Retrospectiva de Xavier Le Roy
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7/21/2019 Retrospectiva de Xavier Le Roy
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAESCOLA DE TEATRO/ESCOLA DE DANA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS
MARIO MACHADO NETO
REENCARNAO:REGISTRO COMO COREOGRAFIA NA OBRA
RETROSPECTIVADE XAVIER LE ROY
Salvador, BA2014
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MARIO MACHADO NETO
REENCARNAO:
REGISTRO COMO COREOGRAFIA NA OBRA
RETROSPECTIVADE XAVIER LE ROY
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduaoem Artes Cnicas, Escola de Teatro e Escola de Dana,Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial
para obteno do grau de Mestre em Artes Cnicas.
Orientadora: Profa. Dra. Jacyan Castilho
Salvador, BA2014
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Dedico este trabalho ao grande amor
que me acompanha sempre,
Jorge Alencar.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo com todo meu carinho:
minha orientadora, Prof. Dra. Jacyan Castilho, que aceitou percorrer o caminho destapesquisa ao meu lado e o fez com enorme generosidade, preciso e abertura. Sua presena, toatenta, fez com que esse percurso fosse muito mais prazeroso.
Ao artista Xavier Le Roy, por me receber to cuidadosamente como parceiro em seus projetose por contribuir como pde para fazer desta pesquisa um dos desdobramentos dessa nossacontnua colaborao.
s Prof. Dra. Eliana Rodrigues Silva e Prof. Dra. Theresa Rocha, de maneira bastanteespecial, por terem aceitado a tarefa de fazer parte da banca deste trabalho e pelasparticipaes to cuidadosas e importantes no momento da sua qualificao.
autora Bojana Cevij!por ter confiado seus escritos mais recentes s minhas mos e por serparte contnua dos meus interesses de estudo com seus textos apaixonados e apaixonantes.
Aos queridos amigos do Dimenti - Ellen Mello, Fbio Osrio Monteiro, Leonardo Frana eJorge Alencar - por, junto ao Interao e Conectividade e muitos outros projetos, tornarem
possveis concretizaes dos meus impulsos poticos, estticos e polticos.
Ainda Ellen Mello, especialmente, pela parceria e por todo cuidado disposto em tantosmomentos que precisei de favores de diversas ordens.
Ainda a Leonardo Frana, por conversas e trocas de tamanha beleza.
A todos os meus companheiros de Retrospectiva, artistas que me apontaram tantasperspectivas desta obra e com quem compartilhei momentos fabulosos.
Aos integrantes do projetoReencarnao, por emprestarem seu tempo e suas habilidades para
articular interesses desta pesquisa.
Ao Festival Panorama do Rio de Janeiro pela continuidade da empreitada de Retrospectivano Brasil.
Ao ICBA - Instituto Goethe da Bahia, pela grande abertura com que recebe propostas deparceria e, especialmente, por ter abrigado tanto o processo da montagem de Retrospeciva,quanto a defesa pblica deste trabalho.
Ao trabalho to cuidadoso e competente de reviso e correo da querida Lia Lordelo.
Aos meus colegas de turma, que desde o comeo do curso, colaboraram com esta pesquisa emdiscusses e conversas dentro e fora da sala de aula.
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Ao Instituto alemo Akademie Schloss Solitude, que durante os anos de 2013 e 2014 apoia odesenvolvimento desta e outras pesquisas e criaes artsticas de minha autoria.
Ao meu irmo, Juliano Monteiro, por estar sempre perto compartilhando interesses desde aprimeira aula de dana que fizemos juntos at minhas mais recentes criaes.
minha famlia, que me acolheu em Curitiba nos momentos finais em que me dedicava aesta escrita com um amor to grande que, com certeza, contribuiu enormemente para o queest registrado aqui.
Aos meus queridos companheiros de jornada artstica e de vida, que em tantos momentos meapoiaram com conversas francas, amorosas e modificadoras: Cndida Monte, ElisabeteFinger, Thiago Granato, Sandro Amaral e Wellington Guitti.
Para finalizar, agradeo novamente ao meu companheiro de vida e de trabalho, Jorge Alencar,que, com todo seu amor, investiu ao meu lado nesta pesquisa e, devido a toda suacompetncia, tornou-a mais eficaz, coerente e relevante.
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verdade que o presente no passa de um limite, uma tnue e pouco discernvel fronteiraentre um passado que passa permanecendo e um futuro que no chega porque puraexpectativa. (LUIS CLUDIO COSTA, 2009, p.19)
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RESUMO
Esta pesquisa prope o entendimento de registro em dana como um possvel atocoreogrfico capaz de aes ativadoras/atualizadoras da memria da dana a partir delamesma. Este estudo deseja ainda perceber a ao do registro coreogrfico como uma prtica
politicamente implicada em seu contexto e em sua histria, tendo em vista suas escolhasestticas e procedimentais. Para o uso da noo de coreografia, bem como para as discussescontemporneas sobre registro nas artes, foram acessados principalmente textos dos autoresLus Cludio Costa (2009), Jacques Rancire (2005), Giorgio Agamben (2009) e AndrLepecki (2007/2010/2013). Estes conceitos se desenvolvem na anlise da obraRetrospectiva (2012) do coregrafo Xavier Le Roy, que reorganizou os seus solos jrealizados em uma nova construo compositiva. Metodologicamente, a anlise dessa obra
vale-se de parmetros tericos desenvolvidos pela pesquisadora srvia Bojana Cveji! (2013),para quem possvel desmembrar a noo de performance em trs processos de diferentes
duraes - o criar, o performar e o assistir - que acarretam experincias distintas entre si. Aescolha da criao de Le Roy como foco central desta dissertao se respalda tambm no fatode o autor desta pesquisa ter se relacionado com a citada obra nas trs dimenses propostas
por Cveji!- o criar, o performar e o assistir -, sendo possvel, nessa perspectiva, potencializaro vnculo terico e artstico da anlise aqui realizada.
Palavras-chave:coreografia, registro, dana, Xavier Le Roy, Retrospectiva.
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ABSTRACT
This research proposes to understand documentation in dance as a possiblechoreographic act able of activate/actualize dance memories using itself as media. his study.This study also seeks to understand the action of choreographic documentation as a politicallyinvolved practice within their context and in its history, considering its aesthetic and
procedural choices. For the use of the concept of choreography, as well as contemporarydiscussions on documentation in arts, I especially used texts from the authors Lus CludioCosta (2009), Jacques Rancire (2005), Giorgio Agamben (2009) e Andr Lepecki(2007/2010/2013). These concepts are developed in the analysis of the work"Retrospective" (2012), by Xavier Le Roy, who reorganized his preview solo works in a new
compositional construction. Methodologically, the analysis of this work draws on theoreticalparameters developed by the researcher Bojana Cvejic (2013), for whom it is possible to splitthe notion of performance in three modes of different durations - Creating, Performing andAttending - which lead to different experiences. The choice of having the Le Roy's work asthe central focus of this dissertation is also supported by the fact that the author of thisresearch have experienced this work in the three modes proposed by Cvejic - Creating,Performing and Attending - and it is possible, in this perspective, to enhance the theoreticaland artistic bond of analysis invested here.
Keywords:choreography, documentation, dance, Xavier Le Roy, Retrospective.
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SUMRIO
1 INTRODUO.12
2 REGISTRO EM DANA COMO COREOGRAFIA....20
2.1 Coreografia que transborda a dana.202.2 O registro da obra de arte efmera...23
2.3 O carter poltico do registro: registro como dispositivo.....302.4 Registro em dana: produes de histria....332.5 Modos contemporneos de registro em dana..412.6 Registro como coreografia: adentrando Retrospectiva.....50
3 RETROSPECTIVAEM CONTEXTO54
3.1 Memria como motor543.2 Reencarnao em dana.58
3.3 Projeto Reencarnao.603.4 Retrospectiva: produto das circunstncias.653.5 Diferentes vetores temporais numa ao retrospectiva..76
4 MODOS DE ATUALIZAO DA PERFORMANCE EM RETROSPECTIVA..80
4.1 Assistindo a Retrospectiva..804.1.1 O tempo e o visitante de Retrospectiva924.2 Criando Retrospectiva.94
4.3 Performando Retrospectiva....104
5 CONSIDERAES FINAIS..121
6 REFERNCIAS...127
7 ANEXOS....130
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1. INTRODUO
O regime esttico das artes aquele que propriamente identifica a arte nosingular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra especfica, de todahierarquia de temas, gneros e artes. Mas, ao faz-lo, ele implode a barreiramimtica que distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras defazer e separava suas regras da ordem das ocupaes sociais. Ele afirma asingularidade da arte e destri ao mesmo tempo todo critrio pragmticodessa singularidade. Funda, a uma s vez, a autonomia da arte e a identidadede suas formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma.(RANCIRE, 2005, p. 34)
Desde 2004, ano em que estreei minha primeira obra de dana contempornea, venho
refletindo continuadamente sobre as prticas e polticas desse campo. Sendo um ambiente que
congrega uma enorme diversidade de modos de criao e configuraes artsticas, a dana
contempornea pode ser contextualizada dentro do que o filsofo francs Jacques Rancire
chama de regime esttico das artes, por lidar concomitantemente com noes como
singularidade e autonomia na construo de um sensvel comum da vida em sociedade.
Assim, a arte e a poltica se articulam a partir de alguns componentes: posies e
movimentos dos corpos; funes da palavra; e reparties do que visvel e invisvel
(RANCIRE, 2005). Arte e poltica so modos de organizao que propem ao mundo
maneiras de entend-lo e de forj-lo, estabelecendo constantes trocas, em aes que regem o
convvio em sociedade.
Nesta pesquisa de mestrado, invisto numa prtica especfica dentro desse campo da
dana: o registro de dana contempornea interessado em produzir novos sentidos para obra, e
no apenas em arquiv-la. O foco entender o registro enquanto ao coreogrfica, como
uma ao que organiza sentidos e, por isso, prope poticas e polticas especficas pelaprpria dana, por meio do uso da coreografia como registro dela mesma.
Nessa direo, estou terica e artisticamente mobilizado pelos tipos de procedimento
que so usados no campo da dana para gerar e registrar coreografia, sendo a prpria
coreografia um modo de registro, e no algo que vai servir de base para um registro futuro.
