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Pressupostos Filosoficos da Pedagogia Delfiniana A fundamentagdo existential da pedagogia radica na compreensao temporal da existencia humana. O homem ndo aprendeapenas para viver.A nogdo de existir ndo e o ponto de partida da pedagogia, como tambemna actualidadese tornouo ponto de partida da filosofia. Existir e estar-noimundo. £ este o factoprimario, origi- nal e estrutural da existencia. DELFIM SANTOS A obra de Delfim Santos desperta um vivo interesse quer pela riqueza de tematica nela desenvolvida - e com indiscutivel actualidade - quer pela vivacidade com que o Autorfundamenta e defende as suas teses. O Humanismo subjacente as suas refle- x5es de indole pedagogica revela como a escola delineada por Delfijm Santos deve ser «oficinade humaniza£ao>> na qual cada homem deve encontrar o apoio em ordem ao desenvolvimento da sua personalidade. Foi, portanto, a sua obra pedagogicaque nos conduziu & reflexao dos conceitosfundamentadores de uma pedagogia existential e humanista. Em DelfimSantos, fildsofo dos mais atentos ^s correntes de pensamento da contemporaneidade, verifica-se, a cada momento que cada probletma suscitado ou tese admitidaflui naturalmente, de profundas concepgoes de base, fundamentadas numa antropolo- gia de cariz existencial e inscritas num horizonte onto-axioldgico, assim, assume particular relevancia a determinagao epistemologica da pedagogia como ci&icia radical e autdnopua e a analiticaexis- tencialde natureza antropol6gica que lhe subjaz. [1]

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Pressupostos Filosoficos da Pedagogia Delfiniana

A fundamentagdo existential da pedagogia radica na compreensao temporal da existencia humana. O homem ndo aprende apenas para viver. A nogdo de existir ndo e o ponto de partida da pedagogia, como tambem na actualidade se tornou o ponto de partida da filosofia. Existir e estar-noimundo. £ este o facto primario, origi- nal e estrutural da existencia.

DELFIM SANTOS

A obra de Delfim Santos desperta um vivo interesse quer pela riqueza de tematica nela desenvolvida - e com indiscutivel actualidade - quer pela vivacidade com que o Autor fundamenta e defende as suas teses. O Humanismo subjacente as suas refle- x5es de indole pedagogica revela como a escola delineada por Delfijm Santos deve ser «oficina de humaniza£ao>> na qual cada homem deve encontrar o apoio em ordem ao desenvolvimento da sua personalidade. Foi, portanto, a sua obra pedagogica que nos conduziu & reflexao dos conceitos fundamentadores de uma pedagogia existential e humanista.

Em Delfim Santos, fildsofo dos mais atentos ̂ s correntes de pensamento da contemporaneidade, verifica-se, a cada momento que cada probletma suscitado ou tese admitida flui naturalmente, de profundas concepgoes de base, fundamentadas numa antropolo- gia de cariz existencial e inscritas num horizonte onto-axioldgico, assim, assume particular relevancia a determinagao epistemologica da pedagogia como ci&icia radical e autdnopua e a analitica exis- tencial de natureza antropol6gica que lhe subjaz.

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O presente artigo visa elucidar a determinagao ontologica da existencia como modo original do estar-no-mundo inerente a condigao humana e que informam o desenvolvimento e natureza da pedagogia delfiniana.

I. A determinagao epistemoldgica: pedagogia como ciencia

Tendo como ponto de partida que a pedagogia constitui uma forma de saber, e portanto tambem um raciocinio, Delfim Santos procura inquirir a fundamentagao desse tipo de conhecimento, pro- curando diferencia-lo de outras formas de saber; sendo a pedago- gia uma ciencia de constituigao recente, e frequenitemente tomada como um repositorio de conhecimentos provenientes de outros dominios do saber, «uma manta de trabalhos», numa amalgiama indi- ferenciada de nogoes avulsas, sem um conjunto definido e um metodo determinado. As novas ciencias - psicologia, pedagogia, etc.-, parecendo carecer do rigor e da exactidao das ciencias ja estabelecidas, necessitam de se autonomizar em relagao as outras areas do saber. Como diz o Autor;

«A pedagogia encontra-se, pois, em crise de enfartamento proveniente da quantidade imensa de materials que penetrou no seu pseudo-ambito, e tambem por isso em crise de desco- nhecimento da sua propria finalidade. fi certo que alguns aspec- tos da pedagogia experimental podem ter valor como auxiliares na compreensao do problema, mas infelizmente o que quase sempre se encontra e a transposigdo dos meios em fins que ja nao podem ser os da pedagogia» 1.

Assim, tornou-se num depdsito de conhecimentos ora espe- cializados ora prdprios do senso comum, negligenciando o seu objectivo nuclear - o processo de aprendizagem - , que reclama uma analitica do ser humano.

E assim urgente alterar esta conjuntura, determinando a auto- nomia epistemica duma ciencia que contribui para um melhor conhecimento do Homem coano ser hist6rico, em que a educa- gao tern por finalidade, como vimos acima, a sua formagao na descoberta de valores como pessoa.

1 D. Santos, «Fundamentagao existencial da pedagogia», em OC II, p. 435. O italico e nosso.

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Ora, se a pedagogia nao e uma ciencia exacta, ela, como ciencia do homem, «pode ser uma ciencia rigorosa e se-lo-a quando nao pretender atingir verdades gerais, mas, pelo contrario, verda- des humanas e, se possivel, demasiado humanas»2; tal ciencia encontra a validade das suas assergoes e sistematizagoes) na ade- quagao ao seu objecto - o home|m transiente. Delfim Santos afiitna mesmo:

«0 homem - e isto nos basta - €i um ser vivo concrete, individual. A sua compreensao nao pode ser conseguida pela aplicacao de principios gerais, que nele nao encontram genera- lidade. (...) A formulacoes de leis gerais sobre o humano, enquanto vivo, implica desrespeito do que nele e concreto e individual e, a partir disto, formular uma pedagogia geral e igualmente desconhecer e desrespeitar o que na sua individuali- dade e intransferivel. Nao ha, pois, uma pedagogia more geome- trico, nem sub specie aeternnnitatis»*.

Na verdade, tendo em conta a diferenciagao epistemoldgica entre rigor e exactidao, a exactiddo aspira a inteornporalidade e, portantoj,: a generalidade, e o rigor tende para uma adequagao a situagao particular: «rigor e particularizagao, e especializagao, e adequagao plena a situagao em que o holmem se encontra, porque em tudo quanto diz respeito ao humano, e portanto a pedagogia, ha casos, situagoes, e nao um homem geral, abstraido do seu con- dicionamento vital»; por outro lado, exactidao, como dissemos, «e o contrario de tudo isto e, como criterio, nao serve para o estudo e compreensao da complexidade do humano» 4; com efeito, a expe- riencia e sempre modal, e assim cada nivel ontico determina-se por categorias gnoseologicas correspondentes, donde o saber pedagd- gico enquanto cientifico deve inscrever-se num horizonte relativo e adequado a crealidade temporal, e, como tal, genirico, mas, nao geral, rigoroso, mas nao exasto.

Por outro lado, a propria nogao de causalidade, sustenta- culo da significagao tradicional da ciencia em sentido classico, foi problelmatizado, de modo que a signifiagao habitual de causa se preferiram outros modos de dependencia entre os fendmenos.

«Nao e a causalidade, segundo Plank, que e contestada pela fisica contemporanea, mas sim a tradicional formulacao do

2 Ib., p. 439. O italico e nosso. 3 Ib., p. 440. * Ib., p. 438.

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principio da causalidade (...). O que a ciencia afirma nao e a refutagao do principio da causalidade, mas a impossibilidade aplicacao de tal principio a todas as regioes da realidade. (...) Cada conceito tern uma possivel valida extensao costuma- -se chamar progresso cientifico a extensao para alem dos limi- tes restritos de cada conceito, mas isto so e valido em certas esferas de possivel analogia ontologica e nao pode ser consi- derado como principio universal de explicacao» 5.

