princípio da afetividade - convivencia familiar
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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
AVE SEM NINHO: O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Alcyvania Maria Cavalcante de Brito Pinheiro
Fortaleza - CE Setembro, 2009
ALCYVANIA MARIA CAVALCANTE DE BRITO PINHEIRO
AVE SEM NINHO: O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado em Direito Constitucional – da Universidade de Fortaleza, como requisito para a obtenção do grau de mestre em Direito Constitucional, sob a orientação da Profª Drª Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça
Fortaleza - Ceará 2009
___________________________________________________________________________
P654a Pinheiro, Alcyvania Maria Cavalcante de Brito.
Ave sem ninho : o princípio da afetividade no direito à convivência familiar /
Alcyvania Maria Cavalcante de Brito Pinheiro. - 2009.
101 f.
Dissertação(mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009.
“Orientação: Profa. Dra. Maria Lirida Calou de Araújo e Mendonça.”
1. Direito de família. 2. Afetividade. 3. Família. I. Título.
CDU 347.6
________________________________________________________________________
ALCYVANIA MARIA CAVALCANTE DE BRITO PINHEIRO
AVE SEM NINHO: O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça
UNIFOR
_____________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Tarciso Leite
UECE
______________________________________________________
Prof. Dr. José Julio da Ponte Neto
UNIFOR
Dissertação aprovada em: __________/__________/__________
Àquele que me chamou à vida e a todos que, de algum modo, participaram da minha história me fazendo chegar à concretização deste trabalho, mas, de uma forma especial, aos meus pais (Alcy e Evania), os quais, profundamente conhecedores e adeptos das palavras teresianas “quem ama não sabe calcular”, não economizaram no amor que me deram e dão a cada dia. Ensinaram-me, assim, que é preciso nunca perder a esperança no homem e a crer que ele sempre poderá ser uma pessoa melhor. Com seu jeito acolhedor, alegre, comprometido e responsável de viver formaram-me no conceito de que “onde não houver amor, devo colocar amor e, assim, colherei amor”. Com isso, juntamente com meus filhos e irmãos, estão comigo para o que der e vier, apoiando-me sempre em todas as minhas decisões, colaborando para tornar reais os meus sonhos e mais feliz a minha vida.
AGRADECIMENTOS
Àquele que, por amor e para o amor, me chamou à vida, e, não se contentando
em me criar, salvar e fazer feliz, ainda me presenteou com os tesouros mais valiosos:
família, amigos, uma vocação e a capacidade de amar e acolher. Por cada pequeno,
belo e valioso detalhe da minha história, bendito seja Deus!
A meus pais, Alcy e Evania, que além de terem me criado amando a Igreja
Católica, me ensinaram o significado de investir a vida e os talentos na construção do
bem comum. Por cada exemplo de vida e abraço consolador, benditos sejam meus
pais!
A meus filhos Suzana, Rubinho, Alcy Neto e Ruhama, que mergulharam comigo
neste sonho, impulsionando-me, com sua juventude doada, alegria, carinho e
compreensão, a transcender a cada dia no amor e acolhimento. Por cada olhar e
sorriso de gratidão que me faz ver que valeu a pena, benditos sejam meus filhos!
À minha mana e melhor amiga Cylviane, e a Petrus, meu cunhado-irmão, que
trazem em si o bom humor, próprio de quem tem esperança e capacidade para
acolher. Por cada momento de feliz convivência familiar e pelo sabor eterno do
cafezinho compartilhado em meio às gargalhadas ou choros, benditos sejam minha
irmã e meu cunhado!
Ao meu irmão e confidente Jorginho, que me empolga com seu amor à Divina
Vontade, à Filosofia e ao Direito, com quem aprendo, juntamente com minha
cunhada-irmã Jamile, que a afetividade torna o homem mais humano. Por cada
demonstração de leal amizade, benditos sejam meu irmão e minha cunhada!
À professora (de graduação, especializações e mestrado), orientadora e amiga,
Lírida Calou, presente de Deus em minha vida, a quem serei eternamente grata pela
atenção, docilidade e delicadeza com que me acolheu e adotou. Por ter se deixado
utilizar por Deus para me ensinar a servir e amar, bendita seja minha orientadora!
Aos meus formadores, Adília, Adalberto e Marilda, por me terem compreendido e
ensinado, enfim, que o amor se expressa em atos. Por mostrarem que o amor e o
afeto precedem a lei, benditos sejam meus formadores!
Ao Shalom, nas pessoas de Moysés e Emmir; à vovó Zezinha, aos irmãos,
sobrinhos, que acabaram prescindindo da minha presença por inteiro nesse tempo,
cujas horas de convívio foram tão limitadas; à Cinthia e Mano, por terem crido, amado
e ajudado incondicionalmente, e a todos os amigos que se tornaram para mim
verdadeiros irmãos. Por cada demonstração de afeto, de compreensão e de ânimo,
benditos sejam meus queridos, amigos e parentes afetivos!
À Católica, aos amigos que fiz no Mestrado, às crianças e adolescentes por
quem tenho estima especial, a cada pessoa que me ajudou a me conhecer melhor,
que caminhou e cantou ao meu lado, me enriquecendo com sua vida, coragem e
presença, nesse desenrolar de descobertas e superações. Por cada flor nos
Canteiros, benditos sejam os jardins!
A todos, meu coração grato e feliz.
RESUMO
AVE SEM NINHO: O PRINCIPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO A CONVIVÊNCIA FAMILIAR. Crianças e adolescentes são titulares de direitos fundamentais constitucionais e a doutrina jurídica da proteção integral a esses representa uma nova mentalidade. Assim sendo, é preciso que o Estado, a sociedade civil e a família unam-se e não meçam esforços para que de fato, e não apenas por previsão constitucional, estatutária e convencional, crianças e jovens sejam vistos como sujeitos de direitos juridicamente protegidos. Os avanços tecnológicos, culturais e biopsicossociais da humanidade, bem como as novas definições e formas de constituição das famílias possíveis, são fundamentais na apreensão da importância de lançar um novo olhar sobre o afeto, que tem ocupado um espaço cada vez mais significante nas possibilidades de efetivação do constitucional direito à convivência familiar. Esta é de fato e de direito a mola propulsora das famílias acolhedoras, cujo cerne encontra-se na abertura e disponibilidade para o outro, que mesmo não sendo seu parente consangüíneo, afim ou civil pode ser objeto de seu resguardo e acolhimento. Na persecução do objetivo de estudar sobre o princípio da afetividade nas novas famílias, sua fundamentalidade e importância no mundo jurídico, foram, pois, utilizados acervo bibliográfico, consultas de legislação e documentos oficiais, caracterizando o trabalho de cunho exploratório e interdisciplinar. Algumas observações foram realizadas em uma instituição que se propõe a impulsionar e ser um elo ao programa das famílias acolhedoras na cidade de Fortaleza, Ceará.
Palavras-chave: Afetividade. Afeto. Convivência familiar. Família acolhedora.
ABSTRACT
A BIRD WITHOUT A NEST: THE PRINCIPLE OF AFFECTIVITY AND THE RIGHT OF LIVING IN A FAMILY. This dissertation had as objective to identify the principle of affectivity on nowadays families‟ models. Among those models we observed the foster family as the one that not only is based on reception of an abandoned child, but also is one of the means that will make the right of a child being in a family happens. That is, the right of living in a family is mantained. The main hypothesis estates that affectivity is an essential factor of human being‟s development and it influences positively on those who had their family ties broken. The children who live in orphanates rarely return to their original home, but stay forgoten in shelters what takes us to the need of a better Foster care. The techniques utilized were analysis of brazilian legislation and oficial documents. Some observations were realized in an instituition that estimulates a Foster family program in Fortaleza, Ceara.
Key words: Affectivity. Affect. Family living. Foster family.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
1 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E A FORMAÇÃO DO HOMEM INTEGRAL ..... 20
1.1 O princípio normativo constitucional e sua localização na Constituição ....... 21
1.2 A Constitucionalização do Direito de Família ............................................... 26
1.3 O Princípio da afetividade no Direito de Família .......................................... 29
1.4 O vínculo afetivo na formação integral do homem ....................................... 35
1.4.1 As faculdades ou potências do ser humano ...................................... 36
1.4.2 A afetividade e a formação do homem integral ................................. 39
2 DO ABANDONO AO ACOLHIMENTO ................................................................. 43
2.1 O trajeto histórico da criança abandonada: do infanticídio às políticas de proteção ...................................................................................................... 44
2.2 A doutrina da proteção integral .................................................................... 57
3 O VÍNCULO AFETIVO NA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA ........... 65
3.1 Identificação da importância real do vínculo ................................................ 75
4 O VÍNCULO AFETIVO NAS FAMÍLIAS ACOLHEDORAS ................................... 78
4.1 Famílias acolhedoras .................................................................................. 78
4.2 A criança abandonada e a família acolhedora ............................................. 84
4.3 Implicações do abandono e do acolhimento ................................................ 87
4.4 O que é família e o direito à convivência familiar ......................................... 89
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 97
INTRODUÇÃO
Num mundo marcado pela violência urbana, doméstica, moral e social, onde a
principal vítima é a pessoa humana, exatamente aquele ser cuja vida e dignidade
deveriam ser promovidas e preservadas, percebe-se haver dessemelhanças entre
avanços materiais e biotecnológico-virtuais e o patrocínio dos valores e princípios que
realmente deveriam embasar a formação do homem e suas relações psicossociais.
A família, presente em todos os tempos da história da humanidade, nas suas
mais diversificadas formas de expressão e causas de agregação, não deixa de sofrer
as consequências do progresso da ciência, que por sua vez geram mudanças no
comportamento e na cultura. Assim, no alvorecer do século XXI começam a ser
fixadas novas maneiras de reagir à violência. Isto se dá pelos instintos naturais e
coordenados do ser humano de se defender da violência, que se caracteriza como
uma das causas mais desestruturantes da sociedade e consequentemente das
famílias.
O direito não poderia ficar de fora de tal conjuntura, afinal, sua dinamicidade está
exatamente em acompanhar as profundas alterações por que passa a humanidade,
de forma a buscar garantir uma melhor qualidade e dignidade na vida de seus
componentes. E mais, além de abarcar toda a complexidade social verificada em cada
tempo da história, o direito traz em si o condão de buscar interpretar e interligar todos
os eventos onde o homem encontra-se como partícipe. Isto ocorre lado a lado com as
mudanças e nuanças de cada tempo, embasado sempre na principiologia que alicerça
o direito, norteando ações, normatizando condutas.
Hodiernamente, não apenas a violência, mas também outros aspectos têm sido
observados como causadores de rupturas na vida familiar, principalmente nas famílias
menos favorecidas, que não decorrem só de separação judicial ou divórcio. A
pesquisa trabalha o afastamento da criança e do adolescente da família nuclear por
11
razões diversas, ficando à mercê do abrigo e solidariedade estatais ou de famílias
solidárias.
Ao escolher o tema de sua pesquisa no Mestrado em Direito Constitucional, da
Universidade de Fortaleza, UNIFOR, em 2006, foi inevitável que a autora optasse pelo
assunto desta dissertação face a estágios anteriores realizados em Juizado de
Menores, onde se deparou com questões de ordem sociojurídica envolvendo políticas
públicas voltadas para crianças e adolescentes. A prática desenvolvida junto a
instituições de cuidado, prevenção e amparo àqueles que, de alguma forma, se viam
impossibilitados de conviver com sua família de origem, isso quando as tinham,
despertou o interesse de conhecer mais de perto aquela realidade.
A análise de alguns casos conduziu a mestranda ao estudo do Princípio da
Afetividade, buscando descobrir a importância que o convívio entre familiares, amigos
e cuidadores tem na vida de uma pessoa, bem como as suas consequências jurídico-
sociais. Enfim, analisar como o referido princípio se desenvolve na convivência
familiar e comunitária conforme consignados em dispositivo constitucional (art. 227,
caput, CF/88) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 19 a 52).
Trabalha-se com instituições, associações ou organizações de caráter social,
religioso, filantrópico, entre outros,1 onde os menores são acolhidos quando se
encontram em situação de risco ou abandono, situação que contradiz com a proteção
garantida pela Constituição Federal, no que diz respeito à família e sua finalidade.
Atualmente, tem-se verificado o interesse pela “desinstitucionalização”,
buscando meios de substituir o sistema de abrigamento em orfanatos, creches, casas
de reparação, demais instituições, por programas por meio dos quais o governo
assuma a tutela de crianças abandonadas ou em situação de risco, em parceria com
famílias selecionadas e treinadas para cuidar de tais crianças, como se fossem “seus
filhos”. A experiência narrada levou a autora a buscar resposta para algumas
indagações como:
1 Para Aurélio Buarque de Holanda Ferreira o termo instituição significa associação ou organização de caráter social, religioso, filantrópico, etc., ou seja, institucionalizar seria, portanto, dar ou adquirir o caráter de instituição, que é o conjunto das estruturas sociais estabelecidas, especialmente as relacionadas com a coisa pública FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6. ed. rev. atual. Curitiba: Posigraf, 2004, p. 482.
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1. Pode-se considerar a afetividade e a convivência familiar como direitos
fundamentais?
2. Nas instituições estatais de acolhimento, os acolhidos e os acolhedores
desenvolvem afetividade capaz de substituir a que se observa naturalmente nas
famílias originárias?
3. O Princípio da Afetividade pode se desenvolver dentro e fora da convivência
familiar?
5. Como se efetivar tais direitos nas famílias acolhedoras?
A pesquisa desenvolvida para efetivação deste trabalho possui muitas
particularidades, as quais denotam a utilização do método exploratório-descritivo.
Assim, o presente estudo possui esta natureza. Através da exploração busca-se a
aproximação do tema com o objetivo de criar uma maior intimidade e familiaridade
com os fatos e fenômenos inerentes àquele. Na maioria das vezes esta aproximação,
com o fim da familiaridade, ocorre através da valoração de determinados fatores, os
quais permitiram à pesquisadora a demarcação da verdadeira importância do
problema, a situação em que se encontra no tempo oportuno as informações relativas
ao tal problema, bem como a revelação das novas fontes e experiências que foram
surgindo no decorrer do trabalho.
Sobre a pesquisa exploratória é importante recordar que, uma vez que procura
aprimorar idéias, ao mesmo tempo em que contribui com a formulação de novas
hipóteses para pesquisas posteriores e servindo de embasamento para sua
realização, esta é considerada passo inicial de toda e qualquer pesquisa.2 Núbia
Bastos assegura que:
Os estudos exploratórios limitam-se a definir objetivos e buscar maiores informações sobre o tema em questão. Recomenda-se pesquisa exploratória quando há poucos conhecimentos sobre o problema a ser estudado. Possui planejamento flexível, em geral, levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas experientes, análise de exemplos que têm a mesma natureza e observação informal.
3
2 BASTOS, Núbia Maria Garcia. Introdução à metodologia do trabalho acadêmico. 4. ed.
Fortaleza: Nacional, 2007, p.43. 3 Ibid., 2007, p. 44
13
A utilização da descrição se dará partindo do entendimento que descrever
significa dizer como algo é constituído em seus mais íntimos detalhes, ou seja, fazer
um levantamento das características conhecidas, componentes do
fato/fenômeno/problema escolhido. E tudo isso é algo que normalmente ocorre como
uma sequência do primeiro momento de aproximação realizado pela pesquisa
exploratória, que tem natureza de cunho fenomenológico, reflexivo e interpretativo.
Este estudo disporá, em termos de bibliografia, de um não tão grande número de
material de pesquisa, na área jurídica, voltado para as famílias acolhedoras, enquanto
uma possibilidade de promoção do fundamental direito à convivência familiar e
comunitária. Sobre isso é importante inferir que, não obstante não se tratar de algo
novo no Brasil, não há muita produção científica, principalmente no sentido de
abordagem acerca da família acolhedora ou mesmo substituta aos moldes do que se
pretende alcançar em termos de efetivação de alguns princípios constitucionais, como
o da afetividade o da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse do menor.
Por esta razão é que o trabalho é de natureza interdisciplinar e se volta para a
construção do pensamento e busca de progresso dentro deste conhecimento a partir
dos questionamentos levantados e observações pertinentes ao estudo.
Para este estudo são utilizadas literaturas e produções científicas de vários
autores que escrevem sobre família, sua historicidade, sobre afeto e afetividade,
abandono e acolhimento, sobre o próprio homem e seus direitos fundamentais, sua
dignidade como pessoa humana, dentre demais aspectos.
Não se dará maior relevância ou preferência às informações ditas teóricas,
aquelas que trazem pensamentos de autores, debates científicos ou teoria, nem às
chamadas empíricas, que tratam de um problema constitucional específico, uma
questão social ou econômica, ou seja, não será privilegiado o trabalho teórico puro
nem o empirismo descritivo puro. Neste sentido, conforme o que diz Michel Beaud,4
considerar-se-á que o conhecimento é movimento por meio do qual são utilizados
“instrumentos ideais” (teóricos, conceituais, científicos) para ler, interpretar, analisar
uma realidade; e nesse trabalho sobre a realidade será buscado o aprimoramento,
elaboração e aperfeiçoamento dos “instrumentos ideais” existentes.
4 BEAUD, Michel. Arte da tese: como preparar e redigir uma tese de mestrado, uma monografia ou
qualquer outro trabalho universitário. Tradução de Glória de Carvalho Lins. 3. ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 62.
14
Além dos livros foram, também, pesquisados periódicos e material da internet
previamente selecionados. Não sendo, também, desconsiderados os registros e
relatos de experiências de famílias que acolheram em seus lares filhos de outras
famílias, mesmo que de modo informal ou sem o devido e necessário
acompanhamento técnico e legal.
A hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur5 norteará a pesquisa abordada,
visto ser o modelo de compreensão através do qual podemos entender o significado
da experiência vivida. De fato Ricoeur propõe, em seu processo interpretativo, não
uma interpretação da intenção do autor, mas a compreensão do sentido do texto, o
qual faz analogia à experiência de vida, promovendo, assim, um conhecimento
intersubjetivo.6 O intuito é tentar compreender aquilo que se encontra nas entrelinhas,
capturando, assim, a experiência vivida pelo próprio sujeito, a partir do que diz, bem
como daquilo que demonstra sentir.
Assim, com base na literatura especializada e conforme a adequação às
especificidades desta investigação, decidiu-se, no desenvolvimento do trabalho,
seguir as etapas metodológicas apropriadas para obtenção de melhores resultados
em termos de literatura peculiar dos direitos fundamentais.
No decorrer da pesquisa foram realizadas visitas à Casa Santa Gianna Beretta
Molla, um abrigo para crianças abandonadas, vítimas de violência, orfandade ou
desordem familiar. Trata-se de uma casa inserida no Projeto de Promoção Humana
da Comunidade Católica Shalom, a qual se encontra, ainda, na vivência de sua
gênese como programa de convivência familiar e comunitária.
5 Paul Ricoeur foi um pensador comprometido, militante e profundamente cristão, Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, estabeleceu uma ligação entre a fenomenologia e a análise contemporânea da linguagem através da teoria da metáfora, do mito e do modelo científico. Estudou e escreveu muito sobre a maneira como a realidade de uma pessoa é configurada por sua percepção de eventos no mundo. Seu conceito da ação que segue e permanece como legado humano é uma de suas grandes contribuições à filosofia. Após 1989 e os acontecimentos da queda do socialismo real que mudaram a face da terra, Paul Ricoeur voltou ao proscênio do debate filosófico francês com sua reflexão centrada sobre a pessoa, a alteridade, a solicitude e as instituições justas. Mas, sobretudo, sua filosofia moral encontrou poderoso eco no pensamento atual ao abrir a possibilidade de refletir e agir por si mesmo, ou mais exatamente, como diz o belo título de uma de suas grandes obras, “Si mesmo como um outro”. BINGEMER, M.C.L. Paul Ricoeur por Maria Clara Lucchetti Bingemer, 2005. Disponível em: <http://www.voltairenet.org/article125537.html>. Acesso em: 20 jan. 2009.
6 CAPRARA, A.; VERAS, M.S.C. Hermenêutica e narrativa: a experiência de mães de crianças com epidermólise bolhosa congênita: uma análise das narrativas. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9,
n.16, p.131-146, set. 2004/fev.2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n16/v9n16a11.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2008.
15
Para orientar este trabalho levantaram-se informações junto à Secretaria de
Ação Social do Estado do Ceará (SAS), à Fundação dos Serviços Sociais do Estado
do Ceará (FUSESCE), à Fundação de Assistência às Favelas da Região
Metropolitana da Fortaleza (PROAFA), à Fundação Estadual do Bem-estar do Menor
do Ceará (FEBEMCE) e à Coordenadoria Estadual da Defesa Civil.
Essas informações servem de norte para as compreensões acerca do programa
famílias acolhedoras no Estado do Ceará. Este é um programa que é gerado e deve
ser alimentado junto à Secretaria da Ação Social, mas não sem a parceria
imprescindível da sociedade, visto que serão as famílias que de fato irão acolher as
crianças no seu seio. Daí o nome famílias acolhedoras e não simplesmente instituição
acolhedora. Mas sua existência, como uma das formas de promover o direito à
convivência familiar, deverá estar necessariamente conectada às famílias já
existentes, as quais abrirão as portas de sua casa para deixar entrar, em caráter
provisório, aquelas crianças que, vitimadas pelas circunstâncias alheias à sua
vontade, acabaram perdendo, ainda que temporariamente, o elo com sua família de
origem.
O homem não é uma ilha. Assim, para não ficar desconectada, a criança será
colocada numa família previamente cadastrada e selecionada, com um
acompanhamento profissional, inclusive para tentar manter o vínculo familiar, quando
possível e indicado, de forma que tenha aquele sentimento de pertença que dá
segurança e motivação para a vida, bem como força para superar dores, desafios e
adversidades.
A convivência familiar é o ponto para o qual se convergem as suposições e
justificativas constantes deste estudo, no sentido de que a afetividade poderá ser
efetivada no convívio e relação entre membros de uma família ou entidade familiar.
Partindo-se do pressuposto que a afetividade seja um direito fundamental, passa a ser
dever do Estado a sua eficácia. Utilizar-se-á a experiência da mestranda como aluna
do Curso de Serviço Social, durante o qual se debruçou sobre estudos a respeito do
homem e de suas mais distintas relações com a sociedade em que vive
especialmente as crianças e adolescentes que, de alguma forma, ocupam um lugar
especial na sociedade em que vivem.
16
Crianças estas, na maioria dos casos, em situação de conflito ou desordens na
convivência com o grupo familiar, seja por violência, abandono, orfandade ou outros
fatores que ocasionavam sua exclusão do convívio na família de estirpe. Em muitos
momentos eram necessários o acompanhamento e visitas regulares e contínuas aos
núcleos residenciais de algumas crianças e adolescentes. Lá se observava que
algumas crianças eram detentores de cuidados e providência, mesmo em meio ao
desconforto, à desordem familiar, às carências materiais, dentre outros.
Constatou-se que aquelas que de alguma forma eram alvo de cuidados, mais
adiante apresentavam menores dificuldades e problemas com relação à afetividade e
demonstravam que, provavelmente, conseguiriam desenvolver relacionamentos
futuros mais tranquilos. Afirma-se isto pelas demonstrações observadas, como o fato
de pegar outras crianças no colo, oferecer ajuda, brincadeiras, comportamento que
exprimia a partilha, de comida, por exemplo, tudo isso manifestando a existência do
vínculo afetivo positivo.
Observou-se, que nem sempre é possível a mantença da criança e do
adolescente em sua família nuclear. Assim é que surge a modalidade acolhimento,
indicada nas situações em que há recomendação para a retirada da criança ou jovem
do lar para uma colocação temporária em uma família substituta, ou família
acolhedora, termo que será utilizado com mais frequência ao longo deste estudo.
Analisaram-se os aspectos jurídicos inerentes às pessoas que se envolvem
nesse encadeamento de relações, bem como no tocante à observação quanto à
dignidade dessas pessoas e à forma como sua vida tem sido promovida e
desenvolvida. Seja no antigo Juizado de Menores ou no atual Juizado da Infância e da
Juventude, seja em casas de acolhimento ou em instituições estatais de apoio e
acolhimento a crianças e adolescentes, seja em famílias acolhedoras, seja em
estabelecimentos provisórios de cuidado da infância, qualquer que seja o local onde
se verificam situações que saem daquilo previsto como ordem natural das coisas,
sempre se verificará confronto com realidades que se sabe não ser o ideal para o
homem.