Coreografia, aqui, busca ir alm da ideia de estruturar ou ordenar formas corporais e
deslocamentos espaciais em uma certa temporalidade para ser pensada em suas escolhas
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politicamente implicadas, as quais geram certas visibilidades e invisibilidades e, portanto,
resultam regimes de organizao que abrangem esferas ticas, poticas e polticas.
Onde est a coreografia na dana produzida hoje? Esta questo, aparentementesimples, pode desdobrar-se numa srie de outras perguntas que indagam sobre onde se
localiza a coreografia nas danas que produzo, assisto e naquelas pelas quais me interesso. O
que coreografado? Como coreografado e o que se performa? Na cena, onde est a
coreografia? Na organizao da forma, da sensao, do espao, da durao, dos
procedimentos, das instrues? De tudo isso? O que compreende o que estamos chamando de
coreografia? Como se pode, ento, registr-la?
Essas questes tm animado as minhas pesquisas artsticas mais enfaticamente desde
que entrei em contato com diferentes criadores nacionais e internacionais na Casa Hoffmann -
Centro de Estudos do Movimento1, em Curitiba, onde pude expandir o entendimento de
coreografia e de dana. Dentre esses criadores, estava Xavier Le Roy, com quem estabeleo
um vnculo artstico ainda hoje e que, tambm por essa razo, um dos focos centrais desta
pesquisa.
A proximidade construda ao longo do tempo com Le Roy potencializou os acessos s
informaes necessrias a esta dissertao, favorecendo um maior aprofundamento nas
anlises realizadas. O interesse por pensar coreografia em uma dimenso mais expandida
atravessa esta parceria com o coregrafo francs desde o primeiro contato na Casa Hoffmann.
Em 2008, Xavier Le Roy coordenou a formao ex.e.r.ce juntamente do projeto 6
months 1 location(6 meses 1 locao), para o qual convidou nove artistas para permanecerem
em residncia no Centro Coreogrfico de Montpellier na Frana2 por seis meses. Tanto estes
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1A Casa Hoffmann - Centro de Estudos do Movimento um centro de pesquisa da Fundao Cultural de Curitibaque durante os anos de 2003 e 2004 funcionou com curadoria de Rosane Chameki e Andria Lerner e acolhiaseis artistas-bolsistas por semestre. Eu fui artista-bolsista do segundo semestre de 2004, durante o qual fizdiversos workshopscom artistas convidados e me engajei em criaes como o soloAgora se mostra o que noest aqui. Este espao ainda existe, mas com funcionamento e organizao diferente do da poca que fiz parte.Hoje, o centro gerido pelo artista Julio Motta.
2Em 2008, fiz parte doex.e.r.ce, projeto de formao internacional do Centro Coreogrfico Nacional deMontpellier na Frana, coordenado por Xavier Le Roy. Este projeto foi uma experincia de formao baseadaem projetos de criao dos prprios participantes, envolvendo cada artista-estudante nas criaes de seuscolegas, como processo artstico-pedaggico. Ao invs de professores, a formao foi aliada com o projeto deresidncia 6 months 1 location (6 meses 1 locao), envolvendo mais nove artistas na mesma mecnica decompartilhamento. Neste link, possvel acessar um texto que escrevi sobre meu projeto dentro desta formao:https://drive.google.com/file/d/0Bw57dDdxco26T1BodkVTNGFwenM/edit?usp=sharing
https://drive.google.com/file/d/0Bw57dDdxco26T1BodkVTNGFwenM/edit?usp=sharinghttps://drive.google.com/file/d/0Bw57dDdxco26T1BodkVTNGFwenM/edit?usp=sharing -
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artistas quanto os estudantes em formao pesquisaram seus prprios trabalhos numa
plataforma de mltipla colaborao. Durante este perodo, Le Roy iniciou uma pesquisa
intitulada To Contemplate(2008) e, aps a finalizao do projeto em Montpellier, segui junto
dele nessa pesquisa, como colaborador e performer, estando em cena nas apresentaes de
diversas etapas do trabalho, intituladas: To Contemplate, em Madrid (2009);Floor Pieces, em
Dusseldorf (2010); More Floor Pieces, em Boston (2010); Floor Pieces, em Viena (2010);
Untitled,em Berlin (2011) e, finalmente a verso final, Low Pieces, em Avignon, Londres,
Frankfurt, Genebra, Barcelona, Buenos Aires, Porto, Lisboa, Paris e Bruxelas entre os anos de
2011e 2013.
Alm da parceria nesse trabalho especfico, apresentamos uma comunicao em
conjunto noFestival dAvignonde 2011, e performamos os trabalhosdipo My Foot (2011) e
Shakespeare as You Like It(2011), dirigidos por Jan Ritsema3. Como co-curador do encontro
de artesIC - Interao e Conectividade,ainda produzi apresentaes de obras de Xavier Le
Roy em Salvador (BA): Self Unfinished (1998)e Product of Circunstances (1999) na edio
de 2011 do evento, alm da prpria obra que objeto desta pesquisa, Retrospectiva4, no
ano de 2013.
Ao longo desta dissertao, sero citados trabalhos de coregrafos nacionais e
internacionais - incluindo alguns de minha prpria autoria - como elaboraes para as
diversas argumentaes que proponho. Entretanto, a exposio coreogrfica5
Retrospectiva (2012), de Xavier Le Roy, tomada como exemplo central por reorganizar
solos anteriores do artista em uma nova coreografia, com interesse especial nas implicaes
coreogrficas e polticas que esse ato abarca, sendo uma obra de dana que registra dana,
produzindo memria e histria de forma a dinamizar o entendimento de registro coreogrfico.
14
3Jan Ritsema diretor, coregrafo e importante dinamizador cultural do campo das artes cnicas experimentaiseuropeias. Ele fundador daPAF - Perform Arts Forum,centro de residncias artsticas aberto a criadores detodo mundo. Mais informaes sobre o centro que ele coordena no endereo: http://www.pa-f.net/
4O sinal grfico de aspas pertencente ao ttulo da obra Retrospectiva, de Xavier Le Roy, uma escolhaesttica do artista. Sempre que esta obra for citada nesta dissertao, ela vir acompanhada deste sinal que fazparte da grafia original do ttulo do trabalho em questo.
5No decorrer desta dissertao o trabalho Retrospectivade Xavier Le Roy ser chamado de exposio e decoreografia, a depender do caso, por entender que se trata de uma exposio construda a partir de um
pensamento coreogrfico, assim, em cada momento da escrita escolho acentuar um ou outro aspecto da obra.
http://www.pa-f.net/http://www.pa-f.net/ -
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Retrospectiva foi criada primeiramente a convite da Fundaci Antoni Tpies de
Barcelona - Espanha, que props para Xavier Le Roy a construo de um novo trabalho para
ocupar um dos espaos da instituio, disponvel para exposies temporrias.
Retrospectiva uma exposio que, em vez de quadros, esculturas, fotos ou vdeos,
mantm na sala de exibio performers que recebem os visitantes com diversas aes, as
quais articulam tanto a histria das obras de Le Roy agenciando um tipo especfico de
registro de seus trabalhos , quanto a relao entre as polticas de ocupao do edifcio do
teatro e de espaos das Artes Visuais. Dentre as aes realizadas nesse trabalho de Le Roy,
est a produo de uma narrativa individual de cada performer, que pe em dilogo suas
experincias pessoais com as obras do coregrafo francs. Em cada uma dessas retrospectivas
individuais, uma coreografia de registro se estabelece de maneira diferente, fazendo com que
a obra se modifique em cada contexto em que o trabalho realizado6.
em grande parte devido a esta duradoura parceria que mantenho com Le Roy, que
hoje realizo meu trabalho num trnsito contnuo entre o Brasil e a Europa. Foi tambm no
contexto europeu que me aproximei das proposies tericas de Bojana Cveji!- importante
autora srvia ainda pouco divulgada no Brasil - com as quais tenho o prazer e, ao mesmo
tempo, o rduo trabalho de me relacionar nesta escrita.
Aqui, o modo como articulo o minha escrita, tambm comoum registro coreogrfico
de Retrospectiva, alia-se com o conceito de modos de atualizao da performance
proposto por Cveji! (2013). Ela sugere uma dissoluo do entendimento de performance
como um evento uno, e considera seu desmembramento em trs processos com diferentes
duraes o criar, o performar e o assistir7 que acarretam experincias distintas entre si.
15
6At o momento da finalizao da escrita desta dissertao, a obra Retrospectiva de Xavier Le Roy teveverses apresentadas em: Barcelona - Espanha - naFundaci Antoni Tpies em 2012; em Hamburgo - Alemanha- naDeichtorhallen - International Summer Festivalem 2013; em Renne - Frana - noMuse de la Danseem2012; em Salvador - BA - na programao do IC - Interao e Conectividade em 2013; no Rio de Janeiro - RJ -no Museu de Arte do Rio - MAR em 2013; e em Paris - Frana - no Centre Pompidou - Le Nouveau Festivalem2014.
7O termo referente ao papel do pblico no texto original em ingls o attending, que em portugus poderia sertraduzido como atender. Bojana Cveji!usa este termo para distanciar o posicionamento do espectador dosentido da viso e desloc-lo para uma relao mais direta com a audio e com a ideia de durao. Em
portugus poderamos usar o termo atender para nos referirmos a um compromisso, ao exemplo de Eu atendi consulta mdica, mas ele se distancia muito do comparecimento aos eventos do campo das Artes Cnicas.Entendo que a prpria autora prope o termo como um estranhamento, para que ao ler possamos procurardiferentes relaes da funo do pblico nos espetculos. Entretanto, para facilitar a continuidade da leitura destadissertao e a fruio das argumentaes aqui propostas, aponto com traduo, ainda que temporria, oassistir.
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Essa diferenciao proposta por Bojana Cveji!tambm nos desloca das possveis hierarquias
existentes entre o processo criativo e o evento performtico, o artista e o pblico, o diretor e
os performers, j que, ao entender o criar, o performar e o assistir como processos distintos e
autnomos, fortalecemos a valncia criativa de cada um deles e suas devidas potencialidades.
Nesta pesquisa, essa proposta torna-se fundamental para percebermos as relaes entre essas
experincias distintas e as especificidades dos tipos de anlises feitas da obraRetrospectiva
de Xavier Le Roy. A teoria de Cveji! torna-se aqui, ento, uma metodologia de anlise e de
escrita sobre a obra do artista francs.
