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A QUESTÃO DA TÉCNICA
UM CONTRIBUTO EM TORNO DA SUA CRÍTICA
SOCIAL E DA CLARIFICAÇÃO DA SUA NATUREZA
Autor: Licenciado Carlos João da Cunha Silva
Orientador: Professor Doutor Paulo Jorge Delgado Pereira Tunhas
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AGRADECIMENTO
Gostaria de agradecer a todos os que me apoiaram, em especial ao meu
orientador de Curso de Mestrado em Filosofia – ramo de Ética e Filosofia Política, o
Professor Paulo Tunhas, que me ajudou com os seus conselhos, fornecendo-me
indicações bibliográficas preciosas para a redação do presente trabalho no âmbito do
referido Curso.
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INTRODUÇÃO
Aristóteles dividia todo o campo da atividade em três sectores: a atividade
teórica, que conduz à contemplação perfeita da verdade; a atividade prática (práxis,
ação - agir) que, em sentido restrito, indica a atividade que tem valor em si mesmo e,
por fim, a atividade poiética (poiesis, produção - fazer), a qual não tem valor em si
mesma, estando subordinada ao que se produz, isto é, à obra. A este último tipo de
atividade pertencem, por um lado, o trabalho técnico-produtivo e, por outro, a criação
artística. Parece claro que o fazer ou produzir e o agir não se excluem. Com efeito,
parece claro que não se pode fazer tudo mas apenas o que comporta uma atividade
responsável. A técnica e a produção, por conseguinte, devem estar subordinadas à
reflexão ética.
O presente trabalho pretende explorar o tema da técnica, justamente pelo facto
de o Homem realizar o seu “estar no mundo” como um ser operante.
Como muitos outros domínios da filosofia, a filosofia da técnica é um campo
recente de investigação. Com efeito, a primeira monografia no âmbito da Filosofia da
Técnica / Tecnologia surge na Alemanha (neste país emprega-se, preferencialmente, o
termo técnica em vez de tecnologia), na segunda metade do século XIX, pelas mãos de
Ernst Kapp com o título Fundações de uma Filosofia da Técnica. Na obra, o autor
questiona-se sobre os efeitos do uso da tecnologia na sociedade humana. Kapp
desenvolve a tese segundo a qual os artefactos tecnológicos devem ser pensados como
imitações e extensões ou complementos dos órgãos humanos. É curioso notar que, mais
recentemente (2001), o filósofo e psicanalista George Frankl desenvolve, em Os
Fundamentos da Moralidade (pp. 137-138), uma tese análoga à de E. Kapp. Segundo
G. Frankl, “Se tentarmos formular um princípio básico sobre o qual pode basear-se a
fabricação de utensílios, esse princípio é o da exteriorização. (…) Como deseja que os
seus dentes e unhas, por exemplo, que são tão importantes para atacar, morder, bem
como cortar, perfurar e arranhar, sejam firmes e poderosos, (o homem) pode identificar
certas pedras como potenciais dentes e unhas, visualizá-las como dentes e garras e vê-
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las a executar o seu trabalho de um modo ainda mais poderoso e eficiente do que o seu”.
O modo como o pioneiro da Filosofia da Tecnologia capta a natureza da tecnologia
pode ser sintetizado nos seguintes termos: os seres humanos têm capacidades limitadas,
sejam capacidades visuais, musculares, de memória ou outras. Estas limitações
conduzem os seres humanos à tentativa de aumentar as suas limitadas capacidades
naturais, por intermédio da produção de artefactos (gruas, lentes, etc.). Ainda de acordo
com Ernst Kapp, esses aumentos devem ser pensados como substituições dos órgãos
humanos naturais e, dado funcionarem como seus substitutos, devem ser imaginados
como imitações desses órgãos.
Neste ponto, a posição de Kapp é similar à de Platão, para quem a “tecnologia”
constitui “imitação da natureza”.
Apesar de constituir um campo relativamente recente de investigação filosófica,
a questão da “tecnologia”/ “técnica” não foi esquecida pelo pensamento clássico.
Apesar de se situar na segunda metade do século XIX a origem da Filosofia da
Tecnologia, tal não significa que filósofos como Platão, Aristóteles ou, ainda, Francis
Bacon, não tenham formulado questões que, hoje, podem facilmente ser integradas
nesse domínio.
Situam-se, nesse âmbito, as questões relacionadas com a “produção de coisas”.
Os termos “técnica” e “tecnologia” têm a sua raiz na noção grega “techne” (arte, ofício).
A techne constitui o corpo de conhecimento associado a um “saber fazer” particular,
como, por exemplo, a arte ou o ofício da carpintaria, a arte de pilotar um navio, de tocar
um instrumento ou, ainda, de trabalhar a terra.
No Timeu, Platão define uma analogia entre os “objetos naturais” e os “objetos
feitos pelo homem”, segundo a qual qualquer um deles “vem ao ser” de um modo
similar, de acordo com um plano pré-determinado, uma Ideia. O Demiurgo
(literalmente, trabalhador público) fez o mundo natural. Ora, quando o artista faz ou
produz algo, imita a natureza de um modo análogo ao demiurgo que dá forma a uma
matéria de acordo com as Ideias Eternas.
Também em Aristóteles, conhecido na Idade Média simplesmente como o
filósofo, se tecem considerações no âmbito da techne. Na Física, estabelece uma
distinção entre os domínios da physus, isto é, o domínio das coisas naturais e da poiesis,
o domínio das coisas não naturais. A planta (domínio do natural), a título de exemplo,
“vem ao ser” ou chega a ser e a permanecer na existência de um modo diferente dos
artefactos. A planta existe e permanece na existência graças a processos que operam por
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si próprios, sem a interferência de um agente externo. Contrariamente, no reino da
poiesis, do artificial, as coisas vêm ao ser em virtude de fatores externos a si. Uma cama
de madeira, por exemplo, existe como consequência da ação do carpinteiro. Segundo
Heidegger, esta divisão clara entre physus e poiesis, entre coisas naturais e não
naturais, constitui uma das etapas na história do “esquecimento do ser”, que se
consuma, por fim, nos nossos dias com a técnica.
Francis Bacon, filósofo e político dos séculos XVI e XVII, também teceu
considerações que poderiam ser inseridas, atualmente, no âmbito da Filosofia da
Tecnologia. Em A Nova Atlântida, F. Bacon apresenta uma visão da sociedade em que a
filosofia natural e a tecnologia ocupam uma posição central. Este autor não distingue
ciência e tecnologia, como é corrente na atualidade. F. Bacon vê a tecnologia como uma
parte da filosofia natural. Desenvolve uma visão pragmática da tecnologia, na medida
em que considera que os trabalhos técnicos são de extrema importância prática para a
melhoria das condições de vida das pessoas. Para Francis Bacon, a filosofia teórica só
tem interesse se for acompanhada por uma filosofia prática. É conhecido o seu lema
identificando saber com poder. A interpretação adequada do referido lema remete para
a ideia segundo a qual o conhecimento das causas naturais proporciona-nos poder sobre
a natureza, poder esse que pode ser utilizado em proveito da humanidade.
No artigo Philosophy of Technology (The Internet Encyclopedia of Philosophy),
Thomas A. C. Reydon considera que a história da Filosofia da Tecnologia – enquanto
história do pensamento filosófico sobre questões relacionadas com a produção de
objetos, com o uso da técnica e a mudança da natureza – pode ser dividida, de um modo
genérico, em três grandes períodos:
I. Da Antiguidade à Idade Média.
Durante este período, a técnica foi concebida como um entre muitos tipos de
conhecimento humano, nomeadamente o conhecimento artístico relacionado com o
domínio da produção de objetos. A atenção filosófica dada à tecnologia era parte do
exame filosófico do conhecimento humano em termos gerais.
II. Do Renascimento à Revolução Industrial.
Este período carateriza-se por uma elevada apreciação pela tecnologia que não é,
ainda, omnipresente. O interesse pela tecnologia não se restringe à sua componente
teórica mas também à sua vertente prática com vista à melhoria da vida humana
(Francis Bacon).
III. Da segunda metade do século XIX aos nossos dias.
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Nesta fase, a técnica tornou-se um fator tão omnipresente e importante na
sociedade e nas nossas vidas que se tornou objeto de reflexão filosófica.
Como já foi mencionado, Ernst Kapp é considerado o autor da primeira
monografia no âmbito da filosofia da tecnologia. Após o trabalho de Kapp, as principais
publicações neste domínio surgiram, também, na Alemanha (Dessauer, Jaspers, Diesel).
Desta terceira fase da história da filosofia da tecnologia destaca-se o período
após a segunda Grande Guerra pelo grande número de reflexões sobre tecnologia. Essas
reflexões traduzem, muitas vezes, um ponto de vista crítico e pessimista sobre a
influência da tecnologia nas sociedades, nos valores e na vida humana.
Um outro tópico importante consiste em identificar as principais questões da
Filosofia da Tecnologia. As referidas questões dependem da aproximação que se faz à
Filosofia da Tecnologia. Marx W. Wartofsky (Philosophy of Technology, pp. 177-178),
distingue quatro principais aproximações à Filosofia da Tecnologia:
I. A abordagem holística;
II. A abordagem particularista;
III. A aproximação desenvolvimental;
IV. A aproximação crítica e social.
Na primeira abordagem, a holística, a tecnologia é vista como um dos
fenómenos geralmente encontrados nas sociedades humanas, a par de outros fenómenos.
O objetivo consiste em caracterizar esse fenómeno e a principal questão consiste em
definir a tecnologia.
As questões específicas da abordagem particularista são:
- Por que razão determinada tecnologia ganhou (ou perdeu) proeminência num período
específico?
- Por que razão a atitude geral em relação à tecnologia muda em períodos específicos?
A terceira abordagem tem por objetivo explicar o processo geral da mudança
tecnológica numa perspetiva histórica.
A aproximação crítica e social concebe a tecnologia como um fenómeno social e
cultural, produto das convenções sociais, ideológicas, entre outras. Nesta perspetiva, a
tecnologia é vista como um produto de ações humanas que devem ser criticamente
avaliadas. Tenta responder à seguinte questão:
- Como é que a tecnologia se tornou no que é hoje e quais os fatores sociais que a
determinaram?
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Com base nas diversas aproximações à Filosofia da Tecnologia, pode ser
constituída uma taxonomia de três modos de conceber a Filosofia da Tecnologia:
I. Como clarificação sistemática da natureza da tecnologia enquanto
elemento e produto da cultura humana.
Constituem autores que concebem a Filosofia da Tecnologia deste
modo: Karl Jaspers, Osvaldo Spengler, Ernest Cassirer, Martin
Heidegger, Jurgen Habermas e ainda Ortega Y Gasset.
II. Filosofia da Tecnologia como uma reflexão sistemática das
consequências da tecnologia para a vida humana.
Os filósofos e sociólogos alemães da Escola de Frankfurt: Herbert
Marcuse, T. Adorno, M. Horkheimer, J. Habermas, e, ainda, Langdon
Winner e o sociólogo francês Jacques Ellul – que será abordado
posteriormente – exploram esta linha de pensamento.
A questão central desta abordagem da tecnologia consiste em
saber se é a tecnologia que nos “controla” ou se, pelo contrário, somos
capazes de controlar a tecnologia. Langdon Winner – assim como J. Ellul
– desenvolve a ideia do desenvolvimento autónomo da tecnologia como
um fenómeno fundamentalmente fora do controlo humano.
Nesta perspetiva, o objetivo da Filosofia da Tecnologia consiste em
avaliar os efeitos da tecnologia na sociedade e nas nossas vidas, tentando
responder a questões como:
- As sociedades em que vivemos são determinadas pela tecnologia?
- Seremos capazes de orientar o desenvolvimento tecnológico e a
aplicação das invenções tecnológicas?
III. Filosofia da Tecnologia como investigação sistemática das práticas de
engenharia, invenção, design e produção de coisas.
São representantes desta conceção: Ernst Kapp, Friedrich
Dessauer e Eugen Diesel.
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Na atualidade, as questões relacionadas com a “biotecnologia” integram o
domínio da Filosofia da Tecnologia. Debate-se, nomeadamente, sobre as suas
consequências na vida humana.
A biotecnologia é definida pelo U.S.A. Office of Technology Assessment como
“qualquer técnica que usa organismos e os seus componentes para fazer produtos,
modificar plantas e animais ou desenvolver micro-organismos para usos específicos”.
Normalmente distinguem-se três tipos de biotecnologia: a biotecnologia branca
(empregue no contexto industrial); a biotecnologia verde (a que envolve plantas) e, por
último, a biotecnologia vermelha (o tipo de biotecnologia que envolve humanos e
animais não humanos, sobretudo em contexto médico).
É, sobretudo, a biotecnologia vermelha a que mais questões de natureza
filosófica suscita, especialmente questões de natureza ética.