O primeiro capítulo abre a discussão, apresentando o Princípio da Afetividade,
aborda conceitos e definições que tem justificado sua atual estima na sociedade
17
contemporânea, bem como sua fundamentalidade e inserção como ponto de
considerável valor no direito de família e nas relações verificadas nas entidades
familiares. Apresenta o afeto e o Princípio da Afetividade como fatores precípuos na
formação das faculdades do ser humano, que devem permanecer em evidência não
apenas neste tempo, em que se vive a era da valorização dos vínculos afetivos nos
laços de família em grau bem superior aos vínculos biológicos. Apontando, ainda, a
afetividade como fator primordial para a convivência e desenvolvimento de relações
saudáveis, que implicam numa sociedade mais sadia em todos os aspectos, uma vez
que formada por famílias e pessoas equilibradas ou em vistas de alcançar o
necessário equilíbrio de quem se sente corresponsável pela construção do novo e
vive, de alguma forma, a real dignidade de pessoa humana.
Em seguida, o segundo capítulo oferece um suporte teórico acerca da trajetória
social da criança e adolescente abandonados no Brasil. Infere-se que a compreensão
que se tem atualmente acerca da infância como uma fase fundamental e significativa
do desenvolvimento do indivíduo e, por isso mesmo, merecedora de uma atenção
especial no ordenamento jurídico, nem sempre ocupou tal grau de importância, mas
foi e tem sido algo que vem evoluindo com o passar dos séculos.
A história da criança, marcada por fatores como descuido, desinteresse ou
negligência, acaba por demonstrar a falibilidade das modalidades de abrigamento que
vem ocorrendo, bem como a vital necessidade de efetivação de políticas públicas
voltadas para a materialização dos princípios constitucionais. De uma maneira geral,
este é um assunto que naturalmente sensibiliza muitas pessoas, pelo fato inicial da
remissão a sentimentos e pensamentos acerca de questões de ordens humanas e
sociais, como abandono, acolhimento, doação, circulação,7 institucionalização de
crianças, bem como sobre as situações em que ficam as famílias envolvidas nesse
tipo de situação.
7 FONSECA, Cláudia. Da circulação de crianças à adoção internacional: questões de pertencimento e posse. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 13, jan./jun. 2006. Neste trabalho a autora explica
que a utilização desse termo “circulação” pretende indicar o fenômeno da transferência de uma criança entre famílias, ou seja, o fato dos pais se depararem com situações em que até sua sobrevivência se encontra ameaçada acaba gerando a necessidade de recorrer à ajuda da família ampliada ou pessoas amigas que aceitem receber suas crianças. Percebe-se que esse feito é algo que acontece principalmente nas classes mais populares. Assim, o fato de uma criança passar parte de sua infância ou juventude em casas que não são as de seus pais coloca-nos diante do que a Autora chama de circulação. Isso pode se dar tanto através de guarda temporária como de adoção propriamente dita.
18
O terceiro capítulo apresenta o vínculo afetivo na convivência familiar como um
fator preponderante na definição de padrões comportamentais do indivíduo que, ao
ser vítima social de abandono, deverá tornar-se alvo de políticas promotoras de sua
dignidade de pessoa humana. Apresenta-se a necessidade de um sistema alternativo
de abrigamento que lhes assegure, dentre outros fatores, o desenvolvimento de laços
de afeto e com ele reais possibilidades de um desenvolvimento biopsicossocial
compatível com os direitos fundamentais que são largamente dispostos no artigo 227
da Constituição Federal do Brasil. Faz-se neste capítulo uma sinalização acerca da
observância do Princípio da Afetividade nas famílias acolhedoras.
O que se constata no decorrer da pesquisa e no estudo da doutrina brasileira
sobre a infância e a juventude é que diante das situações que geram um desequilíbrio
estrutural na formação da criança, vítima de violência familiar, abandono ou morte dos
genitores, surgem os programas de acolhimento familiar como uma das respostas à
necessidade de efetivação do direito à convivência familiar.8 Essa percepção será
discutida ao longo do quarto capítulo.
Em seguida, no quarto capítulo, cujo tema é famílias que acolhem e convivem,
recorre-se à psicologia e à psiquiatria para apresentar o fato concreto de que, com a
convivência em família, ainda que não seja a sua de origem, a criança desenvolverá
vínculos afetivos, pois será alvo de “cuidados” e “acolhimento”. Assim, as lacunas
estabelecidas pela falta de afeto, atenção e intimidade entre o filho e a mãe, relação
primordial, visto que o papel do pai aparece, de forma secundária, acabam sendo, de
alguma forma, preenchidas em tais convivências. Dessa forma, vai sendo tecida uma
maneira alternativa, na qual a dignidade da pessoa humana9 poderá prevalecer em
vez de sucumbir diante das intempéries com que foi surpreendido o indivíduo em seus
primeiros anos de vida. Assim, afirma-se que o afeto, a afetividade, a convivência
8 O direito à convivência familiar e comunitária é um direito fundamental e encontra-se previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227 e na Lei no. 8.069, de 13-7-1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), artigos 19 a 52. As famílias acolhedoras, como uma das respostas, inclusive em caráter excepcional, ao direito à convivência familiar, são precedidas pela família de origem (ou nuclear) e família substituta (também medida excepcional, somente admissível na modalidade de adoção; ECA, art. 31).
9 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 25.
Pela estreitíssima relação que há entre dignidade, vida e humanidade, durante o desenvolvimento desse estudo seguiremos o entendimento de que ainda que a dignidade da pessoa humana não seja tratada de forma expressa no texto, encontrar-se-á latente e pressuposta em tudo o que diz com a essência do ser humano.
19
familiar, o cuidado, dentre outros, serão mais tarde responsáveis pelo crescimento na
harmonia e equilíbrio social.
Destarte, partindo dessa experiência primeira, a pesquisadora sentiu-se
instigada a tentar compreender como o Estado estaria contribuindo com a efetivação
desse direito à convivência familiar, visto tratar-se de direito fundamental, que deve
ser protegido e, como tal, ter a sua concretização motivada e a sua eficácia
assegurada. Da mesma forma, realizando uma pesquisa interdisciplinar, sustentará a
importância e fundamentalidade do Princípio da Afetividade como uma presença
inevitável à dignidade da pessoa humana, cujos efeitos se efetivam na própria
formação integral do homem.
1 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
É preciso amor pra poder pulsar É preciso paz pra poder seguir, É preciso a chuva para florir. Cada um de nós compõe a sua história. Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, E ser feliz.
(Almir Sater e Renato Teixeira)
A definição de princípios torna-se necessária para uma melhor compreensão da
real importância do Princípio da Afetividade. Isto se dá para que se alcance uma
aproximação, a mais real possível, do que seja a afetividade. Assim, faz-se necessário
que, precipuamente, busque-se a captação acerca da conceituação de princípio, pela
razão que este é o ponto de partida para a apreensão de seu sentido legal.
Ademais, será imprescindível a compreensão do afeto, de sua definição sob os
mais distintos aspectos em que se verifica sua presença, como direito da
personalidade e princípio jurídico, assim como as consequências e repercussões da
sua ausência, principalmente no contexto inerente ao direito de família.
Paulo Bonavides1 compreende que os princípios corporificam, na ordem jurídica,
os valores supremos ao redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as
competências de uma sociedade constitucional, sendo, desta forma, enquanto
valores, a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos
constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.
Para Celso Antonio Bandeira de Mello violar um princípio é bem mais sério e
grave do que transgredir uma norma, pois ao ignorá-lo ofende-se não apenas a um
mandamento obrigatório, mas desconsidera-se todo o sistema de comando. Segue
este Autor inferindo que
1 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 289.
21
Princípio é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
2
1.1 O princípio normativo constitucional e sua localização na Constituição
A partir de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil, quando, então, é implantada uma nova ordem constitucional no
Direito, levantaram-se olhares atentos a respeito das normas jurídicas, principalmente
as de estatura constitucional. Em conformidade com Guilherme Calmon Nogueira da
Gama3, na atualidade, os princípios ganharam importante reconhecimento quanto à
sua força normativa e, inúmeras vezes, devem as questões ser solucionadas à luz da
principiologia e das técnicas de interpretação e aplicação das normas a ela referentes,
o que exige maior trabalho por parte do jurista.4
Com o intuito de enxergar a afetividade como um princípio fundamental e o
direito à convivência familiar, da mesma forma, como uma norma a ser observada e
garantida, é que se vai buscando delinear sua compreensão e inserção no âmbito
constitucional e civil. Reconhecendo a extrema importância do estudo sobre as
noções de valor e de princípio, Paulo Lôbo infere que este se encontra num grau de
concretização maior do que aquele, bem como enfatiza que os princípios e as regras
são espécies de normas jurídicas. Sendo assim, a distinção entre princípios e regras
toma como base o conteúdo semântico de tais normas e, consequentemente, seu
modo de incidência e aplicação. 5
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
3 Guilherme Calmon é Juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal, é mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ex-Juiz de Direito do Estado de São Paulo, ex-Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Na apresentação de sua obra Princípios Constitucionais de Direito de Família, infere que qualquer norma jurídica no Direito de Família brasileiro exige, com muito mais vigor que em qualquer época anterior, a presença de fundamento de validade constitucional, com base na combinação de princípios constitucionais da isonomia dos filhos e do pluralismo dos modelos familiares com o fundamento da dignidade da pessoa humana.
4 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito da família: guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008, p. 65.
5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
22
O princípio da dignidade da pessoa humana é entendido por vários autores,
como Ingo Sarlet6, como sendo o princípio constitucional de maior hierarquia
axiológico-valorativa. Ao longo deste trabalho considera-se que é no referido princípio
que a afetividade encontra seu embasamento ou a justificativa de possuir o status
constitucional de ser considerado um princípio fundamental, assim como de ser, como
se verá oportunamente, também, um princípio específico do direito de família.
Por esta razão, ainda que não seja este o teor do estudo ou a ocasião cabível
para seu aprofundamento e considerando já se tratar de tema por demais abordado e
conhecido, impende mencionar que se abraça a doutrina que enxerga as normas
jurídicas (e constitucionais) como gênero que se classificam em princípios e regras.
Assim, enquanto a regra aponta o suporte fático hipotético mais determinado e
fechado, o princípio indica suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e
aberto. Sobre isto Gama segue resumindo que:
A regra é aplicada pela técnica da subsunção, ou seja, com a concretização na realidade dos fatos da hipótese de incidência (ou suporte fático hipotético), o aplicador reconhece a incidência da regra. O princípio, por sua vez, depende da mediação concretizadora do intérprete, orientado pela observância da equidade, ou a „justiça do caso concreto‟ [...].
7
A Constituição é um documento jurídico, um sistema de normas. Luis Roberto
Barroso, no tocante a este assunto, ensina que as normas constitucionais são
espécies do gênero normas jurídicas, das quais conservam seus atributos essenciais,
como a imperatividade. Em outras palavras, o direito constitucional, como os demais
ramos da ciência jurídica, busca a sua realização, existe para realizar-se, almeja à
efetividade.8 Destarte, nada mais justo do que buscar a efetividade do Princípio da
Afetividade e do direito à convivência familiar. O que carece, contudo, de prévia
compreensão do seu significado.
Em conformidade com Flávia Piovesan, o reconhecimento dos valores
concernentes à pessoa humana faz parte das profundas modificações e
transformações que surgiram no direito constitucional ocidental, desde o final da
6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.74.
7 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, op. cit., 2008, p. 64.
8 BARROSO, Luis Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.202.
23
Segunda Guerra Mundial, quando se inicia a busca de reconstrução dos direitos
humanos. Iniciou-se a era de elaboração de textos constitucionais abertos a
princípios, dotados de subsídios axiológicos. Afirma a Autora que, não obstante ter
iniciado na década de 1940, somente em 1988 implanta-se um sistema constitucional
cuja pauta valorativa afeta à proteção do ser humano em suas mais vastas
dimensões, em tom nitidamente principiológico, a partir do reconhecimento de sua
dignidade intrínseca. Com este novo entendimento, o Direito Constitucional
transcende sua percepção de tradicional ramo político do sistema jurídico de cada
nação, passando, então, a ser seu principal referencial de justiça. 9
O Princípio da Afetividade, em que pese o fato de ser um princípio implícito e
não constar no catálogo de direitos fundamentais, possui fundamento constitucional,
principalmente quando se considera sua inerência ao ser humano. De fato, não
haveria algo mais pertinente à subjetividade do homem do que o sentimento de afeto,
a afetividade, a qual certamente faz parte do conceito de dignidade da pessoa
humana. Conforme André Ramos Tavares, o princípio da dignidade da pessoa
humana abarca também a capacidade de o Homem escolher seu próprio caminho,
efetuar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu
pensar e decidir. 10
Para Gustavo Tepedino em face da dignidade da pessoa humana ser um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme disposto no art 1º, inciso III,
da Constituição Federal de 1988, será exatamente este princípio, como valor
supremo, que deverá informar todas as relações jurídicas, bem como submeterá ao
seu comando a legislação infraconstitucional. Acrescenta, ainda, este autor, que o
princípio da dignidade humana é o “ápice do nosso ordenamento jurídico”. 11
Ressalte-se que, após a Constituição de 1988, assume um novo patamar o
sentido antropológico conferido aos princípios constantes das normas constitucionais
e infraconstitucionais, haja vista que se desperta para o explícito compromisso de
proteção ao ser humano e de seus valores coletivos, em suas várias possibilidades.
9 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 340-341.
10 TAVARES, Andre Ramos. Direito constitucional brasileiro concretizado: hard cases e soluções juridicamente adequadas. São Paulo: Método, 2006, p. 67.
11 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil - Constitucional brasileiro. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 47-48.
24
Com isso, o Direito Constitucional torna-se, a partir de então, mais aberto e
abrangente, convertendo-se, como infere Flávia Piovesan, em lastro não só das ações
e institutos tipicamente político-estatais, mas também no principal garantidor de
direitos fundamentais, em seu sentido holístico, de todos os cidadãos. 12
Para contribuir com a compreensão da importância deste tema, apresenta-se
adiante, a critério de ilustração, o “prefácio” à edição da Constituição de 1988, a qual
foi oficialmente lançada pelo Senado Federal e posteriormente retirada de circulação
pela impropriedade e natureza esdrúxula do texto. São os autores Paulo Bonavides e
Paes de Andrade que apontam como sendo o ponto culminante do elogio da nova
Constituição, feito pelo Deputado Ulisses Guimarães, a qual se intitula “A Constituição
Coragem”.
O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Geograficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança, é a Constituição Cidadã. Cidadão é o que ganha, come, mora, sabe, pode se curar. A Constituição nasce do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do Governo e a administração dos impasses. O Governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo. Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competência para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos. É a Constituição Coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei. A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevive para o povo e a dignidade, a liberdade e a justiça.
13
A razão pela qual merece destaque a releitura da base e dos alicerces do Direito
Constitucional, bem como da compreensão dos princípios elencados como
fundamentais e os decorrentes desses, está no fato de que de acordo com a
importância conferida à fundamentalidade dos princípios constantes do rol
constitucional é que se revelará seu cerne, donde se justificará sua força normativa, o
que, por sua vez, modelará o cenário jurídico a ela subjacente.14
Assim, faz-se extremamente necessário perpassar-se pelo significado atribuído à
afetividade como um dos princípios fundamentais, ainda que não se encontre
12
PIOVESAN, Flávia, op. cit., 2009, p. 342. 13
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 2. ed. Brasília: Paz e
Terra Política, 1990, p. 496-497. 14
PIOVESAN, Flávia, op. cit., 2009, p. 343.
25
explicitamente definido e citado no corpo do texto constitucional, mas acompanhando
entendimento do art. 5º, § 2º, CF/88. Sendo, inclusive, este um dos grandes e visíveis
avanços que se observam no final do século XX e início do atual.
Ana Paula de Barcellos, inferindo que as normas são dotadas de eficácia
jurídica, visto que são o resultado final da interpretação, lembra que esta eficácia
consiste naquilo que se pode exigir, judicialmente, se necessário, com fundamento
nos enunciados normativos. Assim sendo, afirma a autora, que o natural seria que se
pudesse exigir, diante do Poder Judiciário, exatamente aquele efeito que o comando
formativo pretende produzir e as condutas que o realizam e que, por qualquer razão,
não vieram a acontecer espontaneamente.15 Em outras palavras, seguindo o
pensamento da autora, seria suficiente a identificação do efeito pretendido pelo
dispositivo, as condutas necessárias para torná-lo real e a solicitação ao Judiciário
para que fosse efetivado no mundo dos fatos.
No entanto, a complexidade da compreensão no que tange à definição de afeto,
dado o seu teor de subjetividade, e a dificuldade na interpretação do seu significado,
faz com que o Princípio da Afetividade, bem como o direito à convivência familiar e
comunitária, ainda que assegurados constitucionalmente, não se beneficiem dessa
eficácia imediata.
Paulo Luiz Netto Lôbo16 ressalta que, desde a promulgação da Constituição de
1988, no tocante aos filhos, não se pode mais observar quaisquer discriminações
entre suas origens, ou seja, pela evolução que se tem observado no campo dos
valores que embasam a sociedade e a civilização ocidental, em nome da afetividade,
do elo afetivo, verifica-se progressiva superação de fatores, como a discriminação
entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da
família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade.
Continua Paulo Luiz Netto Lôbo17 afirmando que, efetivamente, na Constituição
Federal Brasileira encontram-se alguns fundamentos essenciais do Princípio da
15
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. ampl. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 73.
16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 05 jul. 2009.
17 Ibid., 2000.
26
Afetividade, destacando três, os quais são constitutivos dessa aguda evolução social
da família, principalmente nas últimas décadas do Século XX. São eles: a igualdade
dos filhos, independentemente de sua origem, disposto no art. 227, § 6º, CF/88; a
adoção, como escolha afetiva, alçada integralmente ao plano da igualdade de direitos,
art. 227, §§ 5º e 6º, CF/88; por fim, na proteção da comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, chamada família
monoparental, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida, (art.
226, § 4º). 18
1.2 A Constitucionalização do Direito de Família
É de considerável importância o reconhecimento da necessidade da
constitucionalização do Direito de Família, ou seja, por enlaçar temas sociais
juridicamente relevantes com o intuito de promover-lhes e garantir-lhes a efetividade,
percebe-se, em consonância com Maria Berenice Dias, que grande parte do Direito
Civil está na Constituição. Assim, encontra-se cada vez mais imperioso que o
intérprete constitucional releia e redesenhe a textura do Direito Civil sob a nova ótica
advinda da Constituição de 1988. Segue a autora afirmando que intervenção do
Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de
direito civil.19
A Constituição Federal de 1988 inaugurou, na história da família brasileira ou
entidades familiares, como ora denominadas, consideráveis e significativas alterações
na forma como passou a ser percebida e concebida. Nos novos conceitos que
passaram a ser praticados na família, inseriu-se a nova conceituação acerca do
princípio da dignidade da pessoa humana. Passou-se, definitivamente, a privilegiar e
fazer prevalecer o indivíduo em detrimento do objeto.
Ao consolidar-se a família socioafetiva na Doutrina e Jurisprudência brasileiras, e
uma vez declarada a convivência familiar e comunitária como Direito Fundamental,
não há como não se constatar a real mudança nos paradigmas nacionais. Em
18
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, 1988, art 227, §§. 19
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 33.
27
conformidade com Luiz Edson Fachin, a verdade socioafetiva não é menos importante
que a verdade biológica.20
Novos tipos de grupamentos humanos, marcados por interesses comuns e pelos
cuidados e compromissos mútuos, hão de ser considerados como novas “entidades
familiares” a serem tuteladas pelo direito.21 Esta não é uma realidade de fácil
observação, inclusive por tratar-se de um período de transição onde possa haver
algum excesso ou descaso. No entanto, por ser a família, em suas mais diversas e
modernas concepções, o lugar por excelência onde se disseminam valores,
ideologias, costumes, onde se transmitem culturas e se observa com mais
propriedade a formação da personalidade do homem, pode-se, a partir daí,
compreender a razão pela qual os doutrinadores dilatam a compreensão da dignidade
como macroprincípio norteador das relações e da formação do indivíduo.
Infere Tânia da Silva Pereira, ao atualizar e revisar a obra de Caio Mario da Silva
Pereira, que nos Tribunais e no âmbito político-administrativo, a proteção da família é
centrada principalmente nos filhos menores, e orientada, a cada dia, pelo princípio do
“melhor interesse da criança” como um novo paradigma, valorizando a convivência
familiar dentro ou fora do casamento.22
Flávio Tartuce é um dos autores que consideram o afeto como o principal
fundamento das relações familiares atualmente. Nada obsta, também, a que se reitere
o fato de que, mesmo não aparecendo explicitamente o termo „afeto‟ na Carta Magna,
este é considerado como um direito fundamental. Afirma-se, para tanto, sua
decorrência direta da valorização constante e cada vez mais acentuada da dignidade
da pessoa humana.23
A Constituição Federal de 1988, ao tratar, em seu dispositivo legal, que a base
da família deve situar-se no princípio da dignidade da pessoa humana e na
solidariedade social, quer destacar a potente seriedade com que deve ser observada
20
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo código civil: do direito de família, do direito pessoal, das relações de parentesco. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 18, p.29.
21PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
22Ibid., 2009, p. 32.
23TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano
10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8468>. Acesso em: 02 maio 2009.
28
esta instituição em todas as suas características fundantes. E não somente isso, mas
apontando a relevância deste tema, ao tratá-lo em seu corpo, o legislador constituinte
atribui à sociedade e ao Estado a clara e necessária preocupação com as famílias, e
mais especificamente com seus membros menores.
É possível afirmar, com Ingo Wolfgang Sarlet24, que a dignidade da pessoa
humana assume uma função de inequívoca relevância no que diz com a justificação,
tanto da fundamentalidade de direito e garantias expressamente positivados no texto
constitucional, embora não no Título II, quanto na fundamentação de posição
jusfundamentais implícitas (incluindo direitos e deveres) é possível afirmar que a
circunstância de se estar em face de uma manifestação inequívoca da dignidade da
pessoa humana (de uma exigência concreta de sua proteção ou promoção) constitui
indicativo seguro da fundamentalidade das correspondentes posições jurídicas.
É pacifico, entre os estudiosos do Direito de Família, que o Princípio da
Afetividade decorre da consagração do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o
qual se tornou um comando jurídico no Brasil. Muito embora não esteja de forma
explícita na Constituição, reconhece-se sua fundamentalidade, visto que esta institui o
termo no âmbito de sua proteção. Interpreta-se, pois, que o Princípio da Afetividade
adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. A constitucionalização do
modelo de família eudemonista25 é um exemplo da ascensão do Princípio da
Afetividade.
A doutrina civilista vem identificando quatro fundamentos essenciais do Princípio
da Afetividade na Constituição Federal: (a) a igualdade de todos os filhos
independentemente da origem (CF 227 §6º); (b) a adoção, como escolha afetiva com
igualdade de direitos (CF 227 § 6º) 26; (c) a comunidade formada por qualquer dos pais
e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família (CF
24
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e “Novos” Direitos na Constituição Federal de 1988: Algumas Aproximações. In: MATOS, Ana Carla Harmatiuk. A construção dos novos direitos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 177-210, p.187.
25 Eudemonismo é um termo que encontra sua gênese no grego eudaimonia, que significa felicidade. O eudemonismo é uma doutrina segundo a qual o objetivo da vida humana concentra-se na busca da felicidade, a qual não se opõe à razão, mas é exatamente a finalidade natural da vida. A filosofia antiga possui um eixo basilar no eudemonismo, ou seja, os filósofos, dentre eles Aristóteles, apesar de conceberem a felicidade de distintas formas, a viam como um princípio. Disse Aristóteles que “é para alcançá-la que realizamos todos os outros atos; ela é exatamente o gênio de nossas motivações.”
26 “Art. 227. §6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
29
226 §4º) 27 e (d) o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e
do adolescente (CF 227).28
Os Tribunais Superiores vêm reconhecendo a importância do Princípio da
Afetividade, o qual vem sendo aplicado, com o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva, predominante sobre o vínculo biológico. Na verdade o princípio quebra
paradigmas, no que diz respeito às novas concepções de família, onde o afeto tem
sido considerado a razão primeira para a união de qualquer entidade familiar.
1.3 O Princípio da Afetividade no Direito de Família
Tratando dos princípios do Direito de Família, Rodrigo da Cunha Pereira29
aponta como princípios: a) Princípio da dignidade humana; b) Princípio da
monogamia; c) Princípio do melhor interesse da criança/adolescente; d) Princípio da
igualdade e respeito às diferenças; e) Princípio da autonomia e da menor intervenção
estatal; f) Princípio da pluralidade de formas de família; e g) Princípio da Afetividade.