Delfim Santos, conhecedor das exigencias epistemoldgicas determinadas pela fisica quantica, nao poderia deixar de reflectir acerca da inversao do processo de elaboragao da ciencia que tra- dicionalmente era postulado; uma ciencia e, pois, urn sistema plu- ral coerente, de acordo com a contribuigao de cientistas como Heisenberg, Planck e outros, e de que Bachelard, por exemplo, explicitou os pressupostos epistemologicos, e que Delfim Santos cita com frequencia.

Deste modo, para a filosofia, como de resto para a epistemo- logia e ciencias actuals, o conceito de realidade nao e propriamente visto como urn objecto singular reunindo varios tipos de saber, imas como um complexo plural de aspeotos cujo conhecimento se processa mediante um quadro conceptual constituido por prin- cipios adequados e especificos.

«Para a nova fisica, no principio nao esta a coisa material, nem o objecto, mas a forma, a relacao, a simetria matema- tica, (...). Enquanto a fisica newtoniana se pretendia isenta de hipoteses e se limitava a verificacao dos factos em funcao de regularidades, a nova teoria da fisica nao e dedutiva a partir dos factos nem descritiva da experiencia, mas criadora de expe- riencia racional que encontra os «objectos» assim racionalmente estruturados. (...) A nocao de fenomeno foi alterada, nem e algo que pre-existe a observacao porque esta cria o que vai encontrar. Com mais rigor, em microfisica e o pre-fenomeno que o investigador encontra ou, como dira Heisenberg seguindo Kant, uma especie de «numeno em realizacao» 6.

Com tais pressupostos, Delfim Santos estd longe de admitir uma linguagem unitaria para interpretar os diversos dominios do real que a ciencia e susceptivel de interpretar; importa, por con- sequ§ncia, ao investigador, saber qual a regiao do real sobre que se debruga nas suas pesquisas, de modo a que o seu labor con- ceptualizante nao se revele rigido e estatico, mas antes fluido,

5 Id., «Situacao valorativa do positivismo», 1938, em OC /, p. 140. 6 D. Santos, «Significacao hlosohca da nova teoria da ciencia»,

Arquivos da Universidade de Lisboa, nova serie, 31961, em OC II, p. 318.

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multimodo e compreensivo, o que no caso da pedagogia - visando essencialmente a aprendizagem - , deve considerar o homem na sua essencia de determinagao imprevisivel e, como tal, um ser livre.

Deste modo, a teoria deve realizar-se na experiencia; e, como alega Bachelard, «e preciso reflectir para medir e nao medir para reflectir» 7. A teoria vai-se construindo ao longo da actividade cien- tifica, importando sobretudo que as conclusdes nao estejam ean contradigao com a experiencia; tambem «a microfisica nao e mais uma hipotese entre duas experiencias, mas antes uma experiencia entre duas hipoteses. Ela comega por um pensamento, ela remata num problema»8. Se daqui resulta a impossibilidade da objecti- vidade imediata, implica-se consequentemente o caracter aproxi- mativo e temporal de toda a verdade: o conhecimento cientifico opera por aproximagoes sucessivas.

E tambem Bachelard que afirma que «a rectificagao apa- rece nao mais como um simples retorno a uma experiencia infeliz que uma atengao mais forte e mais avisada corrigiria, mas como o fendmeno fundamental que susteim e dirige o conhecimento e que impede sem cessar para novas conquistas» 9. Tudo o que tomamos como «dado» e um artefacto: a experiencia nao e obser- vada mas construida, nao descoberta mas inventada. A evidencia primeira, baluarte da filosofia tradicional perde aqui os seus direi- tos; em lugar de elementos absolutos, cognosciveis directamente na sua totalidade, ha que admitir evidencia conquistada; o espi- rito cientifico e pois, rectificagao do saber e alargamento dos quadros conceptuais; cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificagao historica dum longo erro; pensa-se a experiencia como rectificagao da ilusao comum e primeira.

Assim, a vida intelectual, na actividade cientifica, e orientada dialecticamente neste diferencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. Aos absolutos da razao cientifia, a nova epistemo- logia, que cimenta a obra delfiniana, orienta-se pela primazia dum relativismo do progresso cientifico; nesta perspective nao

7 G. Bachelard, La formation de Vesprit scientifique: contribu- tion a une psychanc&yse de la connaissance objective (1938), Paris, Vrin, 1980, p. 213. « Id., Eludes, Paris, Vnn, 1970, p. 15-16. 9 Id. Essai stir la connaissance approcnee {&/.*), raris, vnn, 1973, p. 16.

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resistimos a proclamagao de Bachelaird • - epistemologico dilecto de Delfim Santos:

«Ah! Sem duvida sabemos bem tudo o que vamos perder! Dum so golpe, e todo um universo que e descolondo, e toda a nossa reieigao que e desodorizada, toao o nosso impulso psiquico natural que e rompido, revirado, desconhecido, desencorajado. Tinhamos tanta necessidade em permanecer oompletamente na nossa visao do mundo! Mas e precisamente esta necessidade que e preciso veneer. Vamos! Nao e em plena luz, e & beira da sombra que o raio, difractando-se, nos confia os seus segredos» lu.

A razao e, portanto, criatividade; a inteligibilidade ganha-se contra os obstaculos, na resistencia ao saber adquirido: o conheci- mento cientifico e essencialmente inacabado.

Por outro lado, de acordo com os pressupostos da fisica clas- sica, a qualidade nao constituia propriamente objecto da ciencia; para tal, tornava-se necessario reduzi-la a quantidade. Conforme refere o Autor, e a propria nogao de quantidade que postula a de qualidade;

«O primado da quantidade sobre a qualidade era neces- sario para a elaboracao da teoria da ciencia no seculo passado. Todavia, a subordinagao da qualidade a quantidade foi mais uma tentativa de redugao da pluralidade a unidade a que aspi- rava o conhecimento cientifico. Mas a propria nogao da quan- tidade pressupoe a de qualidade, pois a quantificagao discreta e exigente de diferenciagao e esta e so possivel por nao haver igualdade na natureza ou desigualdade em fungao da qualidade que permite distinguir os objectos.» ai.

A questao assume importancia, na medida em que a partir dessa distingao se adsmite comummente a diferenga entre ciencias da natureza e ciencias do espirito, como determinagao convencio- nal; embora todas as ciencias sejain uma realizagao operada pelo espirito humano, a projecgao deste pode incidir ou sobre as coi- sas da natureza, abstractamente consideradas, ou como sistema- tizagao dos conheciimentos orientados para o que e concreto - «de cori'Crescere», como diz o Autor12 - e temporal, como tal irre- petivel, originando um saber rigoroso mas individual, inscrito nas coordenadas espacio-temporais. Se o Autor, em consonancia com

10 Id., La formation de V esprit scientifique, op. cit-, p. 241. 11 D. Santos, «Tematica da formagao humana», Arquivos Ida Uni- versidade. Lisboa. 21961, em OC II, p. 250. 12 ib.

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a ciencia actual, perfilha o ponto de vista cientifico de que a pr6- pria quantidade pressupoe a qualidade, resulta dai tambefcn que as fronteiras entre as ciencias da naturezai e as do espirito assu- mem, quando muito, um valor apenas didactico.

Neste sentido, Delfim Santos, partindo da classificagao dico- ttfmica sugerida por Dilthey entre ciencias da natureza e ciencias do espirito, tenta superar a posigao do mestre alemao que incluia a pedagogia nas ciencias do espirito. Com efeito, para Dilthey, a diferenciagao dessas ciencias assentava em «diferengas de con- teudo»», onde a pedagogia tinha por objectivo os valores atinentes a formagao do homem, fazendo, portanto, parte destas ultimas.

