSP.

No Distrito Federal, ainda na época da reforma Fernando de Azeve-do, reformaram-se os programas de Psicologia da Escola Normal, masfoi na gestão de Anísio Teixeira que se instituiu um Serviço de Testes eMedidas escolares, confiado ao baiano Isaías Alves, enquanto o ensino

11. Em São Paulo, quase à mesma época do Rio de Janeiro, fortalecia-se o movimentoda psicologia pedagógica, por meio da inauguração de um laboratório experimen-tal na Escola Normal da Praça da República, em setembro de 1914, em que SampaioDória assumira a cátedra de psicologia e pedagogia. Nessa mesma época, Louren-ço Filho, que fora aluno de Dória, inicia sua carreira na Escola Normal de Piracica-ba, em que, por intermédio de uma fundação norte-americana mantinha contatocom a bibliografia sobre psicologia educacional procedente dos Estados Unidos ecomeça a realizar pesquisas utilizando-se dos testes. Em 1922, com a reforma doestado do Ceará prossegue suas investigações, montando um laboratório na EscolaNormal de Fortaleza para o estudo biológico e psicológico dos alunos. Segundo opróprio educador, o fato de haver cursado os dois primeiros anos de medicina tal-vez tenha influenciado essa orientação que viria a se manifestar com mais intensi-dade quando, em 1925, assume a cátedra de psicologia na Escola Normal de SãoPaulo. No laboratório dessa escola utiliza testes de desenvolvimento mental, realizainquéritos e desenvolve pesquisas sobre a maturidade necessária à aprendizagem daleitura e da escrita. Sua ação culmina com a criação de um Serviço de PsicologiaAplicada, do qual resultaria o Laboratório de Psicologia Educacional do InstitutoPedagógico, também criação sua. Ver Lourenço Filho, 1955, pp. 275-277.

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de psicologia na escola de professores ficou sob a responsabilidade deLourenço Filho. Esse educador realmente deixou sua marca no Institutode Educação, primeiramente através de seus auxiliares diretos, HeloísaMarinho e Murilo Braga, que lá ingressaram na década de 1930 e, pos-teriormente, por meio de vários discípulos, dos quais Iva Waisberg tal-vez tenha sido a mais expressiva devido às suas atividades por mais deduas décadas como pesquisadora na instituição.

Considerada “brilhante” pelos colegas, Iva formou-se na primeiraturma da escola de professores, tendo depois cursado psicologia na Uni-versidade do Distrito Federal. Em 1943, passou a reger a cadeira depsicologia educacional no curso normal do instituto de educação, emque permaneceu até o final dos anos de 1960. Em sua atividade comopesquisadora, procurou dar continuidade ao trabalho de Lourenço Fi-lho, assegurando à psicologia uma posição privilegiada na área das ciên-cias da educação 12.

Esta constatação, de certa forma, relativiza a concepção de MarcusVinicius da Cunha (1995), cujo estudo procura demonstrar a inadequaçãodo rótulo de psicologismo ao pensamento da Escola Nova no Brasil.Trabalhando com a documentação normalizadora dos cursos de forma-ção de professores primários no estado de São Paulo e com as matrizescurriculares, inclusive durante a década de 193013, o autor conclui quenão se pode afirmar o predomínio da psicologia, tanto no pensamentoda Escola Nova quanto nas orientações para a formação de professores.Talvez suas considerações se restrinjam à realidade paulista, uma vezque a implementação do Instituto de Educação articulado à Universida-de de São Paulo, foi obra de Fernando de Azevedo, enquanto diretor dainstrução naquele estado.

12. Várias professoras em exercício no atual Instituto Superior de Educação do Rio deJaneiro (ISERJ), ex-alunas de Iva Waisberg lembram-se da organização e até docerto “luxo” do gabinete de psicologia, o que o distinguia dos demais. Além disso,todas as pesquisas desenvolvidas no instituto entre as décadas de 1930 e 1970deveram-se ao esforço e interesse dos professores desse gabinete. Ver a respeitoVillas Boas et al., 1994.

13. Decreto n. 5.846/1933.

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No caso do Rio de Janeiro, a meu ver, não se poderia fazer semelhanteafirmativa. É possível, inclusive, que a matriz biopsicológica tenha mar-cado, por Lourenço Filho, o curso de professores do Rio de Janeiro, en-quanto o caráter sociológico tenha predominado em São Paulo. Vale apena uma pesquisa comparativa das matrizes curriculares dos dois cur-sos, com o objetivo de se tentar realizar uma análise mais profunda sobrea questão, proposta que não cabe nos limites deste trabalho.

Considerações finais

Como se percebe pelo exame dos Arquivos publicados em 1934, umanova cultura pedagógica se construía a partir da escola-modelo e preten-dia impor-se à rede escolar da cidade. Evidentemente, essas normas epráticas estão articuladas a objetivos que variam de acordo com a época enão podem ser analisadas se não levarmos em conta o grau de apropria-ção e/ou resistência do corpo de agentes profissionais que são levados aexecutar essas ordens, utilizando métodos, processos e dispositivos dita-dos pela nova concepção pedagógica que se quer estabelecer. Os artigosdemonstrativos de experiências do grupo de professores e alunos que re-presentavam todas as escolas do Instituto de Educação, dos quais extraí-mos apenas alguns exemplos, nos oferecem pistas para perceber como osensinamentos da educação renovada vinham sendo por eles assimilados.

As opiniões a respeito dos novos métodos de ensino, bem como astáticas desenvolvidas pelos alunos/as e professores/as para driblar ouresistir à nova ordem que se impunha, revelam faces do trabalho escolarque escapava aos Arquivos. Como texto legitimador do poder, o anuáriorevela-se seletivo e, muitas vezes, omisso em relação a determinadasidéias e práticas correntes na instituição, em que contradições e confli-tos são apagados, oferecendo ao leitor a idéia de harmonia e coesão,fatores necessários à construção de uma memória vitoriosa.

A supressão do impresso entre 1937 e 1945 é bastante significativa,na medida em que se pode perceber a manipulação da memória pelo po-der, por meio do silêncio deliberado sobre a obra protagonizada pelospioneiros no Instituto. A retomada da publicação em 1945, quando um

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dos signatários do Manifesto, o professor Francisco Venâncio Filho assu-me temporariamente a direção da casa, traduziu-se numa tentativa de re-criar, embora sem êxito, o clima reinante no período da gestão de Louren-ço Filho à frente da instituição. Apesar de contar com alguns professoresque procuravam dar continuidade à obra iniciada nos anos de 1930, oespírito renovador talvez já não fosse sentido coletivamente, o que sugerea possibilidade de nos referirmos ao instituto como um lugar de memóriada renovação educacional. Para Pierre Nora (1993) uma das característi-cas desses lugares seria justamente “a sua derrota em se tornar aquilo quequiseram seus fundadores, pois se estivéssemos ainda hoje, vivendo sobseu ritmo, teriam perdido a virtude de lugares de memória” (p. 23).

Encaminhando os alunos pela observação de suas aptidões, valen-do-se de instrumentos de controle e padronização, o Instituto de Educa-ção levou a termo, durante a década de 1930, uma experiência de altocunho social, selecionando e preparando os mais capazes para a funçãode educar. À luz dos paradigmas que transformavam o pensamento edu-cacional da época, pretendeu-se fixar na memória coletiva as imagensdo Instituto de Educação do Rio de Janeiro como centro irradiador deuma nova ordem, uma nova cultura pedagógica que se expandiria parao restante do país. Os agentes construtores dessa memória, tendo à fren-te Lourenço Filho, orgulhavam-se da obra que, estrategicamente, iammoldando – a obra-síntese da reconstrução educacional14, que por seusolhos, adquiria formas, contornos mais nítidos, saía do decreto, simplespapel, para ganhar vida.

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Recebido: 27 de jun. de 2004Aprovado: 5 de abr. de 2005

Modificado: 12 de maio de 2005

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A produção da infância nasoperações escriturísticas daadministração da instruçãoelementar no século XIX*

Cynthia Greive Veiga**

Este artigo apresenta uma discussão teórico-metodológica das fontes documentais pro-duzidas em pesquisa sobre a história da infância e a presença de crianças pobres, negrase mestiças no processo de institucionalização da instrução elementar em Minas Geraisno século XIX.DOCUMENTOS; ESCOLARIZAÇÃO; INFÂNCIA.

This article has a central objective to present a theoretical and methodological discuss ofsource produced in a research about history of childhood and the presence of poor andafro-american children along the history of institutionalized public education in MinasGerais, century XIX.SOURCE; SCHOOLING; CHILDHOOD.

* Este texto é uma versão modificada e ampliada de trabalho apresentado no Semi-nário do Projeto “A infância e sua educação (1820-1850): materiais, práticas erepresentações” (convênio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NívelSuperior – CAPES/ Gabinete de Relações Internacionais das Ciências e do EnsinoSuperior – GRICES), realizado na Universidade de Lisboa em abril de 2004.

** Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação(GEPHE).

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O objetivo deste artigo é fazer uma discussão teórico-metodológicadas fontes documentais produzidas ao longo da pesquisa em andamento“História social da infância: crianças pobres, negras e mestiças no pro-cesso de institucionalização da instrução elementar em Minas Gerais(1835-1906)”1. Especificamente neste texto será problematizada a pro-dução da infância em um lugar específico, a infância na escola, comênfase no contexto da institucionalização da instrução pública em Mi-nas Gerais nos tempos imperiais. Compreende-se a partir das discus-sões de Certeau (1999) que as transformações políticas processadas noBrasil na passagem da administração colonial para a monarquia consti-tucional se inserem em um projeto escriturístico de alcance de toda asociedade. Tal operação escriturística ambicionou fazer tábula rasa dopassado e (re)escrever a história na perspectiva do novo e do progresso,sendo a operação multiplicada nos “campos econômicos, administrati-vos ou políticos, para que se realize o projeto” (Certeau, 1999, p. 226).Enfatizarei a produção da infância na escola pela operação escriturísticada administração da instrução pública, produzida aqui como fonte do-cumental para a escrita da história.

Ainda de acordo com Le Goff (1984) e Foucault (1972), a escrita dahistória é aquela que transforma os documentos (escolha do historiador)em monumentos (sinais do passado). Acrescenta-se a isso o entendi-mento de que os documentos não falam por si, são também monumen-tos, porque produzidos pela sociedade, sendo ainda produto do historia-dor que os interroga. Na afirmação de Étiene François, uma dasexigências do ofício de historiador é não esquecer que “as fontes sócomeçam a falar a partir do momento em que as interrogamos e que aqualidade das respostas que elas podem dar coincide com a qualidadedas questões que se formulam” (François, 1998, p. 158).

Dessa maneira, também se corrobora com a concepção de que os arqui-vos não são depositários de uma verdade e que o manuseio dos documentosexige rigor dos historiadores. Na perspectiva de François (1998) o trabalho

1. Bolsa de produtividade de pesquisa do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq). Projeto integrado ao GEPHE e ao convênioCAPES/GRICES.

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a produção da infância nas operações escriturísticas da administração... 75

de reconstituição e interpretação das fontes demanda ainda outras três exi-gências, a saber: a crítica das fontes (processo de sua constituição, condiçãode produção, objetivos, o que dizem e não dizem), a consciência de que “asfontes não dizem tudo” e por fim “a exigência ética”.

Nas palavras de Certeau,

Em História, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transfor-

mar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova

distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em pro-

duzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotogra-

far estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este

gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em desfigurar

as coisas para constitui-las como peças que preencham lacunas de um con-

junto proposto a priori [Certeau, 1982, p. 103].

A pergunta inicial parte de um pressuposto, qual seja, a infânciacomo etapa da vida, não é um dado, mas uma construção socioistórica,“uma categoria de tempo inventada a partir de múltiplas experiênciasvivenciadas pelos diferentes grupos sociais” (Veiga, 2004, p. 40). Comoparte dessas experiências esteve o acontecimento da obrigatoriedadeescolar. Nessa perspectiva destaco, como procedimento metodológicode organização da documentação, esse acontecimento, “suporte hipoté-tico”2 necessário para a ordenação do discurso. Contudo, a escolariza-ção da infância é o fato histórico a ser construído e a infância a categoriahistórica central para interrogação das fontes documentais.

Que relações podem ser produzidas entre a obrigatoriedade escolar,a escolarização da infância e a infância como tempo geracional a partirdas práticas escriturárias do setor administrativo da instrução pública?Antes de desenvolvermos a questão, temos que do ponto de vista meto-dológico essa é uma discussão sobre as relações entre acontecimento,fato e categoria. Certeau observa que “o acontecimento é aquele que

2. De acordo com Certeau, o acontecimento é o suposto para a organização dos docu-mentos, não se aplica por si, mas permite uma inteligibilidade. Por isso se configu-ra como um “suporte hipotético” enquanto condição de orientação no tempo.(Certeau, 1982, p.103.)

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recorta, para que haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele que pre-enche para que haja enunciados de sentidos. O primeiro condiciona aorganização do discurso; o segundo fornece os significantes [...]”(Certeau, 1982, p. 103). Portanto, o acontecimento propicia uma orde-nação no tempo em que o fato histórico será produzido na intenção dedar significação a um acontecido. Esses significantes se fazem pelo diá-logo com modelos, teorias e conceitos necessários à interpretação e pro-dução da diferença, apreendendo assim as especificidades do aconteci-mento. Dessa maneira, as categorias históricas funcionam como umrecorte semântico na intenção de constituir a intelegibilidade do proble-ma e as interrogações propostas nos documentos, procedendo, portanto,ao “estabelecimento das fontes” (Certeau, 1982, p. 83).

A obrigatoriedade escolar como acontecimentofavorecedor da distinção geracional, problemáticainicial

A institucionalização da obrigatoriedade escolar foi um componen-te do processo de produção das civilizações ocidentais, presente em di-ferentes países, com variações das épocas em que se efetivou ao longodo século XIX. Tais variações indicam para a existência de tensões paraa sua realização mesmo que tenha sido uma temática que de certa formahomogeneizava o pensamento das elites. Tornar a freqüência à escolauma rotina obrigatória para amplas camadas da população fecha o ciclodas monopolizações constituidoras do Estado Moderno e das repúbli-cas – a monopolização da força física, a monopolização da tributação ea monopolização dos saberes elementares. O caminho percorrido entreo desenvolvimento do Iluminismo e o século XIX indicou para a confir-mação do anunciado por Diderot (1713-1748) de que é mais fácil go-vernar um povo instruído que um povo ignorante. Ou ainda nos dizeresdo presidente da província mineira, Limpo D’Abreu, em 1835,

A instrução primária que na forma da Constituição deve proporcionar-se a

todos gratuitamente, é um dos objetos que nesta província tem merecido o

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maior desvelo e solicitude. Os governos despóticos são os que amam e pro-

movem a ignorância como um dos elementos da sua existência e duração e

por isso no delírio de embrutecer os povos assemelham-se ao louco que pre-

tende arrancar a luz do Astro do dia para cobrir o mundo das trevas, mas os

governos livres que se sustentam sobre a teoria dos direitos e obrigação do

homem social, não receiam, antes protegem os progressos de todos os co-

nhecimentos humanos [...] [Falla, 1835].

Nesse sentido a questão da obrigatoriedade escolar é um aconteci-mento predominantemente político e esteve relacionado à necessidadesociocultural de produção da consciência de um pertencimento nacio-nal, sentimento esse radicalmente novo, dado o acúmulo histórico dasexperiências anteriores de hierarquias e estratificação social.

As elites políticas e intelectuais, ao estabelecerem a obrigatoriedadeescolar como estratégia de produção da nação, estavam constituindoum imaginário de sociedade, tendo como pressuposto a existência dacondição de “obrigação do homem social” sendo necessário para suaefetivação a produção de uma identidade coletiva e coesa. Tal identida-de pressupôs, por sua vez, a comunhão de valores, hábitos e atitudes, ouseja, de gestos e expressões a serem compartilhados por todos e cujapossibilidade estaria na homogeneização cultural das populações. Natrilha dos monopólios, a monopolização dos saberes elementares peloEstado apresenta-se como condição de normatização social pela criaçãode uma rede de racionalidades promovedora da coesão da sociedadesendo a escola produzida como uma unidade de referência civilizatória.Isso tornou possível outra organização da sociedade constituída de le-trados e não-letrados na perspectiva de civilizados e ignorantes, comonovos adjetivos indicadores de diferenciação social, estabelecendo comisso novos laços de interdependência entre os sujeitos. No aconteci-mento da obrigatoriedade escolar esteve a ambição de inscrever o povono tempo da civilização.

A escolarização da infância a partir do século XIX foi o objetivocentral dos procedimentos relativos à normatização da instrução públi-ca elementar. É parte de várias outras estratégias desenvolvidas paraproduzir a infância como tempo geracional distinto do adulto, condição

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essa necessária para o estabelecimento da civilização. Ou seja, preparara criança, criar condições para a vivência de uma infância civilizada, foiuma idéia recorrente nos meios pedagógicos, médicos e jurídicos para aexistência e consolidação de uma sociedade adulta civilizada (Veiga,2004). Os diferentes saberes em profusão a partir de meados do séculoXIX sistematizaram uma condição de ser criança e de ter infância, epara isso diferentes normas se inscreveram no corpo da criança: ser bemcomportada, obedecer, brincar, vestir roupas adequadas, freqüentar aescola, ser um bom aluno etc. Por meio da escola universalizou-se umafaixa etária atribuída ao tempo da infância, bem como uma nova manei-ra de as crianças se estabelecerem no mundo: como alunos(as).

Os documentos aqui analisados são parte do projeto escriturísticoda nova sociedade imaginada cuja história estava em processo de regis-tro. Dada a diferenciação dos documentos e para a sua discussão proce-deu-se uma distribuição em três tipos: normatização (legislações), rela-tos (relatórios de delegados literários, de inspetores, de presidentes daprovíncia, ofícios e correspondências diversas) e instrumentos de veri-ficação (mapas da população, mapas de freqüência, listas de criançasem idades de freqüentar a escola)3.

Processo de normatização da infância escolar

Segundo Certeau a economia escriturística é componente da moder-nidade e apresenta-se como “um discurso fragmentado que se articula

3. Todos os documentos investigados estão depositados no Arquivo Público Mineiro(APM), Fundo Seção Provincial (SP) que estão organizados em séries. Séries nãoencadernadas: Presidentes da Província (PP), Secretaria de Governo (SG), Instru-ção Pública (IP), esses documentos estão guardados em caixas (cx) numeradascujos documentos por sua vez estão numerados em pacotilhas (p). As séries enca-dernadas são localizadas em Códices (C). Para as citações das referências no corpodo texto serão utilizadas as siglas indicadas. Os relatórios dos presidentes de pro-víncia estão em microfilme, entretanto grande parte dos aqui pesquisados foramconsultados no endereço: <www.crl.edu/content/provopen.htm>. As leis mineirasestão publicadas no Livro da Lei Mineira organizado em tomos.

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sobre as práticas heterogêneas de uma sociedade e que as articula sim-bolicamente” (Certeau, 1999, p. 224). No conjunto da documentaçãoanalisada, observa-se uma circularidade de informações que teve comoobjetivo central o cumprimento da legislação da instrução pública a par-tir da prescrição constitucional que determinou como garantia dos direi-tos civis e políticos dos cidadãos brasileiros a gratuidade da instruçãoprimária4. Como salienta Faria Filho (1998), as leis em uma sociedadeexpressam a dinâmica da realização e da ordenação das suas relaçõessocioculturais, ou ainda em Thompson (1987) temos que o exercício dalei é revelador de um campo de tensões e conflitos e não se exprimeunicamente como imposição do poder de uns sobre os outros. No casoespecífico aqui da instrução pública, a associação entre gratuidade daescola primária e garantia de direitos civis e políticos possui uma pers-pectiva de produzir cidadãos como parte do imaginário político de umanação civilizada (Veiga, 2003).

Ainda sobre legislações, outro autor, Norbert Elias (1997), observaque na estruturação dos Estados-nações, a codificação das normas faz-se dual e contraditória. Temos a produção de um código de normasmorais, fundamentados na humanidade e nos princípios igualitários ede um código nacionalista, fundado no Estado e nos princípios da inte-gridade dos indivíduos. No processo de formação de uma sociedadecivilizada esteve presente a necessidade de assimilação desse duplo sen-tido das regras, a integração, na perspectiva do coletivo e da humanida-de e a desintegração na perspectiva do indivíduo e do Estado. Tais códi-gos podem ser acionados em diferentes épocas e situações, de formaisolada ou combinada, sendo que ao Estado cabe administrar o seutensionamento como instrumento de equilíbrio de poder, garantindo apermanência da dualidade dos códigos e normas sociais.

4. Constituição de 1824, Título VIII, art.179, item 32 (Dantes Junior, 1937). Observa-se que o estabelecimento das aulas públicas se fez nos tempos do Brasil colonialpor meio do Alvará Régio de 1759. Entretanto, a ênfase a ser dada nesse estudorefere-se à enunciação da escola como estratégia constitucional de produção decidadãos. Destaca-se ainda que apesar da escola gratuita ter sido promulgada naConstituição de 1824, somente será instituída pela lei de 15 de outubro de 1827.

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No conjunto da legislação da instrução pública é possível identificarclaramente o que as leis universalizam e o que individualizam na ambí-gua discussão de direitos e deveres dos cidadãos em prol de um imaginá-rio coletivo. Do ponto de vista da produção da infância foi-lhe conferidauma identidade peculiar, a de aluno. A lei universalizou as idadesidentificadoras dessa etapa da vida em relação a um lugar específico, aescola, entretanto individualizou a sua condição de realização pela indi-cação da obrigatoriedade dos pais de família em dar a seus filhos a instru-ção primária5. Podemos dizer que a infância na escola foi produzida apartir de um tensionamento entre as prescrições do âmbito mais universa-lizado, ao enfatizar a idéia recorrente de que lugar da criança é na escola –essa enquanto processo de produção do cidadão –, bem como no âmbitoprivado da esfera doméstica e familiar. Observa-se a interdição na rotinafamiliar ao estabelecer que os pais são obrigados a enviar os filhos à esco-la, com penas previstas no caso do descumprimento da lei.

Nesse sentido, na intenção da produção de uma eficácia das normas,as leis da instrução regulamentaram uma série de dispositivos relativosaos processos de escolarização da infância. Isso se deu em duas pers-pectivas, por meio dos procedimentos que regulam as possibilidades detornar a infância escolarizada e pela previsão da produção de um corpusdocumental, estabelecendo mesmo uma nova economia escriturística,capaz de agir sobre o meio e transformá-lo (Certeau, 1994).

Na perspectiva de tornar a infância escolarizada podemos destacaros seguintes procedimentos: definição do currículo escolar, materiais emétodos de ensino, estabelecimento da faixa etária escolar6, indicaçãodas correções disciplinares, diferenciação quanto a organização das es-colas de meninos e de meninas, condições para as crianças pobres fre-qüentarem as aulas públicas e particulares, indicação dos tempos e es-

5. Trata-se da lei provincial n. 13, artigo 12, 1835 (Livro da Lei Mineira). A descen-tralização administrativa da instrução pública fez-se a partir do ato adicional àConstituição de 12 de agosto de 1834. Nele os conselhos gerais foram substituídospelas Assembléias Legislativas provinciais, às quais competia, entre outras, legis-lar sobre a instrução elementar (Dantas Júnior, 1937).

6. Observa-se uma variação, mesmo que pequena, na fixação da faixa etária.

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paços escolares e fixação das regras para o exercício da profissão do-cente. Sobre a criação do corpus documental, a legislação instituiu aprodução de relatos de presidentes da província, delegados literários einspetores, bem como previu a escrita de requerimentos, reclamações equeixas que poderiam ser encaminhados às autoridades, além de pro-mover a produção de instrumentos de verificação tais como censo doshabitantes livres, mapas da população, mapas de freqüência, listas depais omissos etc. Esse corpus documental produzido a partir da legisla-ção nos possibilita maiores condições de dar intelegibilidade ao campode conflitos e tensões presentes na lei, indicando para o fato de que ascondições de escolarização da infância se fizeram tensionadas por pro-blemas relativos ao próprio imaginário de sociedade civilizada em cons-tituição na época. Como parte desse contexto esteve uma sociedade quese pretendia civilizada, mas era escravocrata, que se pretendia branca,mas era mestiça, acrescidas a isso temos limitações de ordem material,tais como condições de trabalho da população livre, as condições decirculação e transporte e a existência de uma cultura política marcadapor relações clientelísticas.

Em relação à prescrição constitucional, o Brasil foi um dos primei-ros países, senão o primeiro, a estabelecer a gratuidade escolar em umaConstituição, mesmo que desde o século XVIII em diferentes Estados-nações já estivesse presente a intenção de propagar a instrução a todos ede criar órgãos elaboradores de políticas nacionais da instrução. Entre-tanto, o estabelecimento dos preceitos da gratuidade, laicidade e obriga-toriedade do ensino não se fizeram em bloco7. Para compreender a es-pecificidade brasileira, seriam necessários outros estudos, de qualquer

7. Na França tem-se a gratuidade em 1881 e obrigatoriedade e laicização em 1882(Petitat, 1994). Em Portugal, a obrigação da freqüência é da Carta Constitucional(1822) e a gratuidade está no Regulamento Geral da Instrução Pública de 1853(Ministério da Educação, 1986). No que diz respeito a estruturação de órgãos ad-ministradores da educação nacional (Ministério da Instrução), Lourenço Filho apre-senta os seguintes dados, entre 1800 e 1850: Suécia, Noruega, França, Grécia,Egito, Hungria; em 1857, na Turquia; Romênia, 1864; Japão, 1871; Nova Zelândia,1877; Bélgica e Bulgária, 1878; Portugal 1890 (Lourenço Filho, 1974, p. 22).

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maneira, se na maioria dos países foram instituídos órgãos administrati-vos centralizadores de uma política nacional de forma a propiciar o es-tabelecimento dos preceitos da instrução pública até mesmo antes dagratuidade escolar, o que ocorre no Brasil é o inverso. O Ministério daInstrução Pública, Correios e Telégrafos foi criado em 1890, e extintoem 1891, e somente em 1930 tivemos a criação do Ministério dos Ne-gócios da Educação e Saúde Pública.

Queremos enfatizar que a cultura política da administração e discus-são de uma política da difusão da instrução elementar no Brasil se fez deforma regionalizada e descentralizada do ponto de vista administrativo.A centralização restringiu-se ao preceito constitucional da gratuidade ede uma certa forma da não laicidade, dado que a religião católica erareligião oficial do Império. Em relação a esse último, salienta-se que asorientações de uma educação fundamentada nos preceitos cristãos esti-veram presentes no currículo escolar das crianças ao longo do Império,mesmo que na legislação provincial mineira de 1859, regulamento 44,artigo 24, afirmasse que os indivíduos não pertencentes à crença católicanão seriam obrigados a receber o ensino religioso. Entretanto ser católi-co apostólico romano foi uma das condições para ser professor.

A regulamentação da obrigatoriedade da freqüência escolar foi, por-tanto, função das legislações provinciais e mais estudos sobre tais legis-lações em outras províncias brasileiras nos possibilitariam ter um qua-dro mais amplo de suas variações ou aproximações. No caso de MinasGerais a obrigatoriedade foi instituída pela lei n. 13 de 1835 e os requi-sitos para o seu cumprimento alteraram pouco ao longo do Império,permanecendo sempre o requisito de as crianças serem livres.

Destaca-se ainda que a legislação somente passa a considerar a es-cola obrigatória também para as meninas em 1882 por meio da lei 2.892,regulamento n. 100. Ainda assim nos períodos anteriores, a freqüênciadas meninas era estimulada conforme consta nos relatórios e na regula-mentação das formas de freqüência (número de alunas necessário paraabrir uma cadeira pública de instrução do sexo feminino) e localizaçãodas aulas.

A freqüência a uma aula pública de instrução elementar (1º e 2ºgraus) poderia ser feita por crianças maiores de 5 e menores de 14 anos,

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mas a obrigatoriedade de os pais enviarem seus filhos à escola obedeciaaos quesitos distância, idade e gênero. Quanto à idade para os meninos,tem-se 8 aos 14 anos (1835); 8 aos 15 anos (1872) e 7 aos 12 anos(1879); e para as meninas, em 1882, a faixa etária é de 6 a 11 anos.Quanto à distância, a obrigatoriedade somente se referia aos meninosque residissem num raio de 1km da escola (1835) e a partir de 1883, umraio de 2km, e para as meninas, 1km.

Se a legislação prioritariamente normatizou as formas de instituiçãoda obrigatoriedade escolar e universalizou uma faixa etária que deveriaser beneficiada por ela, por sua vez, como veremos, os relatos e os ins-trumentos de verificação nos dão conta de uma tensão permanente entrea necessidade do cumprimento da lei por parte dos agentes do Estado eos sujeitos aos quais a lei se refere, a população (pais de alunos) e pro-fessores. Destaca-se inclusive que a ação desses sujeitos foi importantena definição de mudanças na própria legislação ao longo do século XIX,indicando para conflitos no cumprimento das normas.

Estratégias discursivas para o enfrentamento da lei

No segundo tipo de documentação analisado procurou-seproblematizar, no caso dos relatórios dos presidentes da província e dosdelegados literários, as estratégias discursivas adotadas para o cumpri-mento da lei e as justificativas de seu não-cumprimento e de que manei-ra a infância escolar é representada. E também nos ofícios e correspon-dências, observar de que maneira a população (famílias) se manifestouem relação ao cumprimento da obrigatoriedade em fazer seus filhos fre-qüentarem as aulas.

Ao longo do período investigado é possível observar alguns temasrecorrentes, algumas peculiaridades próprias da escrita dos relatos, bemcomo o tratamento essencialmente formal e burocrático de registro dosdados da instrução. De qualquer forma entendemos como Certeau que“o discurso normativo só anda se já houver um relato [...] Sua fixaçãoem um relato é o dado pressuposto para que produza ainda relato fazen-do-se acreditar” (Certeau, 1994, p. 241, grifos do original).

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Como dissemos, de uma maneira geral, os relatórios acompanhamas mudanças ocorridas na legislação, o objetivo de sua escrita é dar aver a execução das leis ou, na sua impossibilidade, produzir argumentosjustificadores. Evidentemente que a questão central se referiu ao cum-primento do dispositivo constitucional da gratuidade do ensino elemen-tar e do dispositivo da obrigatoriedade da freqüência escolar presentena lei provincial n. 13 de 1835. Observa-se que essas legislações sereferem especialmente às camadas pobres da população, cujos pais emgeral não poderiam pagar um mestre particular, incidindo sobre umacondição de inserção na sociedade.

Nos relatos estiveram presentes argumentos distintos para lidar coma perspectiva dual e contraditória da normatização da escola obrigató-ria. O apelo à difusão da instrução elementar foi parte de uma codificaçãofundamentada nos princípios igualitários e humanitários produzidos apartir de fins do século XVIII, enfatizando-se a associação entre instru-ção e civilização. O registro desse tipo de concepção é recorrente nosdiscursos dos vários relatórios, em geral se apresenta como uma estraté-gia para demarcar o compromisso das elites administrativas com o em-prego público ou com a indicação política do cargo que ocupavam eafirmar que são, antes de tudo, representantes do pensamento das socie-dades civilizadas. Como tantos outros, é o que afirma o presidente JoãoCrispino Soares em seu relatório de 1863: “O progresso, lei da humani-dade, não se pode realizar sem a moralização do povo”, ou aindaTheophilo Ottoni em 1882,

O ensino obrigatório é o alicerce da civilização, a pedra fundamental do

verdadeiro progresso, banir a ignorância, rejeitar o analfabeto como um le-

proso, procurar a criança nos esconderijos do lar doméstico e chamá-la à

escola, vencer a indiferença dos pais é sem dúvida a mais gloriosa legenda

do ensino [Falla, 1882].

Mas também tais discursos remetem aos princípios fundadores doEstado e da integridade dos indivíduos, como podemos observar no re-latório de Antônio da Costa Pinto, em 1837,

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Se por um lado a instrução é indispensável em uma sociedade bem regula-

da, para que o homem possa apreciar devidamente seus imprescritíveis direi-

tos e os deveres correlativos que tem de cumprir, por outro, não é menos

essencial, refletindo-se que sem ela, impossível é desenvolver-se a indústria

em todos os ramos de que se compõem a alimentar o amor ao trabalho, que,

entre outras coisas, mais eficazmente contribuirão para darem ao País dura-

doura tranqüilidade, riquezas, estabilidade em suas instituições, em suma, a

felicidade social [Falla, 1837].

O desenvolvimento da instrução tornou-se um elemento discursivofundamental para afirmar a soberania, a organização política e a condi-ção de liberdade pública. Assim afirmava Pedro de Alcântara CerqueiraLeite, em 1865,

Quando o povo por si ou seus comissários é chamado a decidir seus pró-

prios negócios, a zelar seus direitos, e cumprir religiosamente os deveres

severos do cidadão livre, é indispensável que possua alguns conhecimentos,

que saiba avaliar a importância desses direitos, e compreenda as vantagens

que pode encontrar na observância de seus deveres. Povo instruído e gover-

no livre são fatos que tem entre si a relação de causa e efeito. Desde que

existe instrução entre um povo, pouco tardará que ele goze também de liber-

dade política; se pelo contrário sua instrução desaparece, em breve com ela

desaparecerá também a liberdade [Relatório, 1865].

Assiste-se, pois, a um movimento permanente dos dois códigos, aênfase na necessidade de difusão da instrução como causa da civiliza-ção e por outro como garantia da legitimidade do Estado e integridadedos indivíduos.

Entretanto, diferentes problemas concorreram para a não-efetiva-ção da disseminação da instrução elementar, não necessariamente de-monstrando a ineficácia da norma, mas talvez pelo fato exatamente deatuar sobre a “exterioridade social”. No conjunto das questões apresen-tadas nos relatórios para o problema central do cumprimento dagratuidade e da obrigatoriedade do ensino destacaram-se problemas re-lativos às formas de administração das verbas provinciais, estrutura geo-

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gráfica e meios de comunicação da província (população dispersa, au-sência e precariedade de vias de transporte e comunicação), mas tam-bém questões relativas à cultura familiar e às condições materiais dapopulação. Enfim, foram muitos os indicadores produzidos nos relatospara a infreqüência escolar e para a precariedade do funcionamento dasaulas públicas de instrução elementar.

A escola gratuita estabeleceu-se a partir da vinculação entre criaçãode cadeiras de instrução pública e seu provimento por um(a) professor(a),sendo que ao longo do período imperial foram sendo definidas as condi-ções de seu funcionamento, tal como salas e/ou prédio, materiais esco-lares e livros. É registro recorrente nos relatórios a limitação material defuncionamento das aulas bem como a inadequada formação dos profes-sores, ou mesmo a ausência de professores aptos a prover as cadeiras.Como conseqüência, também a partir dos relatos, foi-se alterando asleis, instituindo-se fontes de donativos para as aulas pela criação dascaixas escolares, além de toda uma sofisticação na regulamentação dotrabalho docente que, entretanto, pouco alterou a rotina escolar ao lon-go do século XIX.

Em um dos últimos relatórios do império, o presidente Horta Barbo-sa afirmava em 1 de junho de 1888 que:

As condições da instrução pública infelizmente não tem melhorado de modo

sensível, apesar de todos os esforços empregados. A multiplicidade de cadei-

ras de instrução primária infelizmente não basta para que se consiga o dese-

jado efeito de todos os esforços empregados [Falla, 1888].

Como causas principais do estado lastimável da instrução públicaelementar o presidente indica as lacunas e imperfeições na organizaçãodas escolas normais, a ineficácia da inspeção escolar tendo em vista adisseminação da população e a não-remuneração desses funcionários.Assinala ainda a deficiência dos prédios, a falta de mobílias, livros eoutros objetos indispensáveis ao ensino. Outro grande problema que seapresentava para o cumprimento da lei esteve também nas representa-ções elaboradas em torno das relações entre pais (ou responsáveis) efilhos, além da constatação dos problemas materiais das famílias.

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A operação escriturística da administração da instrução pública nes-te período fez-se estabelecendo-se uma rígida demarcação entre um “nós”e um “eles”. Como representantes da sociedade civilizada, as elites afir-maram que um dos principais obstáculos para a efetivação da instruçãoera a ignorância da população e dos pais de família que não compreen-diam a importância de enviar os filhos à escola (Veiga, 2004). Para aselites administrativas era preciso ter paciência, pois o tempo é o melhorremédio. No relato do delegado literário Modesto Andrade, de 1873, háuma associação entre a infância e a sociedade brasileira,

Reconheçamos a triste realidade em que vivemos. Nós nascemos ontem e

assim como a infância é a fraqueza do presente e a esperança do futuro,

assim como ela não suporta os exercícios e os cometimentos de que só a

virilidade é capaz, assim também a infância das sociedades tem leis invariá-

veis, que não podem ser feridas, sem que elas sofram males incalculáveis

[Relatório, 1873].

Os conflitos provocados pela necessidade de cumprimento dos có-digos da instrução podem ser também problematizados nos ofícios ecorrespondências diversas elaborados pelas famílias e autoridades, pro-fessores e autoridades, ou mesmo entre as autoridades quando, por exem-plo, trocam informações entre si sobre a melhor forma de interpretar alei. Os relatos discutem problemas os mais diversos, sendo que no âm-bito das autoridades, o tema principal é o problema da infreqüência oufreqüência irregular das crianças às aulas, seguido de pedidos de mate-rial escolar para alunos pobres, relatos sobre a pobreza das famílias,problemas relativos aos professores “que não cumprem seus deveres” eainda a resistência dos pais em enviarem os filhos à escola. Por sua vez,na correspondência que os professores encaminham às autoridades, asqueixas incidem sobre faltas ou atrasos de pagamento, remoção paraoutras localidades sem justificativa, perseguições políticas que os pre-judicam, desavenças com pais de família, pedidos de materiais e livrosescolares, mas também fazem sugestões em relação a mudanças dosperíodos de exames e da organização do tempo escolar. No âmbito dasfamílias, há queixas em relação aos professores, a ausência de condi-

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ções de enviar seus filhos à escola e também problemas relativos à dis-tância e dificuldades de acesso à aula do mestre.

No conjunto das correspondências destacar-se-á aqui o problemada pobreza e do trabalho infantil nas diferentes formas de sua apresenta-ção. Em relação ao trabalho infantil, seja doméstico, seja particular éimportante salientar que a lei da obrigatoriedade escolar provocou ten-sões no mundo do trabalho e na organização do trabalho domiciliar8.

As autoridades ora reconhecem a precariedade material das famílias ea necessidade do trabalho dos filhos ou da sua ajuda em casa, ora apresen-tam um discurso moralista e preconceituoso em relação a essa prática.

Em documento de 19 de janeiro de 1839 do delegado literário Joa-quim Cicelis para o presidente da província o mesmo alega que a causa dainfrequência nas escolas “[...] provém da rebeldia dos pais e Educadoresem preferirem ao insignificante serviço que recebem de seus filhos a dar-lhes instrução [...]” (SP/C232). No caso, o delegado sugere penas maiseficazes para que os pais cumpram a lei e mandem os filhos para a escola.Em 13 de abril do mesmo ano, outro delegado, Carlos Pereira Moura,afirma que o motivo da infrequência era devido a “[...] carestia e falta devíveres, acrescendo a grande pobreza da população [...]” (SP/C233).

Noutra documentação, temos que a professora Raymunda NonatoFranco, tendo sido questionada pelo delegado a respeito da freqüênciairregular de seus alunos, encaminha correspondência diretamente aoinspetor geral da instrução pública em 18 de março de 1887. Nesse ofí-cio ela afirma que “...os pais não estão mandando os filhos para a escolaporque os meninos tem que ir para cidade vender leite [...]” (SP/IP 1/1/cx.58/p. 18). Diz ainda ter gastado seus vencimentos com compra depapel, tintas e penas e que estava sendo “perseguida” pelo delegado. Aprofessora anexa a seu ofício depoimentos de pais de alunosposicionando-se em sua defesa e abaixo-assinado dos pais a seu favor.

8. Engels (1820-1895) analisa na Inglaterra os incômodos da mesma lei para os capi-talistas ingleses e demonstra como do embate surgiram as leis regulamentadorasdo trabalho infantil (Engels, 1985). Também no Brasil, em 1891, ocorreu a mesmanormatização na intenção de delimitar as idades para a inserção no trabalho e regu-lamentar a jornada de trabalho.

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Em uma outra situação, num ofício de 28 de março de 1836, o dele-gado literário consulta o presidente da província a respeito de qual deci-são tomar em relação a uma mãe de família, Marta Ribeiro da Costa,parda, empregada em uma Fazenda de Contendas, que havia sido notifi-cada pelo Juiz de Paz por não encaminhar o filho à escola. Como resul-tado da consulta, foi expedido em 25 de maio de 1836 o seguinte ofíciopara o juiz expondo os motivos da mãe e a dificuldade de fazer com queela seja multada por descumprir a lei.

1.º Mora a 6 léguas distante do Arraial, sede da aula, tem a seu cargo, 2

filhas, sem outro meio de subsistência, além da lavoura, se emprega esta

pobre família composta de 04 indivíduos, sendo mais útil o filho, apesar da

tenra idade. 2.º Faltam todos os meios para manter aquele filho em qualquer

aplicação. 3.º Das razões alegadas, a suplicante pelo seu desvalimento não

acha no Arraial quem o admita em casa e zele por suas pueris [...] de que é

suscetível a natureza humana. Entregue o impúbere a descrição do tempo...

as paixões, muito mais depressa se entregaria a corrupção e imoralidade que

as lições ditadas pelo professor que de nada conhece fora da aula. 4º. A supli-

cante se desencarregou da escola para aquele filho. “por causa de um só filho

vem a perder todos” (não tem como pagar a multa)... São estas as tristes

circunstâncias da desgraçada [SP/IP 1/42/cx. 5/p. 60].

Ainda em relação ao trabalho infantil na correspondência de 15 dejulho de 1877 do inspetor Bernadino Coutinho ao inspetor geral Camiloda Cunha e Figueiredo em que pede livros escolares para os alunos po-bres registra-se:

V.Exª sabe perfeitamente que a classe pobre mais numerosa, cujos meni-

nos não sendo auxiliados em tempo, não podem adquirir instrução proveito-

sa, pela demanda ao trabalho a que são forçados prematuramente, por que

concorre além de muitas faltas por serem distraídos pelos pais, a necessidade

de deixarem a escola pouco adiantado [...] [SP 1/2/cx. 2/p. 35].

Associado ao trabalho, a situação de pobreza é, pois, também recor-rente. No ofício de 26 de janeiro de 1837 do delegado José Rodrigues

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Duarte ao presidente da província, ao abordar a lei constitucional degratuidade escolar para discutir a aplicabilidade da lei na sociedade, sepergunta: “De que vale ao pobre saber que tem a Escola para mandarseu filho, se ele não pode comprar aquilo de que o mesmo filho necessi-ta para desenvolver seu espírito?” (SP/PP 1/42/cx. 9/p. 3).

Também o delegado Antônio Antunez, em correspondência de 23 denovembro de 1883 ao presidente, registra a situação da freguesia de Ben-to Rodrigues: “o lugar é pobre e pequeno” e que com muita dificuldade seconsegue que os pais mandem os filhos a escola, “por isso não pode exi-gir deles dinheiro para utensílios de aula”. Em visita a uma aula do sexofeminino afirma que encontrou “umas cosendo por não terem livros eoutras assentadas no chão por não haver bancos” (SP/PP 1/42/cx. 27).

Na data de 14 de janeiro de 1834, em uma correspondência ao pre-sidente da província (SP/PP 2/4/cx. 1/p. 3), o professor Santos Augustode Queiroz diz que leciona em sua casa para mais ou menos oitentaalunos pelo método antigo porque a província não lhe oferece lugarideal e utensílios necessários para atender a todos os alunos, afirma ain-da que todos os dias vários deles são levados pelos pais por falta deespaço. Já em outro ofício de 25 de janeiro de 1979, o delegado literáriocomunica que “Todas as escolas desta comarca estão em péssimas cir-cunstâncias, por enquanto nem ao menos compêndios suficientes paraos alunos pobres lhes tem sido fornecidos” (SP/IP 1/1/cx. 9/p. 2). Oexercício da lei é revelador do campo de conflitos entre uma norma acumprir e as condições concretas de sua efetivação. O conteúdo dosrelatos remete à discussão da simbologia presente na legislação ao pres-crever a articulação das práticas sociais em torno do ideário da escola-rização e do seu tensionamento com a heterogeneidade das mesmas práticas.

Por sua vez as correspondências dos pais de alunos fizeram-se pormeio de ofícios às autoridades ou de abaixo-assinados. Entre os ofícioshá um, por exemplo, em que o pai justifica que irá tirar seu filho daescola porque o professor havia castigado o menino com 33 “palmatoa-das” em uma só manhã e por esse motivo comunica que irá ensinar seufilho em casa. Como conseqüência o delegado consulta o presidentesobre interpretação da lei que fala de castigos moderados (SP/PP 1/42/cx. 10/p. 39).

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Foi possível localizar vários abaixo-assinados em defesa da condu-ta de professores, como pedidos de nomeação, mas também reclamandodo seu comportamento. Uma questão importante a observar é que a re-gulamentação da obrigatoriedade escolar se apresenta como um deverdas famílias, entretanto ao longo do século XIX a prescrição foi aospoucos assimilada também como um direito. Isso pode ser identificadomediante as representações encaminhadas pelos habitantes de várias lo-calidades solicitando aberturas de cadeiras de instrução elementar oumesmo subvenção para que seus filhos freqüentem professores particu-lares. Entre outros registros pode-se destacar a correspondência de 26 deagosto de 1873 entre o inspetor Antonio Miz e o presidente da provínciaVenâncio Lisboa que apresenta um ofício anexo do delegado literárioSeverino Barbosa contendo um abaixo-assinado nos seguintes termos,

Os moradores da povoação de Santo Antônio de Salto Alto, Bahu, Enge-

nho e Dernebada, pertencentes a freguesia de Antonio Dias, termo de Ouro

Preto pedem uma subvenção para o professor particular de Salto, João Mari-

nho Bastos, porque os suplicantes são pobres lavradores que mal tem condi-

ções de sustentar a família e portanto não possuem condições de pagar a

mensalidade de mil reis por menino. Além disso a aula pública de primeiras

letras de Lavras Novas ainda que estivesse provida de professor não podia e

nem pode ser útil aos suplicantes porque além de estar distante mais ou me-

nos duas léguas, tem nesse espaço matas e um rio que nem sempre dá trânsi-

to [SP/PP ¼/cx. 16].

Anexo a outra correspondência de 23 de setembro de 1887, os paispedem “pela educação das meninas da freguesia”, alegam que a cadeira jáhavia sido criada e requerem verba necessária para concurso e provimen-to da cadeira. Ao final dizem contar com os sentimentos nobres e humani-tários do presidente em prol das meninas pobres (SP/PP ¼/cx. 39).

Segundo Certeau “o jogo escriturístico, produção de um sistema,espaço de formalização, tem como ‘sentido’ remeter à realidade de quese distinguiu em vista de mudá-la. Tem como alvo uma eficácia social.Atua sobre sua exterioridade” (Certeau, 1999, p. 226, grifos do origi-nal). Ou seja, a formalização das práticas da escrita, no caso leis e nor-

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mas, são possíveis pelo fato de se distinguirem das práticas sociais efeti-vas. Sobre esse procedimento atuam duas estratégias, a transformação dainformação recebida na forma de conservação da norma ou a apropriaçãoda norma e produção de instrumentos que permitam agir sobre o meio etransformá-lo. A escrita do abaixo-assinado dos pais de alunos permite-nos observar a dupla dimensão da apropriação da norma da obrigatorie-dade escolar, como conservação, mas também como transformação.

Entretanto, apesar da expressa intenção dos pais de reivindicar oumesmo intervir na aplicabilidade das leis, vários questionamentos se apre-sentam nas escritas de abaixo-assinados e depoimentos de pais de alunos.Dado o elevado índice de analfabetismo, não se tem pistas sobre as condi-ções de escrita desses documentos, principalmente dada a cultura políticade redes de clientelismo presentes no Brasil monárquico. Para isso, seriapreciso uma investigação ainda mais amplificada, principalmente porqueem várias correspondências há denúncias de perseguições políticas e de-savenças entre políticos locais e/ou professores e/ou pais de família.

Produção de dados sobre as crianças

Apresentaremos agora o terceiro tipo de documentação analisada eque se refere aos instrumentos de verificação. Sobre os instrumentosescriturísticos, Certeau afirma que “o instrumento assegura precisamentea passagem do discurso ao relato por intervenções que encarnam a leiem lhe conformando corpos, e lhe valem assim o crédito de ser relatadapelo próprio real” (Certeau, 1999, p. 242). Na perspectiva desse autoros instrumentos são os operadores da escritura, no caso específico deque iremos tratar, produção de dados quantitativos e qualitativos, essesse apresentam como a produção da realidade.

Na legislação imperial são exigidos vários tipos de instrumentosverificadores inclusive com modelos de preenchimentos tais como: re-lação de alunos matriculados, tabela de aulas particulares e públicasexistentes, relação de cadeiras de instrução pública e particular e res-pectivo professor e os mapas de freqüência. Além disso, é recorrentenos relatórios a reclamação da ausência de dados ou da presença dedados não confiáveis.

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Em relação aos mapas de freqüência temos que esse instrumentovisava essencialmente à confirmação do exercício do trabalho do pro-fessor público, ou melhor, a sua assiduidade e o número de alunos fre-qüentes à mesma cadeira. Isso ocorria para o cumprimento da lei queprevia para a existência da cadeira pública e o pagamento do professoruma freqüência mínima de alunos. Em grande parte dos mapas analisa-dos, observamos que não eram feitos mediante preenchimento em papelimpresso, mesmo que isso estivesse previsto desde o regulamento n. 3de 1835. São mapas confeccionados manualmente, exigindo inclusivehabilidade do professor. Para esses mapas os dados exigidos por lei são:o nome do menino, filiação, idade, falhas, estando ausente a exigênciado registro da cor do aluno. A condição jurídica, como filho, exposto ouórfão aparece na coluna filiação.

O modelo proposto em 1835 previa também a escrita de observa-ções e traz os seguintes exemplos: “falência justificada”, “falência semcausa” e “veio já adiantado em leitura” etc... Embora grande parte dosmapas apresente registros mínimos, em alguns deles as observaçõesextrapolam o indicado, como, por exemplo, alguns mapas de 1834 emque alguns professores registram além do grau de aproveitamento dosalunos, dados sobre a condição material das famílias (se pobre ou não) ecomo os meninos vestiam-se de forma que desse a ver a sua condição depobreza.

Em 1860 pelo regulamento 49 da lei 1.064, apresentou-se um outromodelo de mapa de alunos com diferenciações de registros, um campopara comportamento (“de boa conduta”, “gênio forte e barulhento”) eoutro para observação (“não tem talento, mas boa conduta”, “talentoso”).A partir desse período já havia alguns mapas em papel impresso, embo-ra a grande maioria dos professores continue confeccionando-os ma-nualmente. Uma questão a ser problematizada é o significado dessasobservações para a rotina familiar e a criança, que passa a ter parte desua identidade produzida por um outro, o Estado e o professor. De qual-quer maneira gostaria de ressaltar que os problemas mais enfatizadospelos delegados e presidentes em seus relatórios referiam-se à freqüên-cia e a infidelidade na confecção dos mapas.

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Em 1844, o presidente Francisco José d’Andréa registrava que:

Como pelas leis mineiras devem ser abolidas as escolas que não tiverem

ao menos 24 discípulos, são obrigados os chefes de família a mandarem seus

filhos às escolas; e tem os mestres gratificações além dos ordenados, segun-

do o número de discípulos que freqüentam: tudo se arranja muito bem. Os

pais matriculam os filhos, e não os mandam à escola; e os mestres enchem as

suas relações de nomes de indivíduos que existem sim, mas que nunca lhes

entram em casa, e põem-lhes os dias de freqüência que bem lhes parece.