Os princípios acima mencionados se conectam, em maior ou menor grau, com
os direitos da personalidade. Dando ênfase ao princípio objeto do estudo, como
destaca Rodrigo da Cunha Pereira:
De fato, uma família não deve estar sustentada em razões de dependência econômica mútua, mas, exclusivamente, por se constituir um núcleo afetivo, que se justifica, principalmente, pela solidariedade mútua. [...] o que se conclui é ser o afeto um elemento essencial de todo e qualquer núcleo familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental.
30
Com efeito, o Princípio da Afetividade integra o eixo principal dos avanços
verificados no direito de família. Por força do princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana, do qual decorre e no qual se justifica a existência e importância do
Princípio da Afetividade, vem sendo ampliado o conceito família ou entidades
familiares, ou seja, passam a ser reconhecidas e tratadas como famílias novas
27
“Art. 226. §4º Entende-se, também, como entidade familiar, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
28 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
29 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 35. 30
Ibid., 2006, p. 180.
30
entidades familiares em nosso ordenamento, inclusive tornando efetivo o princípio da
pluralidade das formas de famílias.
Nessa conjuntura, a família contemporânea cristaliza um exemplo das
transformações sociais verificadas na pós-modernidade, onde se dilatam adaptações
e modelos familiares que até bem pouco tempo seriam completamente inimagináveis.
É o que se chama, sem que se caia em repetições nas citações de autores, de era
das famílias possíveis, famílias reconstituídas, famílias monoparentais, famílias
socioafetivas.
Maria Berenice Dias é enfática ao afirmar proteção especial que a Constituição
confere à família, sem importar a que modalidade de família se refere. A este respeito
segue a autora dizendo:
Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, [...] Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, podem fechar os olhos a essas novas realidades.
31
As mudanças que vão surgindo com o avançar do tempo, acrescidas de outras
razões de natureza cultural, sociopolítica e ideológica, justificam a modificação do elo
que une as famílias e, evidentemente, a necessidade de novas respostas às
discussões que se levantam na sociedade e no ordenamento jurídico. Em outras
palavras, pode-se afirmar, seguramente, que a base familiar não se encontra mais
unicamente nos laços de teor genético ou biológico, mas agora aparece como
baluarte precípuo desta instituição, o afeto, o qual vem caracterizando explicitamente
o novo conceito de família.
31
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O preconceito & a justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 71-83 e p. 85-99. DIAS, Maria Berenice. A estatização do afeto. IBDFAM, Belo Horizonte, 04 jul. 2002. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=58>. Acesso em: 26 jun. 2008. Id. Família, ética e afeto. IBDFAM, Belo Horizonte, 04 mar. 2004. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=119>. Acesso em: 26 jun. 2008.
31
Assim, o afeto, para Rodrigo da Cunha Pereira32, juntamente com o respeito, a
vontade de seguir juntos e o tratamento igualitário, funcionam hoje, como o elo entre
os componentes de uma família, sua verdadeira e própria mola propulsora. Daí a
necessidade de compreender este tema e sua importância na atualidade, a partir da
percepção de que este possui um valor jurídico. Assevera Paulo Luiz Netto Lôbo:
A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família. Afetividade é necessariamente presumida nas relações entre pais e filhos, ainda que na realidade da vida seja malferida, porque esse tipo de parentesco jamais se extingue.
33
O vínculo afetivo encontra-se, atualmente, ocupando alta posição na hierarquia
dos fatores que conferem a um grupo o condão de ser chamado „família‟. A este afeto,
responsável e principal justificador das relações familiares que se observam na
sociedade contemporânea, tem-se atribuído o caráter de primazia do direito
fundamental. É o que ressalta Flávio Tartuce34, corroborando a opinião de outros
doutrinadores, que afirmam que, apesar de não constar no Texto Maior a expressão
afeto no rol dos direitos fundamentais, pode-se afirmar que ele é uma decorrência
direta da valorização constante da dignidade humana. Com isso, justifica-se sua
plenamente aceita fundamentalidade.
Não obstante parecer que esta valorização do afeto e reconhecimento da
importância da afetividade referem-se a uma novidade no campo jurídico, trata-se de
uma prática que já vem sendo falada e valorizada desde o final da década de 70,
quando o jurista João Batista Vilella inaugura o termo desbiologização da paternidade.
Este termo foi utilizado num trabalho onde foi apontada a primazia do vínculo do afeto
32
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Nem só de pão vive o homem: responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v21n3/a06v21n3.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2009. Para o autor a afetividade pode ser traduzida no “respeito de cada um por si e por todos os membros – a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social”. Afirma, ainda, que não há qualquer dúvida acerca do fato que a afetividade é uma das maiores características da família atualmente.
33 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2552>. Acesso em: 05 ago. 2009. 34
TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano
10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8468>. Acesso em: 02 maio 2009.
32
nas relações familiares, em detrimento ou retrocesso da importância dos liames
biológicos. 35
Justifica-se que o vínculo biológico, que por muito tempo foi indispensável à
família patriarcal no cumprimento de suas funções tradicionais, cedem seu lugar ao
vínculo afetivo. Ocorre, pois, como consequência dos avanços socioculturais, e mais
precisamente com o advento da Constituição Federal de 1988.
Partindo de uma era onde havia uma preocupação extremamente exagerada
com os interesses patrimoniais que circundavam e compunham o cerne do direito de
família tradicional, chega-se ao novo perfil da família, cujo foco agora se encerra na
grande atenção ao homem, no empenho de cunho pessoal ou humano. Em outras
palavras, inaugura-se o tempo da primazia da afetividade.
Para Paulo Luiz Netto Lôbo36, a afetividade é um elemento nuclear e aglutinador
que vai definir o suporte fático da família tutelada pela Constituição, conduzindo ao
que ele chama de fenômeno jurídico social da repersonalização das relações civis. É
através de suas próprias palavras que se explica o significado deste termo:
A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procriacional para essa nova função. Essas linhas de tendência enquadram-se no fenômeno jurídico social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. É a recusa da coisificação ou reificação da pessoa, para ressaltar sua dignidade. A família é o espaço por excelência da repersonalização do direito.
37
Sob uma ótica menos jurídica, sem referência a nenhum ponto de partida
específico para o estudo do tema família, mas utilizando os grandes benefícios de
uma visão transdisciplinar para efetivação e constatação das mudanças visualizadas
no caminho pelo qual tem percorrido a família, testemunha-se a ascensão do afeto em
detrimento dos elos de cunho meramente biológico ou genético. Na realidade, para
que o embasamento seja deveras consistente, de forma que possa responder de
modo satisfatório às demandas da sociedade atual e aos desafios do Estado de
promover a dignidade da pessoa humana, a família deve estar alicerçada em novos
35
VILELLA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, n. 271, p.45-51, jul./set. 1980.
36 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p.12.
37 Ibid., 2008, p.11.
33
valores, o afeto, a solidariedade, o desejo de estar juntos e assim permanecer e o
respeito humano.
Dentre esses pontos de convergência da família há a clara prevalência do fator
afeto. É importante que as pessoas se relacionem de forma afetiva, pois onde este tipo
de sentimento está ausente é impossível que se configure uma relação durável que seja
capaz de superar os pontos de discordância ou as adversidades, que aparecem como
algo profundamente natural onde existe a presença de pessoas humanas se
relacionando. Afinal, por maior que sejam a harmonia e unidade de sentimentos,
pensamentos, projetos pessoais, desejos ou buscas, sempre haverá um interesse
antagônico que se erguerá em contraposição àquele que é objeto de afeto. Então, ao
construir algo, que seja em cima de bases sólidas, pois ainda assim será possível existir
uma ou outra circunstância em que a afetividade precisará falar mais alto.
É nesse sentido que Rodrigo da Cunha Pereira e Cláudia Maria Silva traduzem a
afetividade, como uma das maiores características da família atual, como sendo o
respeito que cada membro deverá nutrir por si e por todos, de tal forma que a família
seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante todo o corpo social. 38
Tânia da Silva Pereira, logo após asseverar que a grande verdade e novidade
desse tempo é que a convivência familiar, seja esta dentro ou fora do casamento, na
família biológica ou substituta, e na vida em comunidade, deve ser a prioridade nas
políticas públicas e programas governamentais, vem acrescentar que as relações de
afeto, que fazem com que pessoas convivam e compartilhem as vidas, como famílias
monoparentais, famílias reconstituídas depois de separações ou divórcio, dentre
outras, devem ser reconhecidas como núcleos familiares. 39
A proteção à família, tanto aquela fundada no casamento, ou a chamada união
de fato, a família natural e a adotiva, já atraia a atenção dos estudiosos em face da
celeridade com que as mudanças iam acontecendo, como bem afirma Sílvio de Salvo
38
PEREIRA, R. C.; SILVA, C. M. Nem só de pão vive o homem. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n.3, set./dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69922006000300006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 02 mar. 2009.
39 PEREIRA, Tânia da Silva, op. cit., 2003, p. 217.
34
Venosa “de há muito, o país sentia necessidade de reconhecimento da célula familiar
independentemente da existência de matrimônio.” 40
O homem carrega em si o resultado de uma soma de fatores que vai
vivenciando a cada tempo de sua história. Quando o ser humano, principalmente a
criança e o adolescente, rompe os primeiros vínculos afetivos, ocorre como que um
abalo na ordem natural de sua vida. Assim sendo, esta ruptura poderá desencadear
outras perdas e reações inesperadas que poderão ser, não apenas de cunho pessoal,
mas que repercutirá na sociedade onde encontra-se inserido.
Entretanto, tratando-se de criança, se esta tiver sido beneficiada com o
acolhimento necessário, se a ela for dada uma oportunidade de experimentar uma
convivência familiar, onde possa novamente desenvolver uma relação afetuosa com
alguém que lhe dê segurança, carinho e amor, além de suprir suas outras
necessidades básicas, certamente haverá uma reversão nas sequelas naturais
daquele abandono. As autoras Cinthia Cavalcante e Maria Salete Bessa Jorge, citam
um exemplo clássico sobre este assunto. São suas as palavras:
Um exemplo convincente sobre o assunto é o de Spitz (1945), no seu clássico trabalho, ao estudar em um orfanato as relações vinculares por meio da observação de bebês supridos em suas necessidades básicas (alimentação, vestuário, entre outras), mas privados de afeto. Eles não eram sequer embalados ou segurados no colo. Esses bebês acabavam desenvolvendo o que o autor denominou de „síndrome do hospitalismo‟, caracterizada por dificuldades no desenvolvimento físico, falta de apetite e perda de interesse em se relacionar, levando ao óbito a maioria dos bebês. Conforme concluiu Spitz (1945), esse resultado era consequência da falta de afeto.
41
Vê-se que o afeto funciona como algo de fundamental importância, haja vista ser
uma das formas primeiras de assegurar o bem mais precioso que o homem possui, o
qual é garantido até constitucionalmente, que é a vida. Justifica-se, assim, a
necessidade que o Estado tem de buscar instrumentos que permitam à criança e ao
adolescente usufruírem de afetividade. A despeito do teor subjetivo do princípio
revela-se no direito de família como muito importante, mesmo parecendo de teor
40
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.16. 41
SPITZ, R. An Inquiry into the Genesis of psychiatric conditions in early childrood. The
psychoanalytic study of the child, v. 1, 1945, p.53-74 apud CAVALCANTE, C., JORGE, M.S.B. Mãe é a que cria: o significado de uma maternidade. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 25, n. 2, abr./jun.
2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_arttext&pid=S0103-166X2008000200011>. Acesso em: 01 out. 2008.
35
impalpável e de uso restrito às explicações das novas formas de justificar ou mesmo
definir uma família / entidade familiar atualmente.
Na verdade, o fato é que se trata de princípio jurídico, embora apareça como
sentimento, mas que pode ser instrumento capaz de produzir soluções e resultados
extremamente benéficos nas questões de ordem social e familiar, assim como da sua
inaplicabilidade podem ser gerados fracassos, violência, vingança ou coisas
correlatas.
Cinthia Cavalcante e Maria Salete Bessa Jorge compreendem que a falta de
afeto não produz apenas efeitos fisiológicos, acarreta reflexos muito graves na saúde
mental daqueles que, desde muito jovens, experimentam a vida em instituições. 42 Por
sua vez, Susane Abreu, em pesquisa realizada com crianças e adolescentes
residentes em orfanatos, constatou que estas crianças apresentam seis vezes mais
chances de desenvolver transtornos psiquiátricos do que aqueles que vivem com suas
famílias. 43 Observou que os transtornos mais comuns foram depressão e deficiência
mental (encontrados tanto em crianças que viviam em instituições como em suas
famílias), hiperatividade, ansiedade e transtorno de conduta apenas naquelas
residentes em instituição. 44
Ante as alterações e transformações de ordem conceitual e na composição da
família brasileira ocorridas no início do século XXI, verificam-se, concomitantemente,
modificações nos valores éticos que a permeiam. Tais mudanças acabam
determinando os aspectos de caráter principiológico da norma constitucional, inclusive
também presentes nas normas infraconstitucionais decorrentes. Daí a ascensão do
afeto a valor principal na esfera do Direito de Família.
1.4 O vínculo afetivo na formação integral do homem
Ao longo da história da humanidade, o homem vem constantemente se
deparando com situações que vão lhe motivando a desejar conhecer, saber,
descobrir. Aliás, a curiosidade deverá sempre estar presente em todas as pessoas
42
CAVALCANTE, C.; JORGE, M.S.B., op. cit., 2008 apud ABREU, S. Estudo associa vida em orfanato a maior risco de problema psiquiátrico. Universidade Federal de São Paulo. Escola de Medicina. São Paulo, jan. 2001.
43ABREU, S. apud CAVALCANTE, C.; JORGE, M.S.B., op. cit., 2008 apud Ibid., 2001.
44CAVALCANTE, C.; JORGE, M.S.B., op. cit., 2008 apud Ibid., 2001.
36
independentemente de sua idade, sexo, classe social, profissão etc., pois é a partir daí
que o ser vivente vai descobrindo a si, ao outro, à vida. Com isso o ser humano vai
superando seus limites, adquirindo conhecimento, experiência, estimulando a
criatividade e o raciocínio, sentindo-se motivado e impulsionado a avançar na
compreensão de tudo o que vivencia, nos desafios que vão surgindo, no progresso e
crescimento a partir das novas descobertas.
É claro que riscos estarão sempre presentes, uma vez que o homem não se
reduz a um corpo com imperativos de ordens meramente fisiológicas, mas é um ser
dotado, também, de sabedoria, talentos, necessidades, potências. Assim, para que
haja, também, a perspectiva de um desenvolvimento intelectual e emocional no ser
humano, desde sua mais tenra idade, é necessário, dentre outros fatores, que lhe seja
proporcionada a vivência em um ambiente onde os reflexos sirvam de motores e
elementos estimuladores do seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, de forma que
todo o seu ser seja contemplado com os benefícios advindos desta fase da vida.
1.4.1 As faculdades ou potências do ser humano
O homem, em sua formação total, precisa tomar consciência do modo como seu
ser é formado, principalmente pelo fato de que para se atingir um determinado grau de
humanismo é critério sine qua non que haja um mínimo de equilíbrio humano naquilo
que se chamam potências do ser ou faculdades da alma do homem.
Ao estudar o homem em sua integralidade, os filósofos modernos, considerando
os fatos ou funções psicológicas inerentes ao homem, apontam três categorias de
faculdade, quais sejam: a sensibilidade, a inteligência e a vontade, ou, em outras
palavras: o sentimento, o pensamento e o querer, ou, ainda, as faculdades da vida
vegetativa, da vida sensitiva e da vida social.45
Em Aristóteles, o homem, único ser vivo dotado das três faculdades da alma,
tem a capacidade de se nutrir, reproduzir, captar os objetos através dos sentidos e
45
RABIER, Elie. Psychologie Lecons de philosophie apud HUGON, Pe. Edouard. Os princípios da filosofia de S. Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Porto Alegre: Edipuc,1998, p.153.
37
também é capaz de conhecer por meio do intelecto. Este homem é dotado das três
faculdades da alma: faculdade nutritiva, sensitiva e intelectiva.46
Para Tomás de Aquino, as potências da alma classificam-se em cinco espécies.
Inicialmente, considera-se o próprio corpo unido à alma, que é necessário nutrir,
entreter, desenvolver, aumentar, reproduzir, em um vivente semelhante: aí se
encontra a razão de ser da potência vegetativa. Em seguida, tem-se a potência
sensitiva, através da qual, atinge-se o objeto mais vasto, no entanto, limitado, que é o
mundo sensível. Depois, vem o objeto universal, o próprio ser em toda a sua
amplitude, ao qual deve corresponder uma faculdade igualmente ampla, trata-se da
potência intelectiva. Na sequência, pela necessidade de se pôr em relação com os
objetos, tendendo para eles, surge a afeição, a qual requer a potência apetitiva. Por
fim, manifesta-se o autor acerca da potência motora, a qual põe o homem em
movimento, levando-o a se afastar dos objetos que estão perto e podem lhe
prejudicar, e aproximando-lhe daqueles que estão longe mas que lhe são úteis, em
suma, é a potência que mantém a vida de relação.47
Na presente pesquisa, adota-se a linha de que as potências ou faculdades que
compõem a psique humana são cinco: inteligência, vontade, imaginação, memória e
afetividade.
Nas suas relações com o mundo, com outras pessoas e até consigo mesmo, há
sempre a intervenção destas cinco potências. É em Edith Stein48 que se encontram
importantes e consistentes contribuições para o entendimento de que para que
alguém possa alcançar a maturidade de sua personalidade, deve-se procurar,
primeiramente, que as diversas forças que o integram alcancem o desenvolvimento
máximo; em segundo lugar, que se desenvolvam todas harmonicamente para que não
haja desequilíbrios; em terceiro lugar, que todas atuem de modo hierarquizado, cada
qual desempenhando sua função sem invadir o campo das outras. Seguindo esta
tendência, Perez Luño afirma que:
46
VALDUGA, Alison. Como o intelecto conhece segundo Aristóteles. Revista eletrônica frontistés.
Faculdade Palotina - FAPAS. Disponível em: <http://www.fapaz.edu.br/frotistes/artigos/Artigo%2001.doc>. Acesso em: 01 jun. 2009.
47 HUGON, Pe. Edouard. Os princípios da filosofia de S. Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Porto Alegre: Edipuc, 1998, p.153.
48 GARCIA, Jacinta T. Edith Stein e a formação da pessoa humana. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1997.
38
A dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a afirmação positiva de pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O pleno desenvolvimento da personalidade pressupõe, por sua vez, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possíveis atuações próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que de uma predeterminação dada pela natureza.
49
Inicialmente, dentre as cinco potências do ser humano, apresenta-se a
inteligência como a condutora da personalidade. São funções próprias da inteligência:
analisar, sintetizar, relacionar e julgar. Estas quatro funções, embora sejam
supostamente desenvolvidas pelo nível de escolaridade, não dependem diretamente
deste. Ademais, verifica-se, atualmente, que há diversos tipos de inteligência, porém,
todos baseados nessas quatro habilidades.
A vontade é peça-chave do edifício da personalidade. Do ponto de vista natural,
o valor de um homem depende, em grande parte, do grau em que consegue plasmar
sua vontade. Somente por ela poderá imprimir um determinado rumo à sua vida,
orientando e dominando todo o seu ser. O homem será livre e pode ter uma vivência
familiar profícua na medida em que seja senhor de si mesmo, em que guie, canalize e
domine suas paixões, sentimentos e instintos.
Passando-se à faculdade da memória, ressalte-se que, por ocasião das
modificações e avanços que se observam nas diversas gerações e culturas, esta
faculdade memória tem sido valorizada em certas ocasiões, enquanto em outras,
menosprezada. A memória é a faculdade que pode ser um precioso tesouro de
conhecimento e experiências. Em face de seu desenvolvimento, poderá fazer as
vezes de secretário preciso e ágil que apresenta, num instante, os dados solicitados e
arquiva ordenadamente aquilo que é confiado à sua custódia para extrair de seu rico
caudal coisas novas e velhas.
A imaginação é a faculdade da criatividade e da originalidade. É a potência que
colabora, com mais afinco, com a inteligência e a vontade, fixando-se naquilo que
estas potências lhe apresentam. Por fim, chega-se àquela que é um dos objetos deste
estudo, a qual pode encontrar seu embasamento mais fecundo na convivência familiar
e comunitária: a afetividade. Define-se como afetividade aquilo que se exprime
49
LUÑO, Perez, 1995, p. 318 apud TAVARES, André Ramos, op. cit., 2006.
39
adequada ou inadequadamente, nos sentimentos, nas emoções, nas paixões. Assim,
para compreensão da definição desta faculdade, considera-se que o sentimento,
aspecto inerente a esta faculdade, é um fenômeno psíquico de caráter subjetivo,
efeito de diversas causas e que impressiona, favorável ou desfavoravelmente a
pessoa, instigando-a aos mais diversos instintos ou tendências.
Emoção, igualmente pertinente à afetividade, é aquele estado sentimental mais
intenso que traz consigo uma perturbação somática característica. Normalmente,
acontece de forma concomitante, podendo ser consequente ou antecedente (medo-
tremor; alegria-riso; tristeza-lágrimas).
Outro componente da afetividade é a paixão. Esta é uma tendência que se
desenvolve de maneira superior à normal. Isto pode acontecer tanto com as
inclinações intelectivas como com as sensitivas. São exemplos dessas últimas a
tendência para a comida, descanso, reprodução. Paixão de natureza intelectiva:
tendência para a verdade, para a beleza, afirmação de si.
1.4.2 A afetividade e a formação do homem integral
A afetividade tem sido compreendida no âmbito do direito constitucional, como
um princípio que encontra seu nascedouro na família. É salutar lembrar que a
convivência familiar pode ser considerada, pois, como um fator de extrema relevância
no resultado da otimização dos elementos que potencializarão o conhecimento e
estímulo do crescimento do homem em todas as suas facetas.
Portanto, para que o ser humano tenha um sadio desenvolvimento, é preciso
que sejam resguardadas as garantias fundamentais: o direito à liberdade, ao respeito,
à dignidade da pessoa humana, à convivência familiar e, por conseguinte, à
afetividade.
No caso da criança e do adolescente, pessoas inseridas concretamente neste
processo de desenvolvimento por excelência, faz-se mister que o Estado garanta a
efetivação de todos os direitos humanos fundamentais que forem compatíveis com
suas necessidades, desde as mais primárias até as mais precípuas. Sobre direitos
humanos fundamentais, o autor Alexandre de Morais os define como sendo
40
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.
50
Falar no homem, na criança, sujeito de direito51, na família, no cuidado, no afeto,
na afetividade, nos princípios, nos direitos fundamentais garantidos e assegurados
pela Constituição Federal, tudo isso remete a alguns questionamentos do tipo, o que é
o homem? Qual sua composição e matéria? Qual sua natureza? Enfim, em que
consiste mesmo a afetividade, que ocupa um lugar privilegiado na atualidade? O ECA,
em seu artigo 3º, dispõe:
a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Esse dispositivo elevou a criança e o adolescente à condição definitiva e
imutável de sujeitos de direito, ou seja, a partir daí estes indivíduos passaram a gozar
de todos os direitos fundamentais, encontrando-se, então, na mesma posição de
igualdade em relação aos adultos. Agora, assim como o homem, tanto um como o
outro, crianças e adolescentes, são detentores da condição de pessoa humana e,
como tal, possuidores de direitos subjetivos, os quais são passíveis de serem exigidos
judicialmente.
Desta forma, a infância e a juventude deverão ser alvo de políticas de
incremento que possibilitem a garantia do seu pleno desenvolvimento. Em outras
palavras, todas as áreas do seu ser precisarão estar amparadas e a elas
asseguradas, de forma livre e digna, que seu desenvolvimento físico, mental,
espiritual, seja resguardado e potencializado.
A família acolhedora é uma das expressões modernas para a busca pela
efetivação de um desses direitos fundamentais, que é o direito à convivência familiar e
comunitária, ou seja, é algo que beneficiará o homem de forma concreta a partir do
50
MORAIS, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. 51
Ao contrário do Código de Menores, cuja abrangência se restringia aos menores em situação irregular, com o ECA todas as crianças e adolescentes, independente de sua condição, passam a ser sujeitos de direito. É o que diz expressamente o dispositivo estatutário (art.3º do ECA). Dizer que as crianças são sujeitos de direito significa afirmar que todos os direitos que lhe são assegurados na Constituição Federal precisam ser efetivados, como, por exemplo, o direito à convivência familiar em foco neste estudo.
