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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓTLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM NO TRIBUNAL DO JÚRI Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli Belo Horizonte 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓTLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM

NO TRIBUNAL DO JÚRI

Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli

Belo Horizonte 2011

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Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli

ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM

NO TRIBUNAL DO JÚRI

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes

Belo Horizonte 2011

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Paulinelli, Maysa de Pádua Teixeira P328a Argumentação e performatividade da linguagem no tribunal do júri /

Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli. Belo Horizonte, 2011. 261f. : Il. Orientador: Paulo Henrique Aguiar Mendes Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Oratória forense. 2. Tribunal do juri. I. Mendes, Paulo Henrique

Aguiar. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 347.965.45

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Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli

ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM NO TRIBUNAL DO JÚRI

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

________________________________________________

Paulo Henrique Aguiar Mendes (Orientador) - PUC Minas

______________________________________________

Helcira Maria Rodrigues de Lima - UFMG

_______________________________________________

Hugo Mari - PUC Minas

______________________________________________

Miracy Barbosa de Sousa Gustin - UFMG

______________________________________________

William Augusto Menezes - UFOP

Belo Horizonte, 28 de março de 2011.

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Dedico este trabalho ao meu pai, Euwaldo, que “tão cedo partiu desta vida descontente”, e ao meu filho, Pietro, que já está para chegar...

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AGRADECIMENTOS

“Meu poema é um tumulto:

a fala que nele fala outras vozes

arrasta em alarido estamos todos nós

cheios de vozes que o mais das vezes

mal cabem em nossa voz (...)” (Ferreira Gullar)

Minha tese é um “tumulto”: “a fala que nela fala outras vozes arrasta em alarido”...

vozes que transbordam e, livres, caminham por si próprias... Entre todas as vozes presentes,

de alguma maneira, nas páginas que seguem, nomeio e agradeço especialmente:

Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes que, durante o período

de elaboração deste trabalho, representou para mim a voz do saber acadêmico e da excelência

profissional, que observo no modo como concilia as atividades de pesquisador à prática

docente. Agradeço por sua disponibilidade, pelas orientações que me levaram a descobrir

caminhos por mim ignorados, pelas palavras de incentivo e pela gentileza.

Ao Prof. Dr. Hugo Mari, “monumento de dignidade e respeito”, agradeço pelas lições

de Linguística, pelas contribuições que deu a este trabalho no Exame de Qualificação e pelos

braços que encontro sempre abertos.

Aos Profs. Drs. William Menezes e Helcira Maria Rodrigues de Lima, agradeço pela

interlocução privilegiada, pela amizade e pelo respeito.

Aos membros da Comissão Examinadora, agradeço por me honrarem com sua

participação na apreciação de meu trabalho.

À Prof.ª Dr.ª Maria Ângela Teixeira Paulino, pela coordenação de meu estágio de

docência no Projeto Oficinas de Leitura e Produção de Textos... tão profissional e, ao mesmo

tempo, tão doce e gentil com seus estagiários.

Às funcionárias da Secretaria do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC

Minas, Vera Lúcia Mageste, Berenice Viana de Faria, Rosária Helena de Andrade e seus

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auxiliares, agradeço pela presteza, competência e gentileza na realização do trabalho

burocrático.

Aos colegas com quem cursei as disciplinas de Doutorado, entre os quais destaco a

amiga e parceira Adriana: voz de gente firme, determinada, que me resgata dos devaneios e

me traz de volta à realidade acadêmica.

Entre as vozes do cotidiano, agradeço: ao meu marido, Márcio, a voz predileta; ao

meu filho do coração, Gabriel, a quem eu pensava ensinar alguma coisa quando, na verdade, o

mestre sempre foi ele; à minha mãe, Cirlene, por nos ter educado em meio às letras; aos meus

irmãos, Simone, Aloysio e Claryssa, de quem tanto me orgulho, agradeço pelo exemplo; aos

cunhados-irmãos, Rodrigo, Dalila, Paulo e Teresinha, pela amizade; à tia Irani, pelo carinho e

atenção; à prima Josiane, por me hospedar em sua casa tantas vezes e com toda delicadeza; ao

sobrinho Cauã, pela renovação da esperança.

À amiga Geralda Cristina, pelo apoio técnico na formatação deste trabalho e,

principalmente, por cultivar nossa amizade desde tempos imemoriais... voz e ouvidos que me

trazem conforto, descanso, desabafo.

Por fim, agradeço à CAPES, pelos recursos materiais que me possibilitaram

desenvolver esta pesquisa.

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Já não vivi em vão

Já escrevi bem

Uma canção.

A vida o que tem?

Estender a mão

A alguém?

Nem isso, não.

Só o escrever bem

Uma canção.

(Fernando Pessoa)

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RESUMO

Neste trabalho, propõe-se uma reflexão acerca do domínio discursivo jurídico e de suas

características constitutivas, as quais lhe outorgam uma conformação particular no interior do

vasto território das práticas de linguagem. Por se tratar de um domínio amplo, composto por

inúmeras vertentes e ramificações, realizou-se um recorte e optou-se por trabalhar com uma

área específica de sua ocorrência: o discurso judicial processual penal de competência do

Tribunal do Júri. O objetivo pretendido foi, fundamentalmente, o de construir um discurso

explicativo dessa vertente, por meio da avaliação: 1) de aspectos relativos às suas condições

enunciativas; 2) da orientação argumentativa encontrada nos diversos gêneros produzidos

pelos sujeitos que participam de uma relação processual (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares

da Justiça, entre outros); 3) do inter-relacionamento entre esses gêneros e 4) das atividades

sociais produzidas como resultado final da tramitação do processo. Para isso, selecionou-se

um caso de interação no meio judiciário, que consistiu em um processo movido pelo

Ministério Público em face de uma mulher, sob a acusação de que ela teria praticado o crime

de autoaborto. Considerando-se que a dinâmica em que se constrói o discurso processual

penal só pode ser compreendida nos limites impostos pelo quadro institucional do qual

emerge essa produção discursiva, adotou-se como hipótese de pesquisa a observação de que

os atos de fala definem e designam os gêneros discursivos, além de contribuírem para sua

orientação argumentativa; cada sujeito processual, em uma situação de interação linguageira

travada nos limites de um processo judicial, produz conjuntos de gêneros no desempenho de

suas atividades profissionais; diversos conjuntos de gêneros se articulam para a formação de

sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um domínio discursivo e realizam alterações

na realidade social. Como procedimento metodológico, inicialmente, identificaram-se os

principais sujeitos que atuaram no processo analisado, os conjuntos de gêneros que eles

empregaram no desempenho de suas atividades e a forma como esses conjuntos se

entrelaçaram para compor um sistema de atividades. Em seguida, procedeu-se a uma análise

pontual das peças processuais mais importantes produzidas pelo órgão de acusação (Promotor

de Justiça), pela defesa (Advogado) e pelas instâncias decisórias (Juiz de Direito e

Desembargadores). Essa análise pontual implicou a reflexão acerca das condições

enunciativas próprias de cada peça. Delimitadas as condições enunciativas, partiu-se para a

descrição dos atos de fala mais representativos de cada proferimento, pela aplicação dos

postulados da Teoria dos Atos de Fala, com a explicitação do ponto de realização do ato,

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modo, condições de conteúdo proposicional, condições preparatórias e condições de

sinceridade. Finalmente, buscou-se correlacionar a força ilocucional dos atos de fala à

orientação argumentativa dos proferimentos, com vista à explicação das relações entre

linguagem e ação no corpus selecionado. Concluiu-se que, na medida em que são produzidos

e lançados aos autos todos esses proferimentos que, ao final, formam uma rede dialógico-

argumentativa, a verdade acerca da conduta imputada à ré é construída e reconstruída pelos

sujeitos processuais.

Palavras-chave: Discurso jurídico. Tribunal do Júri. Performatividade da linguagem. Gêneros.

Argumentação.

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ABSTRACT

This study proposes a reflection on the legal discursive area, as well as on its constituent

characteristics, which provide a particular conformation within the vast territory of language

practices. Due to its broad domain, composed of several aspects and ramifications, a cut was

made and the choice was to research a specific area of their occurrence, in which the legal

discourse of penal jurisdiction of grand jury outlines. This study essentially aimed to build a

speech to explain that specific strand, by means of evaluating: 1) aspects of its conditions of

utterance, 2) the argumentative orientation found in the various genres produced by the

subjects participating in a procedural relationship (Judge, prosecutor, defender, legal

assistants), 3) the interrelationship between these genres, and 4) social activities produced as

the final outcome of the proceedings. To develop this discussion, a short case was selected,

which consisted of a lawsuit filed by prosecutors against a woman accused of committing the

crime of self-induced abortion. Considering that the discourse of criminal procedure can only

be understood within the limits imposed by the institutional framework arisen from this

discourse production, the research hypothesis adopted was the observation that speech acts

define and designate genres, in addition to contributing to the argumentative orientation; each

subject procedure produces sets of genres in the performance of their professional activities;

several sets of genres articulate to form genre systems that, in turn, comprise a discursive field

and perform changes in social reality. The following methodological procedures were

adopted: first of all, the main subjects who worked in the process analyzed were identified, as

well as the sets of genres they employed in carrying out their tasks and how these sets are

entwined to form a system of activities. Then, important pleadings produced by the

prosecutor, lawyer and judges were analyzed. This analysis involved the discussion about

utterance conditions of each pleading. After that, the description of more representative

speech acts of such utterances was prepared by applying the postulates of the Speech Acts

Theory, with the explanation of the illocutionary point of the act, propositional content,

sincerity conditions and preparatory conditions. Finally, the attempted was to correlate the

illocutionary force of speech acts with the argumentative orientation of the statements, so as

to explain the relationship between language and action in the corpus.

Keywords: Legal discourse. Grand Jury. Performativity of language. Genres. Argumentation.