Um último tópico, mas não menos relevante, reporta-se à definição dos termos
técnica / tecnologia. Dado que a natureza da tecnologia é ainda menos clara do que a
natureza da ciência, a definição de técnica e / ou tecnologia torna-se complexa. O
“território” abrangido por esses conceitos são, normalmente, extensos.
M. A. Quintanilla, em Tecnologia, Um Enfoque Filosófico (p. 33), estabelece
uma distinção entre os conceitos “técnica” e “tecnologia” nos seguintes termos: “Na
literatura especializada, tende-se a reservar o termo técnica para as técnicas artesanais
pré-científicas e o termo tecnologia para as técnicas industriais vinculadas ao
conhecimento científico”. Javier Echeverría, em La Revolución Tecnocientífica (p.50)
aceita esta definição de Quintanilla. No entanto, faz a seguinte ressalva: “muitos
avanços tecnológicos da época industrial (…) surgiram de modo independente em
relação à ciência, interrelacionando-se com a ciência ulteriormente”. Ainda na obra
citada (p. 50), Echeverría estabelece a distinção entre “tecnologia” e “ciências
aplicadas”: “A título de exemplo, diremos que a escrita e a impressão são técnicas; a
imprensa, o telégrafo e as fotocopiadoras são tecnologias e os ordenadores, a escrita
eletrónica e o hipertexto são tecnociências”.
Marx Wartofsky menciona que “podemos falar de tecnologia incluindo
artefactos, isto é, todas as coisas feitas pelos seres humanos – linguagem, literatura, arte,
organizações sociais, crenças, leis e teorias, assim como ferramentas e máquinas”. Jacob
Bigelow concebe a tecnologia como um “domínio específico do conhecimento”. Gunter
Rophol define tecnologia como a “ciência da técnica”, isto é, do domínio das artes e
manufaturas. Thomas A. C. Reydon em The Internet Encyclopedia of Philosophy,
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considera que muitas definições de “tecnologia” remetem para um “corpo particular de
conhecimento, nomeadamente um conhecimento sobre os fenómenos e as leis naturais
que podem ser usados para satisfazer as necessidades humanas e resolver os seus
problemas”. Esta definição aproxima-se do ponto de vista de Francis Bacon. Por último,
Mário Bunge considera que “A tecnologia deve ser entendida como constituindo um
domínio particular das ciências, nomeadamente uma “ciência aplicada”. Quer isto dizer
que a tecnologia é um domínio da ciência caracterizado por um particular objetivo, a
aplicação. Segundo Bunge, a ciência natural e a ciência aplicada, a tecnologia,
caminham lado a lado, como dois modos distintos de fazer ciência. Enquanto a ciência
natural é a investigação científica com o objetivo de produzir conhecimentos sobre o
mundo, a tecnologia é a investigação científica com o objetivo da aplicação. Assim,
dizer que a tecnologia é “ciência aplicada” deverá ser interpretado como “a tecnologia é
ciência com o propósito da aplicação” e não como “a tecnologia é a aplicação da
ciência”.
O presente trabalho explora, em particular, as posições de três autores sobre a
técnica e a tecnologia, a sua importância e papel para o homem e para as sociedades. O
primeiro autor abordado é Gilbert Simondon, o segundo, Jacques Ellul e, por último,
Martin Heidegger.
Simondon e Heidegger podem integrar-se na linha da Filosofia da Tecnologia
que tem por objetivo a clarificação sistemática da natureza da tecnologia. Com efeito,
poder-se-ia dizer que o ponto de partida de Simondon e de Heidegger é o mesmo, dado
que procuram clarificar a natureza ou essência da técnica. No entanto, chegam a
conclusões diametralmente opostas.
A reflexão sobre a técnica elaborada pelo sociólogo francês, Jacques Ellul, situa-
se numa orientação que concebe a Filosofia da Tecnologia como uma reflexão
sistemática das consequências da tecnologia para a vida humana.
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CAPÍTULO 1
GILBERT SIMONDON OU A HUMANIDADE DA TÉCNICA
Como refere Kurt Hubner em Crítica da Razão Científica (p. 239), “parte dos
filósofos saúda a técnica” e o “mundo da técnica” enquanto “outra parte recusa”.
Na fileira dos que se colocam do lado da técnica e lhes dão as boas vindas,
aduzem-se diversos argumentos, fundamentados em valores como a liberdade, o
progresso técnico e a destruição de crenças irracionais, a erradicação da pobreza, a
igualdade social e até a própria democracia moderna, que se põem em relação com a
técnica. A realização de valores superiores e o reino do homem autónomo encontraria,
no “mundo tecnicizado”, terreno fértil para a sua concretização, “num grau jamais
conhecido”.
Na perspetiva desses filósofos, “a tecnicização é, sobretudo, a base de uma
liberdade que cada vez mais se difunde; o progresso técnico liberta das constrições da
tradição; o consumo e a produção de massa redimem da necessidade material; a
intersubjetividade do trabalho bem como a estandardização dos seus produtos
contribuem para a superação das diferenças sociais; a racionalidade exclui o
ininteligível”. O progresso proporcionado pela técnica constitui o instrumento para uma
“espiritualidade total”, libertando o homem da condição de planta e de animal. Além
disso, o ócio, outrora tornado possível pela mão-de-obra escrava, torna-se uma realidade
com a técnica. Com o ócio, “tarefas mais elevadas poderão ser levadas a cabo”. A
escola para todos e a instrução torna-se, assim, uma possibilidade, graças ao ócio. Ainda
relacionado com a instrução e a escola, a técnica “proporciona um fluxo de informações
sempre mais rápido, pelo qual é difundida a cultura”. Este fluxo de informações
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possibilita, por sua vez, um “melhor conhecimento e compreensão dos homens”.
Permite uma “humanização universal”, fruto, mais do que da “Tecnopolis”, da
“Telepolis” que constitui, hoje, a cidade “que se presentifica aos nossos olhos e que se
começou a desenhar com o telégrafo e o telefone, se acentuou com a rádio e a televisão,
se ampliou com os faxes e os telemóveis e agora configura as relações de comunicação
do homem com os outros e com o mundo através da internet”, como refere em
Pensamento e Afetividade (p. 147), João Maria André. O que se ganha com a telepolis é
velocidade de comunicação e universalismo nessa mesma comunicação. Essa
velocidade e esse universalismo constituem a base da transformação do mundo naquilo
que hoje se chama uma “aldeia global”.
Assim, a sociedade humana contemporânea, enquanto sociedade industrializada,
deriva a sua auto compreensão de formas e ideias genuinamente técnicas e científicas.
Nesta linha de pensamento insere-se o pensamento de Gilbert Simondon sobre a
técnica e os “objetos técnicos”. Com efeito, em Du Mode d`Existence des Objets
Techniques (p. 9), Simondon pretende demonstrar que tendo-se “constituído em sistema
de defesa contra as técnicas”, a cultura ignora na realidade técnica uma “realidade
humana”. Prossegue, afirmando que “a oposição entre a cultura e a técnica, entre o
Homem e a Máquina é falsa e sem fundamento”. Tal como o desconhecimento do
“estranho” é gerador de xenofobia, o desconhecimento do objeto técnico faz
desenvolver uma atitude tecnofoba. Desta forma, o misoneísmo orientado contra as
máquinas não é raiva do novo mas recusa do estranho. Porém, segundo Simondon (op.
cit., p. 9), “este estranho é ainda humano, e a cultura completa é a que permite descobrir
o estranho como humano”. É crucial conhecer a natureza e a essência da máquina, pois
o seu desconhecimento é, segundo Simondon (op. cit., p. 9), a causa principal de
“alienação no mundo contemporâneo”.
Sendo o Homem um animal bio cultural, a técnica, enquanto manifestação
cultural, proporciona a sua adaptação e sobrevivência e é tão antiga quanto o é a história
da humanidade, sendo mesmo “essencial à aventura do homem e, de algum modo, é-lhe
mesmo anterior” (Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, volume 5, artigo:
técnica). Ora, na perspetiva de Simondon, o desequilíbrio da cultura resulta da recusa,
por parte desta, de certos objetos, em particular os objetos técnicos, enquanto reconhece
outros objetos, como os estéticos.
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Parte do medo que existe na cultura atual em relação ao objeto técnico
incorpora a representação mítica do “robot”, uma espécie de duplo do homem, dotado
de uma alma e de uma existência separada, autónoma, que o ameaça.
Segundo Simondon (op. cit., p. 10), “a cultura comporta duas atitudes
contraditórias em relação aos objetos técnicos”: numa primeira atitude, “trata-os como
puros conjuntos de matéria, desprovidos de significado, apresentando somente uma
utilidade”. Esta primeira atitude coloca as máquinas ao serviço do Homem, como
escravas; numa segunda atitude, “supõe que esses objetos são robots e que estão
animados de intenções hostis em relação ao Homem, representando um permanente
perigo de agressão e insurreição”.
Para Simondon, esta contradição da cultura provém da ambiguidade das ideias
relativas ao automatismo. Os tecnófilos idolatras da máquina, “apresentam o grau de
perfeição de uma máquina proporcional ao grau de automatismo” (SIMONDON, op.
cit., p. 11). No entanto, segundo Simondon “o automatismo representa um baixo grau de
perfeição técnica”, dado que “para tornar uma máquina automática, é necessário
sacrificar possibilidades de funcionamento e de usos possíveis” (SIMONDON, op. cit.,
p. 11). Ora, “a perfeição da máquina, aquela que aumenta o grau de tecnicidade,
corresponde, não a um aumento de automatismo, mas ao funcionamento de uma
máquina que contém uma certa margem de indeterminação” (SIMONDON, op. cit., p.
11). Será precisamente esta “margem de indeterminação” que permite à máquina ser
sensível à informação exterior. Na continuidade deste raciocínio, Simondon realça o
facto de que “a máquina dotada de uma alta tecnicidade é uma máquina aberta que
supõe o homem como organizador permanente, como interprete vivo das máquinas”
(SIMONDON, op. cit., p. 11), para concluir que “longe de ser o vigilante de uma tropa
de escravos, o homem é o organizador permanente de uma sociedade de objetos
técnicos que dele têm necessidade” (SIMONDON, op. cit., p. 11), regulando a margem
de indeterminação das máquinas, numa relação análoga à dos músicos para com o chefe
de orquestra.
Desta forma, pode falar-se de uma “autonomia relativa da evolução dos objetos e
do mundo técnicos”, que não implica uma autonomia absoluta nem uma espécie de
hipóstase da técnica (como defende Jacques Ellul). Os objetos técnicos evoluem para
uma individuação crescente e são cada vez mais funcionais, mais unitariamente
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integráveis em conjuntos. Ora, como refere Gilbert Hottois em História da Filosofia (p.
486), “este aperfeiçoamento progressivo exige que seja respeitada a normatividade
própria da técnica”. No entanto, “o reconhecimento da especificidade do modo de ser e
de evoluir das entidades tecnocientíficas não impede indivíduos e coletividades de
orientar a pesquisa e o desenvolvimento tecnocientífico” (HOTTOIS, op. cit., p. 486).
Segundo Simondon, o problema fundamental da nossa civilização reside na
clivagem entre ciências-técnicas e culturas tradicionais, de natureza literária e filológica.
No entanto, a aparente oposição entre tecnociência e cultura resulta do facto de esta
última se ter tornado anacrónica, tendo deixado de ser adequada ao ambiente
tecnocientífico que carateriza a nossa época. Há, portanto, um desfasamento entre a
cultura dominante e o meio real e atual de que resulta o medo perante a técnica e a
ciência.
É um imperativo o conhecimento do objeto técnico, caso contrário torna-se
idolatrado ou maldito. Temos que situar a essência da técnica no interior das diversas
relações humanas no mundo: a partir da unidade mágica primitiva, a técnica fragmenta
o mundo em objetos, a religião, em sujeitos; o objeto estético visa manter a unidade
mágica, ao apresentar uma totalidade; assim, técnica e religião desdobram-se em
práticas e teorias, cujas distâncias são mediadas pela ética e as ciências.
Para tornar a dar à cultura o caráter verdadeiramente geral que perdeu, é preciso
reintroduzir nela a consciência da natureza das máquinas, das suas relações mútuas e
das suas relações com o homem bem como dos valores implicados nessas relações. Para
essa tomada de consciência, Simondon advoga a existência por um lado, do psicólogo e
do sociólogo e, por outro, do tecnólogo ou mecanólogo. Esta tomada de consciência
corresponde ao “estatuto de maioridade”, por oposição ao “estatuto de menoridade”
(SIMONDON, op. cit., p. 85), que carateriza o objeto técnico antes de mais como um
objeto de uso. Neste estatuto de menoridade, o saber técnico é implícito, não refletido.
Estes são os dois modos fundamentais da relação do Homem com o dado técnico.
