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Prematuro – Álvaro Machado Hoje ainda não nasci E o meu destino é nunca nascer, O que quero não sei querer E há a ideia de que já morri. É triste ser assim tão frio Como as horas passadas à lareira Neste inverno coberto de fogueira Que arde até ao rio. Ainda não nasci, nem o desejo; O que quero? É só não nascer, É só não vir, é só esquecer... Há o sabor de morte prematura, Há a dor incontornável que sempre dura, E o que quis? Nunca quis nascer... O menino da Terra – Álvaro Machado O menino inconsolável tem sonhos Que mais ninguém pode ter. O menino é o que mais ninguém sabe ser: Sonhador da realidade triste. E é o menino que estende a mão E se chega para dar o abraço

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Prematuro – Álvaro Machado

Hoje ainda não nasci

E o meu destino é nunca nascer,

O que quero não sei querer

E há a ideia de que já morri.

É triste ser assim tão frio

Como as horas passadas à lareira

Neste inverno coberto de fogueira

Que arde até ao rio.

Ainda não nasci, nem o desejo;

O que quero? É só não nascer,

É só não vir, é só esquecer...

Há o sabor de morte prematura,

Há a dor incontornável que sempre dura,

E o que quis? Nunca quis nascer...

O menino da Terra – Álvaro Machado

O menino inconsolável tem sonhos

Que mais ninguém pode ter.

O menino é o que mais ninguém sabe ser:

Sonhador da realidade triste.

E é o menino que estende a mão

E se chega para dar o abraço

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A quem se curva sem coração

A quem chora sem laço.

Da áurea que carrega, transbordam as lágrimas

E o olhar logo se ergue ao céu, pensativo e triste,

Por não ter mais amor com a humanidade!

O inconsolável e pequeno rapaz, a jóia

De todo o universo, quer-nos abandonar...

E com ele vai também nossa eterna felicidade!

“Não tem nexo” – Álvaro Machado

Quando quis voltar a ter rumo já tarde era para mim.

De novo quis voltar àqueles desertos alucinantes,

Àquela prisão de areia - e os camelos tão distantes

Juntam-se, a mim, nestes cismos arrepiantes!

Não há mais conquistas a ter. Nem futuras a sonhar.

Passo horas à espera que frutifiquem

Árvores de fruto que nem tão pouco crescem

Porque o sol, em vez de criar, há-de queimar.

E em vão, a alucinar, eu peco por te desperdiçar,

Que nem ter esperança me há-de ajudar,

Porque Deus quis que o meu rumo fosse procurar

O rumo onírico de nada encontrar!

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Inexplicável – Álvaro Machado

É difícil explicar de onde vem,

Para onde vai e porque é assim...

É uma alegria que entra por mim

E nunca chega ao fim...

É uma vontade desconhecida,

Uma identidade mais do que esquecida,

E são minhas, as mágoas de noite entristecida

A esperar por quem não vem...

E por ser difícil, por saber que não vens,

Eu também sozinho não vou...

Esperar na sombra por quem não voltou

Dos longos e sombrios trens.

Rumo pelo expresso – Álvaro Machado

Crer um rumo e não ter.

Mais um breve excesso.

E apanho o próximo expresso

À madrugada que pode ser.

Buscar a normalidade e não achar

Mais do que o simples impossível de coisa qualquer…

Como me sinto, ou não, impune de não encontrar

Uma vida como outro qualquer

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E só achar precipícios e faltas de ética!

O excesso está cometido, mais um excessivamente impiedoso.

Encurta-se-me a viagem daqui às nuvens do céu caprichoso

Pelo expresso, que é a vida de um que quer

Algo, ou alguém, para crer…

Arrependimento – Álvaro Machado

Se o arrependimento queima-se a mágoa

De se lhe estar a sentir, eu seria todo Sol a arder;

Por entre todos, as estradas vazias se enchiam

De ar, de neve derretida, de árvores resplandecentes!

Eu seria a razão de todo o bem na Terra

E a culpa de todo o seu mal... Seria quem ilumina

Corações e quebra a crença! Seria a luz do Sol

E a escuridão da noite!

Mas, como é arrependimento, e não esperança,

A que trago agarrada ao coração, sofro apenas.

O estar Sol diante de mim não chega e por mim adentro

Não ardo nem faço arder; não faço nem faço acontecer...

O que mais quero é esquecer, esquecer este arrependimento

Que me torna absorto de viver e me destrói de tentar viver;

Ó desassossegada alma inavegável pelo teu próprio mestre!

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Ó sóis de inverno de chamas inertes e monótonas!

Saber viver? E gostar de viver? Sim, se não estivesse arrependido.

Raiar como o Sol? Queimar as pálpebras? Se eu não estivesse perdido!

Mas há distância de estar arrependido e ser arrependido, porque quem está

Não é - eu sou todo arrependimento entre mágoas inconsoláveis!

Não se lhe queima a ferida e ela não há-de passar nunca...

E depois disto, hão-de vir os silêncios absortos do coração,

A preponderante escrita de um sacrário pensado e sofrido

E todas as formas de pensar levarão a quem sofre de estar arrependido...

Trajecto de quem passa – Álvaro Machado

As portas têm-se fechado, a cada dia,

E em cada dia se tem a certeza

De que nada vale a pena - tudo é tristeza...

Viver é só até um dia.

De que vale andar pela rua a pensar?

Pensar em que não merece ser pensado?

Nos dias que passo fico a observar

O trajecto de todos, e o meu fica inacabado...

E por aqui ando, com um sorriso irónico,

A contemplar o trajecto de quem passa.

(O trajecto inacabado que tanta coisa disfarça!)

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E logo penso para mim:

Não vale de nada andarmos assim...

Não vale de nada pensar em pensar como eles...

(Vale a pena é ser rico!)

Sonhos são pesadelos – Álvaro Machado

Os sonhos que eu sonho são pesadelos

Que me fazem acordar, de repente, transpirado

E com uma ansiedade que esfria pelo corpo

(Ó meu amor, por que tenho eu sonhado?)

Sensação de medo sem origem que entra mim adentro...

Derrocada em dimensões de outros mundos bizarros...

Rostos distorcidos que me fazem parecer real a sua existência...

(E por que os sonho se nunca quis sê-los?)

O acordar é já ter medo de viver.

É ter medo da verdade do nosso ser,

E de todos aqueles rostos incertos

Que nos deixam também assim...

E eu deito-me às avessas na minha retocada alma

A pensar no que realmente é sonhar...

Será uma ideia de outro mundo que posso acreditar?

Ou serão os novos rostos do meu futuro?

(Se os sonhei é porque alguém quis que os sonhasse,

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Se lhes foi dada forma foi para que eu acreditasse...)

Dimensões… incertezas – Álvaro Machado

A minha certeza da vida, da humanidade

É não ver luz ao fundo, não achar felicidade;

É olhar dos píncaros longínquos uma razão

E não encontrar mais que ilusão.

Se há início prolongado e certo de que existo,

Por que não há fim efémero disto?

Se há, dogmaticamente falando, um ser para a morte,

Por que há a vida e isso é mais forte?

A minha certeza é contemplar as paisagens

E, cepticamente pensando, confiar em viagens

Entre o consciente infalível e o falível inconsciente

- Isso é a certeza de que tudo me mente -

Mas as dúvidas entre os estados de pensar e contemplar

Desvanecem enquanto encosto a cabeça à chuva - Paro e penso:

O que serei eu afinal? E vocês o que serão? Ninguém sabe precisar,

Ninguém sabe quanto do meu pensamento é extenso!

Só Deus sabe a certeza do homem e da vida, só Deus o sabe.

Quem pensa supõe o que de suposto já foi esquecido.

E nós, uns loucos que sonham e sentem, fomos o tempo entristecido

Em que ninguém soube do que sabe

Atenção, todos! Afastem-se do raciocínio e da dúvida, isso afastem!

Larguem o sentido da vida, o desejo do mundo e a vontade do universo!

Queiram todos desfrutar do que há para desfrutar - Desfrutem, porventura,

Como eu, que vejo o orvalho escorrer pelas janelas da amargura!

Ao céu… - Álvaro Machado

Tu. Quem dera que tu aí em cima,

Superior a todos nós,

Pudesses o meu coração acolher

E o meu amor receber.

Tu. Queria que me ouvisses,

Ias compreender o que ninguém pode compreender

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(Talvez deixar-me-ias Ulisses reencarnar

Para por entre aventuras eu me aventurar...)

Tu. Que continuas longe e em mim,

Que me ouves e compreendes sem te pronunciares

Será que isto tudo vai ter um fim

Se longe assim continuares?

Perdição – Álvaro Machado

Durante a noite o vento levou-me a alma para um lugar

Escondido de todos estes lugares do mundo, de todos os cantos

Estrelares e de todas as preces que me possam dar

Para fazer de mim um quarto de encantos

E eu olho-te altivamente, ó céu mais obscuro que a escuridão,

E espero-te impaciente para que desças sobre este turbilhão.

Vem que és bem-vindo à minha alma e ao seu invejável mistério.

Vem e vê como escorro por debaixo do rio.

No meu quarto só oiço vento forte e por vezes exagero.

No meu quarto só oiço o desespero.

No meu quarto só há Deus, só há alguém abandonado.

No meu quarto sou só eu isolado.

E há rios, e há navios, e há céus, e há a sensata impressão

De estar a ouvir o vento noutro lugar do meu coração.

E há noite, triste sentida no quarto, e há sombra, vagueando

Como se no funesto quarto fosse pintando,

Até que vai surgindo uma tela desfigurada cheia de transeuntes,

Uns são tão reais na linha que liga loucos e inocentes,

Outros são tão fictícios que alucinam à demência,

E nenhum acha noite, como esta, de excelência!

homens e deus – Álvaro Machado

a maior imperfeição do mundo

somos nós: homens.

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o tal navio que parte de um porto

desconhecido, e viaja adiante

- ao lugar sombrio, à morte prematura.

desvendamos apenas o mistério experimentado,

sentimo-nos como um falhanço criado

à maneira de deus - o altivo, o divino - e a mágoa

de todos nós somos nós próprios (e o nosso corpo);

mas quem paga não é o que arrastamos na terra,

é o que pensamos no universo!

são as coisas impossíveis!

as partes exógenas à raça!

é o brilho do sol e a intensidade da lua!

é o mar a meio caminho e o porto enevoado!

e é o amor de alma e o desejo de outro mundo!

os desejos do homem são, todos eles, impossibilidades.

ah porque a vida cansa, faz sofrer e enche de ansiedades

desapropriadas à compreensão... ninguém sabe um porquê

ou uma razão, ninguém acha um sentido ou uma explicação...

há vida, e isso sei que há; há campos verdes e pássaros a voar;

há nuvens às escuras e sóis às escondidas; há a humanidade toda,

e há a sagrada escritura do artefacto que deus nos deixou.

(sei haver mais mundo no mundo do universo, das estrelas...)

mas a maior imperfeição do mundo

não somos nós; és tu, ó alma sem dono,

figura sem rosto, sentimento sem profundidade!

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nós somos infelizes, porque somos indubitavelmente

inconscientes, animais; e tu és o dono de todo o universo

e dás alento a todas as estrelas que brilham intensamente...

és o criador, a voz, a paixão e o desejo incansável

das nossas mentes.

e a prece continua na tela à velocidade da luz - mais mundos

serão criados, mais vozes serão escutadas, mais revoltas

serão presenciadas, mas tu voltarás ao início, apagarás a memória

do porto sombrio e lançarás a humanidade pelo mar desconhecido

e ingrato a que todos os homens estão sujeitos desde que haja vida!

Isto do vento – Álvaro Machado

E é isto que somos neste mundo.

A história só nos diz mentiras.

Somos a passagem repentina do vento

E a chuva e o sol do lamento.

É isto o mundo de quem nos criou,

São estas as árvores, as paisagens,

E tudo o mais que olhamos das nuvens.

Somos tudo que o vento levou.

Tudo é estar belo e ser aparentemente eterno,

Menos nós, que passamos repentinamente

Por este mundo e outros e quem sabe continuamente!

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Tudo é isto em paisagens ao sol e não sermos como ele,

É viver tão distraidamente de nem pensarmos

Que um dia, finalmente, acabamos!

Errar em homem – Álvaro Machado

Não ser o suficiente

É quanto basta para nada valer.

Pouco a pouco, e por mais que queiras ser,

Nada te vale, simplesmente.

Somos humanos, que é constantemente errar.

E por mais que queiramos não o fazer,

Errámos sempre e errar é nunca errar

Quanto mais não poder ser.

Quando não és suficiente para as pessoas,

Tu simplesmente não és quem não queres

E os dias que te passam é o receio que ecoas

Distraidamente sem te aperceberes.

E não te esqueças que errar é humano, como dizem.

Por isso, erra um erro sem precedentes na história

- O teu erro será mais tarde a tua glória -

Como se os erros se fizessem!

Grande perda – Álvaro Machado

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A nossa grande perda é o esquecimento

De quem somos, do que fomos...

É a grande perda da humanidade,

E o nosso maior sofrimento.

Esquecermos de onde vimos

É esquecer quem somos,

Porque quem esquece não lembra

E vive a sua vida de aparências.

Nunca podes esquecer.

Esquecer é morrer.

Tu, homem de tantas excelências,

O que queres é viver!

Por isso, vive feliz e em paz.

As memórias até podem ser más,

Mas com elas deves viver.

(É ao teu passado que deves conhecer.)

Descortinar o mundo – Álvaro Machado

É a olhar sob os confins do mundo

Que descortinámos a nossa inutilidade,

Vimo-los bem de perto com um olhar

E sentimo-los longínquos ao pensar

Que ao vê-los não lhe podemos tocar...

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É a olhar sob os píncaros do mundo

Que verdadeiramente entendemos

As nossas fraquezas, as nossas limitações,

E ver é somente a prova que vivemos

Fechados e presos às ilusões...

Pois eu que continue a olhar assim...

Isso não é realmente a derrota da humanidade...

A derrota da humanidade é ver na vida o nosso fim,

É ver noutros uma entrega cheia de felicidade,

Para uma vida que será sempre p'ra todos e não p'ra mim...

Consciência – Álvaro Machado

O homem é um princípio sem consciência,

Um fim sem noção de fim porque acaba,

Um intermediário de experiência de vida

Que, se lhe for questionada a origem,

A voz enfraquece e o pensamento esquece.

Consta que o universo é infinito

- E, se o for, porquê a nossa mortalidade? -

Consta, também, que as estrelas gerem vida

E nós somos a estrela que carregamos ao peito,

Que ilumina e faz iluminar e deixa de iluminar.

O que dói, afinal? Inspirar com uma sensação má;

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Expelir, sem forças, o ar e a derrota da raça

Só porque sentimos a fraqueza de que somos feitos...

Doer é só um caminho sozinho para quem se conhece

E para quem tem uma má sensação.

Os dias passam como as horas passam

E para todos eles nós temos um sonho criado;

Naturalmente esse sonho é o de continuar vivo

Para o dia de amanhã, e continuar sem consciência

Porque a consciência é não ser.

Fazer valer a pena – Álvaro Machado

Façam valer a pena,

O pequeno momento.

Esqueçam o dilema

Que vida é sofrimento.

Escorram de felicidade

Como os rios da aldeia;

Amem com intensidade

Como o sangue na veia.

E sejam bons com todos,

Talhem caminhos juntos...

Sejam um caminho de muitos,

E não um lugar de poucos...

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Não façam como eu,

Que não valho o momento.

Eu penso no que não é meu,

E por isso penso em sofrimento...

Na era errada – Álvaro Machado

Por eu não valer o momento

Há um futuro que não me quer,

Há um passado meu de esquecimento

E esta vida é de um qualquer...

Desaprendi o sentir e o estar sentindo

E agora nem sei por onde estou indo...

Se olhar para trás não vejo um caminho

E parece que nunca tracei nenhum...

Escorre no som dos riachos e da primavera

O flagelo de eu não me conseguir viver

No momento da minha era!

Não sou feliz, seja ela o momento que for.

Quem é feliz nunca há-de saber o que é dor

Porque sempre saberá se conhecer!

Riacho – Álvaro Machado

Corre no riacho

Todos eles sem nenhum correr:

Som de água escorrer

Calmamente sem querer...

É leve ouvir este som

Todos eles sem nenhum ouvir.

Minha alma, quando pensas vir?

«Nunca te voltarei a ver...»

Pára o som da água

De todos eles nenhum me resta,

Pois onde está a mágoa

Jaz a alma de uma longa cesta.

Chuva de leme – Álvaro Machado

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Em nenhum momento a chuva cessa

E a noite continua a correr cheia de pressa

Em silêncios constrangedores que fazem pesar

Num tédio por que ninguém quer passar

Ah, a inércia com que me acerquei,

Se conseguissem ao menos imaginar!

Sou um jovem que nunca pensei

Ser e nunca pensei acreditar!

Tão novo para o mundo, mas que o vê tão claro

Como a água dos rios e dos mares sombrios;

Sou tão novo para um pensar tão raro

Que transcende todos os navios,

E se vai por aquele Mar de Inocências,

Que ninguém quer acreditar...

E se vim ao mundo foi para recitar

A vida de todas as excelências!

(Pára o navio e o convés fica quebrado.

O marinheiro, que tanto tem navegado,

Depara-se junto a mim no leme

E eu digo-lhe: "Apre! Infinitamente reme!")

Remar é como fugir: não temos por onde ir.

Só remam e fogem os inocentes...

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E tu, marinheiro da inocência, como te sentes?

"Ao leme, a remar ao infinito" - disse ele a rir.

Entontecer – Álvaro Machado

O vazio do meu coração

É como a chuva fria

Que cai pelo chão

E que me esfria.

Que, quando cai, me desnorteia

Entontecendo-me até à noite morta;

O próprio vazio, a própria alma absorta

São um vazio de ideia...