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RÉSUMÉ

Cette étude propose une réflexion autour du domaine du discours juridique et les

caractéristiques constitutives lui octroyant une conformation particulière dans le vaste

territoire des pratiques langagières. Compte tenu de l’étendu de ce champ, composé de

nombreux aspects et ramifications, on a effectué un découpage et choisi de se consacrer à une

partie spécifique de sa manifestation, celle où le discours judiciaire de la juridiction pénale de

la Cour d’Assises se produit. L'objectif envisagé à travers l’élaboration de cette étude était

essentiellement celui de construire un discours explicatif de ce courant et d’évaluer: 1) les

aspects relatifs à ses conditions d'énonciation ; 2) l'orientation argumentative trouvée dans les

différents genres produits par les sujets participant à une relation procédurale (Juge, Avocat

du Parquet, Procureur, Assistants de justice, entre autres), 3) la relation entre ces genres et 4)

les activités sociales découlant de la procédure. Pour développer cette réflexion, on a choisi

un cas d'interaction dans le milieu judiciaire, constitué d'un procès intenté par le Parquet

contre une femme accusée d’avoir commis le crime de l’auto-avortement. Estimant que la

dynamique dans laquelle le discours de la procédure pénale se construit ne peut être comprise

que dans les limites imposées par le cadre institutionnel dont cette production de discours

relève, on a adopté comme hypothèse de recherche l'observation selon laquelle les actes de

langage définissent et décrivent les genres discursifs et contribuent également, à leur

orientation argumentative; chaque sujet procédural, dans une situation d'interaction langagière

établie dans les limites d'une procédure judiciaire, produit des ensembles de genres dans

l'exercice de ses activités professionnelles qui s'assemblent pour former des systèmes de

genres qui, à leur tour, intègrent un champ discursif et effectuent des changements dans la

réalité sociale. On a adopté les procédures méthodologiques suivantes: d'abord, on a identifié

les principaux sujets qui ont agi dans le procès analysé ainsi que les divers ensembles de

genres utilisés dans l'accomplissement de leurs tâches et la manière dont ces ensembles se

sont entrelacés pour former un système d'activités. Ensuite, nous avons procédé à une analyse

ponctuelle des plus importants actes procéduraux produits par le Parquet (Avocat du

Parquet), par le défenseur (Avocat) et par les grandes instances (Juges et Juges du Tribunal).

Cette analyse a suscité la discussion sur les conditions d'énonciation de chaque pièce

procédurale. Après avoir délimité les conditions d'énonciation, on a réalisé la description des

actes de langage les plus représentatifs de tels prononcements, en appliquant les postulats de

la théorie des actes de langage révélant ainsi, lors de la réalisation de l'acte, le mode, les

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conditions de contenu propositionnel, les conditions préparatoires et les conditions de

sincérité. Enfin, on a corrélé la force illocutoire des actes de langage et l'orientation

argumentative des énoncés, afin d'expliquer la relation entre le langage et l'action dans le

corpus sélectionné.

Mots-clés: Le discours juridique. Cour d’Assise. La performativité du langage. Genres.

Argumentation.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Gêneros do discurso na retórica aristotélica.......................................... QUADRO 2 Tipologia de Argumentos...................................................................... QUADRO 3 Argumentos quase-lógicos.................................................................... QUADRO 4 Argumentos fundados sobre a estrutura do real................................... QUADRO 5 Argumentos que fundam a estrutura do real......................................... QUADRO 6 Hipótese explicativa do funcionamento do domínio discursivo jurídico........................................................................................................................ QUADRO 7 Conjunto de gêneros e atividades do Juiz de Direito............................ QUADRO 8 Conjunto de gêneros e atividades do Promotor de Justiça.................... QUADRO 9 Conjunto de gêneros e atividades do Defensor..................................... QUADRO 10 Esquema representando os principais atos e documentos produzidos no Processo/corpus..................................................................................................... QUADRO 11 Esquema representando as modalidades do Domínio Discursivo Jurídico....................................................................................................................... QUADRO 12 Esquema representando os atos e peças processuais selecionados para análises................................................................................................................ QUADRO 13 Componentes do ato de fala................................................................ QUADRO 14 Condições enunciativas do RIP........................................................... QUADRO 15 Componentes de um ato de fala no prólogo do RIP............................ QUADRO 16 Componentes de um ato de fala no desenvolvimento do RIP............. QUADRO 17 Componentes de um ato de fala no desfecho do RIP.......................... QUADRO 18 RIP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades............................ QUADRO 19 Condições enunciativas da Denúncia.................................................. QUADRO 20 Componentes de um ato de fala no prólogo da Denúncia................... QUADRO 21 Componentes de um ato de fala no desenvolvimento da Denúncia.....................................................................................................................

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QUADRO 22 Componentes de um ato de fala no desfecho da Denúncia................. QUADRO 23 Denúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades................... QUADRO 24 Condições enunciativas das Alegações Finais do Ministério Público........................................................................................................................ QUADRO 25 Componentes de um ato de fala no relatório das Alegações Finais do MP.......................................................................................................................... QUADRO 26 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 27 Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 28 Alegações Finais do MP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 29 Condições enunciativas das Alegações Finais da Defesa.................... QUADRO 30 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa.......................................................................................................... QUADRO 31 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa.......................................................................................................... QUADRO 32 Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 33 Alegações Finais da Defesa - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 34 Condições enunciativas da Sentença de Pronúncia............................. QUADRO 35 Componentes de um ato de fala no relatório da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 36 Componentes de um ato de fala no fundamento da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 37 Componentes de um ato de fala no dispositivo da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 38 Sentença de Pronúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 39 Condições enunciativas do Acórdão....................................................

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QUADRO 40 Discurso relatado no Acórdão.......................................................... QUADRO 41 Condições enunciativas do depoimento de R na Delegacia de Polícia......................................................................................................................... QUADRO 42 Condições enunciativas do interrogatório de R pelo Juiz de Direito... QUADRO 43 Condições enunciativas do depoimento de R diante do Conselho de Sentença...................................................................................................................... QUADRO 44 Condições enunciativas da Sentença terminativa................................ QUADRO 45 Componentes de um ato de fala assertivo na Sentença terminativa.... QUADRO 46 Componentes de um ato de fala declarativo na Sentença terminativa. QUADRO 47 Componentes de um ato de fala diretivo na Sentença terminativa......

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 2 A ARGUMENTAÇÃO EM PERSPECTIVAS ............................................................ 2.1 A arte retórica, o jogo dialético e a erística dos sofistas........................................... 2.2 A Nova Retórica: uma lógica dos juízos de valor..................................................... 2.3 A argumentação no discurso...................................................................................... 2.4 Percursos de uma teoria da argumentação na língua.............................................. 3 LINGUAGEM, AÇÃO E O CARÁTER INSTITUCIONAL DA ATIV IDADE DISCURSIVA ................................................................................................................... 3.1 Bourdieu e a sociologia dos campos........................................................................... 3.2 O contraponto discursivo à sociologia dos campos................................................... 3.3 A dimensão institucional do discurso jurídico.......................................................... 3.3.1 As relações entre os fatos institucionais no nível dos atos de fala........................... 3.3.2 As relações entre os fatos institucionais no nível dos gêneros discursivos............. 3.3.3 As relações entre os fatos institucionais no nível dos domínios discursivos organizados por sistemas de gêneros................................................................................. 3.4 O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional.......................................... 3.4.1 Os sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros............................................... 3.4.2 Os sistemas de gêneros.............................................................................................. 4 EM TORNO DO CORPUS: ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA... 4.1 Apresentação do corpus............................................................................................... 4.2 Critérios de seleção...................................................................................................... 4.3 Hipótese e Justificativa................................................................................................ 4.4 Objetivos....................................................................................................................... 4.4.1 Objetivo geral............................................................................................................. 4.4.2 Objetivos específicos...................................................................................................................................

4.5 A posição do discurso processual penal no domínio discursivo jurídico................ 4.6 Nota sobre o Tribunal do Júri.................................................................................... 4.7 Aborto: entre o “ser” e o “dever ser”........................................................................ 5 O PROCESSO PENAL EM UMA VISÃO SISTÊMICO- INSTITUCIONAL: UMA PROPOSTA TEÓRICO- METODOLÓGICA DE ABORDAGEM DO CORPUS............................................................................................................................. 5.1 Divisão metodológica do Processo.............................................................................. 5.2 Peças selecionadas para análise.................................................................................. 5.3 Categorias e procedimentos de análise......................................................................

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6 ANÁLISE DO CORPUS................................................................................................. 6.1 A Fase Policial.............................................................................................................. 6.1.1 O Relatório de Inquérito Policial.............................................................................. 6.1.1.1 Prólogo.................................................................................................................... 6.1.1.2 Desenvolvimento.................................................................................................... 6.1.1.3 Desfecho.................................................................................................................. 6.1.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.2 O Juízo Singular: da Denúncia à Sentença de Pronúncia....................................... 6.2.1 A Denúncia................................................................................................................ 6.2.1.1 Prólogo.................................................................................................................... 6.2.1.2 Desenvolvimento.................................................................................................... 6.2.1.3 Desfecho.................................................................................................................. 6.2.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.2 A Defesa Prévia.......................................................................................................... 6.2.3 As Alegações Finais do Ministério Público.............................................................. 6.2.3.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.3.2 Fundamento........................................................................................................... 6.2.3.3 Requerimento......................................................................................................... 6.2.3.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.4 As Alegações Finais da Defesa................................................................................. 6.2.4.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.4.2 Fundamento........................................................................................................... 6.2.4.3 Requerimento......................................................................................................... 6.2.4.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.5 A Sentença de Pronúncia.......................................................................................... 6.2.5.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.5.2 Fundamento............................................................................................................6.2.5.3 Dispositivo.............................................................................................................. 6.2.5.4 Considerações......................................................................................................... 6.3 Sequência típica executada após a Pronúncia: movimentos de uma rotina forense................................................................................................................................. 6.4 Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão)....................................6.4.1 O Acórdão...................................................................................................................6.4.1.1 A ementa............................................................................................................... 6.4.1.2 A súmula............................................................................................................... 6.4.1.3 O voto.................................................................................................................... 6.4.1.4 Análise argumentativa do Acórdão: quadro institucional, doxa, premissas.... 6.5 Preparação para a Sessão de Julgamento..................................................................6.6 A Sessão de Julgamento...............................................................................................6.6.1 Aborto, direito e justiça: considerações sobre orador, auditório, elementos dóxicos e provas do discurso, a partir do veredicto do Conselho de Sentença................. 6.6.1.1 O depoimento na Delegacia de Polícia................................................................. 6.6.1.2 O depoimento diante do Juiz de Direito.............................................................. 6.6.1.3 O depoimento diante do Conselho de Sentença..................................................