«Uma das dificuldades - escreve Delfim Santos - que ime- diatamente se nos revela consiste no caracter de ciencia a atri- buir a pedagogia. Nao e possivel intitula-la ciencia da natureza, como o pretendeu o naturalismo pedagogico do seculo XIX, ou ciencia do espirito, como a partir de Dilthey se propos. Tanto uma como outra tern como tema objectividades de tipo natural ou de tipo espiritual elaboradas a partir da tradicao. Mas se o tema de estudo, isto e, se o objecto nao totalmente objectivavel da pedagogia e o acto de aprendizagem, es tamos portanto num dominio de pre-objectividade, isto e, de subjecti- vidade empirica, que sucessivamente se estende a novas formas de compreensao que a crianca vai estruturando ao longo das fases do seu desenvolvimento. (...) a pedagogia nao pode per- tencer a um ou outro ramo da classificacao das ciencias, mas e a origem possivel delas e o fundamento constitutivo da sua compreensao» 13.

13 Ib., p. 276. De facto, Dilthey considera a pedagogia como radi- calidade ultima de qualquer cultura. A diferenciacao que faz entre ciencias da natureza e ciencias do espirito e determinada pela intro- dugao de uma dualidade epistemologica - explicagdo/compiieensao. As ciencias da natureza,, partindo da observacao de factos visam o esta- belecimento de leis, enquanto a nocao de «facto»f susceptivel de for- mular uma proposicao protocolar, e desconhecida nas ciencias do espi- rito; estas, acima de tudo, pretendem analisar a compreensao do indi- viduo no seu contexto vital. Delfim Santos explicita este aspecto, deste modo: «A epistemologia da explicacao procede por decompsicao, ana- lise e sintese, que e suficiente para as ciencias da natureza que obe- decem a tecnica da racionalizacao em maxima generalidade; a episte- mologia da compreensao, ao contrario, implica a interdependencia do sujeito e do objecto, pois ambos se afirmam em mutualidade existencial em cada situagao concreta» («Apresentacao de Gusdorf», inedito, (1963), em OC IIf p. 336).

Paraf Dilthey, o dominio da pedagogia e eminentemente hist6rico, sendo a expressao manifesta do tempo em que se desenrola o processo educativo; o problema educacional radica a sua fundamentaga na com- preensao da existencia humana.

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O Autor situa a pedagogia, porcanto, na raiz do pensamento cientinco; eia nao se resume a um «capitmo apenaicuiar» de qual- quer ciencia, seja eia aa natureza ou do espirito, mas revela-se coono ciencia autonoma e radical, «participe da estrutura do espi- rito humano na sua original e permanente actividade» -14.

Tal radicalidade nao se reduz a uma radicalidade logica, mas e de indole viva a dinamica, porque existential: na verdade eia reveia-se no homem transiente, concreto e em formagao. £ tam- bem de assinalar o influxo notorio exercido pela epistemologia gen&ica, mormente os trabalhos de Piaget, porquanito tambem o pensaonento delfiniano conecta a pedagogia a propria genese do pensamento cientifico; a propria linguagem, como sistema elemen- tar de expressao, e indice da compreensao latente na imagem do mundo que o individuo manisfesta.

Segue-se, portanto, que a pedagogia nao e, de modo nenhum, um ramo derivado de qualquer outra ciencia; ao inves, e eia que constitui o fundamento quer das ciencias da natureza quer do espirito; por outras palavras, «na arvore, a pedagogia, tern o lugar da raiz e nehuma outra situagao lhe pode ser adstrita»15. Assim, a pedagogia, cujo objecto e essendatonente o acto de aprendiza- gem, torna-se tambem, e por isso mesmo, a base originaria da organizagao do homem e da organizagao do saber; nao se define como sector especifico de conhecirnentos paralelos a outros, mas estrutura-se na genese da encyclopedia do saber. O Autor escreve:

«O objecto da pedagogia e o acto de aprendizagem. Este acto e o primeiro dos aspectos que essencialmente estrutura o individuo humano. A vida e aprendizagem e tudo comega com o exercicio da preensao e da aprecnsao. Sendo assim, e inegdvel que e este o fenomeno radical de que tudo deriva em qualquer aspecto da formagao do homem. A teoria do conhecimento, a estruturagao sistematizada do acto de aprendizagem em cada ciencia particular, e organizagao metodica do aprendido, segundo as formas requeridas da sua apropriada aprendizagem» 16.

14 D. Santos, «Tematica da formagao humana», op. cit., p. 251. » Ib. 1<J Ib. Diz ainda: «Parece que, mais correctamente, respeitando

que as coisas sao e nao as subordinando indevidamente a qualquer precedencia logica - que logo se confunde com a natureza ontologica - e a educacao a manifestagao primitiva; original e tipica donde sur- gem e donde aproveitam todas as ciencias e, em maior escala ainda do que qualquer outra, a psicologia. Entendamo-nos, porem: educagao como fenomeno primordial e basico do comportamento humano, como

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Eis, pois, em siimula, a justificagao da posigao delfiniana. A pedagogia assume-se assim como «situagao original)) da cons- tituigao e estruturagao da pluralidade das ciencias, porquanto 6 fundamento constitutive da compreensao e elaboragao dos diver- sos dominios do real que o homem, dada a sua natureza, nao pode deixar de perscrutar, na &nsia de sondar ininterruptamente o hori- zonte do desconhecido.

II. A antropologta existencial: do individuo a pessoa

A fundamentagao filosdfica da pedagogia delfiniana assenta em pressupostos de ordem compreensiva acerca da concepgao do homem. Neste sentido, 4 patente nos seus escritos um projecto eminentemente antropoldgico: o homem emerge em mferima digni- dade, como centro das suas preocupagoes e do seu universo - o que 4 que um dos Indices mais relevantes do humanismo que singulariza a sua obna; a educagao surge como infer&icia imediata del uma antropologia que examina o homem como ser dinamico, existencial e histdrico: deste modo, supera-se uma visao materia- lista que identifica o humano com a materia, o vital com o inerte, o mec&nico com o org&nico.

O homem ̂, assim, a sintese mais elevada do real; 6 mesmo uma tetralogia, porquanto subsume na sua compreensao, a mate ria, sf vida, a psique e o espfrito; em suma, o homem 4 conce- bido coimo realidade eodstenckil. Tal concepgao nao pode deixar de nao ter reflexos na sua «pedagogia existencial». Ele mesmo afirma: afirma:

«(...) Dedagogia pressupoe semore uma antropologia. ou teoria do homem, e, conforme a visao que cada eooca tern do problema, assim se propoem metodos que aT5enas sao validos no periodo orientado pela predominancia valorativa do tipo de homem que a resposta enuncia. Mas a interrogagao continuara sempre valida, porque e permanente, e as respostas encontradas por cada epoca sempre provisorias»17.

fenomeno congenere com a vida, e nao produto ou aplicacaoi pratica de principios providos de qualquer ciencia. fi este o sentido que, de acordo com a etimologia do termo, atribuimos ao fenomeno radical da educacao.* («Fundamentagao exisitencial da pedagogia», ap. cit., p. 451).

17 D. Santos, «Fundamentagao existencial da pedagogia*, em OC II, p. 477

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Com o materialismo, a mat^ria e uma ideia geral e abstracta, desprovida de qualquer conteiido para a compreensao do homem e do universo; ora, o que caracteriza o homem 6 a riqueza 6ntica, bem como a subtileza, variedade e versatilidade da sua natureza; por isso, afirma:

«A base da realidade nunca pode ser a materia nem o espirito, mas o concrete* que, alem da estrutura das coisas, exige igualmente a compreensao da vida, do psiquico e do pro- priamente espiritual» 18.