Na antiguidade, a relação do Homem com o dado técnico caraterizava-se por um
“estatuto de menoridade”. Tal como o escravo se situava no exterior da cidade, também
as ocupações servis e os objetos técnicos eram banidos do universo do discurso e do
pensamento racional e da cultura. Assim, parte das operações técnicas eram excluídas
do domínio do pensamento, atitude que tem na filosofia platónica a sua génese.
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De acordo com essa filosofia platónica, que servirá de fundamentação racional à
teologia na Idade Média, distinguem-se, ontologicamente, duas ordens de realidade: a
das estruturas essenciais, necessárias, imutáveis e imateriais; por outro lado, a das coisas
e dos acontecimentos materiais, mutáveis e modificáveis, efémeras.
Epistemologicamente distinguem-se dois tipos de saber: de um lado, o saber
propriamente científico (epistèmè) universal e que tem por objeto a realidade essencial;
de outro lado, o saber prático e técnico que diz respeito à realidade sensível, à ação
(praxis) e à produção (poièsis) no mundo do devir. Este saber é imperfeito, incerto e
apenas provável. Por último, do ponto de vista ético, distinguem-se várias formas de
existência valorizadas de forma desigual: por um lado, a existência inferior do homem
que trabalha, produz e organiza as coisas materiais; esta existência é vil e grosseira,
pouco digna de um homem, mais apropriada à condição de escravo do que do homem
livre. O Homo Faber e a sua atividade técnica são desconsiderados; por outro lado, a
existência do homem de ação que interage com os seus concidadãos. Os problemas
encontrados são de natureza ética e política; por fim, a vida contemplativa, a do filósofo
que dispõe do saber e cuja atividade é a contemplação espiritual das verdades ou
essências eternas.
Somente os sofistas se esforçaram por reabilitar as operações técnicas no
domínio do pensamento nobre.
Ao invés, a “atitude de maioridade” é a que “corresponde a uma tomada de
consciência e a uma operação refletida do adulto livre que tem à sua disposição os
meios de conhecimento racional elaborado pelas ciências”, afirma Simondon (op. cit., p.
85). Será, precisamente, este estatuto de maioridade que reconcilia técnica e cultura, ao
qual não terá sido alheia a supressão da escravatura na Europa Ocidental, vindo a
permitir às antigas técnicas servis de se manifestarem no pensamento e no discurso
racional.
O papel da cultura é o de regular a relação do Homem com o mundo e consigo
mesmo. Ora, como afirma Simondon (op. cit., p. 227), “se a cultura não incorporasse a
tecnologia, comportaria uma zona obscura e não poderia desempenhar a sua função
reguladora”. Por isso, conclui, “a cultura deve ser contemporânea das técnicas. Se a
cultura é somente tradicional, ela é falsa, porque comporta implicitamente e
espontaneamente uma representação reguladora das técnicas de uma certa época”
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(SIMONDON, op. cit., p. 227). Esta perspetiva de Simondon assenta na inevitabilidade
da técnica e do seu progresso enquanto fenómeno humano e considera que as atitudes
tecnofoba e de desconfiança da cultura em relação à técnica resultam do seu
desenvolvimento sem regulação.
Deste modo, “a realidade técnica deve ser pensada e conhecida” (SIMONDON,
op. cit., p. 229).
Para Simondon, os objetos técnicos (no sentido primitivo ou enquanto fazendo
parte de conjuntos técnicos) não se podem considerar “como realidades absolutas e
existentes por eles mesmos” dado que “ a sua tecnicidade não se compreende senão pela
integração na atividade de um operador humano ou o funcionamento de um conjunto
técnico” (SIMONDON, op. cit., p. 239).
O papel da filosofia é o de conhecer o objeto técnico, através de um pensamento
que tem a intuição do devir, da mudança dos modos de relação entre o homem e o
mundo. A construção de uma nova cultura atribuída ao mundo tecnocientífico postula
uma nova filosofia ou visão do mundo. Essa cultura poderá desempenhar o papel de
interface entre o homem e o mundo tecnocientífico.
Gilbert Simondon ilustra e representa aquilo que Hottois denomina “Humanismo
Tecnófilo” (HOTTOIS, História da Filosofia, Da Renascença à Pós Modernidade, p.
473). O humanismo tecnófilo traduz uma apreciação positiva em relação à técnica e é
herdeiro do Espírito das Luzes.
Segundo esse humanismo, os problemas da humanidade são problemas técnicos.
O progresso da humanidade coincide com o progresso das ciências e das técnicas e com
o desenvolvimento de uma “cultura tecnocientífica” universal.
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CAPÍTULO 1
JACQUES ELLUL E O PERIGO DA AUTONOMIA DA TÉCNICA
Na fileira dos que se colocam contra esta valorização otimista da técnica, são
apresentados os seguintes argumentos gerais:
A técnica conduz a inovações que acarretam o abandono da tradição; o
progresso técnico traduz-se numa rápida e contínua mudança do ambiente material que
transplanta o homem para uma inquietude sem raízes em que perde a sua capacidade de
reflexão e de orientação. Por outras palavras: o progresso técnico transforma o meio
num mundo destituído de sentido; por outro lado, o progresso técnico consiste apenas
num máximo de ação com um mínimo de “porquê” e “para quê”, traduzindo-se numa
relação meramente instrumental do homem para com a natureza; o ideal da técnica é o
exato e o simplesmente formal e uma atitude espiritual empenhada na técnica não
admite uma ordem do mundo vinculatória, uma bússola, segundo a qual o homem se
possa orientar; a relação “Se … Então”, caraterística da racionalidade técnica, implica
que não seja possível fundamentar valores universais e moralmente vinculativos. A
técnica, enquanto tal, é isenta de valor e, por isso, é fácil fazer dela um mau uso; o cerne
da técnica é a racionalidade, sobretudo a racionalidade instrumental, traduzido no
espírito de tudo querer dominar, orientado para o que é manipulável, permanece
unilateral e, sobretudo, sem relação com a arte e com a religião; por outro lado, o bem-
estar proporcionado pela técnica nem sequer trouxe aos homens o ócio e a
independência; ao aumento de energia e de tempo, por um lado, contrapõe-se, por outro,
o imenso dispêndio de energia numa indústria gigantesca e a incessante falta de tempo
num mundo de trabalho pela pressa e pela rapidez; o mundo da técnica conduz a
coações de novas necessidades que não são sentidas como menos opressoras do que a
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indigência, desembocando no consumismo; acresce que, no mundo da técnica, o homem
se transforma num mero número, por trás do qual desaparece a sua individualidade e
sofrem erosão as suas forças anímicas, em virtude da igualdade modelada pela
intersubjetividade do trabalho técnico e pela estandardização das necessidades e dos
produtos. Se ganha liberdade, o preço a pagar é a despersonalização e o
desaparecimento no meio da massa; por sua vez, surgem a tirania das massas e dos
líderes demagógicos ou de tecnocratas e burocratas sem alma; do ponto de vista
político, a técnica possibilita um controlo total por parte do Estado e a ameaça da
humanidade por meio das armas; o maior fluxo das informações fomenta a cultura, mas
trata-se da cultura do nivelamento de um mundo que se torna uniforme e mesquinho;
por fim, no mundo da técnica opera-se a “desumanização da natureza” e a
“desnaturalização do homem”, consumando-se a rutura ontológica entre Homem e
Natureza. Será precisamente esta rutura que possibilita uma nova atitude do homem e da
técnica que passa a intervir profundamente na natureza, transformando-a em
instrumento completo, em mero objeto. Tal atitude conduz não só a uma destruição do
equilíbrio e do governo naturais mas priva também a natureza do seu poder simbólico.
Nesta linha de pensamento, adotando uma posição “tecnofoba”, situa-se Jacques
Ellul.
Uma das teses centrais de Ellul sobre a técnica, transversal a diversas obras suas
(The Technological Society; La Technique ou L`Enjeu du Siécle; Le Bluff
Technologique) é a tese segundo a qual a tecnologia se tornou autónoma,
nomeadamente de outras forças sociais e valores, considerando adicionalmente, que a
tecnologia se tornou na força determinante, no primeiro motor, da sociedade
contemporânea.
Ellul define técnica como “a totalidade dos métodos racionalmente conseguidos
e eficazes”. Assim, para Ellul, a tecnologia consiste não apenas em artefactos,
constituindo um sistema totalizante de métodos que envolve toda a existência humana.
Existem similaridades entre o ponto de vista de Ellul e Herbert Marcuse sobre a
técnica. Com efeito, para Marcuse a tecnologia absorve a religião, a política, a
economia e a cultura, considerando que a racionalidade tecnológica obedece à sua
própria lógica interna, assumindo novas formas de controlo (O Homem
Unidimensional).
19
No polo oposto de Ellul, situam-se as posições de Gilbert Simondon (Du Mode
d`Existence des Objects Techniques) e de Joseph Pitt (Thinking About Technology:
Foundations of Philosophy of Technology). Para o primeiro, a atitude tecnofoba resulta
do desconhecimento da natureza dos objetos técnicos como uma realidade humana e,
portanto, a ideia segundo a qual a máquina é alheia ao homem resulta de um
desconhecimento da máquina e das suas potencialidades; o segundo contraria a noção
de Ellul, segundo a qual a tecnologia se tornou autónoma.
Como alude Hottois (História da Filosofia, Da Renascença à Pós Modernidade,
p. 469), “a tecnofobia radica na mitologia: a Queda, a Torre de Babel, Ícaro, Prometeu,
e alimenta o imaginário artístico criando mitos modernos, como o mito de Fausto ou
Frankenstein”. O medo surge da assunção da finitude que carateriza a condição humana,
finitude que não pode ser superada, sob pena de punição. Como foi atrás referido, esta
atitude está associada à filosofia platónica.
É visível a perspetiva anti técnica e anti tecnocientífica de Jacques Ellul em Le
Bluff Technologique (p. 58), quando refere que “todo o progresso técnico se paga”, com
a saúde, em especial a saúde mental e a poluição.
Além do que, considera Ellul, “o progresso técnico não sabe aonde vai, é
imprevisível” (ELLUL, op. cit., p. 58). O discurso da cultura tecnicista destaca o caráter
de previsibilidade e de racionalidade como caraterísticas essenciais da tecnociência.
Ellul considera, no entanto, que “um exame aprofundado das técnicas modernas permite
pôr em relevo o caráter ilusório do discurso sobre a cultura tecnicista” (ELLUL, op. cit.,
p. 82), como fundamentam as ambivalências e as imprevisibilidades resultantes do
“progresso” técnico. São enunciadas diversas ambivalências:
I. Retira aos povos o seu sustento e aumenta-lhes os cuidados de saúde;
II. Economia de esforço muscular versus aumento do esforço psíquico;
III. A planificação exigida pelo progresso técnico aparentemente produz
sensação de liberdade e, simultaneamente, constitui uma restrição à
liberdade.
Nesse sentido, a própria noção de progresso é implicitamente questionada por
Ellul. A ideia de progresso traduz, segundo Hans Jonas (O Imperativo da
Responsabilidade), a visão quase utópica de uma vida sempre melhor. A alma de Fausto
20
é inata na cultura do Ocidente e essa alma conduz irracionalmente à infinita novidade e
manifesta-se no destino profundo da Vontade de Poder sobre o mundo das coisas.
Dadas as ambivalências do “progresso” técnico, Ellul questiona a visão de uma vida
sempre melhor e a ideia de progresso.
Ellul constata que a máquina suprime antigas atividades e modifica
comportamentos e hábitos, conduzindo a modificações no ser humano que vão desde a
perceção até ao sentido do tempo, o que suporta a tese segundo a qual a tecnologia se
tornou na força determinante da sociedade contemporânea.
Procurando desconstruir a ilusão do progresso criado pela cultura tecnicista,
Ellul mostra que, sendo verdade que as máquinas modernas economizam ao homem
esforço muscular considerável, essa economia tem um preço elevado ao nível de
inconvenientes fisiológicos, psicológicos e sociológicos. Com efeito, se as máquinas
diminuem o esforço muscular, aumentam o esforço psíquico. A consequência é o
surgimento de profissões de desgaste rápido, de insónias e depressões. Tudo somado,
surge o envelhecimento precoce.
Por outro lado, os ritmos vitais sazonais são profundamente alterados, quer com
o aparecimento da luz artificial quer com a organização do trabalho ditada pela técnica,
o que ilustra a desnaturalização do homem, a rutura ontológica entre o homem e a
natureza, outrora entendida como natureza-mãe.
