Revisitando discursos oficiais sobre a Linha Férrea ... · Estrada de Ferro do Paraná, noticiava...
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Revisitando discursos oficiais sobre a Linha Férrea Paranaguá-Curitiba: representações sobre a Natureza, ciência e tecnologia na construção da ferrovia
Mariana Prohmann
[email protected] Universidade Federal Tecnológica do Paraná
Gilson Leandro Queluz
[email protected] Universidade Federal Tecnológica do Paraná
RESUMO: Esse trabalho tem o intuito de analisar a partir da documentação oficial sobre a construção da Linha Férrea Paranaguá-Curitiba, as representações sobre a Natureza neste contexto. Aqui se entende que as representações discursivas desta ferrovia mobilizaram milhares de pessoas, recursos e repercutiram nas diversas formas de lidar e responder a ela no imaginário popular quando de sua criação na década de 1880. A escolha dessa fonte documental parte do pressuposto que os discursos que circulavam nas instituições do governo e em impressos do período, podem auxiliar a entender aspectos da visão de mundo de um grupo ou grupos de pessoas que embora não fossem homogêneos, expressavam através da linguagem posições de valor, de crença em um projeto de sociedade e o esforço de legitimá-lo por meio da comunicação e registros. Assim, trazer elementos sobre como a Natureza aparece retratada nestes discursos pode auxiliar a compreender aspectos de uma visão de progresso e de industrialização. A ciência e a tecnologia, ainda que nem sempre referidas por estes termos naquele período, apareciam nos discursos oficiais como propostas práticas que mobilizaram as regiões envolvidas nos trechos da Linha Férrea, bem como um contingente de trabalhadores, especialistas, usuários, representantes oficiais e recursos financeiros e materiais. Entender com, ou, contra quem os meios oficiais estavam dialogando, também é caro a esta proposta, ao procurar identificar formas contestatórias ou divergentes de pensar a sociedade e mais especificamente o projeto para as estradas de ferro e a Natureza. Este texto também realiza uma revisão historiográfica que busca sistematizar pesquisas e produções científicas contra hegemônicas sobre a concepção de Natureza. Por fim, o texto se encerra defendendo o argumento de que se debruçar sobre as múltiplas formas de conceber determinado projeto tecnológico pode auxiliar a entender aspectos de um contexto mais amplo de sociedade, com suas tensões, disputas e concepções de mundo.
INTRODUÇÃO
Essa pesquisa deseja lançar mão de uma interpretação acerca das ferrovias no contexto
paranaense do Século XIX e assim entende que não é possível desconsiderar os sujeitos que
estavam envolvidos na construção da Ferrovia Paranaguá-Curitiba – bem como o papel e
função que desempenhavam na sociedade oitocentista no Brasil. Todavia, este trabalho, ao
tomar os discursos que foram registrados e documentados naquele período pressupõe que
existem outros sujeitos que participaram deste processo, mas que não aparecem estampados
em registros, notícias e narrativas que remetem a ela. Mas o fato de terem sido selecionados
alguns personagens como os principais agentes responsáveis revelam a materialidade do
discurso à medida que são estes que aparecem inscritos nas narrativas sobre esta ferrovia, que
contou com milhares de trabalhadores mobilizados para a tarefa, mas que aparecem apenas a
título de estatísticas ou para valorizar a grandiosidade da obra como um todo.
A documentação oficial que aparece como objeto de análise é aqui considerada como
algo mais amplo do que apenas os documentos elaborados pelas instituições do então Império
Brasileiro, esta refere-se também aos periódicos que circulavam na época bem como aos
registros de viajantes, por exemplo, uma vez que eram meios que circulavam em um grupo
restrito, neste caso em especial, o grupo reduzido de pessoas alfabetizadas e que tinham
acesso aos impressos. Assim o termo “oficial” é aqui utilizado também para se referir a estes
outros aparelhos, que reforçavam o modo como estava se organizando a sociedade e o poder
vigente a medida estampavam projetos e nomes das então autoridades que se apresentavam
naquele período.
A respeito dos periódicos e sua circulação no meio social, Williams (2011, p. 69) nos
lembra do papel que cumprem os meios de comunicação como meios de produção: É verdade que os meios de comunicação, das formas físicas mais simples
da linguagem às formas mais avançadas da tecnologia da comunicação, são sempre social e materialmente produzidos e, obviamente, reproduzidos. Contudo, eles não são apenas formas, mas meios de produção, uma vez que a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção.