Assim, o homem surge-nos como agente e nao objecto de trans- formagao, capaz de humanizar o mundo e a si mesimo, actuando de acordo com a referenda a urn sistema de valores dissonantes duma visao materialista. O hoimem move-se num universo que incessantemente o atrai, orientando-o para a sua apreensao; mas o modo como cada ser humano realiza este acto 6 manifestamente vim acto diferenciado.

Tal como diz Cassirer - fildsofo a que Delfim Santos alude acerca desta tem&tica - todas as definigoes que buscam caracte- rizar o homem, nao passam de especulagoes, se nao se funda- mentarem na sua experiencia; a imelhor via para conhecer o homem 4 a da elucidagao da sua vida e do seu comportamento 19; o com- portamento humano £ j£ a expressao de um ser condicionado por determinadas mensagens gen^ticas, simbiose dos genes oriundos de dois progenitores, que se completam e transmitem os caracte- res de ambos, «compensando o que de um 4 fraco ou insuficiente, ou, no pior dos casos, quando em ambos se verifica a insuficien- cia do mesmo gene, marcando-a com toda a evid§ncia»; assim, e «em linguagem mais apropriada, diz-se que o fendtipo 6 portador do gendtipo, ou do conjunto das virtualidades da especie» 20. fi em fungao desta carga gen^tica, elemento basilar no comportamento humano, que o homem se torna num ser diferente de qualquer outro, mas identico a si mesmo; comparativamente com outros

18 Id. «Sao Tomas e o nosso tempo»( inedito (07-03-1951), em OC II, p. 110. _ _ , ^ __ . 19 Cf. E. Cassirer, Ensaio sobre o Homem: introaugao a jtiosojia da cultura Humana, (1944), tr. de C. Branco, Lisboa, Guimaraes, s. d., p. 34. ...... 20 Cf. D. Santos « Fundament acao existencial da pedagogia», op. cit., p. 460-461.

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seres vivos, surge-nos como o mais desprotegido e carenciado: para sobreviver necessita de estabelecer uma relagao activa e dia- 16ctica com o meio que o rodeia, enquanto os demais seres parti- cipam da propria natureza mediante uma adaptagao passiva entre eles e o meio. A proposito, afirma o Autor:

«O homem e um ser da natureza, mas nao e um ser da natureza como qualquer outro que a natureza pertence. Ele traz a si a capacidade de superar o que a ele o prende e de se transcender ate ao que ela nao atinge.. £ este o esforco do homem na sua sucessiva humanizagao. Preso a natureza, toda a sua historia consiste em nega-la, legando-lhe finalmente aquilo que lhe pertence e de que ele se serviu enquanto lhe foi pos- sivel. Esta superacao da naturza nao se faz no mesmo erau em todos os homens, mas, (...) toda a dialect ica da humanizacao a partir do temperament© ate a personalidade e confirmac.ao do que deixamos dito»21.

Referindo-se a Merleau-Ponty, o Autor sust&n que e na pos- sibilidade simbdlica do sinal que se revela a caracteristica essen- cial do comportamento humano22; se no comportamento animal o sinal se nao tranforma em simbolo, no simbtflico possibilita-se a novidade dos actos nao condicionados por uma situagao e cria- gao de objectos nao existentes na natureza. O animal apenas pode adaptar-ise ao que lhe e sugerido pelas suas percepgoes; o seu comportamento, respondendo por actos reflexos e instintos,

21 Td.. «Tpmatica Ha formac^° humana», em Arquivos da Univer- dade. Lisboa, 91961. em OC III, t>. 274

22 Cf. Id.. «Fundamentacao existencial da pedagogia». ov. ntt.t p. 468-659. Delfim Santos refere a clarificacao dos tres asnectos fun- damentais do comportamento, feita t>or Merleau-Pontv: formas sincre- ticas, formas amobiveis e formas simbolioas: se as primeiras compreen- dem os aspectos do comportamento em relacao as condigoes naturais e vitais, predominante no comportamento animal, as segundas corres- pondem a situagoes nao consideradas tanto no seu aspecto material, mas a sinalizagao possivel dos seus conteudos: nao tern car^cter esta- tico, como as anteribres, mas sao indicativas em fungao de indicios significativos;: (caso das experiencias de Kohler com o chimpanze); as formas simbolicas permitem o surgimento de actos nao condicionados pelo presente, e, portanto, criar perspectivas multiplas acerca de um mesmo objecto e a capacidade de as integrar num simbolo - o que e especifico do homem, susceptivel de ser definido como um animal sim- bolico, na feliz expressao de Cassirer. Merleau-Ponty afirma que aquilo de que o animal carece «e do comportamento simbolico, que lhe seria necessario para encontrar no objecto exterior, sob a diyersidade dos seus aspectos, um invariante comparavel ao invariante imediatamente dado do proprio corpo, e para trazer reciprocamente o seu proprio corpo como um objecto entre os objectos » (M. Merleau-Ponty, cit. por D. Santos em OC II, ib.).

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apreende as situagoes na sua globalidade, desprovidas de signi- ficagao nos seus conteudos, penetrando estaticamente no meio ambiemte. A compreensao dum plexo de relagoes, ou a invengao de novas solugoes, supoe uma organizagao e estruturag&o dos elementos do universo; ora, a inteligencia animal, tendo por base a reorganizagao intuitiva dos elementos sensiveis, apenas pode solucionar os seus problemas atraves das possibilidades do seu campo percepcional; o homem, perscrutando o que o rodeia, per- cebe o outro, descobre a existencia do mundo que lhe permite a abertura a que lhe e especifioamente humano; dot ado de formas superiores de inteligencia, expressao da sua complexidade, utiliza a linguagem conceptual e verbal, apelando constantemente ao uso diversificado de sistemas de sinais e simbolos que transforma a vida em facto social.

Deste modo, a aprendizagem radica na compreensao do com- portamento humano; o homem apresenta ambitos peculiares de apreensao, executa aprendizagens complexas que estao enraizadas num processo cultural imbuido de simbolos; a aprendizagem, objecto por excelencia da pedagogia, visa responder aos interes- ses prevalecentes no homem, de acordo com os seus interesses e necessidades; estas, nao propiciam somente uma resposta condi- cionada pela sua estrutura genetica, mas revelam sobretudo o seu modo de estar-no-mundo. A personalidade resulta da mediagao de dois principios gerativos - o bioldgico e o cultural; o homem tern em si algo de natural como algo de transnatuoral 23; a perso- nalidade, alvo sempre distante, e tamb&ni sempre pr6ximo:

«Esta aproximagao faz-se no tempo, mas o mais importante e constituinte nuclear da sua personalidade nao lhe e revelado no tempo mas no «instante». O instante nao e uma particula minima do tempo, quer dizer, nao e urn momento, mas algo extratemporal e no qual o homem se revela a ele mesrao. E de todos conhecido que, na formagao da personalidade, o que importa nao e o desenvolvimenta biografico mas o que o ho- mem, em poucos ou em um unico instante, aprendeu em valor extratemporal. (...) Mas o homem, na medida em que pelo ins- tante se diferencia dos outros, nao se torna nunca totalmente independente, pois que a vida 6 um fenomeno comunitdrio» 24.

23 Cf. D. Santos, «Ideario contemporaneo», em Atldntico, Lisboa,8 1943, em OC /, p. 392. 24 Ib., p. 393. Julgamos entrever aqui alguma lntluencia de V. Jankelevitch, a quern, alias, Delfim Santos dedica um pequeno artigo

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O cultural permite ao homem a sua insergao em determinada sociedade, completando a hereditariedade e perpetuando-o numa comunidade, que e o lugar privilegiado do seu desenvolvimento; o sentido do humano prevalecente em qualquer cultura, orienta para a viv&icia de valores espirituais que conformam e informam cada situagao histdrica: a cultura nao 4 apenas uma heranga mas capacidade de apreensao e compreessao de valores.