Estes mapas vão às mãos dos delegados, que, em não sendo ativos e capazes

de surpreenderem uma ou outra escola para lhes compararem o número de

discípulos dos mapas com os que efetivamente encontrarem, tem de se guiar

por informações, quando outras razões não tenham, só por não perderem o

pobre do mestre de escola, que é pai de família, dão os mapas por exatos, o

governo manda pagar, e a lei fica iludida [Falla, 1844].

Os dados constantes nos mapas nos possibilitam várias análises, res-tringir-se-á neste texto à discussão relativa à condição jurídica de escra-vo e à ausência do dado cor. Como já dito, esse dado não é quesitopresente nos modelos de mapas de freqüência que circulam a partir dalei provincial de 1835. Entretanto, nos mapas localizados anteriormentea essa lei, relativos as décadas de 1920 e início de 1930, há o registro dacor (pardo, preto, negro, branco) e da condição jurídica de escravo (Veiga,2003). A presença desses dados nesse período e não no período pós1835 nos instigam múltiplos questionamentos.

Em primeiro lugar em relação aos dados sobre a freqüência de me-ninos escravos a aulas públicas, apesar da proibição constitucional, pode-se aventar com a hipótese de que talvez essa interdição não era de totalconhecimento dos mestres e em contrapartida pode ser referente a umatradição anterior de freqüência dos escravos à instrução9. Entretanto, éprovável que a proibição constitucional de freqüência de escravos às

9. É o que se pode observar na pesquisa em andamento “Processos e práticas educa-tivas na capitania de Minas Gerais (1750-1822)” (Fonseca, 2003).

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aulas públicas faça parte da estruturação da monarquia constitucionalna previsão e afirmação da produção do cidadão. Nesse caso à condiçãode escravo enquanto mercadoria se agregou um novo valor, o de não-cidadão. Ou seja, a sua interdição à escola esteve associada a uma novaorganização social que reconhecia os direitos da população à escola,desde que livre, enquanto uma nova postura de gestão do público.

Já os dados relativos à freqüência de meninos escravos a aulas nasdécadas de 1920 e 1930, destaca-se que se encontrou maior registro desua freqüência em mapas de aulas particulares que públicas, portanto ossenhores pagavam pelos estudos de seus escravos. Não obstante, naConstituição e em toda legislação posterior não há nenhuma menção deproibição de escravos freqüentarem mestres particulares. O que foi rei-terado permanentemente é a proibição de sua freqüência a aulas públi-cas de professores providos pelo Estado. Isso talvez nos possibilite en-tender a afirmação do vice-diretor da Instrução, Antonio José RibeiroBhering, em seu relatório de 22 de fevereiro de 1852:

Em todas as fazendas há mestres particulares da família. Os próprios es-

cravos têm seus mestres. Não é raro encontrar-se nas tabernas das estradas,

nas lojas de sapateiros e alfaiates 2, 3, 4 e mais meninos aprendendo a ler

[Relatório, 1852].

Excetuando essa menção de Bhering, no período posterior a 1835não foram localizados outros dados de freqüência de escravos. Isso tal-vez porque o controle e a exigência da elaboração dos mapas de fre-qüência foram acentuados para os professores públicos como condiçãopara o recebimento de seus salários. Inclusive, no caso dos mestres par-ticulares a maior queixa dos presidentes e delegados era a ausência denotícias sobre o funcionamento dessas aulas. Como não dependiam desseinstrumento para receber salário, a não ser que recebessem subvenção,desincumbiam-se dessa tarefa, o que pode ser observado nos mapas lo-calizados no período, sendo a maioria de professores públicos. Quere-mos afirmar com isso que haveria a possibilidade de que as criançasescravas tenham tido acesso à instrução elementar, desde que de formaparticular ou mesmo no chamado ensino doméstico, sendo que para essa

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modalidade não havia nenhuma prescrição normativa, na legislação édenominado ensino livre sem necessidade de inspeção.

Verificou-se o acesso de escravos à instrução também em outro tipode fonte, os atestados de batismo. O atestado era parte da documentaçãoexigida para ingresso nas escolas normais. A partir da década de 1970,foram localizados pedidos de pessoas com idades em torno de 12 e 13anos que eram filhos de escravos; infere-se, portanto, que sabiam ler eescrever antes mesmo da Lei do Ventre Livre, embora ainda não sejapossível conhecer como esse saber foi adquirido (Veiga, 2003).

Sobre o registro da cor, a ausência total desse dado a partir de 1835nos possibilita pensar numa dimensão oposta à interdição das criançasescravas às escolas públicas. Ou seja, na produção do imaginário deuma nação civilizada esteve a necessidade de inserção, via escolariza-ção, de todos na sociedade, independente das cores. Em uma análisemesmo que parcial sobre a legislação da instrução pública em outrasprovíncias, constata-se que no Rio de Janeiro houve a proibição de fre-qüência à escola pública do “preto africano”, no caso o não-brasileiro, eem São Pedro do Rio Grande do Sul há o registro expresso da proibiçãode freqüência de “pretos” (Primitivo, 1940).

Portanto excetuando essa província, é possível afirmar que no proces-so de institucionalização da instrução elementar no Brasil houve uma dis-tinção entre cor (qualidade) e condição jurídica (ser livre/ser escravo) naprevisão da gratuidade escolar e freqüência obrigatória. Retomando aquestão apresentada anteriormente, o projeto de escolarização ampla foium projeto de produção do cidadão, em que a interdição não esteve na cordas crianças, mas na condição de serem livres. Para ampliarmos essa dis-cussão penso ser necessário trazer a questão relativa ao grau de mestiçagemda população brasileira, o que não ocorreu em países como os EUA, ori-ginando escolas segregadas para brancos e negros.

No caso específico de Minas Gerais, os dados da população indi-cam para uma significativa mestiçagem (Reis, 1995), dessa maneira ainterdição da população negra e mestiça à instrução elementar se rever-teria na própria impossibilidade do estabelecimento da escola. Contu-do, se a expansão da escolarização, cujo objetivo esteve associado ànecessidade de desfazer-se da cor pela educação, pressupunha uma

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homogeneização cultural, essa deve ser refletida no quadro de uma po-pulação mestiça, ou seja, dos hábitos e costumes mestiços.

Embora a cor não esteja registrada nos mapas de freqüência, a partirde dois outros instrumentos de verificação e de seu cruzamento, quandode uma mesma localidade, identificou-se a presença de crianças de váriascores como possíveis freqüentadoras das aulas públicas. Trata-se dos mapasda população e das listas de crianças aptas a freqüentar a escola. É curiosoobservar que nos mapas populacionais se manteve o registro das cores naperspectiva de governamentalidade (Foucault, 1981) e do conhecimentoda população que se governa. Entretanto a estratégia não é a mesma parao ramo do serviço público da instrução, pois trata-se da educação de cri-anças, de futuros cidadãos e, por isso mesmo, independente de suas cores.

Para a criação das cadeiras de instrução elementar houve a orienta-ção de que os delegados ou juízes de paz deveriam comunicar ao presi-dente da província o censo dos habitantes livres. Em uma correspon-dência de 13 de fevereiro de 1840 temos a seguinte comunicação:

O presidente para poder considerar o que se pede o ofício do delegado em

relação a criação de escolas de 1º grau de primeiras letras em algum curato

do círculo de sua jurisdição, ordene que exija dos respectivos juízes de paz

para enviarem ao governo mapas dos habitantes livres até a distância de ¼ de

légua, a relação de meninos e meninas que de acordo com a lei tiverem na

idade escolar [SP/C 267].

Portanto, a partir do cruzamento entre mapas da população e daslistas de alunos, em idade de freqüentar a escola, de uma mesma locali-dade e no mesmo ano, constatou-se que inexistiu a interdição da cor dosalunos. A confecção desses instrumentos atendia ao disposto e exigidoem lei, os pais eram obrigados a enviar à escola os filhos que estavamem determinada faixa etária. A título de exemplo, ao confrontar o “Mapados habitantes livres de Santo Antônio da Casa Branca” de 1839 com a“Lista de meninos que há possibilidade de freqüentarem uma escolapública de instrução primária” de mesma localidade e ano, verificando-se ainda o nome dos pais e das crianças numa e noutra lista, tem-se osseguintes dados:

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Cor Número de criançasSituação no fogo

Filho Agregado

Crioula 4 2 2

Parda 55 53 2

Branca 63 61 2

Fonte: S.P Códice 233 (Veiga, 2003)

Por sua vez, as condições de freqüência das crianças registradas comoutras cores que não a branca estiveram muito associadas ao problemada pobreza, inclusive as próprias crianças brancas. Embora na análiseda documentação sobre a instituição pública em Minas Gerais aindanão tenha sido possível detectar registros declarados de preconceito ra-cial, há registros sutis desqualificadores de população escolar, associa-dos à condição material e à sua situação de marginalidade ante o imagi-nário de sociedade civilizada.

Representações da infância no conjuntoda operação escriturística

Em relação às representações de infância, observam-se algumasvariações ao longo do período. A documentação fabrica a infância rela-cionada à produção da identidade de aluno, mesmo que outras referên-cias se façam presentes, ou seja, as relações geracionais são fortementemarcadas por esse novo lugar social: a escola. Para melhor desenvolvi-mento dessa questão é importante demarcar as formas como tais rela-ções se estruturam, ou melhor, temos que as representações de uma in-fância escolar se fizeram a partir de múltiplos lugares, cujasdenominações estiveram definidas na dinâmica relacional adulto/crian-ça. De um lado teremos, pois, a variação do lugar do adulto: pai, repre-sentante do governo, professor; de outro a variação do lugar da infân-cia: filho, criança, aluno, menino/menina.

Essa variação fez-se a partir da ênfase a ser dada nessa relação; nes-se sentido entendemos que as formações sociais se estabeleceram his-

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toricamente pela existência de redes de dependência e interdependênciahumanas, individuais e/ou grupos e ou/ societárias. Essas redes desen-volveram-se a partir da interdependência de funções (por exemplo: tra-balho, propriedade, instintos, afetos) que não são exteriores aos indiví-duos e nem uma soma de vontades, mas de uma dependência funcional.Compreende-se de acordo com Elias (1994) que a condição da existên-cia humana é relacional, o que ele conceitua como configuração.

Na legislação, a ênfase maior foi dada à produção da infância comoaluno, estabelecendo o seu lugar na burocracia do Estado ao normatizara matrícula, os mapas de freqüência, exames, meios disciplinares, e tam-bém o lugar do professor da instrução elementar. Com relação a esseúltimo é interessante observar no regulamento 44 de 1859 uma diferen-ciação presente nos artigos 48 e 49, qual seja, indivíduos que lecionammatérias primárias são denominados professores e os que as freqüentamsão denominados alunos ou escolares; aqueles que lecionam no secun-dário são denominados preceptores ou instituidores da mocidade e oque freqüentam tais aulas, estudantes ou aulistas, o legislador adverteque ambos são educandos. Essa questão parece ter sido fruto de algu-mas discussões; em correspondência do presidente da província comum professor de instrução elementar da Vila do Curvelo, datada de 24de fevereiro de 1840, aquele afirma o seguinte:

O governo não concorda com o professor quando o mesmo sugere a pala-

vra Estudante para alunos das escolas de instrução primária e que no caso

contrário oferece poucos inconvenientes. São raros os alunos que freqüen-

tam a escola na idade de 16 anos, salvo aqueles que evitam o recrutamento, o

que não pode convir [SP 267, 1839-1840].

Destaca-se também na produção da criança como aluno, a identifi-cação do aluno pobre, em que tanto na legislação quanto nos relatos apresença dessa modalidade de infância é recorrente. Sua institucionali-zação fez-se tendo em vista a precariedade material das famílias emenviar e/ou manter seus filhos na escola. Essa condição deu visibilidadeà imbricação entre Estado-protetor e Estado-providência, no objetivode libertar a sociedade das necessidades de risco, num contexto em que

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se aposta menos em caridade religiosa e mais nas parcerias entrefilantropia individual e intervenção da assistência do Estado. PierreRosanvallon chama-nos atenção para a noção de necessidade como algodifuso e de difícil determinação, afirmando que o “sistema de necessi-dades se confunde com a dinâmica social” (Rosanvallon, 1997, p. 28).Por meio do apelo exercido pelas elites quanto às relações entre escola,civilização e progresso, não temos dúvida de que atender à condição depobreza dos alunos é parte de uma nova dinâmica social. Várias foramas iniciativas para contornar o problema, como a criação de caixas deassistência e fornecimento pelo Estado de materiais e livros para alunospobres, sem contudo demonstrar real eficácia.

Já a denominação das crianças como filhos foram registradas nosrelatórios e na legislação em referência aos “pais” que não mandam osseus filhos à “escola”, e a denominação meninos/meninas fez-se na de-finição da faixa etária cuja freqüência escolar deveria ser obrigatória etambém na organização das salas de aulas por gênero. É muito curiosoque apesar da legislação até 1882 não prever a co-educação, indicandosempre a organização das cadeiras da instrução elementar por gênerodos alunos e dos professores, provavelmente pela própria movimenta-ção da população, aos poucos se foram fazendo exceções. O regula-mento 41 (lei 791) de 1857 permite que meninos com menos de 7 anosfreqüentem as cadeiras do sexo feminino, em 1860 (regulamento 49, lei1064), registra que nas casas onde há educação de meninas não seriamadmitidos alunos ou moradores do sexo masculino (exceto o marido daprofessora) com mais de 10 anos. No regulamento 62 (lei 1871), 1872,afirma-se que nas cadeiras do sexo feminino podem ser admitidos me-ninos até 9 anos, principalmente se forem parentes das meninas e tam-bém que, onde não houver escola para o sexo feminino, as meninasseriam admitidas nas de sexo masculino, desde que o professor fossecasado, sendo que nesse caso a esposa do professor ministraria os traba-lhos de agulha. Em 1883 registra-se a possibilidade da co-educação,desde que nessas cadeiras meninos ou meninas não ultrapassassem aidade de 12 anos. Observa-se que nessas denominações a infância éindividualizada sendo sua identidade produzida a partir da faixa etária edo gênero.

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A denominação criança somente foi encontrada com maior ênfasenos relatórios. O seu registro fez-se de forma bastante peculiar, seja naassociação com os atributos necessários a um professor da instruçãoelementar ou vinculado aos saberes da pedagogia, cuja referência se fezpresente nos relatos a partir da década de 1970.

Portanto, nesse período em diante a expressão criança será mais re-gistrada sempre na perspectiva de “tábula rasa” e em relação a umaprática docente ineficiente. A referência a elas fez-se muito na discus-são da necessidade de uma escola normal na província. Na concepçãodos gestores do ensino, tal instituição seria a propagadora de um “méto-do apropriado para incutir no espírito tenro das crianças os são princí-pios de educação e instrução elementar”, como expresso em 1865 nafala dos membros de uma comissão indicada para discutir os problemasde educação na província mineira (Relatório, 1865).

No relatório do inspetor Antonio de Assis Martins, 1873, encontra-se pela primeira vez registrada a idéia de que o magistério é um trabalhopara mulheres, pela garantia de moralidade, de docilidade e paciênciapara com crianças. Também em 1875, afirma-se que a província precisade professores honrosos:

Os vícios que a criança adquire na escola, provenientes de sua má direção,

tarde ou nunca se consegue corrigir, por que para isso é necessária uma ins-

trução superior, que nem a todos é dado adquirir [Relatório, 1875].

Em 1879, Manoel Rebello Horta ao defender o magistério comofunção feminina argumenta que “a [...] experiência tem provado quesão elas mais próprias para educar e dirigir os meninos em idade tenra,exercendo sobre eles influência maternal pela vocação ao ensino e sua-vidade da sua disciplina [...]” (Falla, 1879). Em muitos outros relatóriosa associação professora/criança fez-se freqüente.

Gostaria de enfatizar com isso que a progressiva feminização domagistério10 foi fundamental para afirmar a criança no aluno. Mas des-

10. Isso pode ser observado a partir do registro de professores nos relatórios dos presiden-tes de província onde lentamente cresce o número de mulheres nomeadas e efetivadas.

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taca-se também que é a criança em negativo, associada ao bárbaro, aoprimitivo e ao perverso, mesmo porque há um destaque muito grandepara a especificidade do ofício de professora: tarefa muito difícil, árdua,exige abnegação e ainda, não com pouca freqüência, os relatos afirmamser este um trabalho que quase ninguém quer. Essas questões precisari-am ser mais bem aprofundadas no sentido de discutir no processo deescolarização da infância os imaginários presentes na produção de umsujeito-criança em relação aos adultos.

Por fim temos que as representações da infância estiveram presen-tes nos relatos não somente em associação a uma discussão da pedago-gia, mas a partir dos anos de 1980, com o higienismo. Nesse períodoforam registradas discussões sobre o espaço escolar, a necessidade demateriais adequados à curiosidade infantil, à inteligência e aos sentidosdas crianças, bem como a necessidade de rever a organização do tempoescolar, introduzindo-se o recreio.

Nos relatos dessa década em diante, são por vezes citados autoresem circulação na época, como Pestalozzi e Fröebel na produção de ar-gumentos sobre a necessidade de organização de jardins de infância naprovíncia, concebidos como instituições preventivas contra a inércia dospais. Lentamente a criança na condição de aluno conquistaria seu espa-ço de vivência da infância civilizada na sociedade adulta como repre-sentante do futuro da humanidade.

Considerações finais

O projeto escriturístico da monarquia constitucional delineou e ins-tituiu formas distintas das pessoas estabelecerem-se na sociedade, comoescravas ou como cidadãs. Essa diferenciação entre a população, fixadapor lei, pôs à prova o imaginário de nação que se queria civilizada, masera escravocrata.

Por sua vez a produção da infância civilizada mediante a institucio-nalização da obrigatoriedade escolar pretendeu ser um esforço de arti-culação de práticas heterogêneas em função dos princípios humanitári-os de produção homogênea dos cidadãos de direitos e deveres, e dos

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princípios individualizadores da escolarização de crianças. Criançaspobres, negras, mestiças, meninos, meninas, bem ou mal comportadas,talentosas ou não talentosas passaram pelos bancos escolares, em quepese toda a precariedade. Elas povoaram a aula de um mestre (adultosnem sempre em conformidade com a civilização exigida), ou mesmoabandonaram-na e foram “vender leite na cidade”. As evidentes contra-dições presentes na implantação da escola ao longo do século XIX nosindicam que a operação escriturística da administração pública tambémpôs à prova o imaginário de uma educação escolar como moralizadorado povo e como fator de coesão social.

Podemos afirmar que na escritura da nova nação, o que esteve emevidência não foi apenas a ineficácia das elites em fazer cumprir as leispor elas próprias elaboradas. Bem como não foi a ineficácia das famí-lias pobres em assimilá-las e introduzi-las em suas rotinas. O projetoescriturístico foi lacunar por opor-se à população, por desqualificar seushábitos, valores e tradições e por partir de uma escritura anterior quediferenciava a condição jurídica de inserção na sociedade. Nesse senti-do há que se indagar sobre os pressupostos da escritura: querer moldar apopulação a partir do escrito e transformar a sociedade em um texto deconteúdo único.

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RELATÓRIO apresentado ao Exmo. atual presidente d’esta província o senhor doutorLuiz Antônio Barboza, pelo Exmo. sr. dr. José Ricardo de Sá Rego (1852). OuroPreto.

RELATÓRIO com que o Exmo. sr. senador Joaquim Floriano de Godoy no dia 15de Janeiro de 1873 passou a administração da Província de Minas Gerais ao 2.vice-presidente Exmo. sr. dr. Francisco Leste da Costa Belém por ocasião deretirar-se para tomar assento na Câmara Vitalícia (1873). Ouro Preto.

RELATÓRIO que à Assembléia Legislativa provincial de Minas Gerais apresentouna sessão ordinária de 1873, o presidente da Província Venâncio José de Olivei-ra Lisboa (1873). Ouro Preto: Typ. de J. F. de Paula Castro.

RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Geraispor ocasião de sua instalação em 9 de setembro de 1875, pelo Illmo. Exmo. sr.dr. Pedro Vicente de Azevedo, presidente da província (1875). Ouro Preto: Typ.de J. F. de Paula Castro.

RELATÓRIO ao Illmo. e Exmo. sr. dr. Francisco Leite da Costa Belem, 2. vice-presidente da província de Minas Gerais, apresentou o Exmo. sr. desembargadorJoão Antônio de Araújo Freitas Henriques, a 6 de março de 1875 (1875). OuroPreto: Typ. de J. F. de Paula Castro.

RELATÓRIO com que o Exmo. cônego Joaquim José de Sant’Anna, passou a ad-ministração da província ao Exmo. sr. dr. Manoel José Gomes Rebello Horta,no dia 15 de janeiro de 1879 (1879). Ouro Preto: Typ. da Atualidade.

RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais,na abertura da 2. sessão da 22. Legislatura, a 15 de outubro de 1879, pelo Illmo.e Exmo. sr. dr. Manoel José Gomes Rebello Horta (1879). Ouro Preto: Typ. daAtualidade.

Legislações

Livro da Lei Mineira (1846). Lei 13, 1835. Ouro Preto: Typografia da Silva.

. (1857). Regulamento 41 à Lei 791, 1857. Ouro Preto: Secretariada Presidência, Typografia Provincial.

. (1859). Regulamento 44 à Lei 960, 1859. Ouro Preto: Palácioda Presidência, Typografia Provincial.

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a produção da infância nas operações escriturísticas da administração... 107

. (1860). Lei 1064, 1860. Ouro Preto, Secretaria da Presidência:Typografia Provincial.

. (1860). Regulamento 62 à Lei 1834, 1872. Ouro Preto, Palácioda Presidência: Typografia de J. F. de Paula Castro.

, (1883). Regulamento 100 à Lei 2892. Ouro Preto: Typografiado Liberal Mineiro, 1883.

Recebido: 6 de jul. de 2004Aprovado: 12 de nov. de 2004

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Combates pelo ofício emuma escola moralizada e cívica

A experiência do professor Manoel JoséPereira Frazão na Corte imperial (1870-1880)

Alessandra Frota Martinez de Schueler

O presente trabalho visa a apresentar a experiência profissional e as práticas pedagógi-cas de um professor público primário na Corte imperial, entre os anos de 1860 e 1890.Discute-se o sistema disciplinar de moral e cívica proposto e utilizado por Manoel Frazãonas escolas públicas primárias da cidade em que exerceu o ofício docente. A propostadesse professor demonstrava o potencial criativo dos agentes do ensino, além da (re)elaboração e a produção de novas disciplinas e metodologias de ensino, e, finalmente, aexistência de múltiplas idéias e experiências pedagógicas, as quais referiam a coexistên-cia de práticas e de culturas escolares heterogêneas e plurais nos espaços distintos dacidade.CULTURA ESCOLAR; HISTÓRIA DE PROFESSORES; HISTÓRIA DE DISCIPLINAS;RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA.

This research aims to present the professional experience and the pedagogical practicesof a public primary school teacher in the Imperial Court, between the years of 1860 –1890. The moral and civic system, proposed and used by Manoel Jose Pereira Frazão inthe city’s public primary schools in which he exerted his teaching profession, is discussed.The proposal of this teacher demonstrated the creative potential of the teaching agents,apart from the (re)elaboration and the development of new disciplines, and methodologies,and, finally, the existence of multiple ideas and pedagogical experiences, which concernedthe coexistence of practices and of heterogeneous and plural school cultures in the distinctareas of the city.SCHOOL CULTURE; HISTORY OF TEACHERS; HISTORY OF DISCIPLINES; RIODE JANEIRO IN THE 1800’S.

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No início da década de 1870, alguns mestres de instrução primáriada Corte reuniram-se para escrever um manifesto (Instrução Pública,1871) endereçado ao imperador e ao ministro do Império, por intermé-dio do seu relator, o destacado professor da escola pública de meninosda freguesia da Glória, Manoel José Pereira Frazão.

Manoel José Pereira Frazão1 nasceu em 13 de julho de 1836, emItaipu, Niterói, onde foi batizado, registrado como filho legítimo dePoluceno Antonio Pereira e Maria Angela de Gusmão. A família de seupadrinho, Manoel José Fernandes Pinheiro, seria, nos anos de 1870,proprietária do famoso Colégio Pinheiro, estabelecimento de instruçãoprimária e secundária da freguesia de Santana, no qual Frazão começoua lecionar, ao que parece, pelos idos de 1850. No certificado de batismo,apresentado em 1863 quando da sua nomeação (então com 27 anos deidade) como professor público da escola de meninos da freguesia doSacramento, no centro da cidade do Rio de Janeiro, não havia, infeliz-mente, nenhuma menção à cor, isto é, à possível origem étnica de Frazão2.

Além da inserção de Manoel Frazão no magistério público, cujosindícios podem ser encontrados nos arquivos e códices sobre a instru-ção pública, infelizmente, não pude saber muito sobre a sua vida, suasorigens, suas experiências pessoais e suas relações sociais naquela so-ciedade, para além da sua atuação professor primário em colégios parti-culares e nas escolas públicas. No entanto, seguindo os pressupostos deAntonio Nóvoa, é possível reconstruir as histórias de vida de professo-res, e mesmo de grupos, articulando-se suas características pessoais àssuas vivências profissionais, sempre fortemente vinculadas, a partir dacompilação das informações que foram produzidas sobre eles (Nóvoa,1992, p. 114).

Assim, segundo dados encontrados nos dicionários biobibliográficos,sabe-se que Frazão cursou as primeiras letras no Seminário de São José –instituição que preparava meninos e jovens, inclusive das camadas po-

1. Sobre a trajetória do mestre, ver no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,documentação manuscrita reunida em Códice: 15-3-1. Conferências Pedagógicas.1875.

2. Códice 10.4.8. Nomeação de professores públicos. Fl. 213. Certificado de Batismode Manoel José Pereira Frazão, apresentado em 1863.

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pulares, para o sacerdócio –, na cidade do Rio de Janeiro, com inten-ção de se destinar aos serviços eclesiásticos. Porém, faltando apenasdois anos para sua ordenação, Frazão resolveu tomar um novo rumo, ematriculou-se na escola militar (transformada em politécnica em 1874),onde com auxílio dos soldos militares estudou matemática, ciênciasnaturais e filosofia racional e moral. Essa disciplina, juntamente com aformação religiosa, decerto foi importante na formação de Frazão, pois,talvez, tenha sido por essa influência que o professor construiu o siste-ma de ensino para suas escolas públicas primárias, ao qual ele mesmodenominava sistema de moral e civismo3.

Em 1863, quando então iniciou a carreira docente no magistériopúblico da cidade, Manoel Frazão publicou seus primeiros artigos decrítica à política e às condições salariais e materiais das escolas de ins-trução primária da cidade4. Em 1865, transferiu-se para a Rua do Catete,22c, na freguesia da Glória, onde passou a lecionar e residir na casa deescola, nela permanecendo até 1873 quando, já casado com uma colegade profissão, a professora pública primária d. Rosalina Frazão, se mu-dou para a escola de meninos da freguesia da Lagoa, na qual lecionouaté se aposentar no serviço público com 32 anos de magistério, em 1895,já em tempos de república.

Nessa década de 1870, Manoel Frazão ganhou destaque entre osprofessores públicos primários por sua atuação combativa em defesados interesses profissionais da docência, por meio de escritos na im-prensa e palestras nas conferências pedagógicas, e também por suastentativas de organizar a classe em associação profissional, o idealizadoInstituto Profissional dos Professores. Sobretudo, e principalmente emfunção do Manifesto dos Professores Públicos de 1871, o Ministério doImpério estava então de “olhos bem abertos” sobre o professor Frazão.

3. O bibliógrafo Sacramento Blake informa que Manoel Frazão escreveu e publicoucompêndios de aritmética e geografia, tais como: Aritmética do professor Frazão,Rio de Janeiro, 1871 e Noções de geografia do Brasil para uso da mocidade bra-sileira, Rio de Janeiro, 1883, 198 p.

4. Cartas do professor da roça: artigos relativos à instrução pública na Corte.Publicadas em O Constitucional, março e abril de 1863.

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No manifesto, assinado por Manoel Frazão (relator), Antonio Moreirae Candido Matheus de Faria Pardal e enviado aos poderes públicos em28 de julho de 1871, os professores felicitavam a nova época de refor-mas sociais que parecia “despontar no horizonte da pátria”, uma era naqual identificavam a “prosperidade” e a “justiça”. Essa, segundo eles,manifestava-se na grande novidade do momento que consistia no reco-nhecimento dos direitos de uma grande parte da “humanidade oprimi-da”, os escravos, indicando a euforia causada pelas discussões da cha-mada Lei do Ventre Livre, correntes na Câmara, no Senado e na imprensa,desde abril de 1871. As referências aos escravos e a aos projetos deabolição do ventre das mulheres cativas serviam para a estratégia utili-zada pelos professores no sentido de efetuar uma comparação entre aescravidão e o seu próprio lugar social, isto é, entre a condição socialdos escravos e a dos professores primários, ambos “humilhados” e “lu-dibriados” pelos poderes públicos. Na análise que então realizavam, ogoverno lhes parecia um grande feitor que, por meio de seus inspetores,exercia sobre eles uma vigília constante. Logo eles, os professores, querepresentavam a classe “talvez a mais importante dos funcionários pú-blicos”.

As críticas às políticas educacionais colocadas em pauta pelo Mi-nistério do Império no crescente processo de regulamentação, controlee centralização da instrução pública na Corte, desde meados do séculoXIX, é evidente no Manifesto de 1871. Ao se dirigirem ao imperador eao ministro do Império, em defesa do ensino público, invocando o mo-delo das nações civilizadas, os professores públicos da Corte possuíamum objetivo claro: o de afirmar a essencialidade de sua profissão e desua função para a reconstrução da nação brasileira. Desse modo, busca-vam, talvez pela primeira vez, se organizarem enquanto categoria pro-fissional, definindo uma posição naquela sociedade:

é só ao professor que compete preparar a nação futura fazendo-a beber um

leite mais puro e mais digno das idéias liberais do século. No Brasil, portan-

to, o professor é tudo; e é só por força do absurdo que nada vale perante uma

sociedade constituída como nós somos! [Instrução Pública, 1871].

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Mediante seu Manifesto, Frazão, Moreira e Pardal, postulando emnome dos colegas, demonstravam possuir opiniões próprias a respeitoda instrução pública e de sua função social. Revelavam conhecer a si-tuação do ensino em outros países e as “idéias liberais do século”, adespeito das repetidas depreciações do governo que os chamavam cons-tantemente de ignorantes. Apresentavam aos dirigentes do Estado, emcontrapartida, algumas críticas, reivindicações, notadamente de melhoriassalariais e materiais para as escolas primárias da cidade, além de suges-tões as quais apontavam para idéias e pensamentos nem sempre coinci-dentes com os dos seus superiores, revelando que o embate em tornodas questões educacionais era muito mais dinâmico e contraditório doque se poderia prever.

Mesmo antes do envio do documento ao imperador e ao ministro, aInspetoria de Instrução Primária e Secundária da Corte tinha conheci-mento das reivindicações dos professores que reclamavam, pessoalmenteou mediante os delegados de distrito, da situação de penúria e misériaem que se encontravam, devido aos baixos salários e aos descontos dosaluguéis das casas escolares5. Quando o manifesto chegou às mãos deSua Majestade, o rebuliço na cúpula da Inspetoria foi geral, manifestono troca-troca de ofícios e cartas em caráter reservado entre o inspetorgeral e o ministro do Império.

Em um desses documentos, o conservador José Bento da CunhaFigueiredo prometia ao ministro João Alfredo que se empenhara emobter informações sobre os “procedimentos a que podem estar sujeitos

5. Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE4 14. Ofício Reservado de José Bonifáciode Azambuja Neves ao Ministro João Alfredo Correia de Oliveira, em 17 de julhode 1871. O amanuense da Inspetoria alertava para o “clamor geral dos professorescontra os vencimentos”, mal retribuídos e “em dolorosas circunstâncias de nãopoderem acudir com as primeiras necessidades da vida”. Informava ainda que osprofessores urbanos percebiam 1:200$000 anuais e os suburbanos 1:000$000, comos descontos de aluguéis das casas os valores caíam, respectivamente, para 950$000e 820$000. Note-se que os vencimentos dos professores valiam menos do que umescravo, estimado em 1870 em 1:000$000, ainda que se considere o fato de queessa “mercadoria” estivesse caríssima devido ao fim do tráfico transatlântico, nãoé possível esquecer que esses salários se destinavam à sobrevivência anual dosprofessores e suas famílias.

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os professores Frazão, Pardal e Moreira, pelo Manifesto publicado noJornal do Commércio, no dia 30 do mês de julho” [sic]. Então, citandoo Regulamento de 1854, informava que esses professores poderiam sersuspensos do exercício, com perda dos vencimentos, por até três meses.Mas, havia um porém, um empecilho para a aplicação imediata de qual-quer sanção diretamente pelo ministro do Império: o julgamento cabiaao Conselho Diretor de Instrução Pública, pois a Inspetoria Geral e oMinistério do Império constituíam-se órgãos executivos, apenas exer-cendo funções judiciárias em grau de recurso das decisões daquele con-selho. Em razão desse impedimento legal, o Inspetor Geral sugeria queo Ministério do Império fizesse apenas uma repreensão, por escrito, aosinsolentes professores – que, afinal, foram protegidos pelas própriasbrechas existentes nas leis reguladoras de sua conduta profissional6.

Sem dúvida, embora não tenha esbarrado nos arquivos com nenhumdocumento oficial dirigido a Manoel Frazão em caráter de repreensão,não é difícil imaginar que a publicação do Manifesto de 1871 tenha lhetornado – e também a seus colegas – ainda mais conhecido das autorida-des da Inspetoria de Instrução. Digo mais conhecido não apenas porquedesde 1863 o professor tinha o hábito de fazer publicar artigos de críti-cas à política de instrução na cidade, mas principalmente devido aosseus requerimentos à Inspetoria para autorizar a aplicação, em suas es-colas de meninos, de um sistema de ensino que inventou, o sistema demoral e cívica, o qual começou a aplicar na escola pública da Glória, em1867, com o aval do governo imperial. Anos depois, em 1873, ManoelFrazão recebia a congratulação e reconhecimento formal da Inspetoriade Instrução “por ter a escola mais disciplinada da cidade do Rio deJaneiro”. Um aparente paradoxo, para quem era acusado de insolênciapela “falta gravíssima” de reivindicar melhores salários e condições detrabalho pelos jornais7.

6. Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE4 14. Ofício Reservado de José Bento daCunha Figueiredo ao Ministro João Alfredo. 04 de agosto de 1871.

7. Na verdade, se o governo tivesse de punir todos os professores que reclamavamdos vencimentos por meio de ofícios escritos e endereçados ao ministro, aos jor-nais e outras autoridades, haveria muitas aulas suspensas. Em janeiro de 1871,

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Mas, em que consistia esse sistema de moral e cívica proposto eutilizado por Manoel Frazão? Em dezembro de 1875, o professor apre-sentou uma Memória sobre a disciplina escolar, ao Conselho de Instru-ção Pública da Corte, por ocasião da terceira Conferência Pedagógica8,na qual explicava com detalhes as idéias que o inspiraram para repensaras metodologias de ensino em suas escolas, e especificamente, as técni-cas disciplinares utilizadas para que os meninos mantivessem a boa or-dem nas atividades escolares, ao mesmo tempo em que adquiriam deter-minados saberes e capacidades, as quais constituíam, para Frazão, osfins e os objetivos da escola primária.

Ao narrar a trajetória da implementação de seu sistema disciplinar,Frazão revelava que esse fora concebido em 1861, mas, naquela época,em função das “agitações” no governo liberal e da guerra contra oParaguai, não encontrou meios de propor às autoridades do ensino naCorte que o autorizassem a experimentar a inovação, quando tomouposse na freguesia do Sacramento, em 1863. No entanto, confessavaque, mesmo sem autorização oficial, já ensaiava os seus métodos disci-plinares na escola pública de meninos da freguesia da Glória.

A região da Glória abrangia o Catete, a Glória até a atual enseada doFlamengo e era uma região marcada pela presença de famílias abasta-das, proprietários de chácaras e casas de luxo, hotéis de alta categoria,manufaturas e comércio de produtos finos. Tal composição social podeapontar para o fato de que parte dos meninos que se matricularam na

José Azurara remeteu ofício ao ministro propondo aumento salarial, igualdade desalários entre professores urbanos e suburbanos e gratuidade do aluguel da casa deescola, como dizia ocorrer na Província do Rio de Janeiro. Códice 11.3.27. Ofíciode José Azurara. 11 de janeiro de 1871. No dia seguinte, Domitilla de Carvalho,professora primária de Paquetá, solicitava aumento geral de vencimentos. E, ain-da: Códice 11.4.13. Reclamação de Januário dos Santos Sabino, em 24 de janeirode 1873. Sem falar nos artigos veiculados pela imprensa pedagógica, que emergiuna cidade, como A Instrução Pública. 1872-1889; A Verdadeira Instrução Pública.1872 (dirigida por Manoel Frazão); A Escola.1877-1878.; o Ensino. 1878 e o En-sino Primário. 1884-1889.

8. AGCRJ. Códice 15.3.11. Memória sobre a disciplina escolar, apresentada ao Con-selho de Instrução Pública da Corte, na 1. Sessão da 3. Conferência Pedagógica,em 21 de dezembro de 1875. Manuscrito

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escola de Manoel Frazão pertenciam aos setores economicamente maisfavorecidos da população urbana. Entretanto, não se pode esquecer quea freguesia da Glória, para além de sua população privilegiada, era asegunda colocada em número de habitações coletivas e moradias popu-lares: 107 cortiços, com 2.376 moradores, o que pode indicar a presençade uma clientela cultural e socialmente heteregônea entre o público es-colar da Rua do Catete.

Embora não tenha sido possível saber quem eram os meninos quefreqüentaram a escola pública de Frazão, na exposição que o professorfez sobre o seu sistema disciplinar, chama atenção à originalidade desuas idéias pedagógicas, suas concepções sobre as funções sociais daescola e sobre os processos de ensino e aprendizagem, destacando-seuma visão das crianças – tornadas alunos – como sujeitos da ação edu-cativa, com deveres e também com direitos no interior das escolas e nasociedade em que viviam.

Em primeiro lugar, comentando as determinações do Regulamentoda Instrução Primária de 1854, o professor Frazão condenava os meiosdisciplinares aplicados por um modelo pedagógico que oscilava entreas punições e as recompensas, e impunha o silêncio como ideal de boaconduta do aluno e do bom andamento do ensino. Criticando o silêncio,o professor ressaltava que a escola primária deveria se transformar, so-bretudo, em um lugar de socialização da criança e de educação para acidadania:

[...] Educar é preparar a criança para a sociedade, é dirigir, é conduzir o ente

nacional do estado bruto de natura ou de ignorância, de fazê-lo cidadão útil,

capaz de preencher as funções sociais com que lhe competem [...] Tem-se

tornado geral no país a convicção de que o descabalo moral da sociedade

brasileira é devido ao erro dos governos, que tem cuidado muito em fazer

bacharéis, descuidando completamente do dever de formar cidadãos.

Com a defesa de que a educação, a preparação da criança para avida em sociedade, deveria consistir em formar cidadãos úteis e cientesde suas funções sociais, o professor criticava as perspectivas que com-preendiam que a tarefa da escola primária se resumiria a instruir, a dotar

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as crianças de saberes e conhecimentos elementares que lhes abrissemcaminho ao secundário e ao bacharelismo. Ao contrário, a escola primá-ria não deveria se furtar de sua tarefa educativa e da formação das crian-ças, percebidas como seres ignorantes, lapidando o seu estado de natu-reza para que se transformassem em ciosos cidadãos, educados para avida social. Entretanto, a imposição do silêncio às crianças como meiodisciplinar nas escolas públicas primárias da Corte constituía um verda-deiro obstáculo a uma educação preocupada com a dimensão de formaros indivíduos para o exercício da cidadania. Para Frazão, no Impériobrasileiro a instrução primária, tal qual era concebida, produzia perver-sos efeitos de desigualdade, devido ao descuido com a educação dosmeninos para a vida civil:

[...] ele [o descuido com a formação dos cidadãos] dá em resultado que o

menino, o filho do carpinteiro, por exemplo, deve crescer sobre o influxo das

únicas idéias que lhe são peculiares nas oficinas de seu pai. Sim, só delas,

porque na escola é obrigado a ficar em silêncio. Onde poderá então o menino

adquirir, sem perigo, outras idéias que lhes são necessárias, senão na escola?

Na rua, onde as companhias lhe hão de desviar as virtudes?

Obrigando ao silêncio, a escola primária deixava de cumprir umaimportante função social na educação dos filhos dos trabalhadores eartesãos, das crianças populares da cidade que, privadas da liberdade deexpressão nas escolas, permaneceriam limitados às idéias e à formaçãocultural recebida nas suas famílias de origem, ou, por outro lado, correriamo risco de terem suas virtudes corrompidas por más companhias, pela máinfluência da rua. Nesse ponto, o professor demonstrava acreditar na forçadisciplinadora da escola contra os perigos potenciais representados pelarua, identificada como responsável pelo abandono, pelos crimes e pelo des-vio dos indivíduos das regras e normas de conduta social.

A educação, nos estabelecimentos financiados pelo Estado, era ain-da mais importante para as crianças oriundas dos meios populares, pois:

Que as famílias destas crianças que freqüentam as escolas públicas, em

sua maior parte, não está no caso de as educar, pela razão que ninguém dá o

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que não tem, forçoso é concluir que o Estado deve dar em suas escolas, a

essa pobre gente uma educação mais completa.. É preciso levar os meninos a

formar conceitos que, amadurecidos pela idade, constituam a base para a sua

vida futura. O menino é uma miniatura da sociedade.

A operação realizada por Frazão para justificar a educação escolarque propunha – “mais completa”, que servisse de “base para a vida fu-tura da pobre gente” – implicava destituir os saberes e as práticas hete-rogêneas das famílias populares, deslegitimando não somente as suastradições culturais e educativas, mas, sobretudo, o seu próprio papel deeducadoras das suas crianças, posto que foram caracterizadas como in-competentes para essa função, mediante um discurso que representavaa negação da possibilidade de existência de valores e de educação entreas classes populares (“ninguém dá o que não tem”). O Estado, esse sim,por meio das escolas públicas primárias e dos professores, deveria assu-mir a função educativa dos meninos, essas miniaturas da sociedade. Aafirmação da escola primária como lugar essencial de educação da in-fância – então segregada e representada como o adulto embrionário,gérmen do cidadão e futuro da sociedade –, constituía um dos pilares (e,afinal, um dos objetivos de sua memória) do pensamento educacionalde Manoel Frazão.

Para realizar as finalidades da escola que idealizava era preciso,portanto, para o professor, modificar todo o sistema disciplinar das es-colas primárias, extinguindo o deficiente recurso de castigar e recom-pensar as crianças, e, principalmente, revertendo a idéia de que o meni-no bem comportado é aquele que fica em silêncio, “mudo e sossegado”.Segundo Frazão, a criança bem disciplinada não poderia ser confundidacom a criança que foi humilhada pelas punições escolares. Citando VictorHugo, dizia que a criança delinqüente era apenas uma pessoa privada deeducação, cabendo então à escola oferecê-la, habituando-a à vida so-cial, mediante não apenas do ensino elementar, mas também de umaeducação moral, do ensino de direitos e deveres civis.

A escola primária, segundo Frazão, era responsável pela socializa-ção das crianças, promovendo sua integração e sua adequação a deter-minados valores morais, então entendidos como essenciais à vida da

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coletividade e à formação do ente nacional. A sociedade, na sua con-cepção, deveria ser baseada em princípios de uma “sagrada trindade”:a moral, a economia e o trabalho. Com uma perspectiva simultanea-mente utilitária e civilizadora, o professor Frazão sonhava com umaescola primária completamente integrada e destinada a formar indiví-duos para a vida civil, econômica e social, associando educação esco-lar e trabalho, moral e civismo. Por essa razão, dizia, a sua propostafoi considerada polêmica, criticada por muitos colegas de ofício e ad-versários.

Após expor os objetivos e finalidades gerais do seu sistema discipli-nar, que denominava sistema de moral e cívica, o professor Frazão pas-sou a descrever os métodos utilizados para que alcançasse os fins alme-jados, nos processos práticos de ensino dos meninos em suas escolas.Pela sua memória, é possível perceber que Manoel Frazão buscava fa-zer de sua escola uma espécie de “mini-Império”, um microcosmo so-cial – recorde-se que para ele o menino era uma miniatura da socieda-de –, um laboratório experimental para que alunos exercitassem eaprendessem variadas atividades, diversas práticas sociais e funções ci-vis e políticas, para além das atividades propriamente escolares, como aaprendizagem das matérias do ensino primário.

Segundo suas próprias palavras, a escola pública de meninos daGlória, e posteriormente a da Lagoa, era um pequeno Estado. A seme-lhança com o sistema jurídico normativo do Império não era mera coin-cidência. A idéia de Frazão consistia em formar meninos para a vidacivil e política e, portanto, conhecedores da organização do Estado, dassuas leis e da política institucional imperial. Tal qual o Império, a escolaprimária era regida por uma constituição, que ordenava todo o funcio-namento das atividades escolares segundo o sistema de moral e cívica.Havia também um parlamento, formado por alunos divididos e agrega-dos em grupos ou partidos. Juntamente com o professor, esse parlamen-to era responsável pela formulação das leis ordinárias da escola, como,por exemplo, dos Códigos Penal e de Processo Penal, os quais determi-navam os delitos, as penas e as sanções que deveriam ser impostas aosalunos, bem como os meios processuais pelos quais seriam julgados nocaso de faltas à ordem escolar.

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O exercício do poder e da autoridade não estava centralizado napessoa do professor, mas era diluído pelas instituições formadas simul-taneamente pelos alunos, notadamente aqueles que se destacavam nasmatérias de ensino e no comportamento, e pelo mestre, no interior daescola. Não somente o legislativo, mas também os poderes executivo ejudiciário estavam divididos entre os meninos e Frazão. A administra-ção da escola ficava a cargo do Ministério da Fazenda, responsável pelagerência dos recursos arrecadados pelo sistema de Caixa EconômicaEscolar e pelas doações das famílias e outros particulares de prêmios eprendas destinadas aos alunos mais aplicados; do Ministério da Instru-ção, no qual eram reorganizadas semanalmente, em um sistema rotativo,as classes de alunos, então divididas em três grupos, de acordo com oscritérios de comportamento e aproveitamento escolar; e o Ministério daDisciplina, responsável pelo julgamento e aplicação dos meios discipli-nares aos alunos que não seguiam as regras de conduta ou àqueles queprecisavam ser repreendidos pelo desempenho insatisfatório da apren-dizagem das matérias escolares.

As premiações aos bons alunos deveriam ser pagas, preferencial-mente, em meio circulante, moeda corrente, e corresponderiam nãoapenas às boas notas ou ao bom comportamento, mas também à atua-ção dos alunos nos cargos públicos da escola. Evidentemente, com osistema da Caixa Econômica Escolar, o professor pretendia incutir nosmeninos capacidades que os levassem a administrar os recursos eco-nômicos, aprendendo a lidar com o dinheiro, e, sobretudo, a valorizaruma ética meritocrática da recompensa advinda do esforço, da aplica-ção e do trabalho nas atividades escolares. O seu sistema, criando erecriando hierarquias entre os alunos – hierarquias sempre móveis emutáveis, em função da rotatividade das posições nas classes e dasfunções dos meninos na organização escolar ditadas pelo desempenhoindividual de cada um –, visava a motivar a aprendizagem pelos meca-nismos de competição, no qual vigoravam ainda a pedagogia da puni-ção e da recompensa, embora distanciada dos métodos tradicionaiscomo, por exemplo, o uso de castigos corporais, a imposição do silên-cio ou de humilhações e vexames públicos, comum nas escolas primá-rias da Corte.

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Ao contrário, o sistema disciplinar de Frazão, objetivando formarindivíduos moralizados e cívicos, porque integrantes do conjunto decidadãos do Império, conhecedores de direitos e deveres e atuantes navida econômica, política e social, rompia com concepções que defen-diam o monopólio da autoridade e dos saberes nas mãos do professor,cuja severidade, austeridade e seriedade corresponderiam à submissão,à subordinação e ao silêncio dos meninos. Frazão acreditava que essamaneira de conceber a escola, a criança e a relação pedagógica era inca-paz de formar cidadãos úteis à pátria, integrados à sociedade e ao siste-ma político do país. Por essa razão, a sua escola deveria abrir espaço àparticipação intensa dos alunos, sujeito nos processos de ensino e apren-dizagem e atuantes na própria organização da escola e na condução daspráticas e das atividades escolares. Sem dúvida, os métodos ativospropugnados por educadores setecentistas europeus como Rousseau,Froebel e Pestalozzi, estavam presentes nas concepções de ManoelFrazão sobre a criança, tornada então alunos ativos, e conforme elemesmo dizia, um “sujeito que tem direito a queixar-se, a ser ouvido”9.

Frazão foi um dos primeiros mestres da Corte a estabelecer o siste-ma de Caixa Econômica Escolar, que consistia no depósito de pequenasquantias doadas pelos alunos e seus pais, as quais eram distribuídascomo prêmios no fim de cada ano. O sistema visava a preparar a criançapara a vida em sociedade, ensinando o funcionamento das instituiçõespolíticas e preparando o cidadão, além de incentivar o sentimento depoupança entre os alunos. Em suas escolas, o professor realizava tam-bém anualmente uma Festa da Caridade, com leilões de prendas (emgeral, objetos e utensílios escolares, como livros, cadernos, calçados eroupas) que, segundo ele, serviriam para auxiliar as famílias carentes amanter os seus filhos nas escolas. Era o chamado Cofre dos Pobres.Também foi um dos primeiros professores a criar a biblioteca escolar,no que foi seguido pelos seus colegas Antonio Estevam Costa e Cunha(escola de meninos da freguesia do Sacramento), Guilhermina de

9. Souza e Valdemarin, 1998; Souza & Vidal, 1999; Gondra, 2001; Faria Filho eTeixeira, 2000; Villela, 2002; Schueler, 2002.

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Azambuja Neves (escola de meninas em Santa Rita), Januário dos San-tos Sabino (escola do sexo masculino da Candelária)10.

Com o seu sistema de moral e cívica – que abrangia desde a apren-dizagem prática de leis, exercício de direitos, deveres e funções na ad-ministração pelos alunos até a promoção de caixas econômicas, distri-buição de prêmios e assistência social às famílias pobres – Manoel Frazãosonhava em formar um novo homem, um cidadão ativo, participante,consciente de seus deveres e capaz de reivindicar direitos, sem que issoimplicasse subverter ou perturbar a ordem social. Idealizava a constru-ção de um indivíduo moralizado, integrado às normas sociais e responsá-vel por todos os seus atos públicos e privados. O próprio Frazão expres-sou claramente essas idéias, ao expor os princípios que regiam o seupensamento educacional e a sua prática pedagógica nas escolas de meni-nos da cidade. Segundo ele, com o seu sistema os alunos adquiririam:

1º. Responsabilidade efetiva de todos os seus atos, noção que falta completa-

mente no país;

2º. Respeito às autoridades constituídas, distinguindo a deferência que lhes é

devida ao sentimento baixo da adulação;

3º. Distinção entre o cidadão zeloso que defende os seus direitos e o insolen-

te, que ofende as autoridades, impedindo-as até de fazer justiça;

4º. Urbanidade para com os inferiores;

5º. Distinção clara entre a lei e o capricho;

6º. Respeito às censuras da opinião pública;

7º. A economia e o valor do trabalho;

8º. O Código Penal e Criminal;

9º. O Código de Processo;

10º. A Caridade, a ‘Irmandade dos Pobres’, na festa anual da caridade.

11º. Pequenas noções da vida prática: emissão de papel moeda, apólices,

leilões etc.;”

10. Ver artigo de Antonio Estevam da Costa e Cunha, “A biblioteca e a caixa escolar”.A Escola, p. 78. E, de Manoel Frazão, Memória sobre Organização de Bibliotecas,Museus e Caixas Econômicas Escolares, apresentada no Congresso de Instruçãodo Rio de Janeiro, em 1883, publicada em Actas e Pareceres do Congresso deInstrução. Typografia Nacional (1883, p. 555).