Pensar sobre a importância dos meios de comunicação, neste caso a imprensa daquele
período, bem como analisar o projeto financeiro capaz de sustentar determinada estrutura e no
plano discursivo, qual as posturas acerca da Natureza e do processo industrializante, auxiliam
a refletir sobre a construção que estes veículos fazem acerca da história contada.
O projeto de construir uma ferrovia em meio a uma enorme floresta tropical está
ligada a uma conjuntura mais ampla: ela não era mero instrumento de ligação entre duas
regiões importantes para o Paraná de findar do século XIX, embora não deixasse de cumprir
com este papel, mas uma ferrovia como a Paranaguá-Curitiba simbolizava também o ímpeto e
a capacidade humana de projetar suas ações de modo a dominar ou controlar a Natureza
selvagem e inóspita. Era o triunfo da razão em uma sociedade que tinha sua relação com a
Natureza transformada, o meio natural mediado pelos feitos humanos. O fascínio que a
Natureza despertava, com seus perigos e mistérios também passava a ser projetado na
Natureza artificializada, neste caso, representada pela ferrovia. É neste aspecto que faz sentido
explorar algumas formas de conceber e enxergar as formas de se relacionar com a Natureza.
A natureza artificializada e o triunfo da engenharia
O então Império brasileiro do findar do Século XIX, tomava para si o projeto
colonizador bem como industrializante a partir da ideia de que a industrialização era uma
saída para o progresso e a prosperidade da nação. A ferrovia aparecia como esse símbolo da
atividade humana na superação dos desafios naturais, da supressão das distâncias, da
velocidade e de um instrumento comercial de grande estima aqueles que necessitavam escoar
suas produções agrícolas.
Tratava-se de um projeto amplo enquanto meio de transporte e de circulação das
mercadorias, e é por isso que os eventos que marcavam a consolidação da ferrovia geralmente
contavam com pessoas que pertenciam as elites locais, nacionais ou representantes oficiais
que de alguma forma estavam a frente das decisões acerca daquele empreendimento. Por
exemplo, a visita de D. Pedro II e posteriormente a da Princesa Isabel, as excursões de
autoridades que se deslocavam para o Paraná na comemoração de trechos, seções e
inauguração da ferrovia.
Acerca da inauguração da 1º seção da estrada ente Paranaguá e Morretes, lê-se no
relatório do então presidente da província do Paraná no ano de 1882, Carlos Augusto de
Carvalho: “Tive a fortuna e a honra de assistir como administrador desta província a esse
acontecimento que tão decisivamente vem influir sobre seus destinos, abrindo-lhe uma nova
era de prosperidade e progresso” (CARVALHO, 1882, p.27). A ferrovia representava essa
novidade que viria a transformar os rumos da Província e é neste sentido que desde sua
chegada no Brasil, ela não era neutra ou se resumia apenas a um artefato, já estava
acompanhada da ideia de progresso, pois o Paraná não era o primeiro e nem o único local que
recebia uma estrada de ferro, a construção das ferrovias estava se tornando realidade na
América Latina como um todo, ainda que seja possível questionar se de fato elas chegaram a
ser colocadas em funcionamento, a mobilização de pessoas, trabalhadores e recursos
financeiros fora uma realidade em todas.
Esta observação permite compreender que as ideias que aqui circulavam, embora
ganhassem particularidades locais, eram influenciadas pelo pensamento europeu que ao longo
do século XIX passa a ter outra interpretação acerca da natureza. O industrialismo, o advento
da máquina a vapor, a dominação colonial de povos tidos como atrasados, eram aspectos que
faziam parte do novo olhar que era lançado sob a natureza. Neste contexto ideológico,
algumas profissões passam a ser valorizadas como aquelas que mais se aproximam da
capacidade humana de conquistar a natureza: engenheiros, técnicos e demais especialistas.