Parece que não existo

Ou que tu estás longe como o infinito...

A sensação é de sofrer

Enquanto estiver a chover...

Porque quem ama não deixa escapar

O coração que está encostado à chuva;

Se porventura ouvi-lo-ão desertar

Não foi ele, foi a chuva.

Lágrimas escorridas – Álvaro Machado

Chovem lágrimas, as lágrimas minhas e as minhas saudades.

Lanço sobre a minha cabeça um alvoroço imenso

E quando chega junto de ti parece pequenas intensidades

De um largo e duradouro incenso.

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Escorrem as mágoas, as mágoas de pensar na minha dor.

Destruo todas as cartas que escrevi,

Destruo toda a imaginação que vivi.

E morro, assim, da vida um amador.

A tinta está seca e o barco despenha-se nesta chuvada.

Por mais marés que sinta e por mais tempestades que sofra,

Eu não posso dar-te a mão ainda que sejas tu a desejada!

Embrulho as cartas num toque leve, mando-as rio fora

E, aguardando, espero que as leias como te disse outrora,

Calmamente como a água que escorre a toda a hora!

E quando esta chuva cessar,

Por aqui não irei estar para contar

Às lágrimas do meu infeliz coração

Quando do que fui, fui ilusão.

Em viagem com amigos – Álvaro Machado

De uns tantos tempos de ironia

E de umas conversas agradáveis,

O que há para recordar são as memoráveis

Conversas de que tanto me ria.

À viagem de Londres, como diria Passpartout,

Até à viagem alucinante de lugares misteriosos!

Indo em navios a vapor ou em comboios tempestuosos,

Um pintor qualquer teria ali um «passe-partout»

E quando sinistramente me juntei

Àquele grupo de viajantes

Senti um alívio que logo apreciei

Como nunca sentia antes:

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Sentei-me entre a carruagem nobre

De Phileas Fogg e logo comecei a jogar

Numa longa jornada de whist, e um whisky me via desfrutar

Como nunca poderia quando era pobre.

Horas parecendo eternidades haviam passado...

"E o vencedor é o mestre dos mestres, senhor" - atirou o empregado.

Horas que por ali tinham passado sem eu dar conta

E deu a sensação de que tudo isto foi sonhado...

Paris – Álvaro Machado

O dia hoje é estar em Paris

E ver de lá o lado das saudades

Que nos chegam dia após dia

À considerada cidade das cidades;

É não estar bem com a língua

E ver de longe a memória de Portugal...

No ar um cheiro atravessa infernal

Uma sensação míngua...

Paris é como estar no Porto

E ver bem próximo de nós

A serena ribeira e o belo porto

Que ligam a cidade até à Foz.

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Amigo de longa data – Leonard Sagè

Para o Álvaro de um Portugal frio…

"Tem passado anos atrás de anos

Em que não trocamos palavras,

Alegrias ou infortúnios.

Será da distância ébria de Portugal?

Será da distante e acolhedora França?

A Eiffel não me responde a isto,

Apesar de roçar nas nuvens e no céu...

Quando lhe toco aquilo parece meu,

Mas quando penso em ti já lá vão muitos anos!"

Ó amigo de longa data! Sinto estar no meu fim

Enquanto te escrevo esta carta de amizade;

A vida por aqui tem sido uma eternidade

E ninguém percebe de saudade!

Ó amigo de longa data! Volta para mim

Enquanto não chega o meu fim!

"Mudei tanto desde da última conversa,

Que se visses nem acreditavas.

Nunca me esqueci de quem sou, mas mudei...

Agora estou como sempre sonhei:

Longe de todos, porque isso entristece,

Longe dos ambientes, porque isso é vago,

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Longe das coisas más, porque isso é falso,

Longe do bem de todos, porque isso é misericórdia;

Agora? Agora sou feliz porque vivo sozinho

E vivo apenas para mim, descrevendo paisagens

Que não me dizem nada, falando com pessoas

Que não me são nada, suspirando por amores

Que não sabem o que eu penso de amor..."

Desculpa-me por te escrever tão tarde.

Eu perdi a noção das horas, dos dias e de todo o tempo

Em que vivi por cá... Estou no meu fim de versos,

No meu fim perante tudo e todos.

Se há alguém que eu tenho de agradecer é a ti,

Porque só te conheci a ti...

Desculpa por ser tarde, desculpa por ter saudade...

Cidade sem gente – Leonard Sagè

Em Paris não há conhecidos,

Ter um bom amigo faz parte da antiguidade,

O bonito desta cidade são paisagens

Que não lembram gente.

Aqui tenho certezas que nunca tive,

Intercepto verdades que nunca interceptei,

E com nada me pareço desde que vivo aqui

- Sinto saudades de casa.

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Nunca recusei dar uma esmola nem desviei um olhar

Aos que passam por mim, mas isso não faz de mim

Melhor ou pior pessoa, faz parte da personalidade

E da empatia que sinto pelos parisienses.

Eiffel roça no céu e está cheia de saudades...

(Pode até nem pertencer a Paris...)

Eu subo-a, degrau a degrau, até chegar ao topo,

Mas perco a noção da vida

E caio com brutalidade, desperdiçando a cidade que me acolheu,

Sem me despedir decentemente,

Contra o chão duro e frio

Que nunca foi pisado por gente.

Consciente(mente) – Leonard Sagè

Sinto-me; e neste paraíso acordo

A sentir-me destrutivo e decadentista

Enquanto à primeira badalada da manhã

Sinto consciência em sentir...

Estar consciente que existo

Está acima do esquecimento que existi.

- Esta vida, as acções dela e a sua percepção

É um tabuleiro de xadrez:

Com as peças de vidro estilhaçadas,

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O telhado a derrocar-se lentamente,

E o azulejo a envernizar-se

Para que a casa se complete

Com a humanidade por ali adentro

A sufocar de ar mentalmente irrespirável.

Como posso eu sentir-me?

Quando o mundo é um enigma de cadafalsos

Onde as peças se movem silenciosamente

Com único objectivo de derrubar?

Ao amigo de Paris – Álvaro Machado

Para Leonard Sagè, algures em França.

Viva, amigo de companhia singular.

Como tens estado por essa aldeia?

Com tens passado junto ao Mar?

Não sei por que razão te venho escrever,

Pois a nossa vida é uma vida inteira

Que nos corre e cedo vimos desaparecer.

Ah! Vamos esquecer-nos desse dia!

Tenho hoje a disposição faminta de outros ares

E quando te escrevo imagino-me a navegares

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O belo som das ondas que nos deixam perdidos

E sem orientação para voltar às nossas casas...

O belo som que nos parece dar asas,

E voarmos é o limite, porque somos uma raça com limites;

E voarmos é sermos marinheiros de rostos felizes,

Ainda que em alto-mar naveguemos por sentidos.

Navegar por sentidos é navegar consoante o vento

E a nossa intuição é de ele estar a Oeste de nós...

(Os sentidos que tanto se fazem passar por nós...)

Deixemos o vento, Sagè! Rememos sem pressentimento!

Errar o Destino? Não sejamos inocentes!

Ninguém erra o Destino de homens resistentes!

Que saudades, velho amigo, que saudades!

Escrever é, dentro de mim, estar perto de ti

E lembrar é voar sobre essas grandes cidades!

Verdade exposta – Álvaro Machado

Estou disposto a ouvir a verdade,

- Em toda a alma há uma verdade,

Um coração bom, uma acção de felicidade;

Em toda a alma se navega a ansiedade...

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De todos os mendigos, de todos os pobres,

- Afinal, viver não é sermos todos nobres...

Viver? Viver é andar em paz com a vida,

Viver é andar feliz e de alma comovida...

E todos são meus irmãos e a todos eu amo...

- Sim, eu falo longe de vocês, eu sou apenas miragem,

Mas eu falo porque vos amo, porque vocês são a viagem

De que eu tanto reclamo...

A vós deixo a carta de todos os sonhos meus,

A vós deixo a alma de todos os desejos meus;

A todos, porque eu não amo mais a lua do que sol,

Nem a terra mais do que o universo estrelar!

E há-de vir bonança, eu sei que virá,

Já que a tempestade não veio...

Sim, a minha alma estará sempre ao vosso meio,

E nunca vos dirá...

Álvaro de Magalhães – Álvaro Machado

Álvaro de Magalhães, és tu quem eu chamo, neste dia, neste hora!

Ainda não te conheço e já sei seres tu esse próximo que há em mim!

Que loucura estar a escrever-te numa poesia pouco sentida,

Apesar de tanto sentir ao escrever-te os meus sentimentos...

Como também daqui, com o coração meio na boca, falo de igual pr'a igual

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Por esse nome juntos partilharmos. Não sei se é bom, se não é.

E, todavia, é neste poema que nasces! Uma criação minha, ainda que pouco original!

Escrever, imaginar, criar, baptizar - ainda que seja um ateu sem origem - tudo isto!

Antes de ti, outros dois inventei - Leonard Sagè e Alberto de Régio.

Ambos morreram em má hora... As suas mentes eram quase-génios

E por serem um quase, que é tudo para os incertos, apaguei-os.

Antes de ti, e agora, somente eu existo; ninguém mais...

Invento nesta hora, esta carta, que mais parece poesia, porque estou feliz!

Como é isso possível? Eu que sou a mágoa andante, o cavaleiro sem princesa,

A espada sem metal, o sonho sem dom de sonhar, a pátria sem povo?

Invento apenas porque estou feliz, ó Álvaro de Magalhães!

E aproveito este momento puro e frenético para dizer aos meus leitores,

Caso alguém leia a poesia ou prosa enferrujada do que sinto,

Que este será uma espécie de um segundo eu; porém, foge-se-me

Forma satírica de o fazer bem feito. Mas isso não interessa! Ele nasce,

E quando nasce e tem vida, ele é apenas uma parte de mim,

A parte que já não tem para sentir!

À procura de viajante – Álvaro Machado

À procura de um laço ou de um sinal,

Algures em algum canto de alguma esquina,

Esperando ou ficando a esperar,

Por alguém que se junte a mim nesta viagem...

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Ela será atribulada, se o já não é, e quase impossível

De ser traçada em conjunto, quase.

O seu fim nunca saberei, nem sei se será junto de quem espero...

Sei apenas que será atribulada e apenas minha.

Será minha, minha de quem não é ou de quem não a tem como sua;

Foge-se-me a arte e a vocação para procurar nos cantos

Do mundo alguém parecido com quem tenho sonhado,

Com quem tenho esperado impacientemente!...

A viagem é mais triste do que qualquer outra,

É mais um caminho para o fim e para o que é triste

Do que um caminho ou uma passagem para a felicidade;

Todavia, viagem dos meus sonhos!...

Eu, que não findo e que não desespero, continuo em busca,

De um sinal ou de um laço, algures em algum canto sublime!...

Espera, figura dos meus sonhos! Estou a ver-te agora!

Vejo-te no beco sem saída a fumar compulsivamente!

Mas cedo acaba. Sonhos são ilusões, sonhos são pequenas imagens

Com largos sentimentos de amor, de saudade... Não podem ser mais...

E sendo mais do que isso, já é real ou suposto que possa vir a ser real,

Não encontrar alguém p'ra viajar junto de mim!...

Pequena Cherbourg – Álvaro de Magalhães

Encaro a brisa do Mar como uma memória de águas passadas.

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Faço-me marinheiro, em tempos, e deambulando pelo Mar

Às vezes perco o sentido do que é navegar.

E espera-me Cherbourg. Esperam-me amigos e marinheiros,

Espera-me famílias de outras famílias que não a que tive,

Esperam-me as rotinas monótonas e inertes.

Hasteio a bandeira que me levou e atraco no cais o que trouxe...

São tudo memórias: as que me prometeram e não vieram,

As que me foram dadas de impossíveis e chegaram!

Ó Deuses do Mar, Deuses da Terra, Deuses do longínquo infinito!

Ó brisas insontes, Ó convés perdido, Ó navegação,

Bebam do cálice a chuva desta tempestade!

Não é possível! Não é possível! É impossível ter nascido,

E ter vivido na aldeia humilde, para mais tarde eu morrer

Sozinho, nesta ilha e neste inferno de haver ilha!

Sejam caladas estas brisas infernais da maresia!

Dão insónias, estonteiam sem mais poder querer!

(Tenho saudades de Cherbourg...)

Napoleão tem conquistado o Sul da Europa enquanto navego.

Napoleão tem sido senhor do Mundo, senhor da Terra,

Senhor dos povos... Deste Mar é que não...

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Este Mar, meu deus, este Mar! O Mar de quem chora,

O Mar de quem nem sabe navegar o próprio Mar,

O Mar de quem chora não poder saber navegar!

E solta-se a primazia do vento que acerca a ilha.

Com ele vêm as memórias da pequena ilha francesa

Onde se abandonou a criança frágil...

Nada mereço. Nada mereço, meu amor de Mar.

Sou a parte fraca da mente que não soube navegar,

Nem soube ir além do seu triste Mar...

Caio sobre as minhas memórias e a brisa de as haver. (ser)

O convés inunda-se sem que me esperem na aldeia.

(E Cherbourg nunca me voltará a ver)

Alto Mar Sonhado – Álvaro de Magalhães

Estendido sobre a ilha naufragada, em alto-mar sonhado,

Sinto a rota de colisão das águas batendo-me no rosto

Como um tornado ouvindo-se-lhe a cólera enraivecida,

E penso no que há-de ser do mar e das rochas quando não existir,

Nos destemidos marinheiros que nos conquistaram a terra,

E nas amas que tomam contam dos futuros marinheiros...

O mar é tão complexo como as pessoas e é tão nosso como dos deuses;

O mar dos meus devaneios futuros, do meu presente ignorado,

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Do meu passado ainda por acabar, é o mar sem marinheiro:

Há dor enseada abaixo! Há redemoinhos agitados! Há o haver sonho!

Ó Mar de Cherbourg, eu canto-te sem força e vivo-te sem tragédia!

Eu elevo-te à terra do outro lado do oceano e do outro mar!

E ainda assim um mar sem marinheiro que o navegue, sem homem

Que o ultrapasse, sem nau que lhe atravesse a ilha naufragada...

E ainda assim, o mar de que tanto eu espero!...

(O futuro dá-me a crença de que há algo a esperar,

Dá-me a vontade de que há algo sempre para sonhar

E dá-me alento para querer este e aquele mar...)

O que há de especial – Álvaro Machado

O que de mais especial poderás ter é o teu coração,

Desde que não partilhes com mais ninguém

A sabedoria infindável que ele tem.

(Algo especial é sempre a minha canção)

Guarda as tuas ideias, que podem mudar o mundo,

E não as invoques em praça pública, ainda que possível

Seja mudar o mundo com elas.

(Em mim, só há palavras sofridas)

Enaltece o teu espírito apenas com o vácuo,

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Porque se o elevares perante outrem

Ele será sempre ultrapassado e fraco.

E lembra-te de guardes dentro de ti a canção

Que tenho cantado à escura noite do teu quarto...

E o mais especial de ti é o coração...

O coração – Álvaro Machado

"Ainda estás por aí, coração?

Só queria ver-te e cantar-te a canção

Que durante anos escrevi para ti."

"Estou como sempre estive, por aqui.

O que me dizes não é que escreveste sobre mim,

O que me dizes é que não sabes nada de mim."

"Oh meu coração de tantas eras, de tantos réis,

Eu escrevo sobre as tuas derrotas cantadas,

Sobre aquilo que vós não sabeis..."

"Não; tu escreves o que perdi, não o que ganhei.

Tu falas do que não sabes, tu não falas do que conquistei.

Eu fui o grande amor, eu nunca fui o que sonhei..."

O coração sempre esperou, a voz sempre tremeu,

E nunca ninguém lhe apareceu.

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Largos anos de espera, largos anos de frio sofrido,

E nunca ninguém lhe tinha aparecido.

"Eu vou indo pela maré atribulada,

Já que não acreditas nas minhas palavras.

Eu vou indo com a alma naufragada,

Como tu ias quando não te encontravas."

Às vezes – Álvaro Machado

Sabes que eu às vezes fico a pensar

No que afinal nos tornámos,

Se realmente sabemos se somos

Alguém que tem tanto p'ra dar...

Só às vezes, porque não quero cismar

Nestas coisas que nos impedem de viver;

Só às vezes eu penso no que vai acontecer

Se isto tudo, um dia, acabar...

O consenso, quando se chega a ele, é iludir

Quando não se encontram respostas p'ra nada,

Porque tu sabes, ó miragem, que serás sempre amada

Quanto mais por quem está p'ra vir...

Só fico triste nestes momentos, sabes?

Parece que vivemos para nada e nada é vivido,

Parece que somos para nada e nada é esquecido...

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E o medo que carrego é nunca te encontrar...

Continua longe e assim nunca hei de lá chegar...

Só fico triste às vezes, quando penso nisto...

O que eu sei? Que fico confundido, e não persisto.

Deixo-a esquecida no fundo de uma gaveta

E pode ser que assim te veja mais d’ perto.

Espalhando – Álvaro Machado

O amor não precisa de ficar aí dentro.

Não sufoques só por partilhares contigo

A suposta alegria em que tu criaste

Um mundo inteiro de bons momentos.

Espalha-o pelas ruas e pelo mundo,

Mostra-o à água, deixa-o transparecer às nuvens,

Eleva-o ao céu... canta de amor o teu amor

Como o rouxinol canta de alegria.

Torna-o momentaneamente real

E extingue outros sentimentos;

Ah, esquece os pressentimentos

Que não há-de passar disso!

(Quem viu o rouxinol poisado na árvore

Nunca mais verá o rouxinol poisado,

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Ele levantou voo com uma alegria

De quem esteve sempre a cantar...)

Aceno – Álvaro Machado

Não me dês os teus segredos,

Porque eu só quero um momento

- Um pequeno e sublime momento -

Para que possa sentir-me vivo.