Todo o sistema educativo pressupoe uma determinada con- cepgao do mundo e da vida que favorece o tr&nsito do individuo It pessoa; com efeito, 4 este homem transiente que o pedagogo tern diante de si, e «nao um cadaver com determinada estrutura nervosa est&tica, que nunca se lhe oferece na sua conviv§ncia» 25. A pessoa 4 a expressao mais eficaz, feliz e aut&itica da verdadeira humanidade do individuo; 4 na solidariedade que o humano se afirma.

Neste sentido, a sociedade humana deve assentar no respeito pela pessoa, atendendo a diversidade, solidariedade e cooperagao vivida como garante da sua realizgao. Os ideais educativos deve estar subjacentes h, formagSo integral do homem; a educagao n5o 4 neutra perante a configuragao da realidade social: qualquer teo- ria social deve incarnar um determinado conceito de homem e de sociedade, no sentido de renovar a dimensao estdtica da sociedade.

O sistema politico, como organismo vivo e revelador de mo- mentos de crise, deve possibilitar a intervenggo activa e dinft- mica na realidade social; a educagao, como parte integrante deste organismo, n5o pode alhear-se da formagao plena do homem, no pressuposto de que 4 a diversidade que sustenta a conviv&icia

OC I. pp. 475-477) e algumas referencias. Na verdade, para o pensador frances, a pessoa humana e. sobretudo, o que nao e obiectivavel. o aue transcende os dados, manifestando-se como transcendencia enigmdtica: o homem e um ser activo, um inventor; a experiencia doser s6 pode ser uma invencao, uma aventura no instante: este nao coincide nem com o «presente» nem com o «momento»: o presente «esmaga-se no intervalo», e o momento e duracao minima e a mais breve continuagao possfvel, contrariamente ao instante, que nao esta em parte alguma e significa a negacao do ponto e do momento. Nao ha dois instantes semelhantes; a dialectica do instante e do intervalo aparece, no campo do devir, como a onda vibratoria no campo da materia. 25 D. Santos, « Fundament acao existencial da pedagogia», op. cit.t p. 437.

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humana e e a solidariedade que singulariza a relagao entre as pessoas.

«A pessoa humana - afirma Delfim Santos - preconiza, pois, uma sociedade dirigida no mesmo sentido do personalismo, que a respeite na sua diversidade concreta e seja a expressao mais intensa dos deveres de solidaridade com todos e com tudo. (...) Se a vida e totalidade, correlacao, solidariedade e coopera- gao, nada justifica a divisoria regional de interesses opostos, mas sim busca dirigida duma mesma finalidade de cooperagao: a sintese das multiplas intencionalidades» 26.

A nogaq de individuo isolado e independente £ o oposto a qualquer sistema politico que valorize a husmanidade como dimen- sao originaria. Para Delfim Santos, homem e sociedade nao se opoem, tal como os conceitos de indivfduo e sociedade; o influxo vigoroso do pensamento de Rousseau e aqui notdrio: a humani- dade sd existe em fungao da solidariedade. A ldgica atomista, que concebe um conjunto de individuos como uma soma e nunca uma sociedade, o Autor privilegia uma, ldgica global ou totalista, que nao sugere parcelas, porquanto no vital apenas se manifestam totalidades: pessoa e sociedade nao se opoem; afirma-se pessoa e nao individuo, porquanto este nao assume a intencionalidade caracteristica do vital e da «totalidade do espirito»27; a nogao de individuo, enquanto tal, e parcelar. fi esta a razao pela qual o Autor considera os individualistas como adversarios da demo- cracia, ou como prefere, do «democraticismo».

Assim, Delfim Santos encara o processo educativo como um processo de «personalizagao»; o homem 4 artifice de si mesmo, o que implica uma pedagogia formativa na senda da fenomeno- logia existencial, que interpreta o acto pedagdgico como uma elu- cidagao progressiva das exigencias do estar-no-mundo, que envoi ve uma «situagao original)). O itinerario que percorreu, que, da feno- menologia, se inscreve nas filosofias de existencia - Heidegger, Jaspers, Sartre, etc. - , resultou da busca de um suporte antro- poldgico para a sua pedagogia exintencial; com efeito, nao parece

28 Id., «Dialectica totalista», em Presenca, Coimbra, 2 39, Julho de 1933, em OC I, p. 38. O italico e nosso.

27 Cf. ib.} p. 37-38. Este escrito da juventude, revela ja influencia de Bergson e de Husserl,, entre outros, que serao desenvolvidas pelo Autor em obras posteriores; notoria e assim a concepcao do homem aberto ao mundo e a consequente recusa do individualismo.

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exequivel que uma pedagogia existencial, tendente para a for- magao integral do homem, possa ser formulada independentemente da concepgao do acto educativo numa dimensao fundamental por pressupostos antropoldgicos.

III. Determinacao onto-axiologica do humanismo

a) Do ontico ao ontologico: a existencia humana

A fundamentagao existencial da pedagogia pressupoe uma compreensad temporal da existencia humana; o conceito de exis- tencia e, pois, o nucleo em que radica a sua tematicca da filo- sofia da educagao.

A existencia, no pensamento ocidental, fora relegada para um piano secunddrio, reduzida a um esquematismo, dependente na sua especificagao de categorias abstractas dos sistemas idealistas e realistas.Com efeito, no idealismo desvalorizou-se a dimensao do real e no realismo a do ideal, convertendo-se a existencia em mero atributo.

Deste modo, as filosofias da existencia surgiram como viva reacgao penante a despersonalizagao do homem, propondo a sua revalorizagao; o primado da existencia significa que esta nao tern ess&icia distinta de si, mas que a essencia brota da existencia no tempo: a existencia nao e um acidente a atiribuir h essencia, mas a ess§ncia um acidente a atribuir a existencia; por outro lado, a existencia na sua ex:teriorizagao, mediante a essencia, e a liberdade que se revela, como esta e tambem de natureza, dina- mismo e esforgo.

«O primado da objectividade e a passagem por subrepgao do metodologico a ontologico, com a desvalorizacao do «real» no idealismo e a desvalorizacao do «ideal» no realismo, levaram inevitavelmente a «existencia» a ser considerada atributo entre atributos, e o homem, demitido da sua unicidade, a identificar-sp como coisa entre coisas e a aplicar a si um metodo de conheci- mento que s6 as coisas dizia respeito. (...) Os esquemas gerais estruturaidos em intima coerencia pela filosofia nao serviam a hermeneutica do existente, isto e, a interpretagao do homem na sua situacao concreta do «estarjno-mundo», situagao que, por incomoda, era tambem deixada «entre parentesis» nos grandes sistemas » 28.

28 D. Santos, «Prefacio» (1956), em R. Jolivet, ̂45 doutrinas exis- tencialistas: de Kierkegaard a Sartre, tr. de A. Q. V. Lencastre, 3.a ed., Porto, Livraria Tavares Martins, 1961, p. VII-VIII.

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A filosofia da existencia, 4 assim, urn complexo de doutrlnas, cuja filosofia tern por objectivo a andlise e a descrigao da exis- tencia concreta, vista como acto de liberdade que se constitui, e cuja g€nese se fundamenta na afixmagSo de si; ela significa uma abertura de humanismo, uma nova ontologia da Pessoa, mediante uma an&lise fenomenol<5gica.

Esta nova hermen§utica do existente interpreta o homem na sua situagao original e especffica do estar-nojmundo; mas a existencia, criando a sua ess&ncia na temporalidade, nao 4 actua- lidade absoluta. Estar-no-mundo, distintivo marcadamente humano, coloca o homem perante si e a sua situagao numa atitude inter- rogativa; esta indagagao revela-se de um modo peculiar como «diatectica da existencia que, obstinadamente concentrada sobre o mais concreto existir, procura desvendar, neste pr6prio existir, o sentido mais profundo da vida humana»w.