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6.6.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.7 A Sentença.................................................................................................................... 6.7.1 Considerações............................................................................................................ 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... REFERÊNCIAS................................................................................................................. APÊNDICES...................................................................................................................... ANEXOS.............................................................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho, elaborado segundo a perspectiva teórico-metodológica da linha de

pesquisa “Enunciação e Processos Discursivos”, propomos uma reflexão acerca do domínio

discursivo jurídico e de suas características constitutivas, as quais lhe outorgam uma

conformação particular no interior do vasto território das práticas de linguagem.

Como se trata de um domínio muito amplo, composto por inúmeras vertentes e

ramificações, optamos por trabalhar com uma área específica de sua ocorrência, na qual se

delineia o discurso judicial processual penal de competência do Tribunal do Júri.

A fim de concretizar essa reflexão, partimos do estudo de um caso de interação no

meio judiciário, para que, a partir das observações realizadas nessa situação particular,

pudéssemos construir hipóteses explicativas do funcionamento discursivo no Júri Popular. O

caso concreto a que nos referimos é um processo movido pelo Ministério Público em face de

uma mulher, sob a acusação de que ela teria praticado o crime de autoaborto.

Para a abordagem aqui intentada, nosso trabalho foi estruturado em três partes: a

primeira delas reservada à exposição das linhas teóricas adotadas; a segunda, voltada a

aspectos metodológicos de composição e abordagem do corpus e a terceira e última parte

destinada às análises.

Da primeira parte do trabalho, constam, assim, dois capítulos de natureza teórica: “A

Argumentação em Perspectivas” e “Linguagem, Ação e o Caráter Institucional da Atividade

Discursiva”.

Como nosso foco de análise está voltado para o funcionamento discursivo da

argumentação no domínio jurídico, elaboramos, em “A Argumentação em Perspectivas”, uma

resenha sobre os estudos desenvolvidos em torno dessa temática, reconstruindo os percursos

trilhados desde os primeiros tempos, no mundo clássico, até as pesquisas mais

contemporâneas no âmbito dos estudos linguísticos.

A abordagem dos modelos teóricos desde sua origem filosófica nos parece interessante

porque, no discurso judicial, o quadro argumentativo instaurado é tributário da dialética, na

medida em que se assemelha a um jogo, no qual dois oponentes – acusação e defesa – travam

uma disputa, segundo um sistema de regras rígidas e predeterminadas, com vistas a persuadir

o Juiz de Direito. A este último cabe a faculdade de dizer sobre o vencedor do conflito.

É também tributário da retórica, já que os oponentes não têm a pretensão de

demonstrar a verdade factual, mas apenas de reconstruí-la de modo que se torne verossímil

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perante o julgador. Para esse fim, utilizam-se de raciocínios e estratégias que também estão

sujeitos à coerção legal.

Apropriando-se, em maior ou menor extensão, dos fundamentos retóricos e dialéticos

da argumentação, as teorias contemporâneas seguem caminhos diversos, algumas mais

voltadas para o semantismo da língua, outras para o estudo das relações entre linguagem e

ação. Entre tais modelos, discorremos brevemente sobre a Teoria da Argumentação na

Língua, de Ducrot e seus colaboradores, a Pragma-Retórica, de Marcelo Dascal, e a Pragma-

Dialética, de van Eemerem e o grupo de Amsterdã.

No capítulo seguinte, ainda na parte dedicada à revisão teórica, tratamos da dimensão

institucional do discurso jurídico.

Ao iniciarmos as investigações sobre o domínio discursivo jurídico, especialmente na

modalidade “discurso judicial processual”, encontramos na literatura várias referências a seu

atributo de performatividade, com ênfase na propriedade de realizar ações pelo proferimento

de determinados enunciados, sob certas condições. Assim, para se executar um ato de fala

com força ilocucional capaz de realizar ações, aquele que o profere deve deter certa posição

institucional, ou autoridade reconhecida, em relação ao que diz e a quem diz, da mesma forma

que as circunstâncias discursivas devem ser adequadas para esse tipo de pronunciamento.

Especialmente em um discurso argumentativo, como é o caso de nosso corpus, a

performatividade da linguagem é construída paralelamente e em associação às estratégias

argumentativas.

Na tentativa de explicar como o discurso jurídico adquire o atributo de

performatividade, evidenciamos, neste capítulo, como as relações entre os fatos institucionais

travadas nesse domínio criam uma dinâmica discursiva peculiar. Essa dinâmica é observada

quando partimos do nível inferior de busca de consenso pragmático (composto pelos atos de

fala), passando pelos gêneros discursivos, até alcançar o nível superior, onde sistemas de

gêneros se articulam para a produção de fatos sociais.

Considerando que a interpretação dessa dinâmica poderia ser utilizada com fins

metodológicos, empreendemos uma primeira abordagem de nosso corpus, identificando os

principais sujeitos que atuaram no processo analisado, os conjuntos de gêneros que eles

empregaram no desempenho de suas atividades e a forma como esses conjuntos se

entrelaçaram para compor um sistema de atividades.

Na segunda parte do trabalho, foram dispostos dois capítulos de natureza

metodológica: “Em torno do corpus: aspectos metodológicos da pesquisa” e “O Processo

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Penal em uma visão sistêmico-institucional: uma proposta teórico-metodológica de

abordagem do corpus”.

O capítulo intitulado “Em torno do corpus: aspectos metodológicos da pesquisa” foi

elaborado com a finalidade de descrever o corpus e de explicitar os critérios empregados para

sua seleção; apresentar hipótese, justificativa e objetivos pretendidos; mostrar a posição

ocupada pelo discurso processual penal no interior do domínio discursivo jurídico e tecer

considerações sobre aborto e Tribunal do Júri no Brasil.

Adotamos como hipótese de pesquisa a observação de que os atos de fala definem e

designam os gêneros discursivos, além de contribuírem para sua orientação argumentativa;

cada sujeito processual, em uma situação de interação linguageira travada nos limites de um

processo judicial, produz conjuntos de gêneros no desempenho de suas atividades

profissionais; diversos conjuntos de gêneros se articulam para a formação de sistemas de

gêneros que, por sua vez, compõem um domínio discursivo e realizam alterações na realidade

social.

De maneira sintética, podemos dizer que essa pesquisa se justifica devido às próprias

características do discurso judicial, cuja natureza conflitual e problematizante faz com que a

produção discursiva engendrada nos tribunais seja um terreno fértil para os estudos

argumentativos. No Júri Popular, dada a tradição ritualística seguida pela instituição, essas

características são ainda mais evidentes. Como argumentar é, basicamente, agir sobre o outro

por intermédio da linguagem, parece produtivo relacionar a pesquisa sobre os quadros da

argumentação à investigação das condições para a ação discursiva.

O objetivo geral do trabalho é o de refletir sobre as características peculiares do

domínio discursivo jurídico, definindo sua situação no território das práticas de linguagem.

Como objetivos específicos, buscamos, entre outros: construir um discurso explicativo

do discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri, por meio da avaliação de aspectos

relativos a suas condições enunciativas e à orientação argumentativa encontrada nos diversos

gêneros produzidos pelos sujeitos que participam de uma relação processual, do inter-

relacionamento entre esses gêneros e das atividades sociais produzidas como resultado final

da tramitação de um processo; delimitar as condições enunciativas próprias de cada etapa

processual, assim como dos atos e proferimentos selecionados para análise; refletir sobre a

performatividade da linguagem no âmbito do discurso judicial processual penal; correlacionar

a força ilocucional dos atos de fala à orientação argumentativa dos proferimentos; analisar a

estrutura argumentativa dos gêneros que compõem o processo selecionado como corpus e

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discutir os conceitos de doxa, representações sociais, topoï e seus correlatos e sua função no

discurso argumentativo de natureza jurídica.

Por considerarmos que toda atividade discursiva é tributária dos quadros institucionais

e formais nos quais se desenvolve, também nos pareceu importante esclarecer qual a posição

ocupada pelo discurso processual penal, do qual nosso corpus é representante, no interior do

domínio discursivo jurídico. Nesse sentido, procedemos a uma descrição do funcionamento

do Júri Popular e da configuração que esta instituição assumiu, em nosso país, nos dias atuais.

Ainda nesse capítulo, direcionamos nosso olhar para a compreensão acerca de como o

aborto é encarado pela sociedade e encampado pelo direito pátrio, quando então observamos a

existência de contradições entre o universo do “ser” e do “dever ser”. Diante desse estado de

coisas, questionamos a razão de nosso ordenamento preconizar que se leve a julgamento, na

Tribuna Popular, um crime cuja ocorrência se dá na esfera mais íntima de um ser humano.

Caminhamos, assim, para a reflexão acerca do crime de aborto no Brasil, procurando

entender como os estereótipos circulantes, o imaginário social criado em torno da interrupção

voluntária da gravidez, a crença religiosa de que a vida humana é sagrada porque originária de

Deus, enfim, como essa forma de pensar, fundada na moral cristã, interferiu no julgamento

aqui analisado. Julgamento no qual uma mulher foi levada à tribuna pela suposta prática de

um procedimento realizado na esfera mais íntima de sua existência, ligado à disponibilidade

de seu corpo e do que nele se encerra, prática a respeito da qual não há consenso nem no

campo do direito, nem na moral e muito menos na religião.

No capítulo seguinte, “O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional: uma

proposta teórico-metodológica de abordagem do corpus”, procedemos, inicialmente, a uma

divisão metodológica do Processo em 7 etapas, levando em consideração as condições

enunciativas próprias de cada uma delas. A saber: Fase Policial, Juízo Singular (da Denúncia

à Decisão de Pronúncia); Sequência típica executada após a Pronúncia; Fase Recursal (do

Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão); Preparação para a Sessão de Julgamento; Sessão de

Julgamento e Sentença.

De cada uma dessas etapas, selecionamos para análise, segundo os critérios

explicitados no referido capítulo, peças e atos processuais que consideramos mais

representativos, como: o Relatório de Inquérito Policial; a Denúncia; as Alegações Finais do

Ministério Público; as Alegações Finais da Defesa; a Sentença de Pronúncia; a sequência de

carimbos para publicidade da Sentença de Pronúncia; o Acórdão; o depoimento prestado pela

ré na sessão de julgamento (em contraposição aos depoimentos que ela prestou em outras

fases do processo) e, finalmente, a Sentença que extinguiu o feito.