Tanto a escolha do trabalho mais recente de Xavier Le Roy quanto a teoria de Bojana
Cveji!reforam minha tentativa de aproximar os contextos europeu e brasileiro dos quais
fao parte. Desde 2008, circulo constantemente com meu trabalho pelos contextos da dana
contempornea europeia e brasileira, tendo firmado fortes parcerias nos dois lugares8. Surge
da o desejo reincidente de colocar os dois em relao, de abrir espao tanto em um quanto no
outro, para que teorias, criaes e metodologias possam ser compartilhadas. A proximidade
com os agentes desses dois contextos favorece meu acesso aos materiais de cada trabalho e
permite mais afinidade com os escritos que aparecem nesta pesquisa.
Convoco para me guiar neste trabalho, portanto, autores advindos dos dois contextos
que contribuem com o entendimento de coreografia e de registro como possveis atos
criativos e polticos, e que apresentam coreografia como ao que transborda a dana para
outros campos do saber e da experincia. Para adentrar nessas perspectivas, trago
principalmente para este escrito o conceito de dispositivo de Giorgio Agamben (2009) e sua
aproximao com a coreografia feita por Andr Lepecki (2007); a relao entre poltica e arte
discutida por Jacques Rancire (2010); e a proposta de pensar registro em arte como ato
criativo de Luis Cludio da Costa (2009).
Durante minha passagem pelo mestrado, no ano de 2013, programei e fui responsvel
pela produo em Salvador (BA) da verso brasileira da obra Retrospectiva. Num esforo
contnuo por me imbricar continuamente na prtica e na teoria como artista, curador e
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8Alm de Xavier Le Roy, nos ltimos cinco anos colaborei com a criao de espetculos de Jan Ritsema,apresentados na Blgica, Alemanha e ustria. Colaboro continuamente com Thiago Granato e suas contnuasinvestidas de criao na Alemanha e fiz parte de diferentes eventos com meu prprio trabalho, como a exposioActs of Voicingem Stuttgart - Alemanha, o FestivalIn-presentableem Madrid - Espanha e o seminrio de 10anos daBad.Co em Zagreb - Crocia.
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pesquisador executei, atravs do Dimenti9, a realizao dessa exposio coreogrfica noIC
- Interao e Conectividade VII10, encontro anual de artes. Le Roy passou um ms na capital
baiana para preparar os artistas brasileiros que assumiram a equipe da verso nacional deste
trabalho, que posteriormente foi apresentado tambm no Festival Panorama 2013 no Rio de
Janeiro (RJ), incluindo, ento, performers cariocas11.
Com a realizao desse evento aqui no Brasil, pude adentrar nas trs diferentes
proposies que aparecem no discurso de Cveji!: o ato de criar, o de performar e o de assistir.
Tive a oportunidade de assistir exposio na Fundaci Antoni Tpiesem Barcelona (2012)
e, posteriormente, fiz parte da criao e da performance da verso brasileira da obra em
Salvador (BA) e no Rio de Janeiro (RJ), o que me permite fazer desta escrita uma passagem
pelas trs proposies dentro deste trabalho que registra coreografia produzindo coreografia.
Esta dissertao foi organizada em trs sees, encapadas por uma introduo e uma
concluso. Ao longo da primeira seo, destacada a ideia de coreografia como um
dispositivo, seguindo o conceito apresentado pelo filsofo Giogio Agamben (2009) e escritos
do pesquisador Andr Lepecki (2007). Assim, a noo de coreografia apresentada como um
tipo de organizao que atua concretamente no mundo, no s metaforicamente nos assuntosque aborda, mas tambm a partir de sua ao efetiva de fazer algo se mover. Tambm
considerados aqui como dispositivos, os registros poderiam operar de maneira incisiva como
polticas de organizao de mundo. Para refletir sobre estas possveis operaes, apresento o
entendimento de poltica que rege este escrito, e suas implicaes no objeto estudado, em um
dilogo com Jacques Rancire (2005).
No texto desta seo inicial, ainda so apontados alguns dos mecanismos de registroutilizados na histria da dana cnica ocidental e experimentaes contemporneas -
17
9Dimenti uma produtora cultural e um ambiente criativo que encabea projetos de diferentes naturezas. Faoparte como artista e gestor deste ambiente que realiza h oitoanos oIC - Interao e Conectividadeum encontroanual de artes. Atualmente, o Dimenti coordenado por Ellen Mello, Fbio Osrio Monteiro, Jorge Alencar,Leonardo Frana e por mim. Mais informaes: www.dimenti.com.br/ic7
10Na verso em Salvador, o elenco foi composto pelos artistas: Jaqueline Elesbo, Matias Santiago, VolmirCordeiro, Daniella Aguiar, Neto Machado, Jorge Alencar, Fbio Osrio Monteiro, Jacyan Castilho, RonieRodrigues e Giorgia Conceio.
11No Rio de Janeiro, o trabalho foi realizado no MAR- Museu de Artes do Rio no perodo de 25 de Outubro a 10de Novembro de 2013. Na verso carioca, o trabalho teve no elenco os artistas: Jaqueline Elesbo, MatiasSantiago, Volmir Cordeiro, Daniella Aguiar, Neto Machado, Jorge Alencar, Fbio Osrio Monteiro, JacyanCastilho, Denise Stutz, Jeane de Lima Claudino e Laura Samy.
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publicaes, textos e imagens - que acionam novas formas de lidar com movimento e
coreografia no prprio ato de documentar12. Para finalizar a seo, so apresentadas uma
breve introduo ao trabalho de Le Roy, escolhido como foco deste estudo, e um
detalhamento de como sero usados, nesta dissertao, alguns termos relacionados a registros
coreogrficos: remontagem, reativao e reencarnao.
J a segunda seo apresenta o contexto em que a obra Retrospectivade Xavier Le
Roy foi gerida, explicitando o contnuo interesse deste artista por usar o ambiente em que suas
obras esto inseridas como motes criativos. Neste trecho, reflete-se tanto sobre a conjuntura
da estreia na Europa quanto sobre o contexto em que a verso brasileira foi construda,
fazendo parte do projeto Reencarnao e do IC - Interao e Conectividade 7. Finalizando a
segunda seo, aparecem discusses acerca de diferentes propostas de entendimento dos
mecanismos de exposies retrospectivas, e diferenas entre realiz-las no campo das Artes
Visuais e das Artes Cnicas.
A ltima seo mergulha numa anlise mais detalhada da obra Retrospectiva,
usando como metodologia os trs modos de atualizao da performance propostos por Bojana
Cveji!. Nesta seo, divido a experincia de analisar esta exposio coreogrfica a partir daperspectiva de quem assiste (o Assitir), de quem criou (o Criar) e de quem performou (o
Performar). So trs textos que penetram em experincias especficas da obra em questo e
articulam conexes com as ideias de coreografia e registro apresentadas anteriormente.
Fechando este escrito, as consideraes finais aparecem como um estmulo a novas
conexes que podem ser aprofundadas a partir dos dois anos de pesquisa de mestrado. Assim,
este estudo pretende estimular articulaes entre diferentes autores e discursos advindos docampo da dana e de outras reas do conhecimento, ampliando o vocabulrio usado para
versar sobre o campo da Dana e das Artes Cnicas. A possibilidade de traduzir referncias
bibliogrficas relacionadas ao assunto, ainda no disponveis em lngua portuguesa, tornar
18
12So diversas as publicaes que se dedicam a documentar dana e coreografia. Nos ltimos anos, devido aomeu interesse por este assunto, textos de minha autoriafizeram parte de publicaes que tocam nesta seara:Everybodys Self-Interview(INGVARTSEN, 2009),Everybodys Scores(INGVARTSEN, 2011),Agora(RITSEMA, 2012), Corpomeiolngua(FINGER; MACHADO; MARINELLI, 2008), Corpomeiolngua vol.02(FINGER; MACHADO; MARINELLI, 2009), Corpomeiolngua vol.rua(FINGER; MACHADO;MARINELLI, 2010),Antgona Reduzida e Ampliada (ARAJO; MORAES,2007)e As obras dentro da obra(FINGER; MARINELLI, 2009). Estas obras constam na lista de referncias bibliogrficas localizada no finaldeste trabalho.
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possvel tambm a partilha e difuso de teorias e prticas colhidas nos diferentes contextos
por onde tenho trabalhado, estudado e colaborado como artista e pesquisador nos ltimos
anos. Este estudo tambm apresenta em seus anexos tradues de entrevistas13 realizadas
entre Bojana Cevji!e Xavier Le Roy durante o perodo de criao da obra Retrospectiva.
Esta dissertao de mestrado uma tentativa de registrar e, portanto, de coreografar
meus interesses dentro do campo da dana contempornea, cuja natureza processual e
contnua, gerando grandes possibilidades de frentes de estudo e interesses no futuro.
19
13A traduo apresentada no anexo deste trabalho foi realizada no contexto da temporada do trabalhoRetrospectiva no Rio de Janeiro, em novembro de 2013. Ela foi cedida para ser publicada aqui pelo FestivalPanorama de Dana.
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2. O REGISTRO EM DANA COMO COREOGRAFIA
A primeira seo desta escrita experimenta uma incurso nos entendimentos
especficos de coreografia e registro que sero usados ao longo de toda esta dissertao. Essesdois conceitos se relacionam aqui com a noo de dispositivo apresentada por Giorgio
Agamben (2009), tambm abarcada nesta seo, e com o entendimento de poltica apontado
por Jacques Rancire (2005). O entrelaamento desses conceitos cria uma base para pensar
coreografia como registro, e vice versa, em que tanto coreografia como registro poderiam
figurar na ampla classe de dispositivos enumerada por Agamben e abarcar atuaes ticas,
estticas e polticas.
A partir desta prerrogativa, esta seo abrange exemplos de registros marcantes na
histria da dana ocidental idealizados por modos especficos de se pensar e se produzir dana
ao longo do tempo. Neste sentido, rene casos contemporneos que testam novos caminhos
na experincia com os registros e documentaes, concebidos, em sua maioria, pelos prprios
artistas atuantes no campo da coreografia.
Esta seo ainda abarca uma breve introduo da obra Retrospectivae de como este
trabalho lidar, nas sees seguintes, com os termos que se referem a registros coreogrficos:
remontagem, reativao e reencarnao.
Portanto, essa seo inicial opera teoricamente como um enquadramento conceitual
para a anlise da verso brasileira da obra Retrospectiva a ser realizada nas sees
seguintes.