O ofício do engenheiro é ressaltado no jornal O paiz, que em razão da inauguração da
Estrada de Ferro do Paraná, noticiava o grupo selecionado de pessoas que embarcariam do
porto de Santos para assistir a abertura do trafego na ferrovia Paranaguá-Curitiba, junto a
outras autoridades locais. Em Morretes começa a 2 seção, a mais importante de todas. Ao passo que o trem vai galgando a encosta da serra do Itupava, cresce também na mesma proporção a admiração dos expectadores. E este sentimento de admiração é ininterrupto e duplo. Ora despertado pelas magnificências de uma natureza sem rival, ora infundido pelas maravilhas da engenharia, executada pela mão do homem nos brutos alcantis, elle (sic) chega a sua maior intensidade e transforma-se quasi (sic) em assombro e extasis, quando o comboio transpõe o grande viaducto (sic) de S. João ou o logar chamado Pico do Diabo, ambos a mais de 800 metros acima do nível do mar. Nesse prelio gigantesco entre as forças da natureza e o engenho do homem, lembra-nos o sério aphorismo (sic) de Bacon: “Se queres vencer a natureza e della (sic) te utilisar (sic), começa a obedecer cegamente às suas leis”. Mas pareceu-nos, pela impressão recebida, que o compasso do engenheiro e a picareta do operário zombaram destas leis implacáveis, na construção das innúmeras (sic) obras da 2 seção dessa estrada: de sorpresa (sic) em sorpresa (sic), entramos em tunneis (sic) perfurando enormes moles de duríssima rocha e terminando em colossaes (sic) viaductos que margeam gargantas extensas e profundas, para imediatamente (sic) depois atravessarmos pontes de ferro atiradas por sobre abysmos (sic) e continuadas por novos tunneis (sic), novos viaductos (sic), novas pontes e novos precipícios (INAUGURAÇÃO ..., p.1, 1885) .
Aqui o operário aparece mobilizado, mas o seu trabalho é tido como parte do projeto
de conquista da natureza, no aspecto mais geral do homem enquanto conquistador, a picareta
do operário, ainda remete a um trabalho manual, já o compasso do engenheiro já está mais
ligado a ideia de um trabalho que projeta, planeja, em suma, racionaliza a fim de colocar em
prática e fazer prevalecer o conhecimento humano na Natureza.
O próprio fato de brincar com a ideia de Bacon acerca do domínio da Natureza ao
colocar que os trabalhadores teriam zombado das “leis implacáveis” é significativa. Ainda
que aqui fuja ao escopo deste trabalho explorar a circulação do pensamento baconiano no
período em questão o enunciado dialoga com a ideia de Bacon de que “[...] o império do
homem sobre as coisas se apoia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se
domina, senão obedecendo-lhe” (BACON, 2018, p.82). Este enunciado está inserido num
conjunto de ideias mais complexo, todavia, na voz do observador que vinha apreciar a
inauguração da ferrovia, está dimensão profunda se esvai, se apaga e permanece no discurso
aquilo que melhor reforça o feito naquela região: o homem que ao invés de obedecer ou
seguir o fluxo da natureza, resolve desafiá-la a sua própria revelia. Os trabalhadores em
questão desafiaram as próprias leis naturais, de antagonismo entre essas leis e aquilo que se
pretendia em termos de feitos humanos. Era o homem se separando da Natureza para poder
então, exercer sob ela seu controle.
A Natureza selvagem ainda despertava um sentimento sublime aos visitantes, de
assombro, encanto e surpresa quando se deparassem com a amplidão daquele vasto território.
Todavia, acerca dos feitos realizados pelos seres humanos naquele local, como as pontes e
viadutos, é o que causa fascínio: o fato dessa natureza rude, com suas rochas duras e seus
caminhos em meio a abismos, ter sido modificada pela ação humana causa uma sensação que
antes apenas a natureza era capaz de despertar.
Em uma notícia do jornal Dezenove de Dezembro, que noticiava a visita do presidente
da província às obras da estrada de ferro, lê-se: [...] ao apreciar-se a ingremidade e natureza escabrosa do terreno – tem-se o exemplo eloquente de quanto é capaz o homem da sciencia que, transpondo todos os obstáculos, vencendo todas as dificuldades (sic), a custa de árduos e afanosos trabalhos, consegue transformar ínvios recantos em bem delineados planos, para dar passagem ao grande motor do progresso, engenhado pelo immortal (sic) Stephenson1! (CÂMARA...,1882, p. 2).