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É surpreendente a originalidade do pensamento de Manoel Frazãosobre as funções sociais da escola primária, bem como a sua percepçãoa respeito da atividade dos alunos na produção das atividades escola-res. O seu sistema de moral e cívica, preocupado em formar cidadãosmoralizados, identificados com determinados valores culturais, – entreos quais as noções de preservação da ordem, de urbanidade nas rela-ções sociais, do respeito às autoridades e às leis constituídas, de aceita-ção e manutenção das hierarquias, dos lugares e das funções sociais, deintegração e harmonia social, de apego à ética da poupança, da econo-mia e do trabalho, de civismo e amor à pátria – se, por um lado, inega-velmente constituía uma visão utilitária e conservadora da escola comouma instituição produtora/reprodutora das normas sociais, por outro,em muito se distanciava de uma concepção simplista do exercício dacidadania como uma mera submissão às imposições externas da orga-nização político-social do Estado. Ao contrário, os cidadãos idealiza-dos por Manoel Frazão definiam-se pela constante atuação na socieda-de, pela consciência das leis e do sistema político, capaz de associar orespeito à ordem constituída e o cumprimento dos deveres sociais àdefesa necessária de seus direitos, ainda que sob o império da legalida-de e da harmonia social.

Assim, embora visasse forjar indivíduos integrados e zelosos da or-dem e das hierarquias sociais, o sistema de moral e cívica, e a escolaprimária idealizada por Frazão, era bastante diferente daquela idealiza-da pelas leis e pelo Regulamento da Instrução Primária da Corte, por-que, acima de tudo, divergia das práticas pedagógicas de imposição dosilêncio e do monopólio dos saberes e fazeres escolares nas mãos domestre, mas previa a participação ativa dos meninos, sujeitos nos pro-cessos de aprendizagem e, principalmente, futuros cidadãos, então su-jeitos de direitos e deveres sociais e políticos na integrada (e sonhada)Nação. Sobretudo, a proposta de Frazão demonstrava o potencial criati-vo dos agentes do ensino, os professores e os alunos, a (re)elaboração ea produção de novas práticas, novas disciplinas e programas de ensino,novas idéias e experiências, as quais referiam à coexistência de práticase culturas escolares heterogêneas e plurais nos espaços distintos da ci-dade (Chervel, 1990; Frago, 1996).

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Surpreende ainda a autorização concedida pelo Ministério do Impé-rio e pela Inspetoria de Instrução Primária da Corte para que ManoelFrazão aplicasse o seu sistema disciplinar na sua escola de meninos naRua do Catete, tendo ainda premiado o professor com o reconhecimen-to de sua escola como a “mais disciplinada da cidade do Rio de Janei-ro”. Infelizmente, em sua Memória o professor Frazão, intencionando“vender o peixe” e as vantagens de seu sistema, enfatizando obrilhantismo e a inovação de seus métodos, não mencionou as práticasvivenciadas por ele e seus alunos no dia-a-dia da escola, na consecuçãodos programas e objetivos idealizados. Não se referiu às prováveis difi-culdades, aos possíveis obstáculos, às ações e/ou às reações dos meni-nos, às derrotas ou às conquistas na implementação do seu sistema nosprocessos cotidianos de ensino – ou seja, Frazão não deixou registrossobre o que André Chervel identificaria como o “corpo a corpo” com suasclasses de alunos (Chervel, 1990, p. 177). Resta-nos apenas, mediantesua exposição, imaginar, quem sabe, as possibilidades de funcionamentodaquela escola pública de meninos, pelos idos de 1870 e 1880.

Além disso, é impossível também determinar com clareza as leitu-ras, as concepções teóricas, as influências recebidas e reelaboradas naexperiência de Frazão, as quais o auxiliariam a construir e a viabilizar acriação do seu sistema de moral e cívica. Sabe-se, como já visto, que elehavia tido uma sólida formação religiosa, no Seminário de São José.Desistindo de ser padre, adquiriu novos saberes sobre disciplina e hie-rarquia na antiga escola militar, onde se formou professor de matemáti-ca, matéria sobre a qual lecionava e escrevia compêndios para as esco-las primárias. Estudou também, nessa escola, filosofia racional e moral,o que certamente ofereceu-lhe ricos referenciais teóricos, os quais, infe-lizmente, não se pôde ter acesso. É provável, pela análise de sua Memó-ria, que Frazão tenha sido leitor de obras sobre a organização do Estadoe regimes políticos, como, por exemplo, as do constitucionalista francêsBenjamin Constant, e, talvez, as do positivista Augusto Comte, leiturasfreqüentes nas rodas militares, desde 1860.

É possível igualmente que Frazão tenha lido os setecentistas J.Bentham e Beccaria, cujas obras sobre os sistemas jurídicos foram sig-nificativamente difundidas entre os letrados do Império, a julgar pelas

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referências que faz às idéias utilitaristas e às suas concepções de ordeme justiça, com a clara presença do jusnaturalismo e do liberalismo pe-nais, os quais buscavam limitar e regular os poderes de vigilância epunição do Estado, reatualizando as concepções sobre os direitos hu-manos e o tratamento penal aos indivíduos, então entendidos como ci-dadãos racionais e conscientes dos pactos reguladores e ordenadores docontrato social. Provavelmente, Frazão tenha tido acesso aos notáveisda chamada economia política, como Adam Smith, Ricardo e John StuartMill. Pela citação textual que faz, sabe-se que Manoel Frazão era leitorde Victor Hugo.

É verdade que vários professores primários da cidade, em suas con-ferências pedagógicas e manuscritos, demonstraram familiaridade comas idéias sobre a necessidade de construir uma escola primária que ser-visse à difusão de um determinada moralidade individual, familiar e,algumas vezes, também de uma moral religiosa católica, à manutençãoda ordem pública e da hierarquia social e à formação de cidadãos úteis,moralizados e trabalhadores, integrados aos projetos de civilização eprogresso da cidade e do Império brasileiros11. Portanto, a idéia de umaescola que transformasse as crianças, gérmen dos futuros adultos, emcidadãos conscientes de seus direitos e deveres, não era exclusiva aoprofessor Manoel Frazão. Mas, seu sistema de moral e cívica, no qual aescola constituía ela mesma um “mini-Estado” administrado pela parti-cipação ativa dos alunos, era, de fato, bastante original, singular entreos professores primários da cidade, que deixaram escritos sobre os seuspensamentos educacionais e métodos de trabalho educativo. Por isso, oseu sistema de moral e cívica, para além de despertar a curiosidade arespeito de práticas escolares e experiências e concepções docentes he-terogêneas, permanece sendo um enigma a decifrar-se. Quais experiên-cias pessoais, quais leituras e/ou influências, e referências socioculturaisteriam auxiliado na construção do sistema Frazão?

11. Sobre as idéias pedagógicas de outros professores públicos sobre a educação morale cívica nas escolas públicas primárias da cidade, conferir AGCRJ. 15.3.10. Confe-rências Pedagógicas de Professores Públicos. Manuscritos, 1874-1875. Algumasdelas foram reunidas e impressas pela tipografia nacional nos anos de 1880, e po-dem ser encontradas na Biblioteca Nacional.

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Mariano Narodowski, ao estudar as permanências e rupturas no in-terior da pedagogia moderna na conformação da infância como umacategoria social e psicológica, simultaneamente sujeito e objeto das te-orias e das práticas da ciência pedagógica, indicou, talvez, um caminhopara pensar-se em uma hipótese sobre possíveis referências e modelosteóricos no pensamento educacional de Manoel Frazão. Analisando asformas variadas adquiridas pelos métodos de ensino mútuo, misto e si-multâneo no século XIX europeu, Narodowski fez referência a uma ex-periência pedagógica singular, a da Halzelwood School, em 1819, nacidade de Birmingham, na Grã-Bretanha, a qual considerou radical einovadora para a época.

É interessante verificar que, guardados os distintos contextos espa-cial e temporal e as devidas distâncias socioculturais entre as experiên-cias de Halzelwood e a escola de meninos da freguesia da Glória naCorte imperial, o fato é que há visíveis semelhanças entre ambas aspropostas e práticas pedagógicas. Como na escola do professor Frazão,em Halzelwood o professor utilizava métodos de ensino e disciplinaque visavam transferir o poder e a autoridade de suas mãos aos alunos,diluindo-os por entre os diversos atores sociais na instituição escolar,principalmente os discentes. Os poderes decisórios estavam dispersos eo sistema funcionava também mediante uma assembléia geral de alunose de legislações elaboradas para a organização escolar, como o CódigoPenal e o de Processo Penal. O professor de Halzelwood, tal qual Frazão,abria caminho para que os alunos discutissem e decidissem com relativaautonomia as questões que diziam respeito às atividades escolares e aoensino, e, ainda que ambos perseguissem claramente um ideal utilitário,possibilitavam aos alunos a aproximação com a ordem social e norma-tiva, o exercício de princípios éticos e a aprendizagem de participaçãoativa nas escolas, o que, certamente, poderia levá-los a refletir critica-mente sobre o funcionamento das instituições políticas, dos limites edos impasses da cidadania em suas sociedades.

A inovação dessa experiência pedagógica britânica, segundo o pro-fessor que a colocou em prática, deveu-se às sugestões filosóficas e àleitura de obras que integravam correntes pedagógicas européias defen-soras da escolarização das classes populares pela ótica lancasteriana, a

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qual repousava menos no ideal democrático rousseauniano de universa-lização dos princípios gerais de direito natural do homem (liberdade,igualdade e fraternidade), mas, sobretudo, nas posições funcionalistas eutilitaristas da escola à serviço da moralidade pública e privada, da eco-nomia, da ética do trabalho e da ordem sociais, à la Bentham. A propos-ta de educação moral e cívica de Manoel Frazão, embora adequada àsua sociedade – hierarquizada, escravista e aristocrática – e aos ideaisde formação de um cidadão integrado à cidade, à pátria e ao Império,não deixava de conter concepções utilitárias da escola como espaço deformação de indivíduos moralizados e úteis, portadores de saberes prá-ticos sobre a vida social, a economia e a política, e de uma ética associ-ada ao trabalho.

As diferenças talvez passem pelo radicalismo da autonomia doalunado em Halzelwood, em que poderiam até mesmo, por ocasião defaltas graves do professor, votar e determinar a sua expulsão, em umasubversão total da autoridade pedagógica. O que, de fato, nem de longese encontrava na proposta de Manoel Frazão, na qual, ainda que o alunofosse elevado à condição de sujeito atuante nos processos de ensino enas decisões escolares, permanecia a figura do professor como um dire-tor, o condutor final da ação educativa.

No entanto, é preciso reconhecer que a probabilidade de Frazão tertido conhecimento e inspiração na experiência de Halzelwood, ou outrasemelhante, não pode ser certificada, ainda que as hipóteses não pos-sam ser de todo descartadas, pois os professores primários da cidade doRio de Janeiro freqüentemente citavam e traduziam obras estrangeiraspara a língua portuguesa (especialmente autores como Froebel,Pestalozzi, Herbart, Victor Cousin, De Gérando, Madame Carpentier,Hippeau, Horace Mann, entre outros) e demonstravam conhecer os de-bates pedagógicos sobre as metodologias de ensino mútuo e intuitivo eas modernas instituições educacionais da Europa e dos Estados Unidos.

O que se pode inferir, por meio do cruzamento das fontes pesquisa-das, é que Manoel Frazão conquistou notoriedade com o seu sistema deensino, pois recebeu o reconhecimento oficial e também o de outros pro-fessores, que não raro citavam o seu sistema de moral e cívica, e a suaescola, como exemplo de sucesso escolar na cidade. No entanto, Frazão

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criou polêmicas e ganhou inimizades entre os seus colegas de magistériopúblico, recebendo críticas e alfinetadas nas conferências pedagógicas ena imprensa, as quais talvez tenham contribuído para que o governo im-perial voltasse atrás, proibindo a aplicação de seu sistema em 1883.

Um dos seus críticos mais ferozes, o professor Augusto CandidoXavier Cony, professor público e particular da freguesia do EngenhoVelho, zona suburbana da cidade, verbalizou publicamente suas opi-niões negativas sobre o sistema Frazão na Nona Conferência Pedagógi-ca dos Professores Públicos, realizada nos salões da Imprensa Nacional,em março de 1886.

Na sua exposição, Augusto Cony revelava haver indisposições econflitos entre os professores da cidade, os quais se expressavam clara-mente por ocasião dos debates públicos nas conferências e por meio daspáginas da imprensa pedagógica, então se referindo às revistas Liga doEnsino, dirigida pelo ilustre Rui Barbosa, e Ensino Primário, sob a res-ponsabilidade do professor primário Luiz Augusto dos Reis.

Segundo o relato de Cony, ainda que de difícil compreensão, a con-fusão entre os professores teria começado com as críticas que a revistade Rui Barbosa havia feito aos membros do magistério primário da ci-dade, segundo as quais esses professores eram incapazes de ensinar as“lições de cousas” e aplicar os modernos métodos de ensino intuitivo,devido à sua ignorância e despreparo nos saberes e nas inovações peda-gógicas. Diante das severas críticas, surpreenderia a Cony o fato de queo professor Manoel Frazão, um “constante defensor da classe dos pro-fessores públicos”, não teria rebatido e reagido às ofensas publicadas naLiga do Ensino, no uso da oratória por ocasião de suas últimas palestraspúblicas. Ao contrário, Frazão teria concordado com Rui, dizendo queas lições de coisas poderiam ser aplicadas sem uniformidade pelos pro-fessores e, desse modo, prejudicariam os alunos nos exames públicosanuais promovidos pela Inspetoria de Instrução.

Justificando as motivações iniciais de seu discurso, Cony elaborouuma estratégia discursiva de crítica à Frazão, a qual começava por umaelogiosa narrativa histórica sobre a participação daquele professor e asua capacidade de agregar os professores públicos em torno de algumasidéias, incentivando um movimento de reivindicações perante o gover-

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no imperial. Assim, em 1873, por ocasião das respostas às circularesoficiais que lhes solicitavam opiniões sobre as matérias e a organizaçãoescolar, Frazão enviou um resumo das idéias discutidas por 35 profes-sores e professoras da cidade. No entanto, em que pese o esforço dosmestres, ao invés de acatar e publicar as opiniões da “prata da casa”, ogoverno imperial teria preterido Frazão e seus colegas, preferindo pu-blicar obras traduzidas de pedagogistas estrangeiros.

Em outro sentido, Cony referia-se ao sistema de moral e cívica deManoel Frazão, há 11 anos aplicado em suas escolas públicas. Afirma-va, então, que na escola de Frazão se pretendia preparar os meninospara a comunhão geral, porém, essa lhe parecia mais uma “verdadeirapraça de mercado”, onde se venderiam prendas e objetos dados pelospais às crianças para garantir prêmios escolares aos alunos, e se forma-va “usurários capitalistas aos 9 anos”!!! Para Cony, paradoxalmente, osistema Frazão visava ainda ensinar os educandos a desenvolver senti-mentos de compaixão pelos desgraçados – como a Festa da Caridade – adespeito das proibições da Inspetoria Geral, que teria vedado quaisquercoletas nas escolas, em dinheiro ou objetos, sob quaisquer pretextos.

Havendo na escola de Frazão um parlamento, leis constitucionais,penais e processuais, um tribunal de meninos, perguntava-se Cony comoFrazão encontrava o tempo necessário para aplicar os ensinamentosmorais e cívicos, incluindo a participação dos alunos nas funções públi-cas (além da música e a ginástica introduzidas no regimento de 1883), e,ainda por cima, cumprir os programas e as matérias de ensino previstaspela legislação da instrução primária. Sugerindo, talvez, que ManoelFrazão não cumpriria os programas oficiais, Cony lembrava ao públicoassistente que o seu sistema de moral e cívica tinha sido proibido peloInspetor Geral Antonio Bandeira Filho, em 1883 – o mesmo que haviavedado a coleta de dinheiro e objetos para a Caixa Econômica Escolar.

Quanto aos assuntos de moral e cívica, o novo Regimento Internodas Escolas Públicas Primárias, editado pelo Inspetor Geral em 1883,previa claramente que a moral e o civismo não constituíam uma disci-plina em separado, mas que deveriam estar diluídos entre os ensina-mentos e as finalidades de “fazer o aluno amar à pátria, respeitar àsautoridade e leis, conhecer as biografias dos grandes homens”, pontos

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que deveriam ser tratados nos exercícios correntes de leituras. Eviden-temente, proibindo o ensino de moral e cívica como uma disciplina au-tônoma, o Inspetor Geral objetivava cortar pela raiz a experiência diver-sa e inovadora do sistema de ensino de Manoel Frazão, talvez porqueesse pudesse representar um risco não somente à ordem escolar, pelosusos diferenciados do tempo, dos espaços e dos objetivos de ensino,mas, sobretudo, pelo ideal de formação de cidadãos cientes dos seusdireitos (além dos deveres) e atuantes nos processos de ensino/aprendi-zagem, a ponto de subverter os lugares, as hierarquias sociais e a autori-dade. E, quem sabe, evitar que pensamentos e propostas pedagógicasdesse tipo transbordassem do interior da mini-sociedade representadapela escola, ganhando outros espaços sociais, como as ruas da cidade,nesse contexto bastante tumultuado pelas campanhas republicanas eabolicionistas.

Em meio a essas críticas de Cony e diante da proibição da Inspetoriapara aplicar o seu sistema de moral e cívica, Manoel Frazão não silen-ciou. Na mesma sessão da Nona Conferência Pedagógica ProfessoresPúblicos, enunciou um discurso em sua defesa, pelo qual, para além deresponder ao seu colega de ofício, reiterava as explicações sobre os finse os objetivos de seu magistério público e as vantagens de seu métodode ensino. Dizia, então, que concordava com as críticas de Rui Barbosaaos professores primários, mas apenas no tocante à inexistência de umaformação escolar e pedagógica adequada e à conseqüente ignorância arespeito de modernos métodos e das chamadas lições de coisas – a esco-la normal implantada na Corte em 1880 não havia ainda (re)produzidoprofessores.

Além disso, a respeito de sua escola, do cumprimento dos horários eprogramas, alegava que a educação moral e cívica era integral, ou seja,havia tempo para ensinar as matérias do ensino primário conjuntamentecom a aplicação dos seus princípios educativos, que incluíam a partici-pação e o exercício de funções públicas pelos alunos. Defendia-se dasacusações de incentivar a formação de usurários e capitalistas, afirman-do que o sistema de prêmios e recompensas, além da Caixa EconômicaEscolar, era utilizado pelo ilustre professor Menezes Vieira em suas es-colas da Corte, as quais eram reconhecidas pela modernidade pedagógi-

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ca na utilização dos modelos intuitivos froebelianos e pestalozzianos.Afirmava, ainda, que comprar e vender eram práticas cotidianas da vidacivil e que sua escola, reconhecida pelo governo, foi responsável pelaformação de muitos dos professores públicos atuantes na cidade, os quaisigualmente reconheciam os méritos de seu sistema.

Para Frazão, a escola deveria ser locus de uma educação integral dascrianças, a qual denominava sugestivamente como uma “educação a maiscompleta”, porque associava a instrução elementar necessária às práticasda vida futura, à moralidade e ao civismo, responsáveis, segundo ele, pelaformação de homens novos, cidadãos úteis, moralizados, porém nãoamorfos e anômicos, mas atuantes no engrandecimento, capazes de con-tribuir ao progresso e à civilização do Império. Acima de tudo, a sua esco-la de educação cívica era um aparelho educativo, pois visava:

Formar os meninos da escola em uma sociedade civil e política, misturar

as lições sociais às lições escolares. [...] os exercícios de cargos públicos na

escola fazem os meninos a tratar os outros como iguais, respeitar hierar-

quias, conhecer as prioridades do serviço público, conhecer a importância do

Código Penal.

Tudo isso era fundamental na opinião do professor porque, na suaperspectiva, na sociedade das crianças existiam distinções, conflitos,posições e oposições, hierarquias e desigualdades:

[...] É fácil de compreender que na sociedade das crianças existem já os

mesmos interesses contrários, as mesmas paixões que se agitam, e se cho-

cam no seio da sociedade real; porque as crianças são homens pequenos, ou,

ao contrário, os homens não passam de crianças grandes. [grifos meus].

Esses interesses contrários – as diferenças e as distinções no inte-rior da sociedade – talvez estivessem no pensamento de Frazão relacio-nados às desigualdades de classe, às distinções entre diversas tradiçõesculturais e familiares, às experiências heterogêneas dos meninos quefreqüentavam as escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro – e tam-bém daqueles que delas permaneciam distantes. Na sua palestra, ao fa-

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lar dos alunos das escolas, e argumentando em defesa de sua escola e deseu aparelho educativo de moral e cívica, o professor reproduzia repre-sentações negativas sobre as famílias das crianças populares, os paisdos alunos de suas escolas, que eram retratados como indivíduos “pro-míscuos”, destituídos de uma “clara noção de família”, e diferentemen-te dos pais de família em países ditos desenvolvidos, “não possuíamcompetência para bem educar” os filhos:

[...] Diz-se vulgarmente que a educação é obra familiar, com efeito nos paí-

ses em que as crianças tem família; porém, entre nós, em que até nas classes

elevadas, só por exceção existe noção clara de família, onde as crianças de

classe baixa são deseducadas na rua, pelos tristes exemplos de pessoas cons-

pícuas, meninos da maior parte destituídos da mais sucinta noção de educa-

ção, e que por isso constituem a mais perigosa classe de vagabundos.

Representações negativas das famílias e das crianças populares –uma “classe de vagabundos destituída de educação” – cruzavam-se comrepresentações sobre as ruas e a cidade como palcos de perigos e desvi-os, males contra os quais apenas uma educação primária completa nasescolas públicas, pautada sobre os princípios de moral e civismo, o apa-relho educativo de Frazão, poderia remediar:

[...] Quem percorre a nossa cidade em certas horas do dia, quem mora, nas

proximidades das escolas, sabe quantas irregularidades são cometidas, já por

meninos que se furtam à vigilância e deixam de comparecer na escola. Tais

meninos, ou não tem quem os acompanhe [...] ou se tem portadores são, em

geral, pessoas destituídas de força moral, algum preto velho, ou alguma ra-

pariga... Ficam, pois, as crianças na idade escolar, que é a a mais perigosa, à

mercê das influências deletérias de um meio sumamente irregular, como é o

da nossa cidade, freqüentada por inúmeros vagabundos de toda a espécie... A

missão do mestre é uma verdadeira Teia de Penélope [...]

A convivência dos meninos em idade escolar com indivíduos e gru-pos sociais heterogêneos – pretos velhos e raparigas, vagabundos detoda a espécie –, crianças, homens e mulheres de diferentes origens e

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condições sociais, representantes da diversidade étnica, social e culturaldas classes populares urbanas, era interpretada por Manoel Frazão comoum “perigo”, pois, na sua perspectiva determinista, o meio corrompidoe deletério, expresso pela irregularidade das práticas sociais nas ruas,influenciaria negativamente a sua educação, nessa fase da vida em quese formava o caráter moral e a personalidade dos meninos, futuros cida-dãos. De fato, reafirmando e reiterando a “missão social” do professorpúblico na educação das crianças populares – essa verdadeira “Teia dePenélope” – Frazão produzia representações da escola primária comoum lugar fundamental de educação, essencial à manutenção da ordemna cidade, da civilização e do progresso do Império, prevenindo e reme-diando a vadiagem12. Então, como educar? – perguntava, concluindo asua conferência. E, respondia: com escolas e com uma “educação com-pleta”, o seu sistema de educação moral e cívica!

Sem dúvida, os métodos de ensino e a forma de organização escolarproposta e aplicada nos anos de 1870 e 1880 – pelo professor das esco-las de meninos das freguesias do Sacramento, da Glória e da Lagoa – naCorte imperial, surpreendem não apenas por sua originalidade, mas prin-cipalmente pelas idéias sobre as crianças, a escola, a educação, a peda-gogia (notadamente a sua ênfase na formação moral e civil dos meni-nos) e aos objetivos de formar cidadãos úteis e moralizados, porém ativosna sociedade e na política imperiais, obedientes a seus deveres, mastambém conhecedores e potencialmente reivindicativos de seus direitossociais e políticos.

O sistema de Frazão, ainda que não se adequasse às diretrizes im-postas pelo Regulamento de 1854 – tendo até mesmo sido proibido pelo

12. Representações negativas sobre a cidade e as crianças populares, associadas à de-sordem, à vadiagem e à capoeiragem eram comuns entre os professores. Ainda quesejam evidentes os preconceitos e as representações pejorativas sobre os meninos,sobre as ruas e suas manifestações políticas e culturais, não se pode deixar deconsiderar que a reprodução das maltas de capoeiras na cidade do Rio de Janeiro sefazia a partir de um sistema de aprendizagem, no qual os meninos aprendiam alutar e a dançar desde pequenos, abarcando desde afro-descendentes – escravos,livres e libertos – até meninos brancos e pobres, incluindo estrangeiros, como osportugueses e italianos. Ver, Soares, 1994.

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Regimento das escolas em 1883 –, foi autorizado pelo Ministério doImpério, na gestão política dos conservadores Paulino Soares de Souza,João Alfredo Correia de Oliveira e de José Bento da Cunha Figueiredo.Evidentemente, a direção conservadora na Corte imperial há muito ha-via erigido a escola primária como uma instituição pública fundamen-tal, dotada de uma centralidade e de uma função política de estender aintervenção dos poderes públicos – por meio de múltiplas Teias de Pe-nélope – sobre a heterogeneidade de formas e práticas culturais de edu-cação/instrução privadas, visando criar nexos e estreitar os laços entre opúblico e o privado (o governo e a casa) (Mattos, 1987), ao mesmotempo em que sonhava controlar e homogeneizar aquilo que era diversoe não raro considerado um perigo, uma ameaça à ordem e às hierar-quias – as classes populares da cidade do Rio de Janeiro.

Talvez por essas razões – pela proposta de formar um cidadão mora-lizado e cívico, embora atuante – o sistema de Frazão pôde ter sido vistocom “bons olhos” pela Inspetoria de Instrução, ainda que freqüente-mente o seu mentor estivesse na mira repressora da Inspetoria, devidoaos seus movimentos políticos no sentido de reivindicar melhores salá-rios e melhores condições de trabalho docente na cidade, buscando, ape-sar das dificuldades e das divergências entre grupos de professores, agre-gar e formar associações e institutos de classe, de que foi exemplo oInstituto Profissional dos Professores Públicos, do qual nos fala HeloísaVillela (2000), para além da publicação de artigos críticos na imprensa enos jornais pedagógicos que surgiram nos anos de 1870.

Em contrapartida, sabe-se também que Manoel Frazão prezava muitofiguras proeminentes do Partido Conservador e abalizava algumas açõespolíticas e educativas de sua administração na cidade, pois em seus es-critos e palestras eram freqüentes os elogios ao saquarema Eusébio deQueiroz, um dos mentores do Regulamento de 1854, e Inspetor Geralde Instrução na pasta de Couto Ferraz (1855-1857) – para quem, aliás, oprofessor dedicou uma memória apresentada em conferência pública(Frazão, 1871)13 – e ao Ministério de João Alfredo (1871-1875), cujo

13. Para a hipótese da aproximação de Manoel Frazão com os saquaremas e a políticaeducacional do partido conservador conferir: Gondra, 2002, pp. 17-33.

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incentivo à instrução primária pública e profissional, com o Asilo dosMeninos Desvalidos e a subvenção de vários cursos noturnos na cidade,teria sido responsável pelo avanço do ensino na Corte.

Porém, considerar a existência de uma certa afinidade de ManoelFrazão e a política educacional conservadora, ou mesmo de relaçõespessoais com alguns de seus integrantes, não me permite afirmar queesse professor fosse correligionário, filiado ou militante do Partido Con-servador. Não encontrei nenhuma referência explícita sobre a sua parti-cipação nos quadros formais de qualquer agremiação partidária, aindaque seja visível que as suas propostas educativas tivessem similitudescom as diretrizes da política saquarema, posto que tinha em mira a for-mação de um cidadão perfeitamente adequado à monarquia constitucio-nal e ao regime político adotado no Império. Basta lembrar suas idéiassobre os meninos, futuros cidadãos ativos e participantes, porém ciososdas autoridades, das hierarquias e da ordem social e política constituída.Seria, então, Manoel Frazão afinado com a política conservadora? Éuma hipótese verossímil, ainda mais se levarmos em conta o elogio àadministração saquarema explicitado na memória sobre o ex-InspetorGeral de Instrução, Eusébio de Queiroz, ou ainda a sua amizade, nosanos de 1870, com o deputado Luiz Joaquim Duque-Estrada Teixeira,político conservador com considerável prestígio na freguesia da Glória.

Probabilidade que parece mais evidente quando se pensa em possí-veis explicações, nos motivos e nas razões plausíveis, pelas quais a suaescola, e a sua ação educativa, fosse tão polêmica e criticada, chegandomesmo a ser cortada pela direção liberal do Ministério do Império, entre1879 e 1886 (o ministro de 1883, ano do novo Regimento das Escolas edo decreto proibitivo ao sistema Frazão, era membro do Partido Liberal,o luzia Manoel de Souza Dantas, pai de Rodolfo Dantas, seu sucessor, eo Inspetor Geral de Instrução era Antonio Bandeira Filho).

É possível que, com o acirramento das tensões sociais e dos confli-tos políticos nos meetings nas ruas da cidade, desencadeadas, por umlado, pela radicalização do movimento abolicionista e, por outro, pelocrescimento das adesões ao movimento republicano, tivesse se tornadomuito pouco adequado se falar em uma escola primária formadora decidadãos ativos e cívicos, participantes e potencialmente reivindicativos

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de direitos sociais e políticos. Pois, quaisquer que fossem as tendênciase as escolhas políticas, como seria possível controlar a multiplicidade dasações educativas e, mais ainda, como prever e evitar as diversas interpre-tações e reaproriações, as recriações das práticas culturais e pedagógicas,e, as conseqüências de uma proposta de educação para o exercício dacidadania – tão imprecisa, indefinida e ambígua, porque objeto de lutas edisputas políticas e culturais –, como a de Manoel Frazão?

Afinal, não foi à toa que, ao proibir o sistema de moral e cívicadesse professor, o Inspetor Geral tenha intencionado destituir a legiti-midade de uma disciplina que, anteriormente inexistente nos programasde ensino oficiais, foi criada e produzida no interior das práticas e da(s)cultura(s) escolares da cidade, pela experiência relativamente autôno-ma e pelo pensamento social e pedagógico de um professor público. Osistema de moral e cívica de Frazão foi, então, condenado pela políticaliberal oficial no poder, que determinava que nas escolas primárias sereforçassem ensinamentos de respeito às autoridades – às biografias dosgrandes homens, dos políticos e estadistas – e às hierarquias sociais, deamor e submissão à pátria, em um modelo de cidadania significativa-mente distinto daquele idealizado pelo professor público de escolas pri-márias isoladas da cidade.

Teria o professor primário acatado os decretos oficiais e deixado, apartir de 1883, de aplicar o seu sistema disciplinar de ensino de moral ecívica aos seus meninos? É impossível ter certezas, pois perderam-se aspistas e os indícios, os “fios da meada” da trajetória e das experiênciassociais e pedagógicas de Manoel Frazão em suas escolas.

O que se pôde investigar sobre esse professor indica que, em 1895,com 32 anos de magistério primário na cidade e 59 anos de idade, esta-va aposentado do serviço público, tendo sido nomeado para o Conselhode Instrução Primária e Secundária da então capital da República brasi-leira. Antes de tornar-se conselheiro de ensino, porém, Frazão fez umaviagem à Europa, visitando instituições e estabelecimentos diversos deeducação, em vários países ditos civilizados, cuja experiência relatouao novo governo republicano (Frazão, 1895).

Mas, esses, foram outros tempos...Tempos de outros projetos políti-cos e educativos...

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FILHO, Luciano (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Au-tentica.

Recebido: 24 de ago. de 2004Aprovado: 11 de maio de 2005

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Vestígios das influências da culturae pedagogia norte-americanasno pensamento educacional

de Fernando de Azevedo

José Cláudio Sooma Silva*

A partir do entrelaçamento de fontes primárias guardadas no Arquivo Pessoal de Fernandode Azevedo/IEB-USP com outras fontes secundárias, o texto discute os vestígios dasinfluências da pedagogia e cultura norte-americanas no pensamento educacional deFernando de Azevedo. Pretende-se, assim, contribuir para as investigações em história ehistória da educação relacionadas ao desenrolar do movimento escolanovista em terrasbrasileiras.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ESCOLANOVISMO; PRAGMATISMO PEDAGÓGICO;MÉTODOS DE ENSINO.

From the interlacement of primary sources kept in the Personal Archive of Fernando deAzevedo/IEB-USP with other secondary sources, the text discusses the traces of theinfluences of American culture and pedagogy on Fernando de Azevedos’ educationalthought. It is intended contribute to the investigation of the history and the history ofeducation related to the development of the newschool movement in Brazil.HISTORY OF EDUCATION; NEWSCHOOL; PEDAGOGIC PRAGMATISM;METHODS OF EDUCATION.

* Mestre em história da educação e historiografia pela Faculdade de Educação da daUniversidade de São Paulo (FEUSP); Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estu-dos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE) da FEUSP; professor orientador doPrograma de Educação Continuada (PEC)/Fundo de Apoio à Faculdade de Educação(FAFE)/USP e Professor de história do Colégio São Judas Tadeu.

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Para realizar a proposta de iluminar possíveis pontos de congruênciaentre algumas das concepções defendidas pelo educador Fernando deAzevedo e os aspectos da cultura e pedagogia norte-americanas, optou-se pela seleção de certas formas de entrada à temática. Nesse sentido, oesclarecimento delas constitui-se como passo fundamental para explicitaros limites do que pôde ser abarcado com a reflexão.

Dessa perspectiva, inicialmente, é necessário sublinhar quais os as-pectos da cultura e pedagogia norte-americanas que foram tomados paraa análise. Dentro do recorte conferido, a ênfase recaiu sobre as questõesrelacionadas ao individualismo, aos ideais de liberdade e ao pragmatismopedagógico inspirado, principalmente, em John Dewey.

Em seguida, cabe desnudar as fontes utilizadas para o estudo. Porcerto, a longa trajetória político-educacional e a numerosa produção in-telectual azevedianas não puderam ser enfocadas integralmente por esteartigo. Nessa direção, para o desenvolvimento do texto foram analisa-das 115 correspondências trocadas entre Manoel Bergström LourençoFilho e Fernando de Azevedo1, 2 cartas de Anísio Teixeira para Azeve-do2, manuscritos de conferências redigidos por Azevedo e algumas fon-tes secundárias.

Em vista das considerações, o artigo encontra-se dividido em duaspartes. A primeira, contando com dois tópicos, apresenta questões queforam construídas, principalmente, a partir do diálogo estabelecido com adocumentação do Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP. Asegunda, escrita à guisa de conclusão, consiste em uma reflexão acerca de

1. Desse total de 115 documentos, 65 são de Lourenço Filho para Azevedo, cobrindoum período que vai de 17 jun. 1927 a 30 jun. 1963 (cartas doadas por Ruy Louren-ço Filho, em 1998, para o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP). Os outros50 documentos são de Azevedo para Lourenço Filho, cobrindo um período que vaide 27 set. 1927 a 23 jun. 1963 (cartas doadas por Fernando de Azevedo, em 1970,junto com o seu arquivo pessoal).

2. Por conta, principalmente, da afinidade de pensamentos, da disposição para seengajarem no movimento de reestruturação educacional brasileiro e dacontemporaneidade de cargos exercidos, optei, também, por trazer ao texto as 2cartas de Anísio Teixeira. Essa aproximação entre esses três educadores (Azevedo,Lourenço Filho e Teixeira) já foi desenvolvida por outros pesquisadores. Ver Vidal(2001) e Nunes (2000).

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algumas das preocupações que devem preceder a utilização de correspon-dências salvaguardadas em arquivos pessoais nos trabalhos históricos.

1. Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e,também, Anísio Teixeira: integrantes de uma“vanguarda da educação brasileira”?

Meu caro Lourenço Filho,

Acabo de ler sua admirável Introdução ao estudo da Escola Nova [Lou-

renço Filho, 1930]. Você fez a obra indispensável, no momento, para orientar

os educadores brasileiros na interpretação da filosofia e na crítica dos méto-

dos da educação moderna.

Creio que não há na bibliografia contemporânea nenhum livro tão oportu-

no sobre a matéria, tão claro e equilibrado. Dentro da selva intrincada dos

conceitos, das doutrinas e das experiências de tantos inovadores, V. foi um

pensador ponderado, um crítico meticuloso e avisado, um didata experimen-

tado e um artista encantador pela perícia com que desbravou o campo e re-

moveu o material inútil e nocivo à perfeita compreensão do problema.

Sinto-me feliz por encontrar a cada passo com você nas idéias principais da

obra e sobretudo na afirmação da supremacia do sistema criado por Dewey,

que, certamente mais por intuição que por estudo profundo, sempre reputei o

mais lógico, racional e despido de qualquer artifício. [...]

Você, Lourenço, é um dos poucos homens talhados, nesta ocasião, para dirigir

o departamento da educação do Distrito Federal, ou para ser Ministro da Educa-

ção Nacional, mas com Fernando de Azevedo como Prefeito, ou como Presiden-

te da República (não seria preciso fazê-lo ditador como ele mais gostaria).

Vocês dois se completam, mas não poderiam substituir reciprocamente.

Para uma grande reforma nacional de educação (ou qualquer outro gênero),

o Fernando de Azevedo é o homem oportuno, ajustado e talvez o único. Mol-

dado em aço, mas, aqui e ali, com felizes falhas na tempera, obstinado e

explosivo, intrinsecamente probo em atos e intenções, ardendo em uma cha-

ma perene de idealismo, sentimental e duro ao mesmo tempo, abstrato e

dispersivo in modo, objetivo, retilíneo e fulminante in re, ele possui as virtu-

des clássicas e também as heterodoxas (a que chamamos defeitos), indispen-

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sáveis a um criador de realidades cósmicas, harmoniosas e fecundas. Poucos

o amam, muitos o detestam, e quase todos o temem. E entre os que lhe que-

rem e admiram, não sei quantos, como eu, o compreenderão e aceitarão inte-

gralmente.

Agora você não será homem para temporais (vá com restrições). Poderia

naturalmente, em calma e ambiente pacífico, formular um magnífico códi-

go de educação, mas não o imporia a força, não jogaria por ele a sua vida,

não se agarraria a ele como um desesperado, afrontando tudo para salvá-lo

íntegro e ileso.

Todavia para executá-lo, tanto em suas linhas mestras, como em seus deta-

lhes, para coordenar todos os seus elementos vivos e realizar a obra imposta

ao ambiente e aceita pelas consciências, aí onde o Fernando de Azevedo

poderia talvez esmorecer e fraquear, V. me parece incomparável e quase so-

litário atualmente no Brasil.

Quando estou em despedidas da minha vida pública, fico a sonhar a esse

sonho de ainda ver vocês dois unidos, talhando neste formidável Brasil, uma

obra de construção nacional que o redima de meio século de erros e de expe-

riências fúteis.

(a) Frota Pessoa

[Anexo de carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 15 ago. 1930,

FA-Cp Cx. 19, 22, ARQFA/IEB-USP; grifos do autor]3.

Embora extensa acredito que as palavras de José Getúlio da FrotaPessoa, comentando aspectos das características pessoais e profissio-nais de Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, sirvam como uma ex-celente epígrafe para as idéias que serão trabalhadas a seguir. Afinal, era

3. Por ser essa a primeira citação do conteúdo registrado na correspondência entreAzevedo e Lourenço Filho, cabe alguns esclarecimentos. O primeiro deles, objeti-vando facilitar a leitura do texto, refere-se à atualização que empreendi à grafia daspalavras. O segundo relaciona-se à codificação adotada pelo Instituto de EstudosBrasileiros (IEB-USP) e que será utilizada nesse texto: FA (Fernando de Azevedo);Cp (Correspondência Passiva); Ca (Correspondência Ativa); Cx. (Caixa); “22” (lo-calização do documento em sua respectiva Caixa) e ARQFA/IEB-USP (ArquivoPessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP).

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Frota Pessoa que afirmava, em carta ao primeiro, que Lourenço Filho eAzevedo “[...] se completa[vam], mas não poderiam substituir recipro-camente”.

Pelo olhar de Frota Pessoa, o relacionamento entre os dois educado-res não se poderia desenvolver em outro modo que não unir esforços.Duas personagens que, por suas aptidões, preferências e formações, de-dicaram grande parte de suas vidas ao problema educacional brasileiro.Colegas de trabalho, em 1920, na Escola Normal da Praça em São Pau-lo4 e juntos desde a juventude pelo ideal de reestruturação da educaçãodo país, Azevedo e Lourenço Filho em suas cartas deixavam transparecero respeito e admiração que cultivavam um pelo outro:

Fernando,

desde ontem, recebida sua carta, achei-me num estado de espírito que V.

facilmente avaliará. O meu desejo sincero, franco e decidido é o de servir,

nesta emergência, a uma causa comum, por que V. tão brilhantemente se

empenha. E, mais: o de atender à sua boa amizade – o que em aspecto diver-

so da mesma questão, em virtude dela ter nascido e se ter cimentado exata-

mente no trato de idéias e sentimentos comuns sobre questões de educação

[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, [?] jan. 1928, FA-Cp

Cx. 19, 12, ARQFA/IEB-USP].

Meu caro Lourenço,

[...] V. sabe que estamos unidos desde nossa mocidade, pela devoção ao ideal

de servir à educação no Brasil e pela dedicação sem reservas a essa obra de

suma importância para a vida nacional. Nenhum educador que tenha o senti-

mento do essencial, do eficaz, da força do que une e edifica, pode furtar-se ao

dever de levar a qualquer trabalho útil, nesse terreno, a melhor contribuição

de seus esforços [...]

[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 26 jul. 1945, FA-Ca

Cx. 10A, 35, ARQFA/IEB-USP].

4. Em 1920 Lourenço Filho era professor substituto de pedagogia e educação cívica eFernando de Azevedo era professor da cadeira de latim e literatura.

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As iniciativas educacionais, políticas, editoriais e administrativasdos dois educadores eram sempre recebidas com palavras de estímuloem suas missivas. Ultrapassando os laços de amizade que os uniam, ocontato com a documentação possibilitou o descortinar de um elementoque, paulatinamente, se constituiu como um traço comum a todas as 115cartas. Azevedo e Lourenço Filho, juntos com alguns outros educado-res, enxergavam-se como integrantes de uma “vanguarda de reforma-dores educacionais brasileiros”.

Nesse caminhar, mais do que congratulações e comentários por li-vros lançados, cargos ocupados, conferências pronunciadas, as impres-sões elogiosas trocadas entre os correspondentes deixam transparecerum forte sentimento de que estavam eles, os “vanguardistas”, travandouma “batalha” pela reestruturação educacional do Brasil. Assim, as rea-lizações e expectativas de ambos educadores assemelhavam-se, em suasimpressões, a algo igual – ou muito próximo – às peças de um intrincadoquebra-cabeças. Azevedo e Lourenço Filho delegavam, então, a cadauma de suas atitudes, reformas, publicações, conquistas, conferências einiciativas o caráter de peças fundamentais; e como um intrincado que-bra-cabeças consideravam a situação do sistema educacional brasileiro.

Não é preciso que lhe diga de minha alegria íntima [...] não apenas como ami-

go, mas como modesto cultor de idéias semelhantes e, mais que tudo, como

brasileiro. Quando se escrever um dia, mais tarde, a história do ensino, no

Brasil dois períodos serão assinalados: antes dessa reforma5 e depois dela. Não

é exagero, nem vontade de agradá-lo, pois bem me conhece. É o que é [...]

[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, [?] jan. 1928, FA-Cp

Cx. 19, 13, ARQFA/IEB-USP].

Lourenço

Passei os olhos pelo seu livro [Lourenço Filho, 1930]. Excelente, a todos

os respeitos. Ele tem um grande destino: contribuir para a formação de uma

“nova mentalidade” de educadores. Exposição límpida, seriamente docu-

5. Fernando de Azevedo foi o idealizador da Reforma da Instrução Pública do Distri-to Federal/RJ (1927-1930).

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mentada, nutrida de idéias e rica de sugestões. E, – que o caracteriza, –

apresenta o problema, por todas as suas faces, substituindo por uma visão

global, larga e penetrante, as visões estreitas e precárias, tão freqüentes, da

grande questão [...].

Livro de Mestre. Não há obra que o substitua, na literatura pedagógica. Lêde-

o, se quiserdes ter uma visão de conjunto, larga e profunda, da escola nova. A

clareza tirou nele desforra sobre a confusão

[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 11 jul. 1930, FA-Ca Cx.

10A, 3, ARQFA/IEB-USP].

Pelas palavras percebe-se o quão em sintonia parecia pulsar o an-seio de reestruturação do sistema educacional brasileiro dos dois educa-dores. Para Lourenço Filho, tamanha seria a contribuição e o grau deinovação da Reforma da Instrução Pública do, então, Distrito Federal(1927-1930) idealizada por Azevedo que, quando “se escreve[sse] umdia, mais tarde, a história do ensino, no Brasil dois períodos ser[iam]assinalados: antes dessa reforma e depois dela”. Para Azevedo, o re-cém-lançado livro de Lourenço Filho que versava, justamente, sobre aintrodução de novos métodos e saberes escolares pautados no ideárioescolanovista contribuiria “para a formação de uma ‘nova mentalidade’de educadores” brasileiros. Perpassando as impressões dos dois educa-dores a certeza de que ambos, juntos, prestavam um inestimável auxílioao desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema escolar do país. Maisdois excertos das missivas trocadas entre Azevedo e Lourenço Filhoreafirmam o caráter de “vanguarda da educação” que os dois educado-res conotavam às suas atuações político-administrativas.

Fernando,

[...] Bem pode V. imaginar o meu contentamento íntimo, em vê-lo ali, no

lugar que sempre imaginei devia competir-lhe no Governo de Washington6.

Contentamento mais que de camarada, e admirador que o sou de V., sincera-

mente, contentamento de “Quixote” das mesmas idéias de renovação cientí-

fica do ensino [...]

6. Por meio de indicações de Renato Jardim (ex-diretor da Instrução Pública do Dis-trito Federal/RJ), Washington Luis (presidente do Brasil) e Alarico Silveira (secre-

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[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 17 jan. 1927, FA-Cp

Cx. 19, 1, ARQFA/IEB-USP].

Meu caro Lourenço,

[...] Acredite que lamentei profundamente não poder tê-lo, no Rio, nas reu-

niões da Conferência e nos trabalhos do concurso. Via você e sentia, de certo,

o vivo interesse que manifestei pela sua presença nestes dias, em que se con-

gregam no Rio diretores e delegados [?] dos Estados e da União. Afastei-me

um pouco dessas reuniões. Dos que vieram (isto entre nós) não vi lá um “ho-

mem”. Uma lástima, a educação pública no Brasil

[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 24 set. 1930, FA-Ca Cx.

10A, 4, ARQFA/IEB-USP].

Volta aqui, novamente, a maneira particular como os dois educado-res concebiam o movimento de reestruturação educacional do país. Se-gundo Lourenço Filho, a nomeação de Azevedo para o cargo de DiretorGeral da Instrução Pública do Distrito Federal contribuiu para que fossetomado por um “contentamento de ‘Quixote’”, já que ambos comparti-lhavam “das mesmas idéias de renovação científica do ensino”. ParaAzevedo, o fato de Lourenço Filho não ter podido deslocar-se até acidade do Rio de Janeiro para participar das reuniões da conferência,bem como dos trabalhos de concurso, concorreu para que buscasse umafastamento desses acontecimentos, uma vez que dentre os participan-tes não enxergara “lá um homem”, concluindo que era “Uma lástima, aeducação pública no Brasil”.

Remeto-me, neste ponto, a mais três excertos de documentos. Doisdeles foram levantados junto à correspondência partilhada entre Lou-renço Filho e Azevedo. O último foi extraído de uma carta enviada porum outro educador – Anísio Teixeira – a Azevedo. Por desenvolverem

tário do presidente) a Antônio Prado Júnior (prefeito da cidade do Rio de Janeiro),Fernando de Azevedo recebeu o convite para integrar o governo da, então, capitaldo país. Após algumas reuniões, discussões e conversas, o educador acabou poraceitar o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal/RJ, to-mando posse em 17 jan. 1927.

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 147

suas considerações a partir de um núcleo comum de idéias, acredito queas três passagens possam ser relacionadas.

Meu caro Fernando,

Agradeço a V. a remessa, que me fez, do volume do inquérito [Azevedo, 1987].

Acho que V. prestou mais um serviço à educação nacional com a publicação

desse interessante material. Onze anos passados, não mudamos muito, quase

nada. É um documento que fica ao lado do “Manifesto” [Azevedo et al., 1932],

como expressão de uma época de evolução de idéias pedagógicas brasileiras

[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 09 dez. 1937, FA-Cp

Cx. 19, 41, ARQFA/IEB-USP].

[...] Tive a satisfação de verificar mais uma vez, na minha visita a Curitiba,

que ainda não conhecia, quão profunda tem sido a repercussão, no Brasil, da

campanha e da obra de renovação educacional de que temos tido a iniciativa

e a responsabilidade

[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 19 set. 1935, FA-Ca

Cx. 10A, 12, ARQFA/IEB-USP].

Meu querido Fernando:

Se não lhe tenho escrito, não é porque não tenha o pensamento em V. e em

sua obra, antes porque o tenho quase que obsessivamente. Desde que de

longe notei a possibilidade de que o tivéssemos por aqui, tenho vivido com a

preocupação de achar ou criar uma oportunidade. Creio já lhe haver dito que

é minha impressão não ser possível travar, no Brasil, a batalha educacional,

antes de vencermos a peleja do Distrito Federal. E de tudo temos já feito para

isso, sinto constantemente a necessidade de consolidação e amadurecimento

da obra ainda muito exposta a acidentes e tempestades.

A sua vinda para o Rio, parece-me, viria a ser uma ponte de apoio para a

cristalização de toda a obra. Dada, porém, a significação do seu nome, V. só

deveria vir para o Ministério, ou para a direção do Departamento Nacional, ou

para este que se acha entregue ao meu devotamento humilde sem prestígio.

Como sei, entretanto, que o que V. vê é a obra e não o cargo, tenho procu-

rado encaminhar uma solução que não é do meu gosto, mas que poderá ser

início de outras melhores.

Trata-se da remodelação do governo da cidade, que se cogita de constituir

em Secretarias de Estado.[...]

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148 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

O meu desejo, não precisaria dizê-lo, era que V. fosse o Secretário. Não

sendo isso possível: diretor-geral de Educação e Cultura Popular, diretoria

em que se enquadrariam todos os serviços de educação, exclusiva ou de orien-

tação e formação técnicas. [...]

Os diretores deveriam ser: Lourenço Filho, Delgado de Carvalho, J.C. Vi-

tal e Fernando de Azevedo – Quatro homens que manteriam, sob a sua lide-

rança, a obra educacional do Rio. Essa liderança estaria assegurada por lhe

estar confiada a execução dos serviços

[Carta de Anísio Teixeira para Fernando de Azevedo, 11 jan. 1934, FA-Cp

Cx. 32, 8, ARQFA/IEB-USP].

Apesar das circunstâncias específicas registradas nas três cartas, emum contexto reflexivo mais amplo, pode-se estabelecer um pano de fun-do comum a todas. Refiro-me ao fato de que tanto nas palavras de Aze-vedo quanto nas de Lourenço Filho e, por fim, nas entrelinhas das deAnísio Teixeira nota-se, mais uma vez, a maneira pela qual se percebi-am no movimento de reestruturação educacional brasileiro: componen-tes de uma “vanguarda reformadora”.

Identificando-se como os “combatentes da escola renovada”, LourençoFilho, Azevedo e Teixeira procuravam inscrever uma linha divisória que,de uma forma, se opunha ao que denominavam tradicionalismo do ensinobacharelesco brasileiro. E, de outra, afastava-se dos erros e iniciativas equi-vocadas de alguns outros grupos de educadores do país que, acerca do mo-vimento de renovação escolar, nada mais tinham do que senão uma visão“estreita e precária, tão freqüentes, da grande questão”.