O que eu peço é, como o sol matinal,

Um dia cheio de vida, um aceno teu

Para que possa eu continuar o percurso

Sem que me voltes à memória!

Porque, afinal, os segredos não contam

Toda a história entre nós...

Um segredo é só a janela de partida

E o resto é ir a sós...

Não dês a chave do teu coração.

O que eu te peço é mais simples.

E o estar a pedir-te é com tanta paixão

Que basta um acenar teu p'ra partir!

A ti, de mim. – Álvaro Machado

a ti, porque estás longe,

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te dou a morada de mim:

sol sem raio, codesseira sem fruto,

averno sem chama, derrocada sem pedra,

bússola sem norte, futuro sem ambição

e tragédia ridiculamente eterna.

a ti, porque és nada p'ra mim.

e o nada que me és, é-lo em sonhos.

as pessoas por quem passo vêm do funeral

de alguém que por aqui já não mora,

por isso, ventos soltam brisas esquecidas,

ventos sofrem, também, como as vidas.

tudo se estagna inertemente em cântico de rouxinol...

as orquídeas rejuvenescem-te assim tanto?

o cheiro a mar e a areia mole das encostas?

céu azulado em contornos que sugerem nuvens em pessoas,

ou, se for de teu agrado o inverso, pessoas em nuvens?

quem olha céu? os refugiados em terra.

tudo é direccionado a ti, apesar da distância;

direccionado apenas, porque o tinha de ser...

Estendida sobre o Chiado – Álvaro Machado

De cabelos lisos e de olhos magoados,

Vejo-a estendida sobre as ruas do Chiado.

Nem sei de quem se trata, mas estou encantado

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Por seus gestos nobres e doirados

Escorrega-se-lhe café no vestido branco,

E o empregado ocorre-lhe, manco,

Como se tratado fosse de um cavaleiro

Ele acudiu-lhe o dia inteiro

Tal finura de gesto excede o inteligível,

Nada faz sentido ainda que literalmente

Sentido seja sentido que mente!...

Tal fronte torna-se arduamente inacessível,

E ninguém lhe consegue adivinhar

Razão de ser para o seu olhar!...

Inócua – Álvaro Machado

Foi das coisas mais belas e inócuas que tive,

A sua semelhança com o rochedo em alto-mar,

Vestida como a brisa passageira do ar,

Foi a passagem repentina de um olhar,

De um momento autêntico que lhe resta memória.

O que havia sido não torna - o momento de glória!

Fica-lhe, de tão curta passagem, a ideia de peculiar

Nos gestos largos e expressivos de luar.

As palavras tornam a existência de si mais ampla

Do que realmente foi a sua expressão;

As palavras são quem a carrega no coração

E quem a esquece num simples apagão...

Encontro – Álvaro Machado

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Procura na saudade um termo

Que não vejas, que não toques,

E que lhe sintas a forma do rosto

Que nunca mais tocarás

Acha na saudade o resto do corpo

Que não recordas (será que o recordas?)

E sente-lhe a ternura, o encanto que tanto adoras.

Ele nunca mais voltará.

A carta perde-se de tanto esperar

- Uma das tantas que escrevi durante anos a fio -

Por quem não sabe onde me encontrar.

Quem escreveu soube de sua perdição

Muito antes de o procurarem

- A si e a sua solidão.

Cormac – Álvaro Machado

Perdidos em vão e à sorte do Destino,

Esquecidos por tudo e todos,

Somos os poetas do Meridiano de Sangue

Isolados, porque assim o quiseram.

Ermos e inertes lugares,

Povoados apenas por os desventurados...

Florescem e frutificam os pomares

E quantos dias são por nós passados?

Ah, que é doloroso deambular ao azar!

E o farrapo do miúdo se lhe desnorteia!

Quantos mais estão para vir? sabe ninguém,

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Ninguém é certeza de vinda.

É o despovoado bebedouro dos camelos

Que lhes arrefece a pressa da vinda:

"Pois vide vós o averno que vos espera

Quando mil tochas vos marcarem o rosto!"

Lhe atirava com infâmias ainda no porvir

- Atiravam-nos com as culpas de quem sonhou

Com tudo o que não podia ser seu,

Atiravam-nos com a má sorte de quem amou...

O porteiro da antecâmara, desgraçado ele também.

Desafortunado como seus compadres poetas,

Que foram sonhando e foram-se perdendo

Até ao lugar esquecido do Meridiano de Sangue.

Faroeste – Álvaro Machado

Uma tempestade de areia

Leva-me a achar sem certezas

Que o disparo da espingarda é um eco

De mim para o mundo.

Quem o dispara sabe que uma vida vai acabar.

Desse som e dessa vida que vai tirar

Só lhe restará o escalpo preso no faroeste

E o cheiro a cadáver, que cheira a destino.

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De que somos feitos depois de arder?

A vida deve simplesmente acabar por aqui?

Não; quem escolhe se continua é a alma

E o caminho a traçar é só de si para si.

Resto disso é a paisagem deambulante do deserto

Que nos aproxima vagamente e nos distância alucinantemente...

E este mundo é já a saudade e o sofrimento de o viver...

Quando escurece no deserto já não sei quem sou,

E fico perplexo fitando as estrelas

Como se lhes visse alguma forma de vida

Mais completa do que a minha, e ao vê-las

Parece que à minha terra entrego a despedida

E por momentos o meu corpo deixa de ser terrestre,

Passa a pertencer às galáxias e aos deuses do universo.

Faz eco de mim para o mundo, a espingarda do desejo,

E eu fiz de mim um homem sem humanidade.

Homem fidalgo – Álvaro Machado

Sê pobre sendo rico

De alma e coração;

E hás de perguntar um dia:

- Onde vais, homem?

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Certamente que não responderá,

Por serem todos a ambição

Louca e excêntrica do material

Que não vale o material;

Eles certamente não sabem o segredo

Que eu sei, eles não sabem o mais óbvio

Desta vida: é o sol da esperança e a lua do amor,

O céu da vontade e o mar da descoberta,

Isso é conquistar o mundo sendo rico de alma,

Isso é segurar a vida com as duas mãos

E não mais deixá-la fugir, faça o vento que fizer

E chova a chuva que quiser.

- Ser rico, homem? Olha que ser rico não compra o mar,

Ser rico não te leva a percorrer o sistema solar

Nem às estrelas ele te consegue fazer chegar.

Se queres ser isso sê pobre, homem.

E as estrelas concordavam,

As estrelas todas acenavam

Para que tu fosses pobre

Sendo rico, homem.

Farrapos – Álvaro Machado

Circunda à volta do jardim,

O homem, num ciclo vicioso.

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Escurece-lhe a pele e parece amoroso

Quando se aproxima de mim.

Oiço-o bocejar, mas a hora não é motivo.

A veste que usa são uns farrapos seus.

Ele chega a andar excessivamente pensativo

Olhando ao cimo de todos os céus.

Entendê-lo é achar a sua personalidade

E ele logo se afasta não criando proximidade.

Não pede esmola, mas mantém-se perto

E o seu destino mantém-se aberto.

Retorna e senta-se, ergue-se e circunda,

E compreender-lhe é achar o que pode não ser.

Talvez um dia eu possa o vir a conhecer

E à roda o não confunda.

Escrever e ser – Álvaro Machado

Posso escrever sobre estrelas,

Porque estrelas há em mim.

E, se as escrevo, quero sê-las,

Nem que isso dite um fim.

Mas deixa-me triste estar próximo delas.

Estar próximo é estar longe porque não lhe tocamos!

É o Destino eu poder sentir e vê-las

E elas não saberem que as olhamos?

Atónita vida de pequenas proximidades e de longas distâncias!

O que nos é longe, fica longe, e não lhe podemos tocar;

O que nos é perto, está perto, e não lhe podemos aproximar!

Afinal, o que somos quando sonhamos?

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Todas as impossibilidades que nos deixam atónitos ou felizes...

- Mas, se fossem tão impossíveis como dizem, porque as sonhamos?

Será o desejo infinito que massacra e confunde?

Não acho respostas para o que escrevo, (e tu, o que dizes?)

E continuo por aqui a escrever sobre elas, que tanto precisamos...

..........................................................

Fim do mundo será, queiramos ou não!

“Às coisas do futuro” – Álvaro Machado

Às estrelas que me esqueceram...

Às luzes que me perderam...

Aos astros em duplo sistema solar...

Aos deuses em que ninguém quer acreditar...

Escrevo a todos esta angústia incansável,

As saudades não as sinto ao escrever...

Nenhum tem saudade deste haver

Ou desta saudade impossível...

Sobre os dois hemisférios terrestres

Sinto milhões deles a emergir

Em poeiras atónitas os vejo mestres

Que nunca sabem como agir...

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Saudades são saudades - podem ser

Saudades próximas, que se aproximam

Mais de nós e mais nos magoam;

Ou saudades de quem não sabe ter,

Quando nos estão longe e pesam

Como se estivessem em peso de consciência.

Aos que escrevo são saudades na sua essência,

Por favor, nunca me esqueçam!

Aos anos que passam: as estrelas já não me conhecem,

Porque haveriam elas de alguma vez me conhecer?

Quem as olhou fui eu, quem as amou ao anoitecer

Fui apenas eu às horas passadas que envelhecem.

Em mim? Ninguém se lembra de mim.

No meu tempo eu dediquei a amá-las

Como se fosse meu dever cuidá-las,

Como se pertencessem a mim...

Em si? Nem tão pouco souberam quem fui!...

E é por isso que eu sofro tanto em exagero!

Elas, que tanto amor lhes eu quero,

Nunca souberam p'ra onde fui!...

O meu nome? O meu rosto? As minhas paixões?

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Isso não lhes diz respeito. Eu nunca me deveria ter apaixonado

Por tantas estrelas e por tantas outras formas de corações...

Apenas as vi e amei quando vivia desolado...

A mim, apenas a mim, a mim sob um céu de mim

Sobre rostos meus reflectidos sobre um fim...

Deveria ter sido completo e só pensar no presente.

Pensar no futuro é para quem não sente.

Eu pensei no futuro por olhá-las assim tão distantes,

Eu sonhei com o futuro por amá-las e fazer delas minhas amantes,

Eu amei tanto do futuro sem o conhecer que perdi a noção

Da realidade e de mim e do meu coração!

Enevoada viagem – Álvaro Machado

Contemplo no chão do meu quarto

As estrelas de origem desconhecida

(Será o meu olhar que ilude?)

Que tanto dizem da vida.

Da distância entre o quarto e a rua,

Está uma névoa intransigente

De um cerrado nevoeiro de lua

(Será a percepção de gente?)

E nos snobismos passos longínquos

Que oiço, tudo é ermo, tudo é oco,

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Tudo é excessivamente desconhecido

Para eu questionar o que havia sido...

E por que contemplo e suponho a dúvida

Aos céus, aos mares e às estrelas intocáveis?

Nenhum de vós queira saber mais da vida;

Nenhum de vós sabe mais do que isto!

Mais do que isto!... – Álvaro Machado

Se queremos ser mais do que o mundo,

Chamam-nos de iludidos - no café ao fundo.

Se, em momentos, os ultrapassamos

Somos apenas o que não somos.

Chamem-nos loucos; somo-lo realmente!

Se louco é ser quem pensa infinitamente

Então sejamos loucos, loucos eternamente!

Quem alucina apenas sente o chão.

Mas nós, que nascemos com alma desconhecida,

Queremos ser tanto, e somo-lo de maneira despercebida!

Somos quem tem mais que um coração.

E se há mais do que simples pedaço de terra,

Então sejamos quem mais berra

Por mais de que um mundo!

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Ir junto do sol – Álvaro Machado

Vejo o sol ir embora neste fim de tarde

E com ele também eu quero ir,

Voltando-nos p'ra um hemisfério nocturno

Que nos queira mais do que aqui.

Aqui nos tornamos gélidos como a paisagem

E não fomos mais do que plantas ao sol

Sem certeza do dia de amanhã

E do que seríamos nele.

Talvez nos sorria um outro hemisfério;

Talvez nos acolha sem saber do nosso passado

E aqueçamos as mãos numa fogueira mestra

Que nos ilumine de novo.

E depois de um talvez chega-nos sempre um final feliz.

Majestoso – Álvaro Machado

Estou rendido a este sol majestoso

E quem está ali, naquele jardim,

Parece seres tu a olhar para mim

Enquanto balouças neste dia esplendoroso

As minhas mãos, já vencidas, rendem-se

Ao sol que brilha tão intensamente;

Ténue de a ver vagarosamente

Elas, por ti, prendem-se...

Imperador sol dos doze reinos solares...

Hoje, as estátuas desta terra amam...

E eu vou alucinando enquanto brilhares

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Por entre memórias que me recordam.

Dormir é deixar passar

Este dia para um amanhã incerto

E o destino estará sempre aberto

Porque este dia há-de nunca cessar!

Rendição – Álvaro Machado

Rendido. O peso de consciência é demasiado.

Prendido nos recônditos mais sombrios,

Pesa à alma as desgraças de toda a humanidade

E pesa tudo, só num pensamento.

A depressão de estar sozinho e de não ter com quem falar.

De estar deitado e de não conseguir fechar os olhos.

Tudo é culpa de antecipar um sentimento ou uma acção,

Que talvez nunca será realizável,

Mas dói entrar nessa abstracta antecipação.

Só rostos enfraquecidos tomando-nos a consciência!

E nós enlouquecemos porque eles não deixam

Que este peso se afaste...

Estar rendido é o preço a pagar para quem não tem forças

Nem vontade de espírito para continuar;

E no quarto está escuro, com as más energias sobre o ar:

Quanto rendido posso eu estar?

Sucessão abstracta – Álvaro Machado

É quase paradoxal compreender

Os mundos de outros mundos

A não ser este, porque nem este é

Compreensível de todo.

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Há a sucessão de novos universos

A nascer, para além do nosso,

E quem sabe não possam estar p'ra nascer, agora,

Milhões de esperanças e desejos.

É permitido com que sonhe isso,

Porque me foi concebido esse dom

De sonhar como que esquecendo

O mundo em que estou vivendo.

E eu deparo-me com a minha casa,

Acendendo velas para confraternizar

Com os diversos universos que estão para chegar

Mesmo que não existam.

Dá vontade de os sonhar, porque me parecem impossíveis de sonhar!

Dá vontade de os desejar, de os querer ali, naquele momento,

Todos eles só para mim! E talvez o custo dessa cismática abstracção

Seja a perda da realidade como realidade,

Torná-la tão grotesca que já o universo não faz sentido,

Torná-la desprezível que já nem nós fazemos sentido!

Que o mundo inteiro desabe e nós trocemos dessa situação

Como se ele estivesse só para nascer...

Estátua – Álvaro Machado

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Para ser estátua, primeiro sê pessoa.

Só depois podê-lo-ás ser.

Os homens eternos são de pedra

De uma data que ninguém vai esquecer,

São o que passa anos ao sol e à chuva

E por quem as pessoas passam diariamente;

Os que olham perguntam-se constantemente:

Quais terão sido os seus feitos?

Nem sempre quem conquista tem memória,

Nem sempre quem vence tem glória,

Porque ser monumento de vida infinita

É o que viveu de amor e de bondade,

Nem que isso seja a maior derrota de viver!

Se queres ser pessoa, primeiro sê estátua

E só assim tu terás uma verdade tua

Sobre o que mais tarde irá acontecer...

Estar vivo e ver os anos passar lentamente

Não é possível para todos os homens;

Se queres viver eternamente

Esculpe uma obra do teu presente!

Incompleto – Álvaro Machado

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É estar completo

Com as coisas completas

E sentir o não estar

De nenhuma maneira.

A sensação preenchida

De o não estar nunca!

Lutuoso é um suspiro

Quando se torna único,

E eu no azar de um deleite

Encontro-me incompleto

Como essa sensação de sempre

Estar imbuído sem estar.

Indefinido – Álvaro Machado

Viver é estar a sós.

É a lei de todas as leis.

O que interessa somos nós

E o resto é indefinido.

Quem nos cruza só cruza,

O tempo que passa só passa,

As memórias que existem só ficam

E o resto é indefinido.

Indefinido é ser assim,

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Porque Deus o quer assim;

A natureza é o nosso todo

E o resto todo nosso é.

Pavimento – Álvaro Machado

Acordo como o sol de hoje:

Claro e cheio de vida para dar

E a minha vontade é de iluminar

Toda a gente, hoje.

O meu sol é, ainda assim, diferente:

Gosta mais de dar do que receber

E até ao meu entardecer

Só vejo sorrisos de gente.

Os pavimentos da rua enchem

- O que vejo são transeuntes felizes

Intercalados pelo jardim que preenchem.

As árvores passam a dar sombra ao amor

E o vento que passa deixa-me com a saudade

De ser a chuva que caía sem felicidade.

Ouvir ao longe – Álvaro Machado

Oiço qualquer coisa fora de mim.

Pressinto estar longe, a algumas milhas,

Tão longe que se ouve pouco ou nada

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Deste som que oiço dentro de mim.

Oiço: com o frio deste inverno, dentro de casa,

Encostado à lareira, a ver as horas passar;

O que oiço é uma saudade - é a noite lúgubre

Que se aproxima imperceptível...

Ao ouvir longinquamente, quero ouvir o Mar.

Se o ouvir é porque estou longe como ele.

E há que sofrer também com a vida,

Se o amor na nossa vida não se cruzar!

Mas, é a ouvir que eu me acho transparente

Como a água deste Mar...

Eu, que tanto vou na margem como na corrente,

E o Mar tanto hei-de amar!

Em inocência – Álvaro Machado

Estive mais inocente

Que uma gaivota quando voa

Quando senti tão intensamente

A mágoa do precipício.

E é aí que peco por ser inocente.

Cair era o meu destino e era simples.

Se eu caísse talvez fosse contente

Com as más coisas...