41
vínculo familiar que será desenvolvido, alimentado ou mantido. Assim sendo, já
podemos encontrar, neste aspecto, a gênese do estudo acerca da composição
material e espiritual do homem. É claro que não podemos prescindir de lembrar que a
família substituta deverá ter o caráter de excepcionalidade, ou seja, deverá existir
apenas enquanto perdurar aquilo que gerou a retirada ou afastamento da criança ou
adolescente do convívio familiar.
Sempre que possível deverão ser esgotados todos os empenhos para que o
retorno ao núcleo familiar aconteça da forma mais pacífica e benfazeja possível, e
somente após todas as tentativas frustradas e a constatação pelos profissionais que
acompanham cada caso importarem em laudo de impossibilidade de restauração da
família é que os caminhos da exceção poderão ser suscitados. Isto ocorre levando-se
em consideração o princípio do melhor interesse do menor, que deverá ser a
mantença junto àqueles com quem este mantinha vínculos de afeto, mas não sendo
isto possível, ou, em outras palavras, na situação em que se verificou que ficou
definitivamente inviável o retorno à família de origem, e que aquela não seria a
solução mais plausível, então outras alternativas serão utilizadas, sempre com base
nos princípios da dignidade da pessoa humana, da convivência familiar, da
solidariedade e da afetividade.
Se, como visto no desenvolver de vários momentos deste trabalho, o homem,
para ter uma vida digna precisa ser alvo de cuidado e afeto, significa dizer que não é
apenas de comida, vestuário, moradia, que carece, mas há outros tipos de
necessidade inerente ao homem e das quais ele depende para que seja fecunda e
feliz a sua vida. Ou seja, não é só da matéria que vive o indivíduo.
Ao falar em assunto desta natureza nos remetemos a uma questão, que seria
acerca da inquirição sobre este outro aspecto igualmente importante para a vida e
desenvolvimento da criança, do homem. O que vem a ser o sentimento; como saber
o procedimento do afeto, por exemplo, dentro do ser do homem; por que a
dificuldade em definir ou conceituar a dignidade da pessoa humana, seria porque se
encontra no campo desta subjetividade ou abstração que se confunde com o que vai
além da natureza.
42
Um exemplo sobre a importância para o alargamento da visão acerca da
necessidade de compreensão da afetividade na aplicação do direito ao caso concreto,
o exemplo do rei Salomão, que se mostrou capaz de encontrar, a um só passo, a
fortaleza e a fraqueza inerentes ao homens. É diante da possibilidade de dividir o
corpo da criança para contemplar as pretensões adversas das prostitutas litigantes,
que a solução jurídica adotada lança o direito nos braços da verdade e do amor.
Então, vieram duas prostitutas ao rei e se puseram perante ele. Disse-lhe uma das mulheres: Ah! Senhor meu, eu e esta mulher moramos na mesma casa, onde dei à luz um filho. No terceiro dia, depois do meu parto, também esta mulher teve um filho. Estávamos juntas; nenhuma outra pessoa se achava conosco na casa; somente nós, ambas, estávamos ali. De noite, morreu o filho desta mulher, porquanto se deitara sobre ele. Levantou-se à meia-noite, e, enquanto dormia a tua serva, tirou-me a meu filho do meu lado, e o deitou nos seus braços; e a seu filho morto deitou-o nos meus. Levantando-me de madrugada para dar de mamar a meu filho, eis que estava morto; mas, reparando nele pela manhã, eis que não era o filho que eu dera à luz. Então, disse a outra mulher: Não, mas o vivo é meu filho; o teu é o morto. Porém esta disse: Não, o morto é teu filho; o meu é o vivo. Assim falaram perante o rei. Então, disse o rei: Esta diz: Este que vive é meu filho, e teu filho é o morto; e esta outra diz: Não, o morto é teu filho, e o meu filho é o vivo. Disse mais o rei: Trazei-me uma espada. Trouxeram uma espada diante do rei. Disse o rei: Dividi em duas partes o menino vivo e dai metade a uma e metade a outra. Então, a mulher cujo filho era o vivo falou ao rei (porque o amor materno se aguçou por seu filho): Ah! Senhor meu, dai-lhe o menino vivo e por modo nenhum o mateis. Porém a outra dizia: Nem meu, nem teu; seja dividido. Então, respondeu o rei: Dai à primeira o menino vivo; não o mateis, porque esta é sua mãe. Todo o Israel ouviu a sentença que o rei havia proferido; e todos tiveram profundo respeito ao rei, porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça.” I Reis 3, 16-28 – Julgamento de Salomão.
Com base em questões desta ordem é que se encontra a importância de fatores
na vida do homem que não seriam palpáveis ou mesmo visíveis. O direito da criança à
convivência familiar deve ser concebido não como primado do legalismo ou dos
caminhos meramente positivistas, e sim desenhado como fenômeno social e humano.
2 DO ABANDONO AO ACOLHIMENTO
Eu fazia do amor um cálculo matemático errado. Pensava que somando as compreensões eu amava. Não sabia que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente.
Clarice Lispector
As transformações observadas na atual conjuntura nacional brasileira têm
afetado de maneira significativa e determinante a família, uma vez que é ascendente a
mudança nos paradigmas relacionais, dentre eles aqueles que se referem diretamente
à geração dos laços que formam, unem e mantêm esta instituição.
Para se chegar à compreensão mais aproximada da visão que se tem acerca do
direito à convivência familiar e da fundamentalidade do Princípio da Afetividade,
principalmente no tocante à criança e à família neste início de século XXI, faz-se
necessário o estudo desses e de sua evolução, senão no cenário mundial, pelo
menos na história do Brasil. Assim, ao rever o caminho que foi trilhado, perceber-se-
ão as respostas e avanços (ou retrocessos) que se verificaram ao longo do
desenvolvimento que vem ocorrendo no sistema familiar do Brasil.
Ao se constatarem as imensas transformações que influenciam a família, sejam
elas de caráter social, econômico, cultural ou religioso, precisa-se trazer à tona o fato
de que, para tais mudanças ocorrerem, não importa, necessariamente, um prejuízo ou
empobrecimento da instituição familiar. Antes, pode-se aproveitar de forma positiva
cada nuança do processo pelo qual se operam mudanças na sociedade, no estado e
na própria família.
Isso se torna mais passível de aceitação quando se parte do ponto em que, por
inúmeras razões históricas, culturais, sentimentais ou conjunturais, as crianças eram
abandonadas, passando pelo momento em que terceiros, desprovidos de outras
44
motivações, que não de cunho religioso, amparavam e cuidavam daqueles
desabrigados, até se aportar nas novas formas de visualizar e vivenciar o
acolhimento. E nesse mote já se levantam questionamentos no que tange à
desinstitucionalização e ao surgimento de uma nova modalidade de família, qual seja
a família acolhedora, como uma das respostas ao direito constitucional à convivência
familiar e comunitária, bem como lugar de efetiva presença do afeto.
2.1 O trajeto histórico da criança abandonada: do infanticídio às políticas de proteção
Por ser de interesse deste estudo, a percepção real da maneira como o
acolhimento das crianças pode ser potencializado, de modo que sua dignidade seja
assegurada, da mesma forma acha-se por bem abordar um pouco acerca da questão
do abandono. Acolher ou amparar, e abandonar ou rejeitar são termos que se
contrapõem, são palavras antônimas. Ademais são, também, ações que podem ser
consideradas interligadas, ou seja, a criança a ser acolhida deverá ser aquela que foi
previamente abandonada ou perdeu o vínculo, ainda que temporariamente, com sua
família de origem. Assim, é importante contextualizar a inserção desses temas na
história, bem como dentro deste trabalho.
O conceito de infância, que é naturalmente conhecido atualmente como sendo
uma significante e fundamental fase no desenvolvimento biopsicossocial do individuo,
e como tal merecedora de cuidados e mimos por parte dos adultos, foi desenvolvido
ao longo dos séculos. Na realidade, “foi necessária uma grande evolução para que o
sentimento de infância realmente se arraigasse nas mentalidades”.1
No passado, não se reconhecia sua importância e por isso não era conferida a
estima necessária à infância e, como consequência, o tratamento por ela recebido era
não somente de negligência, mas de maus tratos e abandono. Elisabeth Badinter
assevera que a criança era percebida como um grande sacrifício pela família e esse
abandono não se devia apenas a questões econômicas, mas também ao egoísmo
dos pais, que raramente se preocupavam com a criação dos filhos. Esta autora afirma,
em sua trajetória sobre a história da criança ao longo dos séculos, que
1 BADINTER, E. Um amor conquistador: o mito do amor materno. Tradução de: L'Amour en plus,
por Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Disponível em: <http://www.redeblh.fiocruz.br/media/livrodigital%20(pdf)%20(rev).pdf>. Acesso em: 29 dez. 2008.
45
A acreditar não só na literatura, na filosofia e na teologia da época, mas também nas práticas educativas e nas estatísticas de que hoje dispomos, constatamos que, na realidade, a criança tem pouca importância na família, constituindo muitas vezes para ela um verdadeiro transtorno. Na melhor das hipóteses, ela tem uma posição insignificante. Na pior, amedronta.
2
Seguindo esta mesma historicidade a autora Cinthia Mendonça Cavalcante
lembra que era prática muito comum na Antiguidade a utilização de crianças como
objetos de rituais de magia e sacrifício. O abandono, os castigos e os espancamentos
eram práticas usuais cometidas contra crianças nessa época.3 Na Grécia e Roma
antigas, o infanticídio era também uma prática muito comum. Crianças eram
colocadas em vasos com tampas, de forma que morressem asfixiadas, enquanto
outras eram abandonadas pelos caminhos ou tinham a sorte pior de serem jogadas às
feras selvagens, ou, ainda, deixadas à beira dos rios, em cestos.
Com o advento das leis canônicas da Igreja Católica Apostólica Romana
observou-se considerável redução na prática do infanticídio, o qual teve seu número
reduzido em relação à Antiguidade. Isto se deveu ao fato de que aqueles que o
praticassem encontrar-se-iam gravemente ameaçados pela punição e castigo de
Deus. Philippe Áries infere que, não obstante o fato de poder ser severamente
castigado por Deus, aquele que praticasse o infanticídio, abandonasse ou espancasse
gravemente as crianças, isso continuava a acontecer, só que desta feita em segredo,
correntemente, talvez camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam
asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam.4 Como afirma esse autor, o
infanticídio, apesar de não ser aceito e ser considerado crime, foi uma prática tolerada
até o final do século XVII.
Ainda que estivesse no rol das práticas “abomináveis”, o abandono, ao contrário
do infanticídio, não era admitido como crime, o que fazia dele um mal sem muitas
consequências, fato que corroborava a sua prática muito comum. Mais uma vez a
Igreja manifestou-se em auxílio das vítimas e, assim, os mosteiros passaram a ser
utilizados como locais de abrigo para os chamados enjeitados ou expostos. As
crianças deixadas nesses locais recebiam alimentação, educação, roupas e
2Ibid., 1985, p. 53.
3CAVALCANTE, C. M.; JORGE, M.S.B. Mãe é a que cria: o significado de uma maternidade. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 25, n. 2, abr./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2008000200011>. Acesso em: 02 jan. 2009.
4ARIES, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p.15.
46
“salvação”. Este era um fato que, por si mesmo, já servia de motivação à época para
aqueles que, tendo crescido dentro dos mosteiros, acabavam por abraçar a vocação
religiosa, ainda que não fosse essa a sua vocação, visto que não possuíam muita
opção.5 Desta forma, os abrigados nos mosteiros eram já potencialmente os
consagrados na Igreja e que abraçavam os votos de pobreza, obediência e castidade.
Nos primeiros anos do século XIII, mais precisamente em 1203, acontece algo
que move o Papa Inocêncio III a preocupar-se com o acolhimento e o atendimento de
crianças abandonadas no Hospital de Santo Espírito, em Saxia, Roma. Um grupo de
pescadores pegou em suas redes um considerável número de bebês afogados no Rio
Tibre. Assim, a missão dos religiosos passou a transcender a questão do cuidado com
a alma, adquirindo, a partir de então, um novo foco, que seria o atendimento e
assistência às crianças abandonadas. Estava-se diante de mais um desafio
antagônico, mas que, como todo processo de busca e avanço de melhorias na história
da humanidade, se fez necessário. No hospital era possível abrigar até seiscentas
crianças, no entanto, o atendimento que era ofertado não era específico para
indivíduos daquela faixa etária, ou seja, não era direcionado às crianças.
As crianças que eram recolhidas e abrigadas tinham seus cuidados prestados
por amas de leite ou religiosos e era inevitável sua convivência com pessoas adultas
e, ainda por cima, portadoras das mais variadas patologias, dentre as quais a mais
comum era a lepra. Aquele hospital foi, na verdade, um marco, pois partindo dele
houve uma grande disseminação da idéia do cuidado e amparo naquele tipo de
instituição em toda a Europa. Por outro lado, verificam-se altos índices de mortalidade
infantil, visto o contato direto das crianças acolhidas com os enfermos, também
abrigados no mesmo local. Dessa forma, conforme assevera Judite Maria Barboza
Trindade, as instituições criadas para acolher e assistir os abandonados se
constituíam agências para eliminação da infância indesejada. A autora lembra, ainda,
da necessidade de realizar pesquisas que ajudem na identificação das causas
motivadoras de tão alta mortalidade, mesmo que algumas já pudessem ser
identificadas, como a ocasionada pela carência nutricional, bem como pelas
5 Para aqueles que sentem um apelo em sua vida para seguirem um determinado caminho, dizemos que aderiram a uma vocação específica. O vocábulo “Vocação” vem do latim vocatione, significa ato de chamar, escolha, chamamento, predestinação. A este chamado é preciso que se dê uma resposta de cunho eminentemente pessoal, ou seja, ninguém poderá responder pelo outro ou tomar a decisão de qual caminho, profissão, tendência ou chamado a seguir.
47
condições familiares precárias, acrescidas de doenças como gastrenterites, sífilis,
infecções gerais e outras enfermidades oftálmicas.6
Outra prática que passou a ser muito utilizada no abandono dos pequenos
inocentes era a “roda”.7 Esta roda estava diretamente associada tanto àqueles
hospitais, como aos mosteiros que acabaram se tornando receptores de crianças
abandonadas. Tratava-se de um objeto constituído por uma espécie de caixa
cilíndrica, a qual girava sobre um eixo vertical. Referida caixa compreendia duas
partes, uma voltada para o exterior e outra para o interior da instituição. Sua função de
origem era o transporte de doações de gêneros alimentícios, remédios etc., bem como
uma forma de entregar mensagens, correspondências e outras coisas, que aqueles
que estavam no lado exterior gostariam que as pessoas do lado de dentro tivessem
acesso. Esses objetos eram depositados na caixa cilíndrica que, em seguida era
girada, fazendo com que seu conteúdo fosse deslocado para o interior do hospital ou
do mosteiro. Assim, era perfeitamente possível preservar-se o anonimato do doador.
Com o avançar do tempo, esse objeto passou a ser utilizado pelas mães que
colocavam lá seus filhos, em vez de simplesmente abandoná-los à própria sorte.
Como a roda em seu projeto inicial não objetivava comportar crianças, seu tamanho
era evidentemente inadequado, por isso fez-se necessária a criação de uma roda
especial para este fim, a qual foi chamada de roda dos expostos, conforme o que
afirma Judite Maria Barboza Trindade. A autora informa ainda que a primeira roda
desse tipo foi construída em Roma no ano de 1198.8
6 TRINDADE, J.M.B. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História,
v. 19, n. 37, São Paulo, set. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01881999000100003&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em: 28 nov. 2008.
7 A “roda” era assim utilizada: a criança era colocada no interior desse cilindro, o qual era, a seguir, girado em 180 graus; a criança, que estava do lado de fora do prédio, passava para o interior; em seguida a pessoa que levou a criança tocava a campainha, anunciando que havia mais um “abandonado” para que as freiras pudessem recolher, internar e cuidar. Aquelas crianças deixadas na “roda” seriam alimentadas e assistidas e, na grande maioria, dentre aquelas que conseguiam sobreviver à grande mortalidade que havia na época, permaneceriam naquele local até que ficassem mais velhas e tornassem-se aptas para o exercício de uma profissão e para tomar as rédeas da própria vida. Com as modificações que iam acontecendo com as organizações de Assistência Social, a “roda” acabou se tornando obsoleta, tendo, portanto, seu termo, no Brasil, em 05 de junho de 1949, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A “roda” está hoje no Museu da Irmandade desta Santa Casa, juntamente com alguns documentos que demonstram a forma como aqueles rejeitados eram acolhidos.
8 Ibid., 1999.
48
No século XVI, acontece o Concílio de Trento9 e, como consequência,
aparecem, no interior da Igreja, normas bem mais rígidas e de cunho moralista,
apoiadas em uma inquisição implacável. Assim, a Igreja acaba contribuindo, também,
com a promoção de uma considerável redução na prática do abandono. Diz-se que
houve uma redução porque, na realidade, aquela prática ainda perdurou por muito
tempo, pois o receio da condenação pelo adultério, caso fosse descoberto, assim
como a abominação dos filhos que porventura fossem provenientes de uma relação
pecaminosa, continuaram tornando o abandono um exercício comum.
Os índices de mortalidade infantil, como consequência das endemias e
epidemias do século XVII, chegava a 80% (oitenta por cento) ou até 90% (noventa por
cento). Esses índices não condiziam com o intuito da época de se ter uma população
produtiva para o trabalho, que ganha, nesse período, um novo conceito. Assim sendo,
a medicina empenha-se na proposta de curar as crianças enfermas, bem como de
evitar a morte prematura dos pequenos. Esta é de fato uma significativa mudança na
forma como as crianças passaram a ser compreendidas, tratadas e acolhidas em
termos afetivos. Os grandes números da mortalidade só aumentavam a distância na
relação da sociedade com a infância. É isso que Philippe Áries quer dizer ao afirmar
que “a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito
insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a
sensibilidade”.10
Conseguir arrebatar e salvar uma criança de uma doença que lhe tortura, da
morte prematura que lhe ronda, bem como tentar driblar as desgraças que lhe
9 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, op. cit., define Concílio como sendo uma assembléia de prelados (autoridades eclesiásticas) católicos, em que se tratam assuntos dogmáticos ou disciplinares. O Concílio Ecumênico de Trento, após grandes dificuldades de acerto do local de sua realização, definição da data de início, guerras que iniciaram concomitantemente, questões políticas que dificultavam a presença de participantes, apesar de tantas adversidades, aconteceu. Teve como uma de suas motivações principais a busca do restabelecimento da unidade na fé. O Papa Clemente VII e o Imperador Carlos V, em 05 de novembro de 1529, reuniram-se em busca de entrar em consenso sobre a realização do concílio, mas sua data de efetiva abertura foi 1545. Esse evento aconteceu com uma série de interrupções e recomeços. Nesse Concílio foi delineada claramente a concepção de fé católica diante da Reforma; foi estatuído um Catecismo Católico (1566), o Breviário foi reformado (1568) e um novo Missal disponibilizado (1570). Para que nos contextualizemos acerca do período e das determinações geradas nesse Concílio, é importante recordar que em 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero havia publicado 95 teses sobre a indulgência, o que ocasionou que em 15 de junho de 1520 o Papa Leão X assinasse a bula de ameaça de excomunhão contra ele. O que de fato aconteceu em 03 de janeiro de 1521, ficando, assim, selada a divisão religiosa e política da Alemanha.
10 ARIES, P., op. cit., 1981, p.10.
49
perseguem, tentando curá-la, passa a ser o desejo angustiante dos pais, sobretudo a
partir do século XVII. É nesse momento que surge um novo pensar dos médicos, os
quais se voltam então, com grande cuidado, para a vontade e a necessidade de
curar.11
Como seria comum acontecer em um país de forte religiosidade, no Brasil, por
exemplo, as grandes taxas da mortalidade infantil geraram um “imaginário justificador”
que assemelha a criança morta a um anjo. Com esta criatividade na forma de se
deparar com a morte, o sofrimento passou a ser minimizado, visto que era, então,
entendido, não como uma perda, mas um ganho, pois a partir de então aquela família
teria um anjinho no céu. Não obstante este fator, as pessoas começaram a se
empenhar em não deixar as crianças morrerem, gerando, com isso, além da mudança
no modo de lidar mais afetivamente com elas, uma considerável redução na
mortalidade infantil. Acrescido a isso, ainda, apareceram nessa época as novas
medidas médicas e higiênicas, as quais colaborariam com tal avanço no cuidado e
aumento de interesse na infância.
Em conformidade com o que assevera Philippe Áries a escola, nessa época, tem
função importantíssima na distinção da infância em períodos que surgiu a partir de
sua necessidade de classificar as classes escolares por faixa etária. Dessa forma,
outro olhar começa a ser lançado sobre a infância, um olhar individualizado que
distingue esse período em fases, exigindo assim tratamento diferenciado. Áries
afirma, ainda, que “sem o colégio e suas células vivas, a burguesia não dispensaria às
diferenças mínimas de suas crianças a atenção que lhes demonstra, e partilharia
nesse ponto da relativa indiferença das sociedades populares”. 12
A partir da compreensão sobre a distinção entre criança e adulto, a família passa
a acolher a infância de forma diferenciada, percebendo-a, agora, como possuidora de
direitos e merecedora de cuidados.13 Dessa forma, a partir do século XVII, o
sentimento de infância começa a existir na medida que a família nuclear se forma,
pois esta começa a se transformar e existir como “o lugar de uma afeição necessária
entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes”.14 Até então era
11
TRINDADE, J.M.B., op. cit., 1999. 12
ARIES, P., op. cit., 1981, p.177. 13
TRINDADE, J.M.B., op. cit., 1999. 14
ARIES, P., op. cit., 1981, p.11.
50
comum que quando as crianças atingiam certa idade iam morar em outra casa, que
não a de sua família. Esse tipo de formação familiar tinha o objetivo de, por exemplo,
ensinar um ofício. Não tinha função afetiva, se houvesse afetividade seria ótimo,
porém não era essa uma condição essencial.
Com essa nova formação familiar afetuosa, o sentimento de luto de quando uma
criança morre também muda, pois agora é vivenciado da mesma forma como se fazia
com um adulto. Antes, quando uma criança morria alguns poderiam ficar abalados,
mas em termos gerais não se sentia muito, pois o pensamento era que poderia ser
substituída por outra. A autora Michelle Perrot informa que, por volta do ano 1850, a
criança é pranteada na sua perda de forma concreta, tornando-se, inclusive, uma
prática costumeira a utilização, por exemplo, de um medalhão feito com mechas dos
cabelos da tal criança.15
Entretanto, inobstante esse sentimento de infância passar a tomar outra
conotação, o abandono no século XVIII ainda chega a números absurdos. É Judite
Trindade quem infere que nessa época os estudos afirmam que há uma concentração
dos abandonos na zona urbana, pois as vilas se tornavam o refúgio para mulheres
com gravidez indesejável, que certamente sofreriam preconceito e condenação social
maior na zona rural.16
Além do escândalo que a situação causaria, a mãe teria dificuldade de encontrar
alojamento e trabalho, o que não acontecia nas vilas, pois lá estavam os locais que
iriam acolher as crianças enjeitadas e pessoas que prestavam serviços a moças
grávidas. Esses serviços eram pagos, mas incluíam não somente a hora do parto
como também assessoravam o abandono. Assim, toda a estrutura que se forma para
atender à prática do abandono, assim como a casa dos expostos, que nasce com o
intuito de proteger a infância abandonada, começa a adquirir um sentido de incentivo
ao abandono, pois “dispondo da roda, homens e mulheres passaram a contar com um
apoio seguro para suas transgressões sexuais [...]. De protetora da honra, a Casa
tornou-se incentivo à libertinagem”.17
15
PERROT, M. Figuras e papéis. In: _____. História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras,
1992. v.4. 16
TRINDADE, J.M.B., op. cit., 1999. 17
TRINDADE, J.M.B., op. cit., 1999 apud COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
51
No Brasil, a primeira roda dos expostos foi instalada somente no século XVIII, na
Bahia, por volta de 1726 a 1730, no Asilo dos Expostos. Depois outras cidades
seguiram seu exemplo, como o Rio de Janeiro, em 1738, São Paulo, em 1825, e
Florianópolis, em 1828. Até então, no Brasil, as crianças abandonadas eram jogadas
no lixo ou em locais públicos, ou eram deixadas para serem criadas por parentes ou
por pessoas caridosas. Esse modelo assistencialista perdurou no país até o período
republicano, quando, em razão do grande número de crianças abandonadas, foram
criados os orfanatos, patronatos e seminários, que, dirigidos por congregações
religiosas, tinham o objetivo de cuidar dessa população de “enjeitados” de maneira
coletiva.18
Maria Luiza Marcílio, falando sobre o abandono e a forma como os pequenos
abandonados ou rejeitados eram cuidados, afirma que:
Em 1824 a promulgação da Lei dos Municípios, que isenta a responsabilidade da Câmara para com os pequenos abandonados nas províncias onde houvesse uma Santa Casa de Misericórdia que assumisse a tarefa, vai significar uma das etapas de um processo de transformação do caráter caritativo da assistência para uma perspectiva mais filantrópica, com maior intervenção do Estado. É importante lembrar que as concepções de público e privado são assimiladas historicamente pelo imaginário social, dessa forma o que pertence ao âmbito restrito do público ou do privado permeia as discussões e ideologias de todo o século XIX. O que é atribuição exclusiva de um e não de outro é uma questão flexibilizada e difícil de responder nessa época. No que concerne a Casa dos Expostos, apontavam principalmente as altas taxas de mortalidade e a dinâmica da ama-de-leite, contando com o poder jurídico, que já esboçava outros meios de intervenção, mais corretiva e moralizante. Inicia-se então uma fase filantrópica assistencialista que pensa a educação „moralizante‟ das crianças como meio fundamental de torná-las úteis e de resguardar a própria sociedade. Na verdade, filantropia e caridade se permeiam, adquirindo características mútuas: de um lado as estratégias filantrópicas de prevenção da desordem, e de outro os preceitos religiosos da caridade.