A esperança média de vida aumenta numa razão proporcional aos problemas
associados ao envelhecimento. Em suma, pode dizer-se que, na perspetiva de Ellul, o
progresso técnico levanta problemas maiores do que os que resolve. São disso exemplo,
a proliferação do nuclear, com os perigos inerentes a essa energia, a restrição à
liberdade individual e à privacidade, a centralização e a emergência de perigos para a
natureza. Dito de outro modo: os problemas levantados pela técnica são mais vastos e
difíceis do que os problemas por ela resolvidos. Na intenção de demonstrar esta
conclusão pessimista sobre as “potencialidades” da técnica, Ellul enumera diversos
exemplos: com a revolução industrial do século XVIII, para fazer funcionar as fábricas
havia necessidade de mão-de-obra. Tal facto conduziu ao êxodo rural e ao surgimento
de uma nova classe de operários: os proletários. Consequentemente ocorrem, em
simultâneo, o sobrepovoamento, a poluição atmosférica, os divórcios, os infanticídios.
Uma outra ordem de problemas suscitados pela técnica diz respeito a questões de
21
natureza ambiental: os problemas ecológicos. Com efeito, a rutura dos ciclos naturais, a
produção de elementos químicos inexistentes na natureza, o esgotamento dos recursos
naturais, fruto da aplicação ilimitada das técnicas, afiguram-se insustentáveis a longo
prazo. Por seu turno, o crescimento demográfico gerado pela técnica, em particular a
técnica sanitária, levanta questões de sustentabilidade do próprio planeta, emergindo um
perigo global.
Acresce a tudo isto a imprevisibilidade do progresso técnico, contrariando a
ideia tradicional e dogmática de ciência como discurso racional e previsível. São disso
exemplo o recente acidente de Tchernobil, os resultados catastróficos da prescrição de
medicamentos em grávidas (Talidomida), etc…
Ellul constata ainda que a técnica estende os seus tentáculos à própria política,
abarcando todas as dimensões da vida humana. A técnica oferece aos políticos os meios
de realização dos seus projetos e constitui um meio de unificação da sociedade.
Consequentemente, os meios técnicos melhoram os meios de controlo. A
videovigilância constitui exemplo de um meio técnico que amplia o controlo da
sociedade. Com esse controlo, surge uma nova polarização de valores: segurança versus
liberdade individual. O que se ganha com a segurança perde-se em liberdade.
Após 1950, considera Ellul que a ciência depende da técnica, não podendo
progredir sem avanços técnicos. Além de proporcionar o desenvolvimento científico
(que retroage posteriormente sobre a técnica), a técnica permite o crescimento
económico. Mas, afirma Ellul, exige da Economia um esforço de financiamento tão
avultado que esta reage para travar a expansão técnica. Por outro lado, considerando que
a técnica conduz a uma diminuição do sector secundário e um aumento do terciário, este
sector não cria valor económico. Por isso, conclui Ellul, o crescimento técnico não é
gerador de riqueza.
Em suma: quanto mais as técnicas progridem, mais elas são geradoras de
inconvenientes globais (poluição, perigos potenciais, esgotamento de matérias não
renováveis). O sistema técnico e a sociedade tecnicista são portadores de contradições
internas que lançam incertezas em relação ao seu futuro.
Em La Technique ou L`Enjeu du Siécle (p. 2), Jacques Ellul enuncia a seguinte
afirmação: “a técnica assume, hoje, a totalidade das atividades do homem, não somente
22
a sua atividade produtiva”. Tal perspetiva significa que o homem está integrado numa
totalidade que é a sociedade dominada pela técnica. Como tal, o homem já não pode
pensar-se a si e aos outros e ao mundo fora dessa sociedade dominada pela técnica. O
resultado é, à maneira de Marcuse, um universo unidimensional, situado nos antípodas
de um humanismo tecnológico preconizado por Gilbert Simondon.
Trata-se de uma sociedade dominada pela máquina, a “técnica no estado puro”.
A máquina criou um meio desumano: concentração de grandes cidades, falta de espaço,
de tempo, fábricas desumanizadas, afastamento da natureza. “Proletários e alienados” é
a condição humana diante da máquina. Ellul iliba o capitalismo desta situação,
culpabilizando a máquina. A consciência do mundo mecanizado não é outra que a
técnica generalizada, sustenta Ellul. Longe de ser um sujeito diante da máquina, Ellul
mantém que o homem se transforma em seu objeto, dado que a técnica entra em todos
os domínios e como resultado de se ter tornado autónoma, uma das caraterísticas da
técnica moderna, segundo Ellul. Dado que a técnica se tornou autónoma, o mundo em
que vivemos obedece às suas próprias leis. Neste sentido, as únicas ações e decisões
permitidas são as que promovem o crescimento da própria técnica.
Na perspetiva deste autor, não é correto afirmar que a técnica é uma aplicação da
ciência. Historicamente, afirma Ellul, a técnica precedeu a ciência. O homo faber
antecede o homo sapiens. Portanto, a questão das relações entre técnica e ciência deve
ser colocada nos seguintes termos: a técnica tem colocado os problemas. Falta-lhes
esperar pelas soluções que vêm da ciência. Todavia, na atualidade existe uma interação
entre pesquisa científica e aparelhagem técnica sendo o desenvolvimento técnico
determinante do desenvolvimento científico. A ciência entendida como um saber puro
cede o seu lugar a uma ciência aplicada, a uma tecnociência. A ligação entre ciência e
técnica é hoje mais estreita do que nunca. A ciência tornou-se, hoje, um meio da
técnica. Nenhuma pesquisa desinteressada pode ter lugar.
Se é verdade que em todas as civilizações a técnica viveu com a tradição, na
atualidade a técnica não repousa mais sobre a tradição, dado a sua rápida evolução.
Consequentemente, emergem no plano axiológico a perda de sentido e de orientação. A
invenção permanente nos domínios técnicos perturba os hábitos.
23
Como já foi referido, uma das características da técnica moderna é, segundo
Ellul, a sua autonomia. Como refere o grande técnico da nossa era, Frederick Winslow
Taylor “a fábrica é um todo em si, um organismo fechado, um fim em si mesmo”.
Dizer que a técnica é autónoma equivale, segundo Ellul, a dizer que não depende
da economia nem da política. E acrescenta: “atualmente não é a evolução económica ou
politica que condiciona o progresso técnico. Pelo contrário: é a técnica que condiciona e
provoca as mudanças sociais, políticas e económicas, constituindo o motor de tudo o
resto” (ELLUL, La Technique ou L`Enjeu du Siécle, p. 121). Sendo assim, ela obedece
a leis próprias e a uma lógica interna. Não são mais as necessidades externas que
determinam a técnica, são as necessidades internas. Prossegue, afirmando: “a técnica
tornou-se numa realidade em si, que se basta a si própria e que tem as suas leis
particulares e as suas determinações próprias” (ELLUL, op. cit., p. 121). Estendendo os
seus tentáculos a todas as dimensões da vida humana e da sociedade, “a autonomia da
técnica manifesta-se, também, relativamente à moral e aos valores espirituais” (ELLUL,
La Technique ou L`Enjeu du Siécle, p. 121). Assim sendo, a técnica não suporta
nenhum julgamento, situando-se fora e além do bem e do mal, criando uma nova moral
e uma nova civilização. Uma moral interna à própria técnica. Descrever a técnica como
um sistema autónomo, não significa falar de uma autonomia capaz de se direcionar a si
própria sem a intervenção humana. Significa que o sistema determina quem deve tomar
as decisões e quem deve agir, sendo as ações que promovem o crescimento da técnica as
únicas permitidas.
Uma das consequências da autonomia da técnica prende-se com a ausência de
autocontrolo do sistema técnico, não existindo nenhum tipo de autorregulação do
sistema da técnica.
Outra consequência reporta-se à nossa incapacidade de compreender a técnica
em si mesma dado que ela existe em termos do todo. Fazendo parte de uma totalidade
que é um mundo dominado pela técnica, a auto compreensão do homem e da realidade
circundante não é independente dessa mesma totalidade.
Conclui-se, então, que “não há autonomia possível do homem em face da
autonomia da técnica” (ELLUL, La Technique ou L`Enjeu du Siécle, p. 126). É neste
contexto que surge a “biometria”, ciência que cria o homem novo, adaptado às funções
24
técnicas: por exemplo, para se ser piloto de avião, tem que se ter certas caraterísticas
físicas e psicológicas adequadas.
Tal facto repercute-se no sentido da existência humana, contrariando a tese
sartriana segundo a qual não há uma essência humana anterior à existência de cada
homem. Para Sartre, “o Homem existe primeiro, surge no mundo e define-se
posteriormente” (O Existencialismo é um Humanismo). Dado que o Homem surge no
mundo dominado pela técnica, está integrado numa totalidade, num sistema totalizante
de métodos que envolve toda a existência humana. Deste modo, não é totalmente
correto afirmar, como Sartre, que o Homem se faz a si mesmo, que se autodetermina,
uma vez que a autonomia da técnica interdita ao Homem de escolher o seu destino.
Outra consequência da autonomia da técnica é a dessacralização do mundo
habitado pelo Homem, dada a invasão da técnica. Com efeito, para a técnica não há
sagrado ou lugar para o mistério. Ela não respeita nada, não adora nada. A biogenética
aplicada, a manipulação genética, tornada hoje uma possibilidade, revela a
dessacralização do mundo e do próprio Homem. O único objetivo da técnica é tornar
claro, depois utilizar racionalizando, transformar toda a coisa em meio.
Todavia, o sentimento do Sagrado é um sentimento sem o qual o Homem não
pode viver. Por isso, na nossa sociedade dominada pela técnica, passa a ser a própria
técnica o mistério essencial, geradora de uma admiração misturada de terror pela
máquina. Na perspetiva marxista, a técnica é “o instrumento de libertação do
proletariado” (ELLUL, La Technique ou L`Enjeu du Siécle, p. 131), é o “messias”
salvador, o Deus que salva.
A autonomia da técnica articula-se com outras características da técnica
moderna, nomeadamente, a sua unicidade, o universalismo técnico, o automatismo das
escolhas técnicas e o seu auto crescimento. A técnica chegou a um tal ponto de evolução
que se transforma e persegue o seu curso cada vez mais independentemente da
intervenção humana. O Homem participa cada vez menos ativamente na criação técnica,
que se torna uma espécie de fatalidade, por combinação automática de elementos
anteriores. Perseguindo o seu curso totalizante, a máquina passa a substituir o homem.
A este cabe somente o papel de vigilante e de reparador da máquina, quando esta avaria.
A cibernética orienta-se neste sentido.
25
Como já foi aludido, Ellul considera que na atualidade “não é a evolução
económica ou política que condiciona o progresso técnico. Pelo contrário: é a técnica
que condiciona e provoca as mudanças sociais, políticas e económicas, constituindo o
motor de tudo o resto” (ELLUL, La Technique ou L`Enjeu du Siécle, p. 121). Neste
sentido, a técnica aparece como o motor e o fundamento da Economia. É visível, por
exemplo, uma relação entre desigualdades no plano do desenvolvimento técnico e as
crises económicas.
Segundo Ellul, dado que o progresso técnico deriva de uma concentração de
capitais, esta concentração conduz as sociedades a economias anónimas ou de estado. À
concentração de capitais, corresponde a concentração de empresas e a monopólios, com
consequências negativas para o homem e para a sociedade em geral.
Por outro lado, as técnicas conduzem a uma economia centralizada. A técnica
exige a centralização económica e a centralização política. Além do que a economia
fundada inteiramente na técnica não pode ser uma economia liberal.
Além de constituir o motor da economia e da política, a técnica modifica o
espaço humano e o seu tempo. Em relação a este último, o tempo nas sociedades
dominadas pela técnica “escapa-se por entre os dedos” e “corre mais veloz que um
cavalo” (O Papalagui). Com a técnica, o tempo torna-se abstrato e progressivamente
mecânico, preciso, penetrando na vida com as máquinas. O relógio é o símbolo, por
excelência, da nossa sociedade tecnológica. O tempo do homem deixa de ser regulado
pelo tempo natural e concreto e “passa a ser uma medida abstrata, separada dos ritmos
da vida e da natureza”. Eis, mais uma vez, a técnica ao serviço da “desnaturalização do
Homem” e da “desumanização da Natureza” e da rutura ontológica entre o Homem e a
Natureza. A própria vida será medida pela máquina e as funções orgânicas obedecem-
lhe: “comemos, trabalhamos, dormimos à ordem da máquina”.
26
CAPÍTULO 2
MARTIN HEIDEGGER – TÉCNICA E OCULTAÇÃO DO SER
Ainda na fileira dos que se colocam contra a valorização otimista da técnica,
tecendo considerações acerca da técnica e do mundo técnico que são notoriamente
hostis a ambos, situa-se o pensamento de um dos mais controversos pensadores do
século XX: Martin Heidegger.