Em frente, haste erguida comigo ao leme:

O destino agora é ir aguardando

Até que, quando inocência findar,

O meu corpo possa enterrar.

Repentinamente – Álvaro Machado

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Sentado no quarto, sem inspiração,

Ali estava eu à beira da caneta.

Quando, de repente, poisa uma borboleta

Sobre esta janela, encostada ao candeeiro.

Desceu dessa janela uma nova contemplação.

Ali estava eu, agora feito de companheiro,

Sozinho com aquela miniatura, os dois escutando

O silêncio desesperante onde tenho estado...

Apaguei a luz deste quarto. Cessa a corrente.

Sorte dela por estar perto da janela e não dentro.

Ali vai ela, voando desinteressadamente

E eu a vê-la daqui de dentro...

Vai longe já, como sempre esteve por cá...

Procura a luz aos cantos do vizinho.

Solitária borboleta fugida de meu quarto

Volta junto de mim porque estou sozinho...

Portugal – Álvaro Machado

Navegar é ser português.

Ele todo e nenhum à parte dele.

Ser de Portugal é ir com ele

Eternamente no convés,

A remar pela maré do amor,

Pela fé que sempre supera a dor;

Ali vai remando o português navegador

Sobre o mar dos feitos e das glórias!

Heróis do mar, começa o hino de Portugal!

Heróis do mar, começa o amor sem igual!

Soltem a ira no convés e remem na esperança,

Porque quem a tem terá sempre bonança

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De um herói, de um milhão de heróis deste ocidente,

- Os heróis que erguem Portugal com a arte e com a revolução -

Que vos escreve para quem em vós renasça a alma resistente

De lutar e remar até à exaustão!

Portugal em memórias – Álvaro Machado

Retomando as velhas memórias,

De quem fala do que sabe,

Voltemos ao Portugal de glórias,

Que todos desconhecem:

Vencemos terras que poucos vencem,

Navegamos mares que poucos navegam,

Lutámos contra povos que poucos lutam,

E de que é feita tal coragem?

Os feitos foram esquecidos, a memória

Já não se lhe lembra datas ou anos...

Parece dar a sensação de vitória

Vinda pela certeza da derrota...

Todos nós, portugueses, falhámos.

Tudo o que fomos é passado,

O que somos não é recordado

E o que seremos é apenas sonharmos...

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Quero um império de volta, que nos pertença

E seja mais justo do que o antigo!

Tragam-me de novo o meu velho amigo,

E a velha memória logo me vença!

Interior d’mar – Álvaro Machado

Batem ondas d'um mar frio

E a sentir, sinto-as quando sorrio.

É interior deserto então de o sentir,

É interior sem mar que está p'ra vir

E talvez o oiça só p'ra me enganar,

Talvez o que oiça nem seja mar

E as ondas que me batem são sons

Que passam pelas mãos dos bons.

Que me tenham assim no interior:

Em cidades onde se não vê mar,

Mas em que podemos sonhar mar

Dentro de nós, porque é glorificador.

Em partida – Álvaro Machado

Está viva a esperança de mantermos

Um sonho ou uma vontade p'ra percorrer

Por entre as brumosas manhãs que amamos

Como se fosse um anoitecer

E nos atiram contra as fortes marés

Para que naveguemos até ao fim

(Os últimos passos foram dados por mim...)

Com a haste erguida no quebrado convés...

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Pouco vimos do sol e sem sentido navegamos.

Estamos distantes como o mar

E os sonhos e as esperanças que temos

Um dia também hão-de acabar.

- Há a esperança, a vontade de construir

Um caminho para que possas viver,

Mas também é teu direito saber

Que em breves vais partir.

As fortes correntes nos levam.

Ter sonhos e esperanças?...

De nada valem, na maré se percam

E o dia será somente d’ lembranças.

Terrível de viajar – Álvaro Machado

Terrível é não sentir

Que o mundo me perdeu...

Ir como quem esqueceu

De viver antes de partir...

E eriça-me olhar Monalisa,

Subitamente.

Focam-me os olhos de cara lisa

E quase morro repentinamente.

Talvez o génio italiano

Sonha-se com aquele olhar;

Talvez fosse a si próprio retractar

Com um rosto mais plano.

E viajo nesta quase madrugada

Até a Itália renascentista.

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(Revejo-me nesta época por mim sonhada)

E viajo comigo um idealista,

Que vai indo e procurando

Por entre o medo de existir

As dúvidas continuam-lhe cismando

Se deus há de mesmo vir...

Castelo d’If – Álvaro Machado

Estou encostado a escrever e com sono,

Levo o meu pensamento algures

Para a prisão de todas as verdades.

Estar acorrentado nem sempre é mau.

Sente-se ainda o cheiro do elixir da vida,

As apoplexias do meu ente abade Faria,

Os rascunhos preenchendo as paredes

Com os nomes usurpadores da traição.

Aquela caligrafia maléfica pronta a arruinar uma vida

- Naquele navio de onde se havia feito comandante -

Por quem nasceu com um talento nato para remar

E quanto muito para um mar inteiro navegar!

Fugiu do Castelo d'If. E ao fundo do mar ouve-se

As ondas soltando tremenda ira, o céu ficando nefasto,

E o corpo já sem vida, acabado de ficar sem ela,

Deixa a prisão e perde-se-lhe o rasto.

Dantès muito vagueou na mão dos corsários,

Muito contrabando assistiu com indiferença...

Sempre ao leme, sempre fazendo-lhe vir à lembrança

Os tempos de capitão do navio Pháraon.

Chegou a vingança pelo melhor meio: ilha de Montecristo.

Entre a fauna e a flora, a selva e os ermos de gente,

Lá vai Dantès no sigilo com o mapa na sua mão direita

Vendo um rebanho a correr efusivamente

Através de uma pequena luz junto ao vale de granito.

Entrou na caverna. Acendeu uma tocha. E logo depois,

Em correrias sem nexo ia gritando pela ilha:

- Estou rico, estou rico!

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Estou cansado para escrever; termino neste episódio,

Porque deixa-me com boa disposição.

Suspendia – Álvaro Machado Há tanto amor no ar, Tanta energia boa Que pareço alucinar E ver a ilha Goa... É tão simples ser feliz, Que a felicidade nunca diz Realmente o ser assim. (E como nunca dei isso em mim?) Só sei que nos dão boa energia, Porque ela suspendia-se no ar... Quem me viu ali, viu-me olhar Pela vida que me alumia. .... Silêncio... Passos de silêncio... É assim que quero estar. Um silêncio quero me atravessar E um tanto amor está no ar... Orgulho – Álvaro Machado Ele tem no seu interior

Toda a bondade que um homem pode ter,

É o coração de um gladiador

Que sempre soube vencer

Os obstáculos que lhe iam sufocando,

Os desgostos que lhe iam dando

E a sua maneira orgulhosa de não-confraternizar

Com os que sabia, no fundo, amar.

Porque quem tem um bom coração

Tem a humildade colada ao chão

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E os bons corações nem sempre mostram

Por que razão amam.

Ir junto ao sol – Álvaro Machado

Vejo o sol ir embora neste fim de tarde

E com ele também eu quero ir,

Voltando-nos p'ra um hemisfério nocturno

Que nos queira mais do que aqui.

Aqui nos tornamos gélidos como a paisagem

E não fomos mais do que plantas ao sol

Sem certeza do dia de amanhã

E do que seríamos nele.

Talvez nos sorria um outro hemisfério;

Talvez nos acolha sem saber do nosso passado

E aqueçamos as mãos numa fogueira mestra

Que nos ilumine de novo.

E depois de um talvez chega-nos sempre um final feliz.

África – Álvaro Machado

Apetece-me voar, apetece-me voar

Para bem longe e não voltar.

Toda a natureza me aguarda, esperançada,

Para que eu vá fazer uma boa caçada.

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O bom que há está nas terras do café.

Lá o sol brilha intensamente e nunca desaparece.

Voar-me até à terra, voar-me imbuído de fé

E assim, a voar, o bom acontece.

Nos chegue a Primavera a um fim de tarde

E eu não pense mais em terras longínquas!

Imaginá-las entristece como o sol quando arde

E naquelas terras falam-se diversas línguas!

Só falo português. E daqui não quero partir.

Só imagino o cantar das aves de lá,

As correrias dos animais e as caçadas, que só fazem rir,

Quando não existem pelas terras de cá.

Fogem… as aves – Álvaro Machado

Fogem, para bem longe, as aves...

Escurece o céu e o frio afugenta-as

Para bem longe de mim...

Eu voo também, sem nunca saber por onde,

E talvez vá sozinho, fugindo de mim

Para bem longe...

Deixem-nas ir para longe daqui...

Escutem-lhe o bater de asas lépidas...

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No céu marca-se de rasto a fuga...

Ah, meu deus, meu ar de graça,

Por onde vão, afinal, todas elas?

(Para longe do teu olhar vão...)

Ah, meu pecado avernal, meu sol,

Por onde me vou durante a tarde endurecida?

(Para bem longe do teu coração...)

Ó mundo! – Álvaro Machado

O mais bonito que há

É voar ao infinito,

Nunca mais voltar cá.

É voar, é voar, tenho dito!

Sobrevoar oceanos e vales,

Cruzar peixes e aves,

E todas as espécies que existam.

É a voar que encantam!

Pena não nos terem concebido

A arte de voar ou de respirar

Submersos; A arte é não encontrar

Arte no homem vencido...

Porque o mais belo do mundo

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Nós não temos nem podemos ter;

Voar é tocar aos píncaros e ser oriundo

De outra terra, de outro amanhecer!

O mais bonito que há

São as estrelas que brilham intensamente

De um outro espaço, mais belo do que cá,

Que todos os dias nos atravessa a mente!

Voar é compreender

E subir ao cimo de nós;

Voar é erguer a voz

E do mundo nada entender.

Espelho real – Álvaro Machado

Saído da livraria, que tanto me tem feito pensar,

Eu encontro ao acaso um espelho em que fico a olhar

Como se nele transparece-se toda a verdade que há em mim

E se apenas ele soube-se verdadeiramente quem sou...

Na realidade, pressinto que apenas este vidro incolor

Pode saber realmente quem sou, e que só ele vê esta dor

De que mais nenhum espelho pode transparecer.

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Por mais que julguem nunca me irão conhecer.

Consigo fintar todos os olhares, todas as supostas ideias de mim,

Consigo ser tal qual como eles e levar uma vida também assim

- Que não busca motivos nem razões p'ra nada, e posso eu ser

Como todos, porque todos nisso vão crer.

E é quase irónico pensar porque nunca vemos o nosso rosto

A não ser quando nos contemplamos num espelho qualquer;

Dá a impressão de aquele não sermos por variados motivos.

Ocasionalmente encontramo-nos connosco,

Ocasionalmente encontro-me comigo e sinto indisposição de me ver.

Acho ridículo as formas controversas do meu rosto e o velhaco olhar

Dos outros que me vêem e cruzam comigo todos os dias.

Ainda que de um rapaz se trate, sou ridículo. Em mim não sei crer.

E toda a música me precipita e o som quer-me empurrar

Abaixo deste cadafalso onde passo os meus dias.

Quotidiano – Álvaro Machado

É monótono ter quotidiano.

Ser todos os dias o mesmo.

Ter conversas sobre o mesmo

- Sempre: quotidiano.

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Ser semelhante a si de segunda a segunda

E guardar rancor altivo de parecer ser.

O fato assente no mesmo corpo

E o que diverge são os tecidos,

Fora isso, sempre o mesmo sempre,

Sempre o mesmo olhar e o mesmo tom,

Sempre a mesma história e a mesma preocupação...

A monotonia e amada acção!

Não quero isto p'ra nada! Mereço mais.

Quero ir na rua e gritar e ser o grito dos meus sonhos.

Se o fizer talvez corra o risco de ser tido como um doido...

Mas, se o fizer, serei único.

A aragem deste vento deixa-me sem quotidiano, pela primeira vez.

Aos dias e às horas sou diferente, sou irreconhecível...

O que construo num dia, destruo numa hora. E não sou igual ao igual.

A aragem deste vento deixa-me só com as estrelas

Quando as olho dentro do meu campo de visão,

Que parece limitado e parece que me enche de ilusão.

Realmente elas estão longe, mas não intersecciono a sua distância...

Umas mais perto e mais reluzentes, outras mais frias...

Um raio que parta o quotidiano e a lei que trace o limite para homem!

Sejamos quem não tem limite, em sonhos ou em acções!

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Um raio que parta! Que se dane as etiquetas e as conversas de café!

Andem às avessas, gritem como doidos, soltem o génio que há em vós!

Inútil paisagem – Álvaro Machado

Ser inútil paisagem levando uma inútil vida,

Em que não consegues passar disso:

Levantar-te como eles, andar a passo repetitivo,

E saciar magia invisível e toque ignóbil.

A tua voz é irreconhecível, tantos a têm;

A tua cara não tem traços nem cicatrizes

E ninguém faz da vida a inutilidade tua.

Só tu és paisagem inútil.

Enquanto leio poesia vagueando noutra dimensão,

Leio o meu coração e entendo o meu interior

Que é tão sozinho por ser tão diferentes de outros.

Enquanto leio supero a dimensão.

Mas tu não chegas sequer a ter uma dimensão próxima

E em ti ninguém acredita; Tu vives inutilmente na onda

Que te arrasta em cada passo que queres dar e não dás,

Em cada sentimento que anseias ter e não tens...

Ó inútil paisagem da minha vida, por que não te oiço?

Todo ruído estremece vagamente a tua alma vã...

Órion – Álvaro Machado

Foi na noite de lua cheia

Que nos abandonou a carabina

De Órion - e os devaneios insensatos

Partiram com a lua cheia.

A nossa memória recordar-lo-á

Por não querer mais ele viver

Junto de nós - nós fizemo-lo sofrer,

Nós fizemo-lo fugir de cá

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Noite, lua, por onde vão os sentimentos?

Esquecem-se pela terra de ninguém...

Noite, lua, abandonem quem sofre com a vida,

Quem não crê mais nela...

«Estar de rastos, estar rebaixado a todos,

Não é viver, sabes? Nem é tão pouco nada;

Estar como eu, caçador morto, é sentir nesta lua

As amargas e incertas certas do fim!...

«E que acabe tudo, por estar assim sem nada

- Que o dia em que disparei da carabina

O fim para a humanidade seja recordado

Por mim, que fui seu passado!...»

Ártemis – Álvaro Machado

Há uma distância entre mim e Ártemis, apesar de pouco perceptível

Aos olhos de quem passa; A carabina está enferrujada, ninguém faz uso,

As botas datadas de uma qualquer guerra estão lamacentas, e o seu corpo

Tem estado perdido numa solidão infindável

De resto, o nosso contacto foi como sempre havia sido: sereno, em paz

Com a alma, um pouco distanciado, porque as circunstâncias da vida

Assim fizeram o destino; Eu tenho a alma escalpelizada, sem rumo

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E ele tem a bondade dela e a grandeza sua...

Ártemis continua no seu canto com um flagelo imperceptível...

Ártemis saúda por quem passa, mas ele por dentro chora...

E depois uma distância perdida algures foge com ele,

Ninguém lhe resta para as caçadas...

Ingrata vida para quem faz arte com uma carabina envolta ao corpo!

A floresta alheia é o seu refúgio durante as noites de caçada...

A floresta de quem não tem onde caçar e por isso caçador solitário!

Ingrata vida de quem é seu admirador...

E a mim, a quem resta admiração, cabe levar o peso da sua presença,

Que está enfraquecendo de dia para dia, de conversa para conversa...

Ártemis é a distância entre a solidão mais triste e a admiração mais enfada;

E a mim só resta separar o tempo das conversas...

Ao embarque! – Álvaro Machado

Dedicado a Orionte.

Embarquemos nesta aventura juntos,

Porque em união teremos a força

P'ra lutar e p’ra partilhar da saudade juntos.

A sineta já começa a tocar e por nós aguarda.

Eu embarco com a força de um jovem

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Que dispõe só de si para conquistar o mundo;

Eu subo degrau a degrau a pensar na guerra

E a bordo, a fumar, penso:

«As políticas que nos movem não valem nada.

As pessoas com quem partilhamos esta história igualmente.

Na verdade, ninguém quer saber de ninguém e a única esperança

Que, espero eu, existe é a de voltar são e salvo!»

Quando chegarmos, eu vou ter a consciência

Que não pertencemos aqui e que a guerra estará perdida

Ao primeiro momento em que erga a arma e caminhe na floresta.

Ao redor, ao redor da floresta.

E quando caminharmos, teremos uma emboscada:

Levar-nos-á a fome a fazê-la sem cobrir-nos a retaguarda;

Os tiros virão da escuridão das árvores e a morte pressente-se

Quando o coração começar a bater ávido.

Imaginemos o rio da distância, que nos separará brancos e pretos:

Só o norte interessa para atacar o inimigo; o escorrer da água

É a certeza de uma fuga - eu, mais tarde, verei todos eles fugirem

Pelas águas da sobrevivência,

Até que, vou disparar da minha carabina para o interior da água.

Se firo alguém ou não, não o sei; atiro-o por medo de ser alvejado,

Não o atiro pela maldade da maioria dos soldados.

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Até que há um que vem em minha direcção:

Vem a cambalear com a predisposição para me matar,

Vem naturalmente com a sede de vingança.

Talvez pense: «Quem és tu? E porque estás aqui?

Esta terra não é tua, foge daqui.»

Talvez me esfrie o coração na altura e sinta empatia,

Mas também o medo me correrá pelas veias...

Nunca terei uma resposta para lhe dar; a carabina lhe apontarei

E, nesse momento, cheio de medo, o matarei...

Acabar juntos – Álvaro Machado

Dedicado a Orionte.

Quando acabares: acabaremos juntos, Orionte;

Partiremos juntos nessa viagem fúnebre

Que todos a temem, que todos a desconhecem

Por fazerem para não a lembrarem.

