projeto memoria viva

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por Gilson Leão E sta crônica foi escrita no Jornal O Momento, em 27 de julho de 1978, pelo escritor e poeta Roberto Pimentel, em homenagem a uma das figuras mais carismáticas que já vi- veram em Cachoeiro de Itapemirim, Helio Coelho da Costa - o Coelhaço. Precocemente falecido aos 43 anos de idade, Coelho era bancário de profissão e artista de nascença.Sua presença era tão cativante que em qualquer roda, em qualquer situação, ele logo tomava conta das conversas com seus casos pitorescos e COELHAÇO E ra assim que o chamava a maioria das pessoas que o conhecia – e o certo é que o nosso Helio Coelho da Costa era uma pessoa realmente superlativa – principalmente no que dissesse respeito a sua filosofia de vida. Simpático de físico e na personalidade, alto e espigado, pele car- regada na cor, um certo ar de intelectualidade conferido pelos óculos de aro fino, Coelho tinha o raro dom de cativar pessoas, de estalo. Conhecí pouca gente com seu poder de imediata comunicação, um dom inato que ele exercitava gratuitamente, passeando uma simpatia tão natural quanto fascinante, por todos os cantos desta cidade. Era um desses alegres tipos onipresentes, sempre alegre e divertido. Pouca gente frequentava tanta gente em tantos ambientes. Popularíssimo, amigo de pobres, médios e de ricos, satisfeito com a vida por uma questão de princípios, uma das coisas mais comuns em Cachoeiro era encontrar-se o Coelhaço no centro das atenções de uma festa, grace jando e fazendo rir, his- toriando graciosamente fatos mais ou menos verdadeiros, pintando de uma graça só dele os acontecimentos mais tempestuosos. E , talvez justamente por isto, lia e relia toda a obra de Jorge Amado, porque as ficções do au- tor baiano eram a realidade de sua própria vida, poetizando as situações mais dramáticas, transformando os heróis de seus livros em personagens capazes de descomplicar a vida, o que ele, Coelho, sempre soube fazer com um talento de mestre, só que como personagem. Sem lenço e sem documento, detestando compromissos de horários certos, talvez porque qualquer hora fosse boa para se fazer de tudo. Coelho não curtia desamores, nem desforras, nem ódios. Não destilava venenos por andar distante de complexos e frustações, afinal, sempre soube viver bem a sua vida. C oerente consigo mesmo, dono de um mundão de amizades, certamente a pessoa mais conhecida des- ta cidade, não há quem tenha visto o Coelho amargando uma infelicidade, por mínima que fosse. Nenhum fu- racão, nenhuma epidemia, nenhuma tragédia poderia abalar a sua convicção de que viver já era, em sí, um ato de alegria, e amanhã ou mesmo daqui a pouco, have- ria sempre uma roda de amigos e um violão. E haveria música para cantar e uma caixa de fósforos, e haveria um copo para bicar devagarzinho, e haveria um baú de histórias inesgotáveis e engraçadíssimas para desfiar noite adentro, carregando jocosamente nas tintas. Driblando os problemas da vida, Coelho também gos- tava de futebol. De uma experiência semi-profissional no sul de Minas, ficara-lhe a capacidade de dominar e prender a bola, a pose atlética do zagueiro de área, que se compunha elegantemente em campo, ainda que o jogo não passasse de uma pelada despretensiosa, sem maiores consequências. Eta, o zagueiro Coelhaço! Mas, afora os prazeres da vida, no Banco do Brasil fun- cionava um Hélio responsável, bom funcionário e bom colega, amigo de todos, atuando como caixa executivo, trabalhando sério porque brincadeira não deixava de ser bom, e bom para todos os dias e noites do tempo, mas não em serviço. Ainda que não abdicasse de sua natural alegria. Pois bem. É este o Coelhaço que sempre conheci e ao qual se propõe a lembrança desta crônica. Vai daí que encontro, um outro dia, um Helio Coelho sério e compenetrado, que me fala vagamente em ir embora, talvez, não me recordo, porque algo bem acima de seus princípios e de sua filosofia de vida o determinava. Falou-me da esposa Lurdinha, excelente companhei- ra, dos filhos Alessandro, Henrique e Helinho, da mãe Alquimena, flamenguista doente e simpaticíssima. Fa- lou-me da família, dos amigos e desta cidade, mas, tinha de ir. Existia, não sei bem, alguma coisa como que uma tragédia pessoal e impossível, sem controle, sem expli- cação. Se alguém o encontrou nesse dia, terá visto tam- bém, pela primeira vez, um Hélio sério e compenetrado. Mas terá percebido, como eu, um certo trejeito in- definível em seu ar de seriedade e compenetração? Algo assim só bastante para se perceber que, fosse para o lugar que fosse, o Hélio Coelho da Costa não iria mesmo abrir mão de seus princípios e de sua filosofia, e, com toda sua sabedoria de cracão de área, ia continuar dominando a bola, e ia cativar pessoas de estalo, e ia arranjar uma roda de amigos e um violão, e música para cantar, um copo para bicar devagarzinho, e ia desfiar as suas histórias in- críveis, inesgotáveis e engraçadíssimas. Não ia deixar, nunca, de ser o bom Coelhaço que todos conhecemos. imitações hilárias. Pimentel nos autorizou a republicar suas pala- vras como forma de mais uma vez homenagear um ser humano in- vejável e um amigo que só nos deixou boas lembranças. Brindo aos dois, Coelhaço e Pimentel, por sua verve, bom humor e inteligência. Tomei a liberdade de reproduzir a caricatura original mesmo sem conseguir decifrar sua autoria. Ela espelha de forma tão real ao nosso amigo Coelho, com sua caixinha de fósforos, que não poderia ficar de fora. Charge original publicado em O Momento - por Roberto Pimentel gileao57@gmail.com