Era a prevalência do homem da ciência, mais uma vez, que aparecia como o herói na
memória de Stephenson. Mas o que este discurso parece deixar de lado é que os responsáveis
por transpor todos os obstáculos de modo a vencer as dificuldades às custas de árduos e
afanosos trabalhos não eram os homens que tinham acesso a ciência e aos estudos de
engenharia, eram os trabalhadores que arriscavam suas vidas e sua saúde, esses eram os 1 Faz menção à George Stephenson, engenheiro pioneiro e inventor da mais precoce locomotiva a vapor, a Rocket.
sujeitos que realizavam o trabalho mais árduo e afanoso. Se neste trabalho não foi possível
acessar diretamente o que pensavam os milhares de trabalhadores que teriam vindo para
trabalhar na construção da ferrovia, é possível ver como eram retratados na voz de
representantes oficiais. Por exemplo, em uma conversa entre Monteiro Tourinho e Teixeira
Soares, este último, à respeito das dificuldades enfrentadas na construção da linha, comenta
com o colega: - As dificuldades impostas pelas chuvas foram grandes. A outro lado, não podíamos construir caminhos de serviço, dada a inclinação quase vertical das encostas. Só devíamos contar com o apoio do trem de lastro, à medida que os trilhos avançavam. Problemas de drenagem na boca dos túneis não foram de fácil solução. Tudo foi realizado por operários contratados. A Companhia ficou proibida de usar trabalho escravo [...] Muitos foram os que abandoaram terras, família e tudo mais, atraídos pela remuneração que julgaram compensatória. Em determinadas ocasiões, chegamos a manter 9 mil homens em serviço, dos quais a metade na cama, atacados pela malária ou outras doenças... Ao todo, a ferrovia tem 41 pontes e viadutos de estrutura metálica, na extensão de 1 quilometro [...]. Sacou do bolso da calça o lenço e enxugou os olhos. - Imagine vosmecê, doutor Tourinho, a nossa alegria quando, no dia 26 de junho, partiu da estação de Morretes o trem especial, tracionado pela locomotiva francesa São João, tendo na cauda, a empurrá-lo, a locomotiva americana Consolidation, para finalmente inaugurar esta ponte! Hoje, com o velocípede, já se pode ir até o túnel da Roça Nova, que está em fase final de perfuração (TOURINHO, 1985, p. 141).
A narrativa aponta para um aspecto importante da materialidade do discurso: o
contingente de trabalhadores que vinham para trabalhar na ferrovia era alto e as baixas que
estes sofriam devidos as más condições de trabalho era maior ainda, mas o fato de tal projeto
ferroviário ter se transformado em realidade é que desperta a emoção: ainda que as perdas em
termos de trabalhadores tenha sido significativa, os números demonstram que a perseverança
de Teixeira Soares teria valido a pena. Em apenas alguns trechos desta conversa, apresentam-
se aspectos da construção da Ferrovia Paranaguá-Curitiba, de relações entre as empresas
envolvidas nesse processo e que se interligam: um trem especial tracionado por uma
locomotiva francesa e outra americana (estadunidense) como indícios da internacionalização
dos projetos de desenvolvimento local, a proibição do trabalho escravo (pelo menos segundo
a versão oficial), o adoecimento de milhares de trabalhadores, a atração que estes sentiram de
início pela remuneração, todas essas questões faziam parte daquele universo.
A primazia da razão sob a natureza está na própria relação que era traçada com o meio
artificial. Sob o título Ao normal conmemorativo do undécimo anniversario do Club Liettario,
publicado em 1883 no Club Litterario, lia-se no verso da poesia de Leoncio Correia:
[...] O silvo do trem de ferro Como o apito do vapor São obras grandes, gigantes, Como o vôo do condor; Fique livre o pensamento Tão livre quanto é o vento Em toda sua eminência Porque um braço há que ergue Sem que a peso algum se vergue, O pedestal da sciencia! (CORREIA, 1883, p.6)
A aclamação da ferrovia como obras gigantes e a comparação com a natureza iguala
ou identifica as obras naturais àquelas artificias: uma obra daquele tamanho era tão grandiosa
como o vôo de um condor, o triunfo era da ciência, era ela que se erguia sem nem mesmo ser
necessário fazer força, uma percepção que oculta ou não dá relevo aos contornos dos
trabalhadores anteriormente citados: para a construção de uma ferrovia como aquela, foram
muitos os braços que tiveram de se erguer para a execução de uma obra mas de fato aqueles
que eram instruídos na ciência, não careciam fazer semelhantes esforços braçais para fazer
valer seus planos.