Delfim Santos, denotando uma clara influSncia heidegge- riana, concebe o homem como o lugar do sen 4 no homem que o ser vem a si, se torna Wcido, porque ele & o lugar onde o ser se conhece como tal e pelo qual as coisas adquirem sentido. J& Heidegger, na busca de clarificagao deste conceito- do ser do sendo - escolhe o homem como ponto de partida; 4 que as coisas n5o existem, apenas «resistem». O homem surge-nos como o ente privilegiado que no seu ser se relaciona com esse mesmo ser - o seu ser - e ao ser em geral; ele 4 abertura o ser. Como ente, o homem 4 reivindicado pelo ser e «langado pelo pr6prio ser na verdade do ser, a fim de que, ek-sistindo nesse langamento, guarde a verdade do ser, a fim de que na luz do ser, o ente

aparegfet como ente que 6»80, ou seja, para que o ente se revele no seu ser; 6 na ek-sistencia que? o homem se encontra com os outros entes e se realiza plenamente a si e aos outros.

Entao, o ser revela-se totalmente na medida em que acon- tecer no homem: homem e ser relacionam-se. A essencializagao da histdria 4 o destino do ser que, situado no homem, o constitui como homem; ser nao 4 um produto do homem mas o que estd

para al&n de todo o ente, ate do prdprio homem. Estar-no-mundo

» Cf. ib., p. XL _ „ ^ T__ 30 M. Heidegger, Carta sobre o humanismo, tr. ae J&. ̂. i-eao, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 50.

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supoe uma correlagao com as coisas, com os outros e consigo mesmo: «A coexistencia 6 constitninte do estar-no-mundo. As coisas ocupam-nos, os outros preocupam-nos» sl; deste modo, o estar-no- ■mundo compromete o homem enquanto existente e, portanto, destino do prdprio ser, «a existencia, a nossa propria existencia, e unica e intransmissiveb) 32.

Se a existencia e impensavel, sem ela o pensamento nao poderia manifestar-se: o ser so pode ser pensamento em relagao ao pensamento. O ser manifesta-se ao pensamento para que este o revele, trazendo-o a linguagem, pois e no pensamento que o ser se torna linguagem33; a linguagem inscreve-se, portanto, no destino do ser, isto e, o homem hominiza-se; tambem, por outro lado, s6 o homem e historico, essencializando-se no conflito dos destinos na temporalidade do ser: «S6 o homem tern historia, ou, de outras maneiras, a natureza do homem e historia (...). Posto assim o problema, a historia surge como dimensao do homem e, ao mesmo tempo, como o seu proprio mundo»34.

Estes pressupostos, estao subjacentes a pedagogia existen- cial delfiniana; na verdade, o homem realiza-se humanamente num horizonte de abertura, que e o fundamento da compreensao do ser, a qual apenas se explicita atraves dp homem:

«Da mesma forma que nao e possivel separar existencia do estar-no-mundo ,tambem nao e possivel considerar isolada- mente a existencia de urn eu. Oeue uma determinagao essen- cial da existencia. A substancia do homem nao e, portanto, espirito como sintese da alma e do corpo, mas existencia. Ser no mundo e estar com os outros ou estar-no-mundo e ser com outros»85.

A historicidade do ser esta relacionada com a do homem: cada Spoca tern a sua interpretagaqf de ser; participando do des- tino do ser, a essencia «extatica» do homem determina-se, entre os entes, como o lugar onde reside a verdade do ser; o esque-

31 D. Santos, «Heidegger», inedito, em OC II, p. 362. 82 Id., «Sentido existencial da angustia», em Amis Portugueses de Psiquiatria, 4 Dezembro 1952, em OC IL p. 158. *» M. Heidegger, op. cit., p. 24. 34 D. Santos, recensao de Systematische Philosophie, de N. Hart-

mann, em Boletim do Institute Alemao, 1945, em OC I, p. 430. 85 Id., «Heidegger», op. cit., p. 362.

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cimento desta conduz a decadencia, a dispersao do homem na vulgaridade do mundo das coisas.

A pedagogia existencial radica de novo neste pressuposto: despertar o homem da vulgaridade, consciencializando-o do seu estar-no-mundo e do projecto existencial que lhe compete; por isso, ela toma o caracter de problematica, sugerindo a continua interrogagao, que torna o homem contemporaneo com o ente que a formula - o prdprio homem; metafisica e antropologia surgem, assim, numa originaria unidade.

Embora o homem se interrogue acerca do ser, nao se segue que possua ja urn saber do ser em geral; para que a actividade interrogativa se exerga, o homem necessita de saber algo do objecto de interrogagao; de contrario, a pergunta nao seria pos- sivel e estaria correspondida por esse saber: o pre-saber de que parte toda a interrogagao nao e um horizonte vazio, a colmatar pelos recursos da fantasia, mas uma necessidade existencial de, interrogando, indagar acerca do ser em geral, manifestando-se, entao, o homem como um ser finite Ora, uma das caracteristicas que Delfim Santos releva no seu pensamento e o sentido do limite e da finitude.

A condigao interrogativa que distingue o homem tern como limiar metafisico a unidade e totalidade previas do ser, como condigao de possibilidades, para que, nesse horizonte, o ente em particular possa ser reconhecido como sendo; entao, a pergunta nao se dirige ao ente como tal, mas para o ser na sua totalidade, no qual apenas e possivel a efectivagao da pergunta pelo ente, e, como tal, ser reconhecido,36. Reconhece-se aqui a diferenga ontoldgica, isto e, entre o ente e o ser; deste modo, nao se pode interrogar acerca do ente nem conhece-lo sem indagar qual o fun- damento do ente - o ser do ente; neste sentido, Heidegger assu- miu uma atitude critica perante a metafisica ocidental por esta ter olvidado a diferenga ontoldgica, isto e, aquilo em que se fun- damenta o ente enquanto ente, havendo-se apenas resumindo a uma analise da sua essencia, nao se preocupando com o que o pode tornar inteligivel - o ser do ente. Por isto, a condigao

3G Cf. E. Coreth, Metafisica: una fundamentacion metodico-siste- matica, tr. de R. Areitio, Barcelona, Ariel, 1964, p. 105.

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originaria desse interrogar se afasta do idealismo; enquanto este reconhece um saber produtivo, o pressuposto metafisico delfiniano orienta-se por um «perguntar pressupotivo».

Esta dialectica entre conceito e realizagao, significa uma tensao entre o saber conceptualmente explicito e tematicamente realizado, e o saber atematico, que postula uma progressiva deter- minagao ulterior, pela qual o ponto de partida da pergunta se tematiza mais plenamente quanto ao seu conteudo, segundo uma imediatez mediada - para usarmos a linguagem hegeliana. Delfim Santos e explicito:

«O sendo e o que se mostra na experiencia diaria e cons- titui a esfera do ontico. O ser que determina o sendo como sendo constitui a esfera do ontologico. Compete-nos agora nao fazer a confusao vulgar entre ser e sendo ou ontico e ontologico. O ser e primario relativamente ao sendo e, portanto, o onto- logico e primario relativamente ao ontico. No entanto o ontico e o sendo sao-nos mais proximos do que o ser o ontologico. E se tudo e nos proprios se nos oferece como sendo, qual de todos os aspectos do sendo devemos preferir para nos langarmos na descoberta do ser: A maior parte dos filosofos, quando se puseram este problema, procuraram o ser das coisas que os rodeavam. Mas o sendo que nos somos tern, alem de outras, a possibilidade de interrogar sobre o ser que ele mesmo e. O ser que nos somos e, pois, o exemplar que nos vai servir na busca da resposta a questao que e o ser» 37.