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As categorias de análise foram aquelas retiradas das teorias de argumentação

apresentadas no capítulo teórico, atos de fala e gêneros, além de outras que se fizeram

necessárias e foram explicitadas ao longo das análises. Dessa forma, é sob uma perspectiva

discursiva, aliada a contribuições da Teoria dos Atos de Fala e dos gêneros como forma de

interação social, que se insere a proposta teórico-metodológica de abordagem de nosso

corpus.

Na última parte do trabalho, intitulada “Análises”, submetemos as peças selecionadas

à investigação, aplicando a elas as categorias já mencionadas. O objetivo buscado nessa fase

de nosso trabalho era o de revelar as características linguístico-discursivas de cada peça

processual, sobretudo no que respeita às condições enunciativas do proferimento, às

estratégias argumentativas desenvolvidas por seu produtor e à função desempenhada por ela

no sistema de atividades que é o Processo Penal.

Por último, nas “Considerações finais”, registramos uma reflexão geral acerca das

análises desenvolvidas ao longo deste estudo, lembrando que, com vistas a traçarmos

conclusões mais amplas e confiáveis sobre o domínio discursivo jurídico, buscamos articular

os dados linguísticos aos conhecimentos provenientes da literatura jurídica, apoiando-nos,

para isso, em autores do campo do Direito, como Ferraz Jr. (1997), Mirabete (2001) e Bittar

(2009), entre outros.

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2 A ARGUMENTAÇÃO EM PERSPECTIVAS

Em nosso trabalho, propomo-nos a elaborar uma delimitação linguístico-discursiva do

domínio discursivo jurídico. Para isso, selecionamos como um de nossos objetos de

investigação a estrutura argumentativa dos proferimentos produzidos ao longo do processo

judicial ora assumido como corpus. Torna-se necessário, então, estabelecer o que se entenderá

por argumentação nos limites de nosso texto. Entretanto, este é um campo aberto, vasto e

complexo, sujeito aos influxos de uma multiplicidade de disciplinas, o que faz dessa

necessidade de posicionamento uma tarefa árdua para o pesquisador.

Iniciando nossa reflexão a partir da dimensão filosófica do termo, acreditamos que

seja útil apresentar uma primeira distinção entre duas categorias que se assemelham, sem se

confundir, e a partir dessa particularização, podemos extrair consequências importantes para a

compreensão da atividade de argumentar.

Filiados a uma concepção retórica, encontramos uma oposição constitutiva entre

argumentação e demonstração: esta está para a lógica, assim como aquela está para a retórica

e a dialética.

A lógica, conforme Plantin (2002), é a ciência da transferência correta da verdade de

enunciado a enunciado. Enquanto a demonstração se materializa à imagem de um cálculo

matemático, onde uma premissa verdadeira é relacionada a outra premissa verdadeira e, ao

final, chega-se a uma conclusão igualmente verdadeira, a argumentação, por sua própria

natureza, rompe com essa estrutura de raciocínio e opera uma abertura nesse circuito fechado

à influência do social.

Na argumentação, uma premissa verossímil, relacionada a outras premissas

verossímeis, permite que se chegue a uma conclusão também verossímil. O critério de

verossimilhança é subjetivo, de forma que seu preenchimento demanda a avaliação da

qualidade das premissas pelo público almejado. Decorre desse critério a diferença

fundamental entre as duas categorias: a argumentação se realiza em função de um público,

que tem o poder de decidir sobre o que é verossímil ou não. A demonstração é o que é, por

isso prescinde da adesão de um auditório. Em tese, ela porta em si mesma a verdade.

O sucesso de uma argumentação, portanto, está atrelado à opinião do outro. Por isso, é

preciso que o locutor disponha de premissas fortes e que saiba gerenciar técnicas linguageiras

que lhe possibilitem alcançar a razão e os sentimentos de seu público, o que se traduz pelo

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conceito de persuasão. A lógica não se importa em persuadir, mas para a argumentação, essa é

matriz de todo o processo.

Assumimos, assim, a hipótese de que todo ato de argumentar parte de premissas

verossímeis e chega a conclusões verossímeis, ou seja, o que parece mais razoável para atingir

um auditório. Para essa finalidade, os oradores administram um repertório de técnicas e

estratégias mais ou menos racionais, sem jamais prescindir, contudo, do elemento emocional.

Mesmo nesse espaço flexível, existem princípios e regras a serem observados e qualquer

forma de violação implica a desqualificação do orador e até mesmo da própria argumentação.

Estabelecida essa primeira distinção, ainda há muito o que se pontuar acerca desse

processo de gerenciamento de técnicas linguageiras a fim de se promover a persuasão de um

auditório, assim como a respeito da situação em que esse processo tem lugar.

O ato de argumentar encontra espaço em todos os lugares onde exista a abertura para a

dúvida e para o conflito, onde não se disponha de uma verdade definitiva acerca de um dado.

Essa abertura faz com que a argumentação seja do interesse de diversas áreas do

conhecimento humano, como o Direito, a Sociologia, a Filosofia e as Ciências da Linguagem,

embora apenas recentemente tenha alcançado o estatuto de objeto legítimo de investigação

nesse último domínio.

De acordo com Plantin (2002), deve-se a Ducrot e seus colaboradores1, a retomada do

interesse pelos estudos da argumentação, a partir dos anos de 1970, em um momento em que

as Ciências da Linguagem ainda experimentavam a influência do estruturalismo de Saussure,

mesmo que de forma já bastante mitigada. Ao privilegiar o estudo da língua como um

sistema, essa perspectiva implicava que o uso fosse excluído do campo da investigação

científica. Amossy (2005b) relata que, na medida em que a utilização da linguagem em

contexto não podia ser objeto de uma pesquisa legítima, a dimensão retórica escapava

necessariamente ao trabalho dos linguistas.

A argumentação retórica só retorna à cena de forma indireta, através dos estudos da

filosofia analítica anglo-saxônica, quando então se consolida uma tendência de se estudar não

somente o sistema da língua, mas também o enunciado em contexto. Atribui-se a Austin

(1970) o mérito de conceber a noção de ato ilocucional, onde uma ação é atrelada a uma

palavra, e de ato perlocucional, que consiste em produzir um efeito sobre aquele a quem se

dirige. Essa concepção de linguagem como ato dotado de uma força permite a retomada de

uma tradição retórica secular cujo interesse estava perdido. Em torno dessa concepção de

1 Entre eles, podem ser citados Jean-Claude Anscombre, Marion Carel e P. Racah.

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Austin de que o dizer implica um fazer, desenvolveu-se a Pragmática, a qual designa menos

uma disciplina precisa que um modo de apreensão da linguagem.

No momento em que se iniciava essa revitalização nos estudos da argumentação, a

Análise do Discurso estava voltada para questões políticas e ideológicas, na esteira de

trabalhos propostos por pensadores como Althusser, Deleuze, Foucault, Lacan e Pêcheux.

Plantin (2002) esclarece que a Análise do Discurso preconizada nessa época instala a política

na teoria do discurso, considerando que as noções de sujeito, de sentido, de escolha e de

intenção, fundamentais para a retórica aristotélica assim como para a Nova Retórica de

Perelman, eram consideradas excessivamente tradicionais, conservadoras, reacionárias, por

derivarem de uma visão de mundo clássica. A rejeição a essas noções constituía, portanto, um

ato político fundador.

Partindo das considerações filosóficas a respeito da argumentação e aliando-as aos

elementos próprios das Ciências da Linguagem, as teorias da argumentação propostas desde

então, que não são poucas, desenvolveram seus fundamentos e implicações, cada qual

elegendo pontos de interesse específicos e trabalhando com orientações diferentes,

apropriando-se do conhecimento legado pelos clássicos e criando ramificações que podem,

em graus diferentes, contribuir para o entendimento da argumentação no seu sentido mais

amplo.

Como as teorias da argumentação são muitas e têm trajetórias longas, optamos por

apresentar em nosso trabalho uma síntese programática de algumas delas, as quais

acreditamos que serão de grande utilidade para a consecução dos objetivos aqui propostos de

caracterização do domínio discursivo jurídico, começando por um breve relato sobre a

dimensão filosófica da argumentação, representada pela retórica, pela dialética e pela erística,

pois em maior ou menor extensão, todas as teorias posteriores apropriaram-se dos preceitos

clássicos.

Discorremos, em seguida, sobre a Nova Retórica, de Perelman, que ao retornar à

tradição clássica e recuperar fundamentos da retórica e da dialética, elabora um trabalho novo,

grandioso, de importância inquestionável para o pesquisador que se propõe a analisar um

discurso de natureza jurídica.

Na sequência, apresentamos o trabalho de Ruth Amossy, cujos esforços têm sido

direcionados no sentido de propor uma articulação dos postulados da Nova Retórica aos

instrumentos de uma análise linguística de viés discursivo, com avanços consideráveis para as

pesquisas em argumentação.

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Como contraponto ao modelo de procedência perelmaniana, partimos para a Teoria da

Argumentação na Língua, de Ducrot, para mostrar a originalidade de um modelo construído à

deriva da tradição retórica, que se propõe a explicar a argumentação no interior de um sistema

do qual se pretende excluir qualquer referência extralinguística.

A exposição dessas teorias não obedece, necessariamente, a um critério cronológico,

pois sua principal finalidade é a de evidenciar, em cada um dos modelos selecionados, os

fundamentos retóricos, dialéticos, semânticos e pragmáticos da argumentação. Esclarecemos,

também, que a preferência pela exposição dessas teorias não significa, contudo, que deixamos

de considerar a importância de outras formulações, ou mesmo de autores que têm se dedicado

ao estudo da argumentação. Trata-se apenas de uma opção metodológica.

Assim, reconhecemos a importância, por exemplo, da obra de Toulmin (1993) que,

paralelamente a Perelman, nos final dos anos de 1950, propõe um modelo dedicado ao estudo

da argumentação sob uma perspectiva pragmática, orientada para sua descrição na prática

jurídica.

Bem mais contemporaneamente, no âmbito dos estudos da vertente francesa de

Análise do Discurso, Charaudeau (1992) desenvolve um modelo em que a argumentação é

compreendida como um modo de organização do discurso, assim como os modos descritivo,

narrativo e enunciativo. Identifica-se uma semelhança entre esse modelo e o de Perelman no

que diz respeito ao quadro em que se instala a argumentação, que é sempre conflitual,

portanto, na linha da retórica do conflito.