19
Já no final da Idade Média, começou-se a adquirir um conceito de trabalho
positivo e com ele a necessidade de uma população saudável e produtiva, o que
18
MARCÍLIO, M. L. A roda dos expostos e a criança abandonada no Brasil colonial: 1726-1950. In: FREITAS, M. (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. Disponível
em: <http://www.uff.br/creche/docs/concepcao_abandono_01.doc>. Acesso em: 22 abr. 2009. 19
Esta autora é uma das que se dedicaram ao estudo das assistências às crianças e adolescentes abandonados, bem como analisou toda a trajetória do acolhimento, que iniciou como uma forma de manifestação de caridade, principalmente por parte daqueles que tinham uma veia cristã, eram sabidamente caridosos e faziam este préstimo como meio de expiar suas culpas e viver em paz por contribuírem com o bem-estar e com a saúde daqueles inocentes enjeitados. A partir daí entrou-se numa outra fase em que a assistência sai dessa concepção mais caritativa para adquirir o caráter filantrópico, inclusive com a responsabilidade do Estado.
52
gerou para o século XVIII modificações políticas, sociais e econômicas, culminando na
Revolução Burguesa. No meio dessas mudanças estaria também a relação com a
criança que, agora, de certa forma, passa a representar um futuro trabalhador.20 Isso
fez com que se observasse um número maior de abandono de meninas, visto que
representavam para a família um fardo até o casamento, que ainda dependeria, para
sua efetivação, na grande maioria das vezes, de um dote. Já os meninos eram
percebidos como uma força de trabalho em potencial e, consequentemente,
possibilidade de lucro.
Com os números do abandono sempre crescentes, os orfanatos ou asilos, como
também eram chamados os locais criados especificamente para receberem crianças
abandonadas, passavam de lugar temporário para definitivo ou temporário, visto que
se tornaram a garantia de sobrevivência e esperança de um dote para as moças e
profissionalização para rapazes.
Em termos gerais, o atendimento feito nesses locais, criados para receberem as
crianças abandonadas, não era na sua maioria de responsabilidade do Estado ou da
Igreja, mas era estimulado pelas confrarias, e irmandades, ou pela chamada “igreja
dos leigos”, que deu origem também às Santas Casas de Misericórdia. Estas foram
assumidas por pessoas cristãs e caridosas, as quais acabaram por desenvolver um
papel importante nessa estrutura de serviço de abandono. É importante ressaltar que
esses serviços desenvolvidos segundo os moldes das Santas Casas aconteceram em
paralelo aos serviços prestados pelas congregações religiosas e pelos hospitais.
Judite Maria Barboza Trindade lembra que o primeiro asilo para crianças
abandonadas foi criado em Milão, no ano de 787.21
De qualquer forma, toda tentativa de lidar ou de esconder o abandono até então
não diminuía os números sempre crescentes dessa prática e, como consequência, da
mortalidade infantil que a acompanhava. Segundo Judite Trindade, os arquivos dos
asilos mostram que não importava as medidas tomadas pela igreja ou pelo Estado,
20
ORLANDI, O. Teoria e prática do amor à criança: introdução à pediatria social no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
21 TRINDADE, J.M.B., op.cit., 1999. O artigo “O abandono de crianças ou a negação do óbvio” integra a primeira parte da Tese de Doutorado desta autora sobre o abandono de menores na primeira república. Conforme ela mesma indica em seu resumo, este artigo “apresenta a trajetória do abandono de crianças desde o século XVIII até o surgimento de menores abandonados enquanto „problema social‟. Essa trajetória é buscada na historiografia, sobretudo francesa, e na literatura médica e jurídica até o início do século XX, período no qual se constroem políticas sociais específicas para o atendimento de menores abandonados”.
53
porquanto essas instituições não conseguiam dar conta do número de crianças
abandonadas. Assim, procuraram-se meios de exterminar essa prática dando-se mais
atenção às mães, no sentido de conscientizá-las, assim como aos seus familiares,
para que não abandonassem seus filhos.22 Foi assim que, no final do século XVIII,
surgiu o conceito de boa mãe, e a mulher, fosse ela pobre ou rica, começou a se
inserir nesse novo papel.
Como afirma Elisabeth Badinter, a era das provas de amor começou. O bebê e a
criança transformaram-se nos objetos privilegiados da atenção materna. A mulher
passa, então, a aceitar sacrificar-se para que seu filho pudesse viver de uma forma
bem melhor junto dela.23 Estava-se, pois, na gênese de uma cultura do afeto, que
mais adiante passaria a ocupar lugar de destaque não apenas nas relações
individuais, mas na própria forma de constituição e definição de família.
A infância e o abandono então ganharam destaque como problema, e países
como França, Itália e Inglaterra, onde essa prática é muito utilizada, se caracterizaram
por publicar um grande número de trabalhos sobre o tema. A partir daí emergiu uma
nova forma de abandono, a qual consiste em colocar crianças, não necessariamente
recém-nascidas, em asilos e orfanatos, fazendo então surgir o termo “criança
abandonada”.
É interessante, pois até então, a existência do abandono não era assim admitida
pela sociedade, porém, “nesse sentido, desde o século XIX está admitido o óbvio, ou
seja, a existência do abandono”.24 Referida autora conclui que com a admissão do
óbvio acontece então a institucionalização do abandono e de sua assistência.
Contudo, há uma democratização do ato de entregar o filho à ama de leite, prática que
se tornou muito comum no período compreendido entre os séculos XVII e XIX, para
então entregá-lo a uma instituição, especialmente nas grandes cidades e pelas
classes mais populares.
Judite Trindade certifica, ainda, que outras formas de atendimento às crianças
surgiram como equipamentos de combate à pobreza e à mortalidade infantil como os
jardins da infância e as creches. O primeiro jardim da infância surgiu na Alemanha no
22
TRINDADE, J.M.B., op.cit. 1999. 23
BADINTER, E., op. cit., 1985, p. 201. 24
TRINDADE, J.M.B., op. cit., 1999, p. 9.
54
ano de 1837; já as creches apareceram na América do Norte e depois na Europa,
também no século XIX. 25
Com o desenvolvimento do capitalismo, esses instrumentos ajudaram a entrada
das mulheres no mercado de trabalho, e a creche especificamente não servia apenas
como um local para guardar os filhos, mas auxiliava as mães na orientação ao
cuidado com os filhos. Em relação à morbidade e mortalidade infantil, fatos
importantes geraram certa mudança nesse quadro, segundo a mesma autora. Um
deles é a presença da medicina higienista, que interferiu em questões como a seleção
de amas de leite, condutas de amamentação natural e discussão sobre lactação
artificial. Outros fatos importantes que influenciaram a queda dos índices de
mortalidade no primeiro ano de vida foram o aproveitamento do leite animal pelos
humanos e a adaptação do leite de vaca para bebês.26
Em termos de atendimento, é importante ressaltar que na passagem para o
século XX a assistência foi sendo reforçada pela ênfase na educação,
especificamente uma educação orientada para o trabalho. A criança, que de alguma
maneira ainda estava fora da família, ganha com a urbanização e o capitalismo um
olhar de preocupação. Iniciou-se uma distinção entre criança abandonada e menor
delinquente, pois aquela que no passado foi percebida como ser desprotegido agora
ganha um novo sentido. A criança, mais uma vez em foco, desta feita, “é vista, então
como futuro trabalhador e, portanto, cidadão, ou então futuro delinquente e eminente
perigoso”. 27
Essa então nova compreensão de infância, geradora de um novo entendimento
familiar, apresenta-se nos moldes da família nuclear no Brasil. E, segundo Roberto
Silva,28 até então tinha-se um modelo europeu, que subsistiu mesmo em meio aos
modelos da tradição indígena e negra existente no país, assegurado pelo Código Civil
Brasileiro, de 1916, como padrão hegemônico de organização familiar. Ao mesmo
tempo em que isso legitimou socialmente a mulher e os filhos com o casamento,
25
TRINDADE, J.M.B., op.cit., 1999, p. 10. 26
TRINDADE, J.M.B., op.cit., 1999, p. 10. 27
TRINDADE, J.M.B., op.cit., 1999, p. 11. 28
SILVA, R. S. A construção do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil. In: IPEA; UNICEF; CONANDA, SEDH (Org.). Relatório do levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes cadastrados na Rede SAC, Brasília, n.1, p.287-302, 2005.
55
também institucionalizou aqueles que não se enquadravam no modelo hegemônico
como a amante, a concubina, a mãe solteira e o filho ilegítimo.
Dessa forma, como ainda afirma o supracitado autor, se constituiu a teoria do
desvio, cujo desvio acontece em relação ao padrão de família constituído e
considerado hegemônico. O autor ainda lembra que esse padrão é baseado no
modelo europeu de homem branco, cristão, proprietário e letrado. Sendo assim,
muitos na sociedade se encontravam na situação de desvio, dentre os quais estavam
os órfãos e abandonados, caracterizados em grande parte por crianças afro-
descendentes, aos quais havia sido negado um papel dentro dessa organização
familiar.
É importante salientar que, juntamente com essa teoria do desvio, é gerada,
também, a sensação de necessidade de reparo, de que algo tem que ser colocado de
volta na rota. Foi, portanto, com base nesse sentimento, que a sociedade criou
mecanismos para lidar e atender às necessidades daqueles que se encontravam em
situação vulnerável.
Lúcia Maria Teixeira Ferreira, ao fazer um estudo sobre crianças abandonadas a
partir do final do século XIX, infere que os juristas brasileiros nessa época definem a
imagem do “menor” como se caracterizando principalmente por aquelas inúmeras
crianças povoadoras das ruas das cidades, as quais eram normalmente pobres e
totalmente desprotegidas moral e materialmente por seus pais.29
Segundo Gizlene Neder, no Brasil, a assistência social, de forma especial em
relação à família, iniciou-se a partir dos esforços da Igreja, que criou o conceito de
serviço social baseado no sentido de serviço na denominação católica. Com base nas
experiências das Santas Casas, a Igreja pareceu estar em condições para assumir
esse trabalho, ainda que esse serviço fosse realizado com base na caridade cristã e
muito fundamentado no modelo hegemônico familiar. Esta autora afirma, ainda, que
somente na década de 80, com a crise do Estado, os sociólogos, antropólogos e
29
FERREIRA, Lúcia M. T. Crianças abandonadas e o cuidado: estudo a partir de final do século XIX. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de, op. cit., 2008, p. 141-162, p. 152.
56
historiadores passaram a se dedicar aos temas dos micro-poderes, dentre os quais a
família.30
Lucia Maria Teixeira Ferreira lembra a importante informação trazida por Evaristo
de Moraes sobre a existência de diferenças entre as formas de identificar aqueles que
são desamparados. Entende ainda o referido jurista que existe as modalidades dos
menores materialmente abandonados e a dos menores moralmente abandonados.
Estes últimos são aqueles que popularmente chamaríamos de órfãos de pais vivos, ou
seja, os pais deixam de cuidar ou simplesmente o fazem de forma a usá-los em favor
do exercício do mal. Os que são abandonados materialmente são aqueles que mais
dificuldades terão na recuperação de sua humanidade ou dignidade de ser humano,
pois foram abandonados por decisão dos pais, certamente seria a categoria dos mais
infelizes ante a rejeição.31
De qualquer forma, independente de quem se responsabilize pelo cuidado dessa
população “desamparada”, surge o entendimento de que é chegado o momento do
Estado intervir. Aqui, trata-se especificamente da necessidade de intervenção do
Estado junto à criança abandonada, aquela que necessita de acolhimento e do
resguardo do fundamental direito à convivência familiar como uma forma de ver
efetivado aquilo que lhe é assegurado pela Constituição.
Neste sentido, Cenise Monte Vicente32, apresentando a importância que o afeto
começa a ocupar, lembra o quanto é importante que a comunidade e a sociedade civil
participem e colaborem, porém o Estado é visto como aquele que tem o dever de
proteger aqueles que por tanto tempo têm sobrevivido a sua própria sorte.
A partir da compreensão do desvio de um modelo familiar padrão e do
entendimento da necessidade de uma ação protetiva dos direitos constitucionalmente
assegurados às crianças, especialmente àqueles que se encontram nesse tipo de
situação, pode-se entender melhor a questão do abrigo e da família substituta. Essa
30
NEDER, G. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias no Brasil. In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 4. ed. São Paulo: Cortez/ Brasília, DF: UNICEF, 2000.
31 FERREIRA, Lúcia M. T., op. cit., 2008, p. 141-162, p. 153.
32 VICENTE, C. M. O direito à convivência familiar e comunitária: uma política de manutenção do vínculo. In: KALOUSTIAN S. M. (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 4. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNICEF, 2000.
57
prática passa, portanto, a ser compreendida como possível oportunidade de recolocar
o sujeito nesse padrão vigente de cultura familiar e social.
No entanto, ainda não havia uma leitura real da infância abandonada. O discurso
que se ouvia era que aquela seria resultado de uma crise na sociedade, que por ser
formada por homens dotados de vícios, más inclinações, desordens em seu afetos,
ainda era intensificada por outros fatores que contribuíam com o abandono. Fatores
como explosão demográfica, superpopulação e níveis de vida quase sobre-humanos,
dentre outros fatores, justificavam que o trajeto a ser percorrido por aquelas crianças
seria inevitavelmente o desamparo, a rua, os vícios, o crime.
Em conformidade com o que relata Roberto Silva, durante muito tempo, de
maneira especial enquanto estavam em vigor os códigos de menores de 192733 e
197934, as instituições de abrigo não funcionavam em aspecto transitório com o intuito
de restabelecer a organização familiar, mas de forma definitiva e colaboradora do
processo de desvio sociofamiliar. E isso acontecia de forma mais contundente para
meninos afro-descendentes, pois meninas brancas e recém-nascidas se encaixam,
até hoje, melhor no perfil do modelo familiar hegemônico. Como ainda afirma o autor,
“meninos e meninas afro-descendentes foram e ainda são condenados a viver em
abrigos até a maioridade, assumindo o abrigo a função de um substitutivo para a
família”. 35
2.2 A doutrina da proteção integral
A doutrina que cuida da proteção integral foi inicialmente consagrada na
Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da Organização
33
A respeito da legislação que se dirigia àqueles segmentos que eram rejeitados, ou melhor, à infância abandonada, principalmente na fase assistencialista, vigorava o Código de Menores Mello Matos, de 1927. Nessa época o abandono é visto como um possível risco de delito ou de corroboração a isso. Assim, esse código nasce numa época em que o imperativo era que as crianças deveriam ser retiradas das ruas para serem submetidas a medidas preventivas e corretivas. Na realidade, não interessava saber a razão das crianças estarem na rua, mas importava que fosse sedimentada a idéia de correção a que aquelas crianças, que passaram a ser chamados e tratados legalmente como menores e qualificados como abandonados e delinquentes, deveriam ser submetidas.
34 O Código de Menores de 1979 dá continuidade à idéia que já vinha vigorando à época, de que a necessidade das instituições de abrigo era cada vez mais crescente, visto que eram necessárias para atender os “menores” que eram recolhidos e careciam delas para prover sua “assistência”.
35 SILVA, R. S. A construção do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil. In: IPEA; UNICEF; CONANDA, SEDH (Org.). Relatório do levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes cadastrados na Rede SAC, Brasília, n.1, p.287-302, 2005, p. 290. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/Destaques/abrigos/capit10.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2009.
58
das Nações Unidas. Foi constitucionalizada no Brasil desde 1988 quando os
constituintes decidiram inserir no texto do art. 227, da Constituição da República
Federativa do Brasil, os seguintes termos:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O Estatuto da Criança e do Adolescente de 199036, em seu artigo 90, inciso IV,
teve o objetivo claro de abolir a prática do abandono. Esta interpretação decorre do
referido artigo assegurar o abrigo como instituição de caráter excepcional e provisória,
tendo como objetivo primeiro reintegrar a criança à família de origem ou mesmo
substituta.
Qualquer pessoa pode seguramente afirmar, sem receio de estar cometendo
injustiças, que viver e conviver com uma família em situações normais, ainda que em
momentos de crise ou adversidades, é melhor do que em qualquer instituição de
internação. O que se observa, é que a institucionalização tem corroborado a geração
de crianças analfabetas ou semialfabetizadas, sem muitas perspectivas ou sonhos de
vida melhor.
O Código de Menores de 1927 teve a função de consolidar a legislação a
respeito da infância, que até então emanava de Portugal. O Código caracterizou o
atendimento à criança baseado nos “efeitos de ausência”, dando assim ao Estado a
tutela do órfão e fazendo disponíveis os direitos de pátrio poder37 dos pais ausentes.38
O Código de 1927 ainda estabeleceu como serviço gratuito guardado em segredo de
Justiça, ou seja, não poderiam ser publicados seus dados, tanto o processo de
internação da criança abandonada como a destituição do pátrio poder.
36
ECA art. 90. 37
Com o Código Civil, Lei nº.10.406, de 10.01.2002, o pátrio poder foi substituído pelo poder familiar. Na época do antigo Código Civil, de 1916, o poder sobre os filhos era exercido pelo pai, não se falava no poder da mãe. Hoje, a responsabilidade para com os filhos é de ambos (pai e mãe). O poder familiar consiste no fato de que enquanto os filhos são menores e estão sob o poder dos pais devem-lhes obediência e respeito, não podem praticar atos da vida civil sem sua autorização ou assistência, mas ao mesmo tempo são dependentes dos pais, ou seja, estes têm o dever de sustentá-los, bem como de lhes dar assistência moral, emocional, financeira, educacional.
38SILVA, R. S., op. cit., 2005.
59
Por sua vez o Código de Menores de 1979 (Lei nº 6.697/1979) caracteriza-se
pela substituição da Doutrina do Direito do Menor pela Doutrina da Situação Irregular.
Essa nova doutrina baseava-se no entendimento de que só seria necessário se tomar
conhecimento do problema da criança quando fosse realmente confirmada sua
situação irregular na família. Dessa forma, o Código de 1979, como infere Lucia Maria
Teixeira Ferreira,39 ao mesmo tempo em que formaliza uma concepção biopsicosocial
do abandono e da infração, deixando estigmatizada a criança pobre e vítima de
abandono, orfandade ou violência (não importava a causa), como sendo “menor” e
potencialmente um delinquente, visto sua situação irregular.
Passou, portanto, o Código de 1979, a considerar as seguintes situações na
infância, as quais se encontravam dispostas em seu art. 2º: crianças privadas das
condições essenciais à sua sobrevivência, saúde e instrução obrigatória, ainda que
eventualmente; vítimas de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou
responsáveis; crianças que se encontrassem em perigo moral como as vítimas de
exploração por terceiros; crianças privadas de representação ou assistência legal pela
ausência dos pais ou responsáveis; crianças que apresentassem desvios de conduta
como consequência de uma grave inadaptação familiar ou comunitária; e aquelas
crianças que a elas fosse atribuída a autoria de atos infracionais.40
No período da transição de um Código de Menor para outro foi criada a
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) em 1964. Conta Roberto
Silva41 que a proposta da fundação teria sido rejeitada em 1961, quando apresentada
à Câmara dos Deputados. No entanto, com a morte do filho do ministro da Justiça,
Milton Campos, que foi assassinado de maneira violenta por adolescentes que
moravam nos morros do Rio de Janeiro, em 1964, o próprio ministro, junto com outros
juristas, convenceu o então presidente a criar por decreto a Fundação. Dessa forma, a
Funabem foi criada dentro do espírito da Doutrina da Segurança Nacional, com o
intuito de resolver um problema nacional: o menor.
Segundo o seu primeiro presidente Mário Altefender, “o problema do menor não
poderia ser solucionado com a idéia ingênua de construir abrigos”. Esse entendimento
39
FERREIRA, Lúcia M. T., op. cit., 2008, p. 141-162, p. 156. 40
BRASIL. Código de Menores. 2. ed. Brasília: Senado Federal, 1984. 41
SILVA, R. S., op. cit., 2005.
60
tornou a problemática do menor não mais da competência do Poder Judiciário, mas
do Poder Executivo. 42
Assim, a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei nº 4.513/1964), que
deveria estar a serviço da parte mais frágil e necessitada de proteção, que eram as
crianças, na realidade tornou-se, juntamente com o Código de menores, algo que
contribuiu veementemente com a privação do direito à convivência familiar dos
menores que, em situação irregular, eram facilmente abrigados em grandes
internatos. Estes se localizavam normalmente muito longe das residências das
famílias daquelas crianças e adolescentes, que, advindos em sua maioria, de classes
populares, nem sempre eram visitados por seus familiares, por falta de condições
mínimas para deslocamento, ou seja, dinheiro para o transporte.
Estava, pois, configurada a institucionalização como sendo uma das mais
perfeitas fontes de ruptura do direito à convivência familiar e comunitária, ainda que
muitas vezes necessária. Ali, naqueles internatos estaduais (FEBEMs por exemplo),
por um outro prisma, a criança deixa de conviver com aqueles que, caso bem
orientados ou ajudados, lhe promoveria o convívio, o afeto, a educação, a vida e tudo
o mais que lhe garantisse o desenvolvimento integral, visto ser reconhecido como
verdadeiro sujeito de direito.
É importante lembrar que, assim como o Código de Menores de 1927 não levou
em consideração a Declaração dos Direitos da Criança de 1924, o Código de 1979
também não se deixou influenciar pela Declaração sobre os Direitos da Criança de
1959, mesmo tendo sido o Brasil sensível à agenda de discussões da Organização
dos Estados Americanos, adotando a Doutrina da Proteção Integral, enunciada na
Declaração de 1959.
Somente em 24 de setembro de 1990, depois da aprovação da Lei nº 8.069, que
é de 13 de julho de 1990, que é do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi
ratificada no Brasil a Convenção sobre os Direitos da Criança de 20 de novembro de
1989, adotada pela ONU e vigente desde 1990.43 De qualquer forma, o ECA é
42
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Anais da X semana de estudos sobre problemas de menores. São Paulo: TJ, 1971, p.476.
43 Enquanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90 – ECA), é considerada criança, para os efeitos da Lei, a pessoa até doze anos incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade, nos termos da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela ONU
61
considerado hoje o tratado internacional mais completo sobre os direitos da criança,
considerando-a prioridade no estabelecimento das políticas públicas.
Flávia Piovesan assevera que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227,
encontra-se em perfeita consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança,
ressalta, também, que a Convenção acolhe a concepção do desenvolvimento integral
da criança, reconhecendo-a como verdadeiro sujeito de direito, a exigir proteção
especial e absoluta prioridade.44
Nesse mesmo sentido foi adotado o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), o qual disciplina a proteção integral à criança e ao adolescente, em
seguimento e observância ao comando constitucional. Atribuindo esta proteção à
criança, o caráter de prioridade absoluta, o ECA abrange os direitos da criança na sua
completude especialmente no que se refere à família e às alternativas nos casos de
impossibilidade desse direito nos seus termos naturais. Essa compreensão fica clara
no artigo 19, onde afirma que:
Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
45
É também especificado no artigo 92 e incisos, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, que é função das instituições de abrigo a preservação dos vínculos
familiares (Inciso I) e a integração em família substituta, quando esgotados os
recursos de manutenção na família de origem (Inciso II). Esses princípios garantem
assim o caráter provisório e excepcional da instituição de abrigo. No entanto, esses
direitos não têm sido assegurados na prática. De acordo com os estudos feitos a partir
do “Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede de
Serviços de Ação Continuada” as ações municipais não têm dado a prioridade devida
à prevenção dos laços familiares.