Quando arrumares a carabina da tua vida,

Eu arrumarei os sonhos que tenho construído,

Desperdiçá-los-ei só pela nossa ida...

O desespero tem-me imbuído!

Nós: ao leme, sobre o mar morto, a chorar

Enquanto um fala, outro vai a navegar;

Só nós, sempre juntos, a caminho do fim

Que tantos temem para si...

Dispara, apontando ao céu e à lua e ao sol,

O último suspiro nosso, o suspiro de nós para o mundo...

E o que é a vida a mais não ser uma curta duração, Orionte?

Debaixo deste mar, outro mar nos espera.

Conversas – Álvaro Machado

Dedicado a Orionte

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Com a presença da chuva

Agoniza, a conversa, entre nós.

Sobressaem as mais indesejáveis

Conversas, entre nós.

Talvez porque eu já não desfruto

Dos momentos em que mais teria razões

Para desfrutar, junto a quem está junto de mim.

E por que o não desfruto?

Eu não posso, nunca, responder a isso.

A resposta está num patamar acima de mim,

Muito mais acima de mim, onde ninguém chega

- Está acima das nuvens e do espaço.

"O melhor era que nem tivessem nascido" - disse uma voz.

Uma voz certa e profética que ensina à humanidade

Que este mundo não tem nada a não ser a cismática ideia

Do mundo continuar sem nós...

Depois a chuva cessa e a conversa abandona-me.

Orionte já se foi e há-de continuar triste como a noite.

O que agoniza são pensamentos inquietantes

Que nem deveriam ser pensados em mim!

Que gargalhada impetuosa: deixem-me rir.

O que é a vida a não ser uma ironia?

Quantos vão e quantos mais estão para vir

E hão-de pensar estas conversas?

Existência – Álvaro Machado

A existência existe? Por que nunca conseguimos isolar a existência do nosso corpo E torná-lo inexistente como se nunca fosse uma existência? Por que existimos? Se não fossemos ninguém, não éramos ninguém. Só nos pertenciam as partículas do nada e de nada. Seríamos só isso; seríamos recônditos de existir E nas margens havia algo mais... O facto de eu existir é uma sensação de existência - Não é, nunca poderia ser, a certeza de existir. Se há a dúvida de existir não existimos na totalidade

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Como se o fosse e não fosse simultaneamente... A existência é o tédio a perdurar num teatro: As cenas, que fazem entrar e sair humanidades; Os actos, que trilham análogos percursos E os monólogos cismáticos enquanto fumam... Se eu vos dizer que está numa peça de teatro Toda a verdade da nossa raça, acreditariam em tal? (A resposta não existe) De mesmo modo, isso é não-existir Senão quando se é céptico! Existir é o sopro do vento: sempre com a mesma rota. Existir é saber que não existe, como os animais: Só se sentem, aqueles actores irracionais Que andam sempre de bom trato com a vida! …. Existo porque sou fantástico: sinto-o! (Modéstia à parte, que fique esclarecido) Mas ser fantástico não dá a certeza de o ser, Porque sou-o entre mim, que tanto posso crer! Libertas – Álvaro Machado Libertário é o que eu sou: hoje, sempre e até nunca. Um arrastar de pernas é quanto baste para sentir-me sufocado No meio de tantos prisioneiros e dependentes histéricos Que dão azo à monotonia das suas paredes. A minha mente é mais livre do que o espaço por onde passeio, O meu amor é mais intenso do que todo este devaneio, E os elementos que compõem a alma são os mais autênticos, Porque alcançam o que a vida não pode, nunca, alcançar! Sou um libertário nessa condição de o ser. Nenhuma lei ou ordem se encarrega de me fazer aprisionar. Se há alguém que pode nos desviar o destino nunca o diz E se o há, só pode ser sinal da existência de Deus. Deus é um libertário porque divaga pelo universo E não lhe constitui nenhuma barreira que quebre a liberdade. O seu limite é consoante a sua disposição, O seu fim é só quando o desejar… Por isso, eu fujo de tudo quanto é poder Ou mal sinta arrastar os pés para o fundo do mar…

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Só a ti, só a ti as minhas esperanças posso confiar Quanto mais, mais irei ser!

Franzino – Álvaro Machado

Quase que o vejo, com um tom claro e franzino,

A deambular pela cidade como um esquecido

Que põe em si toda a crença que há em Deus

E quase que o vejo, enquanto espera.

Com um passo pensativo e preponderante

Que sempre espera por um sinal divino

- Brilham os seus trajes de um interior ardente,

Brilha, o homem, claro e franzino...

Que não há-de chegar nunca, porque é quase homem.

E os quase homens não são a colheita mais nobre.

Ainda assim, vejo, quase, uma crença fiel e cheia de amor

De um homem que anda danado com a vida - que horror!

Cai-lhe, as vestes, só com o sopro do vento,

Escorrega-lhe, o rosto, em profundas lágrimas

- Tão homem não podia haver! Tão nobre em espírito! -

E, ainda assim, só assim, tem ar de ter estado no convento,

Quem sabe horas antes de o estar a ver fosse ele padre...

E a sua crença tenha, afinal, uma veracidade incontestável...

Continua caminhando. Franzino e claro como uma manhã clara.

Quase que o vejo, vendo-o com ar clerical.

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A cidade, a minha cidade – Álvaro Machado

Enquanto há sol nos dias da minha cidade,

Fito uma noção de comércio que me fascina.

Mas há bancos e ruas a mais na cidade

E luz a menos, quando nos parte o sol.

Passo nas novas construções, de passagem,

E há o tlim ensurdecedor das máquinas a trabalhar...

Quando lhe raia luz os movimentos tornam-se frenéticos

E os trabalhadores estão vivos e trabalham! O resto contempla!

Depois, parte o sol. E fico eu nas ruas da cidade, sozinho.

Passou de ensurdecedora a desolada por entre mim...

Passo por sombrias e mudas máquinas que não se fazem ouvir!

E eu não lhes oiço, nem por um segundo, um único suspiro!

Não sentir luz é de facto triste. É a natureza.

E os bancos da minha cidade? Estão desertos a estas horas!

Só eu a passear e a fitá-los com um vazio de quem não tem lar...

Pessoas há, mas há-o de um outro passeio de um outro lado.

Deste lado sou apenas eu e a ideia de comércio fulgente

Quando há dia e lhe raia luz, porque me fascina;

E a ideia de comércio sombrio e decadente

Quando cai esta noite deprimente.

Pequena nota – Álvaro Machado

Pequena, a nota, de avinhar tempestade.

Os dias nos dão uma eterna saudade

De pessoas que nunca conhecemos

E há saudade dos dias que nunca veremos

Pela penumbra de uns versos saudosos.

A tempestade virá. E a saudade finda aí.

Virá, porém, com a mansuetude de nunca acabar...

- Isso só nos revela a ilusão em que podemos acreditar

Por um tempo que por aí vai.

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Os tempos são tempos tempestuosos.

E deixá-la-emos desvanecer com o que sentimos,

Pois isso é um ciclo de vida que nunca vimos

A cidade está em escombros e nunca haverá irmandade

Que nos erga com o coração, porque ele está em saudade

Com o que não somos.

Os tempos – Álvaro Machado

O estremecer das portas,

A velocidade das pingas,

As ruas tornadas ermos,

É não sermos...

Existe, sentimos e queremos,

Mas não somos...

A chuva é triste e fria

E não pôde escolher se queria,

O sol é pujante e quente,

Mas não pôde escolher, porque nenhum sente

Ser clima ente a nós...

É a natureza que nos bate à porta.

E o que ela nos diz é de estar morta,

A chuva que foi a sós.

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Sublime à partida – Álvaro Machado

A vida é sublime porque é incerta

E nós ao queremos vivê-la

Partimos à descoberta

De uma direcção mais ou menos certa.

Eu parto com ela, mas pela aventura

Que há ao percorrê-la

Do cimo dos vales que tanto têm de altura

Como de distância e de amor profundo;

Da profundeza dos oceanos,

Que tanto pesam no mundo

De há milhares de anos...

Colateralmente a isto há os manuscritos

Que ensinam a história da humanidade

De há séculos para cá, e quem acha nos escritos

Um guião para a felicidade

Está terrivelmente enganado.

Quem parte à descoberta quer mais descobertas,

Quer mais caras novas e quer que mais portas lhe sejam abertas;

Quem se baseia na escritura para a sua felicidade está errado,

Porque a felicidade parte também com a partida...

Partir é estar sublime com a vida...

Trilhar caminho – Álvaro Machado

Todos os caminhos é desencontrar,

É não estar com quem queremos estar,

É todos os caminhos serem de lados opostos

E quantas histórias o hão-de narrar?

Porque há as coisas divinas que nunca havemos de chegar,

Porque há a natureza que tem piedade consoante a sua disposição

E um dia nos há-de levar quando a sua disposição acabar,

Porque haverá furacão...

Não vejo diferença absolutamente nenhuma em caminhar

Com a nossa própria sombra ou caminhar com sombras várias,

Não vejo porque hão-de existir caminhos para eu traçar

Se no fundo nenhum deles respostas me hão-de dar!

Todos os caminhos é dor, é sofrimento.

Eles todos e todos nós temos esse pressentimento

- Que há-de ser este o nosso caminho, o nosso destino

E que seremos felizes consoante o tracejado.

Pequeno cais – Álvaro Machado

Ao frenético, Álvaro de Campos.

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Eu também tenho um pequeno cais na minha cidade.

Seja ele muito mais pequeno do que o que tens sonhado,

Mas dá para lhe sentir o reflexo também.

Poucos barcos estão atracados e a ponte é curvada.

Seja ele muito menos luminoso do que o que tens sonhado,

Mas dá para lhe sentir algo de especial também.

Pode não ser melhor do que o teu, pode não o ser.

E pode ser menos do que o teu, porque sou eu a escrever.

Pode ser uma ode marítima menos contextualizada…

Ah, mas que nos interessa isso afinal de contas?

Eu passo perto do cais todas as noites e penso em ti

E nas razões para teres sonhado com este cais também…

Quem me garante que já não nos cruzamos nele?

Quem nos diz que já não navegamos nele?

Eu e tu, noutros tempos, noutros poetas.

Jardim espiritual – Álvaro Machado

Percorre-se de silêncio o jardim espiritual

Da minha alma - Talvez o vazio do espaço,

E a natureza distante o deixem assim: triste.

Percorre-se de solidão a alma que o atravessar;

Parecer-lhe-á familiar em instantes de reflexão,

E parecer-lhe-á nefasto quando o supor.

(Tenho pouca noção do espaço e do tempo,

Tenho tão pouca noção do que realmente sou

E do que realmente posso vir a ser.)

Não vejo pessoas, não presencio árvores, nem vento,

Apenas saúdo a noção da esplanada vazia e a distância

Das realmente pequenas e inúteis pessoas dentro do café.

E os passos com que percorro o espírito do jardim

Também não se ouvem, nem os gritos do coração revoltado!

Apenas exalto e extasio as coisas dentro de mim.

(Imagino que me oiças, imagino que me vejas deitado

Sobre o banco a pensar nisto; pensa também no que fui,

No que sou e no que poderei não vir a ser...)

Sublime jardim – Álvaro Machado

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O jardim, sem luz, deixa um rasto,

Para que sigas com toda a luz

Seu enigma indesvendável.

Portanto, segue-o sem perturbações,

Segue-o sem questionares nada,

E encara-o como sábio e certo

De toda a diversidade terrestre.

Sem luz ao fundo de todas as dimensões...

Sem dimensões nos candeeiros do jardim...

Faz com que seja o teu caminho suposto,

Faz com que dele dê certo a certeza

Que serás feliz, que o futuro te sorrirá

Como a mim não foi capaz de sorrir,

Nem de abraçar... Este é o meu jardim

De luz posta à luz das velas e do amor,

Das naus expostas aos cais sombrios,

Dos lobisomens em florestas alheias

E de obscuros batimentos de dor.

Mas em ti, Deus sorrirá altivamente.

Vai com ele, ergue-te ao céu divino

E canta melancolicamente a Querubim

A alada virtude de seres formosa!...

O futuro espera-te no futuro,

O passado já de si saudoso chora,

E o presente idolatra-te!...

(Mas, como hei-de dar-te rumo?

Se o meu jardim cessa

Quando lhe dei vida?)

Segue todos os sinais e ouve o que de si

Não são sinais, nem passagens bíblicas;

Ouve apenas o dito e segue a prosa

De não seguires o que faz!...

Antítese – Álvaro Machado

Sozinho, sozinho conheci

Canções infantis para ouvir

Sozinho, sozinho aprendi

O resto estava p'ra vir

Desonrado ao que era

Agora, nessa altura,

Aquilo que eu quisera

Era sol e pouca dura

A criança a brincar, desde então,

Brincava, sublime, nesse passado

Que até então era pouco relembrado

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(Passado, passado escuridão)

Jardim, jardim da memória

Tanta criança tu fazias rir

Jardim, jardim vitória

Tu sabias, estava por vir…

Cinco – Álvaro Machado

Cinco luzes dispostas ao comprido do passeio,

Em nenhuma se me assemelha o feitio...

Vou indo sem rumo, sem direcção,

Porém, indo sempre com predisposição...

O meu objectivo é apenas ir. Sem futuro, sem passado.

Os que me vêem sabem que tenho estado presente

E que mais tarde deles estarei ausente,

Porque eu ando e nunca sou cruzado.

Sem luz. Sem ritmo. Apenas vou.

Talvez assim me ache numa luz como eu,

Talvez assim ache, incidido n'um escuro permanente,

Alguém que sabe o que sente,

E porque sente não ter um fim...

Uma história breve – Álvaro de Magalhães

Por entre todos os caminhos que se dispõem ao longo da ilha

Reconheço-lhes, como se adivinhasse o futuro,

As origens e as tempestades, e a essência das nefastas paisagens

Que não me trazem memória nenhuma

E vejo-as com nitidez absoluta por serem vulgares,

Por não fazer lembrar nada ao vê-las;

Acendendo o cachimbo em alto mar eu penso:

- Onde estais vós, origens?

Nada que é navegado tem futuro ou sequer passado,

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Nada existe de memórias ou de lembranças

Ou seja o que for que me faça voltar no tempo,

Porque eu não tenho tempo nem época.

E assim, todos os dias mudo de personalidade. Mudo consoante a maré.

Se ela for monótona e me levar sempre ao ponto de partida, eu escrevo

Como poderia ser se a maré fosse tenebrosa tal qual antigamente o era!

(Antigamente eu era coisas cujo nome não me recordo...)

Mas falar do antigamente ou da probabilidade da maré ser tenebrosa

Já é contra a minha personalidade: deixo-me só a navegar por Cherbourg,

A navegar sozinho e rendido à sorte que o destino me oferecer.

De súbito, incendeia o solo de uma ilha, que está a meu lado,

Sobre o barco da minha juventude, e contemplo para minha admiração

Três fogueiras espalhadas pelo céu em sonho...

(É o desespero de estarem presos, sem rumo, sem fuga possível.

E como eu compreendo o desespero de nem sequer lhe ter memória!)

A viagem são os violinos duma orquestra como pano de fundo

- Frenética, temível, tremenda, magistral!

E o maestro que transforma música em simples obra de arte

É o que continua a navegar no vazio...

Saio, por momentos, do leme: deixo de comandar a musicalidade da viagem.

Agora encosto-me a saborear a entrega do vento e o cheiro a maresia...

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Parece que nada tem direcção ou sentido para dar sentido à vida...

Que apaziguamento de alma, meus caros amigos!

E, neste preciso momento, apetece-me viajar - viajar entenda-se imaginar,

Não esperar que me digam o que serei ou que me contem quem era -

E imagino um deserto qualquer com areia análoga à da ilha em chamas

Com David enfrentando Golias - que duelo de outro mundo seria!

(Vi com uma nitidez absoluta e arrepiante, a vitória do mais fraco

Sobre o mais forte, sem gládio, mas com a força do seu povo

Para derrotar aquele cujas técnicas inatas o atraiçoam na hora

Em que iria precisar mais delas.)

Não ser tu – Álvaro Machado

Eu acho-me o que não sou,

E penso como quem pensou

Pode ser o que não é.

Vindo em cismo da papelaria,

E quando já é noite caída,

Penso por que não posso ser

Como tu, que é-lo superior de genialidade

E tu sabe-lo perfeitamente;

Nunca contestei a tua superioridade,

Porque eu apenas tento fragmentar

O mundo que nunca hei-de acreditar...

- Nós, sempre distantes, o vimos

Como ninguém viu, sempre sentimos

Como ninguém sentiu, sempre fomos

O irreal do que não somos -

E não sei se corroboras com este pensamento,

Porque tu és, afinal, todo o talento

De que eu nunca hei-de ser!

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Ser o que não é – Álvaro Machado

Retracto a beleza

E mais não penso

Se realmente é

O que é.

Pode ser, não ser

Ou apenas crer

Que ela seja

O que não é.

E toda ela é assim:

Elegante e bela,

Desajustada e tenebrosa,

Tão falsa como justa...

E se me é permitida a chance

De vos dizer algo sobre mim,

Digo-vos: nunca soube coisa alguma,

Nunca soube de onde vim...

Dos anos que passam,

Das saudades que deixam,

Dos momentos que vivam,

Das dolorosas vidas que nasçam...

(Isso tudo, sou-me.)

Mas se existes, cruza-nos

Entre o belo rio de águas passadas,

Nós esperamos com real espasmo

A falta de crença em ti...

Sacrificado – Álvaro Machado

Não me foi dada a esperança

De um futuro p'ra crer

E ainda há uma herança

Que me espera receber

De braços abertos, estendida

Sobre o horizonte.

Ai, que estou perdido p'ra sempre!

Ai, que a alma está perdida!

Vagamente me falam que nasci

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E sou habitante do planeta terra,

Mas como hei-de garantir que vivi

Se mais tarde alguém me enterra?