2.1 Coreografia que transborda a dana
Esta pesquisa acompanha meu interesse constante por ampliar o conceito de
coreografia, que um dos termos que aparecer recorrentemente nesta dissertao. Sua
relao com a dana vista de diferentes formas por diferentes autores, e sua histria
demonstra uma forte ligao com as ideias de documentao e registro.
O termo coreografia teria surgido da juno das palavras gregas choreia (dana) e
graph (escrita), e tambm poderia ter sido uma adaptao da palavra xopia, dana circular da
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Grcia antiga (TRINDADE, 2008). Portanto, desde sua etimologia, coreografia aparenta uma
ligao ideia de escrita, de registro e de movimento.
No decorrer da histria da dana, a concepo de movimento tem sido fortementeligada ao corpo, ou entendida como algo que se produz exclusivamente com o corpo.
Seguindo essa histrica concepo, muito forte no campo da dana at os dias de hoje, o
movimento do corpo seria a matria essencial da dana, o diferencial ontolgico que a
caracteriza como um campo artstico especfico e singular. Essa corrente facilmente
identificada no Bal Clssico, por exemplo, praticado e ensinado h sculos com total
centralidade de foco na produo de movimento no corpo do bailarino. Os diversos gneros
de dana oferecidos nas academias, que realizam cursos livres de vrios estilos para diferentes
faixas etrias, tambm acompanham este pensamento do movimento do corpo do bailarino
como essencial para a produo da dana. Os gneros mais comuns oferecidos nas academias
- como o Jazz, o Sapateado e a Dana de Salo, por exemplo tm, na sua concepo, a ideia
de coreografia como um agrupamento de passos (movimentos) realizados por um corpo.
Portanto, importantes artistas da histria da dana e muitos que produzem nos dias atuais
compartilham deste modo de pensar dana que centra a ao coreogrfica no movimento do
corpo humano.
Em seus recentes escritos, a autora srvia Bojana Cveji!(2012) cita uma definio do
termo coreografia, formulada pelo coregrafo William Forsythe14, que surge em consonncia
com o pensamento de alguns artistas contemporneos que testam um olhar diferente deste
citado anteriormente. Segundo ele, coreografar poderia ser a ao de "organizar coisas no
tempo e no espao". Assim, ele abre um precedente para definies que desligam trs
conceitos historicamente unidos: coreografia, movimento e corpo. A partir do que define
Forsythe, poderamos cunhar uma dissociao, pensando sobre coreografar movimento sem
corpo ou corpo sem movimento.
Esta pesquisa acadmica, e minha trajetria artstica, pertencem a um ambiente da
dana identificado como dana contempornea. Este ambiente gera criaes artsticas to
21
14William Forsythe bailarino e coregrafo americano que foi coregrafo residente do Ballet de Stuttgart pornove anos, seguindo para a direo do Ballet de Frankfurt, onde ficou de 1984 a 2004, ambos na Alemanha.Desde sua sada do cargo de Frankfurt, ele mantm uma companhia independente que circula com seus trabalhos
por diferentes partes do mundo. Mais informaes sobre o artista em: www.williamforsythe.de
http://www.williamforsythe.de/http://www.williamforsythe.de/ -
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plurais quanto os coregrafos que o habitam. Entretanto, ainda dentro deste grupo de
produes, possvel identificar uma parcela mais especfica interessada nas possibilidades
de articulao coreogrfica que no se fixam na obrigatoriedade da ligao entre movimento e
corpo.
Segundo cita Bojana Cveji!, esta parcela especfica da dana contempornea recebeu
alguns apelidos nos ltimos 15 anos, como: "dana conceitual" e "no-dana". Estes termos
usados como apelidos demonstram o grande apego histrico no campo da dana ideia de
que corpo e movimento seriam indissociveis, e que a juno dos dois seria ocerne do que
chamamos de dana. Classificar uma coreografia de "no-dana" deixa clara a inteno de
demarc-la como algo que no carrega uma suposta essncia da dana, sendo, portanto, a sua
negao. O termo "dana conceitual" gera ainda dois possveis sentidos: o primeiro arrisca
afirmar que esse tipo de dana que seria apenas conceitual no teria corpo, reforando a
tambm histrica dissociao entre corpo e mente; e o segundo liberaria as demais
coreografias que no fariam parte desse grupo e, por isso, no seriam conceituais de suas
inexorveis implicaes conceituais e, por consequncia, polticas.
Portanto, esse grupo especfico de coreografias dentro do j especfico e restritogrupo da dana contempornea feito de produes interessadas em algo que experimente a
dissociao da relao corpo e movimento para, assim, ampliar o termo coreografia,
abarcando algo que possa ter movimento e no necessariamente corpo ou vice-versa.
tambm por essa especificao que o termo coreografia vem sendo fortalecido nos
ltimos anos e tem circulado em campos como as Artes Visuais e Arquitetura15. Os interesses
por coreografar, por organizar coisas no tempo e no espao, no necessariamente precisamestar relacionados exclusivamente dana; eles transbordam esse campo. Nesta direo,
podemos incluir dentro do termo coreografia mais do que eventos cnicos, considerando
inclusive a dimenso coreogrfica de registros e documentaes, como aqui proponho.
Ao longo desta dissertao, uso recorrentemente o termo coreografia, principalmente
no que diz respeito aos trabalhos cnicos que aparecem como parte das articulaes
22
15Vide os casos de exposies, comoMove: Choreographing You(Mova-se: coreografando voc), em cartaz noano de 2011 no South Bank Center em Londres com publicao de catlogo especializado, e de publicaes docampo da Arquitetura, como o livroApproach,publicado em 2012 pelo AUM Studio. As duas publicaesconstam na lista de referncias bibliogrficas desta dissertao.
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conceituais, por entender que os autores dessas obras passeiam por diferentes campos
artsticos e, nem por isso, elas deixam de ser coreografias. Pelo contrrio, esses trabalhos
afirmam uma ampliao do campo de atuao desta prtica. Aqui nesta escrita, localizo
trabalhos que sero entendidos como coreografias, ciente de que no necessariamente eles
carregam o desejo ou o dever de serem enquadrados unicamente no campo da dana.
Seguindo esse pensamento, coreografia nesta pesquisa considerada, ento, como um
jeito de organizar e propor atenes de forma autnoma, ao mesmo tempo que pautada em
trocas e dependncias correlacionadas. O ato de coreografar um ato de fazer escolhas,
mergulhado em diversas polticas que atravessam de forma multidirecional o artista e seu
processo de trabalho. Coreografia no lida com a poltica apenas num sentido metafrico, ou
referencial. Ela no uma ao que fala sobre poltica ou que se refere a uma interferncia
social. Coreografia , em si, um ato poltico, por fazer algo no mundo se mover, como explana
o autor Andr Lepecki:
Antimetaforicidade requer entendermos de que modo, ao atualizar-se, aoentrar no concreto do mundo e das relaes humanas, a coreografia acionauma pluralidade de domnios virtuais diversos sociais, polticos,econmicos, lingusticos, somticos, raciais, estticos, de gnero e osentrelaa a todos no seu muito particular plano de composio, sempre beira do sumio e sempre criando umpor-vir. (LEPECKI, 2013, p. 46)
Em sua tese de doutoramento, a autora Bojana Cveji!(2013) cita uma outra definio
de coreografia, dada por Xavier Le Roy. O artista francs apresenta uma concepo de
coreografia que o permite fazer do seu trabalho o que lhe fizer sentido em cada processo
criativo em que se engajar, sem se restringir ao corpo como centralidade de sua ao ou ao
movimento como balizador de uma validao formal. Para ele, coreografia seria: ao(es)
e/ou situao(es) artificialmente encenadas. E nesse sentido conceitual com o qual ele
trabalha, com potencial abrangente e ao mesmo tempo especfico, que seguiremos pensando
sobre coreografia no decorrer desta escrita.
2.2 O registro da obra de arte efmera
O campo das Artes Visuais concentra grande parcela da produo terica e histrica
sobre a arte mundial, especialmente da arte produzida no ocidente. Esse campo, e a produo
conceitual advinda dele, lidou por muitos sculos com o entendimento de obra de arte quase
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como um sinnimo de objeto de arte. O objeto era o foco principal dos estudos e escritos
ainda em parte dos casos criando uma forte corrente terica que prioriza a ideia de obra de
arte como algo esttico, como um objeto.
O objeto algo que se mantm presente ao longo do tempo, por uma menor ou maior
durao e, a depender do seu material, ele permanece, dura. Ainda temos acesso a objetos de
pocas muito distantes da nossa, como as esttuas gregas ou as pinturas renascentistas
italianas. Os materiais mais duradouros so considerados valiosos e, por isso, mais caros
dentro da economia mundial. O diamante, por exemplo, dentre os materiais conhecidos, um
dos mais difceis de ser danificado. Assim, desde a joia que passada de gerao a gerao
aos objetos de arte que permanecem no tempo, est presente a ideologia da valorao da
durabilidade do objeto, da busca por uma imortalidade impossvel ao corpo.
O objeto que conta com uma vida longa torna-se a prpria comprovao de sua
existncia. Os escritos tericos sobre as esttuas gregas, por exemplo, podem usar de fotos e
imagens que garantam uma visualizao dos objetos citados, mas trazem consigo a hiptese
de uma existncia concreta de alguns destes objetos que esto presentes no mundo ainda hoje.
A existncia contnua e longa de um objeto possibilita a verificao de sua concretude por ummaior nmero de pessoas, e, como consequncia, uma confirmao permanente de sua
presena, produzindo certo fetiche de historicidade e imortalidade.
Outros tipos de arte que, na maioria dos casos, no tm no objeto a materialidade da
obra como o caso das Artes Cnicas e da Msica , apresentam uma maior dificuldade de
serem documentados e historicizados ao longo dos anos. A msica ocidental antes e com
maior alcance que a dana criou um sistema de notao que permitiu o registro de suascomposies e o seu acesso por msicos de diferentes pocas e localizaes geogrficas. A
partitura transforma a sua existncia passageira em algo perene, enquanto um objeto
codificado que permite uma base de reativao da performance musical. O estabelecimento
das notas musicais como regime estrutural bsico de funcionamento da msica ocidental
permitiu, por exemplo, que hoje composies de artistas mundialmente famosos, como
Beethoven ou Mozart, sejam intermitentemente conhecidas e difundidas.