Lembramos também os modelos de inspiração lógica, como a Lógica Informal,

desenvolvida a partir da década de 70, na América do Norte. Contrariamente à lógica

matemática, essa corrente tem por objeto os raciocínios desenvolvidos em situações reais da

vida cotidiana, com a preocupação de elaborar instrumentos capazes não apenas de descrever

os tipos de argumentos, mas de avaliá-los conforme um critério racional. O modelo adquire,

assim, contornos de uma teoria normativista da argumentação, ao propor que os indivíduos

adotem uma atitude crítica frente aos argumentos – o critical thinking (AMOSSY, 2006).

Nesse empreendimento normativista, a Lógica Informal parte para o estudo dos paralogismos,

que são considerados violações às normas de um diálogo racional.

No final dos anos de 1960, Grize se filia a esse movimento de contestação à lógica

formal e propõe a construção de uma abordagem da argumentação conhecida como Lógica

Natural, que se afasta do modelo anteriormente citado por não adotar a perspectiva

normativista.

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Também influenciados pelos axiomas do critical thinking, van Eemeren, Grootendorst

e o grupo de Amsterdã lançaram as bases de uma teoria – a Pragma-Dialética – que prega o

debate racional como forma de solução de conflitos. A racionalidade, nesse sentido, implica

que os participantes da relação discursiva realizem intervenções em conformidade com um

sistema de regras compartilhadas entre eles. Nesse território, a argumentação é postulada

como uma atividade verbal e social da razão, constituída como um processo dialógico de

resolução de conflitos. Seu objetivo é fazer com que um auditório aceite uma posição

controversa como válida, oferecendo, para isso, um amplo arsenal de proposições destinadas a

justificar, ou refutar, esta posição diante de um juiz racional.

Da dialética, os pragma-dialeticistas recuperaram a figura da interação verbal como

um jogo especulativo, no qual um participante sustenta uma tese e outro a ataca com todos os

argumentos possíveis, sendo considerado vencedor aquele que conduzir o adversário ao

silêncio. Da pragmática, apropriaram-se das contribuições da Teoria dos Atos de Fala, ao

assumirem a concepção de que o dizer pode constituir um fazer. Segundo Amossy (2006),

eles tomaram para si a noção de força ilocucional, que designa ações como prometer, acusar,

interrogar, etc. Em decorrência, postulam que a argumentação consiste em um ato de

linguagem complexo, que se expande sobre um conjunto de enunciados e engloba os atos de

fala elementares em função da comunicação, sendo que a análise da construção e do emprego

desse ato se dá em um quadro de diálogo, destinado a resolver os conflitos de opinião.

A fim de descrever as condições que possibilitam o jogo do diálogo racional, os

criadores da Pragma-Dialética estatuem uma espécie de “contrato de argumentação”, no qual

está prevista uma série de regras a serem observadas pelos participantes da interação verbal,

sendo que qualquer transgressão a elas corresponde a impedir que a verdade ética da troca

argumentativa se estabeleça.

As regras a serem observadas são as seguintes: os participantes não devem opor

obstáculo à expressão ou ao questionamento de pontos de vista; toda parte que expõe uma tese

é obrigada a defendê-la, se seu adversário assim solicita; a crítica a uma tese deve se restringir

estritamente a seus limites; uma tese somente pode ser defendida por meio de argumentos

relativos a ela; uma pessoa pode defender uma tese mediante premissas implicitamente

reservadas; considera-se que uma tese é defendida de maneira condizente quando são

empregados argumentos oriundos de um ponto de vista comum; considera-se que uma tese foi

sustentada de maneira conclusiva se a defesa ocorre por meio de argumentos pelos quais um

esquema de argumentação comumente aceito encontra sua aplicação concreta; os argumentos

usados em um debate devem ser válidos ou sujeitos à validação pela explicitação de uma ou

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várias das premissas implícitas; o fracasso de uma sustentação implica que seu protagonista

retire sua tese e, finalmente, os enunciados não devem ser vagos, incompreensíveis, confusos

ou ambíguos.

De outra parte, interessado na relação entre linguagem e ação, Dascal constrói a Teoria

conhecida como Pragma-Retórica: uma teoria calcada em princípios retóricos, complementada

por elementos de pragmática, especialmente da versão conversacional de Grice (1976),

abrangendo em seus domínios o ethos e o pathos sob uma perspectiva argumentativo-

cognitiva. Com isso, no ponto de vista do autor, a retórica ganharia status de teoria cognitiva

coerente, ao receber contribuições da pragmática e da psicologia cognitiva, ao passo que a

pragmática se beneficiaria com uma ampliação de sua abrangência explicativa, que agora daria

conta de lidar com interações de cunho mais persuasivo do que apenas informativo. Essa

função explicativa incluiria em seu conteúdo o estilo e a organização referentes às relações

interativas, assim como os aspectos concernentes às emoções dos ouvintes e ao caráter dos

falantes.

Uma contribuição importante de Dascal (2005) para os estudos da argumentação no

discurso é a concepção de um ethos que comporta duas dimensões, uma tematizada e outra

projetada. Nesse sentido, a construção das imagens de si no discurso se realiza em dois níveis

distintos: em um primeiro nível, mais superficial, em que aparece o ethos tematizado, no qual o

enunciador faz uma demonstração explícita de seu caráter (conteúdo declarado das

proposições) e, em um nível mais profundo, o ethos projetado pelo comportamento discursivo

do enunciador (conteúdo implícito das proposições), que produz influências sobre a opinião

que os ouvintes guardam acerca da validade de seus argumentos.

Há ainda os pesquisadores que se dedicam aos fundamentos da argumentação, sem

construir, contudo, um modelo ou um corpo teórico no sentido a que nos referimos até esse

momento, mas que muito têm contribuído para o avanço dos estudos da argumentação. Entre

eles, podemos citar Meyer, Breton, Chabrol, Doury, Plantin, Moeschler, Eggs, entre outros.

Na sequência, iniciamos nosso movimento de retorno às origens.

2.1 A arte retórica, o jogo dialético e a erística dos sofistas

O nascimento da retórica é tradicionalmente atribuído ao siciliano Córax e remonta ao

século V a.C., a um período histórico caracterizado pela transição de um governo tirânico para

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um regime democrático. Nesse período, inúmeros conflitos judiciários foram travados por

cidadãos que, despojados de seus bens pela tirania, recorriam à justiça na tentativa de reavê-

los. Contudo, não se conhecia a figura do profissional da advocacia como se conhece nos dias

atuais, de forma que os cidadãos que buscassem a solução de seus conflitos no judiciário,

deveriam providenciar por si mesmos a sustentação de suas teses.

Atentos a essa crescente necessidade prática de elaboração discursiva, Córax e seu

discípulo Tísias, por volta de 465 a.C., lançaram o primeiro tratado metódico sobre a arte da

palavra – um manual que apresentava, de forma didática, lições de como bem sustentar uma

tese em juízo, com vistas a vencer qualquer demanda.

Nesse momento, a retórica, entendida como a arte de persuadir, adquiria cada vez mais

prestígio, pois existia uma crença de que aquele que dominasse suas técnicas seria capaz de

convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Portanto, naquele contexto judiciário, a praxis

indicava que a causa vencedora em um conflito judicial não tinha que ser necessariamente a

mais justa, mas com certeza, a mais eficientemente sustentada em juízo, o que permite a

observação de que a retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas do verossímil.

Da Sicília, então dominada pelos gregos, a retórica migrou para Atenas e lá encontrou

terreno fértil para o desenvolvimento de seus postulados, com o florescimento da polis grega,

onde as decisões políticas eram tomadas mediante ampla participação popular, em debates

coletivos organizados para que as pessoas pudessem exercer seu direito de livre opinião e

expressão, no interior de um quadro institucional dotado de leis.

Considerando esse contexto em que nasceu e se desenvolveu a retórica, torna-se

plenamente compreensível o realce que os pesquisadores dão a seu caráter sociocultural de

instrumento prático de exercício da cidadania que, segundo Amossy (2006), permitia tanto a

boa marcha da justiça, pelo manuseio da controvérsia, como o bom funcionamento da

democracia, pela prática da palavra pública.

Paralelamente à retórica, desenvolveu-se também na Antiguidade clássica o programa

conhecido como erística dos sofistas. Nesse domínio, a persuasão do outro pela linguagem é

um alvo a ser alcançado a qualquer custo. Percebe-se, assim, uma semelhança entre retórica e

sofística no que diz respeito aos objetivos pretendidos, mas o repertório de estratégias

permitidas por esta última é bem mais amplo. Ambas têm em comum a utilização de técnicas

discursivas com vistas à persuasão, mas o campo de atuação da Sofística para a consecução

desses fins é bem mais maleável e dispensa qualquer compromisso com a verossimilhança.

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“Mercenários da palavra”, quando se tratava de conquistar o assentimento do outro a

uma determinada tese, os sofistas colocavam em cena todo o seu arsenal de técnicas

persuasivas, sem a preocupação de buscar um fundamento racional para as coisas.

Assim, para vencer um debate e deixar o alocutário sem réplica, o discurso elaborado

por um locutor sofista não precisava ser verdadeiro e nem mesmo verossímil, só tinha que ser

eficaz. Essa busca da vitória a qualquer custo, desvinculada de um ideal de verdade, rendeu

inúmeras críticas aos sofistas desde sempre, mas, segundo Reboul (2004), não se pode deixar

de reconhecer as contribuições filosóficas que essa forma de pensar legou paras os modelos de

análise argumentativa desenvolvidos posteriormente.

Nesse sentido, atribui-se à erística dos sofistas a concepção de que a verdade não passa

de um acordo entre interlocutores: acordo final, que resulta da discussão e, ao mesmo tempo,

acordo inicial, sem o qual a discussão não seria possível. Para Emediato (2001), os sofistas

foram hábeis em extrair do discurso toda sua potencialidade, pela exploração da dimensão

polissêmica das palavras e da instrumentalização da linguagem para os fins de persuasão.

No que diz respeito à opinião de Platão, a retórica não gozava de maior prestígio que a

erística. Para ele, a retórica não passava de uma manipulação desenfreada e imoral das

técnicas argumentativas com o intuito de subverter a verdade absoluta e universal que existe a

respeito de cada coisa. Platão acreditava que, enquanto técnica instrumental de conteúdo

impreciso, ela poderia ser usada indiferentemente para atingir objetivos sublimes ou nefastos.