1.1. Das concepções educacionais: ação,desempenho e pragmatismo

A oposição entre o ensino tradicional bacharelesco e os métodosadvindos dos preceitos escolanovistas foi uma constante no discurso deAzevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira a partir, principalmente, demeados da década de 1920. Defendendo uma renovação das práticas esaberes escolares, os alunos deviam, segundo os novos educadores, ocu-par uma posição ativa no processo de aprendizagem. Dessa feita, seria

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 149

da valorização das perguntas, curiosidades, olhares, experiências, ques-tionamentos infantis que os professores deveriam estabelecer as suaspráticas de aula.

E porque ativo, o conhecimento produzido por professores e alunosdevia ultrapassar os muros e portões dos estabelecimentos escolares parainstalar-se mesmo no coração do meio social brasileiro. Exploradores,crianças, enfermeiras, professores, diretores, serventes, inspetores, de-viam encarar as cidades como um núcleo gerador de novas e diferentesdescobertas. Excursões, desfiles, passeios, visitas monitoradas pelosespaços citadinos constituir-se-iam, dessa forma, como uma constante.A mística da renovação e da modernização das práticas e saberes esco-lares inscrevia-se, com essa apropriação do ambiente urbano, nos cor-pos daqueles portadores intrínsecos do futuro – as crianças e jovens – edos responsáveis pela concretização desses promissores futuros – seusmestres e professores.

Percebe-se, então, que diferentes códigos de vivência deviam serproduzidos pela sociedade brasileira que, necessariamente, tentavaimpingir em suas estruturas conturbadas – reflexo ainda de um recém-abolido passado escravocrata – um caráter de organização e funcionali-dade. À escola primária, segundo os escolanovistas do período, caberia,dentre outros, o papel de interpretar e adequar as crianças, familiares,conhecidos, professores, diretores, inspetores, serventes, enfermeiras,dentistas, enfim a população brasileira para as novas exigências sociais.Segundo Fernando de Azevedo:

A escola primária, com as suas oficinas de pequenas indústrias, na zona

urbana [...] vai assim ao encontro do que deveria ser, ao mesmo tempo que a

instrução, o seu fim principal: enraizar o operário às oficinas, [..] fazendo-os

compreender e amar, com o trabalho produtivo, a vida intensa das fábricas

[...]. Assim, a escola do trabalho, que se destina, como um vestíbulo do meio

social, à formação do indivíduo pela comunidade e para ela, além de criar o

espírito de disciplina e solidariedade social, constitui, com o trabalho reali-

zado no interesse cultural da comunidade, uma fonte de forças vivas e a

única educação popular capaz de nos dar a posse completa de nós [Azevedo,

1929, p. 43].

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Parágrafo singular no tocante à maneira enfática escolhida por Aze-vedo para referir-se ao modo pelo qual suas concepções educacionaisjogavam com as vidas dos “futuros cidadãos modernos” (as crianças eos jovens). Explicitando que o ideal de educação renovada não objetivavareduzir o ritmo acelerado oriundo de uma sociedade que procurava seconformar aos moldes capitalistas de desenvolvimento e modernização,mas sim disciplinar e canalizar tal velocidade na direção das cadências(também aceleradas) advindas do pulsar das fábricas e maquinarias,Azevedo acreditava ser possível não só educar e adequar as crianças aostempos fabris, mas como, também, fazê-las “compreender e amar, como trabalho produtivo, a vida intensa das fábricas”.

Higienizados, civilizados e extremamente disciplinados, encontra-va-se nas coreografias sincronizadas dos exercícios físicos das crianças,nos perfilamentos dos Pelotões de Saúde, nos modos bem-educados dosescolares e das enfermeiras escolares, o objetivo máximo a ser alcança-do por toda a população: a modernidade. Educar era prevenir. Prevenirera disciplinar, higienizar e civilizar. Disciplinar, higienizar e civilizarera modernizar.

Esse curso de profundas mudanças indicia a utilização de diferentesrepertórios teóricos a partir dos quais passavam a ser pensados os méto-dos e saberes escolares do período. Ao envolver e concentrar suas pro-posições em função da tentativa de pontuar-se um distanciamento entreos métodos e práticas da “velha escola tradicionalista”, os discursos dosnovos educadores aproximavam-se das concepções advindas dopragmatismo pedagógico. Afinal, as práticas e saberes apreendidos ematerializados nos bancos escolares deviam, necessariamente, consti-tuir-se como instrumentos a serviço da ação e do desempenho.

Acerca das influências do pragmatismo pedagógico no pensamentode Anísio Teixeira, os dizeres registrados de próprio punho em carta aFernando de Azevedo parecem ser reveladores. Externando a seu reme-tente as particularidades que marcaram as circunstâncias em que os doisse conheceram, assim escrevia Anísio:

Meu querido Fernando:

[...] Telefonei ao Agostini para me valer da sua memória, a fim de recordar o

dia do nosso primeiro encontro – recém-vindo eu dos Estados Unidos e da

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 151

Columbia University e V. em pleno vôo da reforma educacional do D. F. –

para, como diz, e eu confirmo de todo coração, o ‘começo de uma amizade

que não teve nem sofrerá desfalecimentos’. Não conseguimos localizar o dia

– mas, quanto ao mês, deve ter sido em fins de junho ou começo de julho e o

ano foi o de 1929 e não 1928, como V. julgava. Fiz no T. C. da Col. Univ. o

ano regular de 28/29, graduando-me nos últimos dias de maio. Viajei para o

Rio, pouco depois. Esse foi um período extraordinariamente significativo

em minha vida [...]. Tenho a impressão que foi nesse ano que me encontrei

comigo mesmo. O ano de estudos na Col. Univ., a descoberta de J. Dewey, a

revisão (ou conversão?) filosófica, e as grandes amizades intelectuais –

Lobato, Fernando, Lourenço, [...]

[Carta de Anísio Teixeira para Fernando de Azevedo, 15 fev. 1960, FA-Cp

Cx. 32A, 101, ARQFA/IEB-USP].

Já os vestígios do aludido pragmatismo pedagógico nas concepçõesde Lourenço Filho, também, podem ser perscrutados em carta enviadapara Azevedo. Afirmo isso, em razão, principalmente, das duas confe-rências que o educador teve oportunidade de proferir em Buenos Aires:a primeira, tecendo considerações acerca do “Sentido Americano de Edu-cação” e a segunda concentrando-se nas “Tendências da Educação Bra-sileira”. Tanto em uma quanto em outra, a forte influência dopragmatismo pedagógico norte-americano, via principalmente os traba-lhos de John Dewey, nas maneiras de ele articular os seus ideais dereestruturação educacional no país:

Deslocado do campo de ação o nosso querido Anísio, pelos mal-entendidos

que ainda subsistem, restamos ambos como os combatentes da escola renova-

da, não renovada apenas em método, mas em política. Minhas conferências em

Buenos Aires abordaram justamente também aspectos gerais de educação, so-

bretudo duas, que tiveram por tema “Sentido Americano de Educação” e “Ten-

dências da Educação Brasileira”

[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 12 nov. 1936, FA-Cp

Cx. 19, 39, ARQFA/IEB-USP].

Ainda no tocante às influências do pragmatismo pedagógico de JohnDewey na obra de Lourenço Filho, torna-se interessante referir-se às

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seguintes afirmações do educador brasileiro, firmadas em uma Confe-rência proferida, em 1939, na Escola do Estado Maior do Exército:

Como tão nitidamente escreveu John Dewey, a educação é uma regulação

do processo de participação na consciência social. E a acomodação da ativida-

de individual, sobre a base desta consciência social, é o único método seguro

de reconstrução dos costumes. Esta concepção leva na devida conta os ideais

individuais e sociais. É acertadamente individual, porque reconhece que a for-

mação do caráter é a única base legítima de uma vida digna. É social, porque

reconhece que esse caráter reto não se forma tão só por preceitos ou exorta-

ções, mas sim pela influência da vida coletiva sobre o indivíduo [...].

Toda a moderna pedagogia procura por isso, refletindo as inquieta-ções da política contemporânea, um mais equilibrado ajustamento dosinteresses do indivíduo com os interesses e os fins do Estado. É, porisso, uma pedagogia de fundo social. Despojá-la de seu conteúdo cole-tivo seria fazê-la perder todo e qualquer sentido. Justifica uma políticade educação, e aproxima estadistas e educadores, revivendo a máximade Marco Aurélio: “o que não é útil ao enxame não é útil à abelha”(Lourenço Filho, s.d., pp. 105-106).

Ou, ainda, as considerações colocadas por Alceu de Amoroso Limaem um livro jubilar organizado pela Associação Brasileira de Educaçãoem homenagem a Lourenço Filho. Afirmava o autor em finais da déca-da de 1950:

A obra teórica que vinha revelar ao Brasil o pragmatismo pedagógico,

inspirado acima de tudo em Dewey, [...] foi sem dúvida o livro famoso de

Lourenço Filho – “Introdução ao Estudo da Escola Nova” [Lourenço Filho,

1930], que é de 1929 e constitui um dos livros-chaves da nossa cultura con-

temporânea [Amoroso Lima em Associação Brasileira de Educação, 1957/

1958, pp. 176-177].

De posse das considerações dos dois educadores que se enxerga-vam como integrantes da “vanguarda reformadora”, no que se atine aosaspectos educacionais brasileiros, acredito ser possível chegar até o ponto

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 153

que pretendia sublinhar. Como Anísio Teixeira e Lourenço Filho reco-nhecem e Amoroso Lima reafirma, a influência da pedagogia e culturanorte-americanas em seus ideais educacionais constituiu-se como umaconstante a partir, principalmente, de meados da década de 1920.

Dialogando, incessantemente, com o pragmatismo pedagógico deDewey, os escolanovistas defendiam um afastamento da concepção do,por assim dizer, pensar e aprender pelo simples fato de pensar e apren-der (principal característica da escola-bacharelesca que, segundo osescolanovistas, contribuiu para que o processo de ensino e aprendiza-gem se tornasse, cada vez mais, desinteressante, obsoleto e enfadonho).Ao contrário, os novos educadores apregoavam que a educação devia,impreterivelmente, se balizar no pensar e aprender conjungadamenteao fazer e experimentar (escola ativa). É a partir desse quadro de inter-pretações que, acredito, também, se possa buscar um sentido para asseguintes formulações de Fernando de Azevedo:

O ideal que a lei do ensino confia ao professorado para ser transmitido às

novas gerações e para o qual converge todo o plano da organização escolar é

o ideal de ação: o espírito de iniciativa a consciência da necessidade do es-

forço para se afirmar na vida, o gosto, o hábito e a técnica do trabalho e o

respeito à personalidade alheia pelo sentimento e pelo hábito do trabalho em

cooperação. É o ideal da Escola Nova, que, segundo a concepção social que

a inspira, se pode encarar pelos seus três aspectos: 1o. Escola Única; 2o. Es-

cola de Trabalho; 3o. Escola da Comunidade. Todo indivíduo numa democra-

cia social deve ter uma base de educação comum para diversificações mate-

riais, que serão operadas nas escolas profissionais, rigorosamente articuladas

na escola primária. Entre uma e a outra, atuarão como cursos ocasionais os

complementares e anexos, destinados a completar a educação fundamental,

indicando o melhor indivíduo para cada ocupação e a melhor ocupação para

cada indivíduo.

A escola primária prepara pelo trabalho e para o trabalho em geral; a esco-

la vocacional experimenta e seleciona; a escola profissional especializa, com-

pletando a doutrina de ação e dando a cada aluno a técnica, a arte e a higiene

dum ofício determinado ou dum grupo de ofícios correlatos [...] [Azevedo

apud Bernárdez, 27 mar. 1930].

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Pelos dizeres, parece ser clara a conotação pressuposta por Fernandode Azevedo de que a escola tinha que funcionar primeiramente para ocorpo docente e discente – mas tendo em vistas também o meio social –como um laboratório de preparação para a vida moderna. E era justa-mente a partir dessa relação que se articulavam, também, as preocupa-ções por parte dos responsáveis pelo movimento de renovação escolar,referentes à modelação e adequação dos novos trabalhadores, já quepara a superação do atraso econômico e industrial da nação – entraves àmodernidade e ao desenvolvimento – era necessário um processo de(re)significação do trabalho. Isto é, mais do que a tentativa de estabele-cer nos trabalhadores, em relação aos seus ofícios, vínculos de moralidadee dependências, o pretendido, agora, era acrescentar a estas duas inicia-tivas o fator produtividade. Em outros termos, se o objetivo a ser alcan-çado era o de se aperfeiçoar e qualificar, cada vez mais, o mercado detrabalho brasileiro, nada mais coerente do que a busca por um investi-mento naqueles que seriam os futuros integrantes desse mercado: ascrianças e os jovens.

[A Reforma] marcou, nos domínios da educação, um período revolucioná-

rio, não só pelas idéias francamente renovadoras que a inspiraram e que, por

ela, entraram em circulação, como pela fermentação de idéias que provocou

e pelo estado social que estabeleceu, de trepidação dos espíritos, de sôfregas

impaciências e de aspirações ardentes. Nenhuma outra, de fato, até 1930,

imprimiu ao nosso sistema de educação uma direção social, tanto quanto

nacionalista, mais vigorosa, nem levou mais em conta, no conjunto como

nos seus detalhes, a função social da escola; nenhuma outra atendeu mais ao

enriquecimento interno da escola e ao alargamento de seu raio de ação; ne-

nhuma outra procurou articular mais estreitamente as atividades escolares

com a família, com os meios profissionais interessados, com a vida nacional

e as necessidades e condições do mundo moderno [Azevedo, 1964, 4. ed.,

p. 656].

Dessa panorâmica, assim como em Anísio Teixeira e Lourenço Fi-lho, pode-se indiciar influências da pedagogia e cultura norte-america-nas nas concepções reformistas e educacionais de Fernando de Azeve-

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do. Afinal, uma vez que atrelado ao fazer e experimentar, o conheci-mento escolar acabaria por reafirmar e introduzir na população ideaisde desempenho, individualismo, liberalismo. Por outros termos, deviaao conhecimento escolar renovado o encarregar-se pela introjeção deuma perspectiva pragmática nas necessidades, possibilidades e urgên-cias sociais do período.

Fazendo uso de um outro tipo de documentação do IEB-USP – asérie “Manuscritos de discursos e conferências” – que, também, privile-giei para desenvolver a análise, remeto-me, agora a dois outros conjun-tos de idéias de Azevedo que, espero, possam melhor apresentar a aludi-da interferência da pedagogia e cultura norte-americanas no seupensamento educacional. Desde já, cabe um esclarecimento: não foipossível identificar em minhas pesquisas o local e data da primeira con-ferência. Todavia, embora ciente de que tais referências se constituamcomo imprescindíveis para precisar o “momento intelectual” de Azeve-do, quando de seu pronunciamento, creio que as impressões contidas nacitação que se segue sejam dignas de maiores reflexões.

Em sua “Oração da Mestra”, Gabriela Mistral, grande poetisa do Chile e

uma das maiores da América, Prêmio Nobel de Literatura, começou com essas

admiráveis palavras: “Senhor: Tu que ensinaste, perdoa que eu ensine e que

tenha o nome de mestre, que tiveste na terra. Dá-me o amor exclusivo de mi-

nha escola: que mesmo a ânsia de beleza não seja capaz de roubar-lhe a minha

ternura de todos os instantes. Mestre, faze perdurável em mim o entusiasmo e

passageiro o desencanto”. A oração é longa e vale a pena ser lida, relida e

meditada por todos os que aspiram a alta missão de educadores. Mas bastam

estas palavras, pelas quais a iniciou, para compreendermos e apreciarmos o

sentido profundo dessa missão. É sempre com esse espírito – o espírito que

elas contém, que penso quando falo a alunos e professores [Azevedo. “O mes-

tre popular e seu papel”, MFA-DC, Cx. 1, 12 ARQFA/IEB-USP].

A única informação que consegui levantar, em termos de identifica-ção desse documento, foi uma inscrição – anotada por Azevedo – naparte superior do papel: “Colégio Adventista”. Nesse caminhar pode-seconsiderar que, muito provavelmente, Azevedo tenha dirigido essas pa-

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lavras para um grupo de professores e/ou alunos em um estabelecimen-to de ensino edificado/influenciado pelo movimento protestanteadventista. E, justamente por esse motivo, cautela devem ter aquelesque, de uma maneira ou de outra, se dispõem a perscrutar as idéias dodocumento. Já que não se pode perder de vista certa preocupação deAzevedo em, talvez, adequar a sua fala de acordo com as característicasdo público/ambiente onde proferiria o seu discurso.

No entanto, em que se pesem as ressalvas, as considerações firma-das por Azevedo no discurso, em um contexto analítico mais abrangen-te, ultrapassam as possíveis preocupações advindas da oratória. Afinal,como o educador sublinhava, a oração apresentada como introduçãopara a sua fala valia “ser lida, relida e meditada por todos os que aspi-ram a alta missão de educadores”.

Conforme destaques de Azevedo, a responsável pela composição da“Oração da Mestra” – Gabriela Mistral – era já uma pessoa amplamentereconhecida e premiada por sua obra: “grande poetisa do Chile e umadas maiores da América, Prêmio Nobel de Literatura”. Contudo, have-ria mais. Não obstante os reconhecimentos e premiações, alguns outrosdados biográficos de Mistral adquirem uma importância singular dentroda linha reflexiva privilegiada por este texto. Refiro-me, de início, aofato de ela ter sido professora rural durante, aproximadamente, 15 anose colaboradora em reformas educacionais no México. Os particularesda vida de Mistral tornam ainda mais significativa a introdução da con-ferência de Azevedo. Afinal, não só as preocupações de ordens rítmicas,simbólicas, metafóricas, lingüísticas e poéticas se estabeleceram comouma constante em sua vida, mas também as inquietações relacionadas aum aperfeiçoamento dos métodos e saberes escolares tomaram muitosanos de sua existência.

Em seguida, ainda no tocante a alguns dados biográficos de GabrielaMistral, faz-se necessário que um outro aspecto seja frisado: o profundosentimento religioso evangélico que a acompanhou, como fonte de ins-piração e referência para a sua poesia, até a sua morte em Hempstead(localidade próxima à Nova Iorque/EUA) em 1957. Volta com intensi-dade, nesse ponto, as ressalvas feitas acerca das possíveis preocupaçõese regras da oratória que, talvez, permeassem o pensamento de Azevedo,

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 157

quando da preparação do discurso. Como já se falou, tudo leva a crerque o seu pronunciamento se daria em um colégio edificado/influencia-do pelo movimento protestante adventista. Destarte, cabe insistir queestabelecer, aqui, um nexo causal simples entre os dizeres do discursocom o pensamento educacional de Azevedo – dando o primeiro comoprova cabal da total adesão do educador à pedagogia e cultura norte-americanas – constitui uma simplificação extremada, para não dizer gros-seira.

Entretanto, e isso que me estimulou a trazer esse discurso para otexto, acredito que os dados biográficos pontuais concernentes à Mistral– especificamente o fato de ela ter sido, além de poetisa, uma educadorae a sua forte crença evangélica – possam apontar alguns elementos dig-nos de relevância. Já que, segundo o próprio Azevedo, seria “semprecom esse espírito – o espírito que elas [as palavras contidas na “Oraçãoda Mestra”] contém, que penso quando falo a alunos e professores”. Nolugar de uma prova cabal, denoto um caráter de mais alguns vestígiosdas interferências da cultura e pedagogia norte-americanas no pensar efazer de Fernando de Azevedo.

Isso posto, passarei para um outro, e por hora último, documento doArquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP que utilizei para aelaboração do texto. Diferentemente do acontecido com o anterior, des-se discurso foi possível não só precisar a data, mas também, o local emotivo de seu pronunciamento. Trata-se de uma conferência proferidapor Azevedo, em dezembro de 1960, no Mackenzie em razão dos come-morativos de 90 anos de fundação do instituto7.

Os mesmos cuidados analíticos, que precederam as consideraçõestecidas acerca do documento anterior, devem ser evocados para que setorne passível de compreensão os pontos iluminados por esse discursode Azevedo. Isso em razão de que, tanto o ambiente quanto o público/

7. Vale esclarecer que trabalhei diretamente com os originais da conferência que,ainda, não se encontram organizados e seriados no Arquivo Pessoal de Fernandode Azevedo/IEB-USP, estando apenas acondicionados em uma Caixa-Arquivo coma seguinte etiqueta: “Em processo de organização”. Todavia, essa conferência foipublicada na íntegra em Azevedo (1960).

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participantes do evento acabariam, juntos, talvez, por interferir nas ma-neiras privilegiadas pelo educador de concatenar as impressões para asua explanação de idéias.

Nesse movimento, assim Azevedo iniciava a sua fala:

Quando, em 1870, a senhora George Chamberlain abriu em uma sala de

sua casa, em S. Paulo, pequena escola para crianças a que a intolerância

religiosa fechava as portas das escolas públicas, e seu marido, também norte-

americano, a instalou num ponto central da cidade, já animado do impulso

que tomou a iniciativa, empreendiam ambos uma obra, cujas origens vinham

marcadas tanto pela pureza do desejo quanto pela incerteza dos resultados de

sua ação. Nenhum deles, nenhum dos dois que constituíam o lar dos

Chamberlain, imaginou, nas suas esperanças e inquietações, nem podia sus-

peitar que a pequenina escola, logo batizada com o nome de Escola America-

na, viesse a transformar-se em modelo e fonte de inspiração de uma nova

política educacional, para ser, em menos de um século, o núcleo de uma

radiosa constelação de instituições escolares [Azevedo. “Uma interpretação

do Instituto Mackenzie”, p. 1, MFA-DC, Cx. “Em processo de organização”

ARQFA/IEB-USP].

Discorrendo acerca de pontos condizentes às circunstâncias que es-tiveram envolvidas no momento da fundação do Mackenzie, Azevedonessa passagem já sublinhava alguns elementos que se constituíram, notranscurso de sua conferência, como a linha central de sua leitura e in-terpretação da história do instituto. Objetivando pontuar as contribui-ções e inovações que o colégio americano trouxe ao sistema educacio-nal brasileiro, o educador afirmava que o colégio acabou por“transformar-se em modelo e fonte de inspiração de uma nova políticaeducacional, para ser, em menos de um século, o núcleo de uma radiosaconstelação de instituições escolares”.

Mais alguns parágrafos bastaram para que Azevedo explicitasse aspinceladas e combinações de cores privilegiadas para apresentar o seuquadro de interpretações da trajetória do Mackenzie em terras brasilei-ras. Por meio de um incessante jogo de luzes e sombras – as primeirasdispostas no sentido de realçar momentos e as segundas colocadas de

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maneira a tornar coerente a sua fala – o educador, a contar dos últimosanos do século XIX, voltava a insistir na grande contribuição prestadapelo instituto (no período denominado Escola Americana), no tocante aum sopro de renovação dos métodos e saberes das escolas primáriasbrasileiras. De acordo com os seus dizeres:

[...] as bases da educação primária [...], por mais de trinta anos, gravitou [...]

à volta da Escola Americana e de seus ideais. Foi uma atmosfera de vibração,

de entusiasmo e de fé, a que se criou na última década do século XIX, e tão

vigoroso o impulso inicial dado pelos criadores do sistema que em 1920,

quando irrompeu um novo movimento de renovação educacional, ainda res-

soavam os ecos dessas influências e a educação primária, já em decadência,

ainda palpitava das últimas vibrações do movimento renovador, que se de-

sencadeara, com o advento da República, e então já se distanciava de nós, de

mais de um quarto de século [idem, p. 2, ARQFA].

Dando prosseguimento à sua articulação de idéias, Azevedo aca-bou, dessa vez, por melhor precisar algumas das especificidades dosmétodos e maneiras de trabalhar-se o conhecimento privilegiados peloMackenzie. Vale dizer que se deva, acredito, conferir destaque especialàs considerações que se seguem, uma vez que nas suas entrelinhas pode-se perceber algumas das concepções educativas entendidas, por Azeve-do, como fundamentais para a articulação de um sistema educacional:

Mas todo esse sucesso e prestígio crescente da instituição que foi sendo

pacientemente construída e em cujo desenvolvimento não se encontra ruptu-

ra de continuidade, tem sua origem e por causa principal a novidade da men-

sagem e a eficácia dos métodos que trouxeram seus fundadores. Entre essas

idéias e técnicas importadas e as que orientavam a nossa precária organiza-

ção escolar, o contraste era vivo demais para não ser percebido de todos. Elas

provocaram um choque em nosso mundo pedagógico por implicarem uma

ruptura com a tradição escolar do país. Onde imperava a intolerância religio-

sa, ergueu-se o princípio de liberdade de consciência: as escolas estariam

abertas a todos sem discriminação de crenças e de culto. Em lugar da separa-

ção de meninos e meninas por classes, quando não por escolas diferentes, o

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que se procurou estabelecer, foi o regime de co-educação. Métodos que fa-

ziam mais apelo à inteligência do que à memória tomavam o lugar às práticas

habituais do estudo em voz alta e da decoração que convidavam ao sono nas

escolas. Em oposição ao dogmatismo reinante, ao espírito de rotina e à cris-

talização de processos, instalados nas escolas públicas, passaram à ordem do

dia a busca, a análise e a experimentação de novas técnicas de ensino. Em

vez de uma organização rígida baseada na autoridade e na disciplina, uma

organização fundada no princípio de liberdade, de compreensão mútua e de

colaboração [idem, p. 5, ARQFA].

Ensino laico, regime de co-educação, métodos e saberes escolarespautados na valorização da experimentação em detrimento àmemorização, no lugar da rigidez “baseada na disciplina e na autorida-de” a organização escolar devia balizar-se em “princípios de liberdade,de compreensão mútua e de colaboração”, enfim o tradicional e ultrapas-sado ensino bacharelesco substituído pelo ensino renovado e moderno.Aqui estão resumidas, no olhar de Azevedo, as inovações implementadaspelo Instituto Mackenzie ao sistema educacional primário brasileiro. Ecomo se nota, pode-se perceber nos aspectos destacados pelo educador,também, muitos dos princípios do movimento escolanovista.

Tais considerações tornam-se mais relevantes se levar-se em contaaquilo que, por enquanto, não foi explicitado. Afinal, até esse momentodo discurso, Azevedo não havia operado o entrelaçamento das inova-ções introduzidas pelo Mackenzie – aspectos pedagógicos – com as ca-racterísticas do modo de vida dos Estados Unidos – aspectos sociais eculturais. De tal modo que uma indagação surge, aqui, com grande in-tensidade: poder-se-ia entender as impressões favoráveis que Azevedoteceu, acerca das inovações nos métodos e saberes escolares empreendi-dos pelo Mackenzie, como indícios das interferências existentes da peda-gogia e cultura norte-americanas em seu pensamento educacional? Pararesponder tal indagação, remeto-me, outra vez, ao discurso de Azevedo:

Quando, pois, os republicanos de S. Paulo [...] bateram às portas da pri-

meira escola de vosso Instituto, sabiam muito bem o que estavam fazendo: à

mudança de regime devia seguir-se uma nova política de educação, e era

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vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas... 161

aqui certamente que tinham de inspirar-se para darem forma e vida à educa-

ção popular, ajustando-a às idéias e técnicas pedagógicas mais consentâneas

com as idéias e instituições democráticas.

Essas idéias que correspondiam ao tipo de vida e de educação na América,

vinham marcadas do espírito protestante no que tem de essencial, e um de

cujos traços característicos é um sentimento muito vivo da liberdade, – livre

exame, liberdade de consciência, de crítica e discussão. Se a esse traço fun-

damental se acrescentar o individualismo que lhe está intimamente ligado (e

o protestantismo representa a concepção individualista do cristianismo), po-

der-se-á compreender melhor a força com que esses princípios lhes penetra-

ram suas concepções políticas e educacionais, dando-lhes o tom, o estilo e a

direção que lhe são peculiares. Daí, a tendência de sua pedagogia, imbuída

do espírito experimental, atenta aos indivíduos e às suas diferenças e sempre

em busca, através de tentativas, malogros e sucessos, de técnicas novas para

ajustar a educação às necessidades e aptidões individuais. O segundo traço

do protestantismo é, ao mesmo tempo, um gosto muito marcado da ordem,

da força e da hierarquia, mas uma ordem que não se mantém senão com uma

moral solidamente estabelecida. [...] Atentai para o terceiro traço, donde vem

o seu realismo e senso prático, e que é a superação [...] do dualismo de pen-

samento e ação, e tereis uma outra tendência de sua concepção de vida e de

educação, em que teoria e prática, o fazer e o pensar “se complementam, se

inspiram e mutuamente se enriquecem”, impelindo-os a passar da prática à

teoria e, mais rapidamente, do pensamento à ação. Daí, o seu gosto acentua-

do das experiências, com que se põem à prova as teorias, e o caráter de seu

ensino, utilitário, prático, positivo.

Foi por protestantes que esta grande instituição se fundou, mas não foi

somente ou sobretudo a alunos protestantes que ela se destinou e procurou

servir, desde suas origens já distantes. Aberta a todos, sem distinção, ela

constitui uma das malhas mais firmes dessa vasta rede de instituições escola-

res com que os protestantes vêm trazendo notável contribuição ao desenvol-

vimento da educação nacional. [...]

Não se afastou muito de suas fontes primitivas o sistema de idéias que

resultou do movimento renovador, iniciado nos Estados Unidos por William

James, Parker, Stanley Hall e que teve em John Dewey, filósofo da educação,

a sua figura dominante. Longe de ter estabelecido, na América, uma ruptura

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com o passado, esse movimento, favorecido e fecundado pelo progresso das

ciências, retomou algumas das idéias principais da pedagogia protestante,

deu-lhes fundamentos mais sólidos e mais alto grau de precisão, no seu con-

junto teórico e em seus detalhes [idem, pp. 5-7, ARQFA].

A longa citação descortina alguns elementos que contribuem paraque se possa chegar até uma resposta à pergunta firmada. Na avaliaçãorealizada por Azevedo o espírito protestante com seus ideais de liberda-de, individualismo, pragmatismo pedagógico, o pensar atrelado ao fa-zer e ao experimentar deixara marcas tanto no tipo de vida quanto naeducação americana. E, fora, justamente, a retomada do espírito da pe-dagogia protestante, bem como a fundamentação mais sólida e precisado “conjunto teórico em seus detalhes” que funcionara como balizaspara a consubstanciação do movimento de renovação educacional que,ainda segundo Azevedo, encontrara em “John Dewey, filósofo da edu-cação, a sua figura dominante”.

Os trabalhos e estudos desenvolvidos por Dewey constituíram-secomo constantes referências teóricas no discurso dos escolanovistas apartir, principalmente, de meados da década de 1920. As influências dofilósofo da educação norte-americana nos pensamentos educacionaisde Anísio Teixeira e Lourenço Filho – integrantes da “vanguarda educa-cional” – já foram, espero, indiciadas. Resta, então, buscar vestígios daaludida influência no pensamento de Fernando de Azevedo.

Nesse sentido, o discurso em comemoração aos noventa anos defundação do Mackenzie torna-se significativo. Mas não só ele. As se-guintes reflexões do educador, tecidas nos capítulos dedicados à educa-ção nacional da obra A cultura brasileira (Azevedo, 1964, 4. ed.), acres-centam alguns outros vestígios que contribuem para uma melhorcompreensão dessa questão. Comentando acerca das diretrizes da Re-forma da Instrução/RJ (1927-1930), Azevedo assim destacava:

O que, por essa reforma, baseada numa concepção democrática da existên-

cia e no respeito da pessoa humana, se pretendeu alcançar, na capital do país,

era aquela “educação universal” a que se refere J. Dewey e que põe ao alcance

de todos as suas vantagens e satisfaz à imensa variedade das exigências sociais

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e das necessidades e aptidões individuais, ou, para empregar as suas palavras,

“o panorama de uma vida mais ampla e rica para o homem, em geral, uma vida

de maior liberdade e de iguais oportunidades para todos, a fim de que cada um

possa desenvolver-se e alcançar tudo o que possa chegar a ser” [idem, p. 657].

Pela leitura, nota-se que o pensamento educacional de Azevedo so-frera as interferências do pragmatismo pedagógico de Dewey. Como oeducador sublinha, a reforma da instrução/RJ teve como meta a seralcançada um dos conceitos elaborados pelo filósofo norte-americano,qual seja: “a educação universal”.

O reconhecimento, por parte de Azevedo, do diálogo estabelecidocom Dewey para a elaboração da Reforma da Instrução assume umamaior importância, se se buscar um esquadrinhamento da maneira parti-cular que redigira, nessa obra, suas impressões acerca da educação bra-sileira. A partir de um olhar panorâmico retrospectivo, Azevedo parecia,a todo o momento, preocupado em apontar as falhas, incoerências etradicionalismos que caracterizavam o sistema educacional brasileirodesde a proclamação da República. Velho e novo, tradicional e moder-no, espírito literário/livresco e motivação científica, por fim, escola ba-charelesca e escola nova. Foram esses os pares de oposição empregadospor Azevedo objetivando realçar o ideário escolanovista. E, mais preci-samente, o movimento de reformas educacionais de finais da década de1920. Sendo que o destaque especial, dentro do movimento, devia serconferido “pelas formidáveis forças morais que mobilizou, pelo movi-mento de idéias e de opinião que desencadeou, pela rapidez com que sedifundiu e, pela extensão do campo que abrangeu”, à reforma do ensinodo Distrito Federal (1927-1930) (idem, p. 648).

Em função dessa possível leitura dos capítulos dedicados à educa-ção brasileira do livro de Azevedo (Carvalho, 1989; 1998), pode-se in-terpretar o reconhecimento da importância dos trabalhos de Dewey emsuas concepções reformadoras a partir de um enfoque principal. De possedos indícios que puderam ser levantados do conjunto de correspondên-cias, do artigo de jornal, dos manuscritos de discursos e conferências edas fontes secundárias, tal enfoque se relaciona às interferências da pe-dagogia e cultura norte-americanas no movimento escolanovista; e, mais

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precisamente, no pensamento desse educador Fernando de Azevedo quese enxergava enquanto componente da “vanguarda de reformadoreseducacionais” do país.

Isso porque mesmo construindo uma argumentação de maneira quedestacasse a importância do escolanovismo e o papel que coube à Re-forma da Instrução de 1927-1930 dentro desse movimento, Azevedoacabou se referindo, por mais de uma vez, aos trabalhos do filósofonorte-americano. Vestígios de que por mais, por assim dizer, “tendenci-osa e parcial” que objetivasse ser sua narrativa, certos créditos não pu-deram deixar de ser prestados às contribuições de outros pensadoreseducacionais, como foi o caso de John Dewey.

Dessa perspectiva, mais algumas questões podem ser perscrutadasnas seguintes colocações de Azevedo, pontuadas, também, n’A culturabrasileira. Externando suas impressões concernentes às influências dapedagogia norte-americana no momento educacional brasileiro de finaisdos anos de 1920 e início dos de 1930, Azevedo assim se expressava:

No Rio de Janeiro, Anísio Teixeira, chegado ainda recentemente da América

do Norte e, em São Paulo, o autor desta obra procuravam, em grandes planos

de reformas, orgânicas e robustas, injetar na realidade tudo o que, naquele

momento, já pudesse suportar de sua doutrina e de seus princípios. Foi pela

ação vigorosa de Anísio Teixeira que se acentuaram, na política escolar do

Distrito Federal, as influências das idéias e técnicas pedagógicas norte-ameri-

canas, já enunciadas na reforma de 1928 [...] [Azevedo, 1964, 4. ed., p. 673].

Se, na passagem, mais uma vez, Azevedo ressaltava que “as influên-cias das idéias e técnicas pedagógicas norte-americanas” já se encontra-vam enunciadas na Reforma da Instrução que promovera no, então, Dis-trito Federal, a “nota de rodapé” elaborada para complementar essescomentários seria, ainda mais, esclarecedora. Assim, dada a relevânciadas idéias para uma maior apreciação de aspectos do pensamento deAzevedo, opto por reproduzi-la na íntegra:

As influências do pragmatismo e das idéias norte-americanas sobre a cor-

rente mais avançada do pensamento educacional foram tão preponderantes

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que a muitos pareceu a “educação nova” um caso especificamente america-

no ou um produto da civilização que se vem formando nos Estados Unidos.

Entretanto, como pondera P. Fauconnet, “não seria acertado fazer-se da edu-

cação nova um caso puramente americano, nem mesmo anglo-saxônico, vis-

to que a Alemanha se coloca à testa da lista (refere-se o autor citado à 2ª

Conferência de Locarno) e a Suíça românica oferece à Liga (Liga Internacio-

nal de Educação Nova) alguns de seus chefes. Porque concordam com essa

pedagogia revolucionária países de civilização e de cultura tão diferentes,

como a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos, ao passo que outros

países como a França, mais parecem ser-lhe refratários? Procurarão eles, no

fundo e pela mesma razão, a mesma coisa? Seria esse um belo motivo de

pesquisa para sociólogos competentes. Em todo o caso, não se poderá ver na

educação nova a manifestação exclusiva de um temperamento nacional. A

influência dos Estados Unidos é incontestável não somente porque abundam

em experiências e planos; é preciso não esquecer todavia que o pensamento

poderoso de J. Dewey foi uma das fontes do movimento. Será então forçoso

dizer-se que o mundo tende a americanizar-se? Vai nisso alguma verdade. Na

França encontrar-se-ão facilmente adversários da educação nova, os quais

suporão legítimas as suas resistências, defendendo a tradicional cultura lati-

na contra o pragmatismo juvenil dos americanos. Resta explicar porque paí-

ses de velha cultura original, como a Inglaterra e a Alemanha, são seduzidos

pelo americanismo. O bom êxito das idéias novas não depende apenas, pen-

so eu, da hegemonia dos Estados Unidos no mundo: há outras razões mais

profundas, mais humanas; não é uma moda apenas” [Venâncio Filho, Fran-

cisco, 1941 apud Azevedo, 1964, 4. ed., p. 673, nota de rodapé n. 19].

Segundo Azevedo, foram tantas as interferências do pragmatismopedagógico e da cultura norte-americanas nas tentativas de reestruturaçãodos métodos e saberes escolares pautadas no ideário escolanovista que “amuitos pareceu a ‘educação nova’ um caso especificamente americano ouum produto da civilização que se vem formando nos Estados Unidos”.Uma conjunção coordenativa adversativa (“Entretanto”) marcou no textoo início de seu diálogo com P. Fauconnet. Justificava-se o seu emprego.Afinal, para Fauconnet, “não seria acertado fazer-se da educação novaum caso puramente americano”, uma vez que não se podia desconsiderar

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as grandes contribuições que países como a Alemanha, Suíça e Inglaterraderam para os debates acerca do movimento de renovação escolar.

Todavia, ainda que destacando a participação de educadores ale-mães, suíços e ingleses, era o próprio Fauconnet que algumas linhasadiante afirmava que “A influência dos Estados Unidos [no movimentopela educação nova] é incontestável não somente porque abundam emexperiências e planos; é preciso não esquecer todavia que o pensamentopoderoso de J. Dewey foi uma das fontes do movimento”. Para, emseguida se perguntar: “Será então forçoso dizer-se que o mundo tende aamericanizar-se?”. E fechar as suas idéias com a seguinte resposta: “Vainisso alguma verdade”.

Logo, nota-se que ao se remeter às impressões de Fauconnet, acercadas interferências norte-americanas nas concepções escolanovistas, Aze-vedo nada mais fez do que não reafirmar que elas se constituíam comouma constante. Haja visto que, embora destacando a colaboração deoutros países no movimento de renovação escolar, Fauconnet em mo-mento algum contestava a liderança desenvolvida pelos Estados Uni-dos. Mais ainda. Chegava, até mesmo, à conclusão de que, em certosentido, “o mundo tende[ria] a americanizar-se”.

Em que se teçam as considerações, penso que o percurso trilhadoaté o momento tenha servido para apontar para as possíveis influênciasda cultura e pedagogia norte-americanas no pensamento educacional deFernando de Azevedo a partir das fontes selecionadas. Inserido que es-tava, de um lado, no movimento de renovação escolar e, de outro, con-ferindo à sua atuação político e administrativa, junto a alguns outroseducadores (como Lourenço Filho e Anísio Teixeira) a conotação de“vanguarda reformadora”, Azevedo não tinha como não se deixar in-fluenciar por esse momento em que o país sofria interferências, em ter-mos de cultura e pedagogia, dos Estados Unidos. Uma realidade já for-temente prenunciada a partir, principalmente de meados da década de1870 – período em que se assiste à instalação de escolas de confissãoprotestante no Brasil –, que deixaria as suas marcas por todo o restantedo século XIX e primeiras décadas do XX (Hilsdorf [Barbanti], 1977).

Nesse quadro, como Azevedo atesta em seu discurso em homena-gem aos 90 anos de fundação do Instituto Mackenzie, o sopro de reno-

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vação que eclodira em meados da década de 1920 e que teve em JohnDewey um dos seus principais teóricos “Longe de ter estabelecido [...]uma ruptura com o passado [...] retomou algumas das idéias principaisda pedagogia protestante, deu-lhes fundamentos mais sólidos e maisalto grau de precisão, no seu conjunto teórico e em seus detalhes”.

Sendo assim, pode-se pontuar, à guisa de conclusão, que aoentrecruzar uma documentação, ainda pouco trabalhada – a correspon-dência de Azevedo e Lourenço Filho e o discurso pronunciado pelo edu-cador no Mackenzie –, ou mesmo inédita – no caso da conferência rea-lizada no Colégio Adventista –, com fontes que já foram analisadas poroutros pesquisadores, o que pretendia era fornecer novas pistas paraaqueles que se interessam pela vida e obra do educador Fernando deAzevedo. Longe de se constituírem como uma pintura acabada, esperoque minhas análises e reflexões tenham servido para, quem sabe, desta-car mais alguns aspectos do complexo mosaico de discursos e de repre-sentações que acompanhou o desenrolar do movimento escolanovistaem terras brasileiras. Todavia – como já dei a entender quando das con-siderações acerca dos discursos –, o trabalho com essa documentaçãodeve ser precedido de alguns cuidados, por parte daqueles que se dis-põem a analisá-la. O próximo tópico procurará versar, justamente, so-bre os cuidados analíticos que tive ao lidar com a documentação cons-tante ao Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP.

2. As cartas e manuscritos de discursos econferências de Fernando de Azevedo comodocumentos históricos: uma crítica necessária8

A historiografia inevitavelmente ingressada em sua eraepistemológica, fecha definitivamente a era da identidade, a

memória é inelutavelmente tragada pela história, não existe maisum homem-memória, em si mesmo, mas um lugar de memória.

(PIERRE NORA)

8. Devo destacar que para a elaboração deste tópico apropriei-me de muitas das ques-tões discutidas por Diana Gonçalves Vidal em seu artigo (Vidal, 2001).

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Enfocar aspectos do pensamento educacional de Fernando de Aze-vedo tendo como objetos de investigação, também, parte de sua corres-pondência pessoal e os seus manuscritos de discursos e conferênciasobriga-me, de certo modo, a explicitar as maneiras privilegiadas de en-trada a essa documentação. Afinal, como destaca Jacques Le Goff,

O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma mon-

tagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o

produzira, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a

viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda

que pelo silêncio [Le Goff, 1992, p. 547].

Voltando à epígrafe do tópico, quando das afirmativas de Nora deque a “historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemo-lógica, fecha definitivamente a era da identidade, a memória é ineluta-velmente tragada pela história”, pode-se pontuar que a história ao entrarna sua era historiográfica distanciou-se da memória, e passou a questio-nar, inclusive, os documentos; uma vez que esses perderam as suas ca-racterísticas inerentes de prova para se constituírem, e aí sim dotados dealgum valor analítico, como monumentos. Para que o distanciamento setornasse possível, fez-se necessário uma reflexão do papel que era de-signado aos documentos pelos historiadores. Nesse período de contí-nuos debates e reflexões concernentes aos “documentos históricos”,paulatinamente, foi ganhando força a idéia de que, no lugar de “deposi-tários” de uma pretensa memória, deviam aqueles que se dispõem ainterrogá-los, empreender-lhe um sentido de instrumentos de mediaçãonecessários para a construção e trabalho historiográfico.

Dessa forma, os historiadores passavam a delegar um certo estatutode “subjetividade” aos seus objetos de trabalho (os documentos). O pre-tendido era uma desconstrução das, chamadas, “fontes históricas”. Se,antes, as atenções dos profissionais da história, em relação aos docu-mentos, residiam num esforço para comprovar-se a “autenticidade dasfontes”, e uma vez que provada a origem, data, assinaturas etc., encara-vam as informações constantes às fontes enquanto “valores absolutos”,agora, para além dessas preocupações de ordem descritiva e cronológi-

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ca, deveriam, também, os historiadores concentrar-se nos, assim cha-mados, procedimentos de exclusão que se fazem presentes a toda e qual-quer produção discursiva.

Nesse sentido, tornava-se necessária a busca de um discernimentoentre a forma visível daquilo que se pretendeu perpassar e a formaenunciável estabelecida em função de cada momento histórico. Sendoque esse “momento histórico”, no qual as práticas discursivas estãoinseridas, devia ser encarado como um conjunto de domínios que inter-feriu no campo de formulação dos discursos, bem como no campo emque esses, os discursos, adquiriram as suas significações. Como conse-qüência, em conclusão, caberia aos historiadores procurar atentar paraas nuanças relacionais (intencionalidades, circunstâncias, relações depoder, objetivos etc.) que se faziam presentes no momento em que osregistros foram produzidos (Foucault, 1996, p. 9).

E é, precisamente, esse o quadro analítico que se deva, acredito,evocar para melhor precisar as considerações que extraí das cartas e dosdiscursos salvaguardados no Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP. Afinal, segundo reminiscências do educador:

As cartas que escrevi, a tantos e tantos [...] dispersaram-se e estão de posse

de seus destinatários ou de suas famílias [...]. [Dentre as cartas] que recebi,

as que guardei zelosamente por sua proveniência, pelas questões de que tra-

tavam e pelo zelo que revelavam de seus autores, de mim mesmo, ou dos

acontecimentos [...] já estão em lugar seguro, – e no mais adequado, que é o

Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo. [...] Foi um

querido amigo meu, Antônio Cândido, quem sugeriu a idéia de doação de

meus arquivos àquela instituição [...]. E para esse instituto foram, além de

muitas centenas de cartas, selecionadas entre as milhares que recebi [...] Mas

é tal a minha correspondência que, pouco mais de dois meses depois da en-

trega oficial de todo esse material epistolar e documentário [1970], já enca-

minhava para esse instituto dezenas de cartas a mais, escolhidas entre mais

de cem recebidas naquele período [Azevedo, 1971, pp. 231-232].

Como pode ser notado, Azevedo reconhece que empreendera umprocesso de seleção às suas cartas antes da doação de seus arquivos ao

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IEB-USP. Caberia, aqui, indagar quais foram os interesses que fizeramcom que, pela perspectiva de seu crivo, determinados vestígios, e nãooutros, recebessem o aval de “fatos históricos”.

Deve-se frisar que na maioria dos documentos que se refere à pes-soa de Fernando de Azevedo e, mais explicitamente, no seu livro dereminiscências, verifica-se um entrecruzamento de imagens que seinterpenetram compondo representações9. Tais representações enunciamuma pretensa tentativa instituinte, por parte de Azevedo, de “guardar”para a prosperidade um conjunto de lembranças comuns, de modo que aleitura dessas se relacionem com uma identidade que ele pretendia cons-truir de si mesmo10.

No tocante à seleção que Azevedo empregou à sua correspondênciapassiva, ao buscar-se uma crítica histórica das mesmas, faz-se necessá-ria uma análise em um nível diferente em relação, por exemplo, às remi-niscências registradas em seu livro História de minha vida (Azevedo,1971). Embora ambos domínios de memória apontem para uma tentati-va de construir e confirmar uma “história”, as cartas caracterizam-sepela reprodução de uma “voz interlocutora”. Mesmo que se considereque, de fato, Azevedo tenha retirado do conjunto de documentos doadosaqueles que “desfaziam” a imagem que o mesmo procurou construir desi, a “voz” que ecoa até os pesquisadores não é a do próprio, mas sim ade terceiros (remetentes).

Já no que concerne à correspondência ativa, apesar de a “voz” regis-trada nas cópias/rascunhos das cartas escritas por Azevedo caracterizar-se pela sua onipresença, deve-se relevar a intenção, por parte do doador,

9. De julho de 1997 a dezembro de 2000 desenvolvi, de um lado, trabalhos de organi-zação, higienização e seriação junto à documentação do Arquivo Pessoal deFernando de Azevedo/IEB-USP. E, de outro, pude dedicar-me à pesquisa “A Lin-guagem Jornalística e a Reforma Fernando de Azevedo”, em nível de iniciaçãocientífica (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP).Sendo assim, destaco que tive um contato direto com grande parte dessa massadocumental referente à vida e obra do educador.

10. Essa tentativa instituinte, espero ter demonstrado, também fica indiciada no capí-tulo que Azevedo dedica à educação nacional em seu livro A cultura brasileira.Pois, a todo momento, o educador interessa-se em destacar e enaltecer a importân-cia da Reforma da Instrução Pública (1927-1930) no movimento de renovação dosmétodos e saberes escolares do país.

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tanto no momento da escrita como no da conservação dos documentos.Assim, torna-se imprescindível interrogar o porquê de as cartas estaremdisponíveis aos pesquisadores.

Dessa perspectiva, buscar a compreensão de um determinado perío-do histórico fazendo-se uso, também, das lembranças dos participantesou pessoas contemporâneas – via correspondências, livros autobiográ-ficos, entrevistas, conferências etc. – significa não perder de vista o ca-ráter da subjetividade do discurso registrado por essas impressões. É apartir do imbricamento dessa memória individual com outras várias pers-pectivas sobre a época que o historiador apreende elementos para a suareflexão (Bernardi, 1993).

É preciso observar que, nas reminiscências, o tempo da memória é social,

não se resumindo em datas, mas nas correntes de pensamento coletivas, atra-

vés das quais ocorre o reencontro com o passado, refazendo-se, deste modo,

as lembranças [idem, p. 64].

Ainda no que se refere à utilização da correspondência pessoal en-quanto suporte documental para o desenvolvimento de uma análise his-tórica, penso que seja interessante fazer coro com as seguintes conside-rações de Luiz. F. B. Neves:

A carta constitui uma ambivalência; é a exterioridade de uma interioridade.

E ainda: é a exibição de uma invisibilidade. Materializa uma gama muito va-

riada e ampla de sentimentos e pensamentos. É a carta, uma forma de tornar

público o privado, de lançar, na sociedade o indivíduo [Neves, 1988, p. 191].

Sendo assim – tendo em vista as possíveis interferências do ambien-te, circunstância e público/participantes na forma escolhida por Azeve-do para expor as suas idéias nos originais de discursos elaborados paraserem proferidos no “Colégio Adventista” e no “Instituto Mackenzie” –, pareceu-me correto pontuar uma certa cautela no trato com as informa-ções advindas dos dois documentos. Não menos, parece-me ser precisodestacar a presença também nas cartas de um conjunto de circunstâncias,regras/rituais de escrita e acordos tácitos de sociabilidade que, possivel-

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mente, ocasionou interferências nas maneiras de os missivistas articula-rem suas idéias, relatos e impressões. Como alerta Paul Thompson:

[...] os historiadores [deveriam parar] para pensar até que ponto determinada

carta foi formulada, por quem a escreveu, para atender às expectativas de seu

imaginado destinatário, fosse este um inimigo político ou um amigo político,

ou um amante, ou, talvez, até mesmo, o fiscal do imposto de renda [Thompson,

1992, p. 142].

Tais considerações sugerem que uma dupla perspectiva analítica deveser empreendida para aquilo que foi/está registrado na série de missivastrocada entre os educadores. A primeira delas reside na tentativa de seenquadrar a correspondência entre amigos a partir de um olhar que tenhacomo foco de atenção as preocupações que, talvez, estiveram presentes,por parte do remetente, no momento da escrita. Elogios, impressões fa-voráveis, consonância de ideais adquirem, dessa forma, significadosoutros que não somente os registrados nas cartas.