Entretanto, nunca saberemos ao certo como essas msicas eram executadas em suas
verses originais. As composies destes artistas no so esttuas que chegaram ao nosso
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tempo como objetos de comprovao de suas prprias existncias. Nossa ligao com esses
msicos construda por meio de registros de suas composies e no de suas obras em ao.
No saberemos, com toda a certeza, como aNona Sinfonia16de Beethoven ou 40aSinfoniade
Mozart17eram tocadas por eles prprios. Hoje, as verses dessas composies so replicadas
freneticamente, estando disponveis para download e passveis de se tornarem toques de
celular, vinhetas telefnicas, sons de campainha etc. Seus usos geram infinitas verses,
reprodues e livres tradues. A depender do instrumento que toca a msica, do como ela
tocada, do ambiente onde ela ouvida e do contexto no qual ela inserida, a performance
pode ser to importante quando as notas escritas na partitura. Portanto, no podemos falar que
a partitura abarca o registro de toda a complexidade das obras de Mozart ou Beethoven, ainda
que ela nos auxilie na aproximao das produes destes grandes nomes da histria.
Mesmo nas Artes Visuais que, como j citado anteriormente, mantiveram por muito
tempo o objeto como mote principal de sua produo, um problema prximo do campo da
Msica comea a aparecer quando a reprodutibilidade tcnica adentra os meios de produo e
se faz presente na criao artstica. Quando a artesania deixa de ser essencial e unicamente
importante para produo do objeto de arte18, questiona-se o alto valor econmico e cultural
centrado no objeto e na sua exclusividade. Com provocaes feitas por diversos artistas
engajados na descentralizao do objeto, o prprio campo das Artes Visuais se viu obrigado a
lidar com questes que compreendem a cpia, a reproduo, a apropriao e as valoraes
econmicas e culturais de tudo isso.
25
16A Sinfonia no9 em r menor, op 125, Choral a ltima sinfonia completa composta por Ludwig VanBeethoven (1770-1827) no ano de 1824, hoje conhecida do grande pblico como sua obra-prima. Segue trechodesta obra tocada por um celular: http://www.youtube.com/watch?v=2wSLFNEvso8
17Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) comeou a compor com apenas cinco anos de idade e tornou-se ummarco na histria da msica, muito popular entre leigos e crticos especializados. Segue endereo de site no qual possvel baixar trechos desta obra como toque de celular: http://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.html
18Um exemplo o do famoso artista do comeo do sculo XX, Marcel Duchamp, que usa de um mictriocotidianocomo pea de arte de museu em sua obraFonte (1917). Ou Andy Warhol, conhecido como figuramaior dapop art, com suas reprodues de artigos comercializados em supermercados americanos, como a
pintura das latas de sopa Campbells em Campbells Soup Cans(1967).Acrescentemos que estes doisprocedimentos so paradigmticos at hoje no s do questionamento sobre a exclusividade e o carter artesanalversus industrial do artefato artstico, mas tambm por imporem o questionamento sobre como e quem valida umobjeto com o status de objeto de arte. Duchamp e Warhol sustentam, com estas atitudes, que tal status advmdo contexto em que um objeto qualquer imagem, corpo, artefato, movimento situado. Essas questesaparecem em consonncia com alguns trabalhos do grupo da Judson Danse Theater, atuante em Nova Iorque noincio dos anos 1960, nos quais artistas incluam movimentos cotidianos nas coreografias, rompendo uma relaohierrquica entre o que pode ou no ser dana e gerando, assim, questionamentos sobre o poder do como seestabelece o limite entre o que pode ou no ser arte.
http://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.htmlhttp://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.htmlhttp://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.htmlhttp://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.htmlhttp://www.dilandau.eu/baixar-cancoes-mp3/mozart%20sinfonia%2040/1.htmlhttp://www.youtube.com/watch?v=2wSLFNEvso8http://www.youtube.com/watch?v=2wSLFNEvso8 -
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Numa corrente de dessacralizao do objeto como nico produto de arte possvel,
fortaleceram-se em meados dos anos 1970 artistas interessados em uma arte que considerasse
uma obra alicerada no corpo e na ao como mdias principais19. Alguns artistas lutaram por
uma desvinculao do objeto como nica possibilidade de configurao da produo nas
Artes Visuais. Assim, defenderam uma arte fincada no corpo presente, que se realizasse no
momento da ao e desaparecesse logo aps esta tivesse sido finalizada, apresentando e
fortalecendo um tipo de arte conhecido comoPerformance Art.
Segundo RoseLee Goldberg, autora do livro Performance Art From Futurism to the
Present(2001), aPerformance Artfoi aceita como uma mdia de expresso independente pelo
campo das Artes Visuais na dcada de 1970. Mesmo tendo sido usada como meio de atividade
de alguns artistas desde os movimentos das vanguardas do comeo do sculo XX (a exemplo
do Futurismo e o Dadasmo), aPerformance Artse firmou como formato aceito e incluso nas
instituies, nos festivais e nas escritas especializadas nos anos 197020.
Nesse perodo, registrar essas obras efmeras era considerado por muitos como algo
menor do que a prpria ao, j que este ato constitua a tentativa de reter algo que no se
dispunha a ser capturado. Essa atitude de negao do registro foi importante historicamentepara abrir brechas de valorizao de outras configuraes de obras dentro do campo das Artes
Visuais, dando espao ao desenvolvimento de possibilidades criativas, como j citada a
Performance Art, nas quais a desapario da obra de arte problematizava as economias da
reproduo e da permanncia.
No entanto, hoje, preciso refletir que, dessa primazia da presena, considerada algo
fundamental a essas obras, emerge inclusive uma ideologia que pode gerar novamente umapredisposio valorizao do original, do nico e do presente, como algo melhor, maior e,
por isso, mais valioso e poderoso. Esta pesquisa prope justamente pensar o registro no
26
19Alguns dos nomes importantes de serem citados aqui como artistas que nos anos 1970 trabalhavam por umadessacralizao do objeto de arte como possibilidade central de produo so: a artista srvia Marina Abramovi"e seu companheiro de trabalho e de vida, na poca, Ulay; o artista alemo Joseph Beuys e sua produo emdiversas mdias; a artista baiana Letcia Parente com seus vdeos performances;alm dos nomes dos hojerenomados artistas brasileiros Lygia Clark e Hlio Oiticica, com o desenvolvimento de suas obras relacionais.
20 importante reforar aqui que esta dissertao usa o verboperformarpara referir-se ao trabalho de quem estem cena (danarino, bailarino, etc), no implicando obrigatoriamente que as obras em que eles atuam sejam
parte desse conjunto chamado dePerformance Art. Este termo refere-se mais diretamente a obras de artistasadvindos das Artes Visuais que usam o corpo como mdia de seus trabalhos. Operformar, como usado nestadissertao, refere-se ao trabalho realizado em qualquer obra que tenha algum em cena.
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como algo que busca validar ou reter uma experincia artstica, mas consider-lo em sua
capacidade de autonomia, como argumenta o autor Luis Cludio Costa:
A crtica autonomia pela afirmao da presena, todavia, pode ter revesesigualmente ideolgicos, uma vez que, afirmando-se o presente, pode-sereafirmar a verdade do atual e do nico. Ao permitir mltiplas diferenciaesatuais (em objetos, eventos, livros etc.), a obra em processo permite aoregistro participar de seu vetor discursivo, de sua gerao de visibilidades epensamentos inusitados, fazendo com que a prpria obra entre em contatocom contextos materiais diversos, ou seja, em perspectivas que,eventualmente, podem inclusive contradiz-la. Dito de outro modo, oregistro pode ter funo esttica porque no apenas suporte e lugar para avalidao da obra. Ao assumir certa autonomia, mesmo que parcial, poispermanece vinculado a eventos que lhe antecedem, o registro tem comopropsito no a validao da obra em sua existncia institucional, mas sim
sua diviso em mltiplas sries e formas de atualizao decorrentes de suacondio virtual. (COSTA, 2009, p.85)
Na perspectiva desta pesquisa, o registro da ao artstica no necessariamente um
subproduto que a valida, mas uma nova gerao criativa que apresenta outras possibilidades
de leitura da obra e, em alguns casos, novas obras, chegando a gerar casos at contraditrios a
ela mesma. Portanto, aqui, o registro em arte ser sempre uma nova criao.
Apesar de, em grande parte dos casos, o registro ser apontado como mero reprodutor
(dispositivo de captura) de alguma obra-fonte, com funo exclusivamente documental, ele
sempre envolve um ato com escolhas, projetando dimenses poticas e estticas, j que lida
com parmetros que fazem dele sempre um produto diferente a depender das escolhas que
forem abarcadas na sua concepo e execuo. O registro, mesmo que feito com inteno
apenas de arquivamento de certa obra ou situao artstica, sempre lida com escolhas formais
que fazem dele um caso especfico de criao. Essa direo dupla acionada pelo registro, de
referncia a algo que j se passou e de apontamento a algo novo que se cria ali, constitui sua
potncia nesta pesquisa.
Como anteriormente comentado, a permanncia do objeto faz dele mesmo a
comprovao de sua prpria existncia. O registro surge a prioricom o desejo de tambm se
firmar como objeto, cumprindo dupla funo: a afirmao da existncia do outro que ele
registra e a dele mesmo enquanto objeto. Por exemplo, a fotografia de uma escultura x cria
visibilidade para existncia desta obra que ela documenta, mas s o faz porque, antes de tudo,
firma sua existncia como fotografia. Este duplo papel apresenta o registro como uma ao
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em si, com suas especifidades e com uma vida para alm da relao que cumpre atrelada a
algo que est fora de si. O registro pode ser executado visando a estar eternamente a servio
de documentar a existncia de um outro, mas no estar nem sempre e nem necessariamente
cumprindo apenas esta funo, j que algo que se apresenta com diferente nvel de
autonomia a depender do caso.
As relaes entre obra e registro so muitas vezes balizadas pelas ideias de fidelidade e
autenticidade, gerando equvocos recorrentes que hierarquizam a superioridade da obra em
relao ao registro, estando o registro sempre aqum da obra, sempre a ela sujeitado em sua
questionvel dimenso esttica. muito importante para essa escrita, porm, deixar explcita
a existncia de cada experincia: a obra e o registro, e da forte potencialidade de cada uma
delas.