Heidegger manifesta hostilidade à técnica enquanto esta atraiçoa a sua relação
com a verdade (alêtheia). Se é verdade para este autor que a técnica é um modo de
“alêtheia”, de des-velamento, a técnica como saber técnico era, entre os gregos, a
produção do verdadeiro no belo, de modo que a técnica era “poiética”, enquanto na
época moderna a técnica foi uma “provocação”. Esta tese sobre a técnica está patente,
nomeadamente, em A Questão da Técnica. Heidegger considera que a técnica moderna
não nasce da ciência. Surge, antes, de uma exigência à natureza de entregar ao homem a
sua energia acumulada. Heidegger, o “Pensador da Terra”, no dizer de Fernando Belo,
considera que pela técnica o homem interpela a natureza, provocando-a. O antigo saber
técnico era um des-velamento, enquanto a técnica moderna força esse des-velamento e,
com isso, oculta-o.
O ensaio “A Questão da Técnica” é, talvez, o mais importante trabalho em
filosofia da técnica e certamente um dos mais controversos, tendo constituído uma fonte
de pessimismo sobre a técnica e inspirado correntes associadas aos problemas de
natureza ecológica, pelo seu apelo a uma eco sofia.
27
Heidegger procura a “essência” da técnica e, nisto, o seu trabalho é similar ao de
Jacques Ellul. Segundo Heidegger, a ciência moderna participa da essência da técnica e
esta é algo que se opõe frontalmente ao ideal grego do conhecimento especulativo.
Como refere Hottois, (História da Filosofia, da Renascença à Pós Modernidade, p.
329), “Heidegger considera que a filosofia enveredou, desde Platão, pela via ilusória da
metafísica”, operando-se uma má conceção do que é o ser, um “esquecimento do ser”.
São três as etapas do “esquecimento do ser”. O ponto de partida desse esquecimento é
dado por Platão ao identificar o ser com as “Ideias”. As ideias são o que de mais real há.
“A meditação do mito da caverna por Heidegger mostra o deslocamento que se
operou na conceção da verdade, com o privilégio do sol e da visibilidade: apenas o que
é visível, o des-coberto, é tido em conta, como eidos”, alude Fernando Belo em
Heidegger, Pensador da Terra (p. 68). A ideia é a essência comum de todos os entes
que aparecem da mesma maneira e que nessa essência definida podem ser conhecidos
com exatidão. Com esta conceção perde-se a existência duradoura de cada um, o que os
fez vir à presença e se retirou no abrigo que o sustenta na presença, dado que as
principais características das ideias são a visibilidade e a permanência (as ideias são
intemporais e, por isso, a relação fundamental com o tempo é esquecida).
Um segundo momento da história do esquecimento do ser tem lugar, na
perspetiva de Heidegger, com Descartes, por muitos considerado o pai da filosofia
moderna a par de Galileu, pai da ciência moderna. “O pensamento cartesiano, afirma
Hottois em História da Filosofia (p. 330), caracteriza-se pelo primado do sujeito, que se
torna o ente supremo, último fundamento de todos os outros entes, assimilados a
objetos”. O homem só tem a certeza de duas coisas, prossegue o mesmo autor: a sua
própria, enquanto sujeito pensante (o cógito) e as suas próprias representações, isto é,
aquilo que ele coloca à sua frente no seu pensamento (HOTTOIS, op. cit., p. 330). As
representações claras e evidentes são objetivas. Clareza e distinção é sinal de
objetividade.
Relacionado com este critério de verdade, característico da modernidade, está o
pensamento analítico, calculista, metódico, que quantifica e afere. Opera-se, neste
sentido, a aliança entre a matemática e a física, patentes nas palavras de Galileu Galilei
em Il Saggiatore (o experimentador, o ensaiador): “A filosofia está escrita nesse grande
livro permanentemente aberto perante os nossos olhos (o universo), mas não se pode
28
entender se antes não se aprender a língua e os caracteres em que está escrito. Está
escrito em língua matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras
geométricas, e sem tais meios é impossível entender humanamente algo a seu respeito;
sem eles vaguear-se-á em vão por um obscuro labirinto”. Num outro texto da mesma
obra, continuando a revelar a permeabilidade entre a razão científica e a razão
matemática, Galileu dá conta da redução da natureza ao seu aspeto quantitativo, em
estreita relação com a inteligibilidade matemática do universo: “Digo, pois, que sem
dúvida me sinto obrigado, quando concebo uma matéria ou uma substância corpórea, a
conceber ao mesmo tempo que ela é delimitada e se apresenta com esta ou aquela
figura, que é grande ou pequena em relação a outras, está neste ou naquele lugar, neste
tempo ou naquele, move-se ou está em repouso, está em contato ou não com outro
corpo, é uma só, pouca ou numerosa; e não posso, por nenhuma imaginação, separá-la
dessas condições. No entanto, que tenha que ser branca ou vermelha, amarga ou doce,
sonora ou muda, de cheiro agradável ou desagradável, não me sinto obrigado a
apreendê-la acompanhada necessariamente por tais condições”. O que aqui aparece
claramente definido é a distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias,
entre qualidades objetivas, que residem realmente nos objetos e subjetivas, relativas ao
sujeito que conhece.
Estes dois textos marcam o nascimento da ciência moderna sob o modelo da
máquina, ou seja, a partir do paradigma mecanicista.
Esta forma de conceber a natureza (phusis) substitui o modelo animista em que o
mundo e a natureza eram comparados a um enorme ser vivo dotado de alma, por um
modelo mecanicista, o qual reduz a natureza a uma “coisa extensa”, a número, passando
o homem a imaginá-la como uma gigantesca máquina.
Este saber seguro garante a existência do sujeito no meio do ente e oferece um
domínio objetivo da natureza, graças à ciência e à técnica, visando tornar o homem
“dono e senhor da natureza”.
Deste modo, a modernidade e, em particular, a filosofia moderna, institui um
dualismo, já não entre o devir e a eternidade das ideias, como em Platão, mas entre o
homem enquanto sujeito pensante e todo o resto do ente. É, como refere Hottois (op.
cit., p 331), “o dualismo do sujeito e do objeto”. Opera-se, assim, a desnaturalização do
homem e a desumanização da natureza, pressuposto epistemológico essencial à
29
conquista e ao domínio da natureza pelo homem. Com o dualismo do sujeito e do
objeto, do homem e da natureza, instaurado por Descartes, estabelecem-se os requisitos
necessários à mudança da visão essencialmente animista da natureza, que dominava o
panorama anterior à modernidade, para uma visão essencialmente mecanicista, como
defende João Maria André em Renascimento e Modernidade, do Poder da Magia à
Magia do Poder. Na mesma linha de pensamento, Luc Ferry (Aprender a Viver, p. 212)
considera que se a natureza deixa de ser misteriosa, se deixa de ser sagrada, se se reduz
a um stock de objetos puramente materiais e em si mesmos desprovidos de sentido ou
de valor, ou seja, se se abandona a conceção animista da natureza, então nada nos
impede de utilizá-la como bem nos apetece. Se a árvore da floresta deixa de ser um ser
mágico suscetível de se transformar em bruxa ou em monstro durante a noite, surgindo
apenas como um pedaço de madeira desprovido de alma, então já nada nos impede de
transformá-lo em móvel ou de coloca-lo na lareira para nos aquecermos. Esta rutura na
forma de conceber a natureza, a phusis, no seu sentido animista, aproxima-nos da visão
da natureza peculiar ao mundo da técnica.
Por fim, Nietzsche. Segundo Heidegger, Nietzsche conclui a história da
metafísica ocidental e, como tal, do esquecimento do ser. Deste esquecimento do ser,
desta má compreensão do ser, refere Philipe van den Bosch em A Filosofia e a
Felicidade (p. 259), decorre todo o pensamento técnico e científico da nossa
civilização, que se encerra nesta má relação com o ser onde conhecimento e ação
visam somente a posse, a manipulação e, finalmente, a destruição do ser. Ora, a técnica
constitui uma das formas inautênticas mais peculiares da modernidade, o “ter à mão” os
objetos para os pôr ao serviço do que Nietzsche chamava a “vontade de poder”. Para
Heidegger, a técnica constitui o maior perigo de que o homem se esqueça e vá contra a
sua relação autêntica com o ser, afirma Fernando Savater em História da Filosofia Sem
Medo nem Pavor (p. 177). “Só a autenticidade do ser-para-a-morte, afirma Paulo
Tunhas em As Questões que se Repetem, Uma Breve História da Filosofia, (p. 333),
vivida na consciência, nos permite compreender a verdadeira dimensão do tempo. A
experiência da temporalidade autêntica, que é a experiência da nossa finitude, é a única
via de acesso à questão ontológica essencial”, por oposição a uma existência alienada,
para usar uma linguagem hegeliano-marxista.
Mas, retomando a questão de Nietzsche e a conclusão niilista da metafísica:
quais são os aspetos dessa conclusão da metafísica ocidental?
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Em primeiro lugar, não há mais do que entes. O niilismo contemporâneo
homogeneiza o ente. Tudo se equivale e nada tem valor em si.
Por outro lado, ao invés de se conceber o elo interno entre o tempo e o ser, a
temporalização radical do ente considera apenas o devir, um devir que o homem
concebe como um processo ilimitado, desprovido de sentido e de objetivo.
Ora, o aparecimento do “Mundo da Técnica”, característico do universo
contemporâneo, diverge substancialmente da Ciência Moderna, ainda que resulte de um
processo que tem origem na ciência do século XVII. Segundo Heidegger, o
aparecimento do mundo da técnica coincide com a retirada do sentido e advém na
história do pensamento com a doutrina nietzschiana da “vontade de poder”. Esta tese
encontra-se exposta no ensaio intitulado A Superação da Metafísica.
Como salienta Luc Ferry em Aprender a Viver (p. 212), no momento do
nascimento da Ciência Moderna não estamos ainda no que Heidegger denomina o
“Mundo da Técnica”. O Mundo da Técnica constitui um universo no qual a
preocupação com os fins, com os objetivos últimos da história humana irá desaparecer
por completo, em proveito exclusivo dos meios.
Com efeito, o projeto de domínio científico (Ciência Moderna) está submetido,
ainda, à realização de determinadas finalidades como a liberdade e a felicidade
humanas. A passagem da Ciência à Técnica representará, assim, a morte dos grandes
ideais e o desaparecimento dos fins em proveito dos meios.
A essência da técnica, refere Heidegger em A Questão da Técnica (p. 11), não é
técnica. Nesse ensaio, o autor rejeita uma conceção instrumental e antropológica da
técnica. Normalmente considera-se a técnica como um conjunto de meios que é
necessário mobilizar para realizar um determinado fim. Neste sentido afirma-se, por
exemplo, que um pintor possui uma sólida técnica. Com isto, pretende-se dizer que o
pintor domina a sua arte. No seu sentido instrumental, a técnica diz respeito aos meios e
não aos fins. Ela constitui um instrumento ao serviço de determinados objetivos ou fins
mas não é ela quem elege esses objetivos ou fins.
Ora, a tecnicização do mundo corresponde a uma realidade em que o progresso
se tornou um processo automático e sem finalidade, uma espécie de mecânica
autossuficiente de que os seres humanos são totalmente desapossados. Ela corresponde
31
a um desaparecimento dos fins em proveito de uma racionalidade meramente
instrumental, de uma lógica dos meios.
Como já foi atrás aludido, o aparecimento do mundo da técnica coincide com a
retirada do sentido e advém na história do pensamento com a doutrina nietzschiana da
“vontade de poder”. Esta, não tendo finalidade fora de si mesma, visa apenas o seu
próprio desenvolvimento, o seu acréscimo infinito, num processo ilimitado, sem
objetivo nem sentido, num eterno retorno do mesmo, de que a globalização ou
mundialização são reflexo no mundo contemporâneo. Ela é vontade de vontade, e o seu
poder persegue apenas o poder. Neste contexto, as ciências e as técnicas surgem como
meios privilegiados da vontade de poder humana que reduz a verdade à eficácia, o
pensamento ao cálculo, e o real a uma matéria infinitamente operável e explorável ,
refere Hottois em História da Filosofia, da Renascença à Pós-Modernidade (p. 332).
Em suma, Heidegger vê na técnica e na tecnociência a fim ou a conclusão da metafísica
e, como tal, a etapa última da história do ser.
A realidade da globalização é a da concorrência generalizada e caracteriza o
Mundo da Técnica.
A principal diferença entre o Mundo da Técnica e a Ciência Moderna reside no
seguinte pressuposto: o projeto científico das Luzes tinha, por finalidade, dois objetivos
ou fins a prosseguir. Por um lado, acreditava-se que o saber e o conhecimento científico
tornariam possível a emancipação da humanidade das superstições e do obscurantismo,
característicos da idade das trevas. Dito numa terminologia platónica: a Ciência
possibilitaria a saída da humanidade das sombras da caverna, e a contemplação do
verdadeiro conhecimento. Por outro lado, a ciência permitiria ao homem o domínio da
natureza, ou como diria Descartes, a ciência permitiria tornar o homem “dono e senhor
da natureza”, mas este domínio possui ainda uma visão emancipadora e está submetido
à realização de determinadas finalidades. Uma das finalidades seria a previsão dos
fenómenos naturais e, com essa previsão, a salvaguarda do homem das “tiranias” e das
“maldades” da natureza. Em suma, a ciência conduziria a humanidade à liberdade e à
felicidade.