(20/11/1989), assinada pelo Brasil em 26/01/1990 e aprovada pelo Decreto Legislativo nº 28, de 14/09/90, é considerada criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada mais cedo.
44 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 207.
45 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
62
Na percepção dos dirigentes dos abrigos, constatada nessa pesquisa, muitas
são as dificuldades que intervém no retorno das crianças e adolescentes para suas
famílias, dentre elas a mais enfatizada foi a condição socioeconômica da família
(35,4%), depois a fragilidade, ausência ou perda do vínculo familiar (17,64%),
ausência de políticas públicas e de ações institucionais de apoio à reestruturação
familiar (10,79%), envolvimento com drogas (5,65%) e violência doméstica (5,24%).46
De qualquer forma, apesar das dificuldades encontradas para fazer valer o
direito da criança à convivência familiar e comunitária, é importante apresentar-se a
forma como hoje o programa de abrigo é operacionalizado, e, de modo especial,
enfocando a modalidade de família acolhedora.
É ainda importante ressaltar que esse programa faz parte do Sistema de Proteção
Integral. Este sistema é caracterizado pela ação articulada entre União, Estados e
Municípios – responsáveis pela promoção dos direitos – Ministério Público, Juizados da
Infância e Juventude, Conselhos tutelares e os Centros de Defesa de Direitos –
responsáveis pela defesa dos direitos – e os conselhos nacional, estaduais e municipais
– responsáveis pelo controle da execução da Política de Proteção Integral.47
Assim sendo, tem-se casa-lar ou abrigo domiciliar; república; casa de passagem,
acolhida, transitória, albergue; abrigo institucional e família acolhedora. Não importa
que modalidade seja aplicada, o importante é que o ECA, no seu artigo 92, inciso III,
seja cumprido, ou seja, que a estrutura possibilite um atendimento personalizado e em
pequenos grupos.
A casa-lar ou abrigo domiciliar, como o próprio nome sugere, acontece dentro da
estrutura de uma residência privada, podendo ser essa própria da instituição
responsável ou alugada. A coordenação fica a cargo dos chamados pais sociais, casal
social, mãe social ou por educadores que se revezam. Apesar da importância de que
a vizinhança seja avisada sobre a existência do programa, aconselha-se que não haja
nenhuma indicação, como placas, na casa de que ali funciona um abrigo. Os números
46
IPEA/DISOC. Levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes da rede SAC. 2003.
Disponível em: <http://www.aibi.org.br/biblioteca/documentacao/pesquisa_ipea_rede_sac_2003.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008.
47 CARREIRÃO, U.L. Modalidades de abrigo e a busca pelo direito à convivência familiar e comunitária. In: IPEA; UNICEF; CONANDA; SEDH (Org.). Relatório do levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes cadastrados na Rede SAC, Brasília, v.01, p.303-323, 2005, p.306. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/Destaques/abrigos/capit11.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2008.
63
de crianças e adolescentes acolhidos nesse tipo de abrigo vão variar de acordo com o
tamanho da casa.
A república, assim como a casa-lar não deve ser sinalizada com placas, porém a
grande diferença é de que ela tem o intuito de abrigar adolescentes maiores de 18
anos, os quais não puderam retornar às suas famílias de origem, assim como não
tiveram a oportunidade de terem sido acolhidos em famílias substitutas. Nesse tipo de
abrigo não tem educadores residindo com os adolescentes, mas apenas dando
suporte em alguns momentos do dia, pois é importante que o adolescente contribua
para a manutenção da casa através de realização de tarefas domésticas. Além disso,
participará do acompanhamento das despesas da casa e nas compras do mês, este
fato, em conjunto com sua inserção no mercado de trabalho, promoverá a ajuda
necessária para o desenvolvimento da autonomia que ajudar no processo de
desligamento do abrigo.
A casa de passagem, acolhida, transitória, albergue tem o objetivo de abrigar
especialmente meninos de rua que, na grande maioria, são levados por educadores
que os abordam na rua com o intuito de estabelecer um vínculo com a criança para
depois tentar encaminhá-lo para sua família de origem, ou se não for possível, enviá-
lo para outro tipo de programa. Apesar de esse ser um local onde a criança encontra
proteção, alimentação, cuidados básicos e orientação de profissionais qualificados,
como psicólogos, assistentes sociais, arte-educadores e pedagogos, não se constitui
realmente uma instituição de abrigo. Por sua flexibilidade em relação à estadia da
criança este tipo de abrigo encontra-se, na verdade, vinculado a Programa
socioeducativo em Meio Aberto.
O abrigo é, portanto, ainda hoje, o tipo de instituição que recebe o maior número
de crianças e adolescentes. Por isso não é de se estranhar que o serviço prestado
não se dá a contento, visto que não há possibilidade de um atendimento
individualizado ou, pelo menos, em grupos pequenos, nos quais pudessem ser
naturalmente estabelecidos, estimulados e cultivados os vínculos afetivos. Sem este
tipo de conexão não há que se falar em resultados positivos no tocante ao
desenvolvimento emocional, nem mesmo na convivência familiar que contribuiria de
forma concreta na saúde mental e equilíbrio da criança ou adolescente. Isto se dá
pelo fato de que uma instituição dificilmente, para não dizer nunca, poderia se
64
equiparar com algum tipo de família, trazendo as consequências de sua existência
para os seus membros.
Munir Cury, dissertando sobre este tema, cita, sabiamente, Cenise Monte
Vicente, que por sua vez fala de uma experiência de um pensador italiano que
experienciou a institucionalização e a traduziu com o conceito que ele chama de
homem vazio. São estas as palavras:
A família, a comunidade e a sociedade civil devem participar amplamente da elaboração de alternativas, priorizando o apoio à família para que esta possa cumprir com suas funções. A família natural ou substituta é sempre melhor do que qualquer instituição de internação. A institucionalização tem historicamente produzido crianças analfabetas e sem perspectivas de vida autônoma. Primo Levi, pensador, italiano, que passou pela experiência de institucionalização, sintetizou o efeito destrutivo da internação, através do conceito do homem vazio: „imagine-se agora um homem ao qual, junto com as pessoas amadas, lhe são levados sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo, enfim, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, condenado a sofrimento e necessidade, esquecido da dignidade e discernimento, já que acontece facilmente, a quem perdeu tudo de perder-se a si mesmo.‟
48
Percebe-se, então, que esse tipo de abrigo não prima pela individuação e
que faz da criança ou adolescente atendido mais um número, não estabelecendo
relações interpessoais. Consequentemente, essa modalidade não tem propiciado a
experiência de um convívio familiar e comunitário.
A família acolhedora, outra dessas modalidades, não apenas pode ser,
como de fato o é, um tipo de família onde realmente seus membros desenvolvem
vínculos afetivos que serão de extrema importância no desenvolvimento psicossocial
das crianças, na superação dos traumas familiares, bem como na efetiva garantia de
realização dos princípios constitucionais e dos direitos que se apresentam como
fundamentais na vida daqueles que se depararam com a orfandade, abandono ou
foram retirados do seio de sua família de origem.
48
CURY, Munir. Direito à convivência familiar: da reintegração familiar à colocação em família substituta. Revista Igualdade, Curitiba, ano VI, n. XIX, abr./jun. 1998 apud VICENTE, C. M. O direito à convivência familiar e comunitária: uma política de manutenção do vínculo. In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira - A base de tudo. São Paulo: Cortez, 2008, p.47.
3 O VÍNCULO AFETIVO NA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA
Se bastasse a canção da esperança/ para inundar de alegria/ a tristeza de nossas crianças/ de cantar morreria/. Mas quem sou eu?/ Mas quem sou eu?/ Simples cigarra em que a voz é escrava da melodia. Se bastasse cantar com brandura/ para estancar a sangria/ pro universo viver com candura/ de cantar morreria/. Mas quem sou eu?/ Mas quem sou eu?/ Simples cantante das noites dançantes das fantasias. É preciso muito, muito mais gente cantando/. É quase um esforço sobre-humano/ para conseguir mudar os planos.
(Eros Ramazzotti)
O homem, diferentemente da maioria dos animais, ao nascer o faz de forma
completamente dependente de outrem, ou seja, se não for alvo de cuidado1, ainda
que o mais incipiente possível, certamente não conseguirá sobreviver. Isto se
manifesta claramente, por exemplo, ante a observação sob o ponto de vista de
situações e necessidades de ordem fisiológica. Porém, somente com o passar dos
tempos é que virão à tona os efeitos emocionais, psicológicos e sociais gerados
através deste cuidar ou de sua ausência, é o que se chama, de forma acertada, de
descuidar.
Vive-se hoje numa sociedade que sofre, em seu cerne, as consequências do
descaso de fatores importantes para o desenvolvimento da personalidade de um
indivíduo, dentre os quais se poderia citar, por exemplo, a falta de segurança pelo
contato físico que a criança, ainda nos primeiros anos de vida, necessita, mas que em
muitos casos não lhe é oferecido. Este exemplo poderia ser caracterizado como algo
sem importância ou de difícil possibilidade de aferição de sua efetivação. No entanto,
é preciso trazer à baila que, dentre os itens elencados no dispositivo constitucional
que assegura, inclusive enfatizando que com absoluta prioridade, direitos como à
1 Cuidar: vb. ‘orig. cogitar, imaginar, pensar‟ ‘ext. tratar de, dar atenção a‟ ‘ext. ter cuidado com a saúde de, curar‟. Do lat. Cogitare. Sobre cuidado ver PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme (Coord.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
66
vida, à saúde, à dignidade, encontra-se, também, a menção a colocá-los a salvo de
toda espécie de negligência, crueldade e violência. Esta segurança, que deveria ser
inerente a toda criança de forma a motivar um crescimento livre de medos,
desconfianças, dúvidas e de forma totalmente segura pelo amparo que lhe foi
ofertado, é muito mais que um princípio ético ou crença religiosa, é, de fato, um direito
que lhe é assegurado pela Constituição Federal de 1988, onde em seu artigo 227,
caput, diz:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifo nosso).
No entanto, parece haver certa frieza ou desconhecimento da importância da
análise desses dispositivos legais, o que é perfeitamente justificável, pois eles
somente se tornam vivos e concretos ao serem aplicados de forma real, o que nem
sempre se observa. Isto é afirmado com base em simples constatações de que este
direito, o da convivência familiar, apesar de sua constante promoção, não vem sendo
vivenciado ou mesmo compreendido na exata dimensão de sua importância para a
saúde (em todas as dimensões) da criança, adolescente, futuro adulto, da família e da
própria sociedade.
Além da simples constatação, é preciso verificar-se a forma como o Poder
Público está promovendo a efetivação da norma jurídica que reza sobre a convivência
familiar e comunitária, de forma que, caso não esteja de fato ocorrendo a contento,
busquem-se novos métodos, políticas e estratégias para alcançar a eficácia jurídica
da referida norma.
Faz-se necessário inferir que, não obstante a atual legislação brasileira
preconizar a família e conceder-lhe uma especial atenção, em face de tratar-se do
lugar precípuo onde o indivíduo aprende a se conhecer e a desenvolver-se como
homem, o fato é que a história demonstra que muitas falhas e lacunas foram sendo
apresentadas como espaços que ficaram desocupados e/ou mal preenchidos.
No Brasil, em conformidade com a Lei nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, ECA,
67
Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e excepcionalmente em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (art. 19).
Entretanto, ainda que nem careça de um olhar atento, percebe-se esse como um
direito em que um imenso número de crianças não tem sido contemplado, ou seja,
não tem sido verificada sua aplicação e eficácia, pelo contrário, parece que nem existe
positivado na própria Constituição da República Federativa do Brasil. E isso não é de
agora, já se prolonga desde outros séculos.
Até o século XVII não se viam as crianças como seres humanos merecedores e
dignos de uma boa qualidade de vida ou mesmo sujeitos de direitos ou alvo de afeto e
cuidados. A criança era algo sem muita valia ou importância, além do que
representava muito mais um grande sacrifício para a família do que qualquer outra
coisa, e este era um fator determinante para o abandono, do qual, com tanta
frequência, eram vítimas nessa época tais crianças. O século XIX inicia-se
apresentando algumas transformações desse conceito, pois, em nome da caridade ou
como consequência de um dever moral então emergente, pelo menos em matéria de
segurança, as crianças começaram a progredir, visto que esse era um direito que
começou a lhes ser assegurado.2
A história da infância no Brasil é gravemente marcada por fatores como omissão,
descuido ou negligência, bem como pela falta de interesse ou assistência às crianças
abandonadas. E isso poderia até passar despercebido, ou pelo menos não se tornar
objeto de estudo de uma dissertação de mestrado, caso a criança não trouxesse em si
o potencial e a certeza de que precisa de cuidado, atenção e formação, visto que será
o adulto em um futuro que já se avizinha de forma cada vez mais rápida. Daí a
importância de observar se está acontecendo uma priorização não só por parte do
Poder Público, mas também da sociedade e da própria família, quanto à formulação e
implementação de políticas públicas que assegurem a garantia dos direitos das
2 TRINDADE, J.M.B. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 19, n. 37, set. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01881999000100003&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em: 28 out. 2008. Os arquivos dos asilos que datam desse século, XIX, mostram a extrema dificuldade dessas instituições quanto ao atendimento, pois o número de crianças abandonadas era cada vez maior e sempre crescente.
68
crianças e adolescentes, dentre eles especificamente o direito à convivência familiar e
comunitária.3
Entende-se que a criança, desde seus primeiros anos de vida, necessita ser alvo
de cuidados para que se torne um adulto equilibrado. Este certamente terá menos
necessidade ou tendência de se desviar do comportamento padrão da sociedade em
que vive, seja este no tocante à violência, seja na observância das regras ou normas
de convivência e harmonia, seja na própria idéia que tem de si e dos outros.
A criança e o adolescente precisam do cuidado maternal, ainda que não seja
efetivamente da mãe biológica ou mesmo adotiva, mas de alguém para quem ele
possa olhar e sentir não apenas a segurança, o carinho, o cuidado e a atenção, mas
alguém que também lhe apresente limites, que lhe indique os caminhos e o corrija
quando necessário.
Percebe-se claramente, não apenas no seio das famílias de classe menos
favorecida, mas nas famílias e entidades familiares de uma forma geral, que há um
desvio no entendimento de que é preciso cuidado e dedicação para que uma
plantinha cresça e dê bons frutos, em outras palavras, parece ser difícil compreender
esta verdade.
É importante inferir que o conceito de infância que se tem hoje, como uma fase
importante no desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo e merecedora de
cuidados e mimos por parte dos adultos, que foi desenvolvido ao longo dos séculos,
em nada se parece com o entendimento sobre infância que havia no passado. No
entanto, essa nova forma de compreender esta fase do desenvolvimento humano por
si só não é suficiente para que as crianças tenham a tranquilidade de verem
resguardado, dentre outros, o seu direito básico de convivência familiar e comunitária
e de serem amparadas, acolhidas e cuidadas no seio de sua família de origem.
Como consequência desse fator, bem como em resposta ao princípio
constitucional que deve ser aplicado e assegurado ao sujeito de direito, faz-se
necessário o surgimento de novas medidas que possibilitem tal efetivação. Assim,
3 No texto de apresentação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, encontra-se a explícita afirmação que este plano nacional reflete a clara decisão do Governo Federal de dar prioridade a essa temática de forma integrada e articulada com os demais programas de governo.
69
ante a necessidade de suprir aquilo que em tese deveria acontecer de forma natural,
surge a criatividade4, e com ela as novas medidas alternativas de cuidado e amparo,
de forma que seja garantida a convivência familiar, ainda que em famílias substitutas.
Todos os abrigos ou orfanatos, como são conhecidos popularmente, devem possuir o
caráter de excepcionalidade e ser provisório5. Mesmo assim, essa proposta não
condiz ainda com a realidade da assistência brasileira.
Em conformidade com pesquisa disponibilizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA)6, grande parte das instituições que se dedicam ao
trabalho de abrigo possuem sua administração sob a responsabilidade de entidades
religiosas ou de cunho assistencial, as quais são submetidas a regras embasadas em
suas próprias crenças, não se aproximando, necessariamente, pois, dos princípios
contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Referida pesquisa traz, ainda, a informação de que pouco mais de 20.000 (vinte
mil) crianças vinham sendo acolhidas e atendidas em abrigos da rede de serviços e
ações continuadas da assistência social (SAC), os quais devem, obrigatoriamente, ter
por escopo a observância e o cumprimento dos objetivos do ECA. Na continuidade da
pesquisa obtém-se a informação de que, mesmo com todas as orientações de que
sejam observados os dispositivos estatutários, observa-se que menos de 1% (um por
cento) das instituições da Rede SAC que desenvolvem programas dessa natureza
têm o cuidado de promover o resguardo e a manutenção da convivência familiar.
É neste ponto que se constata a necessidade de existência das famílias
acolhedoras e famílias substitutas. Este programa busca o estabelecimento da
convivência familiar ante a impossibilidade ou mesmo na espera pela adoção. Assim
sendo, respeitam-se os princípios e objetivos do Estatuto da Criança e do
4 Diz-se, popularmente, que a necessidade é a mãe da criatividade, e esta tem uma íntima ligação com a imaginação, que por sua vez é acionada imediatamente quando nos encontramos diante de algo que nos desafia. Em outras palavras, diante de um obstáculo importante que avança em nossa direção, por uma questão de sobrevivência, a capacidade humana é acionada e neste momento suas forças e habilidades físicas e mentais acabam sendo potencializadas, de forma que o homem buscará novas possibilidades que o façam melhor.
5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (Lei no. 8.069, de 13-7-1990 - ECA), art. 101, parágrafo único.
6 IPEA/DISOC. Levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes da rede SAC. 2003.
Disponível em: <http://www.aibi.org.br/biblioteca/documentacao/pesquisa_ipea_rede_sac_2003.pdf>. Acesso em: 13 set. 2008.
70
Adolescente, principalmente ao trazer de forma muito clara a garantia do caráter
provisório da instituição de abrigo.7
Saliente-se o fato de o direito à convivência familiar e comunitária ser um direito
fundamental contido na Constituição Federal, que deve ser objeto de efetivação e
fortalecimento. Assim, pretende-se esclarecer que o intuito dessa proposta não é que
a família acolhedora ocupe o lugar da família de origem, mas que seja utilizada como
forma primeira de acolher a criança ou o adolescente que se insere em alguma das
situações de risco, abandono ou violência motivadora da real necessidade de cuidado
e atenção.
Dessa forma, o processo de transição será viabilizado através de um
atendimento individual, apartado e completamente protegido da frieza das relações
que inevitavelmente se observam nas instituições. Pelo contrário, o que se verifica é
que se desenvolve um vínculo afetivo muito forte entre os atores envolvidos nesse
processo. Nesse ponto, já podemos antever a importância e o respaldo que o afeto
encontra junto ao direito e à família contemporânea.
Atualmente, muito se tem falado acerca da desbiologização da paternidade,
querendo, com isso, demonstrar que a paternidade é muito mais do que o resultado
de um simples fato da natureza, mas que se trata, na verdade, de um fato cultural. É
assim que infere Rodrigo da Cunha Pereira,8 o qual amplia esta concepção para a
própria família, ou seja, fala sobre a desbiologização da família e não apenas da
paternidade. Este autor trata do fato de que não se pode definir a constituição de uma
família apenas por um agregado ou estruturação de homem, mulher e filhos, mas ela
é antes uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar,
uma função.
Seguindo na explicação o autor ilustra que o lugar ou função de pai, de mãe ou
de filho não será necessariamente ocupado por estas figuras no sentido biológico.
7 É importante a lembrança do dispositivo estatutário que infere que a instituição de abrigo deverá ser utilizada de forma provisória e “[...] como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”, (ECA, art. 101, inciso VII). Isso deve acontecer de modo que a criança ou o adolescente em situação de abandono e/ou risco seja recebido no seio da família acolhedora, mas sempre com a certeza de que esta não substituirá a família de origem, mas será um canal para a manutenção da convivência familiar.
8 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13-14.
71
Assim, um indivíduo pode ocupar o lugar de pai sem que seja o pai biológico, como
também é possível, e isso acontece não raramente, que o pai ou a mãe biológica não
ocupe ou tenha dificuldades em ocupar o lugar de pai ou de mãe, tão necessários
(essenciais) à estruturação psíquica e formação como seres humanos. 9
Para Paulo Luis Netto Lobo, o desafio de estudar o afeto no direito ou os laços
advindos deste e da solidariedade derivam da convivência e não do sangue. Para este
Autor a família contemporânea recuperou a função que certamente esteve presente
em suas origens mais remotas, qual seja, a de ser um grupo de pessoas unidas por
laços de afeto e cujas vidas encontram-se em comunhão. Acrescenta que
O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares.
10
O que ocorre é que este afeto, ocupante de um lugar tão importante nas
relações de ordem familiar, remete à proposição de questionamentos do tipo “quais as
consequências observadas ante sua falta ou afastamento daqueles com quem este
vínculo afetivo havia se desenvolvido”. Além disso, saltam-se questões a respeito da
efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como acerca dos
transtornos de ordem psíquica, social e de conduta que se observam naqueles que,
privados da família biológica e do consequente vínculo afetivo aí desenvolvido
naturalmente, precisam ser institucionalizados, acolhidos e cuidados.
Uma dentre tantas outras perguntas que surgem é no tocante à forma como os
programas de abrigo têm atendido às crianças e adolescentes que se encontram sem
a proteção de seus pais ou responsáveis e em situação de ameaça ou violação de
direitos, se eles estão levando em consideração as mais distintas e variadas
ocorrências vividas por esses sujeitos. Esta indagação nasce do receio de
constatação de que aquela criança, além do trauma pela ruptura ou desagregação da
ordem familiar, por mais primária que seja, acaba sofrendo duplamente, pois vitimada
9 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. rev. atual.
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13-14. 10
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano
4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 03 ago. 2008.
72
perde seu aconchego ou segurança familiar e institucionalizada passa a ser mais um
abrigado.11
Os orfanatos ou as instituições de abrigo, durante muito tempo, já vêm sendo a
alternativa mais utilizada em vários países para prestar atendimento a crianças que
foram abandonadas e/ou se encontram à espera de pais adotivos que lhes escolha.
Ou seja, tais crianças, que na expectativa de adoção ou em situação onde o vínculo
familiar sofreu alguma espécie de ruído ou ruptura, permanecem, moram nessas
instituições enquanto aguardam alguém que se disponha a acolher e cuidar delas.
Nos últimos anos, alguns países têm adotado uma proposta alternativa acerca
desse cuidar, estabelecido no formato de lares substitutos ou famílias acolhedoras. É
exatamente em cima dessa proposta de “desinstitucionalização” que se encontra a
motivação que nos tem levado à busca de analisar a eficácia jurídica do princípio
constitucional contido no artigo 227, o qual garante o direito fundamental à
convivência familiar e comunitária.
Perseguir e questionar acerca da efetivação de um direito do porte do da
convivência familiar é ir muito além da mera constatação das mudanças que urgem
em nosso tempo ou que já vêm acontecendo hodiernamente. De fato, algumas
transformações têm ocorrido desde a promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil, em 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em
1990, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, bem como com a
ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1990.12
Assim, é cogente suscitar a questão primordial, que se refere à forma como se
tem respeitado e protegido a dignidade13 das crianças e adolescentes cuja vida foi
11
Costuma-se dizer que, em vez de um quarto para dormir, mesmo tendo que dividir com vários irmãos, parentes ou agregados, na instituição a criança perde a visão de seu quarto e passa a dividir um “dormitório”; em vez de fazer suas refeições na sala de jantar, na cozinha ou em qualquer que seja o ambiente de sua casa, como consequência da institucionalização, a criança passa a comer no “refeitório”.
12 BRASIL Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária/ Secretaria Especial de Direitos Humanos. Brasília-DF: Conanda, 2006, p. 19. Numa análise conjuntural, desenvolvida e apresentada nesta publicação mencionada, observa-se claramente que vêm acontecendo algumas rupturas em relação às concepções e práticas assistencialistas e institucionalizantes.
13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 26. Para Sarlet a
dignidade da pessoa humana tem hoje a inevitável vinculação com os direitos fundamentais, sendo, portanto, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo.