Uma vasta corrente de encenadores e autores do sculo XX defendiam a presena do
pblico como fundamental para uma cena acontecer. Peter Brook21 (1968) tornou clebre o
entendimento de que o necessrio para se configurar uma cena so um ator e um espectador
no mesmo espao, o que faz do pblico presente algo essencial para a construo disto que
chamamos cena. Porm, muitos artistas que investiram em obras de performance, como abrasileira Letcia Parente22, criaram trabalhos em que realizavam cenas ou aes em locais
privados, como a prpria casa, sem nenhum pblico presente. O registro destas aes que
chegava ao pblico. Estes trabalhos no so somente trabalhos em vdeo, so registros de
aes, so tambm demarcadores de performances, cenas e presenas. O interesse da artista
ao realizar algumas de suas aes no estava apenas no vdeo, mas na fora potica da ao
que aconteceu em sua casa. Sendo assim, a cena efetivamente aconteceu, s que sem pblico
presente. O que o pblico experimenta ao entrar em contato com o vdeo de registro da cena
uma verso do que pode ter sido aquela ao. E paradoxalmente, o que ala aquele evento ao
patamar de cena de performance o seu registro. A performance destes casos sem pblico
presente durante a ao est no registro, est na maneira de dar novos sentidos quela ao
que poderia ser cotidiana, mas que ao ser registrada assume um novostatus,de cena.
28
21Peter Brook um importante encenador ingls nascido em 1925. Ele tambm autor de livros bastantedifundidos no campo das Artes Cnicas, como The Empty Space(O espao Vazio) de 1968.
22Letcia Parente (1930-1991) foi importante artista visual brasileira, com obras que tinham foco no uso do corpoe seu dilogo com o vdeo. Mais informaes sobre suas obras no site: http://www.leticiaparente.net/
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O pblico, portanto, estava presente na casa de Parente, mas de maneira virtual, como
uma projeo da artista e no como realidade concreta, proposta por Brook. Isso o que
defende tambm Bojana Cveji! (2013) em relao ao processo criativo de uma obra. No
ensaio j existe obra performance porque o artista, ao performar, j tem consigo um
pblico virtual. Em muitos dos casos hoje, poderamos dizer que um espectador muito
frequente nos ensaios a cmera, o que d ao registro um poder ainda maior de afirmao da
performance.
O registro tambm est presente como dispositivo regulador do que importante ou
no ao processo de criao a todo o momento. O que se escreve sobre, o que se narra sobre, o
que se compartilha, so todos parmetros usados para pensar o que se cria. E mesmo depois
da obra estreada, desde qualquer narrativa que remonte experincia da obra, estamos
lidando o tempo todo com as polticas de registro. Este, que no precisa ser objeto, mas, como
defendido aqui, pode ser uma ao coreogrfica com materialidade mltipla. A ao da fala
um dos registros mais atuantes e potentes (vide histria oral), e como pretendo discorrer aqui
nesta dissertao, parte da reativao de obras anteriormente encenadas. A coreografia que
registra coreografia, nesta perspectiva, um entroncamento de dispositivos artsticos e
polticos que permite uma vasta e profunda perspectiva de movimento, e, portanto, de
mudana.
Essa potencialidade do registro como objeto autnomo e propositivo mostra-se ainda
mais explcita quando levada a cabo pelos prprios artistas. Os artistas que colocam o registro
de seus trabalhos em pauta dentro de seus prprios processos de criao tm a oportunidade
de verem sua obra se desdobrar em mais de uma configurao. O registro pode estabelecer
uma srie de concretizaes diferentes dos mesmos pontos de partida artsticos, revelando-se
como um encadeamento de reverberaes de um mesmo input criativo.
claro que as estratgias tm especificidades que dependem do artista queas adota. Muitos defendem ou utilizam o termo registro para inscries emimagens de trabalhos efmeros j realizados. Preferem esse vocabulrioporque consideram que fotografias, filmes e vdeos tm uma nica condio:
documentar aes, performances e intervenes. Estratgica e politicamente,alguns artistas da gerao dos anos 1970 negaram o valor esttico de objetoformal autnomo a essas imagens-registro, uma vez que atuavam contra ofetiche da obra de arte. Desaparecida, a obra deixaria apenas seus rastros
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como documentos ligados sua prpria memria. H, todavia, artistas quesustentam o registro em razo de outros interesses. A funo das imagenspara um artista como Tunga no apenas documentar uma obradesaparecida. Trata-se, para ele, de continuamente fabular o prpriodesaparecimento, desdobrando a obra em novas obras fantasmas. Tunga
grava em imagem de vdeo uma performance, que tambm fotografada, etanto uma quanto a outra dessas imagens-registro pode virar elementoparattico num livro-cartaz, como o que se encontra em seu livro-caixapublicado pela editora Cosac Naify em 2007. (COSTA, 2009, p.30)
O registro pode tornar-se continuidade do processo de trabalho, dando nova
materialidade ao que foi feito em cena, gerando a abertura de uma srie que complexifica e
amplia o trabalho em vez de reduzi-lo. Alguns coletivos e artistas esto provocando os limites
do registro dentro de suas prticas criativas. Mais adiante, ainda dentro desta seo, cito
algumas destas experincias como exemplos de novos formatos de registros que incluem em
suas configuraes experimentos ligados aos prprios interesses criativos de cada um destes
artistas.
2.3 O carter poltico do registro: o registro como dispositivo
Trazer para si a responsabilidade de pensar os registros como parte de suas prticas
firma a ao de entender o registro como mais um dispositivo artstico e, tambm, poltico.
Entendendo poltica, nesta escrita, de modo mais amplo que apenas aquela que designa a
atuao das instituies representativas da democracia, como o governo e suas instncias de
representao. Pretendo apresentar aqui uma noo de poltica menos focada diretamente na
atuao do Estado e mais imbricada nas aes cotidianas dos cidados, calcada no modo
como apresenta poltica o autor Jacques Rancire: A poltica ocupa-se do que se v e do que
se pode dizer sobre o que visto, de quem tem competncia para ver e qualidade para dizer,das propriedades do espao e dos possveis do tempo. (RANCIRE, 2005, p.17)
A partir da viso do autor, interesso-me por focalizar um entendimento de poltica que
a compreende como uma prtica de partilha, no no sentido de aes de solidariedade, mas no
sentido da construo de constantes divises de tempo e espao firmadas na relao cotidiana
da vida em coletivo. Nas aes e nos discursos dirios, esto presentes escolhas por dar
visibilidade a certas ideias e ideologias que fazem com que a uns seja permitida a participaoem certos tempos e espaos e a outros no. Estas escolhas partilham, portanto, uma poltica,
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um entendimento de mundo que dividido com outros e, assim, que faz o mundo dividir-se.
O que Rancire ressalta que, alm de fazer ou no parte de certo compartilhamento de
tempo e espao, precisamos estar tambm atentos a quem tem o poder de perceber a
existncia destes compartilhamentos, e de escolher, ou induzir, quem faz ou no parte deles a
partir desta conscincia. Isso pode ser refletido em diversas instncias, desde os parlamentos
que decidem e votam pelas leis compartilhadas no pas, at a famlia, o grupo da escola, a
companhia de dana, a pea de dana, a obra de arte ou a exposio do museu. Cada pessoa
parte de instncias que lidam com diferentes foras e abrangncias em suas construes de
partilhas, mas que implicam polticas nas suas aes.
O professor Miguel Chaia (2007) diferencia e nomeia esses dois tipos de entendimento
de poltica como explcita e implcita. A explcita compreenderia o ncleo de poder definido
pelo Estado, pelos partidos polticos e pelas instituies de representao social. J a que ele
chama de implcita estaria presente no cotidiano em diferentes momentos e circunstncias da
vida. No existe uma hierarquia entre elas, apenas diferenciao de grau de intensidade de
ao. Portanto, a arte acionaria uma poltica, por ser responsvel por compartilhar um modo
de entender divises de tempo e de espao, maneiras de coletivizar espaos e tempos. Essa
diviso seria o que define o convvio em sociedade: de que forma cada um pode usar, ou
decide usar, tempo e espao, tanto individualmente quanto em coletivo.
A partir desta perspectiva, o tipo de dispositivo que escolhemos para registrar arte
evidencia os modos de se pensar e se praticar arte que, ao mesmo tempo, definem e so
definidos pela arte que se produz. Em consonncia com Andr Lepecki, o filsofo Giorgio
Agamben (2009) escreve que os modos especficos com os quais um dispositivo opera
implicam posicionamentos tanto estticos quanto polticos.
Generalizando posteriormente a j bastante ampla classe dos dispositivosfoucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha dealgum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seresviventes. (AGAMBEN, 2009, p. 40)
Assim, Agamben estende os dispositivos de Michel Foucault e suas conexes com o
poder, no os restringindo s prises, aos manicmios, s escolas, s disciplinas, s medidasjurdicas. Para o autor, a noo de dispositivo cabe ainda para diversos outros artefatos e
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instncias como a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a
navegao, os computadores, os telefones celulares e, at, a linguagem. Proponho, nesta
escrita, entender coreografia e o registro dela tambm como parte desse conjunto que
chamamos dispositivos, no que concerne organizao, orientao e modelagem compositiva
de um pensamento implicado numa prtica artstica. Assim, as composies e registros de
uma obra apontam diferentes universos poticos e aes concretas de partilhas de espao e
tempo que so carregados de implicaes polticas.
Seguindo o pensamento do filsofo francs Jacques Rancire (2010), a arte
responsvel por concretas partilhas do que seria possvel de ser dito e visto em nossa
sociedade, uma responsabilidade totalmente poltica. As visibilidades geradas pela arte, que a
cada momento que tornam algo visvel - falam algo - fazem tambm alguma outra tornar-se
invisvel - deixam de falar algo, seriam responsveis por ativar vetores de subjetivao de
novos modos de vida (RANCIRE, 2010). Com isso, afirma-se aqui que a poltica da arte, e
por consequncia da coreografia, no est somente na metfora ou no assunto abordado, mas
na sua prpria vida concreta no mundo, enquanto possvel ao modificadora. A arte,
portanto, um dispositivo com intrnseca potncia geradora de mudana. Do mesmo modo,
apresenta-se o registro como ato criativo, formulado com base em escolhas estticas e
poticas, o que o faz um dispositivo poltico com constante fora modificadora.