A segunda perspectiva analítica a ser privilegiada no trato com asmissivas consiste nas diversas apropriações que poderiam ser feitas dasidéias firmadas, por parte do destinatário, uma vez recebidas as cartas.Um bom exemplo das diversificadas apropriações do escrito é a passa-gem transcrita como epígrafe para este artigo. Aquilo que, originalmen-te, Frota Pessoa endereçara a Lourenço Filho, indo parar nas mãos deum terceiro: Fernando de Azevedo.

As considerações tecidas – acerca da seleção que Azevedo imprimiraà sua documentação no momento da doação dos seus arquivos, dos parti-culares de um educador que foi, ao mesmo tempo, ator e produtor de suahistória dos constrangimentos e adequações que, possivelmente, interfe-riram na elaboração dos dois discursos utilizados e, por fim, das duasperspectivas que se constituem como imprescindíveis em uma análisehistórica que tenha como suporte documental, também, a correspondên-cia pessoal – propiciam as condições para que se possa rumar para umaconclusão. Uma vez que indícios de relacionamentos, circunstâncias emomentos acontecidos, será no entrelaçamento das informações advin-das desses objetos – documentação pessoal do arquivo, discursos e cor-

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respondência – com outras fontes e pesquisas sobre o período que estarãoestabelecidas as condições para que o trabalho do historiador possa serconstruído. E foi, justamente, na tentativa de estabelecer esse entrelaça-mento que empreendi os meus esforços para o desenvolvimento destareflexão. Como resultado? Uma leitura realizada tendo como base, tam-bém, parte do Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP. Comoencerramento? Um estímulo para que novas e diferentes leituras possamser produzidas a partir dessa documentação do educador.

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Recebimento: 15 de set. de 2004Aprovado: 13 de abr. de 2005

Modificado: 5 de maio de 2005

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A difusão da escola e aafirmação da sociedade burguesa

António Gomes Ferreira*

* Professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e investigador doCentro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra.

A escola deve ser entendida como uma instituição que serve um tempo determinado e quese configura em função das características dum determinado tempo. A sua emergência edifusão resultaram fundamentalmente da relação das elites com a tecnologia, vendo estatanto como instrumento produtor quanto como capacidade de controlar riqueza e poder.Na generalidade da Europa medieval as escolas estavam nas mãos dos clérigos e locali-zavam-se em mosteiros, catedrais e em igrejas paroquiais. Mas desde os séculos XII-XIII vemos avançar a criação de escolas laicas nas principais cidades europeias quepossuíam uma burguesia importante.Por razões que se cruzam com interesses religiosos, económicos e nacionalistas, as re-giões protestantes da Europa apresentam uma instrução popular mais generalizada queas regiões católicas. Em geral, os povos setentrionais avançaram mais cedo e com maisconvicção para a educação popular e mostraram-se mais capazes de atender às necessi-dades educativas motivadas pelo progresso científico e tecnológico.No entanto, essa não era sequer uma realidade que se visse generalizada nos paíseseuropeus nos fins do século XIX e inícios do seguinte. Embora a imposição da escolari-dade obrigatória se tivesse expandido de norte a sul da Europa, esta não se cumpriu deigual modo em todos os países. Mas mesmo quando o esforço da escolarização estevemais em conformidade com o ideário transnacional que promoveu a imposição da esco-laridade obrigatória isso nunca significou uma convicção igualitária.ESCOLARIZAÇÃO; SOCIEDADE BURGUESA; EDUCAÇÃO POPULAR; IGREJACATÓLICA; EDUCAÇÃO

School must be understood as an institution that serves a particular time and that confi-gures itself in function of the characteristics of a certain time. Its emergence and diffusionresulted essentially from the relationship of the elites with technology, seeing the latterboth as a productive instrument and as a mean to control richness and power.In most of medieval Europe schools were in the hands of clergy and were located inmonasteries, cathedrals, and parochial churches. But since XII-XIII centuries one seesthe implementation of non-church related schools in main European cities which heldan important bourgeoisie.

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For reasons that mix with religious, economic, and political interests, protestant regionsof Europe show a popular instruction more broadly generalized that the one found incatholic regions. In general, Setrentional people advanced earlier and with moreconviction towards popular education and showed a higher capacity to attend toeducational needs drived from scientific and technological progress.Nevertheless, this was not though a reality that could be seen generalized over theEuropean countries in the end of XIX century and begging of the XX. Although theimposition of compulsory education had expanded from the north to the south of Europe,it did not happen in the same way in all of the countries. Even when the efforts ofscholarization was more in conformity with the transnational ideary that promoted theimposition of compulsory education it never meant an egalitarian conviction.SCHOLARIZATION; SOCIETY BOURGEOIS; POPULAR EDUCATION; CATHOLICCHURCHES; EDUCATION

No início do século XXI, continuamos a ouvir falar da escola comoentidade mítica, em que todo o futuro civilizacional repousa. Em grandeparte, isso resulta dum discurso político que incorporou a ideia de mo-dernização a partir do pensamento racionalista e positivista que se de-senvolveu sobretudo nos últimos séculos. A escola apareceu como ainstituição que podia abrir as portas do conhecimento e, como tal, colo-cava as pessoas e os países no caminho do progresso. A acentuação naimportância da escola, que se traduziu, por exemplo, na determinaçãoda escolaridade obrigatória, favoreceu um discurso tão especialmentefavorável à generalização da escola, associando-a à promoção pessoal eao desenvolvimento da qualidade de vida, que de algum modo o despo-jou dum rigor analítico capaz de melhor explicitar o sentido e o grau depertinência da causa advogada. Daí que se fale tantas vezes de escolaem abstracto mesmo que sobre preocupações concretas. Hoje, comoontem, a retórica sobre a escola é, quase sempre, bastante generosa paracom o alcance educativo da referida instituição. O pensamento pedagó-gico, repartido em tendências de cariz mais ou menos conservadoras ouprogressistas, praticamente não encara a ausência da escola no desen-volvimento dum sistema educativo actual. Se algumas vozes têm causa-do incómodo ao saírem fora desse alinhamento, as suas propostas nãotêm sido consideradas viáveis, sendo, quando muito, compendiadas paraestudos mais ou menos diletantes e inconsequentes.

A escola apresenta-se, hoje, como uma instituição tão fundamentalque, por um lado, deve existir em todo o lugar em que existam jovens e,

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por outro, não é suposto que deixe de existir. A sua omnipresença e a suaimanência no imaginário educacional contemporâneo confere-lhe o es-tatuto de instituição chave da educação das crianças e adolescentes, ser-vindo, por isso, de qualificativo a um período da vida, designado poridade escolar. Na verdade, a escola assumiu na contemporaneidade umaimportância muito grande enquanto instância de iniciação intelectualadequada a uma modernidade florescente mas também como institui-ção socializadora, promovendo uma formação global tendente a incul-car valores e comportamentos convenientes a uma cultura dominante.

A generalização da compreensão da relevância social da escola deve-se em boa parte à aceitação da sua especial eficácia para o desenvolvi-mento de uma ordem cultural mais consentânea com a modernidade.Ela mostrou-se mais adequada que qualquer outra instituição às exigên-cias de formação requeridas por uma sociedade cada vez mais marcadapor uma dinâmica económica capitalista e/ou por uma burocracia admi-nistrativa cada vez mais controladora e sofisticada; ela revelou-se espe-cialmente interessante às configurações político-ideológicas empenha-das em difundir e consolidar uma ideologia que promovesse a coesãoentre indivíduos provenientes de grupos sociais e culturais diversos ecom interesses díspares, estabelecendo uma sintonia ou, pelo menos, aaceitação de princípios e de normas sociais orientadoras das relações,entre diferentes níveis de hierarquias e impondo símbolos e valorescivilizacionais caros às elites que sustentavam a consolidação das na-cionalidades.

A escola deve, pois, ser entendida como uma instituição que serveum tempo determinado e que se configura em função das característicasdum determinado tempo. Ela só existiu e existe como tem existido por-que se verificaram e verificam condições tecnológicas, económicas epolíticas que a tornaram necessária e insistem na sua manutenção, aindaque com concretizações bem diversas tal como propicia o jogo dosfactores que nelas influem. A sua emergência e difusão resultaram fun-damentalmente da relação das elites com a tecnologia, vendo essa tantocomo instrumento produtor quanto como capacidade de controlar ri-queza e poder. Por isso mesmo, a escola foi sempre concebida dentrodum quadro ideológico definido a partir da cultura compreendida pelas

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forças dominantes, sendo que essas, por sua vez, se estruturam a partirduma tradição, ou seja duma cultura legada pelas gerações anteriores.

A Igreja cristã, emergindo no contexto do Império Romano, em quea escola teve grande desenvolvimento, absorvera muito da capacidadeorganizacional, cultural e pedagógica desenvolvida na Antiguidade Clás-sica. Ela acabou por ser a herdeira dessa cultura e desse modelo organi-zacional, o que lhe conferiu um ascendente sobre os poderes políticosque se foram formando sobre o desmoronar do Império Romano. NumaEuropa dilacerada por conflitos, retalhada em muitos territórios de fron-teiras incertas, com populações inseguras e sujeitas à lei da força, a Igrejacatólica organizou-se procurando manter a ideia de unidade superior-mente dirigida por Roma, agindo sobre o mundo temporal a partir doascendente cultural que possuía e do poder coactivo que reconhecida-mente tinha sobre as crédulas consciências dos europeus de então.

Nesse mundo medieval em que a condição de cada um é determina-da pelas relações de domínio da terra e das pessoas e em que o poder seencontra disseminado pelos grandes senhores, a Igreja ocupa um lugarpreponderante (Burckhardt, 1971). Em primeiro lugar, ela é uma forçaeconómica muito importante. Deste modo, a Igreja integra-se nafeudalidade pelo lado económico e jurídico mas tem ainda o poder delhe fornecer recursos para a sua organização e de lhe conferir legitimi-dade e consistência ideológica. Há muito familiarizada com a lógica dopoder, tendo sabido adequar-se à evolução das sociedades saídas da frag-mentação do Império Romano, constituindo uma instituição organizadaem torno de hierarquias e integrada por clérigos socialmente muitoheterogéneos, a Igreja católica reconhece a conveniência duma socieda-de feudal dividida em três grandes grupos: o dos clérigos, a quem estavaconfiada a implementação da religião e dos grandes valores morais, odos grandes senhores, fundamentalmente encarregados de organizar asforças necessárias à defesa dos valores estabelecidos, e o dos servos,rendeiros e vilãos, a quem cabia assegurar a produção dos bens necessá-rios à subsistência de todos.

Olhando tanto do ponto de vista dos fundamentos filosóficos comoda real estrutura social, a sociedade apresentava-se estática. Cada umdevia viver na sua condição e cumprir o melhor possível a tarefa que lhe

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estava destinada. A instrução encontrava-se praticamente confinada aosclérigos, já que o resto da população, dedicando-se fundamentalmenteàs actividades militares e agrícolas, não precisava dela. Ao povo basta-va a formação religiosa. Com ela pretendia-se sobretudo uma apreensãointuitiva da divindade e uma espécie de condicionamento sistemáticoque provocasse como que uma aceitação involuntária dos princípios edos valores sociais e morais inseridos na doutrina da Igreja. Os meiosutilizados procuravam sobretudo impressionar: impressionar pela pala-vra por meio da pregação, impressionar pelo ritual e pelo poder que seassociava aos discursos e aos actos que os clérigos praticavam. A for-mação dos clérigos era importante para assegurar o funcionamento e aunidade da Igreja. Em geral, o ensino dos clérigos visa dotá-los de umacultura instrumental baseada no latim e num reportório escrito definidopela hierarquia da Igreja. Independentemente do pragmatismo que nun-ca deixou de estar presente, essa cultura orienta-se fundamentalmentepara a compreensão duma verdade revelada, para a explicação pelo en-contro com o divino, para uma abordagem essencialmente mística a partirde interpretações dos textos sagrados. Daí que, das tradicionais sete ar-tes liberais, muito poucos se interessem pelas disciplinas do quadrivium(geometria, aritmética, astronomia e música) e se dê, nas escolas cleri-cais, especial ênfase às do trivium e, em especial, à gramática. “Ela eraconsiderada como arte por excelência” (Durkheim, 1995, p. 58). Maisdo que propiciar uma instrução sofisticada, interessava formar clérigoscapazes de ser bons difusores da doutrina católica e fiéis executores davontade da Igreja de Roma. Apesar disso, os clérigos tornaram-se prati-camente os únicos a dominar a gramática e a escrita e, por isso, a tercondições para apoiar a burocracia laica quando essa precisou de rigoradministrativo.

Por sua vez, à Igreja deve-se a manutenção do ensino na EuropaOcidental. De facto, ainda que na Itália se tenham mantido escolas nãoreligiosas em várias cidades, onde se ensinava gramática e retórica masonde também podia haver espaço para o direito e a medicina e na Espanha(durante a ocupação muçulmana) também se ensinasse tanto as primei-ras letras como a gramática, a retórica, a dialéctica, a geometria, a músi-ca, a astronomia etc. (Pernill, 2001), na generalidade da Europa as esco-

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las estavam nas mãos dos clérigos e localizavam-se em mosteiros, cate-drais e em igrejas paroquiais. No entanto, o desenvolvimento do comér-cio e da cidade vai exigir um ensino mais adequado às novas exigên-cias. No início do século XIII, as cidades de certa importância têm umaescola. Mas a evolução não acontece ao mesmo ritmo em todas as re-giões e em todas as localidades. É fácil de compreender que os burgue-ses começassem por colocar os filhos nas escolas clericais que existiammas que com o tempo sentissem necessidade de lhes proporcionar umensino mais adequado à vida secular. A criação de escolas laicas, porvezes pagas pelos municípios, são um testemunho dessa vontade demudança pedagógica. Convém, contudo, não exagerar na generalizaçãodessas escolas. Dependendo de circunstâncias geográficas, econômi-cas, políticas e culturais que nem sempre se conjugam do mesmo modoe ao mesmo tempo, essas escolas dificilmente podem escapar a umacompreensão que releve a sua singularidade. Embora possa se destacaruma tendência para uma instrução mais pragmática e mais orientadapara a administração do que a que vinha sendo ministrada nas escolasclericais, que em alguns casos se começasse a valorizar até línguas vul-gares como o francês, a educação continuava sobretudo marcada pelaforça cultural da Igreja, tendo o latim como principal língua de referên-cia. A emergência das universidades medievais traduz bem esse poder.Várias delas tinham origem em escolas catedralícias; muitas se apoia-ram no reconhecimento papal; em geral, para além da filosofia, da me-dicina, do direito civil, acolhiam o ensino do direito canónico e da teo-logia, que eram saberes especialmente considerados; a matrizorganizadora do seu pensamento era profundamente cristã. Embora asuniversidades fossem consideradas instituições ao serviço da cristanda-de e tivessem sido bastante influentes na sua organização, foram-se gra-dualmente secularizando, acolhendo cada vez mais estudantes apenasinteressados nos benefícios materiais que a sua frequência devia possi-bilitar, o que indica quanto o conhecimento e a competência letrada eracada vez mais relevante para os não clérigos. A proibição, em 1254,pelo Papa Inocêncio IV, de o clero ensinar direito civil deve ter contri-buído bastante para o processo de secularização da universidade, pro-cesso que seria reforçado pelo fortalecimento do poder secular.

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Desde os séculos XII e XIII vemos, portanto, avançar a criação deescolas laicas nas principais cidades europeias que possuíam uma bur-guesia importante. Às cidades italianas juntaram-se as do norte da Ale-manha. Nas cidades hanseáticas fundam-se escolas mantidas pelos mu-nicípios e mais de acordo com os interesses burgueses, por vezes, contraa oposição da Igreja. Outras regiões europeias acompanham esse movi-mento. Nos Países Baixos foi possível uma expansão menos controver-sa em virtude da autonomia de que gozavam as cidades e de a Igrejapossuir aí um poder relativamente menor. Ao longo dos séculos seguin-tes foram-se espalhando essas escolas pela Europa à medida que a bur-guesia se afirmava. Estamos, pois, perante um fenómeno urbano e bur-guês. Isso não significa que a doutrina da Igreja esteja ausente mas tãosó que a iniciativa não pertence ao clero e que se olha a instrução comoforma de preparar para a acção. Em contrapartida, o campo ficou à mar-gem desse movimento. Para a maioria da população, além da aprendiza-gem da actividade profissional restava-lhe a formação religiosa e socialdinamizada pelo clero e estabelecida em conformidade com o calendá-rio e o ritual da Igreja.

A emergência e a generalização da escola secular na generalidadedo espaço europeu está, portanto, muito relacionada com o crescimentocomercial, com o desenvolvimento das cidades, com o aumento da bur-guesia e com a sua capacidade de impor-se como força social e política.Ela assume cada vez mais importância no Parlamento da Inglaterra, nosEstados Gerais de França, no governo de várias cidades italianas e deoutras regiões prósperas da Europa. Devendo o seu sucesso à acção,sabe que tem de ser dinâmica, que tem de se adequar às circunstânciasque encontra, que tem de ser organizada, que só pode ter sucesso se forintelectual e socialmente competente. Todavia, o sucesso não se distri-bui igualmente por todos os burgueses. Desde os últimos séculos daIdade Média que é clara a existência de homens de grande comércio aolado de pequenos comerciantes e artesãos. Os primeiros, por necessida-de de vincar a sua importância política e de mostrar a sua consistênciasociocultural, vão procurar dotar-se de uma formação clássica, de umasofisticação intelectual; os segundos tendem a buscar uma formaçãomais técnica, ou seja, mais voltada para o exercício da actividade pro-

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fissional. Para muitos desses basta a aprendizagem da leitura, da escritae do cálculo, competências fundamentais que os governos liberais doséculo XIX e XX se esforçarão por generalizar a toda a população.

Convém lembrar que esse desenvolvimento da escolarização tam-bém foi beneficiado por um conjunto de descobertas e invenções que seforam somando desde os finais da Idade Média e acentuando depois nasépocas seguintes. Apesar de estarmos numa época de grande revoluçãotecnológica, ainda não é difícil reconhecer a importância que teve tantoa descoberta, no século XIII, do processo de fabricação do papel quantoa invenção da imprensa. Com a imprensa, a difusão do conhecimento ea educação entravam num novo estádio de desenvolvimento. A rapidezcom que ela se espalhou por toda a Europa Ocidental traduz bem a rele-vância cultural que lhe foi reconhecida. Bem significativo da importân-cia da imprensa é o número de edições que conheceu o primeiro livrocompleto a sair do prelo, a Bíblia Latina, normalmente denominada deVulgata, nada menos que 92, entre 1456 e 1500. Saíram impressas tam-bém várias traduções da Bíblia em diversas regiões da Europa. Além daBíblia, outros textos religiosos tiveram um enorme sucesso editorial aolongo dos séculos XV e XVI. Vários desses textos religiosos serviramde apoio à aprendizagem da leitura e, consequentemente, contribuírampara a formação religiosa, moral e social dos que os liam. Paralelamentecresceu o interesse pelo estudo da matemática que, embora relacionadocom o desenvolvimento do comércio, foi certamente incrementado pe-las inovações que se deram também nesse domínio do saber. A introdu-ção dos algarismos árabes no fim do século XIII tornou a aprendizagemda matemática e principalmente o cálculo de grandes números muitomais fácil. A aritmética tornou-se mais acessível também com a aceita-ção da noção e do símbolo zero. A generalização desses conhecimentosdeveu-se em grande parte à actividade comercial mas, tal como aconte-ceu com os textos religiosos, ela acabou por se beneficiar muito com ainvenção da imprensa. A primeira aritmética impressa surgiu, em 1478,em Trevisco, próximo de Veneza, mas logo outras foram editadas naEuropa Central e Setentrional. Em Portugal, o primeiro livro de aritmé-tica foi publicado em 1519, e conheceu várias outras edições durante omesmo século.

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Um dos aspectos que reforçou o interesse pela generalização da es-cola foi a crescente aceitação das línguas vernáculas. Durante a IdadeMédia o homem culto tinha de dominar o latim para acompanhar a vidacultural e religiosa e de falar vernáculo nos assuntos do dia-a-dia. Nosfinais da Idade Média o uso do vernáculo começou a suscitar interessepor parte dos homens da Igreja e dos poderes seculares. Com o adventodo Renascimento veio o latim clássico que o afastava ainda mais dalíngua materna. Além disso, os povos teutónicos sempre sentiram umamaior dificuldade em aprender uma língua que não era aparentada coma sua. O comércio cada vez mais utilizava o vernáculo. Além disso, ofrancês, de uma língua da Corte, tornou-se, desde o século XIII, umalíngua muito requerida na actividade comercial. Nas escolas holande-sas, por exemplo, o francês e o vernáculo eram ensinados ainda antes daReforma. Nos séculos XV e, principalmente, XVI, deram-se passos de-cisivos na afirmação das línguas vernáculas. Um deles veio com a járeferida invenção da imprensa, especialmente com a edição da traduçãoda Bíblia e de textos relacionados com o conflito religioso (Elton, 1982);outros vieram com a catequização, com o aparecimento de literatura dequalidade, com o incentivo de intelectuais à aprendizagem da leitura apartir da língua materna, com a publicação de gramáticas de diferenteslínguas. Apesar disso, o latim permanecia uma língua importantíssima,dominando no mundo escolar, na filosofia e na diplomacia. De qualquermodo, era evidente que começava a ceder terreno às futuras línguasnacionais, tão caras à escola popular que se desenvolveu com a protecçãodo poder secular.

Esses acontecimentos sucederam-se num período intelectual deoptimismo e de confiança que se costuma denominar de Renascimentoe que podemos arrumar em duas tendências: uma científica e realista, eoutra humanista. A primeira está associada a um movimento positivistaque tem como nome grande Guilherme d’Ockham (1300-1350), adeptoduma ciência experimental; a segunda procurou responder aos proble-mas da sociedade mediante a leitura dos autores da Antiguidade Clássi-ca, mas acabou por confinar-se em compromissos que conciliavam oEvangelho com a disciplina de um Séneca e de um Cícero. A correntecientífica e realista não teve o desenvolvimento desejado. Todavia de-

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vemos sublinhar a relevância dos contributos de Copérnico, defensor daconcepção heliocêntrica, depois reafirmada por Galileu, Vesalius quedeu um grande contributo para a afirmação da Anatomia, Bernard Palissyque pode ser tido como o criador da História Natural. O Renascimentopode também ser interpretado a partir duma arrumação geográfica. Sementrar em grandes pormenores, pode-se diferenciar uma audaciosa Re-nascença Italiana, que emerge num contexto de forte desenvolvimentourbano e de agitação política, social e moral, de uma Renascença daEuropa do Norte mais conciliadora, que procura substituir as escolas doclero por escolas laicas capazes de proporcionar uma educação refinadadevotada ao culto das belas-letras (Burckhardt, 1983; Holmes, 1984). Aprimeira acompanha bem o gosto por uma vida de luxo ou, pelo menos,a valorização de um bem-estar terreno; a segunda desenvolve tambémum sentimento de liberdade e de responsabilidade individual que já nãose filia na tradição religiosa católica mas assenta na sabedoria da Anti-guidade. Contudo, deve ser sublinhado que o Renascimento é um movi-mento intelectual e estético elitista que, buscando uma verdade a partirdo conhecimento legado pela Antiguidade ou pela experiência, é inter-pretado apenas pelos que eram bem nascidos.

Não era fácil, contudo, explorar, aprofundar e generalizar as ideiascaracterísticas desse movimento sem fragilizar a compreensão cristã demundo. Essa dificuldade levou a que o Humanismo acabou por se enca-minhar para uma retórica sem ideias, para uma cultura de lugares co-muns traduzida num exercício de estilo. Entretanto, surge a Reforma e ainevitável reacção da Igreja católica, que se apropriam dessa cultura e aconsolidam. Ela parece mais adequada a um tempo que requer um re-gresso à ordem, à aceitação da hierarquia, à afirmação de verdades vei-culadas por instituições poderosas. Se num primeiro momento, a Refor-ma, influenciada pelo Humanismo, parece prometer um caminho deliberdade e de esclarecimento, depressa caiu num escolasticismo queemergiu do confessionalismo imposto por Lutero e Calvino. De facto,esses primeiros grandes líderes tinham defendido o direito de a pessoaseguir as suas próprias opiniões religiosas a partir das interpretaçõesque cada um fazia das Escrituras, mas, o interesse da regularidade, arepulsa à heresia, a aliança entre Igreja e Estado acabaram por determi-

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nar um caminho bem diferente (Braudel, 1989). O que sucedeu foi adefesa da perseguição de todos os que divergiam deles, uma não aceita-ção de ideias científicas que contrariassem as Escrituras, o currículo esco-lar foi formatado para corresponder às ideias que pretendiam inculcar.

É verdade que a Reforma foi favorável a uma instrução popular,mas isso deve-se em grande parte ao contexto geográfico e económicoem que envolveu o seu surgimento. Além de ela corresponder às neces-sidades inerentes às sociedades mais desenvolvidas, também foi enca-rada como uma forma de formação religiosa. Todavia, a instrução so-cialmente valorizada estava nas escolas latinas. A preocupação com aeloquência levou a exagerar o ensino da literatura clássica e, sobretudo,o do latim. O modelo a seguir era Cícero. Os jovens que frequentavamas escolas latinas deviam aprender as suas palavras e as suas expres-sões, deviam aprender a falar latim com a fluência e a elegância dogrande escritor clássico.

Do lado católico, o modelo é a pedagogia dos jesuítas. Eles, melhordo que ninguém, sabendo interpretar os anseios de uma nobreza moder-na e de uma burguesia ansiosa de reconhecimento e compreendendoque só por meio do controlo das classes dirigentes conseguiriam imporuma cultura e uma moral condizente com as determinações do Concíliode Trento, investiram seriamente no ensino, criando uma rede de colé-gios e uma organização pedagógica devidamente adaptada às novas exi-gências da sociedade (Durkheim, 1995). O objectivo último era fazerprevalecer a ideia de verdade absoluta, o que obviamente servia à causada ortodoxia católica e ao absolutismo régio. Na prática vão servir-se dohumanismo depurado que só tem sentido se o ambiente escolar perma-necer afastado das vicissitudes e das paixões da vida quotidiana.

O estudo das línguas antigas não é para pôr os alunos em contactocom a diversidade do pensamento da Antiguidade. Bem pelo contrário,servirá para os mergulhar num mundo idealizado, carregado de perso-nagens que representavam os grandes valores que se desejavam incul-car e visará também a favorecer a aquisição de habilidades linguísticascapazes de propiciar o conveniente desempenho na sociedade.

O latim é a grande língua, a língua do rigor e do saber, portanto,língua distinta que dá acesso à retórica, ao direito, às funções públicas e

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aos cargos políticos. É também a língua dos que sabem, dos quecategorizam e ordenam o mundo, dos que impõem e fundamentam aordem. O latim é língua de elite, uma língua que remete para o passadoe aprende-se por meio dum elevado número de regras e à força de mui-tos exercícios. É fundamentalmente em torno do latim que se desenvol-verá a retórica e ambas as matérias, conjuntamente com o internato,promoverão um ambiente pedagógico que sistematicamente apela à obe-diência a regras e a modelos, à evocação de figuras e de situações digni-ficantes, ao domínio da palavra e dos comportamentos.

A partir do momento em que a civilização ocidental começa a sofrera contínua pressão das transformações e em que as certezas do passadoe as explicações da religião se revelam frágeis, a busca de novas refe-rências culturais acaba por desaguar num humanismo menos subser-viente à Antiguidade e à retórica e mais favorável à análise de ideias.Paulatinamente, o mundo contemporâneo vai preocupar-se menos embuscar justificações e exemplos nessas personagens e nesses textos daAntiguidade e vai procurar apoiar-se mais numa racionalidade que tra-duza já uma percepção de mudança que se desenha em vários domíniosda sociedade.

No século XVII desenham-se os primeiros riscos de caminhos futu-ros (Delouche, 1993). No domínio da ciência, a geometria analítica deDescartes e o cálculo de Leibniz revolucionam a matemática, Galileu e,posteriormente, Newton a astronomia, numerosas invenções de instru-mentos novos como o telescópio, o microscópio composto, o barómetro,contribuíram enormemente para descobertas importantíssimas, a medi-cina é confrontada com a descoberta de Harvey sobre a circulação dosangue a par de outras descobertas de menor visibilidade. A filosofiapassa a ser dominada pelo racionalismo de Descartes mas o desenvolvi-mento do empirismo eleva as discussões sobre o método científico quetêm notório reflexo no pensamento pedagógico. A crença no valor daeducação põe sectores da sociedade mais progressistas e militantes ainvestir na instrução popular. Isso é mais evidente na maioria dos paísesda Europa Setentrional em que o princípio da tolerância religiosa foiaceite, dando oportunidade que grupos evangélicos minoritários e ou-tros encarassem a educação numa perspectiva caritativa. Os calvinistas,

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na sequência do sínodo de Dort (1618-1619), apostaram muito na ins-trução como forma de promover a educação religiosa. As resoluções doreferido sínodo estabeleciam uma educação religiosa no lar, nas igrejase nas escolas, tendo insistido para que essas fossem criadas em vilas ealdeias. Mas várias personalidades e instituições estão empenhadas nes-sa instrução popular, e há regiões da Holanda e da Alemanha que vêemser declarada a instrução obrigatória.

Embora mais forte na parte protestante da Europa, o interesse pelainstrução popular também existiu em algumas regiões católicas. O mo-vimento mais consistente foi protagonizado pelos Irmãos das EscolasCristãs. Essa ordem, criada por S. João Baptista de La Salle, em 1684,dedicou-se à instrução gratuita de crianças pobres do ensino elementar.O currículo compreendia a leitura, a escrita e a aritmética e também oensino de boas maneiras, o catecismo e as práticas religiosas. A ordemfoi aumentando gradualmente, estendeu-se por várias partes da Europae contribuiu para a instrução de centenas de milhares de alunos. Emgeral, o movimento para a educação popular era fundamentalmente ori-entado pela caridade cristã. Mas não era só a vontade de contribuir paraa valorização das competências instrumentais que estava presente nessaideia de caridade; era igualmente a vontade de salvar os filhos do povomiserável, corrompido pela imoralidade, pela ignorância, pelaindisciplina, por práticas pagãs e pecaminosas. A ideia fundamental erainstruir as crianças do povo na piedade, na obediência, nos princípios dadoutrina cristã e de as preparar para uma vida social e profissional den-tro da tradição familiar.

Por razões que se cruzam com interesses religiosos, económicos enacionalistas, as regiões protestantes da Europa apresentam uma instru-ção popular mais generalizada que as regiões católicas. Na Prússia, osanos imediatos que se seguiram à derrota de Napoleão assistiram a ummovimento reformador que teve também consequências pedagógicasevidentes. Sob a influência de intelectuais como Stein, Humboldt e Fichte,pretendeu-se regenerar a alma da nação lançando um sistema de educa-ção que atendesse a todas as crianças (Luzuriaga, 1985). Assim se criouum ensino elementar público e gratuito para crianças dos 6 aos 14 anos,inspirado no sistema pedagógico pestalozziano, que em breves anos fez

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desaparecer o analfabetismo. Não tardou que os ideais mais democráti-cos sofressem investidas da reacção que se seguiu ao Congresso de Vie-na. Agora mais do que regenerar a sociedade ganha relevo a preocupa-ção de organizar uma educação que forme o povo para a lealdade a umaordem estabelecida, valorizando ideais religiosos, nacionalistas e mili-tares. No início da década de trinta do século XIX, está perfeitamenteclaro que o ensino elementar não é o mesmo para todos. Até o fim daprimeira Guerra Mundial e o estabelecimento da República, a maioriadas crianças frequentavam a Volksschulen, mas os filhos das classesdirigentes eram formados em escolas preparatórias do ensino secundá-rio (Gomes, 1984). Essas escolas preparatórias tinham um currículo di-ferente do das escolas elementares, o que criava dificuldades de passa-gem ao ensino secundário a quem viesse das escolas elementares.

No ensino secundário, impõe-se o Gymnasium, instituição clássicaque tem como eixo fundamental do seu currículo latim, grego, matemá-tica. Essa era a escola preferida por quem queria seguir a universidade eingressar no espaço das profissões mais valorizadas socialmente. Noentanto, os progressos científicos e tecnológicos sentidos na Alemanhavão pressionar mudanças que obrigam a pequenos ajustamentos no Gi-násio (Gymnasium) e sobretudo à criação ou desenvolvimento de novostipos de escolas que vão ser alvo de controvérsia e de desconsideração.No entanto, a Oberrealschulen oferecia uma oportunidade de formaçãomais adequada a quem pretendia seguir profissões técnicas e comerciaissuperiores e a Realgymnasium, instituição comprometida com um cursocientífico moderno, vê crescer a sua importância nas últimas décadas doséculo XIX.

Nos países escandinavos, Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarcaseguiam-se as doutrinas luteranas e políticas educacionais próximas dasque se desenvolviam na Alemanha. Vendo bem, já no século XVIII elestinham conhecido esforços de expansão do ensino elementar (Johansson,1977). Ao longo do século XIX, a Finlândia conheceu o desenvolvi-mento de um dos melhores sistemas de educação elementar da Europa ea Dinamarca preocupou-se em elevar a educação dos operários por meiodo ensino secundário. Em geral, os povos setentrionais avançaram maiscedo e com mais convicção para a educação popular e mostraram-se

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mais capazes de atender às necessidades educativas motivadas pelo pro-gresso científico e tecnológico.

Na França, como na generalidade dos países católicos, o panoramaeducativo da segunda metade do século XVIII é bastante desolador. Noensino secundário, com a expulsão dos jesuítas, em 1764 (em Portugalaconteceu em 1759) gerou-se a confusão. O Estado não consegue orga-nizar uma instrução que corresponda à ideologia racionalista das Luzes.A França, apesar de melhor que os países da Península Ibérica e dasregiões do sul da Europa, em geral, não consegue que dez por cento dascrianças entre os 7 e 16 anos frequentem a escola. O analfabetismo deverondar dois terços da população. A maioria da população vive em zonasrurais e aí não têm condições para se instruírem. Mas essa realidade nãocausava escândalo entre muitos intelectuais da época (Goubert, 1969).De qualquer modo, a tendência para a secularização do ensino e para oestabelecimento de uma escola elementar gratuita vai ser fortementeacentuada com as reivindicações da época da Revolução. A Constitui-ção da República, em 1791, estabelece a organização de um sistema deinstrução pública, comum a todos os cidadãos e gratuito para os saberesindispensáveis a todos os homens. O generoso enunciado desse docu-mento não passou de uma intenção revolucionária durante muitosdecénios.

O ensino elementar até à década de 1830 estava numa situação decompleto descontrolo. O parlamento, em 1833, decide tomar medidasmas elas revelam pouca ousadia: torna obrigatória uma escola elemen-tar por cada comuna mas não eram gratuitas. Era evidente que não seapostava na escola elementar como instrumento de emancipação do povo.Como o ensino elementar era necessário ao funcionamento duma socie-dade moderna, devia-se providenciar que ele apenas se cingisse a forne-cer uma formação socialmente útil. Nesse sentido, a religião voltava aser importante e a figurar no currículo escolar (Rémond, 1989). Só já naseqüência da política da Terceira República a situação alterou-se pro-fundamente. Uma lei de 1882 determinou a freqüência obrigatória paratodas as crianças entre os 6 e os 13 anos, embora pudessem ser dispen-sadas aos 11 se tivessem obtido a aprovação mediante um exame. Atardia adesão da França à obrigatoriedade escolar e a forte ligação à

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Igreja do ensino elementar revelam que a burguesia francesa queria opovo submetido à ordem da ortodoxia católica. Curiosamente, pareciaquerer reivindicar para si o direito de livre discussão filosófica na ilusãode que os seus interesses os afastariam de teorias subversivas (Prost,1968). Na realidade, o ensino secundário tende a fornecer um saber clás-sico sólido inspirado por um liberalismo conservador, tendo comoobjectivo preparar os que deviam ocupar posições dirigentes. As medi-das tomadas no contexto político da Terceira República visavam aten-der a novas necessidades duma sociedade burguesa cada vez maismarcada pelo desenvolvimento tecnológico e pelos progressos da ciên-cia. Assim se devem compreender as alterações no ensino elementarcomo a preocupação com a formação profissional e a modernização doensino secundário (Léon, 1977). Todavia, apesar da maior abertura doensino secundário às ciências e às línguas modernas, são os estudosclássicos que ainda têm preponderância no acesso à universidade e aosprincipais cargos administrativos.

Na Inglaterra, a situação da educação apresenta-se com característi-cas particulares mas acaba por inscrever-se numa idêntica compreensãoda finalidade educativa. Embora não fosse exclusivo da Inglaterra, nãohá dúvida de que foi aí que se devolveu mais o ensino caritativo oubeneficente. Pode-se mesmo dizer que, durante o século XVIII, o esfor-ço na difusão da instrução se restringiu à vontade de particulares ousociedades empenhadas em propiciar ao povo a educação que entendi-am adequada às necessidades da sociedade e à posição social de cadaum. Entre as variadas iniciativas podemos distinguir as escolas domini-cais, destinadas aos filhos do povo que trabalhava durante a semana, asescolas pré-primárias, que pretendiam educar as crianças cujos pais seencontravam a trabalhar nas fábricas e as escolas fabris, que deviaminstruir durante parte das horas de trabalho os aprendizes. Nos iníciosdo século XIX era já evidente que a actividade caritativa e filantrópicanão conseguia corresponder a anseios e a necessidades emergentes numasociedade que regista acelerado desenvolvimento económico e indus-trial (Wardle, 1970). Os liberais tentam um movimento que leve ao esta-belecimento duma educação gratuita generalizada mas tal não deu re-sultado até ao início da década de trinta, devido à oposição dos Tories,

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que receavam que isso tornasse os trabalhadores insubordinados. Ape-sar de alguns pequenos progressos nas décadas seguintes em direcção àparticipação do Estado na instituição da escola pública, só com a chega-da do partido liberal ao poder lançaram-se as bases de um ensino ele-mentar generalizado em 1870 (Aldrich, 1982).

Enquanto se avançava muito lentamente para uma educação popu-lar generalizada, o ensino secundário permanecia apegado ao ideal deum humanismo clássico promovido pelas public schools. Na segundametade do século, uma comissão preconiza uma pequena modernizaçãodo plano de estudos, com a introdução das ciências, dos estudos sociaise das línguas modernas mas o ensino dessas grandes escolas continua avalorizar muito a componente clássica (idem). Como se constata facil-mente, este ensino secundário está muito vocacionado para formar aclasse dirigente do país. Na verdade, o que está em causa é a distinçãosocial pela dignificação cultural e isso é preocupação comum entre oselementos das classes superiores dos países europeus ocidentais.

Estamos chegados a um tempo em que as sociedades dos diferentespaíses da Europa Ocidental se organizam em função de uma racionali-dade laica baseada numa ciência positivista, na liberdade de pensamen-to, na capacidade de realização, na idéia de progresso. Chegados à tran-sição do século XIX para o século XX, a burguesia sustenta e participado poder mas hesita entre a cultura do passado e a dinâmica impostapelo progresso. A burguesia sabe, por experiência própria, que nada édefinitivo e uniforme. Mas também sabe que a sociedade burguesa pre-cisa de ordem e estabilidade e que os interesses divergentes que encerrapodem arruiná-la. Ela precisa, por isso, estar bem informada para agirem conformidade com o momento. Necessita sobretudo de dominar ossaberes que lhe asseguram a administração do poder. Ela sabe que acompetência é a qualidade chave do sucesso.

A escola tem sido fundamentalmente uma instituição cara à burgue-sia. Isso não significa que não tenha sido útil a outras forças sociais eque não tenha servido interesses contrários aos dos burgueses. De qual-quer modo, a sociedade burguesa não pode dispensar a escola e essatem sido, por vezes, uma medida da civilização burguesa.

É certo que durante a Idade Média boa parte da Europa Ocidental só

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conheceu a escola associada à Igreja e que essa a utilizou para formarclérigos. Mas a Igreja serve-se da escola menos como instrumento dedifusão religiosa e mais como entidade formadora de quadros necessá-rios à administração do poder. Sublinhe-se que a Igreja é uma organiza-ção complexa e tem necessidade de formar pessoas com competênciasdiversificadas. Em contrapartida, possuindo a Igreja um conjunto derecursos humanos bem formados, era natural que os utilizasse no ensinoe em escolas suas, mas dirigidas à população laica. A escola foi mesmoocasião de grandes períodos de convivência entre os interesses burgue-ses e os do cristianismo. Assim, quando digo que a escola é uma institui-ção implicada com o desenvolvimento da burguesia quero apenas relaci-onar o desenvolvimento da escolarização com o crescimento económicoe com o aumento da população burguesa e realçar as consequências queisso tem para a construção da racionalidade ocidental.

Como é evidente, a Igreja foi durante muitos séculos poderoso ins-trumento de uniformização cultural. Todavia, não fosse o desenvolvi-mento económico dinamizado pela crescente actividade comercial, cer-tamente, hoje teríamos um pensamento diferente. Até a interpretação docristianismo não seria a mesma. A concentração de burgueses nos cen-tros urbanos e a natureza da sua actividade obrigam à criação de escolaslaicas nas cidades, a novas e mais sofisticadas relações de poder, à ne-cessidade de novos funcionários, ao desenvolvimento das universida-des e do saber. Sem o incremento das trocas comerciais e do comérciointernacional não era fácil irromper o fulgor criativo que deu origem aoRenascimento e ao Humanismo. Seriam burgueses dinâmicos e disci-plinados interessados numa nova ordem moral que contribuíram paraconsolidar a Reforma.

É sobre esse crescendo do mundo burguês que se vai autonomizandoo pensamento político, filosófico e científico do religioso. A partir domomento em que a civilização ocidental começa a sofrer a contínuapressão das transformações e em que as certezas do passado e as expli-cações da religião se revelam frágeis, a busca de novas referências cul-turais acaba por desaguar numa racionalidade mais favorável à análisede ideias. O início dessa tendência pode ser já observada nosenciclopedistas e em propostas e planos de reformas educativas que se

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publicaram ao longo do século XVIII. Será, no entanto, a partir dacentúria seguinte, pese embora as contradições e os avanços e recuos doprocesso, que se desenvolvem condições para uma maior aceitação deidéias que servirão uma ideologia progressista caracterizada por opor-se ao dogma e ao fatalismo da religião e por pressupor uma confiançana natureza e nas capacidades humanas. Veja-se, por exemplo, como osliberalismos, o político e o econômico, promoveram a ideia de que oindivíduo não tem que ser definido pela condição social da família emque nasceu mas pela sua vontade e capacidade individual.

Mas tudo isso acontece de uma forma muito mais lenta do que aspropostas dos intelectuais fazem supor. Vimos que, na generalidadedos países da Europa Ocidental, ao longo do século XIX, se manteveuma organização escolar que tratava de forma desigual as crianças quevinham de meios sociais distintos. O mesmo aconteceria durante a pri-meira metade do século XX (Azevedo, 2000). Aos filhos das classestrabalhadoras estava, quando muito, reservado o ensino elementar, fi-cando para os mais ricos a freqüência do ensino secundário. A situaçãoagravava-se ainda quando se referia ao sexo feminino. Mesmo no sé-culo XIX, como salienta Prost, a maioria das principais leis escolaressó diz respeito aos rapazes. Não admira, portanto, que a freqüênciaescolar seja superior entre esses. Só ao longo do século XX foram-sedesfazendo todos os entraves que prejudicavam o acesso das raparigasà educação.

Se ignorarmos algumas propostas vindas de sectores intelectuaisprogressistas e alguma retórica revolucionária, vemos que não há von-tade de promover a igualdade no acesso à escola. Invocando-se, porvezes, a liberdade individual e um pragmatismo restritivo, no melhordos casos, dá-se a oportunidade de frequentar uma modesta escola ele-mentar próxima do local de residência. Mesmo em países que tinhamdecretado a frequência obrigatória da escola, não faltavam problemas aimpedir o seu cumprimento. Nos países do norte da Europa as criançasdas classes trabalhadoras tinham maior acesso à escola mas isso nãoobstava a que estivessem sujeitas a um ensino que apenas pretendia lhesfornecer os conhecimentos instrumentais adequados à condiçãoeconómica da família e uma formação moral e social que as deveria

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196 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

manter adaptadas à ordem vigente. Se nas sociedades feudais ou senho-riais uma pessoa via a sua condição ser definida pelo sangue dos proge-nitores, nas sociedades burguesas liberais ela era legitimada pela esco-laridade. A igualdade de direito, por vezes reforçada por algumagenialidade que acompanhava alguém saído da classe popular, legiti-mava a liderança burguesa da sociedade. A cada um competia desempe-nhar uma função segundo a sua capacidade e essa parecia ser definidapelo destino da condição social de origem. Na melhor das concepçõespolíticas, a instrução podia ser disponibilizada a todos mas nunca serigual para todos.

No entanto, essa não era sequer uma realidade que se visse genera-lizada nos países europeus nos fins do século XIX e inícios do seguinte.Embora a imposição da escolaridade obrigatória se tivesse expandidode norte a sul da Europa, essa não se cumpriu de igual modo em todosos países. A sua concretização esteve muito relacionada com as exigên-cias ditadas pelas necessidades da tecnologia produtiva e de governo.Mas mesmo quando o esforço da escolarização esteve mais em confor-midade com o ideário transnacional que promoveu a imposição da es-colaridade obrigatória isso nunca significou uma convicção igualitária.Como disse Andy Green, acreditava-se que era possível formar cadapessoa como um sujeito universal mas fazendo-o de um modo diferen-ciado de acordo com a classe e o sexo (Green, 1994, p. 10). Ainda queNóvoa, seguindo outros autores, insista que a escola de massas deva servista no quadro da afirmação dos Estados-nações considerando-a umdos principais dispositivos que conferiu identidade nacional,homogeneizando a cultura dos cidadãos dum território sobre o qual oEstado exerce autoridade (Nóvoa, 1998, pp. 88-92), devemos não es-quecer que essa nova concepção de organização política se impõe quan-do a tecnologia que suporta a burguesia dá a essa a capacidade de fazervaler os seus valores. Todavia, o nível tecnológico e a distribuição ecomposição da burguesia variava muito de país para país. Ora, isso ex-plica, pelo menos em parte, como diante dum quadro ideológicotransnacional favorável à expansão da escola aconteceram ritmos deconcretização bastante diferenciados. Em contrapartida, tal compreen-são coloca a escola como uma instituição que tem servido às forças

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A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa 197

sociais dominantes embora pareça ter sido sobretudo estrategicamenteencarada pela burguesia. Na verdade, essa consolida o seu projecto so-bre a expansão da escola e a escola generaliza-se em função das neces-sidades duma tecnologia produtiva e de governo que requeria habilida-des instrumentais e uma sintonia cultural que unisse os diferentes grupossociais conferindo a estabilidade e a capacidade necessária ao desenvol-vimento das actividades económicas. A escola fará a ligação entre opassado e o futuro, entre a tradição e a modernidade, entre a liberdadeindividual e o interesse nacional, entre a esperança de ascensão socialdo indivíduo e a ideia de progresso colectivo, dando um sentido laico àvida que se devia cumprir na terra. Mas, tal como o sistema social epolítico burguês, o sistema escolar será concebido de modo a que mui-tos, ou todos, sejam chamados a participar mas poucos sejam os esco-lhidos a liderar.

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Debates sobre o ensino damatemática na década de 1930

José Lourenço Rocha*

O propósito deste trabalho é situar o debate sobre o ensino da matemática do cursosecundário, travado na década de 1930, no contexto histórico no qual ele ocorreu, res-saltando-se a importância dada à conquista do controle da política educacional brasilei-ra pelos grupos que disputavam o poder na época. Assim, pretende-se dar uma visão decomo as discussões sobre os rumos da educação nacional reproduziram-se no âmbitoespecífico de uma disciplina, no caso, a matemática.ENSINO DA MATEMÁTICA; HISTÓRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA; HISTÓRIADA EDUCAÇÃO BRASILEIRA.

The intention of this work is to point out the debate on the education of the Mathematicsof the secondary schools, which occurred in the 1930s, in the historical context in whichit occurred, ahead of the importance given to the conquest of the control of the Brazilianeducational politics, for the groups that disputed the power at the time. Thus, it is intendedto give a vision of as the quarrels on the routes of national education was propagated inthe specific scope of one discipline, in the case, Mathematics.MATHEMATICS TEACHING; THE HISTORY OF MATHEMATICS TEACHING; THEHISTORY OF BRAZILIAN EDUCATION.

* Doutorado em educação. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Brasil. Bolsista da: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NívelSuperior (CAPES).

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1. Contexto histórico

A década de 1930 foi palco de uma disputa ideológica entre váriossetores da sociedade, com o objetivo de assumir o controle da políticaeducacional brasileira. Getúlio Vargas, para não perder as rédeas da si-tuação, sinalizava com várias atitudes, ainda no início dessa década,que demonstravam o grau de importância que seria dado por seu gover-no ao problema da educação, tais como: a criação do Ministério da Edu-cação e Cultura; a reforma dos níveis secundário e superior, empreendi-da por Francisco Campos, em que se tentou agradar os “escolanovistas”e os “católicos”; e ainda seu discurso, na abertura da Quarta Conferên-cia Nacional de Educação, patrocinada pela Associação Brasileira deEducação (ABE), em dezembro de 1931, no então Distrito Federal, emque solicitou aos conferencistas que “... fornecessem ao Governo Provi-sório ‘a fórmula feliz’, ‘o conceito de educação’ da nova política educa-cional” (Carvalho, 1998, p. 380, grifo meu).

Nessa época, dava-se grande destaque aos assuntos educacionais,pois se acreditava que “[...] pela educação, se formariam o caráter morale a competência profissional dos cidadãos, e que isto determinaria ofuturo da Nação” (Schwartzman et al., 2000, p. 19). Enfim, os gruposem disputa tinham a fé de que quem controlasse o sistema educacionaldo país seria capaz de moldar a “alma” humana, de acordo com os seuspróprios conceitos de certo ou errado, de bem ou de mal.

Sem se levar em conta os assuntos debatidos, além das diversasnuances de visão que existiam, até mesmo entre aliados, uma boa des-crição “a grosso modo” dos integrantes dessa disputa encontra-se naspalavras transcritas a seguir:

[...] os militares, que buscam, em nome da segurança nacional, interferir di-

retamente na política educacional no sentido de conformá-la à política mili-

tar do país; a igreja, que luta pela introdução e manutenção do ensino religio-

so nas escolas públicas e pela liberdade de ensino, enquanto [sic] garantia da

existência de suas escolas e, de forma mais ampla, pressiona pelo atendi-

mento de suas reivindicações por parte do Estado, e procura tirar o máximo

proveito do princípio de “colaboração recíproca” estabelecido pela Consti-

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 201

tuição de 1934; os educadores, que se esforçam por conduzir o sistema edu-

cacional brasileiro por caminhos novos, visando modernizá-lo e adequá-lo

às exigências do desenvolvimento do capitalismo; finalmente, o próprio Es-

tado, que aproveita ao máximo as divergências existentes, reconciliando-as

e arbitrando os conflitos, para atender aos diferentes grupos das classes do-

minantes, mas que, em última análise, procura colocar o sistema educacional

a serviço de sua política autoritária [Horta, 1994, p. 3, grifos meus]

Até o final dos anos de 1920, os educadores associados à ABE man-tiveram-se unidos em torno de alguns objetivos comuns, procurandoressaltar muito mais as semelhanças do que as diferenças que existiamentre suas idéias. Entretanto, no início da década de 1930, mais precisa-mente a partir da Quarta Conferência Nacional de Educação, rompeu-seesse equilíbrio e eles dividiram-se em duas grandes correntes opostas:os “pioneiros” e os “católicos”.

Os “pioneiros” assim se autodenominaram ao lançar o “Manifestodos Pioneiros da Educação Nova”, alguns meses após a Quarta Confe-rência Nacional de Educação (março de 1932). Nele, os defensores da“Escola Nova” tentavam responder aos apelos do Governo Provisório,no sentido de buscar a “fórmula feliz” a ser implementada na políticaeducacional brasileira, de modo que resolvesse os problemas que o paísenfrentava nessa área. Nessa conferência, não foi possível chegar a umacordo diante da cisão que se instalou em seu seio. Para Marta MariaChagas de Carvalho, a recusa de responder aos anseios de Getúlio Vargase Francisco Campos na Quarta Conferência representou a vitória de umaestratégia dos “escolanovistas”, uma vez que o grupo católico, que con-trolava a ABE desde 1929, ao que tudo indica, estava sintonizado com oMinistério da Educação, no sentido de avalizar, na assembléia de encer-ramento da Conferência, uma orientação que fosse favorável aos seusinteresses (Carvalho, 1999, pp. 18-19).