Assim, dialética e retórica são consideradas formas opostas de persuasão. A dialética, mais

nobre, é definida como um diálogo em que dois participantes buscam a verdade, com

intervenções breves. A retórica, esvaziada aqui de qualquer importância teórica, consiste em

mera prática mundana, cujo intuito é divertir e agradar ao povo, utilizando o discurso contínuo

onde é fácil a dispersão.

É interessante observar que a dialética nem sempre desempenhou o nobre papel de

“raciocínio a favor da filosofia e da ciência”. Reboul (2004) relata que a primeira dialética foi

justamente a erística dos sofistas, considerada uma arte da controvérsia que permitia o triunfo

até mesmo do absurdo ou do falso. Essa concepção de dialética a serviço do verdadeiro deve-

se a Sócrates e a Platão, que a transformaram no próprio método da filosofia.

Para Aristóteles, a dialética não está a serviço nem do verdadeiro nem do falso, mas

sim do provável, e é isso que a diferencia da demonstração filosófica e científica. Ela é

simplesmente um jogo, cuja finalidade é vencer. Contudo, esse jogo deve ser jogado

respeitando-se estritamente as regras da lógica. Sejam as premissas certas, prováveis ou falsas,

o raciocínio deve ser correto. Essa é a pedra angular que a diferencia da erística dos sofistas.

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Com essa hipótese, Aristóteles divergiu de seu mestre Platão que, segundo Reboul

(2004), exaltava a dialética e desprezava a retórica. Na filosofia aristotélica, uma e outra estão

em um mesmo plano. Ambas são capazes tanto de provar uma tese quanto o seu contrário;

ambas são universais, no sentido de não serem ciências, mas técnicas que buscam identificar o

que cada caso tem de persuasivo; ao contrário da erística dos sofistas, as duas são capazes de

fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente (a dialética entre silogismo

verdadeiro/sofisma e a retórica entre o realmente persuasivo/logro); por fim, tanto uma quanto

a outra utilizam dois tipos idênticos de raciocínio argumentativo, que são a indução e a

dedução.

As afinidades entre as duas técnicas são tantas e tão decisivas que quase nos fazem

crer que se trata de uma só disciplina. Contudo, Reboul esclarece que a retórica é uma

aplicação da dialética:

Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é apenas um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. (REBOUL, 2004, p. 39).

Além do esforço de reabilitação da retórica, atribui-se ainda a Aristóteles a

sistematização dos estudos sobre os meios de persuasão, na Antiguidade, em quatro

dimensões argumentativas: a Demonstração, a Retórica, a Sofística e a Dialética. A “Arte

Retórica” é apenas uma parte dos estudos sobre a argumentação. Em suma, tanto a retórica

quanto a dialética são para Aristóteles faculdades de fornecer argumentos e não há

subordinação de uma em relação à outra. A Sofística é definitivamente relegada a plano

inferior (MENEZES, 2004).

Afirma-se que, durante a Idade Média, a retórica novamente perde o status adquirido

pela decodificação de Aristóteles, o que encontraria justificativa na moral cristã em vigor no

mundo medieval, que pregava um conceito absoluto de verdade. Para Reboul (2004),

contudo, a retórica desenvolveu-se durante todo esse período, tanto na literatura profana como

na pregação da Igreja, embora tenha se verificado um declínio no que respeita ao discurso

deliberativo. Autores como São Jerônimo (340-420), Santo Agostinho (354-430) e Isidoro de

Sevilha (560-636) podem ser citados como expoentes da retórica medieval.

Mudanças fundamentais ocorrem no interior do programa retórico com o advento da

Idade Moderna. Sob o impulso da racionalidade científica, promoveu-se uma cisão entre

dialética, cujo raciocínio foi plenamente identificado com o cientificismo em voga, e retórica,

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agora esvaziada da concepção de discurso com vistas a persuadir, para reduzir-se ao estudo

dos meios de expressão ornados e agradáveis da Poética, como explicamos a seguir.

Ocorre que, na antiguidade clássica, a retórica é decomposta em quatro partes, pelas

quais se acreditava que um sujeito passasse ao longo de seu esforço de construção de um

discurso, a saber: invenção, disposição, elocução e ação.

A “invenção” engloba a concepção inicial do discurso, com a pesquisa acerca do

conteúdo e dos argumentos relativos ao tema trabalhado. A atividade de “disposição” consiste

em organizar as matérias do discurso, para estruturar seu conteúdo de acordo com um roteiro

objetivo e preciso. A “elocução” refere-se à preocupação com o estilo do discurso, manifesta

pela busca de adequação entre as palavras e os pensamentos do locutor. Nessa parte, incluem-

se as figuras de estilo. Por fim, a “ação” constitui a passagem do pensamento ao exercício da

palavra pública, com o ajuste da voz e da postura corporal.

Amossy (2006) esclarece que a referida cisão entre retórica e dialética acarretou ao

pensamento retórico a perda progressiva da invenção e da disposição, revertidas à conta da

lógica. A organização que sustenta os raciocínios e os lugares comuns dos quais eles se

nutrem, foram transportados do domínio da retórica para o da dialética. A elocução, por seu

turno, perdeu grande parte de sua relevância, como consequência do espaço menor ocupado

pela palavra oral na sociedade contemporânea. Assim, o que era uma arte da palavra eficaz

transformou-se em um tratado sobre figuras de estilo, especialmente a metáfora e a

metonímia.

No século XVII, Descartes lança a concepção de dúvida metódica, segundo a qual se

considera falso tudo o que não é verdadeiro, incluído aí o verossímil, de onde parte o

raciocínio retórico. Posteriormente, o positivismo, seguindo a esteira de Descartes, condenou

a retórica em nome da verdade científica, enquanto o romantismo a rejeitou em nome da

sinceridade. Nesse mundo dominado pelo racionalismo, não havia lugar para uma forma de

raciocínio assentada no provável, em prejuízo do certo e do verdadeiro. Em vez de ocupar-se

com a retórica e com opiniões enganadoras, acreditava-se que seria mais proveitoso para o

homem buscar o conhecimento da verdade, com amparo na filosofia de cunho racional.

A partir daí, a retórica viveu um período de esquecimento quase completo, para ser

novamente recuperada somente a partir dos anos de 1960, juntamente com o desenvolvimento

dos meios de comunicação de massa e a consolidação dos Estados democráticos.

Na atualidade, confirma-se esse movimento de revitalização dos estudos retóricos, já

que seus postulados encontram-se em perfeita consonância com o mundo contemporâneo, por

situarem-se no terreno da controvérsia, do debate, do verossímil e do opinável. De acordo com

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Mosca (2001), seus mais legítimos representantes são, hoje em dia, os discursos jurídico,

político e publicitário, na medida em que mobilizam mais intensamente os recursos previstos

pelas possibilidades do sistema retórico.

Apreendido o sentido ao qual a palavra “retórica” nos reporta, restam algumas

considerações a respeito de três questões pontuais que merecem atenção especial: a primeira

delas diz respeito à dimensão linguageira da retórica aristotélica; a segunda, ao conceito de

topoï para Aristóteles e, por último, as relações entre auditório e gêneros oratórios.

Em primeiro lugar, como se afirmou, a Retórica concebe a argumentação como o ato

de destinar a palavra a um auditório, submetendo a ele teses não necessariamente verdadeiras,

mas verossímeis e razoáveis. Segundo Amossy (2006), essa característica da retórica se

justifica porque interessa a ela o que faz parte do humano, não da lógica, e o que resulta do

homem é sempre da ordem do verossímil, do opinável, do plausível, raramente pertence à

verdade demonstrável ou demonstrada.

Nesse território, onde a verdade absoluta não pode ser garantida, a retórica encontra

seu lugar, permitindo ao homem desenvolver raciocínios e comunicar-se com segurança

relativa, garantida por normas mínimas de racionalidade. Por isso, ela é exercitada em todos

os domínios onde se delibera com liberdade para se chegar a uma decisão, não com

fundamento em uma verdade absoluta, mas sobre o que é razoável.

Amossy (2006) afirma que, da própria delimitação do objeto da retórica clássica,

sobreleva sua dimensão linguageira: trata-se de um discurso que só tem razão de existir no

interior de um processo de interação, onde um locutor se amolda à imagem do alocutário, a

fim de agir sobre o seu espírito. Portanto, Aristóteles já postulava o dizer como fazer, muito

antes do advento da Pragmática.

Trata-se, ainda, de uma atividade verbal que mobiliza técnicas e estratégias para

atingir seus fins de persuasão, por acreditar na capacidade de raciocínio do auditório, tanto

que, em grego, a palavra logos designa “razão”. Em Aristóteles, o logos repousa

essencialmente sobre duas operações que são, respectivamente, o entimema, ou silogismo

oratório, e o exemplo, ou indução oratória. O primeiro é um silogismo incompleto, defeituoso,

que procede da dedução. O exemplo repousa sobre uma analogia e procede da indução, que

opera da passagem do particular ao geral.

Entretanto, não se pode perder de vistas que o logos não é para Aristóteles mais que

um dos polos da empresa de persuasão retórica: o logos (apelo à razão por meio dos

argumentos), juntamente com o pathos (procedimentos que visam a suscitar as paixões do

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auditório) e o ethos (caráter moral que o orador deve apresentar no próprio discurso), compõe

uma tríade probatória fundamental.

Lembramos que, para Aristóteles, “as provas de persuasão fornecidas pelo discurso

são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras no modo como se

dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece

demonstrar.” (ARISTÓTELES, 1998, p. 105).

Outra questão relevante é a do papel ocupado pelos topoï nos estudos aristotélicos. A

retórica clássica reconhece na palavra uma força capaz de fazer os homens mudarem seus

pontos de vista por meios não coercitivos, durante uma interação verbal, na qual se recorre

apenas a instrumentos linguageiros. Para Aristóteles, essa ação de um homem sobre a vontade

do outro só é possível graças à incidência de topoï, ou seja, para garantir a adesão do

alocutário às opiniões que lhe são apresentadas, o locutor se apoia em topoï como porto

seguro de seu projeto de persuasão, na medida em que é mais fácil angariar a concordância do

outro quando se parte de um esquema previamente admitido por ele, sobre o qual é possível

fundar um acordo.