Lepecki tambm apresenta uma outra definio de poltica que interessa a esta escrita.
Nela, seguindo o pensamento de Agamben e Rancire, poderamos substituir a palavra
poltica pela palavra arte e a sentena continuaria a fazer sentido, revelando a intrnseca
relao entre as duas prticas: A poltica (ao contrrio da politicagem dos polticos e seus
capangas) seria uma interveno no fluxo de movimento e nas suas
representaes (LEPECKI, 2012, p.55).
Assim, o que aponta este grupo de autores a inevitvel interseo da arte e da poltica
no que tange sua possibilidade de interferncia no mundo atravs das suas aes. Neste
texto, incluo tambm dentro desta perspectiva a ao do registro, que nada mais do que mais
uma criao artstica, esclarecendo, assim, uma forte agenda poltica nos seus atos. Sob este
prisma, o registro visto como um dispositivo que no tem ao apenas retroativa ou
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nostlgica, mas que alimenta um movimento demarcador de sentidos com a potencialidade de
provocar modificaes na nossa relao com o mundo.
O conjunto de produes de dana contempornea hoje muito aberto e numeroso. Osapontamentos polticos que as obras podem expressar so inmeros, assim como so diversos
os jeitos de se produzir registros, notaes e documentaes. Cada obra abre portas para
descobrirmos novas formulaes de documentao que procuram dar conta de algo que est
sendo produzido naquela e para aquela obra. As diferentes valncias ideolgicas de cada
experincia em dana demandam, portanto, prticas variadas e especficas de registro
vinculadas s diferentes atualizaes que cada obra prope.
2.4 Registro em dana: produes de histria
No decorrer da histria da dana cnica ocidental, foram mltiplas as tentativas de
desenvolvimento de registros que se adaptassem s formas de se produzir coreografia. No
texto Coreografia como apparatus de captura, o pesquisador Andr Lepecki (2007) considera
coreografia um apparatus um mecanismo que distribui e organiza a relao da dana com a
percepo e o significado. Segundo o autor, precisamente esse tipo de organizao do
campo perceptivo-lingustico que o apparatusperforma.
Como Gilles Deleuze explica, a maior contribuio de Michel Foucault(1970) para a teoria poltica da significao, o conceito de apparatusreala apercepo como sempre amarrada a modos de poder que distribuem eatribuem s coisas visibilidade ou invisibilidade, significncia ouinsignificncia. (ANDR LEPECKI, 2007, p.120, traduo minha)
Se pensarmos, ento, coreografia como um dispositivo, usando o termo proposto por
Agamben, ou como apparatus, usando o termoequivalente apresentado por Lepecki, estamos
escolhendo ressaltar, na ao coreogrfica, escolhas que propem e lidam com visibilidades e
invisibilidades. Assim, toda coreografia traz consigo um regime de escolhas que circunda
esferas ticas, poticas e polticas.
Os registros coreogrficos tambm esto atrelados a todas essas diferentes esferas. Em
muitos dos casos, eles surgem como uma tentativa de criar uma base para que danas possam
ser repetidas. Portanto, tais registros resultam de um desejo de reter algo de uma dana queinevitavelmente desaparece.
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Existem diferentes formas de registro que fazem, cada qual sua maneira, diferentes
recortes das obras s quais se filiam. Vrios foram os meios, no decorrer da histria, de a
dana lidar com o que chamo aqui de coreografia e seus diferentes modos de ger-la, anot-la,
registr-la ou escrev-la para criar a possibilidade de repeti-la, historiciz-la ou document-la.
Como descreve o livroA escrita da Dana(2008)23, de Ana Lgia Trindade, a Coreologia, por
exemplo, existe como um campo interessado especificamente pela elaborao de tcnicas de
notao coreogrfica. Sistemas como Labanotation, de Rudolf Laban (1978), e o Sutton
Movement Shorthand, de Valerie Sutton (1975), apareceram em diferentes pocas, com suas
especificidades, para dar conta de atualizaes de ferramentas de anlise do movimento
humano que traduzem escolhas por dar visibilidade a estas ou aquelas caractersticas, segundo
cada tempo e contexto diferentes.
A pesquisadora Ana Ligia Trindade (2008) narra que a funo de coregrafo surgiu
para dar nome quele que anotava a dana, em vez daquele que cria a dana, como nos
referimos hoje:
Raoul Feuillet e Pierre Beauchamp usaram uma adaptao da palavra coreiaparadescrever a notao da dana. Chorgraphie de Feuillet (1700) ajustou o termopara um mtodo da notao da dana e estabeleceu-se o termo chorgraphie(coreografia) para a escrita, ou notao das danas. Assim, uma pessoa queescrevesse para danas era um choreographer (coregrafo), mas o criador dasdanas era conhecido como um mestre da dana (Le matre un danser) ou, em unsanos antes, um mestre do bal. (TRINDADE, 2008, p. 30)
Os escritos e registros de dana mais antigos de que se tem notcia at o momento
foram encontrados em cavernas e datam do perodo denominado Paleoltico Superior
(TRINDADE, 2008). Esses desenhos remontam posies de corpos ao redor de fogueiras e
em movimentos com ligao direta com a natureza. Especula-se, ento, que essas danas eram
vinculadas a rituais que louvavam, pediam ou agradeciam natureza, no configurando ainda
uma dana propriamente cnica.
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23No seu livroA escrita da Dana (2008), a autora Ana Lgia Trindade faz um importante apanhado histricosobre diversos tipos de notao de dana que nos serve como uma compilao de base historiogrfica sem
precedentes no pas. Entretanto, preciso ressaltar aqui uma forte tendncia da publicao consagrao do Balcomo dana de uma maior importncia em detrimento de outras e ao reforo do uso de notaes e registros comoconservao de uma verdade histrica, pressupostos que diferem fortemente das defesas tericas e prticas destadissertao.
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Os registros de uma dana cnica ocidental comeam a se configurar no sculo XVI
com manuais como o Orchsographie escrito por Thoinot Arbeau24, de 1588, que, num
formato de conversa ilustrada entre um professor e um aluno, testava documentar instrues
prticas para as danas de salo da poca. As instrues vinham atreladas msica e com uso
de diagramas possivelmente incompreensveis primeira leitura, segundo comenta Ana Lgia
Trindade.
Foi a partir do sculo seguinte, com o impulso da fundao da Academia Real de
Dana e Msica por Lus XIV25 em 1661, que uma profissionalizao maior comeou a
existir na dana, em que prncipes e cortesos foram dando lugar a bailarinos profissionais.
Um desses profissionais, chamado Raoul-Auger Feuillet26, publicou em 1700 o
Choreographie, danse de la ou lart de decrire (Coreografia, dana ou a arte de descrever)
que registrava movimentos com foco principalmente nos ps e no cho, desenvolvendo os
primeiros registros do que se tornaria, no futuro, a base do Bal Clssico como o conhecemos
hoje. Este escrito foi baseado em posies cunhadas por outro bailarino chamado Pierre
Beauchamps 27, que definiu pela primeira vez as cinco posies bsicas do bal, em uso at
hoje. Este sistema, desenvolvido pelos dois, que acabou sendo chamado de Feuillet-
Beauchamps, foi traduzido na poca para outras lnguas, alm do original em francs.
Como comenta o autor Andr Lepecki (2011), Raoul Feuillet tem seu prprio nome
ligado ideia de folha ou papel na lngua francesa (feuille). Feuillet explica em seus escritos
que para construir uma dana, o coregrafo na poca o responsvel por registrar o
movimento no papel usa a folha como se fosse o cho e faz nela o que o bailarino far na
sala.
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24Thoinot Arbeau (1519 - 1595) terico e historiador de dana, era sacerdote e foi incentivado a dar continuidadenos seus estudos sobre dana pelos jesutas. Estudos apontam que a dana pode ter sido considerada umadidtica importante congregao.
25Lus XIV foi rei da Frana de 1643 a 1715, e tornou-se o grande smbolo da monarquia absolutista. Foi duranteseu reinado que o bal se fortaleceu como dana cnica, passando da corte para o teatro, alavancado pelaabertura da Academia Real de Dana (1661).
26Raoul-Auger Feuillet foi bailarino e coregrafo funcionrio da corte do Rei Lus XIV, viveu de 1659 a 1710.Contribuiu enormemente para a histria da dana ao criar, a partir de trabalhos de Pierre Beauchamps, umsistema de notao que deu incio aos estudos do Bal Clssico tal como conhecido hoje.
27Pierre Beauchamps foi tutor de dana do Rei Lus XIV da Frana. Ele viveu de 1636 a 1705, e foi o primeiro aregistrar as cinco posies bsicas do bal clssico usadas at hoje.
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Foi com a chegada do Romantismo ao bal, por volta do ano 1830, que se modificam
algumas proposies estticas e tambm tecnolgicas e tcnicas, como o uso da sapatilha de
ponta para as bailarinas, surgido neste perodo. Essas alteraes fizeram com que o sistema de
escrita de danasFeuillet-Beauchampssofresse adaptaes, mas continuasse a ser usado por
um longo perodo da histria, na construo e no registro de coreografias de bal.
At o incio do sculo XX, outros testes de notaes foram feitos por diferentes
coregrafos e profissionais da dana que visaram primordialmente anotar coreografias
baseadas nos preceitos do bal em relao direta com a msica. Como aponta a autora Ana
Lgia Trindade, o principal problema desses estudos feitos por diferentes artistas era a tomada
da perspectiva do espectador como base para olhar e registrar a dana. Assim, quando um
bailarino tentava aprender um movimento descrito no papel, deveria usar o espelhamento (o
que estivesse descrito para a direita ele deveria fazer para a esquerda e vice-versa). Muitos
tipos de registros surgiram neste perodo como adaptaes bsicas do mtodo j conhecido,
sem mudanas muito significativas.
possvel notar uma modificao visvel, se comparado s anteriores, na proposta de
notao coreogrfica que um bailarino russo publicou por volta de 1892, j que se tratava deuma notao de dana que se apresentava junto da partitura musical. Vladmir Ivanovich
Stepanov28 escreveu o LAlphabet des Mouvement du Corps Humain (O Alfabeto dos
Movimentos do Corpo Humano), que trazia movimentos do corpo traados como smbolos
musicais em uma partitura. Nesta proposta, figura fortemente a tradio de entrelaamento
entre msica e dana at hoje presente em muito do que se produz no campo da dana. O
famoso bailarino russo Nijinsky 29, por exemplo, desenvolveu suas adaptaes ao mtodo de
Stepanov criando verses para as notaes do seu famosoLAprs-midi dunFaune (Tarde de
um Fauno), de 1912.