Embora essas correntes não fossem monolíticas, principalmente ados “pioneiros”, que aglomeravam uma grande variedade de visões dosrumos a serem tomados pelo sistema educacional brasileiro1, o que as

1. Entre os pioneiros que assinaram o manifesto estavam, por exemplo, LourençoFilho, que pretendia ter uma posição de “educador profissional”, tendo inclusive

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diferenciava era o fato de que os primeiros defendiam a laicidade doensino, a obrigatoriedade de o Estado assumir sua função educadora, aescola única, e tinham como proposta descentrar o ensino do professorpara centrá-lo no aluno, a fim de melhor prepará-lo para uma sociedadeem transformação; enquanto que os segundos, “católicos”, apoiavam amanutenção da dualidade e da orientação religiosa no ensino, a qualtinha sido conquistada com a Reforma Francisco Campos. Além disso,olhavam com desconfiança a intromissão do Estado na educação, umavez que possuíam um quase monopólio do ensino secundário, que teria,primordialmente, segundo sua própria visão, a finalidade básica de for-mar as elites dirigentes, por meio de uma educação humanista.

Essa divisão que se veio delineando com o passar do tempo e oacirramento dos debates levou à cisão desses dois grupos, a partir daQuinta Conferência de Educação, realizada no final de 1932, em Niterói,

[...] com o objetivo de apresentar subsídios para o anteprojeto da Constitui-

ção. Durante a conferência, e isso era esperado, as divergências entre os dois

grupos (católicos e escolanovistas) acentuaram-se de tal forma, a ponto de

impossibilitar qualquer tipo de entendimento. Nesta conferência houve pre-

dominância dos escolanovistas [Cunha, 1981, p. 93, grifo meu].

Os “pioneiros” passaram a ter o controle da ABE, o que provocou“[...] o êxodo dos católicos que, abandonando a ABE, reorganizaram-sena Confederação Católica Brasileira de Educação, num combate semtréguas contra os princípios firmados no Manifesto e seus defensores”(Carvalho, 1999, pp. 18-19).

A luta passaria, a partir de 1933, a ser travada na Assembléia Nacio-nal Constituinte2, instalada pelo chefe do Governo Provisório, em 10 denovembro daquele ano, caracterizada por pressões de ambas as tendên-cias, as quais encaminharam suas teses, sugestões e anteprojetos, relati-

cooperado com o Estado Novo; e Paschoal Lemme, que era um intelectual marxis-ta, simpatizante do PCB.

2. Uma boa síntese da discussão travada, na Assembléia Constituinte, entre as ten-dências em questão, encontra-se na obra de Cury, 1988, pp. 112-121.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 203

vos a educação e cultura, uma vez que era a referida assembléia o ins-trumento habilitado para organizar-se um novo Estado de Direito. Essasdisputas tornaram-se públicas por meio de manifestos, artigos em jor-nais e outras publicações.

A nova Constituição foi aprovada em 16 de julho de 1934, e era, decerta maneira, reflexo do equilíbrio de forças que ainda existia entre asduas tendências em disputa. Não ficou evidenciada naquela oportunidadea supremacia de nenhum dos grupos ideológicos sobre o outro, ou seja, abase de sustentação do governo provisório ainda era bastante heterogê-nea. Isso explica o fato de os dois grupos terem se sentido vencedores,com a promulgação da Constituição. Os “pioneiros” pelo fato de a

nova Constituição [...] ter atribuído a um Conselho Nacional de Educação a

competência e o dever de traçar o plano nacional de educação para ser apro-

vado pelo poder legislativo; e também por atribuir aos estados a competência

de organizar seus sistemas públicos de educação e ainda por consagrar a

educação como um direito de todos; pelas disposições relativas à gratuidade

do ensino. Discordavam os liberais em relação aos dispositivos que deram à

União o poder de reconhecer e fiscalizar o estabelecimento dos ensinos se-

cundário e superior, os quais contrariavam suas convicções descentralizadoras.

Além disso, a Carta de 1934 estabelecia que a União e os municípios deveri-

am aplicar nunca menos de dez por cento e, os Estados e o distrito federal,

nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, no desen-

volvimento da educação. Por tudo isso, a Constituição [...] ensejava, na opi-

nião de Fernando de Azevedo, a “o país entrar numa política nacional de

educação de conformidade com os postulados e as aspirações vitoriosas na

conferência de Niterói, em 1932, e no manifesto dos pioneiros, pela recons-

trução educacional do Brasil [Cunha, 1981, pp. 93-94].

Em contrapartida, os católicos

também aplaudiram a nova constituição porque foi feita em nome de Deus.

“Nós os representantes do Povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,

recebidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime

democrático, que assegure à nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-

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estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constitui-

ção dos Estados Unidos do Brasil” – era o preâmbulo da carta constitucional

de 1934. Não somente isso. Assegurava igualmente o ensino religioso facul-

tativo, que tinha dado ensejo a muitas controvérsias [idem, p. 94].

O fato descrito implica dizer que a luta continuaria por mais tempoainda, na tentativa de colocar-se em prática os dispositivos constitucio-nais referentes à política educacional brasileira. A controvérsia perma-neceu então na elaboração do Plano Nacional de Educação, mas antesde se analisar esse assunto, será feita uma breve referência às idéias deoutro grupo que tentou influenciar as linhas a serem seguidas na elabo-ração de uma política educacional brasileira – a classe militar.

Os militares dispunham de um projeto para a educação nacional, quefoi sendo gestado cautelosamente e, no início, apenas no âmbito restritodos quartéis. O desenvolvimento progressivo desse projeto educacionalteve, como ponto de partida, a tentativa de se neutralizar a “situação deindisciplina e fragmentação interna” em que se encontrava o exército, noinício da década de 1930, efeito de seu envolvimento na ação política.Para tanto, o exército foi substituindo a sua prática disciplinar, baseadaprimordialmente em punições físicas e castigos, por outra forma de ades-tramento, em que se utilizava de disciplinas a serem ensinadas, quais se-jam: a educação moral, a educação cívica, religiosa, familiar e a educaçãonacionalista, cujos conteúdos estavam alicerçados na “inculcação de prin-cípios de disciplina, obediência, organização, respeito à ordem e às insti-tuições”. É claro que, com esse conjunto de idéias, os militares aproxima-vam-se mais dos “católicos”, principalmente de sua ala mais conservadora,do que dos “escolanovistas” (Schwartzman et al., 2000, pp. 84-85).

Gustavo Capanema toma posse no Ministério da Educação e Saúde,em 26 de julho de 1934, substituindo Washington Pires, que ficara nolugar de Francisco Campos, o qual deixou o Ministério em setembro de1932 (idem, p. 64). Todavia, somente em 7 de dezembro de 1935, emuma reunião ministerial convocada por Getúlio Vargas – motivada pelarebelião de novembro de 1935, que ficou conhecida por “Intentona Co-munista” – o Plano Nacional de Educação retornou à pauta de discus-sões, por iniciativa de Gustavo Capanema, que o entendia como “solução

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para a falta de orientação e de disciplina existente na educação brasileira”e, logo a seguir, tomava a iniciativa de sair da teoria à prática na elabora-ção desse plano previsto na Constituição (Horta, 1994, pp. 150-151).

Logo a seguir, em janeiro de 1936, o ministro Capanema deu inícioàs providências nesse sentido, distribuindo um extenso questionário,organizado, sob sua direção, por um grupo de educadores, com o intuitode obter subsídios para a elaboração do Plano Nacional de Educação, aser encaminhado ao Poder Legislativo. Esse inquérito sobre a educaçãonacional foi encaminhado às Secretarias Estaduais de Educação, bemcomo às associações de educação, com o intuito de obter o apoio depolíticos, professores, jornalistas, escritores e sacerdotes, à política quebuscava implementar no Brasil, pois o questionário era orientado se-gundo uma posição de manter-se a educação a serviço da conservaçãoda ordem vigente (idem, p. 151; Schwartzman et al., 2000, p. 192).

É claro que todos os assuntos polêmicos quando da elaboração daConstituição de 1934 voltaram ao centro dos debates, sendo que os en-volvidos em tal polêmica quiseram impor seus pontos de vista na reda-ção final do referido plano, como confirma o trecho abaixo:

O questionário, impresso pela Imprensa Nacional sob a forma de um livreto,

intitula-se Questionário para um inquérito. As 213 perguntas inquiriam so-

bre todos os aspectos possíveis do ensino: princípios, finalidade, sentido,

organização, administração, burocracia, conteúdo, didática, metodologia,

disciplina, engenharia, tudo, enfim, que se fizesse necessário considerar para

a definição, montagem e funcionamento de um sistema educacional. As per-

guntas revelam a preocupação em refletir o debate corrente e, em alguns

casos, a intenção de fixar interpretações para alguns artigos polêmicos da

Constituição de 34 que poderiam afetar a ação educativa [...] [Schwartzman

et al., 2000, pp. 193-194].

Todas as contribuições angariadas por Gustavo Capanema foramencaminhadas ao Conselho Nacional de Educação (CNE), que haviasido criado em 1931, visto que esse órgão tinha sido definido pela Cons-tituição como responsável pela criação do Plano Nacional de Educação.Esse Conselho foi totalmente reorganizado em 1936, tendo sido instala-

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do de maneira solene em 16 de fevereiro de 1937, data em que foi inici-ada a feitura do citado plano, o qual teve sua redação final aprovada emplenário e foi entregue ao ministro Capanema em maio de 1937. Logo aseguir, foi repassado ao presidente Getúlio Vargas.

O plano foi então encaminhado ao Legislativo, ou seja, à Câmara dosDeputados, que, para examiná-lo, criou uma comissão especial, que rejei-tou a proposta de Capanema para sua votação em bloco, sem emendas. Oplano não chegou a ser votado, uma vez que sua tramitação lenta levou àtotal ausência de definições quando do golpe de estado, de 10 de novem-bro de 1937, que fechou o Congresso, constituindo-se em um dos perío-dos de repressão política no país (Horta, 1994, pp. 155-158).

O Plano Nacional de Educação foi então abortado antes de sua con-clusão, mas a luta pela supremacia na educação brasileira continuousendo travada nos bastidores e, ao invés de investir-se em um plano queabarcasse todas as áreas da educação nacional, as reformas começarama ser feitas por partes, dedicando-se separadamente aos níveis de ensi-no. É o caso, por exemplo, da Lei Orgânica do Ensino Secundário, de1942. Entretanto, a redemocratização do país, que culminou com a novaConstituição de 1946, interrompeu esse processo, sendo que as discus-sões foram retomadas até promulgação da Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (LDB), de 20 de dezembro de 1961.

É nesse contexto3, que deve ser entendido o debate em torno doensino secundário e mais especificamente das mudanças instituídas noensino da matemática secundária pela Reforma Francisco Campos.

2. Debate sobre o ensino da matemática:reações à Reforma Francisco Campos

As mudanças no ensino secundário impostas pela Reforma Francis-co Campos foram implementadas pelo decreto n. 19.890, de 18 de abril

3. Para uma visão mais profunda dos debates realizados sobre a educação, durante adécada de 1930 e início da de 1940, ver os livros de Horta (1994), Schwartzman etal. (2000), Cury (1988) e Cunha (1981), citados neste artigo.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 207

de 1931, e consolidadas por meio do decreto n. 21.241, de 4 de abril de1932. O principal objetivo dessas mudanças era o de ampliar a finalida-de do curso secundário, que deveria deixar de ser apenas um curso pro-pedêutico para ingresso nas faculdades, mas também e principalmentepossuir uma finalidade própria. Para isso, o curso passaria a ter seteanos, dividido em duas partes: a primeira de cinco anos, comum oufundamental, e a segunda, de dois anos, com finalidade de preparaçãopara as escolas superiores. Essa última parte subdividia-se em três se-ções, de acordo com os grupos de faculdades existentes na época: direi-to; medicina, odontologia e farmácia; e engenharia e arquitetura.

A Reforma Francisco Campos – com todos os seus méritos, princi-palmente o de ter sido uma verdadeira reforma, de extensão nacional, eaté mesmo com suas deficiências, fundamentalmente a de não ter resol-vido a questão da demanda pelo ensino secundário na década de 1930,pois manteve o seu caráter elitista – foi primordialmente uma reformaautoritária. Isso porque, embora tenham sido feitas concessões aos gru-pos que ainda disputavam o poder, diante da inexistência de uma ten-dência hegemônica, foi baixada por meio de decretos, impostos de cimapara baixo, sem prévias discussões com os órgãos representativos dosdiversos setores da sociedade brasileira. A estratégia de Francisco Cam-pos foi apenas a de apropriar-se de idéias que já existiam e eram debati-das desde a década de 1920, procurando de certa forma agradar às di-versas tendências existentes, notadamente aos educadores sediados nodepartamento carioca da ABE e à Igreja católica, mas sempre com aintenção precípua de subordiná-las a seus interesses políticos.

Quanto aos programas de matemática e suas instruções pedagógi-cas, a Reforma Campos apenas se apropriou das inovações que vinhamsendo implementadas de forma paulatina, desde 1929, no Colégio PedroII, tendo como protagonista o professor Euclides Roxo. Em suma, areforma instituída em 1931 no curso secundário não traz a marca pes-soal de quem lhe deu o nome, que agiu, muito mais como político, ten-tando conciliar as tendências emanadas dos diversos pensamentos edu-cacionais da época, do que propriamente como educador.

Nesse contexto, Euclides Roxo, então diretor do Colégio Pedro II,aproveitando-se da importância de seu cargo, conseguiu estender, a todo

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o país, as inovações que vinha implantando progressivamente no referi-do educandário, bem como defendendo por meio de artigos publicadosna imprensa.

As idéias de Euclides Roxo diziam respeito, basicamente, à fusãodos diferentes ramos da matemática, interligando-os em uma única dis-ciplina, à reestruturação de todo o currículo em torno do conceito defunção e à introdução de noções de cálculo diferencial e integral paratodos os alunos do secundário. Na verdade, ele estava muito bem infor-mado de todas as discussões sobre o ensino da matemática que ocor-riam, em maior ou menor grau, em vários países importantes do mundo.Além disso, estava a par de todas as atividades desenvolvidas pela “Co-missão Internacional para o Ensino da Matemática”4, criada em abril de1908, no Quarto Congresso Internacional de Matemática, com vistas areunir esforços para a renovação do ensino da matemática. As princi-pais influências sofridas pelo professor Euclides Roxo originaram-se deFelix Klein (1849-1925) – matemático alemão e primeiro presidente dacitada comissão – com relação às idéias por ele defendidas, e de ErnstBreslich, na elaboração dos compêndios de acordo com as novas dire-trizes. Ao analisar as tendências da reforma que tomou conta de váriospaíses no início do século XX, Felix Klein chegou aos seguintes aspec-tos principais: a) predominância essencial do ponto de vista psicológi-co; b) dependência da escolha da matéria a ensinar em relação às aplica-ções da matemática ao conjunto das outras disciplinas; e c) subordinaçãoda finalidade do ensino às diretrizes culturais de nossa época. Tais ten-dências referem-se a três questões vitais em educação: a metodologia,que está relacionada a quem ensinar e de que maneira; a seleção dadoutrina, ou seja, quais critérios devem ser utilizados na escolha dosconteúdos dos programas; e, por último, a finalidade do ensino, queestá intimamente ligada às aplicações do que é aprendido, adequando-oàs necessidades dos indivíduos.

Sintetizando, o professor Euclides Roxo tirou proveito da posiçãoque ocupava na estrutura educacional do país, a qual lhe proporcionava

4. Mais conhecida, na época, pela sigla IMUK (Internationale mathematischeUnterrichtskommission).

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condições de fazer valer suas idéias, e implementou integralmente, pelomenos na lei, de cima para baixo e sem discussões prévias, todas asinovações defendidas por Felix Klein.

Padre Arlindo Vieira, jesuíta e reitor do Colégio Santo Inácio, foidos mais combativos adversários da Reforma Francisco Campos no quetange ao ensino secundário de forma geral, e também, particularmente,em relação aos programas de matemática.

A partir de 1934, o padre Arlindo Vieira passou a publicar artigos,livros e a proferir conferências, com o intuito de defender o ensino se-cundário mais voltado às humanidades clássicas, compreendido aquicomo um tipo de ensino que possui como principal objetivo o estudo dalíngua e da literatura dos antigos (latim e grego). Além disso, combatiaveementemente o que denominava “falência do nosso ensino secundá-rio”, argumentando contra o seu caráter enciclopédico, inclusive no quetange ao ensino da matemática, bem como contra a especialização pre-matura do secundário em cursos complementares. Alegava, também,um excessivo controle federal exercido com a fiscalização dos estabele-cimentos de ensino secundário, instituída pela Reforma Campos.

Suas críticas eram sempre feitas em linguagem grandiloqüente, pom-posa, até mesmo agressiva em alguns momentos, e sua fundamentaçãoera realizada por meio de comparações do nosso sistema de ensino se-cundário com o de países estrangeiros, notadamente os por ele conside-rados mais civilizados. Seus argumentos eram repetidos exaustivamen-te em toda sua obra, além de serem utilizadas, com freqüência, expressõesdo tipo “um ilustre pedagogo [...] fez-me dolorosa confissão [...]” (Vieira,1934); “Escreveu-me a semana passada um dos mais acatados médicosda capital paulista...” (Vieira, 1936c, p. 95); “Dizem muitos professo-res:” (Vieira, 1936b) etc., sem que fosse declinado o nome da figura aque se referia. Em suma, a leitura de sua obra, após alguns artigos, tor-na-se cansativa e enfadonha. Assim, serão selecionados apenas algunstrechos que melhor ilustram o seu pensamento, tanto em relação ao cur-so secundário em geral, quanto particularmente ao ensino da matemáti-ca nesse grau de estudo.

Relativamente ao enciclopedismo do currículo trazido pela Refor-ma Francisco Campos:

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O que nos falta, e já há muito nos vem faltando, é um programa racional,

alijado desse enciclopedismo superficial, um programa que vise antes de tudo

à formação intelectual da juventude, que lhes desenvolva a inteligência gra-

dualmente, habituando-a à reflexão, tornando-a apta para, mais tarde, assi-

milar, nos cursos superiores, as matérias em que devem especializar-se.

Ora, é óbvio, é patente que a isto se opõe formalmente o pedantismo dos

programas oficiais, que parecem não ter em vista outra coisa senão injetar na

cabeça dos nossos pobres alunos uma série de conhecimentos, úteis sem dú-

vida, mas que de modo algum contribuem para a formação dessas tenras

inteligências, que se sentem oprimidas pelo acúmulo de lições sobre 9, 10,

11 disciplinas que devem, não digo assimilar, mas decorar cada semana, para

se esquecerem de tudo alguns dias após.

À força de querer fazer dos nossos alunos ilustres enciclopedistas e sábios

em miniatura, convertemo-los em grandes ignorantes.

Os próprios rapazes, pelo menos os mais sensatos, não se deixam iludir

por esse fantasma de erudição.

Então, você tem 10 matérias na quarta série? disse eu, ao iniciar-se o ano

letivo a um dos meus melhores discípulos. “Onze, atalhou ele, e infelizmen-

te, tanta coisa para afinal a gente não aprender nada”. Quanta tristeza desper-

tou em mim esta sábia advertência [Vieira, 1934, grifos meus].

Comentando um livro sobre o Brasil, escrito por um francês, LouisMouralis, padre Arlindo Vieira argumenta contra a ingerência do Esta-do no ensino secundário e faz um verdadeiro libelo contra o sistema deinspeção aos estabelecimentos de ensino secundário, criado pela Refor-ma Francisco Campos:

Que diria o autor se tivesse prolongado sua permanência no Brasil para

assistir à comédia das provas parciais? O sorteio dos pontos, decorados pelos

mais diligentes ou cuidadosamente transcritos em longas tiras de papel pelos

que não quiseram dar-se ao trabalho de os meter na cabeça; as questões for-

muladas, a correção das provas pelo professor, a suposta correção por um

segundo professor, a revisão pela inspetoria regional e outras mil formalida-

des ou ninharias que irritam um educador consciencioso e provocam a irrisão

dos observadores estrangeiros.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 211

[...]

O exército de inspetores e sub-inspetores; a burocracia detestável que con-

verte as secretarias dos estabelecimentos de ensino em fábricas que conso-

mem tanto papel, tanto tempo, tanto dinheiro e tantas energias preciosas; os

abusos lamentáveis que se registram com freqüência aqui e ali, conforme

declarações feitas à imprensa pela própria Diretoria do Ensino; a completa

desmoralização do ensino, conseqüência inevitável desse formalismo ridícu-

lo e mil outras misérias que tanto depõem contra os nossos fóros de povo

civilizado! [Vieira, 1936d, pp. 115-116].

A diferenciação no ensino secundário, advinda da Reforma Cam-pos, com a criação dos cursos complementares, também não contavacom a simpatia do combativo sacerdote:

A extensão do curso ginasial foi uma idéia feliz, mas a dissecação do curso

complementar em três ramos diversos é um despropósito de todo injustificável.

[...]

Esse curso complementar, organizado como está, traz consigo todas as

conseqüências desastrosas da especialização prematura, inimiga da cultura

geral, sólida e ampla [Vieira, 1936c, p. 72].

A solução para esses problemas do curso secundário brasileiro era,segundo o padre Arlindo Vieira, única – o retorno ao ensino clássico:

O remédio, o único remédio é refundir os programas atuais nos moldes

dos estudos clássicos. Não são as novas reformas no estilo do sistema atual

que nos hão de tirar dessa situação angustiosa. Podemos multiplicá-las inde-

finidamente: – como as precedentes, não surtirão outro efeito, senão este, de

aumentar a balbúrdia atualmente reinante.

As experiências feitas (e que tristes experiências!) deveriam abrir os olhos

dos que se interessam pelo magno problema do ensino e fazer-lhes ver que

não nos resta senão repudiar de uma vez para sempre esse pedantismo de

uma cultura generalizada, ou melhor, de uma ignorância especializada, que

estiola e mata as mais belas energias da nossa mocidade.

[...]

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Não pretendemos negar que também nos países da Velha Europa haja defi-

ciências em matéria de ensino. Mas é inegável que, onde estão em vigor os

estudos clássicos, há sempre uma elite respeitável que mantém as belas le-

tras e as ciências em nível que estamos longe de atingir e nem atingiremos

jamais, enquanto o nosso ensino continuar a ser o que tem sido até hoje

[Vieira, 1934].

O ensino da matemática era também criticado pelo padre ArlindoVieira. Essa crítica era seguidamente realizada por meio de compara-ções com os programas de outros países ditos por ele mais civilizadosdo que o Brasil. A conclusão a que ele chegava era sempre a mesma:nossos programas de matemática eram mais complexos e extensos doque os dos países que ele utilizava como paradigmas. A seguir, é apre-sentado um trecho de suas conclusões, após a comparação, por ele rea-lizada, entre os programas brasileiros de matemática do curso funda-mental e os dos cinco primeiros anos dos ginásios franceses:

Que diriam, pergunto eu, os educadores europeus, fossem eles belgas ou

italianos, alemães ou ingleses, que diriam se examinassem os nossos progra-

mas de Matemática?

Isto é maravilhoso! Exclamariam sem dúvida.

Esses jovens brasileiros devem ser um portento! É possível que sejam de

uma natureza superior à nossa... De outro modo não se poderia conceber

tamanha capacidade intelectual!

É verdadeiramente ridículo o papel que fazemos com os nossos programas

fantásticos. Serão porventura nossos alunos tão privilegiados que fujam à

regra comum?

Creio que não há exagero em afirmar que, quanto à inteligência, nada têm

eles de invejar à juventude européia; mas dar-lhes uma preeminência, que os

fatos não justificam, seria presunção ridícula [Vieira, 1936c, p. 149].

Vale observar que o padre Arlindo Vieira não era favorável ao méto-do preconizado pelo professor Euclides Roxo, no qual o ensino de umassunto deveria ser iniciado a partir do intuitivo e do concreto para, aospoucos, atingir-se sua exposição mais abstrata e formal. Por exemplo, o

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 213

ensino da geometria dedutiva deveria ser precedido de um curso prope-dêutico, em que os assuntos seriam apresentados de forma intuitiva,experimental e construtiva. Isso justifica, é óbvio, o fato de muitos dosassuntos a serem estudados aparecerem em várias séries do curso, res-peitando o grau de desenvolvimento mental do aluno e as suas aptidões.O polêmico jesuíta denominava esse tipo de ensino de “sistema de ci-clos” e o considerava desastroso. De sua postura em relação a esse mé-todo, pode-se inferir que ele não concordava com a fusão dos diversosramos que compõem a matemática. A seguir, é apresentado um trechoescrito pelo padre Arlindo Vieira, com sua linguagem característica, emque se observa sua opinião a esse respeito:

A conseqüência inevitável de tais programas é a mais desanimadora super-

ficialidade. Só a isso pode levar o desastroso sistema de ciclos. Ensinei Ma-

temática, em 1928, a uma turma de vinte e quatro rapazes do quarto ano.

O programa versava exclusivamente sobre geometria.

Com quatro aulas por semana, cheguei a dar-lhes os sete primeiros livros

do F.I.C. e algumas noções sobre as curvas usuais.

[...]

No ano seguinte, a fim de interessá-los mais pelo estudo da Cosmografia,

ensinei-lhes, em algumas aulas suplementares, a deduzir as fórmulas princi-

pais da trigonometria, a usar as tábuas de logaritmos e a resolver os triângu-

los retângulos e obliquângulos.

Como tinham bons princípios de geometria, esse trabalho foi rápido e seguro.

[...]

Mas o que ninguém pode negar é que nossos programas cíclicos e excessi-

vamente carregados não se adaptam de nenhum modo à capacidade intelec-

tual de meninos de 11 a 15 anos e os desnorteiam completamente com essa

iniciação prematura de elementos de álgebra, geometria e trigonometria. [idem,

pp. 149-150].

Os dois aspectos, alvos das críticas feitas às mudanças no ensino damatemática – sistema cíclico e fusão das partes da matemática –, nãoreceberam a mesma ênfase que o acúmulo de conteúdos, na obra deArlindo Vieira, o qual considerava o caráter enciclopédico como o pro-

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blema mais grave dos programas de matemática instituídos pela Refor-ma Francisco Campos. Dessa forma, para ele, a melhoria do ensino so-mente ocorreria a partir da redução e simplificação dos conteúdos dosprogramas de matemática, como pode ser observado nas sugestões da-das pelo eminente sacerdote, em relação aos programas dessa matériano curso fundamental:

Quais as medidas urgentes que devem ser tomadas? Não se trata aqui de

concertar o que não tem concerto, mas tão somente de tornar menos prejudi-

cial o programa do curso fundamental.

Quanto à Matemática o programa deve ser não só simplificado, mas refun-

dido completamente.

Esses programas são o terror de professores e alunos. Na 1ª e 2ª série não

deve haver mais que a Aritmética. O programa de Álgebra da 5ª série: Deri-

vadas, desenvolvimento em série etc. deve ser excluído do curso fundamen-

tal. Tudo isso é pura perda de tempo. Os alunos, quase sem exceção, não

compreendem nada. O programa de Álgebra e Geometria das 2ª, 3ª e 4ª séri-

es – deverá ser gradualmente desenvolvido nas três ultimas séries com algu-

mas noções elementares de Trigonometria [Vieira, 1936d, p. 372].

Outra importante manifestação contrária às inovações implementadasnos programas de matemática veio dos colégios militares. Em 1937, foipublicado um livreto chamado Os programas oficiais referentes ao en-sino de matemática elementar, impresso por Oficinas Gráficas do Jor-nal do Brasil que, na verdade, trata-se de um verdadeiro manifesto con-tra as idéias defendidas por Euclides Roxo e acolhidas pela ReformaFrancisco Campos. Esse documento foi assinado pelos seguintes pro-fessores: Armando Godoy, Octavio Saint-Jean Gomes, Elias CoelhoCintra, José Pires de Carvalho Alburqueque, Dario Tito Castello Bran-co, Astorico de Queiroz, Alfredo Severo, Heitor Cajahy, Arthur Paulinode Souza, Alanso de Oliveira, Heitor Alberto Carlos, Augusto de AraújoDoria, Victalina Thomas Alves, Carlos Sussekind, Francisco F. A. Reis,Pedro M. Serra, Clarindo Mey, Alexandre Barreto, Anthero M. Leal,Ataulpho Eudes de Andrade e José Maria de Castro Neves.

Logo no início do texto, fica claro que as alterações na matemática

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do secundário, efetuadas há seis anos pela Reforma Campos, não ti-nham até então sido implementadas, e seriam adaptadas para adoçãonos colégios militares:

Há anos a esta parte, mercê de uma nova orientação, operou-se uma modi-

ficação profunda nos programas que regulam o ensino da Matemática ele-

mentar nos nossos estabelecimentos civis de instrução secundária. Tal modi-

ficação, entretanto, não logrou se impor e será adaptada nos colégios militares.

Na qualidade de membros do corpo docente do mais antigo desses colégios,

julgamo-nos no dever de justificar a feliz orientação dos que influíram no

sentido de se evitar, com relação ao ensino da Matemática elementar, que a

juventude instruída nos mencionados colégios viesse a sofrer os males e os

inconvenientes observados na formação intelectual dos que são vítimas do

infeliz ponto de vista que promoveu e presidiu a organização dos programas

referentes à citada matéria e adaptados nos institutos de ensino subordinados

ao Ministério da Educação [Godoy et al., 1937, p. 3].

A partir disso, o manifesto buscou mostrar que o ensino concreto eintuitivo deve se limitar ao curso primário e, que a partir do secundário,deve ser dada importância à ordenação lógica que a matemática adqui-riu com seu desenvolvimento histórico. Além disso, as aplicações práti-cas da matemática, tão defendidas por Euclides Roxo, deveriam serrelegadas a segundo plano, uma vez que a primazia era para o ensinológico, com maior preocupação com o método, de forma que desenvol-vesse o espírito do estudante, dando-lhe a disciplina mental necessária àobtenção de uma sólida cultura geral:

Antes de mais nada, precisamos lembrar os três graus ou etapas em que se

divide a instrução bem orientada: a primária, a secundária e a superior. Na

primeira fase o ensino tem um caráter concreto e objetivo. Nem podia deixar

de ser assim, uma vez que, no aparelhamento e na educação mental da crian-

ça, não se pode abstrair das suas condições intelectuais, que estão subordina-

das à idade e ao desenvolvimento físico. Na primeira etapa do ensino minis-

tra-se ao cérebro da criança uma série de noções do domínio da Matemática,

da astronomia, da física, da química e da biologia, porém ensinadas concre-

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tamente. As apreciações de que é suscetível o cérebro juvenil pouco além

vão do campo da contemplação concreta. Repetindo a nossa espécie na pri-

meira fase da civilização, no início do estudo da ordem exterior, a criança

não pode destacar bem os fenômenos uns dos outros, só podendo observá-

los em conjunto como se lhe apresentam nos corpos. A abstração nos seus

surtos iniciais só se manifestou criando grandes coisas muito tarde, no perío-

do intelectual grego.

No período inicial do ensino, a criança pode aprender as diferentes opera-

ções, o cálculo de frações, algumas propriedades dos números, as diferentes

formas e tipos geométricos, não se a obrigando senão ao que lhe permite o

cérebro, isto é, a raciocínios muito simples. Lições de coisas, como bem diz

a expressão, é o que pode receber o cérebro infantil na primeira etapa da sua

instrução, a qual, nesse grau, se devem limitar as escolas de ensino primário.

Como nesta fase o ensino tem um caráter objetivo, seria absurdo e irracional

nele se iniciar o estudo conveniente da Matemática elementar de acordo com

o método dogmático, isto é, respeitando a sistematização lógica que o espíri-

to humano realizou no campo da ciência fundamental.

Na segunda etapa do ensino, em que se ministra a instrução secundária, a

qual só é possível depois de uma certa idade e após a criança haver adquirido

os conhecimentos iniciais, é que se lhe pode dar a cultura Matemática indis-

pensável ao estudo do cálculo transcendente, da mecânica e das outras ciên-

cias. Nessa fase como que é levado a repetir, em diminuta escala, os esforços

do espírito humano na instituição do cálculo e da geometria elementar. A

ordem e a bela concatenação que resultaram da evolução intelectual nesse

estudo da ciência do número, da extensão e do movimento. A sistematização,

a sucessão lógica e o aperfeiçoamento com que o espírito humano levantou o

edifício da Matemática, tão sólido na sua fundação quão deslumbrante e belo

nas suas linhas dominantes, são como que sagrados e devem ser seguidos

como indispensáveis a uma perfeita educação mental. Desde a mais remota

antiguidade, a sistematização que nos mostra a ciência fundamental foi inici-

ada mediante esforços de vários matemáticos, entre eles Hipócrates de Quios

e Euclides.

[...]

As influências mentais do estudo conveniente da Matemática são consi-

deráveis, pois, entre outros elementos, dela faz parte a geometria, que na

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 217

sucessão lógica de uma vasta cadeia de conseqüências, deduzidas de um

número reduzido de princípios fundamentais, nos dá o modelo da verdadei-

ra ciência.

A desordem na apresentação dos fatos matemáticos, com desobediência

das relações de dependência entre eles existentes, não pode dar lugar à ne-

cessária educação do raciocínio – principal objeto da ciência fundamental –

que se nos oferece como o campo mais propício para a cultura das nossas

faculdades lógicas. Visto como, no domínio da ciência inicial, os fenômenos

nele estudados são os mais simples e gerais, pode o espírito humano na sua

apreciação voltar-se mais para o método do que para a doutrina. Daí consti-

tuir o estudo da Matemática o melhor meio de se iniciar a educação mental

do homem e de se lhe dar a indispensável disciplina intelectual, de que há

sempre necessidade, sem o que não se pode conseguir uma cultura completa

bem orientada. É por isso que a ciência inicial é mais importante sob o ponto

de vista lógico do que científico. A sua beleza e importância ficariam dimi-

nuídas se o seu estudo tivesse por fim único habilitar-nos à solução dos pro-

blemas de que ele se ocupa [idem, pp. 3-6].

Observa-se que os autores do manifesto utilizam-se de um discursoamparado em idéias positivistas para fundamentar seus posicionamentos.E continuam no mesmo tom, ou seja, utilizando-se da mesma ideologia,para efetuar, no modo de entender do autor desta pesquisa, a principalcrítica realizada aos programas elaborados por Euclides Roxo. Tal críti-ca refere-se à fusão entre os diversos ramos da matemática, que levouao ensino, em todas as séries do curso fundamental, da geometria (in-cluída a trigonometria), da álgebra e da aritmética. Os assinantes domanifesto apoiavam-se no fato de a “[...] ordem didática tradicional apro-ximar-se muito da ordem geral dos programas da escola positivista”(Vianna, s.d., p. 12). O trecho a seguir ilustra essa crítica:

Toda a ciência e a indústria de que hoje se pode orgulhar a humanidade,

não teriam tido o desenvolvimento que alcançaram, se a nossa espécie, pelo

órgão de seus mais ilustres filhos, não tivesse trilhado o caminho que a nossa

constituição cerebral e a ordem de pendência dos fenômenos lhe impuseram.

Dele não se devem afastar os programas de ensino, a menos que não queira

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seguir a estrada suave indicada pelo método positivo, isto é, a que fatiga

menos o espírito, é mais fecunda e proporciona melhores resultados.

Não é possível estudar-se convenientemente álgebra sem a necessária pre-

ocupação aritmética, uma vez que é só no domínio do cálculo dos valores

que se habilita o espírito do aluno para as generalizações que reclama o estu-

do das funções, objeto daquela parte da Matemática. Quando na aritmética

são instituídas as regras relativas às operações numéricas, inicia-se a abstra-

ção dos valores das grandezas, abstração que é completada com a da espécie

no campo algébrico. Impossível é o estudo da ciência do espaço sem a prepa-

ração conveniente nos dois cálculos: o dos valores e o das relações. Sim,

porque a todo instante o estudo da geometria reclama a contribuição da álge-

bra e da aritmética. Portanto, nos cursos de Matemática elementar, a pro-

gressão seguinte se impõe: aritmética, álgebra e geometria. Essa progressão

deve ser respeitada, se objetiva dar ao espírito do aluno uma base lógica

[Godoy et al., 1937, pp. 6-7, grifos meus].

É claro que não se podiam furtar à realização de algum comentárioe à exemplificação de como as coisas se passavam em algum país mais“desenvolvido” do que o Brasil:

Se o que a história e a constituição da ciência, bem como o bom senso

ensinaram não basta e é preciso, para se encontrar eco em nossa terra, invo-

carem-se exemplos vindos de terras estranhas, cremos que, a tal respeito, a

nossa orientação é confirmada pelo que, no campo da instrução, se observa

em países adiantados. São inúmeros os compêndios de Matemática moder-

nos em que se respeita a ordem de dependência dos fenômenos e, portanto,

se consagram o seu encadeamento e sucessão lógica. Um dos cursos moder-

nos de Matemática é o que tem por autor o reputado mestre J.E. Thompson,

do Instituto Pratt, nos Estados Unidos. A obra em questão foi editada pela

primeira vez em 1931. O seu título é “Mathematics for self study”. As edi-

ções se sucedem a curtos intervalos e, não obstante se tratar de um curso

escrito para o estudo da matéria sem mestre, não se misturam os assuntos e

se respeita a ordem clássica. “Arithmetic”, “Algebra”, “Geometry”,

“Trigonometry” e “Calculus” são os títulos dos cinco volumes [idem, p. 7].

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 219

Os professores das escolas militares dão seqüência à sua exposição,apontando mais uma falha que acreditavam haver nos programas dematemática do curso secundário. Para eles, tais programas eram consi-deravelmente extensos, tornando-se necessária uma limitação nos as-suntos a serem ministrados:

O que também se faz necessário é reduzirem-se os programas, limitando-

os ao que é geral e indispensável, de maneira que haja tempo para se dar o

essencial convenientemente, em maior número de lições, de modo que o alu-

no possa fixar os principais resultados. No ensino tudo se deve fazer para se

simplificar e facilitar o estudo das matérias. Não adianta nada dilatarem-se

enormemente os programas, como se tem feito entre nós, se não há tempo

para ensiná-los convenientemente. Sigamos o exemplo norte-americano. Nos

Estados Unidos se tem reduzido o estudo das múltiplas disciplinas ao que é

indispensável e ao que o cérebro do aluno médio pode receber em um deter-

minado tempo. Os mestres norte-americanos tudo tentam para evitar que o

estudante venha a desanimar.

Por exemplo, o estudo das seções cônicas é limitado às propriedades prin-

cipais e só se exige um processo para a dedução da fórmula para a resolução

das equações do segundo grau.

Em conseqüência de se terem aumentados consideravelmente os progra-

mas e o número de matérias, a instrução secundária, cujo alto destino não é

necessário encarecer, sobremodo tem sofrido, está muito reduzida em seus

efeitos, e acusa um desnível crescente. Quanto mais dilatados e anarquizados

os programas e maior o número de disciplinas, tanto mais insignificantes os

resultados colhidos [idem, pp. 7-8].

O manifesto é encerrado com uma declaração de apoio ao professorJoaquim I. de Almeida Lisboa que foi o principal crítico das mudançasno ensino da matemática, ocorridas em 1929, quando das alteraçõesimplementadas no curso secundário do Colégio Pedro II:

Que as considerações despretensiosas que aí ficam e fizemos com o alto

propósito de secundar a nobre e inteligente campanha do ilustrado professor

Joaquim de Almeida Lisboa, encontre eco entre os que têm a tremenda res-

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ponsabilidade de influir sobre a organização dos programas de ensino, na

parte concernente à matéria de que mais depende uma eficiente e boa forma-

ção intelectual [idem, pp. 8-9].

Joaquim de Almeida Lisboa volta, nos anos de 1935 e 1936, a atacaras idéias que o professor Euclides Roxo conseguiu que prevalecessem,a partir da Reforma Campos, nos programas dos cursos secundários,por meio de alguns artigos veiculados na imprensa, principalmente noJornal do Commercio.

O interessante é que o padre Arlindo Vieira também se utiliza donome do professor Almeida Lisboa para corroborar sua luta contra oprogramas de matemática. Isso é feito por meio da citação de trechos,que interessavam ao ilustre padre, de um artigo escrito por AlmeidaLisboa, em 18 de agosto de 1935, no Diário de Notícias. Vale a penatranscrever as palavras de Almeida Lisboa citadas pelo padre ArlindoVieira, pois demonstram que antigo professor catedrático continuavadefendendo o ensino clássico da matemática. Reafirma também o seuelitismo e preconceito em relação ao fato de essas idéias reformadorasserem advindas das escolas técnicas profissionais, o que, para ele, umcultor de Euclides, era um verdadeiro absurdo, pois as “elites dirigen-tes” estariam sendo formadas a partir de uma matemática gerada, pri-mordialmente, para atender às necessidades práticas surgidas ante umasociedade em mudanças. Além disso, ao afirmar que o movimento erasó brasileiro, cometia uma grave injustiça, pois essa nova forma de en-sinar a matemática surgiu na Alemanha e espalhou-se por todos os paí-ses industrializados do mundo:

A Matemática desapareceu do ensino secundário. Eis o triste resultado do

que se chama enfatuadamente “a moderna orientação do ensino da Matemá-

tica”, e é apenas uma orientação brasileira, atestando a nossa incompetên-

cia pedagógica. As verdadeiras demonstrações, os raciocínios perfeitos, o

rigor e a lógica da ciência, tudo o que faz a beleza e a imensa utilidade da

Matemática foi abolido do ensino oficial.

Nos programas oficiais brasileiros, não há mais nem teoria, nem rigor ma-

temático.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 221

Reduziu-se tudo a uma pequena coleção de receitas. E o aluno que aprendeu

uma delas e resolveu um desses problemas para jardineiros não sabe tratar

outros análogos, que só diferem do primeiro por insignificantes modificações:

desconhece a teoria que lhe mostraria o caminho seguro para atingir a solução

procurada. Estudou curiosidades; não sabe Matemática e não raciocina.

[...]

Os livros que obedecem a esta falsa diretriz são simples inventários de

fatos isolados, de exercícios infantis, de noções erradas, livros que envene-

nam a mocidade em vez de lhe inspirar o amor da ciência e o hábito do

estudo.

[...] Os que pretendem realmente aprender, nada encontram nessas páginas

vazias.

[...] Em geral, os autores que seguem os atuais programas oficiais, tomaram

por modelo livros americanos ou alemães, para escolas profissionais elemen-

tares. E é isso que impingem, no Brasil, aos estudantes do curso secundário!

[...] Querem restringir as possibilidades incalculáveis das novas gerações a

um mundo sem pensamento, nem imaginação [apud Vieira, 1936c, pp. 208-

209, grifos meus].

O ensino secundário não tem por objetivo formar homens práticos, fun-

ção das escolas profissionais ou técnicas. Seu alcance é maior: é a primeira

seleção de intelectuais. São estes que fazem a grandeza de um povo [...] O

Brasil precisa de homens competentes que o levem a um brilhante futuro e é

na escola secundária que se iniciam os condutores de homens.

A instrução secundária, porém, tem outro destino e não pode ser superficial:

deve ser ministrada solidamente, devagar. Os incapazes de um estudo sério

prestarão enormes serviços ao país, dedicando-se a misteres independentes

das ciências e das letras. Os doutores que mal sabem ler constituem uma das

pragas que nos afligem.

[...]

Teremos ainda durante muito tempo inúmeros analfabetos. Pouco importa!

Formemos uma elite intelectual, onde o Brasil irá buscar os impulsores de seu

progresso e, nas horas graves de crise, os seus salvadores. E esta elite, nós a

criaremos em algumas dezenas de anos. O ensino se desenvolverá então das

camadas superiores para as inferiores. O primeiro passo a dar é a remodelação

do ensino secundário, alicerce indispensável da nossa grandeza.

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222 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

[...]

Ora, entre nós, o ensino secundário vai morrendo ou já morreu. Nada se

estuda; nada se ensina [apud Vieira, 1936c, pp. 245-246, grifos meus].

Apesar de tanto os professores do exército quanto o padre ArlindoVieira terem se utilizado da figura do professor Almeida Lisboa e, em-bora tenham pontos em comum, principalmente quanto ao fato de todoseles possuírem visões elitistas e conservadoras, pode-se afirmar que,pelo menos com relação ao ensino da matemática, eles representavamtrês tendências distintas, mesmo sabendo que as fronteiras entre elasnão eram muito bem delineadas. Dessa forma, procurar-se-á assinalaressas diferenças, tomando por base a questão a que davam maior ênfa-se, quando dos ataques dirigidos à nova orientação do ensino da mate-mática.

Os professores dos colégios militares, embasados em uma orienta-ção positivista5, ressaltavam a importância de retornar-se à matemáticaescolar anterior às inovações, isto é, mantendo o ensino dos ramos des-sa disciplina de forma estanque, e obedecendo à ordem, para eles deter-minada pela história, em que se deveria ensinar primeiramente a aritmé-tica, depois a álgebra e, finalmente, a geometria (incluída atrigonometria). A despeito de o padre Arlindo Vieira ter se posicionadode maneira dispersa em sua obra, a favor do ensino separado, essa nun-ca foi a sua principal preocupação. Em contrapartida, Almeida Lisboadiz em um de seus artigos, integrante da polêmica que manteve comEuclides Roxo, sobre as inovações curriculares implantadas, em 1929,no Colégio Pedro II:

Nunca fui partidário da separação absoluta do ensino dos diferentes ramos

da Matemática. Eles prestam-se mútuo auxílio e nada mais interessante e útil

do que fazer aplicações da Álgebra à Geometria, interpretar os teoremas e

5. Para um interessante texto que procura responder à pergunta se, de fato, “[...] exis-tiu, em algum momento da história da educação brasileira, uma matemática esco-lar positivista?”, ver Valente, 2000.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 223

problemas da Álgebra ou da Aritmética por considerações geométricas e

empregar as teorias abstratas da Matemática à Astronomia, à Física e à Me-

cânica [Lisboa, 1930].

A principal divergência entre o padre Arlindo Vieira e o professorAlmeida Lisboa é que o primeiro privilegiava a língua e a literaturagreco-latina, com ênfase no ensino do latim, na formação da elite diri-gente do país, e o segundo realçava o ensino da matemática com osmesmos objetivos elitistas. Entretanto, a melhor descrição dessas dife-renças e, pode-se dizer, dos pontos em comum entre os pensamentosdos dois educadores, foi feita por eles mesmos, nas páginas do Jornaldo Commercio.

Joaquim de Almeida Lisboa questiona o padre Arlindo Vieira arespeito de uma comparação feita por esse último entre os programasdo curso fundamental (implantados por Francisco Campos) e os doginásio italiano:

O padre Arlindo Vieira empenhou-se em combate contra aquilo que, por

irrisão, se chama o nosso ensino secundário. A erudição do batalhador, a

lógica de sua argumentação, os fatos que cita, mostram a miséria intelectual

a que chegamos e o triste destino do Brasil, governado amanhã por homens

desprovidos de cultura e de elevados ideais. As negras cores com que o padre

pinta o humilhante espetáculo ainda são insuficientes para traduzir o mal que

nos aflige. Não há pena capaz de descrever este amontoado de disparates,

esta salada de perfumarias baratas e molhos falsificados, cocaína que rotula-

mos com o nome de Ensino Secundário.

Mas o ilustre padre exagera as vantagens do estudo do Latim sobre as de

qualquer outra disciplina do espírito. Não lhe basta o predomínio da nobre

língua: quer a sua exclusividade. Ora, a Matemática não é menos instrutiva

ou necessária do que o Latim. Ela é, como ele, um fecundo exercício da

inteligência. É um pensamento contínuo. A Matemática encerra puríssimas

belezas, gemas tão preciosas e fulgurantes quanto as mais ricas jóias de Cícero

ou Virgílio. E mais do que o Latim, é fonte inesgotável de infinitas aplica-

ções e de imprevistos e maravilhosos inventos.

No seu plano de ensino secundário, deveria o padre Arlindo Vieira, ao lado

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do Latim, reservar um lugar de honra para a Matemática. Entretanto, bate-se

contra o grande número de horas que semanalmente lhe são destinadas e

contra a vastidão enciclopédica de seus programas – A eloqüência do padre,

suas múltiplas e esmagadoras comparações, sua vontade férrea de só fazer

sobressair o Latim, constituem um perigo para o futuro ensino daquela ciên-

cia fundamental. E o eminente educador não tem razão.

Os nossos programas de Matemática nada têm de vastos, nem de pompo-

sos, ou enciclopédicos! São apenas ridículos. Os sábios professores estran-

geiros que os percorrerem não ficarão espantados, como pensa o padre Arlindo

Vieira, pela imensidade do que se exige do estudante brasileiro. Eles rirão

somente; e rirão por motivos opostos aos que o padre supõe. E se folhearem

também os livros de Matemática que destinamos à mocidade, e onde se de-

senvolvem esses programas, reconhecerão logo que não pode haver ensino

onde não há professores. Não sabem, nem sequer suspeitam, que aqui se

disputam os lugares do magistério como cargos eleitorais [...]6 [Vieira, 1936,

grifos meus].

A resposta a esse artigo veio logo no domingo seguinte. O combativosacerdote, no trecho a seguir, manifesta, de maneira clara, sua opiniãosobre o ensino da matemática e do latim no ensino secundário. Em ple-no século XX, ele ainda possuía a nostalgia do ensino humanístico dasprimeiras escolas jesuítas7:

6. Nesse artigo, Almeida Lisboa criticou o ensino da matemática na Escola Politécni-ca. Esse fato provocou uma resposta do então diretor daquela instituição, Ruy deLima e Silva, por meio de uma carta enviada ao mesmo jornal e publicada em 6 demaio de 1936.

7. “Podemos tomar as considerações de Leite – sem concordar exatamente com suasrazões [...] como bem reveladoras de que de fato não se estabeleceu desde os jesuí-tas uma matriz, uma origem para o desenvolvimento do que posteriormente consti-tui-se na Matemática escolar [...] Ocupar-se das ciências e da Matemática em par-ticular, roubaria tempo importante dos estudos das letras, essas sim, consideradasrelevantes para a formação o homem [...] tudo leva a crer, enfim, apesar dos poucosconhecimentos que temos sobre o tema, que as ciências e em particular a Matemá-tica não constituíram, ao longo dos duzentos anos de escolarização jesuítica noBrasil, um elemento integrante da cultura escolar e formação daqueles que aoscolégios da Cia. de Jesus acorriam” [Valente, 1997, pp. 27-28].

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 225

A exposição que acabo de fazer deve tranqüilizar os cultores da Matemáti-

ca. Não pretendo dilapidar o ensino dessa bela ciência.

Propugnando por uma sábia organização dos programas de Matemática, a

exemplo da Itália, da França e da Bélgica, é evidente que ponho a salvo os

interesses da nossa cultura. Haveria razão para temer, se eu confrontasse

nossos programas com os de alguma obscura república da América ou dos

povos semi-analfabetos da África.

Este artigo e o precedente se resumem nestas palavras: – Levantemos os

olhos para mais alto! Vejamos quais são as normas seguidas no ensino da

Matemática e das ciências pelos países mais cultos do mundo e não temamos

seguir-lhes os exemplos.

Quanto à insistência com que me bato pelo predomínio do latim no ensino

secundário, não há nada que admirar. Assim fazem esses povos que mar-

cham na vanguarda do progresso.

Ninguém pode contestar o interesse prático da Matemática, nem tão pouco

seu inestimável valor educativo.

Menos contestável ainda é o valor educativo do latim como já o demons-

trei em um longo artigo.

Neste particular leva o latim as palmas à própria Matemática. Referindo-

se à Matemática, escreveu Carbonel:

“Considerando a natureza destas disciplinas, é evidente que não servem

para educar a memória (que outro maior vício pudera dar-se que o memorismo

em Matemática?); e muito menos a sensibilidade. É verdade que a geometria

do espaço exige certo exercício de imaginação.