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por Gilson Leão

Esta crônica foi escrita no Jornal O Momento, em 27 de julho de 1978, pelo escritor e poeta Roberto Pimentel, em

homenagem a uma das figuras mais carismáticas que já vi-veram em Cachoeiro de Itapemirim, Helio Coelho da Costa - o Coelhaço. Precocemente falecido aos 43 anos de idade, Coelho era bancário de profissão e artista de nascença.Sua presença era tão cativante que em qualquer roda, em qualquer situação, ele logo tomava conta das conversas com seus casos pitorescos e

COELHAÇOEra assim que o chamava a maioria das pessoas que o conhecia – e o certo é que o nosso Helio

Coelho da Costa era uma pessoa realmente superlativa – principalmente no que dissesse respeito a sua filosofia de vida. Simpático de físico e na personalidade, alto e espigado, pele car-regada na cor, um certo ar de intelectualidade conferido pelos óculos de aro fino, Coelho tinha o raro dom de cativar pessoas, de estalo. Conhecí pouca gente com seu poder de imediata comunicação, um dom inato que ele exercitava gratuitamente, passeando uma simpatia tão natural quanto fascinante, por todos os cantos desta cidade.Era um desses alegres tipos onipresentes, sempre alegre e divertido. Pouca gente frequentava tanta gente em tantos ambientes. Popularíssimo, amigo de pobres, médios e de ricos, satisfeito com a vida por uma questão de princípios, uma das coisas mais comuns em Cachoeiro era encontrar-se o Coelhaço no centro das atenções de uma festa, grace jando e fazendo rir, his-toriando graciosamente fatos mais ou menos verdadeiros, pintando de uma graça só dele os acontecimentos mais tempestuosos.