A posição ocupada pelo conceito de auditório na retórica clássica também é um ponto

a ser sublinhado. Perelman (1987) observa que Aristóteles classifica os discursos em três

grandes gêneros oratórios, a saber, o deliberativo, o judiciário e o epidíctico, de acordo com as

funções que os auditores têm de desempenhar em cada um deles: deliberar, julgar ou

simplesmente usufruir, como espectador, do desenvolvimento oratório.

Retomaremos esta questão dos gêneros em outro momento de nosso trabalho, mas a

fim de apresentar sinteticamente a concepção que Aristóteles desenvolveu sobre o assunto,

apresentamos um quadro adaptado de Reboul (2004), no qual estão relacionados os tipos de

auditório a que se dirigem os gêneros de discurso, o tempo a que se referem, os atos

praticados por seu intermédio, os valores que lhes servem como norma, os raciocínios e os

topoï desenvolvidos predominantemente em cada um:

OS TRÊS GÊNEROS DO DISCURSO

Gênero Auditório Tempo Ato Valores Argumento-tipo Topoï

Judiciário Juízes Passado Acusar

Defender Justo

Injusto Entimema (dedutivo)

Real Irreal

Deliberativo Assembleia Futuro Aconselhar

Desaconselhar Útil

Nocivo Exemplo (indutivo)

Possível Impossível

Epidíctico Espectador Presente Louvar

Censurar Nobre/vil Belo/feio Amplificação

Mais Menos

Quadro 1: Gêneros do discurso na retórica aristotélica Fonte: Elaborado pela autora a partir de Reboul (2004)

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Estabelecidas as bases sobre as quais se desenvolveu o estudo da argumentação na

Antiguidade clássica, partimos agora para a exposição do legatário mais ilustre,

contemporaneamente, de toda essa tradição filosófica: Chaïm Perelman.

2.2 A Nova Retórica: uma lógica dos juízos de valor

Em 1958, Perelman publica, juntamente com Olbrechts-Tyteca, uma compilação dos

estudos que vinha desenvolvendo acerca das técnicas discursivas empregadas a fim de se

promover, ou reforçar, a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas. Esses

estudos, elaborados no âmbito da Escola de Bruxelas, representaram uma tentativa de

recuperação dos postulados da retórica e da dialética para a análise argumentativa, ao mesmo

tempo em que se constituíram como forma de oposição à concepção cartesiana de razão e de

raciocínio.

A denominação Nova Retórica atribuída por Perelman a sua teoria da argumentação,

além de homenagear a tradição clássica em que foi inspirada, mostra a preocupação do autor

em deixar clara a aproximação existente entre sua nova teoria e a retórica aristotélica, onde

buscou matéria prima para a criação de seus postulados. A preferência por esse título também

pode ser explicada em virtude do caráter essencialmente dialógico da teoria perelmaniana,

presente ao longo de toda sua obra, onde ganham relevo o papel constitutivo do alocutário na

situação de interação verbal e a tipologia de auditórios.

Por outro lado, poderia se questionar porque não empregar a denominação Nova

Dialética, se boa parte do conteúdo da Nova Retórica concerne às provas que Aristóteles

chama de dialéticas (Tópicos) e, por esse motivo, aparentemente, houvesse uma maior

aproximação do novo modelo à dialética. O uso da terminologia dialética, contudo, poderia

acarretar confusões, devido aos vários significados que foram adicionados a esse termo no

decorrer do tempo. O mesmo não se dá com a palavra retórica, que caiu em desuso por longo

período.

Entretanto, o principal motivo da aproximação entre a teoria da argumentação de

procedência perelmaniana e a retórica aristotélica é a ênfase no fato de que é em função de um

auditório que qualquer argumentação se desenvolve, pois a ideia de adesão e de espíritos aos

quais se dirige um discurso, tão importante para a abordagem de Perelman e Olbrechts-

Tyteca, é também preocupação central na retórica antiga. Para Amossy (2002), se Perelman

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prefere denominar seu trabalho de retórica em vez de dialética, não é senão em virtude da

relação constitutiva da palavra ao auditório.

Apesar da menção explícita à retórica, é errôneo pensar que sua obra limita-se a uma

releitura dos clássicos gregos e latinos. Na verdade, ao se apropriar dos elementos oriundos

desses modelos, Perelman constrói um domínio original, coerente com as peculiaridades de

seu tempo e conectado às inovações que as ciências da linguagem apresentavam no mesmo

período em que desenvolvia suas pesquisas.

Em alguns aspectos, seu trabalho chega a ultrapassar os limites dessa retórica antiga.

Em outros, o restringe, na medida em que não desenvolve alguns pontos, como por exemplo,

o aspecto da eloquência, já que o foco na compreensão do mecanismo do pensamento justifica

uma maior preocupação com as técnicas de raciocínio do que com a maneira pela qual se

efetua a apresentação pública do discurso, no que se refere aos seus elementos não verbais. O

interesse pelas técnicas argumentativas, contudo, justifica-se em função do resultado obtido

por meio delas. O objeto de análise da teoria da argumentação perelmaniana, portanto, é

composto pelos recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos, com ênfase na

técnica que utiliza a linguagem para persuadir e convencer.

Apesar da grandiosidade da obra de Perelman e de seus esforços de revitalização da

tradição clássica, comenta-se que o impacto do lançamento do Tratado foi reduzido e sua

influência muito limitada no cenário linguístico dos anos de 1960 e 1970. Plantin (2002)

esclarece que a ênfase conferida pelo autor ao gênero judiciário e ao discurso filosófico fez

com que sua pesquisa agradasse especialmente aos círculos especializados de filósofos do

direito, e que ficasse circunscrita a esse meio.

Uma das preocupações centrais de Perelman é a de evidenciar que existem outras

formas possíveis e igualmente válidas de pensamento que não só o raciocínio lógico. A crença

na superioridade da lógica foi um dos fatores responsáveis pelo esquecimento quase completo

da retórica por longos períodos, o que para Perelman era inaceitável. Por isso, em sua obra,

parte de uma concepção de que, entre a demonstração científica e a demonstração arbitrária

das crenças, há uma lógica do verossímil, representada pela argumentação. Assim como

Aristóteles, Perelman entende que o campo da argumentação é o campo do verossímil, do

plausível, do provável.

A fim de ressaltar as características particulares da argumentação e os problemas

inerentes a seu estudo, Perelman apresenta uma distinção inicial entre demonstração e

argumentação, de onde resultam consequências sociológicas fundamentais para o pensamento

que irá desenvolver ao longo de toda sua obra:

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A argumentação é essencialmente comunicação, diálogo, discussão. Enquanto a demonstração é independente de qualquer sujeito, até mesmo do orador, uma vez que um cálculo pode ser efetuado por uma máquina, a argumentação por sua vez necessita que se estabeleça um contacto entre o orador que deseja convencer e o auditório disposto a escutar. (PERELMAN, 1987, p. 235).

Observa-se aí que a atenção para a forma como os argumentos são recebidos pelos

alocutários desloca o olhar do pesquisador do eixo da produção para o eixo da recepção do

discurso, pois é necessário que o orador desenvolva sua argumentação na medida adequada

para atingir um determinado auditório, o qual apresenta características muito próprias e

diferenciadoras, resultantes do tempo e do espaço nos quais ele se constitui.

Ainda no âmbito da dimensão sociológica da argumentação, encontramos em

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) a reflexão sobre os requisitos necessários para a

instalação de um debate. Assim, para que uma argumentação se desenvolva, é necessário o

preenchimento de determinadas condições prévias. Uma delas, e considerada de fundamental

importância, é a formação de uma “comunidade intelectual” interessada na discussão de

determinado assunto. Em outras palavras, é preciso que exista um interesse mútuo na

abordagem de uma polêmica; que o sujeito argumentante tenha autoridade ou legitimidade

para assumir o posto de orador e que aqueles a quem se dirige estejam dispostos a formarem

uma opinião – ou modificarem a que já têm – sobre determinado assunto. Se a questão é tida

como “fora de discussão” para uma das partes, não há como se instalar a argumentação.

Podemos extrair desse ponto uma informação fundamental sobre uma característica da

argumentação, também presente na retórica clássica, que é a existência inicial de teses

conflituosas a serem discutidas. Definindo a argumentação na “contradição discursiva”, temos

que, além de linguageira, situada, afetiva, figurativa e metafórica, ela é também

problematizante (PLANTIN, 2002).

A sociedade, através de suas instituições, estabelece regras para a convivência entre os

indivíduos, que regulamentam, inclusive, as formas pelas quais uma conversa pode ser

iniciada. A título de ilustração, Perelman (1987) fala “nas instituições judiciárias e políticas,

na organização das Escolas e das Igrejas, nas festas nacionais ou religiosas que,

periodicamente, permitem evocar determinados assuntos diante de certos auditórios”.

(PERELMAN, 1987, p. 236).

Em algumas instâncias, o exercício da argumentação é monopólio de pessoas ou de

organismos especialmente habilitados para isso de modo que, para poder tomar a palavra, é

mister possuir uma qualidade, ser membro ou representante de um grupo. Perante certos

auditórios, os problemas de habilitação são minuciosamente regulamentados. Em um processo

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judicial, por exemplo, para exercer a prerrogativa da palavra nos autos, é necessário que o

locutor seja um advogado, um Promotor, ou ainda, que esteja investido do poder institucional

de julgar, como o Juiz de Direito.

O exercício eficaz da argumentação pressupõe ainda uma linguagem comum, sem a

qual o contato das mentes é irrealizável. Ao contrário da demonstração, em que normalmente

se emprega uma língua artificial, como a álgebra ou a química, por exemplo, a argumentação

desenrola-se sempre em língua natural.

Considerar a argumentação em seu âmbito sociológico implica, como já se afirmou,

reconhecer que nesse terreno os raciocínios são desenvolvidos por um locutor em função de

um alocutário, nomeados respectivamente por Perelman, de orador e auditório, a exemplo da

denominação que essas duas instâncias receberam na retórica clássica.

Aliás, um elemento central da Nova Retórica é a concepção de que toda argumentação

se desenvolve em função do auditório, ao qual ela se dirige e ao qual o orador deve se adaptar.

O auditório, em Perelman, é sempre uma construção do orador e essa construção se dá por

meio de um jogo de imagens. Ainda assim, é preciso que essa construção idealizada seja o

mais próxima possível da realidade, pois uma imagem inadequada do auditório, resultante de

erro, de ignorância ou de um discurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais

desagradáveis consequências para o projeto de persuasão.