Mas, quão mesquinho! quão passivo! O arquiteto que não educar sua fan-

tasia com outro estudo além da Matemática, poderá talvez competir com os

construtores das pirâmides, mas nada ter que ver com os artífices do Partenon.

Não será trabalho para ele. Será um edificador, mas não um arquiteto, no

sentido que dão a essa palavra todos os que colocam a arquitetura no coro

das belas artes”.

[...]

Que dizer dos grandes matemáticos franceses Poincaré, Henri-le-Chatelier,

Hermite etc? Já me referi aos matemáticos italianos. Todos condenam um

estudo especializado da Matemática no curso secundário. Dando-lhe o lu-

gar que lhe compete nesse ensino, advogam um estudo intenso e demorado

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das letras, mormente do latim, cujo poder formativo é incomparável [Vieira,

1936b, grifos meus].

Em suma, podem-se distinguir três linhas de pensamento no comba-te às renovações introduzidas na década de 1930 na matemática escolardo curso secundário, não obstante terem vários pontos em comum. Uma,representada pelos professores das escolas militares, que priorizavam,baseados em “idéias positivistas”, a matemática escolar tradicional, istoé, dividida em seus ramos básicos e obedecendo à seqüência clássica:aritmética, álgebra e geometria. Outra, cujo principal personagem era opadre Arlindo Vieira8, que criticava os novos programas de matemática,bem como todo o currículo do secundário, alegando que seu caráterenciclopédico impedia que fosse dada primazia ao que realmente eraimportante na formação da elites: o ensino das humanidades, ou seja,das letras clássicas, fundamentalmente, o latim. E, por último, a tendên-cia que, embasada nos ideais platônicos, defendia a matemática clássi-ca, que atribuía como verdadeiro objetivo de seu ensino, a formação do“espírito” do aluno, colocando em segundo plano o seu caráter maisprático, e que teve em Joaquim Ignácio de Almeida Lisboa, professorcatedrático do Colégio Pedro II, seu mais influente representante.

3. Considerações finais

Ante o exposto, verifica-se que todas as tendências, que disputavamo controle do sistema educacional, estavam representadas nas discus-sões a respeito do ensino da matemática. O governo, como já dito, nareforma do sistema nacional de ensino, refletiu o equilíbrio de forçasque ainda existia entre as tendências em disputa, não se evidenciando asupremacia de nenhum dos grupos ideológicos em disputa. Com rela-

8. O padre Arlindo Vieira concedeu uma interessante entrevista, a respeito do “inqué-rito” sobre o Plano Nacional de Educação, ao “O Jornal”, em 26 de março de 1936,com o seguinte título: “Um grande inquérito dos ‘Diários Associados’ sobre o Pla-no Nacional de Educação”.

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debates sobre o ensino da matemática na década de 1930 227

ção à matemática encapou todas as idéias assumidas por Euclides Roxo,partidário da escola nova e ardoroso defensor de uma reforma do ensinoda matemática que tornasse essa ciência mais interessante e útil para osestudantes, colocando-os no centro do processo ensino-aprendizagem.Já os professores das escolas militares lutavam para ganhar espaço paraa sua visão autoritária e hierarquizada do seu projeto educacional. Talfato refletia-se na defesa do ensino tradicional da matemática, ou seja,por meio do ensino dos diferentes ramos da matemática, em uma se-qüência rígida (aritmética, álgebra e geometria), que coincidia com aproposta positivista de Auguste Comte. De outro lado, o padre ArlindoVieira, com sua tendência a priorizar o ensino das humanidades no cur-so secundário, em detrimento das matérias ditas científicas, bem comocom sua defesa apaixonada da importância da formação das elites, foium representante dos educadores católicos. Finalmente, o catedráticoAlmeida Lisboa, com sua defesa do purismo no ensino da matemática,não pode ser colocado exclusivamente em nenhum dos campos descri-tos anteriormente. Foi um dos principais combatentes da matemáticaescolanovista de Roxo, mas não se enquadrava em nenhuma das outrastendências, embora tenha sido, por elas, cortejado e usado no combateàs mudanças defendidas por Roxo.

O debate em torno das inovações trazidas com os novos programasde matemática foi interrompido com o fechamento do Congresso e ainstalação do Estado Novo. A partir de setembro de 1941, GustavoCapanema retoma pessoalmente as discussões sobre o tema, coorde-nando um debate nos bastidores sobre os programas de matemática. Noensejo, acolheu opiniões e sugestões especialmente do exército, do pa-dre Arlindo Vieira – então auxiliado, na apresentação de propostas arespeito dos programas, pelos padres Achotegui e Chabassus, professo-res de matemática do Colégio Santo Inácio – e de Euclides Roxo. Esseúltimo, mesmo após ter deixado a direção do Colégio Pedro II, conti-nuou a desempenhar papel de liderança, com participação na formula-ção do ensino de matemática na Reforma Capanema, como mostram osdocumentos do Arquivo Gustavo Capanema do CPDOC, na FundaçãoGetúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

A partir dessas discussões é que foram elaborados os programas de

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228 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

matemática relativos à Lei Orgânica do Ensino, de abril de 1942, conhe-cida como Reforma Capanema para o Ensino Secundário. Na exposiçãode motivos da referida lei, o ministro Capanema deixa bem clara a fina-lidade elitista do secundário, ou seja:

O que constitui o caráter específico do ensino secundário é a sua função de

formar nos adolescentes uma sólida cultura geral, marcada pelo cultivo a um

tempo das humanidades antigas e das humanidades clássicas, e bem assim,

de neles acentuar e elevar a consciência patriótica e a consciência humanística

[apud Cunha, 1981, pp. 127-128, grifos meus].

E ainda:

[...] se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos

homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da socie-

dade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espiri-

tuais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre

o povo [apud Cunha, 1981, p. 128, grifos meus].

A respeito do ensino da matemática, os dois trechos a seguir de-monstram que Euclides Roxo precisou “abrir mão” de alguns de seusideais de renovação, inclusive no tocante ao ensino das três partes damatemática a partir da primeira série do ensino secundário:

Devo ainda acentuar que o programa por mim apresentado representa um

considerável recuo em relação ao movimento renovador pelo qual propugnei

a partir de 1928. Elaborei-o, aceitando várias sugestões... [Roxo, s.d.]

Apesar da forte oposição de algumas correntes reacionárias e “soidisant”,

tradicionalistas, manteve V. Ex. o ensino simultâneo da Aritmética e da Geo-

metria nas duas primeiras séries, bem como o da Álgebra e da Geometria

nas duas últimas. Por outro lado, aos cortes e modificações sofridos pelo

projeto de “instruções” que tive a honra de apresentar a V. Ex. escapou,

graças por certo, ao fulgor da sua evidência meridiana, o preceito de que “A

Matemática será sempre considerada como um todo harmônico, cujas partes

estão em íntima correlação” [Roxo, 1942, grifos meus].

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Pela exposição de motivos da lei que instituiu a Reforma Capanemado ensino secundário, bem como pelas citadas palavras de Euclides Roxo,pode-se inferir que, provavelmente, a Reforma Capanema foi um retro-cesso em relação à Reforma Francisco Campos, instituída 12 anos antes.

Finalizando, fica aqui a seguinte questão: esse debate foi único en-tre as disciplinas escolares ou igualmente se refletiu em outras e, nessecaso, quais teriam sido as repercussões no contexto dessas disciplinas?

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Recebido: 30 de ago. de 2003Aprovado: 29 de abr. de 2005

Modificado:19 de maio de 2005

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As representaçõesdos professores primários

Estratégia política e habitus professoral

Rosario S. Genta Lugli*

Este artigo analisa as formas peculiares pelas quais, durante o século XX, os professoresprimários brasileiros buscaram eleger representantes para cargos eletivos. A intenção defazer ouvir os seus reclamos em âmbito estatal pela via política choca-se frontalmentecom uma forte e generalizada recusa da “vinculação política” das associações docentes.Esse paradoxo foi solucionado por meio de práticas e discursos com relação à profissãoque permitem compreender o habitus professoral. São analisados os casos de três asso-ciações de professores primários: o Centro do Professorado Paulista de São Paulo, aSociedade Unificadora dos Professores Primários da Bahia e o Centro do ProfessoradoPrimário de Pernambuco. Os conceitos estruturantes da análise são de Chartier (repre-sentação) e de Bourdieu (campos sociais).PROFISSÃO DOCENTE; ASSOCIAÇÕES DE PROFESSORES; ENSINO PRIMÁRIO;REPRESENTAÇÃO POLÍTICA; SÉCULO XX.

This text aims to analyze the peculiar strategies that were used during the XXth. Centuryby teachers’ associations to elect representants to the Legislative Assembly. The intentionto take vindications to the State by political ways collided with the strong rejection ofpolitics from teachers associations. This paradox was solved by practices and discoursesabout the profession that allow us to understand the nature of teachers’ habitus. Weanalyze the cases of three elementary teachers associations: the Centro do ProfessoradoPaulista from São Paulo, the Sociedade Unificadora dos Professores Primários fromBahia and the Centro do Professorado Primário from Pernambuco. The concepts thatstructure this text are from Chartier (representation) and Bourdieu (social fields theory).TEACHERS ASSOCIATIONS; TEACHERS PROFESSIONALIZATION; ELEMENTARYSCHOOL; POLITICAL REPRESENTATION; XXTH. CENTURY.

* Doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo(USP), professora na Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN) – mestradoem educação. Projeto de pesquisa atualmente em desenvolvimento: A modernizaçãoeducacional brasileira e as tecnologias de ensino (1940-1970).

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232 revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005

A eleição de professores para cargos representativos em âmbito es-tatal registra-se desde os primeiros momentos do período republicanobrasileiro. Os mesmos professores que deram origem à Associação Be-neficente do Professorado Público de São Paulo em 1902 (uma das pri-meiras associações docentes de que se tem notícia no Brasil) – ArthurBreves e Gabriel Prestes, haviam, na década de 1890, participado eminstâncias representativas (Vicentini, 1997; Catani, 1989). No entanto,o fato de que esses homens fossem professores tinha sido, de algummodo, acidental para suas eleições, sendo mais relevantes os vínculosno campo político e no âmbito estatal. Somente quatro décadas maistarde surgiriam candidaturas nas quais o pertencimento à categoria pro-fissional funcionaria como elemento principal para articular as qualida-des de cada candidato professor. É esse tipo de candidatura vinculadaao “modo de ser professor” o objeto deste artigo – em geral promovidapor associações docentes que visavam eleger “representantes do profes-sor” como forma de se fazerem ouvir mais eficientemente junto aospoderes públicos no que se referia às questões educacionais. Tais repre-sentantes seriam porta-vozes das posições da associação no Legislativoe, conseqüentemente, a expressão da legítima vontade dos professoresquanto aos rumos educacionais.

A viabilidade concreta de tais candidaturas “docentes” foi dada apartir de 1932, com a aprovação do Código Eleitoral que concedia àsmulheres o direito de voto e o instituía como secreto e obrigatório. Jánesse momento a categoria era de composição majoritariamente femini-na, o que permite imaginar o potencial da medida junto aos professores,ao que se aliou a possibilidade de emancipação da influência dos líderespolíticos locais pelo segredo de voto. Além disso, temos a existência deuma política de Estado que estimulava enormemente a sindicalizaçãooficial, por meio da criação da categoria de “representação profissio-nal” nas instâncias legislativas, o que é assinalado por Costa (1986),tendo em vista que somente as associações registradas no Ministério doTrabalho poderiam propor representantes para a eleição.

O Centro do Professorado Paulista (CPP), associação de professo-res primários fundada em 1931, inicia sua participação no processo po-lítico de um modo bastante peculiar, tendo em vista que rejeitava expli-

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citamente qualquer vínculo político-partidário para dar ênfase aos as-pectos práticos de tal representação, como se verá adiante. Esse mesmoobscurecimento dos vínculos partidários repete-se, a partir de 1955, parao caso do Centro do Professorado Primário Pernambucano (CPPP, fun-dado em 1951) como também para o processo que se analisa no casobaiano (Sociedade Unificadora dos Professores Primários – SUPP) paraa década de 1950. Nos dois primeiros casos, constrói-se um discursonos periódicos oficiais das associações que possui ao mesmo tempo umcaráter de propaganda de seus candidatos e de educação do “eleitoradoprofessor”, no sentido de fazer compreender as vantagens de votar noscandidatos patrocinados pelas entidades docentes. Para o terceiro caso,o baiano, a documentação disponível é de caráter mais “interno” (atasde reuniões de diretoria), permitindo visualizar elementos diferenciados,como podem ser as disputas internas à associação e as dificuldades con-cretas com as quais um candidato dessas características se deparava.

Os periódicos oficiais das entidades possuíam um público leitorcativo, visto que eram distribuídos gratuitamente aos sócios e, nessesentido, a Revista do Professor (1934-1965), O professor (1964-1975)e o Jornal dos Professores (1975 – em publicação), do CPP e o Jornaldos Professores (1955-1958) do CPPP constituem fontes privilegiadaspara compreender de que formas as representações desses grupos pro-fissionais sobre o próprio trabalho se expressavam nesse cruzamentocom o campo político. A idéia de representação, tal como pode ser ana-lisada nos discursos vinculados a essas candidaturas, remete ao concei-to formulado por Chartier (1990), que permite identificar vários signi-ficados do termo que se realizam nos documentos examinados: o darepresentação frente ao poder público e o da representação construídapela categoria a respeito de seu próprio trabalho, já que o processoeleitoral, por meio da propaganda, coloca em jogo as imagens partilha-das pelo grupo profissional sobre sua condição de professores para aeleição de um agente que represente também (e aqui num terceiro sen-tido) o modelo ideal da docência. No entanto, deve-se observar quenem todas as candidaturas de professores anunciadas nos periódicosanalisados apresentam essas características: encontram-se muitas ve-zes anúncios de candidatos professores aos quais não se concede muito

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espaço, bastando apresentar seus nomes aos potenciais eleitores. O es-paço concedido aos candidatos professores nos periódicos, ao seguiruma lógica que buscava a representação mais fiel possível dos docen-tes por intermédio das associações, privilegiava os candidatos com maiorexpressão nas instâncias da própria entidade – inclusive como uma certagarantia de controle da atuação do futuro deputado. Como característi-ca comum a absolutamente todos os anúncios, temos a omissão dospartidos políticos, que se vincula à intenção de permanecer “politica-mente neutros”, expressa nos estatutos redigidos quando da criaçãodas entidades analisadas. Ora, tal “neutralidade” política, ante atuaçõesque necessariamente implicavam posicionamento quanto a políticas deestado no campo educacional, revela-se, na prática, impossível, e ter-mina por se realizar apenas como um distanciamento de legendas par-tidárias, visto como um meio de afastar os “políticos profissionais“das decisões educativas, numa tentativa de delimitar o espaço do cam-po profissional tornando-o âmbito exclusivo das decisões técnicas doseducadores.

Os primeiros investimentos eleitorais

O projeto de eleger representantes da categoria para o legislativotardou alguns anos em concretizar-se para o caso do CPP – mesmo sen-do apresentados como meios para que o magistério conquistasse “osdireitos condizentes com a importância de sua missão” (Vicentini, 1997,p. 85), os candidatos apoiados pela entidade em seus anos iniciais nãoforam eleitos. A novidade de tal iniciativa, nos termos em que era pro-posta, pode ser considerada uma das causas de seu malogro – uma sériede artigos com o fim de “educar” o eleitorado aparece na Revista doProfessor, recomendando aos docentes que se alistassem para votar eeleger os candidatos da categoria junto a explicações de porque seriavantajoso para os professores fazê-lo. Os líderes da entidade já nessemomento consideravam o grande número de integrantes do magistériocomo uma potencial “força eleitoral” que, sob a orientação do CPP, ele-geria representantes para facilitar o encaminhamento das reivindicações

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dos professores junto aos poderes públicos. É o que se expressa clara-mente neste artigo publicado em 1936:

Oxalá pudesse o magistério compreender a vantagem da união, para ter

seus representantes diretos na Câmara dos Deputados. Todas as pretensões

justas teriam o seu advogado persistente e acabariam vencendo. Venceriam

mesmo com facilidade. A dura realidade é que, numa classe com mais de

12.000 elementos, não há um representante do professor na Câmara cujos

deputados [da categoria] não obtiveram a metade dos sufrágios que pode-

riam dar os professores [Santos apud Vicentini, 1997, p. 88].

Somente em 1947 um associado do CPP, Henrique Ricchetti, foieleito para a Assembléia Legislativa, atuando como intermediário daassociação nessa instância. Desse momento em diante o CPP conseguiueleger candidatos em todas as eleições estaduais – em 1950, o presiden-te da entidade, Arnaldo Laurindo, foi eleito por meio de um movimentode associações docentes conhecido como Liga Eleitoral do Professora-do, em 1955 o seguinte presidente da entidade, Joaquim Silvério dosReis, assumiu uma vaga como deputado estadual, pois constava comosuplente e em 1958 o também presidente Sólon Borges dos Reis foieleito deputado estadual pela primeira vez, fato este que marca umamudança significativa no discurso da entidade com relação à política.

Tendo em vista essa trajetória do CPP, deve-se analisar primeira-mente a Liga Eleitoral do Professorado, movimento que reuniu todas asassociações docentes paulistas com o fim de evitar “a dispersão do con-siderável contingente de votos dos professores, em favor de candidatosestranhos aos reais problemas da educação e do magistério”. Tais asso-ciações eram a União dos Professores Primários, Associação dos Pro-fessores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Estado de São Pau-lo (APESNOESP), Associação dos Docentes do Ensino Industrial e Agrícola,a Associação dos Professores de Educação Física, a Liga do Professora-do Católico e o sindicato dos Professores do Ensino Particular. O Mani-festo da Liga, transcrito por Vicentini (1997), permite apreender muitoclaramente aquilo que o conjunto dos professores paulistas pretendiaalcançar por meio da participação política, uma vez que se propunha a

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apoiar os professores candidatos a cargos eletivos que se comprometes-sem com o seu programa, a saber:

a) o cumprimento das disposições constitucionais relativas à aplicação de per-

centagens de impostos na ampliação e melhoria dos serviços de educação

b) respeito à personalidade humana, à liberdade de pensamento e de cátedra e

aos princípios democráticos e cristãos da Constituição brasileira;

c) revigoramento do primado do interesse da criança e da juventude que es-

tuda, na solução dos problemas do ensino e do magistério;

d) necessidade de consulta direta à classe, através de suas entidades regular-

mente organizadas no estudo e solução dos problemas educacionais e do

magistério;

e) consolidação das leis e regulamentos relativos aos concursos de ingresso,

remoção e promoção do magistério público estadual e municipal atenden-

do aos resultados da experiência e aproveitando as sugestões indicadas

pelas entidades das classes interessadas, resguardando sempre [...] o inte-

resse superior da educação;

f) adoção de medidas que assegurem [...] a dignidade da profissão do profes-

sor, afastando qualquer possibilidade de interferência política na vida do

magistério

g) adoção de medidas práticas imediatas que objetivem proporcionar situa-

ção econômica condigna aos professores e funcionários técnicos e admi-

nistrativos de todos os graus de ensino;

h) elaboração de leis que assegurem medidas de proteção aos professores e

suas famílias, principalmente as que se relacionam com a assistência so-

cial, cultural e financeira, inclusive facilidade para a educação dos filhos;

i) amparo às entidades de classe do professorado para a realização de seus

fins;

j) adoção de medidas que visem estimular e amparar a iniciativa particular

na manutenção de ensino de todos os graus;

k) colaboração e apoio ao magistério particular na luta pelas suas justas rei-

vindicações

Observa-se, nesses itens, uma clara intenção de fazer ouvir as as-sociações como representantes do magistério nos processos de estru-

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turação da carreira e de constituição de políticas educacionais – o in-tuito de estabelecer limites e condições para a participação no campoeducacional é claro: os concursos, a tentativa de excluir a interferên-cia política no campo. Esses professores pretendiam utilizar a políticapara, entre outras coisas, afastar os políticos profissionais do trato dosproblemas educacionais, que deveria ser predominantemente técnico.Pode-se dizer que esse fenômeno se encontra na conjunção de doisprocessos: a ampliação dos limites do campo político brasileiro (pelaextensão do direito de voto) e a definição das fronteiras do campoeducacional.

No que se refere a esse último, pode-se assinalar os primeiros mo-mentos da construção de um discurso profissional relativo às reivindi-cações salariais (ou melhor, de imagens e slogans) que seria dominan-te nas décadas seguintes, até meados dos anos de 1970, com osurgimento do “sindicalismo renovador”. O reclamo financeiro é umdos eixos fundamentais do movimento dos professores e, como vistoanteriormente, já aparece na iniciativa da Liga do Professorado, numaaproximação do discurso que as associações tradicionais do magisté-rio primário farão posteriormente e com maior ênfase, mas sempreapontando em primeiro lugar para a melhoria das condições do ensinoe para o bem-estar dos alunos. Os reclamos que são, em última instân-cia, salariais, não se apresentam como tais, dado que a imagem de “sa-cerdotes do saber” dos professores não permitiria a admissão de inte-resses próprios, especialmente materiais. O discurso articula-se então,sempre em função de interesses maiores, como o futuro dos alunos, oprogresso do país e os destinos da humanidade – esses interesses “de-sinteressados” com relação ao aspecto econômico terminam por serviraos propósitos concretos dos professores, uma vez que seu financia-mento adequado permite dar suficiente dignidade ao papel que eles seatribuem no grande sistema de humanização e progresso do qual seconsideram parte. Esse “desinteresse” não é fruto de uma estratégiaconsciente do grupo, pensada em termos, por assim dizer, “publicitári-os” para alcançar seus objetivos, e sim uma das múltiplas expressõesdo habitus professoral, ou seja, das estruturas de percepção e ação pró-prias desse grupo profissional. Nesse sentido, essas representações sobre

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a função do próprio trabalho atendem a uma necessidade de conferirsignificado às práticas cotidianas, servindo em nível coletivo à coesãodo grupo profissional e é por essa razão que o reclamo salarial se apre-senta de forma tão indireta.

Deve-se observar que não se trata aqui de revelar a “má-fé” dosprofessores, no sentido de que eles visam ao aumento salarial e, tortuo-samente, clamam por melhor qualidade de ensino somente para atingiresse objetivo. A relação que se pretende fazer ver aqui entre discurso econsciência dos agentes (por dedução, nesse caso) encontra-semediatizada pelo “habitus professoral” e, portanto, não se refere a umaconstrução plenamente consciente do discurso sobre a profissão, mas a“esquemas de percepção incorporados” que justamente por seu papelestruturador do pensamento e das práticas são percebidos pelos agentescomo idéias “naturais”, ou seja, a atividade do professor não poderia serpensada de outra forma. É essa “naturalidade” das idéias a respeito daatividade docente em cada agente que possibilita a crença, a convicçãoa respeito das imagens escolhidas e, portanto, garante a boa-fé dos agentesquando formulam esse discurso que não é mais do que a expressão deum “desinteresse interessado”.

Essa forma “desinteressada” de relacionar-se com as necessidadessalariais é muito próxima ao modo pelo qual essas associações de pro-fessores se vinculam com a política e, dessa forma, compreende-se quea Liga do Professorado fosse concebida como um movimento apartidário,que se limitaria a fazer propaganda do conjunto de seus candidatos naimprensa, sem mencionar legendas partidárias ou dar destaque a algumcandidato, além de providenciar fiscalização nas zonas eleitorais paragarantir a idoneidade das eleições. De forma coerente, a Revista do Pro-fessor não noticiou essa iniciativa das entidades docentes, e tampoucodestacou a eleição de seu presidente, Arnaldo Laurindo, nem a sua atua-ção como deputado. O periódico do CPP praticamente não se refere aoprocesso eleitoral ou à atuação dos candidatos professores, situação quevai ser modificada a partir da eleição de Sólon Borges dos Reis paradeputado estadual em 1958.

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A política sem a política –a deputada e a associação

O caso pernambucano é, dentre os examinados, aquele que apresentao tipo de relação mais explícita com a política desde o início do funciona-mento da associação, pois a presidente do Centro do Professorado Primá-rio de Pernambuco foi eleita deputada estadual antes mesmo do registrooficial da entidade em 1955, marco do início de suas atividades, o quesugere ter a inserção política de Maria Elisa Viegas possibilitado as con-dições para que o CPPP começasse a funcionar. Existe, portanto, umainversão dos fatores analisados até o momento – não é uma candidaturade professora promovida pela associação docente de que se fala num pri-meiro momento. No entanto, também desde o início da história do CPPPse observa uma intenção semelhante à das demais entidades para tomardistância do campo político. Desse modo, encontramos nos estatutos ori-ginais do CPPP, publicados nos números 2 e 3 do Jornal do Professor,que o Centro é por princípio “alheio a competições ideológicas, político-partidárias e religiosas” (art. 2.). A mesma deputada, filiada ao PartidoDemocrata Cristão (PDC), dizia-se avessa à política partidária, como constado seu agradecimento ao professorado que a elegeu, publicado original-mente na Folha da Manhã de 27 de janeiro de 1955 e reproduzido naprimeira página do exemplar n. 1 do Jornal do Professor, periódico ofici-al do CPPP:

Afastada da política partidária por temperamento, quase avessa às cogita-

ções políticas, foi a fé em melhores dias para a instrução primária de nossa

terra, melhor compreensão e maior justiça para as mestras dos pequeninos,

que nos fez encaminhar para o campo da peleja, confiada e segura nas cole-

gas fiéis, que nos acompanharam na investida – difícil e decisiva [p. 1].

Observa-se aqui a estrutura da argumentação própria aos discursosde professores que justificam as iniciativas tomadas em defesa de seusdireitos. O interesse da categoria por melhores salários aparece como“egoísta” e “interesseiro” ante as características sacerdotais do habitusprofessoral, revelado em inúmeras imagens de religiosidade, do profes-

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sor como iluminador das almas infantis, formador de caracteres, res-ponsável pelo progresso da nação e de seus cidadãos. A imagem deMaria Elisa Viegas não escapa a esse quadro, embora sua vinculaçãocom a política não seja eludida. Nas páginas do Jornal do Professorpernambucano, encontram-se relatos de sua atuação na Assembléia Le-gislativa, discursos e alguns textos comemorativos de sua autoria, quepodem ser considerados formas de propaganda, diferentemente do si-lêncio quanto à representação política que se observa na Revista do Pro-fessor de São Paulo. No entanto, trata-se de uma propaganda discreta e,nesse aspecto, também se diferencia consideravelmente do discurso cons-truído no periódico oficial do CPP a propósito de Sólon Borges dos Reis– não se encontra a exaltação da figura de Maria Elisa Viegas como agrande líder do professorado, sendo que sua formação e trajetória rara-mente são mencionadas e tampouco suas qualidades pessoais. A própriadeputada qualificou a sua atuação no Legislativo Estadual como discre-ta, “sem demagogia ou sensacionalismo”, tendo realizado um “trabalhosilencioso”. Espelhando essa austeridade nos adjetivos que descrevemMaria Elisa, a imagem fotográfica também se apresenta sóbria: apenaso mesmo retrato do rosto da deputada que se repete em diferentes tama-nhos (o que coaduna com a pobreza de imagens geral do periódico, emcujo conteúdo predomina o texto). Tal sobriedade na descrição da figu-ra da presidente da associação também aparece em sua propaganda po-lítica para a reeleição ao cargo de deputada – a partir de março de 1958(n. 33), o tema é apresentado com grande destaque nas páginas do Jor-nal do Professor pernambucano; no entanto, fala-se pouco das qualida-des pessoais diferenciadoras de Maria Elisa, dando lugar às característi-cas profissionais que a identificariam com seus eleitores. Desse modo,sua propaganda política utilizava-se de procedimentos “simples e dis-cretos, inteligentes e dignos que já pôs em prática [na campanha anteri-or] e condizem bem com seu perfil de educadora” (“Professoras! Àsurnas em 3 de outubro!”, Jornal do Professor, n. 34, jun/58, p. 1.).Trata-se aqui da modéstia própria da representação da professora, quede algum modo a prejudica para o exercício da função legislativa, dadoque capitalizar suas iniciativas, isto é, dar publicidade a seus “grandesfeitos” é fundamental para sua reeleição.

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A ausência, no periódico, das qualidades pessoais extraordináriasde que Maria Elisa seria dotada (seu capital social, cultural ou específi-co do campo) era compensada na argumentação da campanha pelo cará-ter utilitário que poderia ter a presença de uma professora na Assem-bléia Legislativa: ela atuaria pelas professoras primárias (aparentementesuas eleitoras) e, desse modo, serviria também à infância. Também res-saltava o fato de que Maria Elisa era a única mulher a ocupar assento noLegislativo Estadual: um grande anúncio na primeira página do número36 (ago.-set./58) utiliza esse fato, dizendo ao lado de uma foto de MariaElisa Viegas: “Votar em Maria Elisa Viegas de Medeiros é contribuirpara a defesa dos direitos da Mulher através da palavra e da ação daprópria MULHER”. Utilizou-se, além desses temas, a atuação da depu-tada durante seu primeiro mandato, ressaltando-se como mais relevantesua bem-sucedida campanha para que o governo do Estado construísseum novo edifício para o Instituto de Educação de Pernambuco, tradicio-nal instância de formação docente. Também se deu destaque à sua parti-cipação na Comissão de Finanças quando da reestruturação de cargosdo funcionalismo estadual – o que implicou uma grande campanha sa-larial por parte das entidades sindicais, uma vez que se poderia estabele-cer uma escala mais ou menos favorável aos interesses das diversascategorias de funcionários. Aparentemente a atuação de Maria Elisa geroualguma polêmica, dado que ela se disse “incompreendida” e, em seudiscurso na Câmara, deu-se ao trabalho de ressaltar a dificuldade queencontrou para manter a imparcialidade, dado que era, naquele momen-to, presidente da Associação Pernambucana dos Servidores do Estado(APSE). Aparentemente em função dessas circunstâncias, a reeleiçãode Maria Elisa para o cargo de deputada estadual encontrava-seameaçada, o que justificou o artigo “Professoras! Às urnas em 3 de ou-tubro!” na primeira página do Jornal do Professor de junho de 1958 (n.34). Tal artigo propunha uma estratégia para os votos das sócias do CPPP,propondo que cada votante de Maria Elisa conseguisse mais dois votosentre os professores: “temos o dever moral de alerta, de garantir a subs-tituição a esses possíveis desvios de votos de colegas inexperientes, tí-midas ou mal-avisadas [...]” (p. 1). A proposta não surtiu o efeito espe-rado, uma vez que a presidente do CPPP não foi reeleita em 1959, tendo

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retomado seu cargo como diretora técnica do ensino primário, na Secre-taria Estadual da Educação.

Essas qualidades de modéstia e sobriedade no trato da figura públi-ca de Maria Elisa Viegas de Medeiros contrastam com a hierarquia desua posição no campo educacional, já que essa professora foi a “grandelíder” do CPPP e ocupou cargos relevantes na Confederação dos Pro-fessores Primários do Brasil, entidade que pretendia coordenar um mo-vimento docente em nível nacional. Modéstia similar aparece no casoda líder do professorado baiano, tornando tortuosos os mecanismos dedisputa e indicação dos candidatos da Sociedade Unificadora do Profes-sorado Primário nas assembléias – aparentemente, seria imperdoávelpara a quase candidata falar abertamente de sua disposição para lideraro movimento docente, o que a aproximaria de uma imagem política e,portanto, a faria menos exemplar como professora. Identifica-se, por-tanto, uma tensão fundamental entre a modéstia da professora (pois so-mente alguém exemplar poderia representar a categoria) e a propagandade si própria que é uma das estratégias fundamentais para a ação nocampo político1.

Os limites que o habitus professoral impõeàs ambições políticas

A documentação disponível para a associação baiana de professorespermite identificar as formas pelas quais a dificuldade com relação aosvalores do campo político são solucionadas, evidenciando uma lógica(schème) que é comum às entidades analisadas, embora as estratégias sediferenciem em função das condições objetivas de cada estado. Verifi-ca-se aqui uma relação peculiar, na qual se procura eleger uma profes-sora exemplar para a representação pública da categoria profissional,

1. Ver, a respeito dessas relações entre representação e exemplaridade (no sentidomoral, Bourdieu, 1990. Para mais informações sobre o movimento docente brasi-leiro, ver Lugli, 1997.

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em termos de uma imagem social que a associação se encarrega tanto dedefender junto ao público externo ao campo educacional como de culti-var e perpetuar entre os professores. Ora, como já se assinalou, a mo-déstia e a abnegação são virtudes exemplares para as mestras que en-tram em forte contradição com a necessidade de exposição, publicidadee auto-elogio de uma candidatura política. Uma grande dificuldade co-loca-se de saída: como pretender ganhar legitimidade suficiente paraser votada como representante do magistério se a mesma pretensão deser eleita (o interesse) desmente o desinteresse que é uma das marcasfundamentais da mestra e, portanto, torna-a indigna de representar ogrupo profissional?

As atas das reuniões de diretoria e assembléias da SociedadeUnificadora do Professorado Primário (SUPP) permitem visualizar as so-luções que se encontravam para essas dificuldades na prática, por meioda discussão das propostas de candidaturas para o legislativo estadual.Como nas demais associações, os principais “candidatos a candidato”surgem da cúpula dirigente – no caso baiano tratou-se da presidente daentidade, Raydalva Bittencourt, que duas vezes procurou obter o respal-do da SUPP. Como professora digna de representar a categoria, desinte-ressadamente devotada ao magistério, Raydalva não se apresenta – suacandidatura é proposta por suas colegas. Na primeira vez em que issoocorre, a situação parece cuidadosamente preparada por ela (que entãoera a presidente da entidade) para que seu nome surgisse “espontanea-mente” ante a questão “é possível que haja um candidato da categoriapara as eleições?”. O conflito estabelece-se quando surge imprevista-mente, ao lado de Raydalva, o nome de Hugo da Silveira, que era sócioda entidade e tinha se candidatado a deputado estadual – a proposta eraque a entidade o apoiasse como seu “candidato oficial”. Ora, os argu-mentos que o grupo a favor de Raydalva apresenta em defesa de suacandidata explicitam questões fundamentais ligadas à representação daprofissão.

O primeiro argumento é o relativo ao gênero – Hugo da Silveira nãorepresentaria devidamente o grupo profissional (no sentido de aparecercomo um exemplo do mesmo) pelo fato de ser homem. Dois professoresentão intervieram, opondo-se a esse argumento, sendo finalmente pro-

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posto o apoio da entidade a dois candidatos – um do sexo masculino eoutro do sexo feminino. Com a intenção de evitar a possível dispersão devotos que essa iniciativa acarretaria, o argumento que se apresenta paradesqualificar Hugo da Silveira é o de que ele “seria um candidato políti-co, conseqüentemente comprometido com o seu partido”, sendo neces-sário que o candidato da categoria fosse “apolítico”. A rejeição a umavinculação política explícita da entidade era tamanha que se chegou adeclarar que o partido político ao qual o possível candidato da categoriase filiaria era uma questão a ser resolvida isoladamente pelo mesmo.

A contradição nos termos não passou despercebida à assembléia,dado que se qualificou a exigência de “apoliticismo” [sic] do candidatoa ser apoiado pela entidade como “impossível” e “pouco prática”. Aquestão resolveu-se por meio do estabelecimento do princípio de que oscandidatos da categoria profissional deveriam priorizar os seus com-promissos com os colegas de trabalho aos compromissos com o partidopolítico a que pertencessem. A característica rejeição às formas políti-cas tradicionais volta a fazer-se presente ainda nessa reunião ante a ob-servação da professora Denise Tavares de que o grupo presente era umaminoria diante do total do professorado e que, portanto, a possibilidadede discussão de uma decisão tão importante como a da participaçãopolítica da categoria deveria ter sido explicitada pela entidade naconvocatória da reunião, o que levaria um maior número de professoresa participar da discussão. As respostas são reveladoras, em primeirolugar sobre as formas habituais de funcionamento da SUPP, quando duasassociadas próximas à diretoria esclarecem que todas as decisões im-portantes sempre tinham sido tomadas por uma minoria, dado que eraimpossível contar com a presença massiva das professoras para tomardecisões. Em segundo lugar, a desconfiança com relação aos políticosaparece no esclarecimento de Raydalva: segundo ela, a ausência do tema“participação política” da convocatória foi o resultado do receio da di-retoria de que uma maior divulgação do tema “chamasse a atenção doscandidatos demagogos, que tendo conhecimento da reunião, ali estari-am naquele instante, confundindo os professores e interceptando a sele-ção que ora se fazia através de argumentos francos”. Ao final desseencontro discutiu-se ainda possíveis sanções ao candidato da categoria

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que não honrasse os compromissos assumidos com os professores de-pois de eleito: a maior, senão única sanção proposta, era a denúncia da“traição à classe” perante a opinião pública.

No que se refere à seleção do candidato a ser apoiado pela SUPP, estanão poderia se basear somente num argumento de gênero e no distan-ciamento com relação à política partidária. Uma explicitação positivadas qualidades deveria ser feita, como apresentação dos critérios quejustificavam a escolha – e assim registrou-se na ata da reunião que aentidade deveria apoiar alguém “que se interessasse pelo professor dointerior, que tenha espírito de sacrifício; que fosse Supeano; que tivesseserviços prestados à classe; que tivesse serenidade e firmeza e que fosseprofessor primário em exercício” (Ata Diretoria, 17 de fev. de 1954). Onome de Raydalva V. Bittencourt então é finalmente apresentado comouma possível candidata pelos professores, qualificada como uma“supeana que preenchia os requisitos exigidos para a ocupação de tãoalto cargo”. Votam-se em seguida os dois nomes discutidos nesse en-contro e Raydalva obtém grande maioria, o que era de se prever, dada aforma como tinha sido conduzido o debate.

Raydalva era adequada como candidata dos professores não só pe-las características que lhe atribuíam, como pelo fato de que era nessemomento presidente da entidade pela segunda vez consecutiva e derainício a um período de crescimento significativo da mesma. Pode-sedizer que ela foi a “grande líder” da entidade, sendo a única eleita paradirigi-la mais de uma vez. Era uma liderança discreta, no entanto: suaprincipal estratégia de campanha era que cada professora partidária desua candidatura convencesse outra a votar nela: “gostaria de ter um caboeleitoral em cada escola. Esse cabo eleitoral terá de, depois de determi-nado tempo, dizer-lhe quantos votos supõe lhe sejam dados naquelaescola; isso fora a capital e o subúrbio. Esclarece que para ser eleitaprecisa, no mínimo, de 3000 votos.” (4 de abr. de 1954). O complemen-to dessa “propaganda boca-a-boca” foram visitas a quantas cidades dointerior fosse possível, o que se revelou insuficiente para eleger Raydalva,que teve apenas 2.758 votos, entre capital e interior – evidentemente,em plena campanha pelo aumento salarial não lhe era possível dedicar-se a essas atividades com a intensidade necessária, tendo visitado ape-

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nas 39 dos 173 municípios existentes. Essa foi uma das explicaçõesencontradas para a derrota da candidata – algumas professoras do inte-rior mencionavam que ou ela havia visitado seus municípios tarde de-mais ou não tinha estado nos mesmos: “a representante de Barra disseque o motivo da pouca votação nesse município foram: a SUPP não serconhecida, desunião do professorado e compromissos assumidos ante-riormente” (14 de fev. de 1955). Os compromissos das professoras dointerior com as lideranças políticas locais são explicitados ainda umavez, ao qualificar a campanha de Raydalva como

sui generis, sem cambalachos políticos, daí ter se tornado difícil, porém o

fator preponderante pelo qual a Sra. Presidente não foi eleita é a falta de

espírito classista, que o professorado ainda não tem. Em aparte diz a Profa.

Maria de Lourdes que o professorado do interior vivia dependendo devido

especialmente ao baixo ordenado [14 de fev. de 1955].

Pode-se dizer que o não-pertencimento ao campo político, que im-plicou a utilização de estratégias “sui generis”, bem como a “falta deespírito classista” e “a incompreensão do professorado”, que segura-mente se vincularam aos débeis resultados da campanha salarial daque-le ano, terminaram por levar à derrota da candidatura da SUPP aoLegislativo Estadual.

Três anos depois desse fracasso eleitoral, em 1958, novamente aquestão do apoio da SUPP a um candidato a deputado estadual foi apre-sentada na assembléia anual – trata-se aqui mais claramente que emoutras situações, desse possível representante no Legislativo Estadualcomo um representante da entidade antes que dos professores ou dointeresse público em geral, numa forma muito próxima à proposta origi-nalmente formulada pelo CPP em 1932. A diretoria da SUPP procuroupostergar essa questão, alegando que seu mandato terminava e que es-sas decisões correspondiam à próxima presidente a ser eleita. A Assem-bléia contestou essa decisão, inclusive porque a presença de associadosdo interior, que somente ocorria nessa ocasião, anualmente, dava maiorrepresentatividade às decisões tomadas. No correr da discussão, oimpasse entre a diretoria e os associados se esclareceu: a primeira não

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queria apresentar a candidatura de Raydalva Bittencourt para deputadaestadual pela associação e tampouco aceitava que a assembléia impu-sesse e votasse o tema autonomamente, ameaçando com demissão cole-tiva, o que talvez significasse o fim da entidade. A solução ao impassefoi proporcionada por Raydalva em seguida:

A profa. Raydalva pediu a palavra e com ardor defendeu a causa da Assem-

bléia que deseja se apresente um candidato da classe às próximas eleições; que

é esse um problema de responsabilidade coletiva e não apenas da diretoria; que

já esperou muito tendo o assunto sido preterido pela Presidente na ocasião em

que foi apresentado, com grande surpresa sua. O tempo urge; um mês, um dia

é tempo perdido para a vitória e, ante a atitude da Diretoria, retiro a minha

pretensão a candidata da classe [Assembléia Geral, 26 de fev. de 1958].

A retirada de Raydalva acalmou os ânimos da diretoria, que permi-tiu que se continuasse a discutir o assunto, sendo mencionado que umdeputado da SUPP agilizaria os trâmites do aumento salarial, que eraobjeto de “descaso” dos deputados. Aparentemente a SUPP terminou nãoindicando candidato no ano de 1958 e Raydalva participou da eleiçãopela União Democrática Nacional (UDN) de forma independente, tor-nando a obter baixa votação.

Contrasta singularmente com essa história de fracassos eleitorais atrajetória de Sólon Borges dos Reis, líder de longa data do CPP, queconseguiu conciliar a publicidade necessária à participação no campopolítico com a construção de uma imagem exemplar, o que lhe garantiusucessivas reeleições, tanto para a presidência da entidade como paracargos representativos nos legislativos estadual e federal.

O grande líder do Centro do Professorado Paulista –um modelo bem sucedido de representação

Sólon Borges dos Reis constituiu a grande liderança do CPP, apre-sentando uma imagem bastante original que, desde o início, vincula ocomando da entidade ao processo político-partidário, constituindo um

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eleitorado fiel com os professores associados à entidade. O sucesso dasestratégias eleitorais do presidente do CPP explica-se, em parte, pelacaracterização da figura de Sólon Borges dos Reis apresentada no pe-riódico oficial da entidade e, de outra parte, pelo grande crescimento donúmero de sócios, que eram atraídos pela estrutura de lazer e assistênciaque a entidade oferecia crescentemente durante sua gestão.

A imagem veiculada constantemente pelo jornal do CPP expressaos valores ideais com relação à docência, articulando-os de modo queexercesse um duplo efeito de representação: o grupo de professores re-conhece-se nessa imagem2, o que leva à sua reafirmação e perpetuação.Pode-se recuperar, dessa forma, elementos significativos do habitus pro-fessoral, que permitem compreender as estratégias associativas ereivindicatórias docentes num sentido que transcende tanto as convic-ções filosóficas quanto o cálculo político.

Sólon Borges dos Reis é caracterizado pelo periódico como um lí-der que conjuga um sem-número de qualidades morais e intelectuais, oque o leva a ser respaldado pela massa de professores nas manifestaçõespúblicas que ele convoca a partir de seu ingresso na presidência da enti-dade. A massa que o respalda está fartamente documentada nas fotogra-fias das passeatas de professores à Assembléia Legislativa ou ao Paláciode Governo para pedir melhores salários. Essa cobertura fotográfica dasatividades de Sólon intensifica-se e ganha dinamismo com a mudançado formato do periódico do CPP, que passa a ser jornal a partir de 1964.Esse não constitui o começo das iniciativas publicitárias do CPP – aRevista do Professor vinha sendo utilizada como veículo de propagan-da desde 1957, quando Sólon Borges dos Reis assumiu a presidência daentidade –, mas em 1958, ano da sua primeira eleição para deputadoestadual, a superexposição de sua imagem é notável, o que se alia àampliação do número de edições e de exemplares da revista, para acom-panhar o aumento do número de associados do Centro. A partir de 1960Sólon passa a utilizar esse veículo de propaganda com maior freqüên-cia, sendo que um dos elementos fundamentais de sua imagem pública

2. A imagem profissional dos professores passava por mudanças significativas nesseperíodo. A respeito, ver Lugli, 1997 e Vicentini, 2002.

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já se fazia presente, a saber – o conhecimento prático dos problemas doensino e das dificuldades do professor, que só a sua experiência lhepoderia dar e que era um diferencial significativo para sua atuação nolegislativo:

Deputado trabalhador, ardoroso e inteligente, Sólon Borges tem demons-

trado que é capaz de realizar muita coisa em favor da grande classe oprimida

que é o professorado paulista. Precisávamos desse arrojado e corajoso repre-

sentante. Que fosse da classe também e conhecesse, de perto, os magnos

problemas do ensino. Que conhecesse as amarguras do mestre escola, a sua

luta e sacrifício para conseguir certas insignificâncias e a abnegação de que é

portador [Reis apud Vicentini, 1997].

Paula Vicentini (1997) analisa em detalhe o impacto da primeiragestão do presidente do CPP no periódico da entidade, descrevendo umaforma de propaganda que dificilmente explicitava o seu caráter político:

No período que antecedeu as eleições de 1962, sobressaiu-se a intensa

divulgação das atividades de Sólon Borges dos Reis como Secretário da Edu-

cação no governo de Carvalho Pinto desde maio de 1962, com especial des-

taque para a lei que concedeu um aumento salarial ao magistério, sancionada

no dia de sua posse. Foi possível notar novamente uma grande exposição da

figura do presidente do CPP com fotos suas na capa da Revista do Professor

(n. 67 e 68), numa das quais estava ao lado do governador durante a assina-

tura da referida lei. A proximidade com autoridades do governo também era

registrada mediante a cobertura de eventos oficiais e de homenagens a sua

pessoa [...]. Por outro lado, uma matéria fartamente ilustrada sobre o seu

encontro com uma comissão de professores e alunos das escolas de surdos,

incluindo uma foto sua abraçando um aluno, procurava mostrar os vínculos

que mantinha com a categoria e as suas realizações no comando do ensino

paulista [...] [Vicentini, 1997, p. 181].

O conteúdo dessas fotos permite imaginar que a idéia de representa-ção política dos professores como uma forma de aproximá-los das ins-tâncias de decisão no poder público ainda tinha apelo, uma vez que o

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trânsito de Sólon Borges dos Reis nas altas esferas políticas estaduaisera evidenciado – ao mesmo tempo o potencial caráter negativo dessaproximidade (Sólon como político e, portanto, oportunista, traidor dosvalores desinteressados dos docentes) era amenizado/neutralizado porsua proximidade dos professores e a vivência das agruras da profissão.

Uma única vez a menção ao processo eleitoral aparece na Revistado Professor, num editorial escrito pelo próprio Sólon solicitando apoiopara a sua reeleição em 1962, a qual representaria uma “oportunidadepara o magistério demonstrar que não era ‘uma classe desunida’”(Vicentini, 1997, p. 182). O grande número do magistério, que sempreera usado contra o atendimento de suas reivindicações, passaria a seruma arma a seu favor – tanto no plano eleitoral como nas grandes mobi-lizações que se deram a partir de 1958 para tornar públicas as reivindi-cações do magistério.

Falta agora que o professorado se afirme como uma força política respei-

tável, que pese na balança das eleições. Para mostrar à opinião pública, aos

partidos políticos e aos governos que nós somos realmente uma grande ex-

pressão eleitoral e que exigimos, por isso também, a atenção e o respeito que

recebem todas as poderosas correntes de opinião, numa democracia verda-

deira. O 7 de outubro está aí. É uma grande oportunidade que os professores

têm para mostrar a união da classe, fazendo sentir que nós somos realmente

uma força. Precisamos ser uma força, pois ainda temos trabalho e luta pela

frente. Os interesses do ensino e as reivindicações do magistério ainda vão

exigir de nós muito trabalho e muita luta. Para vencer, é preciso que tenha-

mos força. As próximas eleições mostrarão se somos ou não uma classe uni-

da, e a nossa responsabilidade é muito grande por isso. Mas temos a certeza

de que, mais uma vez, os professores vão responder ‘presente’. E todos fica-

rão sabendo, de uma vez para sempre, que os professores de São Paulo for-

mam uma classe unida, que está disposta a cumprir a sua missão social de

defender a democracia no Brasil [Reis apud Vicentini, 1997, p. 182].

Esse texto vincula duas idéias fundamentais para a eleição do candi-dato dos professores paulistas – por um lado, a obtenção de “atenção” e“respeito” por parte das autoridades, que era uma reivindicação antiga

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da categoria, sempre desejosa de ver socialmente reconhecida a impor-tância de sua função. Por outro lado, a eleição de Sólon Borges dos Reisseria um gesto dos professores em defesa da democracia brasileira, ma-nifestação do desinteresse e altruísmo próprios da categoria profissio-nal – pode-se identificar aí, portanto, uma associação de representaçõesque equilibra o “interesse” por reconhecimento social com o “desinte-resse” da missão de defesa da democracia que se adequa notavelmenteàs características do habitus professoral.

O surgimento do jornal O professor em 1964 permite verificar commais detalhe a consolidação dessa imagem e as transformações que asmudanças das condições objetivas do campo educacional vão lhe im-pondo, uma vez que tanto a cobertura fotográfica como os textos depublicidade mais ou menos sutil surgem com maior freqüência. A su-cessiva exposição das fotos de Sólon nos braços da multidão de profes-sores ou discursando para a massa, bem como a enumeração de suas“conquistas” para o professorado como parlamentar e a freqüente expo-sição de seus dados biográficos, permite identificá-lo com um tipo deliderança populista, segundo os elementos apresentados por Weffort(1989). Desse modo, temos a massa de professores (especialmente en-tre 1964 e 1968, nas grandes manifestações de rua) sob o comando do“líder inconteste do professorado”, que incorpora e representa seusanseios:

[...] Sólon vivamente aclamado – terminada a votação, os professores não

arredaram o pé‚ da Assembléia. Só que agora concentravam-se no saguão

[…] à espera do prof. Sólon que não tardou a aparecer. Verdadeiro carnaval

de alegria contagiou todo mundo. Os professores aplaudiram delirantemente

o seu líder, por mais esta vitória espetacular em favor do professorado primá-

rio [O professor, n. 1, p. 11].

Essa relação, profundamente política, não aparece como tal – per-manece obscurecida pela identificação pessoal entre cada professor e olíder, identificação essa que parece dever-se a uma qualidade intrínsecado mesmo, ou seja, ao seu “carisma pessoal”. Os elementos que com-põem essa “misteriosa propriedade objetiva da pessoa”, nas palavras de

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Bourdieu, visam a dissimular o poder que a relação de representaçãoconfere ao líder, de modo que este apareça como pura e simples expres-são dos desejos daqueles que representa. É importante observar que nãose trata aqui das “intenções” do presidente do CPP e sim do modo comoo discurso a respeito dele se articula para legitimá-lo. O seguinte excertode Bourdieu contribui para esclarecer o sentido do que pretendo dizer:

De fato, não se trata de sair da representação ingênua do mandatário devo-

tado, do militante desinteressado, do dirigente cheio de abnegação, para cair

na visão cínica do mandatário como usurpador consciente e organizado [...]