A ferrovia enquanto símbolo da modernidade, embora central, era apenas um dos
diversos elementos que compõem um cenário de mudanças na percepção sobre a Natureza.
Insistamos nesta conjuntura mais ampla: o momento histórico em que as linhas surgiam
estava imbuído pelo projeto modernizador que incluía uma visão sublime da tecnologia. Por
exemplo, na própria estrada de rodagem da Graciosa, em que ainda no ano de 1866, duas
décadas antes da construção da ferrovia, lê-se no Noticiário do Jornal Dezenove de Dezembro
acerca da visita do Dr. Andre Augusto de Padua Fleury, que assumiria a gerencia dos negócios
públicos: As galas da natureza, presidindo a festa da indústria, offereciam um espetáculo sublime. No ponto mais culminante da estrada, sob um céo de nuvens, radiante de luz, apreciámos um desses panoramas, em que a alma, grandemente impressionada, parece transportar-nos as regiões do encantamento (NOTICIARIO, 1866, p. 3).
Aqui já é possível notar que a natureza estaria a serviço da indústria que vencia os
desafios, oferendo inclusive um espetáculo sublime, a possibilidade de se estar no ponto mais
culminante daquela estrada e de apreciar tal imagem, causavam uma visão de encantamento
graças a possibilidade de explorar aquele espaço outrora inacessível, o sublime era tornado
realidade graças aos feitos humanos nas “galas da natureza”. O trem era também o símbolo
da rapidez, sua velocidade passa a ser naturalizada ao meio natural, por exemplo, a poesia
intitulada De Curityba a Paranaguá, trazia em seus versos: I Seis horas da manhã. O trem rugindo Ja sae pela explanada em toda a brida, E os echos vão, longínquo, repetindo Apitos que o trem solta em despedida... [...] Tomei uma janella. Estava puro O céo paranaense. Na direita, A sérra vè-se como faixa ou muro Que o remoto horisonte, além, enfeita... - Não sei porque o azul da serra, escuro, Junto do azul celeste, nos deleita... II Nos térreos trilhos, rápido, correndo, o trem sonante córta o infindo espaço.... Bellas paizagens vão se succedendo, Como os castellos que eu na mente faço... Uma boiada gorda se pascendo De basto campo estava regaço... E passa o trem rugindo, os bois, o vendo, Correm de medo em célere compasso. Como frades em sacros pensamentos, Hirsutos pinheiraes bordam a estrada Murmurando tangidos pelos ventos. E assim minh’alma achando-se enlevada, Eu, me illudindo, vejo por momentos O pinheiral correr como a toada (MACEDO, 1895, p. 14)
O deslumbre pelo movimento, pela rapidez, também está contida no sublime
tecnológico como aspecto dessa modernidade que se apresenta diante da paisagem natural. A
Natureza fazia parte do encantamento causado neste poeta, mas ela aparece como um pano de
fundo, um cenário que contrasta com a locomoção do trem em movimento: as grandes
florestas aparecem como muros ou faixas diante da ilusão de ótica projetada pelo movimento
do trem, são as imagens naturais, tal como o pinheiral, que parecem correr, estar em
movimento. O sentimento que o poeta descreve em seu texto é uma contemplação que mistura
aspectos do encantamento da Natureza e o movimento do trem.
Sobre o Paraná, em nota extraída pelo impresso A Republica da Fanfulla, veículo de
comunicação de italianos em São Paulo, lê-se:
[...] Avança-se. Passam-se viaductos, quédas d’agua, pequenos tunneis. Toda a conversação tem cessado. Por momentos uma única cousa prende todas as attenções: admiração de quanto vemos. Mas eis agora a cascata do Véo da Noiva. E’ uma exclamação geral de admiração. [...] Mais vis-a-vis ao prodígio da natureza levanta se o prodígio dos homens. O céo, a vegetação, a conformação do solo, os panoramas são divinos, mas não desperta menor admiração esta estrada que trepa pela montanha em espiraes elegantes, que transpõe precipícios, que sauda, passando por elles, os pontos mais horríveis E’ na verdade o triumpho humano sobre a força bruta e inanimada (Sobre o Paraná, 1903, p.1).