E, talvez justamente por isto, lia e relia toda a obra de Jorge Amado, porque as ficções do au-tor baiano eram a realidade de sua própria vida, poetizando as situações mais dramáticas,

transformando os heróis de seus livros em personagens capazes de descomplicar a vida, o que ele, Coelho, sempre soube fazer com um talento de mestre, só que como personagem. Sem lenço e sem documento, detestando compromissos de horários certos, talvez porque qualquer hora fosse boa para se fazer de tudo. Coelho não curtia desamores, nem desforras, nem ódios. Não destilava venenos por andar distante de complexos e frustações, afinal, sempre soube viver bem a sua vida.

Coerente consigo mesmo, dono de um mundão de amizades, certamente a pessoa mais conhecida des-

ta cidade, não há quem tenha visto o Coelho amargando uma infelicidade, por mínima que fosse. Nenhum fu-racão, nenhuma epidemia, nenhuma tragédia poderia abalar a sua convicção de que viver já era, em sí, um ato de alegria, e amanhã ou mesmo daqui a pouco, have-ria sempre uma roda de amigos e um violão. E haveria música para cantar e uma caixa de fósforos, e haveria um copo para bicar devagarzinho, e haveria um baú de histórias inesgotáveis e engraçadíssimas para desfiar noite adentro, carregando jocosamente nas tintas. Driblando os problemas da vida, Coelho também gos-tava de futebol. De uma experiência semi-profissional no sul de Minas, ficara-lhe a capacidade de dominar e prender a bola, a pose atlética do zagueiro de área, que se compunha elegantemente em campo, ainda que o jogo não passasse de uma pelada despretensiosa, sem maiores consequências. Eta, o zagueiro Coelhaço!Mas, afora os prazeres da vida, no Banco do Brasil fun-cionava um Hélio responsável, bom funcionário e bom colega, amigo de todos, atuando como caixa executivo,trabalhando sério porque brincadeira não deixava de ser bom, e bom para todos os dias e noites do tempo, mas não em serviço. Ainda que não abdicasse de sua natural alegria.

Pois bem. É este o Coelhaço que sempre conheci e ao qual se propõe a lembrança desta crônica. Vai daí que encontro, um outro dia, um Helio Coelho sério e compenetrado, que me fala vagamente em ir embora, talvez, não me recordo, porque algo bem acima de seus princípios e de sua filosofia de vida o determinava. Falou-me da esposa Lurdinha, excelente companhei-ra, dos filhos Alessandro, Henrique e Helinho, da mãe Alquimena, flamenguista doente e simpaticíssima. Fa-lou-me da família, dos amigos e desta cidade, mas, tinha de ir. Existia, não sei bem, alguma coisa como que uma tragédia pessoal e impossível, sem controle, sem expli-cação. Se alguém o encontrou nesse dia, terá visto tam-bém, pela primeira vez, um Hélio sério e compenetrado. Mas terá percebido, como eu, um certo trejeito in-definível em seu ar de seriedade e compenetração? Algo assim só bastante para se perceber que, fosse para o lugar que fosse, o Hélio Coelho da Costa não iria mesmo abrir mão de seus princípios e de sua filosofia, e, com toda sua sabedoria de cracão de área, ia continuar dominando a bola, e ia cativar pessoas de estalo, e ia arranjar uma roda de amigos e um violão, e música para cantar, um copo para bicar devagarzinho, e ia desfiar as suas histórias in-críveis, inesgotáveis e engraçadíssimas. Não ia deixar, nunca, de ser o bom Coelhaço que todos conhecemos.

imitações hilárias. Pimentel nos autorizou a republicar suas pala-vras como forma de mais uma vez homenagear um ser humano in-vejável e um amigo que só nos deixou boas lembranças. Brindo aos dois, Coelhaço e Pimentel, por sua verve, bom humor e inteligência. Tomei a liberdade de reproduzir a caricatura original mesmo sem conseguir decifrar sua autoria. Ela espelha de forma tão real ao nosso amigo Coelho, com sua caixinha de fósforos, que não poderia ficar de fora.

Charge original publicado em O Momento -

por Roberto Pimentel

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