A impostura legítima só é bem-sucedida porque o usurpador não é um calcu-

lador cínico que engana conscientemente o povo, mas alguém que com toda

a boa-fé considera-se uma coisa diferente da que ele é [...] em muitos casos

os interesses do mandatário e os interesses dos mandantes coincidem em

grande parte, de modo que o mandatário pode acreditar e fazer com que acre-

ditem que ele não possui interesses à margem dos interesses de seus mandan-

tes [Bourdieu, 1990, p. 200].

As qualidades atribuídas a Sólon Borges dos Reis pelo periódicosão basicamente as mesmas utilizadas para descrever os demais diri-gentes do CPP: experiência, dinamismo, cultura, honestidade etc. Noentanto, somente o perfil do presidente da entidade reúne todas as qua-lidades desejáveis para o líder do professorado: professor e administra-dor experiente, honesto, corajoso, independente, culto e outros mais.Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto, publicado em novembro de1978 no Jornal dos Professores, para apresentar alguns dados biográfi-cos do presidente da entidade:

Honestidade: Deputado de mãos limpas e cabeça erguida, demonstrou sem-

pre caráter e dignidade em todos os episódios e posições em sua vida [...] Um

homem responsável e que resolve: Conhecido no ensino e fora dele pela ex-

traordinária capacidade de trabalho [...] Enfrentando e vencendo os maiores

desafios, tem resolvido as questões mais difíceis. Independência: [...] Fora

do governo, nunca cortejou nem temeu o poder. Rompeu com três governos,

por causa dos professores ou por discordar dos métodos políticos.[...] Espíri-

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to público: [...] É um dos homens públicos mais sacrificados pelo seu senso

de responsabilidade. Com tantas oportunidades que já teve, servindo tanto e

a todos, não reivindicou nada para si. Quando deixar o Legislativo, só tem

um cargo para assumir: o de professor de Educação, que conseguiu por con-

curso de títulos e provas, quinze anos antes de ser deputado pela primeira vez

[Jornal do Professor, n. 154, nov. de 1978, grifos do original].

Características importantes a serem ressaltadas nesse excerto são,em primeiro lugar, o desinteresse do líder que se dedicou a lutar paraobter benefícios para os demais, e que, findo seu mandato, retornará aseu modesto ofício original. Destacam-se nas biografias do líder o gran-de número de atividades a que tem se dedicado: poesia, literatura, jorna-lismo, direito – essa diversidade de talentos aparece como a comprovara excepcionalidade daquele que tem centrado seus esforços na área edu-cacional, ou seja, essa figura admirável, portadora de tantas qualidades,é, afinal de tudo, um simples professor. E, nessa condição, não esquecesua origem e compreende as dificuldades de todos os professores, afinalexerceu “todos os postos docentes e administrativos de 1° e 2° graus”,além de lecionar no ensino superior. Segundo o Jornal do Professor deabril de 1980 (n. 168, p. 5):

O presidente, como todos ou quase todos os demais dirigentes do CPP,

começou sua vida de professor exercendo as funções de substituto efetivo,

antes de ingressar no magistério por concurso. Conhecem eles todos, por

isso, como ninguém, e por experiência própria, a problemática dos colegas

agora chamados de estagiários e que enfrentam, hoje, situação muito difícil.

O periódico do CPP publica freqüentemente testemunhos de profes-sores comuns: associados agradecidos por alguma conquista salarial oufuncional, bem como expressões de apoio e admiração ao líder. Taismanifestações de apoio passam a ser especialmente bem-vindas depoisde 1968, quando as grandes passeatas não puderam mais ser realizadasdevido ao recrudescimento da repressão do regime militar. Nesse senti-do, em dezembro de 1972 encontramos um longo texto em O Professor,(n. 42, p. 5), intitulado “Ajudando escolas e semeando livros: presiden-

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te do CPP é patrono de biblioteca”, que relata a solenidade de inaugura-ção da biblioteca do Grupo Escolar “Orestes Guimarães”. O discursocontendo o elogio dos professores ao deputado Sólon Borges dos Reisreproduz as qualidades continuamente enfatizadas pelo periódico do CPP:

Tentaremos fazer um pálido esboço da vida desse homem público. Profes-

sor primário, era já apaixonado por assuntos da educação. Fez o curso de

Pedagogia na Universidade de São Paulo. Exerceu o magistério nos três ní-

veis de ensino, o que afasta qualquer dúvida sobre sua vivência dos proble-

mas da educação. De teóricos da educação o ‘mercado’ está saturado.

Os cargos que ocupou como administrador do sistema de ensino,tanto por concurso como os cargos de confiança são enumerados, paradizer: “Teremos então este líder inconteste, este político honesto, esteadministrador competente que teve seus inquestionáveis méritos reco-nhecidos não só pelo governo brasileiro como também por governantesestrangeiros dos quais foi convidado especial”. A imagem extensamen-te cultivada de Sólon Borges dos Reis torna-se, de certo modo, mítica:ele simboliza o professor ideal, uma espécie de parâmetro no qual todospodem se reconhecer. Muitas vezes, num efeito de metonímia, análogoao assinalado por Pierre Bourdieu (1990) em sua análise do fetichismopolítico, Sólon Borges dos Reis é tomado pela entidade que representa,como pode-se ver no seguinte excerto:

A seu respeito, disse o prof. Paulo Nathanael Pereira de Souza: “... a figura

do deputado Sólon Borges dos Reis que, mais do que o professor, tornou-se

o símbolo do professorado na luta que esta classe empreende permanente-

mente na defesa dos seus interesses. Conhecedor de Educação como poucos,

portador de um prestígio de liderança raramente encontrado, é nele que eu

quero depositar o meu aplauso para que, através dele, esse aplauso se reparta

pela entidade e por todo o magistério” [O Professor, n. 80, p. 8].

Encontramos ainda as palavras de José Ramos de Brito:

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Nestes anos todos a história da luta de nossa classe se confunde com a

história do Centro do Professorado Paulista, e com ele, a do Prof. Sólon

Borges dos Reis, quer como presidente, quer quando exerceu a deputação

estadual durante cinco mandatos, quer como deputado federal [...] Sólon não

é somente um homem político, na expressão bela da palavra, como orientador

e intérprete das aspirações populares, mas, [...] poeta, escritor, professor e

advogado [Jornal dos Professores, n. 247, ago./set. de 1990, p. 12].

Bourdieu assinala o caráter paradoxal dessa situação, “quando ogrupo só pode existir pela delegação a uma pessoa singular [...] habilita-da a agir como pessoa moral, isto é, como substituto do grupo” (1990, p.189). Estabelece-se uma relação circular, em que a base do poder dorepresentante é o grupo que o escolheu e esse grupo, por sua vez, sópassa a existir simbolicamente a partir do momento em que passa a terum representante.

Essa relação entre associados e líder estabeleceu-se muito eficazmen-te no caso do CPP, sendo alimentada pelo inegável impulso que a presi-dência de Sólon Borges dos Reis deu à entidade. Não é gratuita, portanto,a menção, nos artigos laudatórios, ao crescimento do patrimônio do CPPe à visibilidade que este passou a ter (e com ele o magistério primário):

colocou essa entidade de classe [o CPP] na vanguarda do prestígio moral e

social e ampliou extraordinariamente o patrimônio material do CPP. Mobili-

zou o professorado paulista em dimensões até então desconhecidas no País,

com memoráveis campanhas democráticas a serviço do ensino e do magisté-

rio, que lhe devem importantíssimas conquistas em matéria de vencimentos

e direitos [O Professor, n.80, p. 8, nov. de 1974].

Ainda há alguns episódios que são recorrentes no discurso do jornaldo CPP – constantemente rememorados com intuito de exibir a inde-pendência desse parlamentar que, muito embora fizesse o jogo político(para beneficiar os professores), não se deixava conspurcar pelas “sedu-ções corruptoras do poder”. Esses relatos tornam-se mais freqüentes apartir de 1979, quando as acusações de “peleguismo” contra Sólon Borgesdos Reis parecem motivar uma seção intitulada “Fatos falam mais do

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que palavras: passando o espanador na memória”, na qual se lembra aoprofessorado o papel fundamental desse líder nas lutas passadas do ma-gistério.

Essa tentativa de recuperar o prestígio de Sólon Borges dos Reisocorre num momento de polarização do campo educacional, quandouma nova representação a respeito da profissão docente se impõe comolegítima, em detrimento dos valores representados por Sólon e pelo CPP.Ganha espaço, no contexto da redemocratização política do país e numasituação econômica e institucional muito diferente daquela em que aimagem de Sólon surgiu e se consolidou, a representação do “professorcomo trabalhador” e do “Estado como patrão” que coloca de forma di-reta a relação entre o serviço prestado pelos docentes e sua remunera-ção, deixando em segundo plano as características “morais” queestruturavam os modos anteriores de conceber a profissão. Sólon Borgesdos Reis passa a ser considerado um “traidor” da causa dos professorese um líder antidemocrático, não obtendo a reeleição para deputado esta-dual em 1979. Esse fato levou à retomada, no periódico do CPP, dodiscurso corporativo do “representante da classe”, muito presente nosprimeiros anos do CPP, em termos bastante explícitos, como se vê noseguinte excerto de Pedro Castilho Fernandes:

Mesmo ausente da Assembléia Legislativa, e longe da Câmara Federal,

para a qual não foi eleito apesar dos quase 30 mil votos obtidos em 1978, o

Prof. SOLON, nestes últimos e sofridos anos, não abandonou a trincheira de

combate aos demagogos e carrascos do magistério [...] devemos dar ao Prof.

SOLON BORGES DOS REIS o mandato que precisa ter para que seja repos-

to tudo aquilo que nos foi tirado pela demagogia e pela insensibilidade da

política atual [“Uma tribuna para Sólon”, Jornal dos Professores, n. 188, set.

de 1982, p. 4].

“Professores nos Parlamentos”, de Milton de Oliveira, é outro exem-plo nesse sentido: o autor inicia explicitando as razões pelas quais osprofessores devem eleger representantes da categoria nos níveis muni-cipal, estadual e federal e especialmente esse último, visto que se trata-va de eleger os deputados que formariam a Assembléia Constituinte.

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contando com representantes da classe nos diversos parlamentos, tudo fica

mais fácil para o atendimento às reivindicações da categoria e na feitura de

leis de interesse do magistério [...] Não podemos esquecer que quando tive-

mos um representante na Assembléia Legislativa, as coisas, embora de difí-

cil solução, sempre ficaram mais fáceis e os problemas eram contornados. E

foi durante o tempo que contamos com esse deputado estadual que, através

de seu trabalho, o magistério de São Paulo obteve muitas de suas melhores

conquistas [Jornal dos Professores, n. 211, set. de 1985, p. 12].

Como se vê, a cada eleição surgiam artigos explicando aos associa-dos do CPP porque deveriam votar em um candidato dos professores eas razões que faziam de Sólon Borges dos Reis a melhor escolha. A esserespeito, o artigo “Antes: Professor não votava em professor; Agora: Osprofessores votarão em professores”, de Maria Alice Bicudo Soares éexemplar e por isso me permito citá-lo extensamente:

Historicamente, professor não tem votado em professor [...] não basta que

o candidato tenha um diploma de professor. Não! Ele tem que ter compro-

missos com o magistério e com a educação e já ter provado isso pela sua

história de vida e nós precisamos saber onde esteve e o que fez o candidato,

nos últimos anos [...] Vamos ser corporativistas, neste momento! Este

corporativismo é sadio! Ele visa a melhoria da educação de nossas crianças e

de nossos jovens através do resgate da qualidade do ensino público e da

dignidade dos professores da rede pública. Este corporativismo que visa a

tirar a nossa juventude da situação em que se encontra, hoje, vítima que é do

descaso dos governos [..] Professor, este ano é fácil votar em professor! Te-

mos a felicidade de contar, em nossa categoria, com o candidato mais capaci-

tado e mais comprometido com a educação em nosso Estado, talvez do País.

Trata-se do Professor Sólon Borges dos Reis [...] Teremos, com sua reelei-

ção, a certeza de que demos nosso voto a alguém que, como nós, no início de

sua carreira no magistério comeu poeira de estrada como professor de escola

rural, que sofreu o que todos nós sofremos, ocupando todos os seus cargos,

que conhece profundamente as especificidades da carreira do magistério, que

nunca esqueceu o que é ser professor, que sempre lutou e suou a camisa em

defesa dos professores, mesmo durante o período da ditadura militar, quando

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fazer isso era muito mais difícil e que já defendia a escola pública e os pro-

fessores quando eu e muitos outros, que hoje até se dizem candidatos dos

professores, ainda freqüentávamos os bancos da escola primária [Jornal dos

Professores, n. 247, ago./set. de 1990, p. 3].

É importante ressaltar que na década de 1980 a candidatura de SólonBorges dos Reis passa a ser acompanhada pela apresentação dos nomesde sócios do CPP também candidatos a cargos eletivos. Continua a nãohaver menção a partidos políticos nas páginas do jornal, à semelhançados primeiros investimentos eleitorais da entidade na década de 1930 –os candidatos das mais variadas tendências tiveram sua foto e seu nú-mero para a votação apresentados. A distinção entre os candidatos faz-se por meio do espaço que lhes é concedido no periódico: Sólon Borgesdos Reis é continuamente tema de artigos e tem sua biografia extensa-mente apresentada.

A ausência de relação entre as candidaturas e a política partidárianas páginas do periódico do CPP pode ser justificada pelo caráterpopulista da liderança de Sólon Borges dos Reis, pois, como é indicadopor Weffort, uma das principais marcas do populismo é o fato de queelude o aspecto político da relação entre o líder e as massas, levandocada indivíduo a identificar-se isoladamente com o líder, daí o caráterde “personalismo” que o caracteriza. Essa característica do populismocombina-se com a “neutralidade” pretendida pelo CPP desde sua funda-ção, que leva a associação a enfatizar os aspectos profissionais – o queimporta é o fato de o candidato ser professor, colocando em segundoplano sua opção política. Particularmente quanto a Sólon Borges dosReis, é possível considerar se a pouca expressão do PDC, partido a queesteve filiado até 1965, quando da instauração do bipartidarismo, nãoteria contribuído para esse “ocultamento” das relações políticas, o mes-mo podendo-se dizer da legenda a que pertence atualmente, o PartidoTrabalhista Brasileiro (PTB) que tampouco tem grande expressão, emSão Paulo. No que se refere ao segundo partido a que esteve filiado, aAliança Renovadora Nacional (ARENA), essa somente era mencionadapara ressaltar a independência de Sólon, dizendo algo assim como:“Sólon, mesmo pertencendo ao partido da situação não apoia o governo

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quando este prejudica os professores”. Um exemplo interessante é aeleição de 1974, quando, eufórico, O Professor anunciava: “Povo reele-ge deputado – Sólon eleito pela 5ª vez”.

A extraordinária votação obtida pelo conhecido educador e homem públi-

co impressionou os meios políticos do Estado, por ter sido recebida na mais

difícil das eleições que já tivemos, em que a esmagadora maioria do eleitora-

do se recusava a votar em candidatos da situação, por melhores que fossem

[...] e preferiu votar na oposição, mesmo sem se fixar em qualquer nome de

candidatos, mas apenas na legenda oposicionista [n. 81, p. 4].

***A análise das formas de participação política dos professores primá-

rios no Brasil revela, antes de mais nada, o desconforto desses professo-res com o cálculo explícito e a publicidade que são próprios da esferapolítica – duas características que chocam frontalmente a matriz de dis-posições individuais socialmente gerada por essa forma de trabalho(habitus professoral). Em outras palavras, o “modo de ser professor”,incorporado durante a passagem pelas instâncias de formação (seja aescola normal ou a prática, no caso dos leigos) e pelos anos de atividadenas escolas, acaba por conformar as estratégias de participação políticada categoria3.

O que constitui esse modo de “ser professor” aparece, de forma sin-tetizada, na representação do professor ideal, aquele que expressa asqualidades da imagem pública da categoria. A vivência do cotidiano daprofissão é valor fundamental – há uma exigência quanto à prática queserve para localizar o candidato do lado dos professores primários, ouseja, daqueles que não são “teóricos” da educação4. Observe-se, portan-to, que a distância necessária com relação às práticas políticas tradicio-nais (a “neutralidade”) não se justificava sempre pelo conhecimento

3. O mesmo se dá com as formas associativas e para reivindicação salarial.4. A respeito dessa oposição entre teoria e prática e sua correspondência com a situa-

ção objetiva do campo educacional nas décadas de 1950 a 1970, ver Lugli, 2002.

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especializado (teórico) que se supunha condição para tratar do ensino –muitas vezes a questão que incomodava deveras os professores era ainexistência de regras claras (ou que fossem cumpridas de fato) para avida profissional – como exemplo, as denúncias de remoções sem con-curso, por apadrinhamento, são freqüentes. Os professores primáriosdevem defender-se, portanto, de dois grupos: os “teóricos” e os “políti-cos”. Nesse sentido, chama a atenção a capacidade de mobilizar conteú-dos desses grupos “a evitar” que foi realizada por Sólon Borges dosReis, sem que isso significasse a “traição” aos valores docentes. A apro-priação do discurso populista, que permite se distanciar dos partidos edas formas políticas tradicionais, seguramente teve um papel nesse pro-cesso. No entanto, também se pode indicar como parte de uma explica-ção possível para o sucesso de Sólon Borges dos Reis, fatores simbóli-cos ligados às dimensões do gênero e da religiosidade – afinal, acaracterização que dele é feita, como o homem que salvará/redimirá omagistério tão vilipendiado, tem um apelo ao mesmo tempo românticoe religioso5.

As origens religiosas da profissão se fazem sentir, embora indireta-mente, na necessidade de despreendimento e espírito de sacrifício que éuma das marcas desse ideal de professor – essa característica tambémreflete, de certa forma, as condições da prática: a carreira que se inicia-va sempre nas “piores” escolas e a precariedade do trabalho (com rela-ção a um modelo escolanovista). Esse valor de despreendimento nãotem como conseqüência direta, como se tem assinalado, a falta de recla-mos salariais e sim uma forma oblíqua de reivindicar melhor pagamen-to: esse deveria equivaler à importância da função, à sua nobreza, poissomente alguém muito vocacionado para o magistério permaneceria numtrabalho tão sacrificado. Trata-se, na verdade, de um grupo de “eleitos”,que garantia o progresso da nação e a democracia – qual o pagamentoadequado para um serviço de natureza tão sublime?

5. Há uma série de charges no Jornal dos Professores que caracteriza Sólon Borgesdos Reis como um cavaleiro medieval – o tema, embora pretendesse ser humorís-tico, não destoa do conteúdo do periódico e mesmo o sintetiza, no que se refere àfigura do presidente da entidade (Lugli, 1997).

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Em que medida o habitus professoral deve suas características aoutros habitus, como os de origem social ou de gênero pode ser apenasvisualizado – seguramente as características de afetividade e modéstiaevidenciadas nas fontes vinculam-se a aspectos de gênero, o que contri-bui para a compreensão tanto das razões do sucesso de Sólon Borgesdos Reis no plano eleitoral como dos relativos fracassos de Maria ElisaViegas de Medeiros e Raydalva Bittencourt. Deve-se observar, no en-tanto, que não se trata apenas de considerar os esquemas de percepção eação dos agentes – o capital simbólico (social, escolar e educacional) deque dispõem para participar das disputas eleitorais também influi nosprocessos aqui descritos e a menção reiterada no jornal do CPP aos vá-rios diplomas do grande líder expressa bem essa dimensão do cálculode possibilidades de “lucro simbólico”. Também se pode observar aí ofenômeno da “conversão” de capital simbólico que se pretendia operarde outros campos para o educacional. De modo semelhante, a trajetóriade Maria Elisa Viegas de Medeiros na alta hierarquia do ensinopernambucano evidencia a posse de um capital considerável naquelemeio, advindo tanto da posse de diplomas como possivelmente de suasorigens sociais.

Combinam-se no processo de construção das representações profis-sionais do professor durante o período examinado um conjunto diversi-ficado de elementos que a noção de habitus permite articular: a mudan-ça nas condições objetivas de trabalho e de formação docente, adelimitação do campo da política partidária e os novos modelos de es-cola e de docência que se propunham como desejáveis. Esses fatorescontribuem para a produção de representações, mediadas pelas associa-ções docentes, nas quais os professores podiam se reconhecer e às quaispoderiam reconhecer eleitoralmente, sempre que o campo político e aforça do habitus o permitisse.

Referências bibliográficas

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WEFFORT, F. (1989). O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz eTerra.

Recebido: 7 de out. de 2004Aprovado: 2 de maio de 2005

Modificado: 18 de maio de 2005

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Resenhas

Os intelectuais na Idade Média

autor Jacques Le Goffcidade Rio de Janeiroeditora José Olympioano 2003

O livro de Jacques Le Goff foi editado pela primeira vez em 1957e teve sua segunda edição em 1985, sem modificações (ambas porEditions du Seuil). Essa nova edição em língua portuguesa confirma,mais uma vez, sua importância entre os clássicos que nos possibilitamuma leitura da educação inserida nos fenômenos de longa duração, es-pecialmente quando propicia uma releitura de um período histórico quefoi preconceituosamente convencionado como a “Idade das Trevas”. Oleitor ainda tem acesso ao ensaio bibliográfico cuidadosamente prepa-rado por Le Goff (36 páginas). Entre os problemas colocados pelo au-tor está o da organização corporativa do magistério, presente desde agênese da sua constituição. Um outro aspecto que se destaca na leituraé a gênese da definição da “função docente” imbricada na negociaçãodo reconhecimento social. Os intelectuais estão situados na evoluçãoescolar, na revolução urbana que vai do século X ao século XIII: aseparação entre escola monástica, reservada aos futuros monges, e es-cola urbana, em princípio aberta a todos, sem exclusão dos estudantesque permanecem leigos. Ao lado do nascimento e da riqueza, o sistemauniversitário permitiu uma real ascensão social a um certo número defilhos de camponeses, por meio do exame, um processo totalmentenovo no Ocidente.

Foi pela evolução das escolas catedrais, assumindo um carátermais corporativo, que se alcançou o instituto de universidade: o studiumgenerale. Em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola epis-copal onde se destacou o prestígio de Abelardo, por volta de 1150,instituindo um curso referente ao trivium (as três artes liberais ele-mentares: gramática, retórica, lógica), depois à teologia, ao direito, àmedicina, que vinham constituir o nível superior de ensino. Os cursoseram de artes e teologia. Para a docência de artes exigia-se pelo me-

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nos seis anos de estudo e a idade mínima de 20 anos. Para o ensinode teologia requeriam-se pelo menos oito anos de estudos (cincoanos de teologia e a idade de 34 anos). Concluído o curso de artes oestudante prestava exame diante de três ou quatro mestres; em se-guida era admitido à Determinatio, ou seja, à exposição indepen-dente e pessoal de certas questões, sob a presidência do respectivoprofessor. Este evento dava-se no período quaresmal. Promovido abacharel (baccalaureus), passava a explicar publicamente os livrosoficiais de texto por um espaço de dois anos. Esses livros eram asobras de Aristóteles e as obras gramaticais de Prisciano. Depois dis-so recebia o título de Magister Artium. Para o magistério de teologiaa exigência era maior, exigia-se três bacharelados: o bacharel bíbli-co lecionava durante dois anos a Sagrada Escritura. O bacharelsentenciário lecionava as sentenças de Pedro Lombardo, depois dis-so tinha-se o Magister actu regens. As duas principais formas deensino eram a lição (lectio), que consistia na leitura e na explicaçãode um determinado texto e a disputação (disputatio), que era condu-zida por um ou mais mestres, numa espécie de torneio intelectual.

O mundo muçulmano precisava das matérias-primas do ocidente(madeiras, espadas, peles, escravos) para suas enormes clientelasurbanas – de Damasco, de Feustat, de Tunis, de Bagdá, de Córdoba.Os embriões das cidades são os “portus” e se desenvolvem de modoautônomo ou ligado aos flancos das cidades episcopais ou dos“burgos” militares, desde o século X. No século XII os produtosmais raros do Ocidente vêm do Oriente, com as especiarias e a sedaos manuscritos trazem ao Ocidente cristão a cultura greco-árabe. Asobras de Aristóteles, de Euclides, de Ptolomeu e de Galeno acompa-nharam no Oriente os cristãos heréticos – monofisistas e nestorianos –e os judeus perseguidos por Bizâncio, e por eles foram legadas àsbibliotecas e escolas muçulmanas que as receberam em grande nú-mero. O encontro entre o Ocidente e o Oriente é, antes de tudo, umafrente militar de combate com armas, nas Cruzadas. Os tradutoresdo grego para o latim foram espanhóis que viveram sob o domíniomuçulmano, assim como judeus e muçulmanos. Le Goff empenha-se em mostrar que mais do que a matéria, a contribuição maior tal-vez tenha sido o método: a curiosidade, o raciocínio e toda LógicaNova de Aristóteles com as duas Analíticas (priora e posteriora), osTópicos, os Elenchi (Sophistici Elenchi) que acrescentaram à Lógi-

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ca Vetus – conhecida por meio de Boécio. As contribuições propria-mente árabes podem ser exemplificadas na aritmética, e particular-mente com a álgebra de Al Karismi – à espera de que nos primeirosanos do século XIII, Leonardo de Pisa dê a conhecer os “algaris-mos” ditos arábicos, na verdade indianos, mas vindo da Índia pelosárabes. Os centros dessa incorporação à cultura cristã são represen-tados por Chartres, as vizinhanças de Paris, mais tradicionalmenteLaôn, Reims, Orléans e as feiras de Champagne.

Em Paris a voz dos goliardos é peculiar. De origem urbana, cam-ponesa ou nobre, antes de tudo são errantes, representantes típicosde uma época em que o desenvolvimento demográfico, o despertardo comércio e a construção das cidades lançam nas estradas e reuni-do em suas encruzilhadas, que são as cidades, os deslocados, auda-ciosos e infelizes, que excluídos das estruturas estabelecidasrepresentam o maior escândalo para os espíritos tradicionais (p. 48).A Alta Idade Média esforçava-se para situar cada um no seu lugar,na sua ocupação, na sua ordem, na sua condição. Os goliardos for-mam nas escolas urbanas aqueles grupos de estudantes pobres quevivem de expediente, tornam-se domésticos dos condiscípulos afor-tunados ou vivem de mendicância. Alguns, para ganhar a vida, tor-nam-se jograis ou bufões. Entre os goliardos encontraremos, talvez,Pedro Abelardo que, ao tornar-se um mestre, se estabeleceu no Montede Sainte Geneviève. Abelardo foi antes de tudo um lógico e deixouum método com seu Manual de lógica para principiante e sobretu-do com Sic et non. Afirma que é preciso uma ciência da linguagem,já que é difícil para as pessoas se entenderem. As palavras são feitaspara significar e constituem o único lugar da generalidade – onominalismo –, mas as palavras também têm fundamento na reali-dade. Le Goff também revisita a relação entre Abelardo e Heloísafazendo considerações sobre a corrente antimatrimonial do séculoXII, destacando o tema da mulher e do casamento nesse período (p.64) ao lembrar que a própria Heloísa evoca a imagem do casal inte-lectual pobre que formariam (p. 65) sem poder conciliar as respon-sabilidades de trabalho intelectual e a infra-estrutura que uma talfamília necessita, quando se é um professor.

Chartres é o grande centro científico em que não se desenha-vam as artes do trivium, mas o estudo das coisas, que eram objeto doquadrivium – aritmética, geometria, música e astronomia. Os

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chartrianos sustentam seu racionalismo na crença sobre a onipotên-cia da natureza. A natureza é em primeiro lugar um poder fecundan-te, perpetuamente criador, mater generationis (mãe da geração, mãegeradora). Mas a natureza é também o cosmos, um conjunto organi-zado e racional. É a rede das leis, cuja existência torna possível enecessária uma ciência racional do universo. O espírito chartriano éhumanista não apenas no sentido que invoca a cultura antiga paraedificação de sua doutrina, mas porque põe o homem no coração desua ciência e de sua filosofia. Retoma a metáfora estóica do mundo-fábrica, mediante obra de Gerhoch de Reichersberg, o Livro sobre oedifício de Deus. Para Honório de Autun, o exílio do homem é aignorância e sua pátria é a ciência. Chegamos a essa pátria pelasartes liberais, que são igualmente cidades-etapas. A primeira cidadeé a gramática, a segunda cidade é a retórica, a terceira cidade é adialética, a quarta cidade é a aritmética, a quinta cidade é a música,a sexta cidade é a geometria e a sétima cidade é a astronomia, aoitava cidade é a física, na qual Hipócrates ensina aos peregrinos asvirtudes e a natureza das ervas, das árvores, dos minerais, dos ani-mais; a nona cidade é a mecânica, pela qual os peregrinos aprendem otrabalho com os metais, a madeira, o mármore, a pintura, a escultura etodas as artes manuais; a décima cidade é a economia que é a porta dapátria do homem, nela se regulamentam os Estados e as dignidades,nela se distinguem as funções e as ordens.

O autor enfatiza, sobremaneira, o “ofício de ensinar” ao afirmarque “o século XIII é o século das universidades porque é o séculodas corporações”. A dinâmica de todas as corporações é a mesma:“Em cada cidade em que existe um ofício agrupando um númeroimportante de membros, esses membros se organizam em defesa deseus interesses para instaurar um monopólio que os beneficiem”(p. 93). Entretanto a dinâmica da universidade põe no centro do de-bate a relação entre o conhecimento e a sustentação, a aliança ou aruptura com os poderes. “É lutando, ora contra os poderes eclesiás-ticos, ora contra os poderes leigos”, que as universidades adquiremsua autonomia (p. 94). O caso exemplar de Paris é destacado emseus sangrentos acontecimentos, que põem frente a frente os estu-dantes e a polícia real, culminado na conquista da autonomia dauniversidade. Durante dois anos não há cursos em Paris: só em 1231é que São Luis e Branca de Castela reconhecem solenemente a inde-

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pendência da universidade. Os universitários encontraram um alia-do todo-poderoso: o papado. Isso teve um preço, é claro. Assim osprofessores se tornaram agentes pontifícios. Assim, “nascidos de ummovimento que caminhava para o laicismo, integram-se à igreja,mesmo quando buscam, institucionalmente, sair dela” (p. 100).

A questão salarial dos intelectuais é apresentada a partir do dile-ma salário X benefício, a tendência preponderante foi a dos mestresem viver do dinheiro pago pelos estudantes. A gratuidade do ensino,proclamada pela Igreja no Concílio de Latrão de 1179, tinha comoobjetivo garantir o ensino aos estudantes pobres. Mas a Igreja nãopode mantê-los. As congregações seculares opunham-se à extensãodo espaço ocupado nas universidades pelos mestres pertencentes àsnovas ordens mendicantes. Os mendicantes, graduando-se em teo-logia, lecionam sem ter obtido previamente o mestrado em artes e,vivendo de esmolas, não exigem pagamento.

No declínio da Idade Média, entre as guerras e a evolução darenda feudal que assume a forma monetária, as classes dos artíficesassumem formas proletárias, igualando-se aos camponeses. As ca-madas superiores fundem-se à classes dominantes. São designadospara lecionar os obscuros professores das escolas comunais, nomomento em que o título de mestre adquire um outro status. Deinício, no século XII, o magister é o contra-mestre, o chefe da ofici-na. O mestre-escola é mestre como são os outros artesãos. Isso mudaquando os intelectuais não aceitam mais o risco de serem confundi-dos com trabalhadores. Assim se cumpre a cisão entre a teoria e aprática, entre a ciência e a técnica, modificando o impulso que noséculo XII e XIII aproximava as artes liberais das artes mecânicas.O exemplo principal é encontrado na medicina: a separação opera-se entre o médico-clérigo e o boticário-comerciante, cirurgião. Noséculo XIV a divisão de cirurgiões, distinguindo os cirurgiões debeca (bacharel ou licenciado) e os barbeiros (que cortam barba ecabelo e fazem pequenas cirurgias, vendem ungüentos, fazem san-grias, curam feridas, contusões e abrem abscessos), é feita por meiode diferentes editos.

A mudança social faz operar uma modificação na própriaescolástica que passa a renegar suas exigências fundamentais. Noque se refere ao “equilíbrio entre a razão e a fé” (p. 162) as expres-sões dessa mudança podem ser destacadas na corrente crítica e céti-

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ca que tem sua origem em Duns Scot e Ockham. Por essa correntechegamos à distinção entre um conhecimento abstrato e um conhe-cimento intuitivo: o conhecimento abstrato “não nos permite saberse uma coisa que existe, existe, ou se uma coisa que não existe, nãoexiste... o conhecimento intuitivo é aquele através do qual sabemosque uma coisa é, quando ela é; e que ela não é, quando ela não é” (p.163), passando-se assim para a valorização do livre-arbítrio. Outrasexpressões são encontradas no experimentalismo científico(Autrecourt, Buridan, Oresme), que enfatiza a experiência “não doutudo isso como certeza, mas apenas pediria aos Senhores Teólogosque me explicassem como tudo isso se produz” (p. 165). Na políticao averroísmo de Marsílio de Pádua desempenhará um papel impor-tante junto ao imperador Luís da Baviera na luta contra o papado.Marsílio assimilou a tradição gibelina que representou a mais im-portante luta contra as aspirações pontifícias em relação ao domíniodo temporal, o princípio da separação dos poderes espiritual e tem-poral e a reivindicação do poder temporal para o imperador (p. 175),justificando a autonomia do Estado, fundada na separação do direitoe da moral. O antiintelectualismo (Eckhart, Nicolas Cues, Pierred’Ailly) se expressa pelo ataque ao aristotelismo e a apologia quefaz à douta ignorância. O cardeal Nicolas de Cues assim se expres-sa: “hoje é a seita aristotélica que prevalece, e ela considera umaheresia a coincidência dos opostos, cuja admissão é o único cami-nho para a teologia mística” (p. 167).

As universidades seguiram rumo a uma aristocracia universitá-ria; em Bolonha é reclamado um direito preferencial para filhos dedoutores na sucessão das cadeiras vacantes. Tudo o que cerca osrituais universitários passa a representar os símbolos de nobreza (anelde ouro, emblema, barrete, túnica, capuz e longas luvas passam aser, na Idade Média, símbolos de posição social e de poder). O inte-lectual integrando-se aos grupos privilegiados desaparece para darlugar ao humanista. Esse é um aristocrata e ao tratá-lo, historica-mente, é preciso destacar o movimento que retira os intelectuais dacidade, levando-os para o campo. O meio do humanista é a corte,notadamente o Collège des Lecteurs Royaux (Colégio dos LeitoresReais), que se tornará o Collège de France. Erasmo, em seu Ban-quete Religioso, admira que “haja pessoas que se deleitem com afumaça das cidades”. Um outro aspecto é a desvinculação entre a

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ciência e o ensino. A imagem escolhida por Le Goff para finalizarsua apresentação da passagem dos intelectuais da Idade Média paraos humanistas é o contraste entre o professor, colhido em sua ativi-dade de ensinar, cercado pelas bancadas em que se espreme o audi-tório e o erudito solitário, em seu gabinete.

Gesuína de Fátima Elias LeclercDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e bolsistada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES).

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Manifesto dos Pioneiros da Educação:um legado educacional em debate

autor Maria do Carmo Xavier (org.)cidade Rio de Janeiro

Belo Horizonteeditora Editora da Fundação

Getúlio VargasFaculdade de CiênciasHumanas (FUMEC)

ano 2004

Em 2002, por ocasião dos setenta anos do Manifesto dos Pio-neiros da Educação Nova, diversos eventos foram realizados noBrasil, buscando lançar novas luzes sobre o documento que vemsendo apontado, já há algumas décadas, como um marco na históriada educação brasileira. Resultado dos trabalhos apresentados em umdesses eventos – o Colóquio Nacional “70 anos do Manifesto dospioneiros: um legado educacional em debate” –, realizado em BeloHorizonte e em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, em agosto de 2002,o livro Manifesto dos Pioneiros da Educação: um legado educacio-nal em debate reúne dezesseis artigos (além da apresentação e doprefácio), escritos por vinte autores, brasileiros (dezoito) e argenti-nos (dois).

Os textos reunidos no livro guardam, entre si, uma grandeheterogeneidade, tanto no que diz respeito às temáticas quanto àsabordagens escolhidas para tratá-las e à densidade das informaçõestrabalhadas. Alguns artigos e autores se filiam mais explicitamenteao que se vem configurando como uma “nova historiografia” daeducação; outros optam por abordagens mais tradicionais. Há capí-tulos que, baseados em fontes documentais ainda pouco exploradas,trazem novos elementos para a compreensão da temática; outros,por sua vez, assumem um caráter predominantemente ensaístico.Alguns textos realizam leituras instigantes do Manifesto ou de as-pectos a ele correlatos e, nesse sentido, provocam o leitor; outros

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apenas confirmam teses já consagradas pela longa historiografiadedicada ao tema. Mesmo considerando as diferenças assinaladasentre os artigos publicados (e talvez por causa delas), o livro consti-tui uma leitura fundamental para aqueles – pesquisadores, professo-res, alunos dos cursos de graduação e de pós-graduação – que seinteressam pela temática e pelo período abarcado pelos estudos apre-sentados (concentrados nas primeiras décadas do século XX).

Na tentativa de apresentar o livro de uma maneira mais sistema-tizada para o leitor, classifiquei os artigos em quatro grandes gru-pos. Como qualquer classificação, a realizada certamente tem umgrau de arbitrariedade, o que pode fazer com que seus autores nelanão se reconheçam. No primeiro conjunto, agrupei os artigos (qua-tro) que se atêm, primordialmente, à análise do documento propria-mente dito. Em um segundo grupo, estão os textos (quatro) que,embora não se detenham na análise do Manifesto, auxiliam a com-preender o próprio processo de sua elaboração e/ou da sua constitui-ção como marco na historiografia da educação. No terceiro grupo,reuni os capítulos (quatro) que se propõem a discutir aspectos rela-cionados ao pensamento escolanovista no Brasil, principalmente pormeio do estudo das concepções e/ou práticas educacionais de algunspioneiros. Por fim, em um último conjunto, agrupei os estudos (qua-tro) que extrapolam o tema do Manifesto, guardando somente umatênue relação com ele. Compõem o primeiro grupo os artigos “OManifesto dos pioneiros da educação nova como divisor de águasna história da educação brasileira”, de Libânia Xavier; “Legado elegatários: questões sobre o Manifesto dos pioneiros da educaçãonova”, de Mirian Jorge Warde; “Um olhar sobre o Manifesto dospioneiros da educação nova de 1932”, de Carlos Roberto Jamil Cury;e “A educação tradicional e a educação nova no Manifesto dos Pio-neiros (1932)”, de Marta Maria de Araújo. Os artigos, ao se dete-rem, primordialmente, no texto do próprio documento, auxiliam oleitor a melhor compreender as estratégias discursivas utilizadas pelospioneiros (fazendo cisões, principalmente, entre o novo e o velho eentre as forças que os representavam), os interlocutores (abertos ouocultos) a quem se dirigiam (como mostra Carlos Roberto JamilCury), assim como as estratégias de arregimentação de signatários(e as ausências de alguns intelectuais vinculados ao movimento en-tre eles, como mostra Mirian Warde) e de sua divulgação junto a

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instâncias sociais mais amplas, para dar ao Manifesto o caráter sim-bólico que, passados mais de setenta anos de sua publicação, aindapossui. Esse processo é decorrente, como argumenta Libânia Xavier,não apenas do conteúdo do documento ou das estratégias de suadivulgação, mas também da força simbólica dos discursos elabora-dos pelos leitores contemporâneos ao seu lançamento, permanente-mente (re)atualizada por leituras e celebrações posteriores, que otornaram emblemático. Nesse sentido, o Manifesto é tomado comodocumento histórico, mas também como um texto literário embebi-do de imagens e símbolos, que serviu de estratégia política para re-afirmar a identidade do grupo de signatários, em um momento dereorganização do Estado pós-1930, de tentativa de construção deum Brasil moderno (como mostra Marta Araújo), de especializaçãoe autonomização do campo educacional. Como afirma Mirian Warde,na medida em que manifestos são sempre peças de combate, marcadaspelo peso da conjuntura imediata, é importante compreender as con-dições de produção do próprio documento.

Como já anunciado, em um segundo conjunto, reuni os artigosque, embora não se detenham na análise do texto do documento de1932, auxiliam a compreender o próprio processo de sua elaboraçãoe/ou da sua constituição como marco na historiografia da educação.É o caso dos artigos “Pensamento republicano e reconstrução socialno(s) Manifesto(s): formas e falas”, de Marcos Cezar de Freitas; “OManifesto e a Liga Internacional pela Educação Nova”, de MartaCarvalho; “Do Manifesto dos pioneiros à sociologia educacional:ciência social e democracia na educação brasileira”, de MarcusVinícius da Cunha e Marcelo Augusto Totti; e “Às margens do Ma-nifesto dos pioneiros da educação nova”, de Clarice Nunes. De modogeral, os textos auxiliam o leitor a compreender que, como afirmaFreitas, apesar da forte heterogeneidade que caracteriza o conjuntodos seus signatários, o Manifesto “pode ser identificado como umgrupo republicano agindo e argumentando a favor do aperfeiçoa-mento da República” (p. 205). Nesse processo, ganha relevo o papelda ciência como um dos pilares para a construção da nova mentali-dade modernizadora no campo da educação, que os pioneiros bus-caram instaurar (como mostram Marcus Cunha e Marcelo Totti) etorna-se necessário o apagamento de rastros modernizadores nãorepublicanos, como o dos professores imperiais, como afirma Clarice

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Nunes. Essa nova mentalidade modernizadora na educação, por suavez, não se construiu apenas, como vêm mostrando alguns estudos,com base nas relações estabelecidas entre os pioneiros e os EstadosUnidos mas, como mostra Marta Carvalho em um artigo denso erepleto de informações pouco exploradas na historiografia da edu-cação brasileira, também entre os escolanovistas brasileiros e inte-lectuais europeus, principalmente mediante a Liga Internacional pelaEducação Nova, fundada na França.

Em um terceiro conjunto, como já explicitado, agrupei os arti-gos que se propõem a discutir aspectos relacionados às concepçõese às práticas educacionais dos pioneiros: “Anísio Teixeira e a EscolaNova”, de Ana Waleska Mendonça; “A casa, a escola ou o trabalho:o Manifesto e a profissionalização feminina no Rio de Janeiro (1920-1930)”, de Diana Gonçalves Vidal e Rosane Nunes Rodrigues; “Ma-nifesto dos pioneiros de 1932: o direito biológico à educação e ainvenção de uma nova hierarquia social”, de Cynthia Greive Veiga;e “A reação de Minas ao Manifesto dos pioneiros da educação nova”,de Ana Maria Casassanta Peixoto. Os artigos ajudam, de maneiraindireta, a compreender o Manifesto na medida em que esclarecemconcepções e práticas educacionais dos signatários (Ana WaleskaMendonça, Diana Vidal e Rosane Rodrigues e Cynthia Veiga) e asfaces assumidas pelo escolanovismo em diferentes Estados (AnaMaria Peixoto). Destaco, nesse conjunto, o artigo de Veiga que, aodiscutir a influência do ideário higienista e das teorias eugênicas,baseados no aparato da medicina e da psicologia, na difusão daspráticas escolanovistas, traz elementos pouco explorados sobre aEscola Nova brasileira, que auxiliam a melhor compreendê-la. Me-rece destaque também o artigo de Peixoto que, ao analisar o movi-mento da Escola Nova em Minas Gerais, constata que, por intermédioda incorporação dos métodos ativos aos princípios da pedagogia cris-tã, os católicos mineiros buscaram aliar tradição e modernidade,dando origem a um escolanovismo católico. O artigo instiga o leitora entender a Escola Nova em sua diversidade, assumindo uma con-figuração própria e, às vezes, aparentemente paradoxal, nos diferen-tes estados brasileiros.

Os artigos reunidos em um quarto conjunto, por sua vez,extrapolam o tema do Manifesto, guardando somente uma tênue re-lação com ele. É o caso dos capítulos escritos por Dermeval Saviani,

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“Setenta anos do Manifesto e 20 anos de Escola e democracia: ba-lanço de uma polêmica”; Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner, “Elmovimiento de Escuela Nueva y sus estrategias de cambio para elsistema educativo argentino entre 1920 y 1996”; Eliane Peres, “Ainstitucionalização da modernidade pedagógica no Rio Grande doSul: a criação do Centro de Pesquisa e Orientação Educacionais(CPOE) – 1943”; Maria Cristina Soares Gouvêa e Cândida PaixãoGomide, “Uma nova família para uma nova escola: a propaganda naprodução de sensibilidades em relação à infância (1930-40)”. Osartigos auxiliam a compreender como o escolanovismo e a moder-nidade pedagógica buscavam irradiar suas concepções não apenasno interior da escola, mas também em espaços sociais mais amplos,como a imprensa (Maria Cristina Gouvêa e Cândida Gomide); comoalgumas propostas dos pioneiros foram normatizadas e concretiza-das por estratégias distintas nos diferentes estados brasileiros (ElianePeres) e que faces assumiu a Escola Nova em outros países latino-americanos, como a Argentina (Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner).No caso do artigo de Dermeval Saviani, pode-se afirmar que, aodebruçar-se primordialmente sobre o livro Escola e democracia, desua autoria, pouco auxilia a compreender o Manifesto, mas podeinteressar aos pesquisadores que buscam compreender as disputasintelectuais contemporâneas, no Brasil, no campo da educação e,particularmente, da história da educação. Nesse sentido, o leitor deveproceder à leitura desse capítulo em conjunto com o pós-escrito deClarice Nunes no artigo de sua autoria.

Espero que, ao final desta resenha, o leitor tenha percebido que,embora desiguais, os artigos reunidos no livro trazem, cada um aseu modo, subsídios para uma melhor compreensão do texto doManifesto, do processo de sua elaboração, das concepções e das prá-ticas educacionais dos seus signatários e dos motivos que o levam a,recorrentemente, ser objeto de homenagens e de estudos. Comoexplicita José Gondra no prefácio, a tradição de manifestar-se naeducação brasileira é anterior ao Manifesto e continua depois dele.Talvez isso explique a recorrência das celebrações em torno do do-cumento, vistas como oportunidades públicas de referendar-se asprincipais teses do texto, ainda hoje não plenamente realizadas.

Em contrapartida, o livro também nos permite analisar as for-mas como o Manifesto e, de maneira mais ampla, a Escola Nova,

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vêm sendo estudados: ora a partir de um olhar mais panorâmico,calcado nas dimensões política e ideológica do movimento, ora fo-calizando aspectos propriamente pedagógicos, ora detendo-se noideário de seus principais representantes. Em alguns casos, as pes-quisas baseiam-se apenas em fontes “secundárias”; em outros, emdocumentos de arquivos, brasileiros e estrangeiros. A produção con-temporânea de um discurso sobre o escolanovismo brasileiro é, as-sim, marcada por tensões que certamente se relacionam aos lugaresocupados pelos pesquisadores que o estudam. Não apenas o estu-dam mas, por diferentes motivos e estratégias, conseguem fazer osresultados das suas pesquisas circularem e serem recorrentementereiterados em outros trabalhos.

Muitas vezes essa repetição de afirmações sobre o movimentoapaga a emergência de outros discursos possíveis sobre a EscolaNova no Brasil. Acredito que o deslocamento do já dito é possível,inicialmente, mediante realização e difusão de pesquisas sobre o es-colanovismo em diferentes estados, pois certamente em cada umdeles a Escola Nova assumiu uma configuração diferente e específi-ca. É preciso complexificar a idéia de que o modelo paulista foi“irradiado” para o restante do Brasil, como se os demais estadosbrasileiros, muitos com uma tradição cultural de séculos, fossem“tábula rasa” no que diz respeito à construção de uma modernidadepedagógica. O artigo de Ana Maria Peixoto, no livro, mostra essanecessidade, ao trazer informações detalhadas de como, em Minas,em um aparente paradoxo, a Escola Nova foi católica, modelo queserá encontrado em outros estados principalmente durante o EstadoNovo. Para dar outro exemplo, em Pernambuco, a experiência demodernidade pedagógica liderada por Ulisses Pernambucano, aindano final dos anos de 1910, é praticamente ignorada pela historiogra-fia dedicada ao tema.

É preciso também, embora pareça óbvio, incorporar novas fon-tes às pesquisas sobre Escola Nova no Brasil, muitas das quais en-contram-se espalhadas aqui e em outros países. Os discursosgeneralizantes sobre o movimento, baseado primordialmente nasobras dos pioneiros, parecem estar dando sinais de esgotamento.Além disso, a investigação de aspectos quase silenciados do pensa-mento dos intelectuais escolanovistas é extremamente necessária,como faz Cynthia Veiga em relação à eugenia. Em outros casos, a

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formulação de perguntas que não compõem o repertório daquelasexaustivamente repetidas ao longo dos trabalhos sobre o tema podeabrir portas para uma série de pesquisas que certamente auxiliarão aelucidá-lo. Mirian Warde, ao questionar a ausência, entre os signatá-rios, de nomes vinculados ao escolanovismo, e Marta Carvalho, aoquestionar o papel da Liga Internacional pela Escola Nova na confi-guração do escolanovismo brasileiro, certamente dão pistas para in-vestigações futuras que não se limitam ao já dito.

Acredito, ainda, que faltam pesquisas sobre a incorporação doideário escolanovista nas práticas educativas nas diferentes instân-cias dos sistemas escolares ao longo de várias décadas. Certamenteo artigo escrito por Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner pode provo-car, entre nós, o desejo de realização de estudos que abarquem adiversidade de experiências escolanovistas ocorridas no Brasil, emdiferentes períodos e espaços sociais. Embora a historiografia daeducação brasileira recente tenha criticado a realização de pesquisasbaseadas sobretudo na legislação escolar e na obra dos grandes pen-sadores, os estudos sobre o Manifesto e sobre a Escola Nova tendema ignorar as práticas.

Como afirma Cury, em seu artigo, são tantas as pesquisas járealizadas sobre o Manifesto que já merece ser realizado um estadoda arte sobre o tema. Por meio de um balanço das pesquisas quevêm sendo desenvolvidas sobre o documento e o movimentoescolanovista no Brasil certamente será possível chegar a algumasconclusões mais gerais sobre a temática e melhor compreender adiversidade que se encontra na aparente unidade, como adverte AnaWaleska Mendonça em seu artigo, da expressão Escola Nova nopaís. É possível, também, assinalar as ausências e os não-ditos commais propriedade e, dessa forma, abrir caminho para a emergência edivulgação de novas pesquisas.

O livro, de certa forma, como tentei mostrar aqui, já nos põe apar das abordagens, das fontes e das análises que vêm sendo privile-giadas para tratar da temática por alguns dos principais pesquisado-res brasileiros (e argentinos) da área de história da educação; porisso sua leitura é fundamental.

Ana Maria de Oliveira GalvãoProfessora da Faculdade de Educação da

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessário a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação einstituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais parti-cipa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Edi-torial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproxima-damente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanharo artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contando

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espaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferra-mentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.

• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro decada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.

• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproxi-madamente de 4 a 8 páginas).

• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir noformato sobrenome do autor, data de publicação e número da pági-na entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e nãodevem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar.

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EDITORIAL 7

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Techonologies of ordering of elementary school in century XIX: curriculunand intuitive method of the primary school in the North-american (1860-1880) 9Rosa Fátima de Souza

Institute of Education Files: the new school memoryholder in Federal District (1930’s) 43Sonia de Castro Lopes

The childhood production in the scripturistic administrationof elemetary school instruction in XIX century 73Cynthia Greive Veiga

Professional struggles within the moralized and civic system of a school:the experience of teacher Manoel Jose Pereira Frazãoin Imperial Court (1870-1880) 109Alessandra Frota Martinez de Schueler

The trace of north americans cultural and pedagogical influencies inthe educational thought of Fernando de Azevedo 139José Cláudio Sooma Silva

The school dissemination and the bourgeois society affirmation 177António Gomes Ferreira

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Debate about mathematics teaching method in the 1930s 199José Lourenço Rocha

The representation of elementary theachers: political strategy 231and teachers habitusRosario S. Genta Lugli

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The intellectual in the Middle Ages. Translated by Marcos Castro 263By Gesuína de Fátima Elias Leclerc

Education Pioneer’s Manifest: one bequest education in debate 271By Ana Maria de Oliveira Galvão

GUIDES FOR AUTHORS 279