O lugar eminente que o homem ocupa no pensamento delfi- niano resulta do conhecimento profundo que tinha das correntes mais contemporaneas no campo filosofico; no entanto, esta filo- sofia serviu de baluarte para a elaboragao duma filosofia educa- cional, na qual, uma antropologia de cariz existencial, possibilitou sugestoes de respostas para a constituigao da sua denominada «pedagogia existencial»; esta, predominantemente humanista, visa corresponder as mais reiteradas interrogagoes acerca do homem, da cultura e da educagao.

b) Dimensdo existencial do Homem: a liberdade

Se a concepgao da liberdade e tao antiga quanto a propria atitude filosofica, em Delfim Santos este valor apresenta-se como a dimensao fundamental da realizagao humana, como ser que esta-

87 D, Santos, «Heidegger», op. cit>, p. 358. O italico e nosso.

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-no-mundo, e, portanto, com especial incidencia na filosofia poli- tica, etica e educacional.

Ter, fazer e ser sao categorias tipicas da condigao humana. O homem ao prosseguir incessantemente ser sempre mais, suporta fracassos e desilusoes; mesmo vivenao angustiaao* ao agir neces- sita de conferir sentido a sua acgao e situagao. A acgao pressupoe uma intencionalidade que se manifesta duplamente, como urn projecto de uma possibilidade que ainda nao e, e como carencia da situagao actual38; deste modo, o agir requer como funda- mento a liberdade: esta e interpretada «como fundamento onto- logico constitutivo e imanente ao proprio ser do homem»39. Assim, o homem e o ser que toma consciencia da liberdade atraves dos seus actos, cuja realizagao de ser humano esta dependente dessa consciencializagao.

Condenudo a ser livre, nao e livre de deixar de ser livre; a sua vida explana-se numa constante desadaptagao relativamente ao meio que o circunda; desde o nascimento que essa desadaptagao o acompanha, cumprindo a sua tarefa ate a morte - «a ultima desadaptagao a que o homem e submetido»» 40. O binomio adaptagdo/ desadaptagao caracteriza o homem como ser livre: «a vida no homem consciente nao consiste na sucessiva adaptagao ao meio, (...) mas na constante desadaptagao a que a sua vida o obriga. A adaptagao e consequencia da desadaptagao» 41. A liber- dade, por conseguinte, esta sempre em questao no homem.

No entanto, ao projectar-se para o fim escolhido, o homem encontra obstdculos- - condigoes exteriores - , que comprometem o exercicio da liberdade; essas «cirunstancias exteriores, impedi- tivas da liberdade, existem para os homens realizarem a sua liber-

38 Cf. J.-P. Sartre, L'Etre et le neant, Paris, Gallimard, 1946, p. 509. S9 D. Santos «actualidade e valor do pensamento filosofico de

Leonardo Coimbra», em Stadium Generate, Porto, 3 1 1956, em OC II, p. 234. 40 Id., «Direito, Justiga e Liberdade», em Boletim do Ministerio da

Justiga, 10 Janeiro 1949 em OC II, p. 60. «Condenado a ser livre» e a pro- posigao sartriana, basica na sua obra, porquanto e pela liberdade que o ser para-si e sempre algo de diferente daquilo que dele se pode afir- mar; o homem e livre, porque, enquanto para-si, e o que nao e e nao e o que e. Assim, diz Sartre «eu estou condenado a ser livre (L'Etre et le ndant, op. cit., p. 525); a liberdade so pode ser limitada por si mesma e o homem nao e livre de deixar de ser livre.

*>> Ib.

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tagao»: «a litaerdade e sempre resultado de autonomizagao» 42, Quando o homem se relaciona com alguma coisa, molda-a, con- fere-lhe sentido, inscrevendo-a no seu projecto fundamental; ao optar, ao esoolher, o homem fa-lo de acordo com a sua capaci- dade de libertagao, alcangando deste modo o exercicio consciente da liberdade.

Ser livre informa a totalidade do ser do homem; o que ele busca incessantemente 6 essa totalidade - como vimos no tema anterior - na sua relagao com o mundo e com o outro, de modo a tornar-se num universo de relagoes, a partir de um projecto fundamental, concebido dinamicamente.

«Se a liberdade e acgaq e se o acto em que ela se exprkne e um aGto total porque espiritual, se e uma conquista mais do que uma aquisigao definitiva, se e o proprio espirito, deve, pois, ser entendida mais como libertagao do que como liberdade, isto e, mais como acto dinamico do que oomo realidade estatica» 4S.

A pessoa e, nesta sequencia, uma totalidade que, no agir, se projecta como ser total, vivendo a sua opgao como projecto de ser; nessa possibilidade de ser livre, de poder ser diferente do outro, realiza o homem a sua verdadeira dimensao de ser humano - pessoa. A solidariedade, a disponibilidade, aparecem como «manifestagao da humanidade» e «a liberdade como mani- festagao de consciencia» 44; o projecto fundamental, ou pessoa, inscreve a livre realizagao da verdade humana na unidade signi- ficativa da pluralidade dos seus actos.

No entanto, a realidade humana e tamb&n carencia; o homem faz brotar no mundo o nada: ele mesmo o possui no seu ser; esta presenga do nada no homem - isto e, o para-si, na lin- guagem sartriana - origina a liberdade.

«O «nada» 6 inexpremivel e contradit6rio com os metodos 16gicos do pensamento, pois sempre que se formula um enun- ciado sobre o «nada» ressalta evidente a contradigao e a sua propria negagao. O «nada» nao pode tornar-se objecto de pen- samento, porque e a negagao da totalidade do «sendo», e como esta totalidade e tambem impensavel, Heidegger estabelece entre ambas uma correlagao. Mas serd o «nada» um produto

« Ib. ^s Id., «Dial^ctica totahsta», em Presenga, Coimbra, 2 s9 Julho 1933,

em OC I p. 34. " /&., p. 37.

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de negagagao levado ao limite ou, pelo contrario, a negagao e possivel porque o «nada» existe»? O «nada» e anterior e fun- damento da negacao». (...) E e o homem mais profudamente humano, o homem consciente da responsabilictacte da passa- gem pela Terra, quern mais vezes e mais intensamente o sente.» 45

Com efeito, se na vida corrente, e na propria ciencia, o que atrai o homem sao dominios do sendo que integram o universo envolvente, o ser do sendo transcende os dominios do sendo, senao seria objecto entre objectos; trata-se de algo que supera as objectividades determinadas e, portanto, trans-objectivo: e assim o nada que revela a existencia como ontologicamente diversa do sendo. Dai que Delfim Santos cite, a proposito, Hei- degger: «Sem a revelagao original do «nada», nem e possivel ser- mos nds pr6prios nem e possivel a liberdade» 4(J.

Esta consciencia dramatica dos limites, que o homem apre- ende, na perplexidade da existencia perante o nada, e a busca da totalizagao do seu ser que o projecto fundamental supoe, gera a angustia como um dos signos do estar-no-anundo; o modo de ser da liberdade, como consciencia de ser, manifesta-se como angustia: «(...) ela; e o orgao que da ao existente a consciencia temporal do seu existir, a consciencia especifica da liberdade»47.

A sua responsabilidade e ainda maior, porque o e com resso- nancia universal^ pois ao tomar opgoes, elege tambeim, de algum modo, o outro como queria que ele fosse: a sua escolha compromete a humanidade, pois, se o homem e responsavel do que elege, nao o e, todavia, a titulo meramente individual, assim a angustia e a estrutura permanente do ser humano, enquanto propulsora da liberdade.

Estes pressupostos, caracteristicos duma filosofia da exis- tencia, facultam uma filosofia da educagao orientada para a for- magao integral do homem, adequada a uma existencia aberta a totalidade do ser, consciencializando-o da angustia perante o nada, mas tambem dos possiveis que o projecto fundamental de exis- tencia abre ao homem, de modo a realizar-se como pessoa, rejei-

45 Id., «Tematica existencial», em Atlantico, 3.a serie,2 1950, em OC II, p. 82-83. 4« Cf. cit. ib. p. 84. 47 Id., «Sentido eixstencial da angustia», art- cit., p. 163.