São perguntas a que jamais hão-de responder

E com que ninguém se reconforta.

O meu acreditar são os sonhos que sei ter

Quando minha alma se descobre morta.

E tu és o rapaz nascido dos sacrifícios

Em que ninguém se há-de nunca importar...

Ah! Entrega-te aos comícios

Com quem nunca há-de te amar!

Cruza os braços e desiste desta dor.

Viver é só para quem tem um amor.

E tu és o rapaz que nasceu para se sacrificar

Quando ninguém te soube admirar...

Remorsos – Álvaro Machado

Nos carreguem de remorsos

Por quem nós pecámos,

Uma oração nós rezámos

E todos os nossos esforços

Foram em vão...

Nos desabem infernais desgraças

Por quem nós lutamos

Esquecendo tudo, nós amamos

Estas coisas com o coração

E se nos exaltam as graças...

Sejamos nós próximos a ir,

Porque a vida é assim...

Mais vidas estarão p'ra vir,

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Antes mesmo de eu partir

Junto de meu fim...

História ou lenda… - Álvaro Machado

Um dia todos me lembrarão

Não pelo que fui em vida,

Mas pelo que fui depois dela.

E, nesse dia, caso ele venha,

Quero ser relembrado ao acaso,

- Relembrando em todo o caso -

Andar pelas ruas e estar em todo o lado,

Andar pelas lojas como se de naufragado

Se tratasse um homem já de si esquecido.

Um dia todos me recordarão,

Não pelos feitos que fiz como homem,

Mas pelas palavras que escrevi como sonhador,

Que verdadeiramente sonhou além,

Que verdadeiramente pôde ser alguém

Não relembrando porque foi ninguém.

Inocentemente chuva a cair – Álvaro Machado

Inocentemente escuto a ébria balada

Da meia-noite e pareces estar aqui

Tão perto, tão atenta a mim...

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Inocentemente escuto a chuva

Quando fito a luz fulgente da rua

E pareces estar sempre aqui...

E mesmo que não estejas, parece que estás.

E mesmo que não existas, parece que existes.

Não me digas se és mesmo tu ou se não és.

Prefiro viver enganado e que todos me sorriam,

Prefiro viver assim mesmo insontemente

E viver feliz da vida,

Do que andar sob os transeuntes, ébrio,

Cair com uma lucidez completamente incompleta

E viver infeliz da vida!

Se não existes, não mo digas; deixa-me viver!

Eu quero estar gáudio dela e ser seu mestre!

Quero ter toque especial que soube ser!

Oiço cair a chuva como se ouvisse Deus

E como se fossem as suas lágrimas a escorrer...

Inocentemente-e-e-e-e-e-e-e!...

Ser eu – Álvaro Machado

Um dia eu fui apenas eu.

Os sonhos reais e a vida irrisória

Um dia consegui sair em vitória

E tudo é e foi meu

Se escorriam lágrimas eram demasiadas.

Os sonhos eram as nossas caminhadas

Pelo Destino conhecido e pelas cartas

Que te escrevia em horas fartas

Mas isto são palavras de alguém

Que não sou eu...

Estas palavras são de ninguém

Que quis o caminho meu...

São as palavras retractadas de dor

Que vivem junto do sonhador...

As palavras de um grande amor

Que se foi destruindo...

Ida de abandono – Álvaro Machado

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Quando te abandonas do bom da vida

Em tua volta só encontrarás felicidade,

Mas, no teu interior destroçado, serás a eternidade

Que sempre relembra o momento de ida...

Partiste. E à chegada ninguém vês te esperar.

E pensas no mal dos carris, ou no mal do condutor,

Porque não és lúcida para admitir que foste desertor

Do lado bom que te quiseram dar...

Pois eu te digo que és a longínqua alma de Deus,

E de todos aqueles anjos sobrepostos no ar...

Não és mais nada do que isso e ninguém te quis amar.

Pobre alma com quem ninguém se importa, (nem o próprio Deus...)

Pobre alma com quem ninguém conseguiu falar,

Nem tão pouco, um dia, gostar...

Pequeno alívio d’alma – Álvaro Machado

Eu estava fechado numa pequena sala.

Era escura e doía pensa-la.

E todo o mundo lá fora me esperava

- Quando saí nem acreditava.

O sol escondido nas nuvens acizentadas,

As aves voando sobre as casas

E eu, parecendo também com asas,

Voava de costas voltadas...

Senti alívio em tudo; já não pesava a alma...

A esperança renascia de uma tarde calma,

E todos me sorriam, todos me adoravam...

O vento batia-me na face e já não sentia amálgama,

Já não sentia impossibilidade no prazer de viver da fama.

E todos me sorriam, todos me admiravam...

Júbilo – Álvaro Machado Estou demasiado agarrado, demasiado viciado

Para que agora me digas que vais partir.

Todos os dias, quando acordo, penso a rir:

«Preferia eu nunca ter acordado...»

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Sem ti, a minha vida deixaria de sentir-se

Um júbilo e morreria com consciência pesada

De te ver partir e não poder fazer nada.

Há-de vir-se mulher, há-de vir-se.

E por mais que eu te procure neste vazio

Não te acho um rasto de corpo ou de alma.

Continuas sem vir e eu perco a calma,

E vou estrada fora, passando pelo fumo

Das casas não achando um rumo

Para este vício de que me rio.

Perdida força – Álvaro Machado

Não nasci com as forças necessárias

Para entender os motivos do que é sentir...

Não nasci para entender coisa nenhuma!

E o que eu quero é fugir...

É tudo excessivamente difícil para mim...

É uma sintonia de negativismo,

E a mágoa de te recordar é o abismo

Da coisa que se inicia e não tem fim...

E tudo é fácil quando oiço o coiro

Por aquele jardim brilhante de oiro.

Tudo é fácil com uma vida assim!

Só eu é que me acho pobre e triste...

Ó vida assim, porque nunca me viste?

Eu quero-te tanto como a mim!

Longe de viver – Álvaro Machado

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Viver é estar longe de nós.

Enquanto caminhamos tristemente,

Em nossa volta parece-nos tudo belo

E só nós somos o longe vagamente...

Pelo caminho, os olhos erguem a esperança

De tentar encontrar um lugar que nos acolha...

Mas logo nos cai a realidade tão crua, tão nua,

Que viver é estar longe de nós.

Lá em cima nos guia uma luz - uma vezes guia bem,

E traz carinho; outras deixa a desejar um fim...

A luz guia-nos o olhar de uma história esquecida,

De uma eterna mágoa perdida...

E a realidade de nós é sermos longínquos

Como os sentimentos que temos uns pelos outros,

Todos tão distantes e desconhecidos entre todos!

A realidade é não sermos nada.

(Quando me ilumina a luz, não penso

E vivo tão distraidamente que pareço apreciar a vida,

Mas, quando me apagam a luz, e cai o desejo ao anoitecer,

Só sinto falta de esperança em mim...

Porque a luz brilha intensamente uma ilusão?

Porque parece chama intensa? Ela é tão fria como real,

É tão triste como existente... E eu sempre a procurar a luz

De um coração perdido buscando rostos desconhecidos...)

E é vivendo longe de mim que vivo.

Viver não é p'ra mim, viver é não me encontrar!

Noite a cair – Álvaro Machado

Se sentimos a noite cair,

Sentimos o mundo inteiro

Quando mais perto está de ir

Debaixo do sonhado sobreiro.

Se sentimos esta suposição,

Viajemos mundo fora

Com toda a imaginação

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Que nos abandonou outrora.

De súbito, parece-nos difícil sentir isto...

Há-de porventura alguém saber disto?

Se sentimos a noite, sentimos a morte,

Ainda que ela nos pareça longe e inacessível...

O Destino nós sabemos sempre foi mais forte

E viver eternamente sempre foi impossível...

Antecipado o momento – Álvaro Machado

Teremos de viver antecipadamente,

Porque viver é isso mesmo:

Viver algo antes de o viver,

Sofrer ou desfrutar antes de o sentir,

Tornar épico e majestoso ainda antes de vir,

Achar possível de concretizar enquanto é sonho...

Viver na antecipação é um tempo enfadonho

Enquanto esperamos p’ra vivê-lo euforicamente;

(A espera que colhe tanta esperança do momento)

E depois vem realmente o tempo de viver,

De acordar e sentir com todo o sentimento

O tão esperado momento - e ele é uma perdição

De que não queríamos, e ele é uma ilusão

Que fomos criando enquanto íamos aguardando,

Que mais vale antever e viver esperando,

Porque o real vivido só traz sofrimento.

Nada de mim é meu – Álvaro Machado

Nada é real, nada é dor, nada é alegria

Neste mundo tão cheio de quase-verdade

E tão vago de quase-sonho; Nada lhe é certo,

Nada lhe é certo de ser, nada lhe chega perto de ser.

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Eu não sinto no mundo real nada por ninguém,

Não partilho das indecisões de ninguém,

Não ajo a bem de outros... Fujo apenas, fujo além

Enquanto lhe souber caminho e achar-lhe rasto!

E dirão as estrelas que fuja com elas para bem longe,

Para uma nova esfera de gases mágicos, e intensas almas

Viverão como eu, tão prendidas do real, tão prendidas a nada!

(Mesmo o facto de escrever me entristece; não tenho cura...)

Bem longe disto, dir-me-ão elas! Tão altivas naquele céu!

Tão fulgentes na noite! Tão longe da percepção!

Bem longe disto... Bem longe deste nada que sofre na dor

De nem sequer existir dor; do vazio da alegria que não existe!

Se me acho escondido entre folhagens sombrias?

Se me acho cobarde entre parecer o que não sou?

Apre! Mais do que isso, acho mostrar mais do que devia,

Mais do que realmente devia mostrar...

A todos vós devo um pedido de desculpas e estou em dívida

Para convosco - não fui honesto ao esconder o que realmente penso.

Penso e penso abusivamente ir mais além do que vós, penso na vida,

Penso porque estou aqui, para onde me leva o Destino,

E, porque penso, não quero ficar aqui (ainda sou a pequena criança

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Que lhe vê a vida passar dentro dum trem, cercado por todas essas impotências

Que lhe conceberam quando lhe deram a vida mortal; ainda sou pequeno

Para o mundo, e sou grande para as estrelas órfãs do sol)

Nestes lugares sombrios chamados planeta terra, nestes lugares nefastos

Que tanto me fazem pensar em apenas nada transformado em nada múltiplo;

Eu canso-me do que as pessoas sentem, porque elas não sentem, nem sabem

O que é sentir verdadeiramente; eu canso-me porque eu próprio sou uma pessoa!

(Uma pessoa não tem amigos enquanto chove, porque ninguém anda à chuva;

Uma pessoa não nutre amor por ninguém, porque ninguém sabe amar;

Uma pessoa não sorri por ainda estares sentada sobre a fogueira

A impossibilitar que fuja com as estrelas que tanto me amam longe daqui...)

Só peço uma bênção a Deus ou uma maldição a Satanás para prosseguir viagem.

Só peço misericórdia entre vocês pela promiscuidade que sempre fui.

O resto há-de manter-se vivo porque é arte: a arte de sofrer.

O resto de mim continuará vivo porque eu soube crer.

(Eu pedi por amigos que não vieram na hora desejada, eu pedi por amor

Que não veio enquanto era tempo, eu pedi por alegria ao sol intemporal...

E nunca nada veio de nada. Nunca nada mostrou-se perante mim,

Mesmo sabendo da minha espera esperada sem fim!)

E quem sabe que a vida realmente nos atordoa e engana facilmente,

Sabe que é a maior prova de que existimos. Viemos a esta passagem de tempo

E espaço para sentir probabilidades e sofrer possibilidades…

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Nunca sentimos realmente com toda a força.

Mas ainda há algo mais inquietante do que a vida! Apre! Apre! Apre!

Mais alucinante do que vocês, ó almas estúpidas e inconsequentes!

Mais formosa do que qualquer amor ou paixão na terra!

Há algo mais! Só pode haver algo mais!

Isto é incerto de mais para poder ser só isto. Eu sei disso melhor do que ninguém.

Eu, quando vos visitei, em data indefinida, visitei o pequeno rapaz que cresceu

Cheio de inocência - ali na pequeninha terra do campo cresci com sabedoria

Para vincar na vida do bem e para fugir na vida do mal...

E quando vos visitei já nada era como dantes: a casa das anedotas suprimiu

De maneira tão inconsequente pela estupidez humana que a infância, também ela, sumiu.

Quando vos visitei já me sentia longe de todos, já não era eu que estava ali

A falar-vos sorridente e de bom grado. O menino cresceu, o menino esqueceu.

E são para as estrelas do céu longínquo que eu vivo, porque elas me alentam a alma.

O álacre céu nocturno dá esperanças só para quem lhe contempla a noite.

E são as estrelas que me levam para bem longe daqui, elas levam-me do nada

Para um pequeno espaço de tempo possivelmente mais do que nada,

Mas eu não sei e nunca saberei se realmente será verdade o seu amor por mim...

Eu não sei se, na verdade, sinto um alento efusivo de as olhar...

Nada lhe é certo, apesar de lhe parecer bem umas vezes e mal noutras...

Nada, nada e nada foi sempre a minha vida...

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Apenas palavras – Álvaro Machado

s palavras proferidas não mudam o mundo,

Porque ele é impossível mudar com palavras

De quem sofre com ele, de quem foge sem ele;

O mundo só muda com acções.

As palavras servem-nos de calor nas sensações,

Enchem-nos de um vazio profundo e sem fim

Para que, noutro mundo à parte, hajam sonhos

Cheios de amor e paz, de alma plena de si...

(Sim, à parte da hipocrisia obsoleta de todos,

Há a possibilidade de se construir uma vida

À parte - de onde correm os rios belos e calmos,

De onde voam as aves raras da primavera,

De onde o mar nos ama para sempre no crepúsculo,

Tão contente de nos ver chegar àquele sonho interiorizado!

À parte de vós e das vossas ideias! À parte das saudades!

À parte dos desnorteados vagabundos, dos incertos sentimentos!

À parte do calor instável, da tendenciosa índole mulher, da corrente!

E para quê tantas palavras sem direcção? Tanta dor sem razão?

Tanta reflexão do que poderá existir? Do que já existiu? Dos homens?)

E no meio disto vão minhas palavras pelo ar esfriado do coração,

E saltam-lhe utopias de Érebo cheias de terror...

Como se de uma fraqueza pessoal se trata-se, desaparecem!

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Se vivo está o rosto destas palavras ninguém sabe ou fez por saber...

Vagabundo ao natural – Álvaro Machado

Eu sento a vida, porque ela me pesa ironicamente,

Num banco longe dos olhares, dos contactos

Com o mundo, e penso na vida tão profundamente

Que quando parto sei ser eternamente

As horas voam e os amigos passam, nunca vêm;

E eu já não sou eu, já sou passado do presente...

Perdi a fome de lutar e a sede do abismo, sou quem não sente,

Sou a vida de longe, a vida do eternamente!

Agora que sou vagabundo e encosto a sabedoria,

Fecho os olhos e guardo o sentimento, a ironia,

De ser vagabundo da vida.

E a luz do candeeiro ilumina a ilusão

De estar no jardim, de estar sem noção

Do que é realmente a vida.

A conversa nocturna – Álvaro de Magalhães

É sublime conversas noite adentro, horas a fio,

Porque quem conversa não sai do espaço em que está,

Mas voa, e voa para outro tempo que não o de cá.

É produtivo falar quando se pensa e se vive no falar,

Mas é-o porque montámos tudo junto do abstracto:

As mesas de jantar, os castelos da antiguidade,

Os planetas do futuro sensacional, o presente português e degradante

(Anti-revolucionário e pacato com tudo); e depois disso o frio de estar noite

E de termos de terminar esta conversa.

Ele vai embora, vai naturalmente para a sua vida habitual e rotinada

Com família e com uma lareira que lhe dê conforto e o aqueça;

E eu vou embora de costas voltadas p'ra felicidade,

Vou de corpo e alma num profundo isolamento e vou acompanhado,

Mas pelo frio e pelo vazio, pelo invisível e pela sombra,

Pelo som de nada feito de som ensurdecedor...

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Para onde vais? Para onde vais eu não o sei. E a que ritmo vais?

Talvez vá ao ritmo deste ritmo garbo e ao mesmo tempo estúpido

De um caminho entre as costas voltadas do meu ser...

Há luz agora, há luz porque há gente acordada

(Ainda que seja tarde e já seja madrugada...)

E há um Codesseiro em formas de gente;

Café vazio de luz apagada... Centro sem ninguém... Horas a dormir com a humanidade...

Passo a passo me passam os minutos de vida, passo a passo sem intensidade

Os perco com uma ideia triste de não haver mais conversas assim,

De haver sempre a inteligência subjacente à estupidez da nossa raça!

Somos sempre superiores para nós, apesar da inferioridade se ver à distância

E somos sempre quem não conversa com ninguém!

Ah, que a distância entre mim e aquele a quem voltei as costas dói-me!

Mas ele volta sempre para os braços daqueles que o amam e para o calor da lareira...

Eu volto para o caminho das incertezas e das dores sombrias: isso foi a minha vida

inteira.

Névoa matinal – Álvaro Machado

Toda a névoa ali ao fundo, que nos acerca,

É a cinza de Deus sobre o ar!

A brisa ali ao fundo que vá, vá e se perca

Porque só Deus sei amar!

Nas cinzas esquecidas do corpo mortal,

Intensifica-lhe um cheiro pela manhã

E as paisagens dessa alma vã

São a visão do que é imortal,

O céu de outras eras, de outros olhares!

(Quem o olhou e questionou o porquê de aqui estar)

O decadentista cheiro de outras marés!

A vontade incerta do vento encontrar!