Neste sentido, ainda não podemos falar numa racionalidade exclusivamente
instrumental, dado que não nos interessamos apenas pelos meios que nos permitirão
dominar o mundo mas, sobretudo, pelos objetivos que esse domínio permitirá.
32
Ao invés, no nosso mundo que é o Mundo da Técnica, nas palavras de
Heidegger, concretizou-se a passagem da ciência à técnica, o que equivale a dizer que se
operou a morte dos grandes ideias e o desaparecimento dos fins em proveito exclusivo
dos meios. Vejamos como Luc Ferry em Aprender a Viver (p. 215) sintetiza e interpreta
a passagem da Ciência ao Mundo da Técnica:
Ao contrário das Luzes e da filosofia do século XVIII que (…) visavam a
emancipação e a felicidade dos homens, a técnica é um processo sem finalidade,
desprovido de qualquer espécie de sentido definido: no limite, já ninguém sabe aonde
nos conduz o curso do mundo, porque ele é mecanicamente produzido pela competição
e não dirigido pela vontade consciente dos homens agrupados coletivamente em torno
de um projeto, no seio de uma sociedade que, ainda no século passado, podia chamar-
se res publica, república: etimologicamente, assunto ou causa comum.
São, ainda, do mesmo autor (HOTTOIS, op. cit., p. 215) as seguintes palavras,
em jeito de conclusão:
No mundo da Técnica, quer dizer, doravante no mundo inteiro, porque a técnica
é um fenómeno sem limites, planetário, já não se trata de dominar a natureza ou a
sociedade para ser mais livre e mais feliz, mas de dominar por dominar. Porquê? Por
nada, ou melhor, porque é impossível fazer de outra maneira dada a natureza de
sociedades totalmente animadas pela competição, pela obrigação absoluta de
progredir ou de perecer.
Deste modo, será legítimo dizer que o nosso universo da competição globalizada
é técnico, no sentido lato, porque nele o “progresso” científico deixa de visar fins
exteriores e superiores a esse universo para se tornar uma espécie de fim em si. Este
universo será, segundo Heidegger, a expressão material da vontade de poder de
Nietzsche.
O ensaio de Heidegger A Questão da Técnica é, talvez, “o mais importante
trabalho individual no âmbito da filosofia da técnica e certamente um dos mais
controversos”, como é mencionado em Technology and Values, Craig Hanks (p.99).
No referido ensaio, Heidegger procura a essência da técnica e, nisto, a sua tarefa
é similar à de Jacques Ellul, autor que se enquadra, como foi desde já observado, numa
linha de pensamento tecnofoba. No sentido corrente, menciona Heidegger (A Questão
33
da Técnica, p. 11), a tecnologia é considerada uma atividade humana (sentido
antropológico) e um meio para atingir um fim (sentido instrumental):
A conceção corrente da técnica de ser um meio e uma atividade humana pode
chamar-se, portanto, a determinação instrumental e antropológica da técnica
(HEIDEGGER, A Questão da Técnica, p. 12).
No entanto, apesar de correta, esta forma de conceber a técnica ainda não é
verdadeira, como se depara das seguintes palavras extraídas do referido ensaio:
Dissemos acima que a determinação instrumental da técnica era correta. Com
certeza. O correto constata sempre algo exato naquilo que se dá e está em frente (dele).
Para ser correta, a constatação do certo e exato não precisa de descobrir a essência do
que se dá e apresenta. Ora, somente onde se der esse descobrir da essência, acontece o
verdadeiro em sua propriedade. Assim, o simplesmente correto ainda não é o
verdadeiro (HEIDEGGER, op. cit., pp. 12-13).
No sentido de identificar a essência da técnica, Heidegger trabalha para
responder a três questões:
i. Que tipo de atividade é a técnica?
ii. Quais são os fins da técnica?
iii. Quais são os meios utilizados para obter os fins da técnica?
Não é de surpreender que Heidegger nomeie a nossa era como o Mundo da
Técnica, dado que essa atividade e os seus produtos influenciam profundamente todas
as áreas da vida humana. Trata-se, com efeito, de um fenómeno planetário, à escala
global. Dada a profunda influência que a técnica representa para a vida contemporânea,
é importante refletir sobre esse fenómeno. O que interessa a Heidegger não é saber se a
técnica é benéfica para a humanidade ou se está fora de controlo dos indivíduos. O que
Heidegger procura é a essência ou o ser da técnica, que o universo técnico dissimula e
cuja revelação pressupõe que se rompa com o estar no mundo metafísico e com a
maneira tecnológica de pensar e de falar. Ora, não é nas coisas técnicas, não é nos
objetos técnicos, para usar a linguagem de Simondon, que se revela a essência ou o ser
da técnica. É na linguagem, até porque a linguagem é a casa do ser, como refere
Heidegger.
34
Para isso, temos de nos pôr à escuta hermenêutica-etimologicamente da
linguagem. Assim, poderemos aceder à essência da técnica e compreender o que são a
ciência e a técnica, o seu sentido original e a sua evolução histórica através dos textos
que tecem a história do pensamento ocidental.
Nesse sentido, torna-se necessário indagar pelo sentido profundo da Techné,
quais os elos que este termo tece com outras palavras como Poiesis, Theoria, Alêtheia,
Aition. Adotando esta metodologia, este caminho, como veremos adiante, Heidegger
pensa ter encontrado no termo alemão Gestell, e naquilo que ele representa, a essência
da técnica contemporânea. A Ciência Moderna participa da essência da técnica. A
essência da técnica é algo que se opõe frontalmente ao ideal grego do conhecimento
especulativo: é a vontade de poder que visa obrigar a natureza a produzir e a revelar-se,
manejando as coisas até ao limite da destruição.
A essência da técnica, tal como Heidegger a entende, representa um supremo
perigo para o homem porque o impede de ter uma compreensão adequada do seu
próprio ser, da sua própria essência. A essência da técnica é tal que exclui outras formas
não técnicas de entender o ser. A forma puramente técnica de pensar, a racionalidade
instrumental, exclui outras formas de entender o ser, como a criação artística.
A sua tese central é a seguinte: a técnica é uma forma de pensar que revela ou
desvela um único modo de existência ou um modo exclusivo do ser. A essência deste
modo de pensar é procurar mais e mais eficácia ou competência sem uma finalidade
externa a si ou, dito de outro modo, movida por uma dinâmica intrínseca, por uma
vontade de vontade, para usar um termo ao gosto de Nietzsche. Assim, a técnica é uma
forma de pensar, conceber e atuar que tem em conta apenas as considerações de
natureza instrumental. Uma das consequências resultantes desta forma de entender o ser
ou a existência consiste em passar a conceber a natureza, e o próprio homem,
simplesmente como um fundo ou um recurso disponível. A natureza torna-se, nas
palavras de Heidegger, uma bomba de gasolina gigante, uma fonte de energia para a
técnica e a indústria moderna. Assim, a moderna técnica revela um mundo no qual tudo
faz parte de um fundo de reserva à disposição para ser usado. Esta forma de conceber a
natureza resulta da Ciência Moderna, mas diverge desta na medida em que já não se
trata de dominar a natureza para ser mais livre e mais feliz, mas de dominar por
dominar, como, de resto, já foi atrás aludido. Segundo Heidegger, o desdém pelas
questões relativas ao sentido da vida e a destruição do ambiente são consequência dessa
atitude.
35
Neste contexto, Heidegger convida-nos a questionar a técnica com o propósito
de nos libertarmos de uma tão limitada forma de experienciar o mundo, após o que se
poderá apelar a valores, que não a eficácia, para orientar as nossas vidas.
A ideia central de Heidegger é a de que a técnica contemporânea é a realização
da metafísica e, como resultado, a ocultação do ser.
Quando se diz que a ciência e a técnica moderna são o acabamento da meta-
física greco-europeia e que com a técnica, se operou uma construção meta-física da
civilização ocidental, iniciada com Platão, pode argumentar-se do seguinte modo, como
refere Fernando Belo em Heidegger, Pensador da Terra (pp. 145-146):
Foi-se construindo um discurso além das capacidades da natureza-phusis, do
que ela atua, coisas de almas, quase divinas, celestes, que a teologia dizia sobre-
naturais; foi esse discurso que os filósofos-físicos europeus herdaram mas que
trouxeram de novo para a terra, levando esta a ser, ela também, um astro do céu; neste
mas se diz (…) a viragem da desconstrução da parte aristotélica do edifício,
concomitante com a construção dos laboratórios donde surgirão (…) dinâmicas e
energias totalmente inéditas, mecânicas, termodinâmicas, eletromagnéticas. É sobre
elas, e já não sobre as dos seres vivos, bois, cavalos, escravos ou criados, que a nossa
civilização será erigida, meta-físicamente, sobre-naturalmente.
Com efeito, a técnica permite a ultrapassagem das capacidades limitadas dos
nossos músculos e da sua energia natural pela energia das máquinas (conseguida a partir
do conhecimento científico); permite a ultrapassagem das capacidades limitadas dos
nossos olhos para “verem” átomos, moléculas, células, genes; permite a ultrapassagem
das capacidades limitadas das nossas pernas pela grande velocidade dos nossos
veículos; permite a capacidade de voar, ultrapassando e contornando a lei da gravidade.
No entanto, por que razão nos fala Heidegger em ocultação do ser? Em que
medida a construção meta-física da civilização ocidental implica um esquecimento do
ser?
Na perspetiva de Heidegger, não há nada de nada, coisa nenhuma, que seja, que
subsista, só por si. Tudo resulta de outras coisas anteriores como também há já um
universo, e, mais perto, a Terra, em que tudo é (inclusive o dasein, cuja existência
consiste em ser-o-aí, lançado num mundo prévio – a facticidade), subsiste no seu tempo
de duração e aonde depois se vai, morre ou estraga. Assim, como refere Fernando Belo
na obra atrás mencionada (p.19), o ser é o que garante, sustenta todas as existências e
essa doação não se vê, não se dá por tal, retira-se e abriga-se. No entanto, o ser não é
36
um ser, um ente, uma coisa nem um deus. E tudo se dá no tempo: emerge, dura e
desaparece.
Facilmente se constata, nesta forma de “ver” o ser, uma crítica à forma como
Platão concebeu e identificou o ser com as Ideias, com a estabilidade e a permanência,
característica do mundo supra sensível, do mundo inteligível. Neste sentido, a filosofia
tradicional pensou o tempo como algo de acessório. O essencial é o permanente e o que
sobra é o acidental. O acidental é o que se dá no tempo. O mundo e o universo inteiro
são vistos do ponto de vista da eternidade. Um Deus criador tem em suas mãos e sob os
seus olhos cada um dos seres do universo.
Esta ideia, segundo Heidegger, transmuta-se, no discurso da modernidade, sob o
dualismo do sujeito e do objeto. O sujeito representa o objeto em si e, neste contexto,
falar em verdade é falar na certeza e na adequação da representação do objeto no
sujeito. A técnica perde o objeto e o sujeito, mas guarda, no cálculo, a exatidão.
Como foi exposto, o ser é o que garante, sustenta todas as existências e essa
doação não se vê, não se dá por tal, retira-se e abriga-se. O vinho que se torna vinagre, a
flor que se ausenta à vinda do fruto, a mortalidade dos vivos, são exemplos de retiro do
ser. Fernando Belo, em Heidegger, Pensador da Terra (pp. 102-103), propõe-nos
alguns exemplos de retiro do ser. Tomemos como exemplo – diz-nos o autor - uma mesa
de nogueira, para lhe perguntar como é que ela veio à presença na sua duração. Em
primeiro lugar, foi necessário serrar a nogueira para a cortar em tábuas de madeira.
Foi a nogueira, dada outrora por uma semente, entre outras coisas, que deu essas
tábuas, retirando-se ela, enquanto árvore. Mas a qualidade e a duração da mesa futura
dependem da qualidade da madeira que a nogueira produziu durante anos: ela
permanece, portanto, em retiro na mesa. Também a arte do marceneiro, os seus
instrumentos, a sua oficina, tudo isso se retira da mesa para que ela possa tornar-se a
mesa em que os convivas se sentam para comer, beber e conversar. Um dia o
marceneiro morrerá mas enquanto a mesa durar são a sua arte e os seus instrumentos,
em retiro na mesa com a nogueira, que lhe dão ainda essa duração e a deixam ser. Por
outro lado, também o marceneiro foi dado, pelos seus pais, por tudo o que o alimentou,
a sua arte dada por outros marceneiros, todos estes dons fazem uma rede imensa de
doadores-dados que permanece em retiro em todos estes entes para que eles durem no
tempo: esta rede (de nada) em retiro nos entes seria o ser, terra e mundo
indissociavelmente. Fernando Belo prossegue com a seguinte interrogação: o que é que
faz o retiro? Permite à tábua durar no tempo por si mesma, na ausência da árvore, do
37
marceneiro e da sua arte. A lei que ela recebeu de outros, a mesa recebeu-a como a sua
lei. A hétero-nomia retira-se e permanece em retiro para que a auto-nomia dela seja,
para que os entes autónomos na sua essência recebida durem o seu tempo. Em
conclusão: para Heidegger, o retiro do ser é o que nos dá a liberdade. A liberdade está
relacionada, segundo Heidegger, com o retiro definitivo, o da morte.