73
surpreendida por circunstâncias que desnortearam seu caminho ou que lhes tornaram
mais uma das vítimas do descaso e da irresponsabilidade com que o próprio homem
tem administrado sua vida, seu corpo, sua família, suas relações.
Partindo-se do mais tênue significado do princípio maior da dignidade da pessoa
humana, busca-se adentrar não nas distintas motivações e/ou situações geradoras do
fato “saída do lar ou da família de origem”, mas, iniciando-se pelo princípio
constitucional como um direito fundamental, passando-se pela busca de compreender
o que motivaria pessoas a acolherem crianças em suas casas, pretende-se atingir a
forma como o direito à convivência familiar contido no seio da Constituição Federal e
no ECA tem sido motivado ou promovido.
Quer-se firmar e afirmar o entendimento que o cuidar que é ofertado e
promovido nas instituições de abrigo ou orfanatos, como são chamados, não tem o
condão de substituir o cuidar da família. Este último, por ter seu nascedouro numa
relação tão importante, como é a família, gera, dentre outros resultados, o bem-estar
emocional, a segurança e o desenvolvimento das relações interpessoais. Trazer o
tema cuidado para a seara de discussões do Direito deve envolver, sobretudo,
compromisso e responsabilidade. Leonardo Boff14 enfatiza que o cuidado representa
uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o
outro, ou seja, vai muito além do que o simples estar perto ou providenciar a
satisfação de algumas necessidades básicas, mas esta atitude envolve a inserção na
natureza e na constituição do ser humano.
É preciso estar embasado no fato de que o direito à convivência familiar e
comunitária é um direito fundamental dos menores de 18 (dezoito) anos e que o
entendimento que se tem acerca da família atualmente não se reduz àquela que é
advinda do casamento civil ou religioso com efeitos civis, conforme será visto
oportunamente.
Na verdade, para compreender-se a família contemporânea é preciso elastecer
tal entendimento, estendendo-lhe às entidades familiares, formadas pela união estável
entre um homem e uma mulher, ou, citando mais um exemplo, às famílias
14
BOFF Leonardo. Saber Cuidar: A Ética do Humano - Compaixão pela Terra, 1999.
74
monoparentais, definida como a entidade familiar integrada por um dos pais e seus
filhos menores.15
Do mesmo jeito, as famílias substitutas poderão ser entendidas como mais uma
das formas de vivenciar este desafio que hoje se destaca no campo do Direito de
Família, qual seja, o de compor as diversas formas de definições ou pelo menos
compreensão do que seja o conceito de família na atualidade. Para tanto, sobre as
famílias substitutas o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 19, é bem
enfático ao prever que a colocação nesta modalidade de família deve ter o caráter de
excepcionalidade.16 Diz o mencionado dispositivo legal que: “Toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta...”.
A autora Tânia da Silva Pereira menciona o termo “novas famílias possíveis”
para destacar que às famílias tradicionais ainda se somam aquelas que, de forma
totalmente desvinculada do fator biológico, também surgem para dilatar o rol de
modelos de famílias contemporâneas, acrescendo aquelas “comunidades formadas
por pessoas que se propõem a viver em grupo, motivadas muitas vezes por razões
religiosas ou ideológicas, agrupamentos na busca de sobrevivência ou
autossuficiência”. 17
Neste sentido, o estudo na analisa as relações que, de forma especial, estão
fazendo parte daqueles que utilizam ou precisarão utilizar os serviços de lar substituto
ou família acolhedora. Detém-se sobre os aspectos importantes das famílias
acolhedoras, porque estas representam um sistema alternativo que visa suprir, pelo
menos em parte, a carência da vivência familiar, bem como diminuir ao máximo seus
efeitos negativos no desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo.
Toda prática deve estar pautada nos princípios constitucionais de forma que tudo
transcorra de modo que o melhor interesse do menor seja assegurado, dentre outras
15
LOBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 66. 16
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 6, p. 262.
Este autor, mencionando o artigo 28 do ECA, infere, ainda, que “a colocação da criança em uma família substituta sempre deverá obedecer ao princípio do direito de família, de buscar o melhor interesse do menor e só acontecerá a partir de decisão judicial. Assim, na medida do possível, a criança será ouvida, levando-se em conta o grau de parentesco ou o grau de afinidade ou afetividade que mantém com a família substituta, a qual o receberá mediante guarda, tutela ou adoção”.
17 PEREIRA, Tânia da Silva, op.cit., 2008, p. 311.
75
normas principiológicas. Desta forma, buscar-se-á, com a extração das crianças da
instituição, proporcionar-lhes uma sempre mais crescente segurança e estabilidade, a
partir da experiência de relações vinculares mais próximas, as quais corroborarão um
desenvolvimento mais saudável em todos os níveis.
A Secretaria de Ação Social do Estado do Ceará divulgou alguns resultados que
se referem às diferenças que se verificam entre crianças que moram em abrigos, as
institucionalizadas, e aquelas que foram abrigadas e passaram a residir em famílias
acolhedoras. Neste ponto é importante notar que este tema é de interesse nacional,
afinal, o abandono de crianças constitui um dos problemas sociais de maior gravidade
no Brasil. As diferenças que foram observadas dizem respeito a vários aspectos.18
Dentre esses aspectos abordados, relatou-se destaque especial para o de cunho
emocional. Em outras palavras, demonstraram-se diferenças entre as crianças que
são abrigadas em instituições e aquelas que estão em famílias acolhedoras, as quais
recebem afeto, criam vínculos e, certamente, como consequência deste fator, trazem
em si a expressão de um semblante alegre, bem como uma auto-estima mais elevada
do que as residentes em abrigos.
3.1 Identificação da importância real do vínculo
Mais do que claro se apresenta o fato de que, por questões de ordens
ideológicas, culturais, políticas e sociais, a família sofreu mutações, as quais geraram,
no ordenamento jurídico brasileiro, a necessidade de produção de respostas eficazes
às alterações verificadas no contexto. Como já mencionado anteriormente, seguindo
pensamento de Rodrigo Pereira da Cunha, o afeto, o respeito, a vontade de seguir
juntos e o tratamento igualitário vêm se tornando o elo entre seus componentes.19
Ressalta-se, a partir de então, a incapacidade do vínculo biológico ou genético figurar
sozinho como sendo a base da família. Não seria, pois, mais possível justificar-se a
existência de uma família ou entidade familiar com base apenas no casamento, na
filiação ou no parentesco, seja este de natureza consanguínea ou afim.
18
CARREIRÃO, U. L. Modalidades de abrigo e a busca pelo direito à convivência familiar e comunitária. In: IPEA; UNICEF; CONANDA; SEDH (Org.), op. cit., 2005, p.306.
19 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Nem só de pão vive o homem: responsabilidade civil por
abandono afetivo. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v21n3/a06v21n3.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2009.
76
Comunga-se com o pensamento de que numa sociedade onde seus membros
desfrutam de bons sentimentos que lhes dêem segurança, coragem, solidariedade,
sempre haverá uma maior possibilidade de se ver efetivado, ainda que de forma
mínima, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual trará após si a
observância de outros, como o da afetividade, solidariedade, melhor interesse do
menor, convivência familiar frutuosa para todos.
Não se afirma isso de forma sonhadora, como se os homens fossem seres
angelicais desprovidos de reações humanas e muitas vezes até chocantes e
traumáticas, muito menos desconsidera-se a probabilidade de existência de
sentimentos ruins ou mesmo procedimentos antissociais. Pelo contrário, tem-se em
mente o pensamento de Gabriel Chalita, que a família é uma instituição onde as
máscaras devem dar lugar à face transparente, sem disfarces.20
Desta forma afirma-se ser o Princípio da Afetividade, sua eficácia e promoção,
de natureza fundamental, especialmente no que tange às famílias acolhedoras. Essa
compreensão decorre da constatação da importância do direito à convivência familiar
como concretização de um direito fundamental.
Cuida a previsão constitucional de um dever do Estado, não de uma espécie de
favor ou, muito menos uma forma de lenitivo ou camuflagem aos desafios que se
verificam na vida, na dignificação como pessoa e na formação da personalidade das
crianças e adolescentes, vítimas de violência, orfandade ou abandono, que se vêem
cerceadas do convívio na família biológica ou nuclear.
A mola propulsora da efetivação do direito em análise está no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, acompanhado do princípio
constitucional implícito da afetividade, bem como o da solidariedade e o do melhor
interesse do menor. Assim, busca-se compreender algumas nuanças do processo de
transformação e adaptação por que passa a família, seus membros e a sociedade do
século XXI.
20
CHALITA, Gabriel. Educação: a solução está no afeto. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Gente, 2004, p. 21. Gabriel Chalita é um autor que, doutor em direito e comunicação e mestre em direito e ciências sociais, tem se dedicado a colocar seus conhecimentos e experiências também na área de filosofia, outra graduação, a serviço da educação de crianças e adolescentes e orientação de famílias e educadores, sempre com o intuito de sugerir caminhos para adaptação ao ritmo das mudanças que o mundo tem vivenciado.
77
Considera-se que pela própria característica do homem, um ser em constante
busca e evolução, todas as coisas podem encontrar solução, até mesmo aquilo que
hoje se apresenta como dificuldade e desafio pode ser passível de ser transformado e
tornar-se instrumento de melhoria de vida e construção de uma sociedade mais justa
e solidária.
Ao se confrontar com situações em que o afeto é o traço diferenciador das relações interpessoais, não se pode premiar com a irresponsabilidade comportamentos que afrontam o dever de lealdade que merece ser prestigiado como integrante da estrutura familiar. [...] Certamente, esse viés ético foi o que levou à consagração da paternidade socioafetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo se divorciado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento levado a efeito de forma espontânea por aquele que, sabendo que não é o pai consanguíneo, quer o filho como seu. A chamada adoção à brasileira nada mais é do que a vedação de locupletamento por situação causada por quem procedeu em desconformidade com a lei e a verdade. Se foi o elo da afetividade que gerou a posse do estado de filho, o rompimento da convivência não pode romper o vínculo de filiação. Tal atitude, ainda
que configure o delito de falsidade ideológica, nem por isso deixa de produzir efeitos e não pode gerar irresponsabilidades ou impunidades.
Assim Maria Berenice Dias21 aborda com muita propriedade e experiência o
tema da afetividade, evidencia ser insuficiente a inserção do afeto como elemento
identificador dos vínculos familiares, pois caso contrário poderia haver uma redução
na importante trajetória que se vem observando no contexto da família
contemporânea. Ademais, continua, é impositivo invocar a ética como elemento
estruturante do Direito de Família. Assim sendo, traz-se concretamente à realidade o
fato da primazia do afeto na constituição de uma entidade familiar ou família.
21
DIAS, Maria Berenice. Família, ética e afeto. Revista Jus Vigilantibus, 2004. Disponível em:
<http://jusvi.com/artigos/1651>. Acesso em: 02 ago. 2009. Maria Berenice Dias é Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e ocupa atualmente o cargo de Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.
4 FAMÍLIAS, VÍNCULOS E CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Há uma „geração‟ que vem através do acolhimento, da atenção, da dedicação. A relação que daí brota é tão íntima e duradoura, que de maneira nenhuma é inferior à que se funda na pertença biológica.
(Papa João Paulo II)
O mistério desvendável da família é uma grande aventura, pois quanto mais se
passa de uma etapa a outra, como consequência de crises causadas por alterações e
necessidades de releituras, adaptações e reajustes, mais surgem novas
possibilidades de viver a realidade familiar com outras nuanças, algumas, inclusive,
jamais imagináveis pela mentalidade do homem ocidental. Assim, como o direito
acompanha lado a lado as evoluções da sociedade, ao se deparar com as novas
formas de convivência e vivência do afeto vai criando leis ou positivando aquilo que já
se lhe apresenta como realidade.
Para a análise sociojurídica da família em sua versão acolhedora, como forma
de eficácia do direito à convivência familiar, a qual se delineia neste estudo, pareceu-
nos importante demarcá-la em alguns tópicos. São eles: compreensão do que sejam
famílias acolhedoras; o direito à convivência familiar; alguns princípios constitucionais
de direito da família e da criança; o Princípio da Afetividade, o afeto e o
desenvolvimento do ser humano.
4.1 Famílias acolhedoras
Antes mesmo da apresentação e compreensão do que vem a ser a família
acolhedora, faz-se um parêntese em relação à nomenclatura utilizada. Na realidade, a
escolha do uso do termo “acolhedora” ou “substituta” pode querer se referir a essa
modalidade de cuidado, a família acolhedora, o que é perfeitamente compreensível,
apesar da confusão que isso pode gerar no entendimento, por exemplo, do direito à
79
convivência familiar. Aqui no Brasil a terminologia “substituta” tem sido relacionada
mais comumente à adoção. Assim sendo, a expressão “acolhedora” é a escolhida e
mais utilizada. De qualquer forma, no percurso do desenvolvimento deste trabalho
ainda se viu o termo substituta utilizado em alguns momentos, quando de alguma
citação de outros autores.
O nome é verdadeiramente sugestivo e não haveria melhor conceituação do que
aquilo que realmente significa esta expressão. Estamos sempre falando acerca das
mais diversas formas de definir famílias e compreender as modificações pelas quais
estas vão atravessando ao longo dos anos. Assim sendo, em resposta às situações
nas quais têm se deparado as famílias modernas ou atuais, ou mais especificamente
aquelas que são compostas por crianças ou adolescentes que trazem em si as
marcas de uma era onde os vínculos podem se dissolver da mesma forma rápida e
instantânea com que podem surgir, trazemos uma definição inicial e simples. Famílias
acolhedoras são aqueles lares, de natureza provisória, utilizados em caráter
excepcional, que se abrem para acolher e abrigar crianças que não podem continuar
convivendo com seus pais ou sua família de origem.
Acerca dessa natureza provisória que deve acompanhar o abrigamento em lar
substituto, achamos por bem citar os comentários de Válter Kenji Ishida, comentando
o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, onde diz que
Nos procedimentos da infância e juventude, a preferência é sempre de mantença do
menor junto aos genitores biológicos. Somente após acompanhamento técnico-
jurídico verificatório da inexistência de condições dos genitores, inicia-se a
colocação em lar substituto. As expressões forenses utilizadas são família natural
para aquela originada dos genitores biológicos e família substituta para aquela
concretizada pela guarda, tutela ou adoção.
A criança ou adolescente tem direito de ser criado em ambiente livre de
entorpecentes, podendo, no caso, ser adotada a medida do art. 130 do ECA
(afastamento do genitor ou do responsável legal). 1
Enquanto perdurar a situação de acolhimento nessas famílias a criança deverá
manter, quando possível, contato com os pais, pois o vínculo afetivo precisa ser
mantido e estimulado, ainda que distantes, até que o problema seja sanado. Esta é a
verdade teórica. Ocorre, contudo, que na grande maioria das vezes o retorno ao lar
não será possível. O pior é que esta impossibilidade de restauração familiar pode ter
1 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.26.
80
como causa primeira a falta de entendimento por parte do Estado, da sociedade e da
própria família, de que aqueles pequenos seres precisam de cuidado e proteção, de
fato e de direito, especiais.
É imperioso que as políticas de proteção não regridam à compreensão que havia
à época do Código de Menores de 1979, quando a Política Nacional do Bem-Estar do
Menor formalizou “a concepção „biopsicossocial‟ do abandono e da infração e
explicitou a estigmatização das crianças pobres como „menores‟ e delinquentes em
potencial, através da noção de „situação irregular‟ expressa no art. 2º”.2
O que acontecia naquela ocasião é que as instituições, chamadas internatos,
existiam para abrigar e cuidar das crianças (menores) que se encontravam em
situações irregulares. No entanto, por serem instituições enormes e por haver um
imenso número de internos, não havia possibilidade de ser oferecido um atendimento
e tratamento personalizado. Além disso, o reflexo dessa política de institucionalização
era a privação do convívio familiar. Assim, as crianças e adolescentes que lá se
encontravam perdiam rapidamente o contato total com suas famílias, tanto devido à
distância entre as residências e as instituições, quanto pela extrema carência
econômica, que impedia a continuidade nas visitas regulares, resultando num grande
distanciamento e na quebra do direito à convivência familiar por todos preconizada.
Há uma urgente necessidade de compreensão, por parte da sociedade civil, do
Estado e das famílias, acerca do fato de que toda criança carece de estar próxima
daqueles com quem mantém vínculo afetivo, caso contrário o prejuízo não será
somente deles, mas de toda a sociedade, que acabará ferida por aqueles que não
tiveram suas feridas pensadas a contento. Mas, se esta quebra no vínculo é
exatamente o ponto nevrálgico que gera a necessidade de acolhimento, amparo,
cuidado e acompanhamento às crianças e suas famílias, como fazer para que este
seja eficiente em vez de promover maiores dores e prejuízos às pequenas vítimas?
Em alguns Estados do Brasil, como por exemplo, Rio Grande do Sul, Paraná,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, já vem sendo desenvolvido um trabalho no
sentido de estimular o surgimento e aumento do número de famílias que
2 PASSETI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas apud FERREIRA, Lúcia Maria Teixeira. Crianças abandonadas e o cuidado: estudo a partir do final do século XIX. In: PEREIRA, Tania da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de, op. cit., 2008, p. 141-162, p. 156.
81
disponibilizam seu colo para acolher aqueles que muitas vezes não têm sequer como
entender o que está acontecendo com sua vida que “de repente mudou, da noite para
o dia”, quanto mais no sentido de ver efetivada sua dignidade de pessoa humana.
Para tanto, as iniciativas são tomadas entre municípios e organizações não
governamentais que acompanham todo o processo pelo qual passa a criança em
foco, sempre priorizando a reorganização daquele lar de origem e então
desequilibrado, de forma que haja um retorno da criança, sem maiores prejuízos nem
perda de sua identidade.
Este é um aspecto bem observado e cuidadosamente analisado, pois há um
grande risco de que aquela família acolhedora, aquele lar provisório, se torne melhor e
mais agradável do que a família nuclear. Este é um risco que está presente também
em muitas instituições, as quais oferecem atividades extras, como estudo de línguas
como inglês, prática de exercícios físicos e esportes, brincadeiras, amigos novos e
seus consequentes desafios, dependendo das idades das crianças. Nesse caso, a
criança pode, a princípio, preferir a instituição, até porque vem de uma situação onde
sua casa tornou-se um verdadeiro campo de combate, ou antro de ameaças e dores,
além de ser um lugar onde é abusada sexualmente ou explorada. Não haveria
justificativa para desgostar da instituição. O problema é que nem sempre a chama da
novidade estará ardendo e de prontidão para estimular os vínculos e a sensação de
que está sendo alvo de um cuidado e afetos especiais, mas ela, a criança, é uma a
mais, dentre tantas.
Hoje, ao falar na diversidade de modalidades de família ou entidade familiar que
existe, não podemos mais nos limitar àqueles tipos que encontram sua gênese nos
laços de sangue. Afinal, os laços afetivos têm demonstrado serem tão ou bem mais
poderosos e importantes definidores e mantenedores das instituições do que os de
sangue.
A família acolhedora é a modalidade que tem como base uma família já
constituída, a qual se abrirá para receber, daí a perfeição do uso deste termo, para
acolher a criança ou adolescente em sua casa, para cuidar a partir de relações mais
estreitas. Como em outros tipos de serviço de abrigo institucional, já anteriormente
descritos, a família assume as atribuições de guardiã sob termo de responsabilidade
82
através de acordo de corresponsabilidade sobre o atendimento que será realizado
com a instituição que executa o programa.
É importante ressaltar que a instituição executora do programa deve estabelecer
critérios de seleção para as famílias acolhedoras, as quais devem compor um projeto
que será submetido ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA) e ao Juizado da Infância e Juventude. No entanto, sugere-se que os pais
acolhedores tenham faixa etária superior a 25 anos, que a residência tenha condições
de receber mais de uma criança ou adolescente, no caso da possibilidade de grupo de
irmãos, e que esteja próxima a posto de saúde, escola e outros equipamentos que
facilitem o atendimento. É importante colocar que no caso de um grupo grande de
irmãos a instituição executora do programa deve tentar colocá-los em casas na
mesma vizinhança.
Em relação ao estado civil dos pais acolhedores não há nenhuma restrição. No
entanto, existem algumas questões que podem se colocar como obstáculo no
processo de seleção como: o candidato estar em processo de luto, ser candidato à
adoção, mesmo que ainda não formalizado, e / ou se encontrar registrado em órgão
de proteção e defesa da criança e do adolescente como agente de ameaça. Em
relação a ser candidato à adoção, o obstáculo se refere à intenção primeira dessa
modalidade, que é a de preservar o caráter provisório da condição de separação da
criança e sua família de origem, objetivando assim a reintegração das mesmas assim
que possível.
Todas essas exigências se explicam na importância de que a família acolhedora
esteja em condições adequadas para receber a criança / adolescente advindo de
situações de risco. Essa família, ao mesmo tempo em que reproduzirá um novo
modelo familiar, o fará de forma provisória. Por isso, espera-se que, ao estabelecer
relações saudáveis, isso possa ser feito de maneira adequada, pois a proposta dessa
forma de abrigamento é aproximar-se ao tratamento individualizado e ao suprimento
do direito à convivência familiar e comunitária.
Úrsula Carreirão ressalta que o programa de abrigamento não é suficiente para
lidar com a violação do direito à convivência familiar e comunitária, mas é necessário
que a ação municipal seja eficaz quando confirmada a ameaça ou violação desses
83
direitos. Se isso não acontece, continua a autora, “reinventaremos a roda dos
expostos, os internatos, os orfanatos, os educandários que cumpriram suas
finalidades numa época em que a „situação irregular‟ era a marca das crianças e
adolescentes tratados como menores [...]”. 3
É verdade que ações políticas se fazem necessárias para que esse direito seja
promovido, especialmente porque muitas das crianças que estão nas ruas ou mesmo
nos abrigos estão não porque não têm vínculos familiares, mas devido às condições
socioeconômicas de suas famílias. 4
Maria Josefine Becker conclui, então, que “os motivos que as [crianças] levam a
essa situação de risco não é, na maioria das vezes, a rejeição ou a negligência por
parte de seus pais, e sim as alternativas, às vezes desesperadas, de sobrevivência”.
Portanto, um conjunto de políticas sociais precisa ser efetivado para que o sistema de
abrigo faça sentido e possa cumprir seus objetivos.5
De acordo com as diretrizes da política de atendimento da criança e do
adolescente, aos Municípios caberá o desenvolvimento e a execução direta de
políticas e programas que promovam e defendam os direitos das crianças e dos
adolescentes. É o que se chama de municipalização do atendimento. A este ente
cabe a coordenação ao nível local desse tipo de trabalho, podendo abrir-se a
parcerias com organizações não-governamentais que se dediquem à busca de
efetivação do que diz o art. 227 da Constituição Federal de 1988 e repete o art. 4º. do
Estatuto da Criança e do Adolescente recomendando sua efetivação. Contudo, é
mister enfatizar que proporcionar uma reviravolta na situação de abandono dessas
crianças trata-se de uma questão de corresponsabilidade
Não se buscam as causas acerca das razões geradoras do abandono, da
negligência, da violência ou de outros fatores que ocasionam a necessidade de
recuperar a convivência familiar e seus benefícios para a infância. Suscitam-se
apenas alguns elementos que serão utilizados para a identificação e possibilidades de
serem encontradas novas formas que proporcionem, não apenas a definição, o que
3 CARREIRÃO, U.L., op. cit., 2005, p.308.
4 IPEA/DISOC, op. cit. 2003.
5 BECKER, M. J. A ruptura dos vínculos: quando a tragédia acontece. In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 4. ed. São Paulo: Cortez/ Brasília, DF: UNICEF, 2000, p. 63.
84
não é tarefa fácil, mas a aproximação cada vez maior da efetivação do princípio da
dignidade da pessoa humana e outros direitos que se encontram intimamente
interligados a este no tocante à criança e ao adolescente.
4.2 A criança abandonada e a família acolhedora
Para chegar à visão e compreensão do todo e visualizar uma noção o mais
fidedigna possível acerca de algo é imprescindível que a parte seja analisada e
considerada, haja vista a sua contribuição para a composição do todo. Na verdade o
todo é feito pela união de cada parte, por isso não há como desconsiderar um em
detrimento do outro, sob pena de que a imagem traçada não seja consonante com a
realidade e a verdade que se pretende atingir.
Quando constata-se e afirma-se acerca da forma como a família avança na
história, sofre as consequências do progresso tecnológico e cultural, bem como as
influências de fenômenos sociais externos sobre si, estamos conclusivamente
atestando que são os seus membros os autores e partícipes de cada uma dessas
ocorrências.