A repugnância, a exímia e repugnante maneira de ser

Do homem - tão igual a outras eras, tão nublado

Como noutros climas, talvez mais propícios para chover

Do que neste céu escuro e estrelado!

Minha névoa, minha triste névoa, ainda aí estás?

Eu ainda estou imparcialmente parado,

Estendido sobre a cadeira de onde havia chorado...

Minha névoa, minha solene névoa, por favor nunca vás!

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O Superior – Álvaro Machado

De tantas coisas acima de mim,

Podia eu viver, então, subjugado

Ao superior e impossível de mim...

E por que não lhe vivo então?

De tantas altitudes indesejadas,

E de tanto sofrimento incessável,

Por que sou isso tudo mesmo não sendo?

E por que lhe vivo então?

Ah! Pudesse eu ser fatídico com o superior!

Pudesse eu sentenciar eternidade noutras estrelas,

Noutros sóis e noutras naturezas mais férteis!

Ah! Pudesse eu ser o que não sou!

Mas o mais longe que consigo é pensar exaurido

Do que não posso mais do que pensar...

E tal é a ironia de pensar ao que não se pode chegar,

Que quando se pensa nada há-de cansar...

E de tantas batalhas perdidas entre mim,

De tantas ironias espalhadas e perdidas,

O que há-de restar acima disto tudo?

(Talvez tu, talvez eu?)

Secreta vinda – Álvaro Machado

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O segredo está no fim da tua existência.

Tudo o que vês, engana; Tudo o que achas, ilude.

Se questionas a acção, deliberas, mas o Destino já foi traçado.

Tu falhaste quando vieste ao mundo.

O segredo está tão perto de ti e ao mesmo tempo

Parece de uma distância tão incerta como o dia

Em que viste ao mundo - Sim, porque nem tu sabes

A razão de vires ao mundo.

Falhas, e falhas tanto que pensar deixa de ser solução.

Se estás aqui, aproveita o que te foi dado; nada questiones.

Se pertences aqui, então vive com alegria este dia, amanhã

Não sabes se ainda aqui estás.

E chegas mesmo a esquecer a decadência do nosso infortúnio,

Que é nascer para este mundo de dor, este mundo trágico;

Chegas a acreditar que há sonhos atrás de sonhos, que tudo

É paraíso, seja ele repentino ou não.

Como tu, há milhares - há tantos milhares como as estrelas,

Que são tão incertezas e ao mesmo tempo alentam tanto

Tantos corações sem rumo! - e desses milhares, há milhões

E nenhum sabe nada do que é vida.

Vontade absorta – Álvaro Machado

Como passo neste enleio,

Vou sempre em cismo:

Será este o destino,

Será esta a história?

Volto sempre ao local de partida

De onde Deus me viu nascer...

Desconhece-me do tempo,

Reconhece-me do espaço...

Retorno à casa que me acolheu

Com derrocadas ensurdecedoras

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- E aquele escombro já foi meu,

Por tantas e tantas horas!

Como passo nesta floresta húmida

Penso do que será a minha vida

Quando por aqui não passar...

(Destino? Eu quero acreditar...)

Nevando corpos – Álvaro Machado

Nevava junto à casa a neve de dois corpos

Arrastados pelo chão gélido, enevoado.

Ali todos os segundos contavam uma história

E o rascunho, apaixonada neve, era o sorriso

Como num grito, das mil palavras ditas,

Um breve suspiro contando segundos

Que passavam enquanto a neve descia

Sobre os dois corpos imotos

Ambos fumavam um belo cigarro

Duradouro até à madrugada seguinte...

Ambos dissolviam o fumo nas veias

E filosofavam ignobilmente

Ele tinha apoiado o braço no seu pescoço

Encostando-lhe à cabeça o rascunho -

Que levaria em conta o amor nutrido;

E avançou de uma vez só com a voz:

«- Quando neva confunde-se-me a razão,

Por não saber o que sentir...

- Quando neva iluminas a minha alma

Como se na neve morde-se os lábios»

«- É assim que te deslumbro, mas encantado

Eu grito à luz que me viu nascer algo mais

Grito de amor, que não possuo, e grito de dor

Contigo ao meu lado!»

Caía ainda neve posterior à casa e aos dois...

A casa e o jardim cobertos com flocos

Deixavam-na cair sozinha, eterno flagelo

E o grito nunca mais se fizera ouvir.

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Breve cachimbo – Álvaro Machado

Acendido de um cachimbo sonhado

A vida de quem partiu cedo de mais

Por um só dia em que tudo foi demais

E parecia fumo nunca acabado...

Deixa o fumo ir até ao fim do lago,

E o corpo à tona para não respirar…

Tudo se tornará um fumo vago

E por dentro, irei naufragar…

E um cachimbo pode alguém retractar

Apenas com o fumo do encantar

Sobre as memórias acabadas...

E um fumo de brisas afagadas

Espera à porta dos sonhadores

Que morreram sem amores…

Flocos – Álvaro Machado

Está frio e do cimo das nuvens caem flocos

Que me congela as pálpebras.

É uma questão de tempo e de horas

P'ra passarmos a ser uns loucos.

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Está frio, que parece a derrota mais derrotada,

E a neve acumula e vai embalada

Como sendo uma avalanche

Que me manche,

E me leve com ela montanha abaixo...

Porque, quando eu me for, sairá este frio

Da cidade inteira, e deixará de correr o rio

Mais abaixo do que mim abaixo...

Porque sou um vazio nublado de onde cai neve

E os que me procuram sabem que fui quem nunca teve

Algo para além do frio da alma, do gelo das pálpebras...

(E o meu coração espero que nunca o abras...)

Almagesto – Álvaro Machado

Sempre altas, além dos nossos olhos,

Outras maneiras de estar na vida continuam...

Sobre nós, superiores às circunstâncias,

Brilham com um carinho eterno...

Milhares de anos. Anos ao relento esquecido.

O frio das galáxias distantes, a longevidade horizontal que nunca acaba.

Uma gravidade, uma divagação por todo o universo!

O frio causa da morte; a luz intensa oriunda da vida!

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E depois elas, sempre superiores a tudo,

Sempre invejáveis como a imortalidade,

Sempre únicas com novas cores,

Sempre rainhas e damas da alta nobreza solar...

Nós, sempre semelhantes à areia das praias,

Vendo a vida perto do mar e da desgraça,

Com um pé a caminho de naufrágio

E uma alma perdida com a maré...

São altas e intensas - todo esse universo estrelar e a poeira inerente a si.

O símbolo de Deus, o sol, rei do império solar, avassalador a quem lhe aproximar,

Mantém a distância entre todos os planetas. Poderoso, intocável...

(Mas elas estão sempre mais alto, muito mais intensas do que ele.)

E depois delas, o homem: Aristarco venceu, sonhou e conquistou

Só com o dom da percepção, com a força e determinação da alma,

Conseguiu derrotar o mundus inteiro. Ele só versus mundus.

E o seu rascunho retractou os astros de Deus.

Um pobre vadio, portanto. Deus viu Deus na Terra e deixou-o vadio,

Mas porquê tornar um génio num vadio? Um rascunho seu valia mais

Que mil textos bíblicos escritos em anonimato feitos não sei onde.

Mas foi pobre e vadio desencorajado a vida inteira!

Alguém quis que fosse assim - e quando as forças do destino comandam,

Não há nada que lhe possa mudar de direcção...

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Ainda hoje é relembrado por quem não o há-de ser nunca

E que lhe admira arte sem condições para haver arte no seu tempo,

Mas todo o génio, mais cedo ou mais tarde, tem de partir

E o que fica em terra são páginas e páginas incoerentes

- Pois se o mestre criador da arte desvanece, a arte fica sem sentido.

Que poucos lêem e nenhum admira. Passou por vadio, apenas.

As palavras ficaram, todavia: infinito, o infinito desconhecido de matéria imortal!

O constante crescimento do universo, do espaço, da matéria, do próprio sonho!

As luzes mais vivas, os buracos negros velhacos, as poeiras da esperança!

(Tudo ficou em terra; e os meus segredos estão espalhados pelo espaço...)

E há-de acabar a matéria, mas elas brilharão altivas como nunca;

A cinza estender-se-á aos recantos sombrios do universo,

Mas elas, somente elas, brilhando às avessas da areia da praia

Nos guiarão sempre, de alma e coração.

Herói – Álvaro Machado

Em mim há um herói índole

Encostado numa camilha

A contemplar almas e rostos

Estranhos ao mundo.

Uma fonte divina escorre

As dádivas de um outro ser;

Érebo contempla como eu

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O brilho intenso da vida.

Hemera é-nos a paisagem,

O calor tão desejado a toda à hora,

A luz reluzente tão saudosa!

Hemera é-nos a intensidade falhada.

E cada alma e rosto que tomo como vivo

Caminha, acorrentado, ao ergástulo

- Em cada passo, um suspiro de morte,

Uma pequena noção de fim trágico.

Há herói sentado, a contemplar.

Um herói équo e imperturbável.

Se lhe cai a vida, que é findável,

Ninguém quer mais continuar…

Em silêncio com a alma – Álvaro Machado

Estou longe e ninguém me ouve

Nem eu me consigo ouvir,

Que o destino saiba sempre

Onde vou antes de eu ir.

Não existo, não sou ninguém,

Nem eu mesmo consigo sentir-me alguém,

Se o fosse não estaria aqui a escrever

O que não consigo ser.

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Perscrutar-se silêncio é consequência

De não-existência

E ninguém que exista pensa no silêncio,

Se o há realmente ou se há somente vazio...

Estar longe pode não representar distância.

Pode ser um avanço ou retorno no tempo,

Um regresso ao passado, um pulo ao futuro,

Ou, talvez, nem distância se possa representar.

Quem sente o silêncio, quem sabe que ele existe

A este mundo não pode pertencer,

E eu só dou pelo silêncio à noite

Quando ninguém me consegue reconhecer.

Sombra na mente – Álvaro Machado

Escondo-me na sombra

E enquanto o sol ilumina

Outras sombras passam,

Outras sombras ficam

E eu, enquanto estou a sonhar,

Julgo-me perdido, mas feliz,

A vaguear por infinitas rotas

Que em nada se cruzam

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E se me atravessam a mente

(Ah, que as oiço perfeitamente!)

Como se fossem vozes lá em cima

A chamar por mim...

Eu não tenho uma rota definitiva.

Só preciso de vaguear...

Pode até ser absurda esta noção da realidade,

Mas eu prefiro ficar a sonhar

E a ver os meus sonhos à sombra

- Eles à sombra iluminam-se,

Enchem-se de esperança

E brilham sem luz.

Não me pareço com nada.

(E porque me falais daí de cima?)

Não oiço voz nenhuma.

Não há luz que me ilumine.

Só que escorrem lágrimas

À sombra de mim

E um lago de lágrimas flutua

Estas saudades...

Nunca me deram um remo ou uma nau,

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Para que eu percorresse este lago,

Este lago, que nunca viu uma luz

Ou outra coisa a não ser sombra!

Sonho bom – Álvaro Machado

Nunca, nenhum sonho,

Há-de substituir a realidade

Nem é caso para a substituir.

O sonho deve ser visto

Como uma fantasia

Que se fantasiou na noite passada,

Deve ser motivo para desejar

Ter mais sonhos assim,

Manter-se longe de paradigmas,

E não para o tornar real.

Real é monótono e cansativo.

Não existe prazer nenhum torná-lo real.

Um sonho é todo uma verdade,

Que uns negam e outros fogem,

Que os fazem por esquecer

E outros culpam satanás por os invadir,

Mas, um sonho, um sonho bom,

É roçar entre o divino e a perfeição

E pertencer ao paraíso

De todos os sonhadores...

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Pena – Álvaro Machado

A partir de hoje és.

Segue nesse sentido.

Não questiones, que ninguém te falará,

Não fujas, que não tens fuga possível,

Destrona a tua convicção

E queima esta carta na fogueira,

Vê o fumo no ar (surgir-te-á algo magistral)

E sente-o no ar como uma força transcendente.

És escravo e a tua vida é prisão.

Agradece ao senhor: foi ele quem te concebeu a pena.

Nunca voltarás a ser tu,

Hoje só és.

Hoje só sugeres uma forma, uma paisagem, um sentido...

Hoje podes ser tudo, só não podes ser tu.

Só a passar – Álvaro Machado

Um tanto tempo passou

Um tanto tempo bastou

Para que nada bastasse

Nem mudasse.

Pensei que, com o tempo a nunca parar,

A ferida curasse

E a alegria pudesse voltar

Como se todos os dias mudassem

E mais quedas não houvessem...

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Sempre colhi boas mágoas do passado;

Tinha a crença de um dia as poder ultrapassar

E, assim, ia-as colhendo de bom grado

Como se fosse fruta de um pomar,

Sempre muito encantado,

Pensando para mim: um dia isto há-de passar!

E não passou

O tempo não bastou,

Porque nada cura só a passar.

A voz… - Álvaro Machado

É a voz, sei que é a sua voz,

Amarga na ocasião,

No deleite de um trovão,

A voz escutada ente a nós

É a solidão...

A chuva e os trovões são o sinal

Que lá em cima têm passado mal.

Deus bebe um cálice de vinho

E começa a meditar sozinho

Por que razão nada é igual...

Sete candelabros de ouro fulgem.

Deus ergue-se e nega a luz

A este dia e aos que chorem´

A curta passagem até à cruz…

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(Outros tantos morrem!...)

Vozes inúteis – Álvaro Machado

Não os conheço; não existem.

E, ainda assim, vozes encharcam-me

De os pensar, se os penso, com histórias

Inúteis tanto como quem as conta.

São a paisagem intemporal dos tempos derrotados,

As esperanças sem necessidade de as realizar,

Os sonhos fictícios de os achar realizáveis estupidamente!

Se sonho, também? Sonho e vivo de sonhos que vou sonhando!

Não os sonho só porque tive de adormecer e porque é bom

- Nem tudo o que sonho é enquanto estou a dormir, nem tudo quanto sonho

É enquanto fecho os olhos... -

Eu sonho-os sobre a adversidade real e amálgama da vida!

Não existem; não os conheço.

Se não existem são felizes e não pesam,

Não têm de escolher entre o bem e o mal

Ou ficar no meio a pender para um deles.

A vida é doer

Só ao viver

E enquanto os achar na inexistência

Não os quero conhecer!...

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Verde, Cabo – Álvaro Machado

Cabo Verde. Verde, o cabo.

A cor esverdeada do sal,

O sal dentro do mar do cabo

E circunda, à volta, o peixe

Sem sal, de o não estar imerso

E com saudades do salgado

Mar que preenche o cabo

De verde sal e de cabo encantado.

O meu amor respira ar tropical.

Ar de ar, tropical de tropical.

Palmeiras entes, grãos de areia por de baixo,

Ah, as saudades de água azul e romântica!

Esta ilha é bela, mas o belo ilude e engana,

Porque a paisagem preenche o cabo de bondade

E as pessoas infectam de maldade,

O cabo verde do mar em sal.

Ver Cabo Verde fez relembrar-me

Do outro cabo, do cabo de mais esperança,

A esperança que fez do cabo uma esperança

E o cabo fez de si um cabo de boa esperança...

Profetas do vazio – Álvaro Machado

Nada me é estranho nem conhecido.

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Pertenço só à vida, deambulo

Sentindo a primavera, o vento fresco

E o caminho da esperança...

Sinto-me nem perto nem longe,

Pertenço só às pessoas, às saudades,

E às mudanças repentinas de tempo!

Nunca tive razões para desistir nem para lutar,

Por isso, nunca me aproximei nem me distanciei,

Deixei sempre que a vida se atravessasse no meio

E descesse abaixo de um soalho

Para lhe perscrutar segredos intransportáveis,

Autos de fé que realmente tinham razão de ser,

Porque Deus não gosta que contestem.

"Isola-te do mundo e vem ouvir toda a verdade"

- disse uma voz, antes de Cristo, para Maniqueu.

Maniqueu aceitou e desapareceu,

Aceitou desmoronar como um muro,

Saltou sobre esse muro, desvendou o mistério,

Conheceu a voz pujante de Deus

E percebeu que não ser de ninguém

É o passo mais livre que podemos dar.

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Como Maniqueu, eu também não busco respostas

Nem sufoco o coração de perguntas, deambulo à sorte

Esperando por uma voz que me faça descer

O mais rápido que puder ser!...

Liberdade condicional – Álvaro Machado

Sou livre como um pássaro quando está a voar,

Sou superior dos superiores ancestrais,

Sou senhor para não ter normas nem leis que mandem em mim!

Eu, livre como o ar, identifico-me nas incertezas, apenas...

Quero dispor de toda a liberdade como esses astros que vagueiam pelo universo!

Quero pertencer à matéria invisível que não se sabe bem se existe ou não!

Quero respirar ar puro, também raro, que circunda em voltas controversas!

Livre, portanto, é livre nessa condição de respirar liberdade, unicamente...

Ter e ser mente livre, alma com pujança p'ra sonhar eternamente,

Bater de asas de um pássaro do futuro que anseia regressar no tempo,

(Para matar as saudades) linhas do horizonte que desesperam

Para ver homem que as desenhe...

(Homem que as desenhe, dizia eu?) Homem, homem dos acasos sem remédio.

Sou, por índole, livre, em nome e acção, mas sou, também, prisioneiro

Sob quatro cantos disformes chamados mundo, que acorrenta-me os pés

E não me deixa nunca percorrer nada além de si,

Limita-me de fraqueza, que é quanto baste, para eu desistir e não poder voar,

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Nem ser imortal, nem ser rico, nem espalhar oiro pela cidade obsoleta...

"Nada de voar nem de ser imortal!" - atira-me, o mundo, à frente da minha face,

Para que eu livre possa não ser...