Era o triunfo da engenharia na materialidade do trem. Mas em um período que passava
a centralizar a ciência como o campo que levaria o Brasil ao progresso e a produção de
riquezas, tem mais valor no universo do trabalho o feito, a realização daquela obra que parecia
impossível de se tornar realidade: o triunfo era dos engenheiros, dos investidores que
acreditaram na possibilidade de torná-la real, são estas as figuras que são lembradas, quanto
aos milhares de trabalhadores, este aparecem como mão-de-obra a serviço de especialistas e
menos como sujeitos que deixariam suas impressões acerca daquele caminho sublime entre
Curitiba e Paranaguá.
A proposta de realizar um levantamento de pesquisas contra-hegemônicas ainda se
encontra em processo de elaboração acerca do recorte socio-historico escolhido.
Conclusão
Nos depoimentos e falas de destes representantes do Império e mesmo de seus
opositores, emergem elementos que aparecem em diferentes projetos políticos, e cada qual a
seu modo responde ativamente ao espaço em transformação. É o caso por exemplo, daquele
apelo feito no jornal A Republica, de que era preciso que todos os “concidadãos” se unissem
de modo a investir precisamente na agricultura e nas indústrias como as únicas vias para o
progresso. A linguagem de que se vale o colunista do jornal traz assim a ideia de que um tal
projeto como a implantação de ferrovias e demais modernizações, precisaria do trabalho de
todos para ser viabilizada e só assim, atingiria a riqueza e a prosperidade.
Um grande contingente de operários que trabalhou na construção da linha acabou
falecendo ou adoecendo devido as péssimas condições de trabalho, essa materialidade da
construção da ferrovia aparece nas palavras de Teixeira Soares, que ainda assim retoma o
curso da execução da obra, apesar destas perdas, o projeto foi consumado e agora era possível
fazer trajetos antes irrealizáveis: feito de engenheiros.
O universo da cultura é material. Aquilo que aparece no plano simbólico, ou da
ideologia, não está separado de toda a base sob a qual se estrutura uma sociedade, de modo
que chega a ser impossível isolar uma coisa da outra, a construção de uma Linha de tamanhas
proporções e em um ambiente cheio de insalubridades, dependeu, para sua concretização, dos
esforços de milhares de trabalhadores e em vista deste contingente, uma reduzida equipe de
engenheiros, técnicos especializados e representes do poderio imperial. Este ultimo grupo no
entanto é o que se destaca em meio ao demais, em especial na figura dos engenheiros.
A ciência e a tecnologia são elementos que aparecem como uma construção social em
sua historicidade: no momento em que o trem emerge como símbolo da modernização do
Brasil e neste caso da então Província do Paraná, a ciência passava a ocupar papel central
como atividade que mais rapidamente levaria ao progresso da nação.
A ideia de ciência bem como a importância que lhe é delegada é construída através
destes registros que, fossem documentos oficiais, periódicos do período, poesias ou textos
literários, ganhavam maior ou menor atenção de acordo com a concepção de que estava
imbuída aquela pessoa que registrara suas impressões sobre a Linha. Neste sentido também,
importa entender qual o comprometimento/relação dos indivíduos que manifestavam em suas
falavas aspectos de um sublime tecnológico com a ferrovia propriamente dito. Há, por
exemplo, diferenças entre a forma como um engenheiro envolvido na obra analisava aquele
espaço a ser artificializado, o escravo legalmente proibido de ter usa mão-de-obra explorada
na construção, e de um imigrante que construiria de fato os trilhos entre abismos e
precipícios.
A possibilidade de pensar que os processos que englobam as mais diversas esferas do
conhecimento humano, dentre os quais, as formas de trabalho, os modelos de governo e de
sistema econômico e político que se desenvolvem em determinada sociedade, não se separa
desta esfera da ciência e da tecnologia que sob um ponto de vista instrumental.
Ao pensar o aspecto construtivista da ciência e da tecnologia, ao pensar suas
contradições, conflitos, repercussões, resistências e ressignificações, se impõe também os
esforços de trabalhar com vistas a pensar nas novas possibilidades e mediações das já
seculares ferrovias, aquilo que ora representou progresso, ora estagnação, ora privatização,
pode passar a representar também a possibilidade de transporte público como alternativa aos
grandes tumultos nos terminais rodoviários urbanos da cidade de Curitiba e Região
Metropolitana. Uma noção do sublime tecnológico no atual momento certamente demandará
estabelecer o novo quadro de mediações em que a Ferrovia em questão está envolta hoje.
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