Danda Prado é enfática ao dizer, ainda nos idos de 1984, que famílias são
espécies de organizações funcionais dentro de determinados contextos, que vão
passando por modificações em suas estruturas de acordo com interesses
socioeconômicos ou, ainda, em conformidade com o destaque ou relevo que uma
determinada sociedade confere a certos valores presentes ou não nela.6
Inobstante o fato de que, ao falar em transformações ocorridas na família ao longo
da história, não nos referimos apenas à família no Brasil ou nas civilizações ocidentais,
mas à família de uma forma geral, queremos enfocar aqui o universo brasileiro, visto
tratar-se da matéria onde se incluem os integrantes, alvo do nosso estudo.
Assim, ante a compreensão de que a família é formada por membros, dentre os
quais podem estar presentes crianças ou adolescentes, que são sujeitos do direito
fundamental à convivência familiar e comunitária em foco neste estudo, trazemos à
6 PRADO, Danda. O que é família? 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.61. A autora é psicóloga e
feminista e atualmente preside a Editora Brasiliense. Escreveu outros livros na Coleção Primeiros Passos, que é uma coleção cujos textos, de teor jornalístico e agradável, abordam temas sobre religião, antropologia, sociologia, atualidades, psicologia e demais inovações dentro da ciência, da cultura e da arte.
85
baila alguns aspectos inerentes ao ser humano. A análise do homem enquanto sujeito
histórico, mas também sob demais aspectos, é de considerável importância para o
nosso tema, pois falar sobre vínculos afetivos e princípios constitucionais, ainda que
não pareça assunto interligado, possui uma estreitíssima ligação. Este é um fato
ratificado quando se parte do ponto de vista em que a família é uma entidade orgânica
social e como tal se sujeita às transformações que vão ocorrendo na sociedade em
que se insere de uma forma geral. Assim, buscamos analisar o jeito como o homem,
sujeito de sua história, membro constituinte e fundamental desta família, age e reage
ante as circunstâncias que vai vivenciando em seu dia-a-dia.
Neste sentido Tânia da Silva Pereira, dissertando acerca do significado do
princípio do “melhor interesse da criança”, enfatiza a necessidade e prioritária
integração que pode e deve acontecer entre algumas ciências e disciplinas que de
alguma forma possam investir seus conhecimentos e técnicas para o aperfeiçoamento
da contribuição que devemos dedicar à proteção desses “sujeitos de direito”. Segue
esta autora, inclusive, apontando a Psicologia, Sociologia, Medicina, Pedagogia, como
exemplos de tais ciências que colaboram com recursos técnicos e princípios
dogmáticos para que os fins sociais que se encontram previstos na legislação da
infância e juventude possam ser atingidos.7
A criança não possui, ainda, em sua pouca idade e experiência de vida,
condições de olhar para si mesma e questionar-se acerca de sua existência. Na
verdade, esta é uma prática que todos nós, em algum momento de nossa vida,
deveríamos fazer, que é lançar o questionamento sobre o que somos nós, quem
somos nós. Sobre esta pergunta, ou mais precisamente sobre a questão “o que é o
homem”, Edvino A. Rabuske afirma que não apenas a resposta a tal questionamento
é filosófica, mas também a própria pergunta. Na introdução de sua obra Antropologia
Filosófica este autor assevera que em nossa vida cotidiana estamos ocupados como
problemas concretos. Fazemos perguntas concretas que esperam respostas
concretas. No entanto, querer saber o que é o homem é algo que brota de alguma
inquietação, da experiência de algo novo ou mesmo de uma reflexão sobre a cultura
7 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do “melhor interesse da criança” no âmbito das relações familiares. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord). Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.207-217, p.211.
86
atual. Em outras palavras, esta pergunta pode ser uma ocasião de “me tornar
questionável a mim mesmo”.8
A ação de abordar aqui esse tema deve-se ao fato de que a criança, ao nascer,
pertence a uma família, e isso por si só já seria suficiente para explicar que ao buscar
conhecer e efetivar os direitos que constitucional e internacionalmente são garantidos
a esses sujeitos de direitos, faz-se necessária a ciência acerca de tudo o que lhe
envolve.
Uma criança pertencente ao seio de uma família, independente da forma como
esta é compreendida9, em algum momento pode se deparar com o abandono e a
necessidade de acolhimento por pessoas com quem não possui qualquer ligação
biológica ou, pior ainda, com quem não seja detentor de qualquer vínculo afetivo.
Desses atos decorrem circunstâncias que, por mais que não nos ocupemos em definir
e nem percebamos sua importância, possuem um grau de conexão com o
desenvolvimento de uma sociedade que, se bem o compreendêssemos, não
mediríamos esforços em potencializar a concretização de políticas públicas mais
consistentes e com um alcance bem maior em sua eficácia.
Muitas vezes questiona-se quanto à colocação em nível de direito fundamental
da convivência familiar e comunitária. O que seria esta tal convivência familiar a que a
Constituição Federal de 1988 se referia e qual teria sido a sua real motivação ao
dispor este direito com tão alto grau de importância para que a sociedade, o Estado e
as famílias sejam corresponsáveis por seu resguardo de forma que sua efetiva
proteção seja promovida?
8 RABUSKE, Edvino A. Antropologia filosófica: um estudo sistemático. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 7.
9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro - direito de família. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. VI, p.1-2. Infere na introdução de sua obra que várias são as formas de conceituar ou classificar família. Pode-se entendê-la em uma visão lato sensu, onde o vocábulo família abrangeria todas as pessoas ligadas pelo sangue e que procedem, pois, de um tronco ancestral comum ou que possuem vínculos por afinidade ou pela adoção. Seriam família nessa visão os cônjuges, companheiros, parentes e afins. Este autor lembra que as leis, de uma forma geral, referem-se à família como sendo aquela formada por um núcleo mais restrito, qual seja, os pais e sua prole, mesmo que a prole não seja elemento essencial à sua constituição. Neste entendimento, onde se percebe uma visão reduzida ao seu núcleo essencial, esta é denominada pequena família.
87
4.3 Implicações do abandono e do acolhimento
Muitas são as consequências do abandono na vida de uma criança. Definir
abandono não é tarefa fácil, mas compreender que há muitas formas de sofrer esse
abandono por parte dos genitores, como já foi estudado, já é algo que se pode
apreender com mais facilidade.
Foi buscando, inicialmente junto a autores estudiosos da psicanálise e
psiquiatria, que compreendemos as implicações resultantes de tal convívio ou de sua
insuficiência. Ao confrontar as informações científicas com alguns casos concretos
com que nos deparamos em nossa própria história de vida constatamos que a
realidade é exatamente como nos é apresentada, algo inevitável.
John Bowlby é enfático ao dizer que, dentre os mais significativos avanços que a
psiquiatria vem vivenciando nos últimos tempos encontra-se a crescente comprovação
de que a qualidade dos cuidados parentais que uma criança vivencia em seus primeiros
anos de vida é fundamental ao seu sadio desenvolvimento e saúde mental futura.10
Evidentemente, poderíamos mencionar um rol de situações em que o abandono
de crianças por parte de seus genitores pode acontecer ensejando, inclusive, a
destituição do pátrio poder ou poder familiar, mas nos afastaríamos do objetivo deste
estudo. Assim, em vez de mergulharmos em tais circunstâncias, queremos chegar,
por outras vias, à compreensão da importância do desenvolvimento e manutenção
dos vínculos afetivos que podem e devem se dar na convivência familiar e comunitária
junto às famílias que acolhem, amorosamente, os pequenos abandonados ou vítimas
de violência e avarias.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, corroborando a necessidade de
compreensão dos conceitos de abandono, apresentam-nos esses em alguns julgados,
como a seguir: “deixar filho menor em completo abandono significa largá-lo ao
desamparo, sem proteção, permitindo fique ele atirado à vagabundagem, à
mendicância e à libertinagem”.11
10
BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. Tradução Vera Lúcia Baptista de Souza e
Irene Rizzini; revisão Luiz Lorenzo Rivera. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 13. 11
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. RT 528: 110, TJSP.
88
É Valter Kenji Ishida quem sintetiza que se configura o abandono a partir da
conduta omissiva dos genitores diante da assistência material e psicológica
relacionada ao art. 22 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e ao art. 1.634
do Código Civil. Ele cita ainda que:
[...] o conceito jurídico de abandono se contém nas leis de proteção ao menor, e em última análise, é definido quando o menor, por negligência, incapacidade, ou perversidade dos pais, ficar permanentemente exposto a grave perigo quanto à saúde, à oral e à educação, de forma comprometedora de sua formação como ser humano. (RT 507:104, TJSP).
12
Nas próprias decisões dos Tribunais percebe-se a preocupação com a formação
integral do homem, ou seja, as consequências das privações por que passam aqueles
que foram abandonados certamente implicarão em prejuízos à sociedade como um
todo, visto que se a família, base da sociedade, encontra-se ferida, esta chaga
suplantará os seus muros.
Quer-se ratificar que a partilha de fatores resultantes da pesquisa em outras
áreas científicas que nos oferecem informações vitais na compreensão do vínculo
afetivo e familiar como condições precípuas para um considerável desenvolvimento
psicossocial do homem é, de fato, imprescindível. Desde logo, conclui-se que uma
sociedade não é formada por robôs ou pessoas dotadas de neutralidade e
imparcialidade absolutas.
O resultado de experiências que vão sendo adquiridas com o passar do tempo,
bem como o somatório de perdas e ganhos que se expressam de forma concreta na
vida e nas relações dos homens em família e comunidade, é o que dará o contorno
histórico e oferecerá uma leitura mais aproximada da realidade. Uma coisa já se tem
por certa, a importância irrefutável da convivência familiar e da relação calorosa,
afetuosa e de cuidados, principalmente nos primeiros anos de vida da criança.
Assim, não caberia mais o questionamento acerca da seriedade com que vem
sendo tratado o papel do vínculo afetivo ou afetividade e qual seria a sua importância
e por qual razão deveria este tema interessar ao estudo do direito.
12
ISHIDA, Valter Kenji, op. cit., 2008, p. 37.
89
É o próprio John Bowlby13 quem explica que uma criança, ao ser afastada dos
cuidados de sua mãe, ou mesmo de uma mãe substituta permanente (aquela com
quem desenvolve uma relação de afetividade, rica e compensadora) vai se deparar
com o que ele chama de “privação da mãe”, esta poderá ser total ou parcial, variando
de acordo com o grau do abandono ou da busca de supressão deste. Isso interessa
ao direito a partir do momento em que, dentre os inúmeros efeitos dessas privações,
pode-se chegar a graves perturbações e distúrbios que resultarão na incapacidade de
estabelecer bons e estáveis relacionamentos em sociedade. Segue o autor
justificando essas afirmações
Esta abordagem pode ser muito frutífera; como exemplo podemos citar um estudo feito com 102 infratores reincidentes, cujas idades variavam de quinze a dezoito anos, realizado numa escola oficial inglesa. Esse estudo demonstrou claramente como as angústias provocadas por relações insatisfatórias na primeira infância predispõem as crianças a reagirem, mais tarde, de forma antissocial diante das tensões. A maior parte das situações de angústia precoce entre esses meninos eram aspectos específicos de privação da mãe.
14
O comportamento em sociedade depende, pois, também da forma como se deu
o desenvolvimento do homem em seus primeiros anos de vida. É Tânia da Silva
Pereira quem, lembrando a consolidação na doutrina e jurisprudência da família
socioafetiva, afirma a incontestável importância do Fundamental Direito à convivência
familiar e comunitária como maneira de atender às necessidades da criança, suas
relações de afinidade e afetividade e suas condições psicológicas e emocionais.
Justificando, com isso, as possibilidades de determinar a preferência ao acolhimento
de crianças e jovens por membros do grupo familiar ou mesmo por terceiros como
melhor critério a ser adotado. É a efetivação do princípio do melhor interesse da
criança em total consonância com o da afetividade, provocando a observância do
direito à convivência familiar e comunitária.
4.4 O que é família e o direito à convivência familiar
Uma vez que o assunto deste estudo gira em torno de uma das novas
modalidades de compreender ou mesmo de viver este desafio que é ser família,
pareceu de bom alvitre destinar algumas palavras de autores, bem como tomar a
13
BOWLBY, John, op. cit., 1981, p. 14-15. 14
BOWLBY, John, op. cit., 1981, p. 14-15.
90
liberdade de assentar comentários advindos de experiências de vida pessoal sobre o
tema.
Pode-se iniciar esta abordagem acerca do ser família citando palavras de Silvio
de Salvo Venosa, que infere que por muito tempo na história, inclusive durante a
Idade Média, nas classes nobres, quando o casamento esteve longe de qualquer
conotação afetiva.15
Traz-se o tema casamento ligado à família visto que este era até bem pouco
tempo a única forma de constituir ou de dar início oficialmente a uma família.
No entanto, é bom mencionar a diferença que existe no próprio corpo do
dispositivo constitucional onde se diferencia família de entidade familiar. Ao afirmar no
caput do artigo 226 que família é a base da sociedade e que, por esta razão, é
protegida pelo Estado. O Texto Maior logo em seguida faz uma diferenciação nas
terminologias utilizadas, quando chama de entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Os núcleos familiares, com o passar do tempo, foram sofrendo modificações ou,
melhor dizendo, remodelações. Até cerca de duas décadas, antes da promulgação da
Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar, numa livre e resumida interpretação
pessoal acerca da história, que a imagem que se tinha da família tradicional era
aquela em cujos desenhos ou reproduções artísticas sempre havia a representação
da figura masculina, o pai, a feminina, que era a mãe, e a prole, normalmente formada
por meninos e meninas devidamente vestidos e arrumados, brincando ou
desenvolvendo atividades próprias de seus sexos. Havia uma perfeita sensação de
harmonia familiar. E, de fato, o era, mas ressalte-se que os papéis eram claramente
15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.4.
91
definidos. Assim era retratada, em um determinado período histórico, a família
devidamente organizada.
O casamento era o termômetro para definir a família. Desta forma, a maneira
que se definia uma família sempre mantinha seu ponto de partida no instituto do
casamento, o qual validava sua definição ou não. Para Caio Mario da Silva Pereira, 16
a família, em sentido genérico e biológico, é o conjunto de pessoas que descendem
de um tronco ancestral comum, ainda nesse plano acrescentam-se o cônjuge, aditam-
se os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os
cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados). Em sentido estrito, essa
família, que por séculos foi um organismo extenso e hierarquizado, retraiu-se e
restringiu-se ao grupo formado pelos pais e filhos.
Desenvolvendo-se ainda mais o conceito de família, retiram-se alguns elementos
antes inerentes à sua compreensão. Passou a não haver mais distinção, ou pelo
menos utilização de tal denominação na classificação de filhos e de família legítima,
cuja base era o casamento, ou ilegítima, a qual era assim denominada por ser
proveniente de relações extramatrimoniais. Da mesma forma como não se fez mais
qualquer diferenciação nos filhos adotivos ou naturais. Sendo, inclusive, proibido o uso
de qualquer designação que sugira discriminações no que tange à filiação.
Waldyr Grisard Filho17 utiliza o termo famílias reconstituídas, cuja característica é
de ambiguidade, visto que se trata daquela estrutura familiar originada do casamento
ou união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm filhos de
um vinculo anterior. Cada integrante do novo casal chega nesta nova família depois
da perda de uma relação familiar primária. O autor justifica a utilização deste termo
como uma forma de retratar a continuidade da expressão ”constituir uma família”, tão
correntemente usada nesse sentido. Acrescenta, ainda, que devido ao crescimento do
número de famílias reconstituídas, como consequência do aumento da taxa de
divorcialidade, das novas núpcias, esse tipo de família não se contrapõe às figuras
16
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Direito de família. Rio de Janeiro:
Forense, 2009. v.5 p.23. 17
GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstruídas: breve introdução ao seu estudo. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.255-268, p.257.
92
nucleares tradicionais, mas integram um sistema familiar mais amplo, suscitando as
categorias pai-pai afim, mãe-mãe afim, filho-filho afim.18
No Estatuto da Criança e do Adolescente encontra-se um conceito, não muito
pacificado pela doutrina, acerca da família natural. Trata-se do art. 25, que diz
entender-se “por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e
seus descendentes”. Outros ascendentes comporão a “família substituta”, sob a forma
de guarda ou tutela. No entanto, pelo próprio direito fundamental à convivência familiar
seria impossível afastar do conceito de família natural a presença dos irmãos. 19
De outra forma como se consideraria, também, a importância dos pressupostos
da afetividade, do cuidado e da responsabilidade nas situações em que se faz
necessário o acolhimento ou o abrigamento de crianças vítimas de orfandade,
violência, enfim, de abandono? E é exatamente em circunstâncias desta natureza,
onde uma família pode se tornar acolhedora a ponto de efetivar do direito à
convivência familiar, o qual terá como base o que, de fato, deve reger todas as
relações de ordem familiares, a afetividade.
De uma forma geral, o que se percebe é que nas inumeráveis situações de
reconstituição e de acolhimento familiares, a convivência será fundamental, não
apenas por ser esta uma garantia constitucional, mas pela força que traz em si e pelo
condão de ser o local por excelência de desenvolvimento da afetividade e pela
capacidade de colaborar no crescimento de todos os que estão envolvidos no grupo.
Na era do pós-tudo, como compõe Augusto de Campos,20 é preciso atenção às
necessidades que se apresentam no interior das entidades familiares, as quais podem
perder sua essência caso não se adaptem aos avanços e superem os retrocessos.
18
Ibid., 2003, p. 263. 19
PEREIRA, Tania da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de janeiro, Renovar, 2008, p.379.
20 Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta. Foi um dos criadores do movimento de poesia concreta brasileira. Escreveu um poema intitulado Pós-tudo, o qual bem pequeno pode sintetizar grandes reflexões, e ao buscar sua interpretação e adaptação à realidade da família brasileira a autora percebeu que pode trazer grandes e profícuos questionamentos. Diz o poema Pós-tudo: Quis. Mudar tudo. Mudei tudo. Agora pós-tudo. Extudo. Mudo.
CONCLUSÃO
No ocaso deste trabalho, cujo assunto é inesgotável pela amplidão de
sentimentos, descobertas, necessidades e capacidades, que se escondem no
homem, percebe-se que este se configura como cerne e alvo principal das discussões
acerca da afetividade, dos frutos que se enxergam na convivência familiar e na
necessidade de descobrir as formas mais adequadas para acolher aqueles que estão
abandonados, considerando, inclusive, o cuidado como um valor jurídico.
Ao olhar para os modelos de família contemporânea, frutos da pós-modernidade,
ou em tempos de pós-tudo, como no poema citado em nota de rodapé do trabalho,
pode-se constatar que são muitas as novas possibilidades de viver a realidade
familiar, com algumas características jamais imagináveis pela mentalidade do homem
do ocidente. Desta forma, por acompanhar lado a lado as evoluções da sociedade, o
direito, ao se deparar com as novas formas de convivência e vivência do afeto vai
adaptando e criando leis, bem como positivando aquilo que já se lhe apresenta como
realidade. Não se descuida de contribuir com a interpretação alargada da afetividade
como oriunda do princípio da dignidade da pessoa humana.
Muitas definições e conceitos vão se formando ao longo das experiências na
vida. No que tange à família, à afetividade, à convivência familiar, o que se poderia
afirmar é que na medida em que algo vai sendo plantado, valorizado, cuidado, mas
estará destinado aos bons frutos, às boas consequências, à colheita eficaz.
No decorrer desse estudo viu-se a necessidade de harmonizar a efetivação dos
direitos protegidos pela Constituição Federal. No caso concreto do Princípio da
Afetividade e do direito à convivência familiar, não haveria o risco de otimização de
algum dos direitos fundamentais em favor de um titular que acabasse gerando a
possibilidade de compressão ou restrição de semelhantes direitos de outro indivíduo.
E isso é afirmado com base na certeza de que quando da efetivação do bom convívio
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familiar não há qualquer dúvida de que todos os sujeitos envolvidos serão
beneficiados.
Antes de iniciar a abordagem acerca do acolhimento, partiu-se do extremo
oposto, que é o abandono. Foi realizado um passeio pela historicidade da criança,
desde quando ainda não era considerada sujeito de direitos, passando pelas fases em
que foi institucionalizado o seu abrigamento, as razões reais e aparentes de tal ato,
até que se chegaram às ações que são desenvolvidas na atualidade.
Constatou-se, com a utilização de textos e resultados de pesquisas de cunho
interdisciplinar, que uma criança ou adolescente, ao ser retirado de sua família nuclear
ou originária, por razões que envolvem abandono afetivo, violência familiar, morte ou
doença dos genitores, precisa ser cuidada e amparada. Ainda que não desfrutasse de
atenção e dedicação antes da situação que ocasionou tal ruptura na vida em família, a
criança ou adolescente, sujeitos de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, deverão ser alvos das políticas públicas voltadas para o acolhimento.
As famílias acolhedoras são, assim, apresentadas no decorrer do trabalho como
uma das novas formas de mantença e desenvolvimento do necessário afeto à
formação do homem, bem como da atuação junto aos pequenos abandonados. Trata-
se de uma política de desinstitucionalização do amparo, onde, como o próprio nome já
sugere, em vez de ser colocada em instituições, que não serão capazes de suprir
suas necessidades essenciais, a criança ou adolescente será acolhido por uma
família ou entidade familiar que o trate como filho, que lhe dê a atenção e o cuidado
de que necessita para se tornar uma pessoa com o mínimo de equilíbrio eficaz para a
continuidade da qualidade de vida digna garantida constitucionalmente. O intuito não
é o de que a família acolhedora ocupe o lugar da família de origem, mas que seja
utilizada como forma de acolher a criança ou o adolescente que se viu inserido em
alguma das situações de risco, abandono ou violência motivadora da real necessidade
de cuidado e atenção.
Trata-se de um modelo novo, em fase de construção, visto que não se confunde
com a essência das famílias substitutas, pois, naquele, a criança deverá ficar de forma
provisória, como uma medida excepcional, mas apenas enquanto cessa a situação
emergencial que a levou a afastar-se de sua família de origem. A criança retornará à
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sua família após acompanhamento e decisão judicial, com base em pareceres dos
profissionais das áreas de psicologia, serviço social e afins, que trabalharam, também,
junto aos pais ou responsáveis que se encontravam em conflito.
Assim, vai sendo delineado o fundamental direito à convivência familiar, o qual
não precisa ser necessariamente com a família nuclear, podendo estender-se sua
efetivação no âmbito do sentimento de pertença a um grupo, no qual se sente parte
importante, onde se integram sentimentos, valores e esperanças.
O homem, ao se relacionar afetivamente, compreende que há certos valores que
o tornam mais homem e mais pleno em sua dignidade de pessoa humana. A partir do
convívio com o outro é que o individuo vai se enxergando, se conhecendo e sabendo
a dimensão do que é ser gente, cidadão. Não são as definições e conceitos de uma
família que fazem com que esta seja menos ou mais família, mas a postura e
compreensões que os seus membros, aquelas pessoas que a compõem, têm acerca
de seu papel e sua inserção contextual e legal.
Destacando-se o direito à convivência familiar e comunitária como um direito
fundamental contido na Constituição Federal, que deve ser objeto de efetivação e
fortalecimento, resta a certeza de que o princípio da afetividade é um princípio
constitucional específico do Direito de Família, sendo de natureza implícita. A
afetividade é considerada pela doutrina como a estabilidade constante das relações
socioafetivas e de comunhão de vida, onde prevalece o elemento anímico da affectio
nas relações familiares, em detrimento dos aspectos de ordem biológica ou
patrimonial. Sobre isto apresentou-se a era da desbiologização, com a primazia do
vínculo afetivo sobre os demais, podendo esta afetividade desenvolver-se tanto no
interior das famílias nucleares como no seio das entidades familiares ou famílias
reconstituídas.
Por fim, ressalta-se a importância do estudo da afetividade, visto que esta se
configura como uma das cinco faculdades ou potências do ser humano, a qual se
somam a memória, a imaginação, a vontade e a inteligência. Em outras palavras, além
de ser um princípio decorrente do princípio maior da dignidade, a afetividade é um dos
elementos que promovem a estabilização do homem. Assim sendo, para que este viva
o mais próximo possível da plenitude da dignidade a que é chamado a viver e que lhe é
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assegurada constitucionalmente, será necessário que se encontre um ponto de
equilíbrio na própria vida e no uso de suas potências, pois quanto mais estável a
vivência de suas faculdades interiores mais o homem se sentirá balanceado com a
certeza de ter encontrado o seu ninho, o lugar onde desenvolve seu afeto e a si mesmo.
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