Cada coregrafo, na sua poca de atuao, encontrava suas adaptaes para anotar e
memorizar suas criaes a partir dos diferentes sistemas a que ele tinha acesso. Cada um
visava propsitos individuais, para os quais anotava, escrevia e formulava sistemas de registro
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28Vladmir Ivanovich Stepanov foi bailarino do Bal Imperial de St Petesburg e viveu entre 1866 e 1896.
29Vaslav Fomitch Nijisky viveu entre 1888 e 1950 na Rssia e um dos mais famosos bailarinos do sculo XX.Ele um marco admirado at hoje por praticantes do bal como smbolo de um grande bailarino masculino.
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do movimento. Nos escritos apresentados at aqui, que datam at o comeo do sculo XX,
pode-se observar uma caracterstica comum a todos, apesar de suas especificidades: a de dar
importncia primordial notao da forma produzida pelo bailarino que dana. Dando
prioridade ao que se faz em detrimento do como se faz, a proposta esttica e poltica destes
dispositivos de registro aproxima-se da valorizao de uma uniformidade e homogeneizao
do que se dana.
No decorrer do sculo XX, surgiram alguns sistemas de notao que fizeram bastante
sentido para alm de seus prprios criadores e agregaram seguidores e pesquisadores em
diversas regies do globo. Dois dos que foram difundidos por todo o mundo so: o
Labanotation, de Rudolf Laban, e o Sutton Movement Shorthand, de Valerie Sutton.
Laban buscou criar um sistema de notao que conseguisse ser entendido por
indivduos de qualquer nacionalidade e idioma, independente de estarem afastados temporal e
espacialmente. Esse elaborado e complexo sistema que integra um arcabouo maior de anlise
do movimento, conhecido porLMA - Laban Movement Analysis, testa desenhos sinais
que propem registrar todos os movimentos de um corpo humano, numa tentativa de criar
uma linguagem de registro de dana que rompa as fronteiras culturais e de idioma. RudofLaban foi o responsvel por publicar em 1928 o que chamou de KinetographyLaban, que foi
um sistema que permitia a notao de trs dimenses do movimento no espao, e ainda a
dimenso temporal. Isto tornava possvel o registro da progresso do movimento no decorrer
de sua durao. Diferente das propostas de notao anteriores a ele, Laban testou formas de
registrar a expressividade do movimento, o como se realiza um movimento no corpo alm de
sua forma final. de interesse deste sistema o carter motivador do movimento, o seu
impulso, e o que isso gera no encontro com o espao e com o tempo. As linhas de ritmo,
criadas por ele, aparecem como possibilidade de ver o movimento em durao.
Laban, alm de ser um praticante de dana, foi tambm um importante pensador e
pedagogo, cujas incurses na escrita trouxeram novos horizontes para o conceito de
coreografia. O prprio afirmava que o intuito de sua escrita do movimento ia alm do ato de
anotar danas, mas indicava que uma nova dana poderia surgir de seu sistema de notao
(McCAW, 2011). Ele demostra, assim, que o sistema de notao e registro no so apenas
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retroativos, mas propositivos. O modo como se anota pode dar espao a novos modos de
pensar movimento e gera a criao de novas configuraes coreogrficas.
No s o sistema de notao de Laban, como tambm seu trabalho com educao ecom tecnologias do movimento ele preferiu usar a palavra tecnologia em vez de tcnica
foi muito difundido no mundo a partir de seus colaboradores e alunos, chamados, em algumas
publicaes sobre o assunto, de seus pupilos30. O conhecimento desenvolvido por Laban foi
importantssimo para o campo da dana, e tambm alcanou reconhecimento em
diversificadas reas do saber.
O modelo de notao criado por Valerie Sutton (1973) tambm encontrou usos emoutras reas alm da dana. O sistema desenvolvido pela bailarina americana inclusive
dividido em categorias criadas para se relacionar com diferentes vertentes do movimento. O
Dance Writingse dedica escrita da dana intuito inicial deste sistema desenvolvido por ela
a partir de estudos com o coregrafo dinamarqus Auguste Bournonville em 1974; o Sing
Writingse dedica escrita dos gestos da lngua dos sinais; o Mime Writing registra mmica e
pantomima clssica; o Sports Writingdocumenta movimentos ligados a atividades esportivas
e o Science Writingse interessa por movimentos de animais, movimentos fisioterpicos, entreoutros.
A base da notao doDance Writingconta com uma diviso muito prxima da de uma
partitura de msica, sendo que cada linha se dedica notao de uma parte do corpo do
bailarino. Alguns movimentos podem ser adicionados a esta partitura bsica fora das cinco
linhas, dando maiores informaes sobre como o movimento deve ser realizado. Deve-se
ressaltar aqui a forte imbricao deste tipo de escrita do movimento, iniciado na dana, aoutras reas do conhecimento. A notao criadapor Sutton foi firmemente abarcada nas suas
diversas utilizaes, a exemplo de pesquisas que se desenvolveram a partir de sua notao da
linguagem dos sinais que geraram programas de computador para surdos31.
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30Alguns exemplos de importantes pupilos de Rudolf Laban seriam: Dussia Bereska, Albrecht Knust e AnnHutchinson responsveis por publicaes que aprofundavam metodologias de Laban e por divulgar seus escritosem diversas partes do mundo.
31Endereo eletrnico para baixar software gratuito de edio do Sing Writing: http://www.signwriting.org/forums/software/archive/softarc11.html
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Os exemplos de notaes citados anteriormente fazem parte de uma histria que tentou
registrar dana pelo ato de escrever no papel. Hoje ainda so usados mtodos que testam essa
plataforma de documentao como escolha de registro. Mesmo com toda importncia desse
tipo de registro, uma ressalva feita no texto Planos de Composio (2011), do terico Andr
Lepecki, importante de ser sublinhada. O que ele aponta nesse artigo que o cho, no
entanto, no igual a uma folha branca. Ao escrevermos a coreografia numa folha, estamos
no s equiparando o bailarino a um boneco, mas tambm o cho a uma superfcie branca e
lisa. De modo similar, o uso do linleo no palco busca uma ao de terraplanagem histrica,
numa tentativa de aproximar o solo da folha e de permitir que o bailarino-boneco possa
mover-se sem ser perturbado pelas possveis rasuras de um cho machucado pela histria.
Em se tratando de registro, a escolha da folha branca como suporte-cho, cujos
movimentos possveis so aqueles que podem ser desenhados nela, demarca uma percepo
de arte e de mundo e, por isso mesmo, um domnio esttico e poltico do que se produz. O
linleo , ao mesmo tempo, representao e plataforma concreta de uma tentativa de
neutralizar o cho e as marcas da histria, numa poltica da folha branca em trs dimenses.
Os exemplos de Feuillet e de vrios outros citados anteriormente falam de um registro na
dana que, historicamente, d voz a um olho de fora com ares de objetividade, fidelidade e
neutralidade. Sendo assim, o ponto de vista impresso nesses registros o de quem assiste e
no o de quem realiza ou cria o que danado. Cada um dos exemplos citados aqui tem suas
especificidades dentro dessa premissa, como foi apontado brevemente em cada um deles.
Dentre eles, Laban o que apresenta na sua anlise do movimento uma tentativa de
entender de onde o movimento parte, o modo como ele feito e sua qualidade de execuo,
de uma perspectiva calcada em quem o realiza. Portanto, mesmo que sua notao seja usada
para registrar danas por algum que ocupa a perspectiva de quem v um bailarino mover, a
escrita implicar na experincia do entendimento fsico de quem realiza o movimento, de
quem o aciona.
Se continuarmos pensando nos tipos de registro que tem a folha de papel como
suporte, talvez, um registro que se localize fora do conjunto que escolhe unicamente o filtro
do olhar de quem v poderia ser oscore. Oscore seria a tentativa de anotar o que acontece em
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cena, como a coreografia acontece 32. Ele pode ser escrito a partir da viso de quem v a cena
de fora, mas tambm da viso de quem a faz acontecer, de quem est performando. Podemos
entender o score como uma possibilidade de fuga do olhar de fora como ponto de vista
demarcador de registros em dana. Nosscores, podemos explicitar um registro de quem faz,
de quem est dentro, acionando a coreografia, desviando-se do olhar de quem v sempre
como o objetivo final do que se produz em notaes e registros.
O score no apenas retroativo, no apenas registra eventos que j aconteceram;
antes, constitui ferramenta de criao, projeo e interveno num dado contexto artstico,
carregado sempre de ideologias, pedagogias, desejos, estticas e ticas e, por consequncia,
polticas. Ao registrar a coreografia no score, o autor escolhe e ativa diferentes pontos de
vista, focos, visibilidades, formas, contedos e historicidades. Dar voz viso e atividade de
quem performa um ato poltico, j que cria novas significaes e reverberaes das aes
desencadeadas na dana. O que se faz nem sempre coincide com o que se concebe e nem com
o que se enxerga do que feito.
possvel dizer, no mbito da dana contempornea, que um dos tipos de registro
mais utilizado hoje a gravao em vdeo. Nos trabalhos de dana apresentados em teatros derelao frontal com a plateia grande parte dos casos na histria da dana cnica ocidental
os vdeos de registro so geralmente filmados de maneira a que se possa ver o palco todo,
num mesmo plano contnuo, por toda a durao da obra. Para tal, mantm-se uma cmera fixa
sem que suas diversas ferramentas como o zoom para aproximao de detalhes sejam
usadas. Esse foi o tipo de registro por muito tempo solicitado para inscrio de peas em
festivais e editais, por exemplo, numa expressa tentativa de fidelidade obra apresentada
por supostamente ser esse o tipo de registro que mais se aproxima da experincia de ver a
obra ao vivo. Novamente aqui, valoriza-se o olhar de quem v a obra como ponto de partida
para o registro, como j apontado nos sistemas de notao citados anteriormente.
Entretanto, quando o registro de uma coreografia tambm percebido como um
dispositivo, vemos que cada tipo de registro organiza a obra de maneira diferente, dando
40
32Utilizo o termo inglsscorepela falta deum equivalente mais preciso em portugus. A traduo mais prximaseria roteiro, mas um termo genrico demai