Guerreiro desarmado – Álvaro Machado

Vai adiante o grande guerreiro

Quando a bruma se põe

Lá no alto da montanha

Que ninguém conhece

E vai adiante, ao lado das árvores,

Com o canto de um rouxinol

A fazer-lhe bem ao ouvido,

Que lhe pede para continuar

A caminhar, a caminhar num impasse

De uma montanha que ninguém conhece,

A andar vagamente pelo sol primaveril

Sem saber mais do que nada...

......................................

Isso sim, seria a única verdade de um guerreiro,

Só com a montanha transcendente

A seu lado.

Conquistar a vida com uma só mão

E a natureza com a alma.

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Embarque ao destino – Álvaro Machado

Foi apenas um momento que não pode voltar

- Navegar, que me entendam as vozes de Aegir,

É neste momento o que a mim não pode regressar

E eu não sei como reagir!

Porque é navegar, navegar! Se me despedaçam o coração

Desdobro em ondas as lágrimas, em tempestades as mágoas,

E navego até mais não bastar!

Foi apenas o que foi e mais não pode ser

- Cruzo os braços que de outro tempo se mantinham vivos,

Encaro o vento que dos meus ouvidos sussurra rotas

E deixo-me desprender deste barco, deste povo,

Desta nação que não toma rumo para seguir...

E leva-me, para as profundezas do mar, a angústia derrotada

De não pode navegar, nunca mais poder navegar!

Foi apenas de passagem o que nunca foi e não pode voltar a ser...

Tempo e adeus – Álvaro Machado

Fujo do meu tempo - que nem meu é - desde então.

Guardo saudades do tempo em que era tempo de o ser,

Guardo ainda no coração as belas vistas do entardecer

Em que navegávamos com amor ente ao coração

Por terras longínquas e saudosas - que nunca ninguém viu -

E, nesse momento, o destino, ao acaso, nos sorriu

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Para que lhe navegássemos sem parar!

Hoje fujo do meu tempo e gritar... é uma gota de oceano

Que não pode transparecer toda a maresia dentro de mim.

(Álvaro de Magalhães: todas as mãos de marinheiro têm fim

Por mais terras longínquas e saudosas que achem.

Pára de navegar! Cairás no limbo se continuares assim,

O limbo tornar-se-á o local das tuas memórias

E o infortúnio das tuas vãs glórias...)

Não posso mais à ilha voltar.

Não posso mais águas navegar.

O dia passou, e não volta para mim

O grande amor pelo Mar!

Sinto saudades. Era mar...

O mar que a cada dia queria amar

Mais do que no dia anterior;

Era dia, dia de encantar meu interior...

Adeus. Adeus Mar. Adeus Tempo. Adeus Álvaro de Magalhães.

Estes versos, que não dizem mais do que o nada dito,

São apenas invocações ilusórias de estar sozinho

E de não ter mais que pensar

A não ser pensar no mar...

“Desde o início” – Álvaro Machado

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I

Sou a ave mais libertária deste mundo...

Não conheço ninguém, não vivo p'ra ninguém...

Tudo quanto penso fica em mim e não vê a luz do dia,

Tudo quanto sou é imaginar tudo quanto quero ser

E este deambular não é de gente...

Como folhas que se varrem do chão sem pátria,

A mim, varrem-me da vida porque não a mereço...

E eu fico a olhar e a esquecer junto da primavera

Enquanto o tempo passa por passar

E a alma pensa por pensar...

Esbatem-me as forças e suplico por perdão, (perdoa-me, deus)

Que bem podia o momento valer a pena

Se a vontade fosse muita de manejar um gládio

E conquistar fosse o sonho para chama alentar...

II

Sento-me sobre uma rocking-chair a conversar com a natureza

E peço-lhe que se aproxime, esplêndida e altiva,

Que é a primavera no seu todo, quando chega,

A forma mais pura de ouvir o vento.

O ciclo da vida é ir esquecendo o que se está a viver

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Por uns momentos em que somos vácuo à tona da água;

Sentir a brisa, ir esquecendo que a sentimos, e ouvi-la dizer

Quem é e quem somos...

E a fraqueza do meu corpo, a demência da minha mente,

Não me deixam pensar porque vivo e o que é estar triste.

Complexo – Álvaro Machado

Falar da vida é tão complexo.

Por que haveríamos de falar dela?

Há tanto para se viver, tanto para se criar,

Tantos sonhos que nos podem mudar...

Temos o que há de melhor para desfrutar

- podemos voar, percorrer desertos, navegar mar...

viver com o sol, deitados à sombra, escutar a noite de luar

e confessar às estrelas nada...

(Ao mundo, disse Zeus, guardo receio; é tão simples vivê-lo

E tão complexo pensá-lo que inquieta estar em si.

O horizonte ilude-me porque é o espírito de alguém superior

Que nunca mostrou o seu rosto!

Olhem para si: uma margem para além do oceano inteiro!

Nunca nenhum deus soube como lhe tocar...

E, ainda assim, é tão inquietante vê-lo sem lhe tocar!

Talvez porque nos ilude e as pálpebras tremem...)

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Tudo na vida é fácil de percorrer,

Difícil é saber o caminho a escolher.

Tomar no risco uma esperança

Que só o bem nos irá acontecer.

Mas não; há algo mais, que supera a compreensão,

Neste mundo em que nada consegue ser mais do que nada,

Em que tudo consegue abranger mais do que tudo,

Em que pouco é muito e muito é pouco!...

Ah! Que inquietação dos diabos! Perdoem-me!

(Viver é fácil. Basta saber o que é o horizonte.)

E, o que nos inquieta, desde sempre, é ter como certo

Que mais mundos estão por descobrir e viver neste sabe a pouco!...

Janela do Rio – Álvaro Machado

Quebraram-se as janelas da entrada

De onde o sol outrora iluminava fulgente

E enchia de esperança o rosto ardente

De maneira tão encantada!

Desmoronam as raízes dos sobreiros

De onde o rio outrora percorria alegremente,

Quando o meu sonho era viver eternamente

Aproveitando dias e dias inteiros!

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Agora, que da janela só avisto escuridão

E do rio apenas sinto um vazio sem explicação,

Tudo quanto entrou, saiu, e não há-de voltar

- Nem rio, nem sol, nem vontade de continuar!

Invasão divina – Álvaro Machado

Invadem-me, no sonho, deuses das galáxias moribundas,

De um suspeito ar desconhecido e imaterial

Onde suas mãos transcendem toque magistral

Por meio de elegias desencantadas

Que, entre um sopro, uma cantiga de amor,

Um desgosto avassalador

Impede que o meu sono se comece a manifestar

Por gotas caírem num sentido de não findar...

Tremenda insónia vai agreste do meu quarto ao Olimpo,

Que ceptros e bastões não bastam para que o céu seja limpo.

Têm forças, outras mais gloriosas, estes deuses que transcendem

Outros deuses, deuses da terra, que contra estes tudo perdem.

E volto-me para retomar o sonho, que mais parece pesadelo.

Esqueço por que me invadem estas noites de sono interdito

- De volta à noite calma, inquietante, que ouve o que tenho dito,

Só ela sabe o que quis ser e porque nunca consegui sê-lo...

Tifóide – Álvaro Machado

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Estou sozinho. Completamente abandonado.

Às horas mortas me têm entregado,

Ao desprezo me têm acercado,

Mas a tudo na vida - e ao que tenho sonhado -

Se esgotam as forças e saio derrotado.

Perco por ter ganho antigamente;

Agora, eis que sofro de tonturas e calafrios,

Eis que enlouqueço e que desconheço os rios

Que me viram nascer tão alegremente.

Peco por esta vida alucinante.

Das minhas dores corporais, não vejo remédio.

Das saudades que talvez sintam por mim

Não encontro nada, porque nada é o fim

E a razão de todo o tédio.

Estou sozinho e com tonturas.

(Por que, por um acto menos feliz,

Tanto me torturas?)

Sozinho, como quem o diz.

Excluída rota – Álvaro Machado

Estou, neste momento, de rota excluída para o mundo;

Passo por de baixo da ponte em que ninguém passou

Com o inferno lado a lado comigo, mesmo quando vou ao fundo,

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E agora eu olho para o desperdício que me acercou

Durante anos e anos em que viver pesou...

Agora eu sei que a razão vale nada e a experiência outro nada vale...

(Se algum dia valessem, a minha vida simplesmente não acabava)

Tanto pensei, tanto escrevi de pensar - para que o destino me fale -

Que eu, em momentos, ainda que raros fossem,

Pensei que ela não me abandonava!

E partiu. Sem me dizer que partiu. E eu tive que partir

Sem que um merecido verso me deixasse despedir

Dos tantos que por mim se cruzaram

Sem que o meu olhar soubesse pedir

Amor aos que sempre me amaram!

Anárquica noite – Álvaro Machado

Não me obriguem; porque se obrigarem eu não o faço

- Para mim dever há só um: ouvir esta noite assombrosa

Por onde passa o vento frenético, de cólera impiedosa,

E a escuridão é o caminho que faço e desfaço

No mesmo instante, no mesmo espaço.

Neste momento de vida, talvez precoce e imaturo,

O oceano empurra para a mesma direcção

- Que outros vão percorrendo em vão,

Outros, esse tais, que da vida soltam inertemente revolução -

De caminhos que para mim não procuro.

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Só esta noite me conhece, só este vento

Intercepta a voz, o verso, a inquietação em lamento

Com que eu carrego de mão ao peito,

Por um sentimento trágico e sem encanto.

De fora? Pode brilhar, e pode até iludir.

Nunca disse que mais ilusões não estivessem para vir.

Só que ilusões não passam de ilusões, e esta noite existe

Como o vento e a minha alma.

(Ó alma, por que me fugiste?)

Retorno – Álvaro Machado

Já nasceram e tiveram a eternidade,

Já cresceram até à noite primaveral

- Enquanto eu vivi sempre igual,

Na mesma saudade,

Na mesma vida infernal.

Um lugar imbuído de nostalgia;

Um lugar que tanto me diz sem dizer,

Que me pertence e é meu sem poder ser

- Porque floresce por todo lado a magia

De mais vida poder nascer.

De quem eu falo todos sabem.

E os que não sabem mentem.

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- O que floresce são saudades de um jardim

E o que nasce são vontades de voltar a viver em mim!

Voz de Deus, na Terra. – Álvaro Machado

Hoje sei toda a verdade

- Que eu não posso nunca mudar,

Nem o rosto, nem o modo de vida,

Nem os hábitos ou os desejos...

Hoje caio e bato no fundo contra a humanidade

- Porque eu não posso pertencer aqui de modo nenhum;

A humanidade é uma avalanche a que nenhum homem resiste,

A que nenhum homem afronta nem sobrevive

(E é por isso que tanta vezes se desiste)

É fim de tarde. E eu choro sem saber porquê nem por quem.

(Será que o meu destino é apenas sofrer, sem razão para sofrer?)

Acabo como este fim de tarde: tépido; sem poder escutar uma voz,

Nem poder abraçar um conhecido - porque eu não tenho conhecidos,

Nem acho transeuntes neste pedaço de terra...

Toda a indiferença que me acerca perturba-me sem eu saber porquê.

Apenas lhe sinto a dor. Não posso sorrir, sentir, conhecer a vida!

E de um voluptuoso suspiro de liberdade, junto de corpos moribundos,

Que falam a mentira no que dizem e escondem a verdade no que pensam,

Eu vou sentindo-me feliz mesmo que de feliz sinta não sentir nada.

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Crucificam-me com gládios. Não reconheço a posição inimiga.

Sou debilitado e inocente para reconhecer esse rosto

Sombrio e sinistramente impiedoso.

E, mesmo tratando-se de um inimigo, gosto dele; é humano,

Por isso, só posso gostar dele. Não sou melhor do que a sua raiva

Nem supero a sua inveja.

(Bebe desse cálice de vinho, Deus. Que o vinho irá embriagar-te.

E o mundo inteiro, de tantas preces sem sentimento, há-de vingar-te.)

Ah! Pudesse eu mostrar a bondade que carrego no coração!

Pudesse eu cantar aos ignóbeis grandes valores - como os de Camões, Pessoa

E de outros tantos que verdadeiramente conheceram o mundo,

E acharam boas intenções, e que sofreram, de mesmo modo,

Por doer viver!

Esta ânsia revolta-se no coração e solta ira na alma!

Tudo isto é a consequência da humanidade!

Ah! Eu que morra! Eu quero morrer! Quero-me suicidar!

Nunca fui; nunca irei ser.

- Essa é a crua verdade

Deste meu ser!

Velho. Cansado. – Álvaro Machado

- Lamento que tenha sido assim; que agora esteja assim,

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Mas, com o tempo, tu sabê-lo-ás: nada que te inquieta

Inquieta mais ninguém, tudo o que podes mudar não podes,

Porque estás condenado a nada mudar.

E se ao menos pudéssemos alguma coisa mudar...

Um tracejado apagar, um salmo modificar, um sentido alternar…

Qualquer coisa. Esquecer o estipulado e recriar de impossível

A possivelmente possível…

E tenho pena por ter lamentos somente a dar.

Poder-te-ia dar outras coisas, como uma casa à beira rio

- Na minha adolescência eram esses os tipos de casas

Que eu ficava, na varanda, insaciado, a desejar…

Cheguei a construir uma pequena embarcação,

Quando imaginar não era uma sensação

Mas uma verdade irredutível e cheia de razão.

E nela eu fugia. E nela eu esquecia,

Porque, afinal, vivia!

Pedaços – Álvaro Machado

Esta terra é um pedaço de Deus:

Tem o seu bem, numa árvore e numa ave,

Tem o seu mal, num homem e num pensamento;

E sobre mal se faz o bem, tive esperança.

Esta terra é um pedaço de todos nós:

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Tem o nosso bem, no amor e no sonho,

Tem o nosso mal, na dor e na aparência;

E sobre o bem se faz o mal, tenho certezas.

Mas mudar o mundo com sonhos e com árvores

E com amor e aves?

Tentar que o bem destrone o mal

Com pedaços de esperança abandonados pelo chão?

Isso não; antes viver com a alma poisada ao sol...

Fazer que a nossa existência não se faça notar,

Nem que valha a pena tomar voz no púlpito

Para o que está mal apontar...

O mal está onde está o bem. Eu estou comigo por ter os dois lados.

Se mudar o mundo não posso, nem as paisagens, por mais que reconstrua

Em versos o bom que não existe, eu escrevo sobre este cismo e solto ira!

Calem-se, a bem ou a mal!

Nós somos um pedaço do que é Deus; Deus, um pedaço de nós.

A história diz-me para não acreditar na igreja, a base do pensamento,

Diz-me para não seguir a coruja poisada no alto da colina,

A história diz-me que só conhece sofrimento...

E eu não posso então conceber - à minha alma - um pedaço de história em versos?

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Perdidos fragmentos – Álvaro Machado

Temo por vos recordar

Em que outros tempos foi esquecer

Junto ao Tejo, com a cabeça a sonhar

O que o corpo quer crer ser.

Ele suplica à alma o que alma sofre

Enquanto divagam nas recordações.

E brisas do rio, fiéis às navegações,

Guardam-me a viagem num cofre...

A prisão da minha vida é estar em liberdade

- Parece que estarmos naquele diálogo

Não serviu para concretizar sonhos que sonhamos,

Os mesmos em que, naquele momento, acreditamos...

E porque este fim de tarde partiu está claro o horizonte:

É seu rasto em viagem, ocultado por um monte.

Ah! Mas onde está a esperança de o fazer recordar

Se é tempo de acordar?

Até à loucura – Álvaro Machado

O significado do mundo é a tarde sossegada.

É o estar sol distante e calor ente à humanidade.

Se eu pudesse saber ou conhecer um pedaço disto,

Se mo explicassem com provas viáveis,

Talvez o meu gosto de viver fosse renovado

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E finalmente fosse vivendo mais,

Aos poucos e tempo a tempo,

Do que vivi ontem - que soubera nada

Destas mudanças repentinas de tempo;

Tenho sido atónito e infiel à minha condição...

Mas, se eu vos desse realmente a verdade,

Teria mais lucidez do que a não ter?

A resposta eu não carrego.

As noites, tenho-as passado em claro

E sinto discordância entre o que sou e o que quero ser...

Penso e rodopio no pensamento vezes sem conta, mas porquê?

Os meus sonhos são vozes, movimentos, disformes espaços,

Montanhas que nunca vi, planetas que nunca tive por reais,

Deuses com quem tenho uma relação espiritual por construir!

E as manhãs têm sido amargas, tão amargas, que parecem feitas de escuridão,

Os pássaros chilram, mas parecem lobos a uivar, e deprime ouvir uma coisa e pensar outra...

Estar num lugar por um motivo físico e pensar outro lugar por um motivo espiritual é triste;

não o desejo a ninguém.

Conheço ninguém; nestas circunstâncias que me têm tomado por doido - simplesmente sinto

que, com o passar do tempo, lenta e tristemente, isto não é para mim; são-me retiradas as

forças, supor locais e pessoas inapropriadas aos locais e às pessoas dos locais é um acto de

loucura, é ir perdendo a noção se é real e ou se é sonho – é cair no limbo eternamente...

A tarde, dou-a por terminada (se ela alguma vez foi real para mim...), que a noite, não tarda,

está a chegar.

E é assim, entre manhãs que relembram noites e tardes que são substituídas por noites, que se

divaga entre as mudanças climatéricas

Sem saber quem somos, quem vivemos, quem questionamos, quem é isto, quem é aquilo, se

vem lá do cimo, ou de lá do fundo, ou do permeio!

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Ah vida! Vida! Vida!

Renovação de mim – Álvaro Machado

Parece que vem noite - sem ter certezas - e o dia ainda não findou.

Foi um dia, um dia como antes haviam nascido e morrido.

Amanhã talvez o tempo melhore,

Ou, consoante a amargura, piore.

Os dias sempre mudam - eu fui quem nunca mudou.

Fim…

Álvaro Machado – poeta

Álvaro de Magalhães – heterónimo

Leonard Sagè - heterónimo