Viver e morrer pertencem ambos à Phusis, à natureza, o que nasce, abolindo o
que morre. O fruto que vem á presença desdobra-se, abre-se, desabrocha, mas privando-
se da flor. O ausentar-se da flor na vinda do fruto é o que vela, dissimula a natureza. O
que se abre e se cobre: é o desdobramento como essencialmente temporal que especifica
o ser. Assim, a planta, o animal e o humano, entes cuja mobilidade releva da phusis, da
natureza, e esta é ser.
Ora, Heidegger considera que a relação do homem com a natureza seguiu, com a
técnica moderna, um caminho que não conduz a parte alguma. Heidegger procura a
essência da técnica. Considera que tal essência é a do seu desvelamento (aletheia), isto
é, do seu desdobrar-se, como tempo, no movimento de vir á presença. São suas, as
seguintes palavras, em A Questão da Técnica (p. 18):
O decisivo da téchne não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de
meios mas no desencobrimento. (…) A técnica é uma forma de desvelamento, de
desencobrimento. A técnica vigora no âmbito onde se dá descobrimento e des-
encobrimento, onde acontece alêtheia, verdade.
Tudo o que passa e procede do não vigente para a vigência é poiesis, é produção.
A produção conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido
próprio de uma produção, enquanto e na medida em que alguma coisa encoberta chega
ao des-encobrir-se (alêtheia). Ora, também a phusis, a natureza, é uma produção, é
poiesis. A phusis é até, afirma Heidegger, a máxima poiesis.
Heidegger refere-se ao sentido originário de phusis, ao seu sentido etimológico.
A palavra phusis tem o mesmo radical do verbo phuo, que significa nascer, produzir,
fazer, e encontra a sua origem mais remota no indo-europeu bhu (ser – raiz de to be e de
ich bin). O mesmo se poderia dizer de natura, proveniente de (g)natura (próximo de
(g)natus) que radica no indo-europeu g´n, que não só deu origem a génesis em grego
mas também a (g)nascur em latim. No fundo, refere João Maria André em
Renascimento e Modernidade, do Poder da Magia à Magia do Poder (p. 71):
38
Em ambos os termos encontramos na raiz de natureza um profundo sentido
dinâmico, condensado no princípio gerador de todos os seres que lhes comunica a sua
essência e a sua nova capacidade de atividade.
Heidegger aproxima-se desta conceção dinâmica de natureza que se expressa no
paradigma animista que caracterizaria a filosofia e a ciência pré galilaicas, insurgindo-se
contra uma conceção derivada da ciência e da técnica modernas.
Nos Ensaios e Conferências, Heidegger trata do modo próprio de ser dos
humanos, a sua vida habitante na terra. A habitação humana produz-se na terra (que
também é produção, como phusis) que dá o ser da habitação, como cultivar e edificar.
O traço do habitar é o cuidado da morada dos mortais na terra. O que se salienta
das palavras de Heidegger é a harmonia dos processos naturais e da relação do homem
para com a natureza, encarada como terra mãe, nas sociedades que antecedem o (nosso)
mundo da técnica. Também a técnica moderna é um des-encobrimento, um des-
velamento, pode ler-se em A Questão da Técnica (p. 18). É-o, no entanto, de modo
diverso do original. O desencobrimento dominante na técnica moderna não se
desenvolve numa produção no sentido de poiesis. O desencobrimento que rege a técnica
moderna é uma exploração que impõe á natureza a pretensão de fornecer energia, capaz
de, como tal, ser beneficiada e armazenada.
Vemos, aqui, finalmente, a concretização do ideal cartesiano de domínio da
natureza pelo homem. Com efeito, a ciência moderna construiu um método ou caminho
rigoroso orientado por regras, que, pela pena de Descartes, garantia ao engenho
humano o domínio e a posse da natureza e transformava o caminho em conquista e
exploração, dando estrutura lógico-técnica ao princípio baconiano de que ciência é
poder, explica Miguel Baptista Pereira em Prolegómenos a Uma Leitura Atual do
Pensamento de Martin Heidegger (p. 248).
Interroga-se Heidegger (A Questão da Técnica, p. 19): isto também não vale em
relação ao antigo moinho de vento? A sua resposta é perentória: não! As suas alas
giram, sem dúvida, ao vento e são diretamente confiadas ao seu sopro. Mas o moinho
de vento não extrai energia das correntes de ar para armazená-la. Assim, a natureza e
as suas energias ficam dis-poníveis, nomeadamente para o consumo.
Numa época como a nossa, prossegue Miguel Baptista Pereira (op. cit., p. 248) em
que o super consumo torna tudo precocemente antiquado e envelhece em ritmo veloz o
espírito do consumidor, a velocidade e a curiosidade do novo encandeiam de tal modo
39
o homem de hoje que o regresso ao caminho-morada real e a rememoração das raízes
se tornam atitudes cada vez mais raras. O caminho-morada real a que alude o autor
destas palavras diz respeito a um tempo em que era diferente o campo que o camponês
lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e tratar. Diz respeito a um tempo em que
a lavra do lavrador não desafiava o lavradio e significava habitar a terra cultivando e
protegendo. Pode ler-se em A Questão da Técnica (p. 19):
Na semeadura (o lavrador) apenas confiava a semente às forças do crescimento,
encobrindo-a para o seu desenvolvimento. Hoje em dia, uma outra posição também
absorveu a lavra do campo, a saber, a posição que dis-põe da natureza. E dela dispõe,
no sentido de uma exploração. A agricultura tornou-se indústria motorizada de
alimentação. Dispõe-se o ar a fornecer azoto, o solo a fornecer minério, como, por
exemplo, urânio, o urânio a fornecer energia atómica.
Estamos na presença de duas formas de habitar a terra.
Numa primeira forma em que o traço é o cuidado da morada. Fernando Belo, na
obra anteriormente referida (pp. 66-67), expõe a questão nos seguintes termos:
O que deixa vir os filhos dos humanos à presença, a ek-sistência aberta, são o
pai e a mãe, a casa e a quinta, a agricultura e o gado, os fazeres e os dizeres dos
cuidados quotidianos na casa e na quinta, a comunidade em que tudo isto é sustentado,
a tradição que se transmite, etc., é esse território, essa região de terra habitada. E o
nascimento e o crescimento dos filhos faz-se no horizonte da morte dos pais, que se
retiraram e a quem eles sucederão. Tempo e ser são dados, assim, neste entrelaçar de
entes, em que nenhum se basta a si mesmo, mas todos, da terra retirada, são dados e
sustentados, feitos vir á presença como morada e nela habitar demoradamente.
Neste retirar-se, também a terra, como phusis, como ser, se retirou. Desvelou,
velando-se: é alêtheia, verdade. Doação: fazer (poiesis) ser os entes; retiro: deixá-los
ser, recebidos em sua autonomia. Nesta forma de habitar a terra, o sentido inicial da
técnica como desvelamento produz o verdadeiro no belo.
Poder-se-ia dizer que o homem tem uma pré-compreensão afetiva da terra, sua
mãe, da natureza, dotada de uma “alma”, geradora de vida e da multiplicidade. Nesta
forma de habitar a terra, o homem, mais do que pensar a natureza, sente-a, contempla-a
e ama-a. Dada ser dotada de vida, torna-se inviável o seu domínio, devido às suas forças
ocultas. Esta forma de conceber a natureza é anterior à moderna cisão entre o sujeito e o
objeto e remete-nos para uma eco sofia e para uma eco filia, remete-nos para a
40
necessidade de conhecer bem a “casa” que habitamos, isto é, o mundo e a natureza,
antes de a tentarmos “arrumar”.
Numa segunda forma de habitar a terra, que deriva do nosso mundo da técnica, a
natureza é obrigada a entregar as suas energias para serem acumuladas, dispostas em
stock, dado que a técnica moderna é um modo de desvelamento que consiste numa
provocação. A essência da técnica moderna é uma produção; não um fabrico, mas um
desvelamento. No entanto, não se desvela como poiêsis, mas como uma provocação,
refere Fernando Belo, no sentido agressivo da palavra, que submete, a phusis, a terra, a
ceder as energias que são expropriadas e acumuladas em stock em vista das
encomendas. O real é desvelado como fundo, como se diz na linguagem financeira. Ora,
nesta forma de habitar a terra, caracterizada pelo desenvolvimento planetário da técnica
e pela cadeia interminável de produção e comando em todos os domínios, explica
Miguel Baptista Pereira (op. cit., p. 276), nessa cadeia universal da produção técnica e
no mercado de concorrência por ela alimentado não há lugar para o dom. Numa
sociedade de permanente troca, parece que tudo se pode vender: os meios de consumo,
os meios de produção, os meios de comunicação, a força de trabalho manual e
intelectual, o uso dos corpos, as coisas banais, as coisas preciosas, as obras de arte.
Gestell (pode ser traduzido por dispositivo) é o termo que, segundo Heidegger,
traduz e exprime a essência da técnica moderna. Gestell (termo forjado por Heidegger
em torno do verbo alemão stellen: colocar, pôr, posicionar) tem a mesma etimologia da
palavra sistema: conjunto do que é colocado como estável e sólido. O pensamento de
Heidegger sobre a essência da técnica moderna – as máquinas e as redes que com elas
se desenvolveram – propõe que ela é impensável sem a história ocidental da metafísica,
mas também que ela a acaba. A técnica manifesta a dominação da metafísica moderna
da subjetividade e realiza-se na doutrina nietzschiana de vontade de poder que não quer
outra coisa senão o seu próprio eterno retorno, afirmando-se como vontade de vontade,
no qual a totalidade do ser se torna calculável.
Em A Questão da Técnica (p. 19), Heidegger expressa a essência da técnica
moderna nos seguintes termos:
Não se dispõe do carvão processado na bacia do Ruhr apenas para torná-lo
disponível em algum lugar. O carvão fica em stock no sentido de ficar a postos para se
dispor da energia solar nele armazenada. Explora-se, a seguir, o calor para fornecer a
temperatura que, por sua vez, se dispõe a fornecer o vapor, cuja pressão movimenta os
mecanismos que mantêm uma fábrica em funcionamento.
41
E prossegue, no mesmo sentido:
A fábrica hidroelétrica posta no Reno dis-põe o rio a fornecer pressão
hidráulica, que dis-põe as turbinas a girar, cujo giro impulsiona um conjunto de
máquinas, cujos mecanismos produzem corrente elétrica. (…) O próprio rio Reno
aparece como um dispositivo. A fábrica hidroelétrica não está instalada no Reno, como
a velha ponte de madeira que, durante séculos, ligava uma margem à outra. A situação
inverteu-se. Agora é o rio que está instalado na fábrica (HEIDEGGER, op. cit., p. 20).
É notório, segundo Heidegger, o contraste nas duas formas de “ver” o Reno,
enquanto instalado na obra de engenharia da fábrica elétrica, ou o Reno evocado pela
obra de arte do poema de mesmo nome, “O Reno”, de Hoelderlin. A estas duas formas
de ver o Reno, correspondem as duas formas de habitar a terra. De acordo com M.
Baptista Pereira (op. cit., p. 248), M. Heidegger, conhecedor da Nova Mitologia, que,
nos finais do século XVIII entronizara a poesia como mestra da Humanidade e
substituíra a Filosofia pela Arte, buscou na poesia de Hoelderlin o caminho da
profundidade, que as vias amplas da Modernidade esqueceram e reprimiram.
Fernando Belo (op. cit., p. 68) apresenta-nos um exemplo das duas formas de
habitação:
Uma ponte é construída em vista da habitação: reúne as duas margens do rio e
as regiões suas afins, abre os trajetos dos humanos entre elas, deixa o rio continuar o
seu curso (não se lhe opõe, como as barragens) e reúne à volta dela a terra como
região, como lugar que dá lugar e espaço a cada casa, a cada quinta, a cada coisa de
cada casa, etc. Ou seja, produz, em grego poiêsis, um “estado-de-coisas” em seu
horizonte.
Nós, europeus que fazemos pontes, os nossos engenheiros fazem projetos e
cálculos, temos uma conceção técnica da ponte. E esta conceção já nos vem dos gregos,
de Aristóteles e de Platão.