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tando consequentemente pressupostos de ordem atomista e meca- nista; essa formagao integral do homem, como vimos anterior- mente, deve tender para uma elucidagao da responsabilidade que deve informar a existencia na sua teimporalidade; a liberdade aparece tamb&n como o fundamento de um harmonioso desen- volvimento das potencialidades do ser humano.

c) Modo de ser do Homem: angustia e finitude

35 vivendo autenticamente a liberdade, que o homem se consciencializa -da finitude existencial - como salientamos nos temas anteriores. De facto, o homem e possibilidade de ser ines- gotavel no seu projecto de ser; este nao segue uma via pre-deter- mimada e fixa; o modo de ser do homem e essencialmente opta- tivo: «a angustia penmite ao homem ser «quem» realmente pode ser»48. £ neste sentido que a existencia autentica nao teme a experiencia da angustia; esta surge-lhe como agente de humani- zagao, impedindo a sua dispersao. Como escreveu Kirkegaard - fildsofo que profundamente influenciou Delfim Santos - «a angus- tia e uma antipatia szmpdtica e uma simpatia anUpdtioa» 49. Ora se a angiistia se revela ao homem por ser homem, ela e imanente a pr6pria existencia e, como tal, normal a sua manifestagao.

A angustia possibilita o transito da inautenticidade para a autenticidade: existir e oscilar entre estes polos ambivalentes, que provocam a decisao; nenhuma vida humana normal pode escapar a vivencia da angustia, que juntamente com o desespero, e a caracteristica mais marcada da existencia. De certo modo, a angus- tia 6 uma experiencia ambivalente, que pode ser manifestagao de desespero no caso de incapacidade de realizagao do projecto exis- tencial, como taimbem pode ser a expressao da «manifestagao de vigor espiritual, anseio de realizagao em plenitude, quando aponta ao homem o sentido de elevagao possivel e a liberta do que lhe 6 estorvante» 50.

4* Ib., p. 161. 49 S. Kierkegaard. El concepto de la angustia, Buenos Aires, Espasa- -Calpe, p. 47. O italico e nosso.

50 D. Santos, «Sentido existencial da angustia», art cit.. p. 163.

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O estado de angustia constitui «experiencia parcial de morte», sinal expressivo da passagem aa impessoalidade, da facticidacLe, para a pessoaliaaae e o compromisso. Como diz o Autor.

«(...) poder-se-ia dizer que, na genese da personaiidade, no principle) era a angustia, e que o pensamento, o verbo e a ac$ao representam rormas da vitoria que a angustia per- mlte ao homem. No principio era a angustia, poderia ser o lema da concepgao existencial do humano... Deste modo, a historia da humanizacao do homem seria a historia da an- gustia no desenvolvimento da consciencia e da liberdade.» 51

Para Delfim Santos, se a duvida cartesiana aparece como metodo para alcangar a verdade no piano logico, a formagao da personaiidade humana e conquistada pela experiencia da angus- tia; se a duvida metodica concerne as ideias claras e distintas, a angustia orienta-se para a formagao da personaiidade consciente e autentica62. £ assim que angustia e neurose sao vivencias con- traditbrias do existir humano; enquanto a primeira caracteriza a autenticidade da existencia e e factor de dignificagao, a segunda e indice da inautenticidade e sintoma patologico. Como sublinha Delfim Santos,

«(...) a angustia e a propria essencia do homem, a capa- cidade de dizer «nao» ao que o pretende absorver em formas de vida abaixo do nivel da sua dignidade; a angustia e a neu- rose nao podem identificar^se, a terapeutica da neurose con- siste em voltar a angustia que a originou e nao na sua elimi- nacao, porque eliminar a angustia e aniquiliar no homem o que o eleva em dignidade na demanda de novas e mais belas tormas de existencia.» M

Estas, como refere tambem o Autor, sao o produto da angus- tia, ilustradas ao longo da historia da Humanidade, como sejam a religiao a filosofia, a arte e a ciencia, como tentativas sempre reiteradas pelo homem em perscrutar os segredos da natureza, do enigma humano, bem como da Transcendencia. Entao, se a angustia resulta da constatagao da finitude humana, por outro lado constitui o sustentaculo mais humano que na inseguranga gera a firmeza e autenticidade.

* Ib. « ib., p. 164. » Ib., p. 165.

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PRESSUPOSTOS FILOSOFICOS DA PEDAGOGIA DELFINIANA 381

«O destino do homem exige, como preliminar de toda a sua actividade, a compreensao das situacoes em que decorre a sua vida, e esta tern um mundo possivel, urn mundo mater- nalmente tarreno, que o homem pode estender, modificar, mas nunca abandonar ou dele se separar. Daqui a sua inquieta- $ao, a sua angustia, o seu temor ante a morte.»54

Na verdade, a existencia humana distingue-se radicalmente das estruturas que constituem o mundo na tomada de consciencia do que Jaspers denominou situagoes-limites; estas manifestam ao homem o horizonte do seu comportamento. Eis a razao pela qual a existencia humana requer uma outra compreensao que apenas uma antropologia existencial pode proporcionar, ao inv^s da filo- sofia cl&ssica, que se esforgava por a explicar por categorias apenas adequaclas h, explicagao dos fen6menns da natureza; com efeito, homem e o seu enigma escapam ao fluxo da natureza, o que implica uma nova linguagem:

«A filosofia tradicional usava uma unioa linguagem e pre- tendia com ela subsumir em identidade tudo o que surgia em diversidade. A existencia era apenas atributo a juntar a ou- tros atributos. fi, porem, o contrario que se yerifica. Ha tres linguagens sem sinonimias ou identidades: a linguagem que se refere ao mundo dos objectos a linguagem que se refere a existencia e a linguagem que se refere a transcendencia.» 5'5

(Deste modo, h filosofia da explicagao, sucedeu uma filosofia da compreensao, com vista h elucidagao do que ao humano diz respeito; se o esforgo filosdfico pre*-kantiano se orientava para o objecto, olvidando o dinamismo e criatividade do sujeito, este, atrav^s «revolugao copernicana» kantiana, torna-se o prdprio objecto da andlise, oomo o Autor salienta, orientado por Jaspers, ao afirmar:

«O crit^rio da objectividade impunha que a filosofia se tornasse ciencia, o criterio da subiectividade requeria que a ciencia se tornasse filosofia. Karl Jaspers, nao contestando o valor da ciencia na orientagao do mundo; nao desyalorizando o espfrito como 6rgao de conhecimento na decifragao do mundo, nao admite pore*m que a filosofia se subordine a um dos aspectos da distincao entre sujeito e objecto.»M

54 Id, «A nova problematic filos6fica»r em Revista do Porto,* 30-11-1940, em OC I, p. 362. ^ .... ,AM 55 Id, «Jaspers na filosofia contemporanea», conrerencia ae i?do, em OC II, p. 272. w Ib., p. 273.

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Delfim Santos, tendo perscrutado o sentido antropoldgico da existencia, divisa a angustia como manifestagao essencial do estar-no-mundo, ele que foi uma expressao vivida da angustia, realizada com autenticidade e preocupagao, numa existencia nao dispersa na vulgaridade. A sua filosofia educacional tern por escopo a formagao integral do homem, de modo a permitir a superagao do anonimato que gratuitamente nos seduz. O ardor que assinalou a sua luta por um novo sistema educativo - que ante- riomente analisamos - radica numa filosofia profundamente exis- tencial. fi porque a condigao humana e ambigua, e nao absurda - caso em que a tarefa educativa seria superflua - , que a complei- gao da personalidade se torna possivel como exigencia; dai que o seu pensamento pedagdgico seja eminentemente humanista.

MARIA ALDINA CABRAL O. E. ROCHA

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