Com efeito, Aristóteles opunha a phusis, os entes que crescem deles mesmos, às
coisas feitas pelos humanos, opunha a phusis à technê. Esta oposição vem a traduzir-se,
no mundo moderno, numa desnaturalização do homem e numa desumanização da
natureza. Por seu turno, Platão, ao identificar o Ser com as Ideias, que constituem a
essência comum de todos os entes e que podem ser conhecidos com exatidão, conduz à
privação da dimensão temporal da existência, e, como tal, perde-se o que faz os entes
vir à presença para depois se retirar. Com Platão, opera-se, ainda, o deslocamento na
42
conceção da verdade. A Ideia e a sua exatidão como adequação entre a perceção e a
linguagem vencem a alêtheia antiga. A filosofia constitui-se, enfim, como metafísica,
dado o privilégio que o supra sensível, que o inteligível tem sobre o sensível.
À conceção técnica da natureza, à gestell – a essência da técnica moderna –
pertencem, em primeiro lugar, a planificação como organização de todos os sectores do
ser; de seguida, a “usura”, como pura exigência de produzir e consumir, fazendo do
homem a primeira das matérias-primas. Por fim, pertence-lhe a uniformidade, resultante
da abolição das hierarquias metafísicas e da igualização da animalidade e da
humanidade.
Na obra Heidegger, Pensador da Terra, (pp. 135-136), o autor apresenta-nos um
exemplo do sistema / gestell, da essência da técnica moderna, a partir da noção
filosófica de representação:
Conceber uma fábrica implica fazer previamente o seu organigrama e os
cálculos técnicos, económicos e financeiros respetivos, isto é, re-presentar (dar-stellen,
em alemão) antecipadamente o conjunto, escrevê-lo antes de o executar, ou seja,
programá-lo. Depois, será necessário requerer (bestellen) tudo o que seja preciso,
máquinas, matérias-primas, e colocá-las (stellen) na sua posição, incluindo também os
empregados (stellung, emprego). Trata-se de condições – de razão – prévias ao
arrancar da fábrica pelo capital investido (colocado), das condições do seu domínio
sobre tudo o que ele interpela para o obrigar a dar razão (stellen) e poder, portanto,
comandá-lo, requisicioná-lo. Em seguida, há que vigiar o seu funcionamento muito de
perto. (…) Tudo isto é verdade de todas as outras fábricas e outras unidades sociais
das sociedades modernas que funcionam em correlação intrínseca umas com as outras
numa rede imensa.
Em suma, o gestell – a essência da técnica moderna – reúne as diversas
“colocações”, “requisições”, “proposições” e “empregos” e as diretivas das
“representações” feitas para a boa marcha de cada unidade social e da conjuntura e que
põe a natureza (o homem incluído) em estado de se mostrar como um complexo
calculável e previsível de forças, considera Heidegger.
Segundo Heidegger, a ordem política que corresponde a este “dispositivo de
requisição” (gestell) é o totalitarismo, quer se trate do nacionalismo, do
socialismo/comunismo ou do liberalismo, dado que o aspeto distintivo da técnica
moderna é a aplicação da ciência ao serviço do poder.
43
Heidegger não rejeita a técnica nem a considera perigosa em si mesma. Segundo
ele, o perigo reside no mistério da sua essência não pensada que impede o homem de
retornar a um desvelamento mais original e de entender o apelo de uma verdade mais
inicial. A questão da técnica seria a ameaça heterárcica (por oposição à autarcia das
sociedades da phusis) sobre a autonomia dos humanos, submetidos ao imperativo do
Ge-stell. Essa ameaça consistiria, refere Fernando Belo, (op. cit., pp. 150-151), na falta
de domínio dos humanos sobre o sistema, que se traduz nas diversas crises,
económicas, políticas, entre outras. A phusis dava apagando-se, deixava ser o que ela
produzia, enquanto a técnica, insistente, provocadora, não se ocupa do deixar-ser, daí o
esquecimento do ser.
Todo este estado-de-coisas conduz a um desencantamento do mundo, resultante
da tendência das sociedades modernas para uma racionalização técnico-científica em
detrimento do sentido da poesia e, para usar uma expressão de João Maria André
extraída de Renascimento e Modernidade, do Poder da Magia à Magia do Poder (p.
14), dos segredos do mistério que nos fazem mergulhar nas profundidades do oculto,
que se vela e desvela, que se oferece na sua disponibilidade comunicativa e se retrai na
sua alteridade qualitativa.
Assim, pois, onde domina o “gestell”, reina, em grau extremo, o perigo, conclui
Heidegger.
Mas nem tudo está perdido.
“Ora, onde mora o perigo
É lá que também cresce
O que salva.”
Como interpretar este verso de Hoelderlin, citado por Heidegger (A Questão da
Técnica, p. 37) no contexto da técnica moderna?
Quanto mais nos aproximamos do perigo, tanto mais claramente se iluminam os
caminhos de salvação e tanto mais perguntadores nos tomamos. É que o perguntar é a
religiosidade do pensamento, insiste Heidegger (op. cit., p. 38).
A salvação, que se anuncia no perigo, começa pela responsabilidade, que a
vontade ilimitada de poder jamais assume, refere Baptista Pereira nos Prolegómenos a
Uma Leitura Atual do Pensamento de M. Heidegger (p. 267).
Fernando Belo, na obra anteriormente citada (p. 152), enuncia alguns exemplos
passíveis de decifrar o verso de Hoelderlin:
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A escravatura, que foi condição das grandes civilizações antigas do
Mediterrâneo, e portanto também da filosofia, como o foi do desenvolvimento da
Europa capitalista dos séculos XVI a XIX, e portanto também das ciências e da
máquina a vapor, foi um “perigo” de que esta veio “salvar” (…); por sua vez, esta
“salvação” trouxe como “perigo” uma terrível poluição e a miséria proletária inglesa
do século XIX, a que respondeu como “salvação”, a invenção da eletricidade, do motor
elétrico e da turbina, que foram condição de possibilidade das grandes cidades que a
seguir às duas grandes guerras (…) vieram permitir o estado social europeu e as novas
classes médias onde os “operários se diluíram.
Em suma, o bem e o mal estão intimamente misturados como bem(mal)dição. A
Telepolis, “a cidade a caminho do futuro”, como menciona J. Maria André,
(Pensamento e Afetividade, p. 147), que vai configurando as relações de comunicação
do homem com os outros e com o mundo através da Internet, por exemplo, pode ser
uma bênção de redes de relações entre quem combate o crime, embora também possa
estar ao seu serviço.
Enfim, o perigo e a salvação como que caminham lado a lado.
Mas, qual o papel dos poetas e da poesia na nossa civilização, essencialmente
técnica? Em face da realização metafísica operada pela técnica moderna e o respetivo
esquecimento do ser, sentencia M. Baptista Pereira (op. cit., p. 247), os poetas carregam
o peso de reencontrar e de fazer partilhar pelos seus semelhantes o sentido da
habitação poética da terra.
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EPÍLOGO
Protágoras, filósofo grego da antiguidade, referia-se ao Homem como sendo a
“medida de todas as coisas”. O sentido dessa proposição inscreve-se no contexto do
relativismo axiológico difundido pelos sofistas, por oposição à pretensa universalidade
dos valores defendida por Sócrates e posteriormente pelo seu discípulo, Platão.
O Homem de que nos fala o sofista Protágoras é definido em uma outra
proposição como um “animal dotado de razão”.
Gilbert Simondon apresenta uma tese sobre a técnica que o inscreve próximo do
“humanismo tecnológico”. Em defesa da sua tese, Simondon apresenta razões e
fundamentos.
Jacques Ellul, em contrapartida, desenvolve uma tese em defesa da autonomia da
técnica, apresentando argumentos para a sustentar.
O mesmo faz Martin Heidegger nas suas obras consignadas à técnica: na
tentativa de apreender a essência da técnica, parece ter encontrado no termo alemão
Gestell a resposta à sua questão. Para tal, Martin Heidegger também se socorre de
razões.
Afinal, quem tem razão? Será tudo relativo, como defendiam os sofistas ou deve
ser tomada a defesa de um partido em particular? Poderão ser aduzidas respostas
lineares e definitivas?
Parece indiscutível a asserção segundo a qual a técnica proporciona a adaptação
e a sobrevivência do homem e é tão antiga quanto o é a história da humanidade, sendo
mesmo “essencial à aventura do homem, antecedendo-o, de algum modo” como é
referido por J. Resina Rodrigues (Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia,
artigo sobre a Técnica). “No processo dito de hominização – prossegue J. Resina
Rodrigues – que vai do australopiteco ao homo sapiens, passando pelo homo habilis e
pelo homo erectus, surgem imbricadas a estatura vertical, a libertação da mão, uma
maior capacidade craniana e a utilização / criação de instrumentos”. De um modo
análogo, Dominique Bourg considera em O Homem Artifício que “sem técnica não há
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humanidade”. De acordo com este autor, será no meio dos utensílios e das
transformações do seu meio ambiente que o homem se produz a si próprio. O homem é
um animal tão fabricante quanto político ou falante. Em suma: Dominique Bourg
concede à técnica um lugar primordial e fundador da humanidade. Será fazendo que o
homem se faz. O autor fundamenta a sua tese defendendo, nomeadamente, a génese
técnica da linguagem. Considera que “a permanência e a universalidade do utensílio,
isto é, o facto do uso não se limitar a uma única sequência no tempo e no espaço,
pressupunha a universalidade do conceito e a permanência da palavra” (BOURG, op.
cit., p. 150). Defende, ainda, a ideia de uma “evolução paralela do utensílio e da
linguagem” e a sua relação dialética: “são os utensílios e a sua permanência, em
particular os utensílios que são símbolos, que teriam conduzido ao surgimento da
linguagem articulada, a qual, por seu lado, teria notável e inseparavelmente aumentado
as nossas possibilidades simbólicas e técnicas” (BOURG, op. cit., 150). Concluindo, “A
linguagem e, por conseguinte, a humanidade tal como a conhecemos extrairia a sua
origem da manipulação dos artefactos. (…) No fundamento do homem estaria a técnica”
(BOURG, D., O Homem Artifício, pp. 150-151). Deste modo, estará legitimada a
pretensão de Simondon em reconciliar cultura, humanidade e técnica.
Dominique Bourg pretende reabilitar a conceção antropológica e instrumental da
técnica, rebatendo a afirmação de Heidegger segundo a qual “a essência da técnica não
é técnica”, considerando, por exemplo, que o mito de Prometeu representa, entre os
gregos, a humanização da técnica.
Em relação à análise da essência da técnica produzida por Heidegger, “mesmo
que se lhe sinta o exagero, cremos que não se pode ignorar esta voz de profeta”, como
refere J. Resina Rodrigues (Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, artigo
sobre a Técnica). Com efeito, Heidegger chama a atenção para questões importantes
como as questões relativas ao sentido da vida e a destruição do ambiente em resultado
da emergência da técnica moderna como uma exigência à natureza de entregar ao
homem a sua energia acumulada, provocando-a.
Por fim, Jacques Ellul, refletindo sobre as consequências da tecnologia para a
vida humana, chama-nos a atenção para o perigo, real, na sua perspetiva, da técnica
tomar as rédeas do destino da humanidade, tornando-se autónoma.
No entanto, afiguram-se pertinentes as afirmações de Gilbert Simondon (Du
Mode D`Existence des Objects Techniques, p. 239) a este propósito, segundo a qual “os
objetos técnicos (no sentido primitivo ou enquanto fazendo parte de conjuntos técnicos)
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não se podem considerar “como realidades absolutas e existentes por eles mesmos”
dado que “ a sua tecnicidade não se compreende senão pela integração na atividade de
um operador humano ou o funcionamento de um conjunto técnico” ou ainda “a máquina
dotada de uma alta tecnicidade é uma máquina aberta que supõe o homem como
organizador permanente, como intérprete vivo das máquinas” (SIMONDON, op. cit., p.
11).
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BIBLIOGRAFIA
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Philosophy of Science, East Lansing (MI): Philosophy of Science Association, pp. 171-184, 1979
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ÍNDICE
AGRADECIMENTO........................................................................................................................2
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................3
PRIMEIRA PARTE
TECNOFILIA
CAPÍTULO 1 - GILBERT SIMONDON OU A HUMANIDADE DA TÉCNICA.......................................11
SEGUNDA PARTE
TECNOFOBIA
CAPÍTULO 1 - JACQUES ELLUL E O PERIGO DA AUTONOMIA DA TÉCNICA.................................18
CAPÍTULO 2 - MARTIN HEIDEGGER – TÉCNICA E OCULTAÇÃO DO SER.......................................27
EPÍLOGO.....................................................................................................................................46
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................................49
ÍNDICE........................................................................................................................................50
50