Perelman verifica que há uma relação estreita entre a qualidade do auditório e a

qualidade da argumentação, ao contrário do que defende Aristóteles, para quem quanto mais

científico for um discurso, mais distante ele está da retórica:

Para ele [Aristóteles], quanto mais um discurso é científico, mais é demonstrativo e mais se afasta da retórica, salvo quando se trata de discutir os princípios de cada disciplina [...] Mas, segundo o nosso ponto de vista, existe argumentação desde que o discurso não seja redutível a um cálculo. Então, no caso de um meio especializado, quer se trate de cientistas, de juristas, de adeptos de uma ideologia ou de uma religião, é indispensável conhecer o conjunto das crenças, das aspirações e das regras sobre o qual existe um acordo e em relação ao qual todo o recém-chegado tem de ser iniciado. (PERELMAN, 1987, p. 237).

Os auditores visados em um discurso argumentativo podem variar quanto ao sexo, à

idade, à instrução, ao temperamento, enfim, podem estar sujeitos a divergências de ordem

política, econômica, social, etc. Verifica-se, assim, a existência de uma tipologia de

auditórios, compostos por membros que não compartilham necessariamente dos mesmos

modos de ver e de dizer. Nesses casos, o orador deve renovar habilmente seu repertório de

argumentos, apelando também a valores, crenças e ideais distintos, de forma a alcançar o

maior número possível de mentes. Segundo Amossy (2002), a empresa da persuasão se

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mostra especialmente perigosa, e também mais interessante, quando o auditório possui

membros cujos pontos de vista são diferentes.

O conceito de auditório comporta também variações de ordem quantitativa, partindo

do próprio orador, que se divide em dois na deliberação íntima, até o conjunto dos seres

capazes de razão, quando então é denominado auditório universal. Este parece ser, no campo

da teoria da argumentação de procedência perelmaniana, o mais nobre dos auditórios a serem

conquistados. Para alcançar sua adesão, é preciso manejar argumentos os mais próximos

possíveis da verdade e da lógica. Parece-nos que se trata, na verdade, de um ideal

argumentativo2: “aqueles que se dirigem ao auditório universal não podem supor como

admitidos senão fatos objetivos, verdades incontestáveis, valores universais, supostamente

admitidos por todos os seres razoáveis e competentes.” (PERELMAN, 1987, p. 240).

A relação entre orador e auditório fundamenta-se na instauração de um acordo prévio,

que é o ponto de partida de toda argumentação. Havendo uma comunidade de espíritos

interessada no debate de determinada questão, a instalação de um acordo entre o orador e o

auditório é o primeiro passo para que se possa ter a argumentação, pois o enunciador só pode

desenvolver seu projeto de persuasão conectando seus argumentos a teses já admitidas pelos

ouvintes, sob pena de ser sumariamente rejeitado.

Esse acordo tem por objeto ora o conteúdo das premissas explícitas, ora as ligações

particulares utilizadas, ora a forma de servir-se dessas ligações. Por outro lado, a própria

escolha das premissas e sua formulação, com os arranjos que comportam, estão impregnadas

de valor argumentativo e se configuram como uma preparação para o raciocínio que, mais do

que uma introdução dos elementos, já constitui um primeiro passo para a sua utilização

persuasiva.

Escolher as estratégias mais adequadas é fundamental porque a adesão é suscetível de

maior ou menor intensidade, uma vez que o assentimento tem seus graus e uma tese, quando

admitida, pode não prevalecer diante de outras, se a intensidade da adesão for insuficiente.

Assim, mesmo concedida a adesão inicial, esta poderá ser negada mais adiante, pois a

qualquer momento o auditório pode discordar do que o orador lhe apresenta. Pode também

desconfiar do conteúdo das premissas ou ainda se mostrar insatisfeito com o caráter

tendencioso de apresentação das mesmas.

2 A figura do “auditório universal” nos parece uma idealização porque todo auditório é histórico, temporal, particular, diferente de outros auditórios no que diz respeito à sua constituição, competência, inclinações, paixões e preconceitos. Dessa forma, a postulação de que um discurso qualquer goze de validade universal só pode ser compreendida nesse sentido de “ideal argumentativo”.

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As premissas sustentadas pelo orador e previamente admitidas pelos auditores poderão

ser do senso comum ou, ainda, próprias aos integrantes de uma determinada disciplina

(científica, jurídica, filosófica ou teológica) e terão estatuto epistemológico variável: ora se

tratará de afirmações elaboradas no seio de uma disciplina científica, ora de dogmas, ora de

crenças do senso comum, ora de preceitos ou de regras de conduta aprovados, ora, pura e

simplesmente, de proposições que foram admitidas pelos interlocutores num estágio anterior

da discussão.

Perelman (1987) lembra que determinados auditórios possuem objetos de acordo

próprios, que podem ter natureza ideológica ou profissional. Assim, supõe-se que o homem de

fé admite os dogmas da religião que professa, enquanto o Juiz de Direito aceita as normas de

direito que deve aplicar aos casos que lhe são submetidos.

Entre os objetos dos acordos de crença ou de adesão que podem servir de premissas –

intitulados objetos de acordo – há duas categorias: a do real, que comportaria os fatos, as

verdades e as presunções, e a do preferível, incluídos aí os valores, as hierarquias e os lugares.

A concepção de real varia conforme as opiniões filosóficas aceitas, mas, na

argumentação, o real se caracteriza por uma pretensão de validade para o auditório universal.

É que, nesse território, o objetivo e o universalmente válido não se definem como em uma

ontologia ou em uma epistemologia, por meio de critérios intrínsecos. Aqui, o objetivo e o

universalmente válido “[...] estão ligados a reações do auditório universal ou, pelo mesmo,

àquilo que o orador presume destas reacções.” (PERELMAN, 1987, p. 240).

Argumentos baseados em fatos, verdades e presunções postulam, na medida do que é

possível em um domínio como a argumentação, um estatuto de proximidade com a realidade

objetiva. Por isso, dispensariam, a princípio, o orador de produzir provas para intensificar a

adesão quanto a eles.

Em oposição aos argumentos que versam sobre o real (fatos, verdades e presunções),

podem ser capitulados aqueles que se fundam no que é preferível: os já referidos valores,

hierarquias e lugares, que nos determinam as escolhas não em consonância com uma realidade

preexistente, mas conforme um ponto de vista determinado, que só podemos identificar com o

de um auditório particular, por mais amplo que seja.

Na argumentação, os valores funcionam como os mais importantes objetos de acordo

entre o orador e o auditório na formulação das premissas, pois aqueles que partilham um

conjunto de valores comuns se colocam mais receptivos às teses defendidas pelo orador. Estar

de acordo com um valor é, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), admitir que um ser

ou um ideal deva exercer uma influência determinada sobre a ação e as disposições à ação,

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sem considerar, contudo, que esse ponto de vista se aplica a todos, uma vez que não há como

se impor juízos que dependem da valoração de cada sujeito.

Por serem relativos, instáveis e controversos, os juízos de valor e as hierarquias foram

condenados pelos positivistas, que pretendiam que os raciocínios fossem isentos desses

elementos de incerteza. Nos campos jurídico, político e filosófico, contudo, fica claro que os

oradores recorrem a esses elementos durante todo o discurso argumentativo, a fim de motivar

o interlocutor a fazer certas escolhas em prejuízo de outras. Para Reboul (2004), nos domínios

da argumentação, é impossível renunciar a esses juízos, pois noções fundamentais de inocente

ou culpado, belo ou feio, útil ou nocivo e outras, são sempre formuladas em termos de valor.

A adesão em torno de valores se dá com intensidade variável de indivíduo para

indivíduo e de grupo para grupo. Depreende-se, então, que os valores se sujeitam a uma

hierarquia, que garante uma ordenação de tudo o que está submetido ao princípio que a rege:

“enquanto os valores indicam uma atitude favorável ou desfavorável a respeito daquilo que é

assim qualificado, as hierarquias indicam expressamente os valores hierarquizados”

(PERELMAN, 1987, p. 242).

Perelman (1987) leciona que entre os valores, há uma distinção digna de nota, que é a

que opõe valores abstratos, como a verdade e a justiça, a valores concretos, como a Igreja, os

Estados e outros. O valor concreto é aquele ligado a um ser, a um grupo ou a uma instituição

considerada em sua individualidade. Uma mesma argumentação pode se fundamentar,

conforme as circunstâncias, ora nos valores concretos, ora nos abstratos. Geralmente, os

concretos são utilizados para fundar os abstratos, mas o movimento contrário também pode

ser observado.

Para fundamentar valores ou hierarquias, ou reforçar a intensidade da adesão que eles

suscitam, é possível relacioná-los a outros valores ou hierarquias, mas pode-se também

recorrer a premissas gerais, chamadas lugares. Há os lugares comuns (gerais), que são

afirmações muito amplas acerca do que se supõe valer mais em qualquer domínio, e os

lugares específicos, que determinam o que vale mais em um domínio particular.

Apresentadas as condições iniciais para a instauração de um debate argumentativo,

propomos uma primeira tentativa de interpretação de um processo judicial, como o que

compõe nosso corpus, à luz dos postulados da Nova Retórica.

Pensamos que, de um lado, o processo judicial de natureza penal é construído à

semelhança de um jogo retórico/dialético, onde os oponentes, constituídos pela figuras da

acusação e da defesa, lançam suas teses na tentativa de alcançar a adesão de um auditório

particular, representado pela figura do julgador (ou do Corpo de Jurados, no Tribunal do Júri).

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Esse jogo se desenrola no interior de uma instituição que dita regras tanto quanto à condição

de quem pode desempenhar o papel de jogador, como para o próprio funcionamento da

partida. Assim, como já afirmamos, a palavra, em um Processo Penal, é prerrogativa do Juiz

de Direito, do Promotor, do advogado e, em algumas situações, das pessoas chamadas a

colaborar com a efetivação da Justiça, como peritos, testemunhas, escreventes, etc. O réu, que

é o principal interessado no resultado desse embate discursivo, só pode se manifestar

pessoalmente em momentos processuais bem específicos, como os interrogatórios diante do

Juiz e do Corpo de Jurados. Na maior parte das vezes, é o Defensor quem fala em seu nome.

De outro lado, como a verdade factual não é dada previamente na situação processual,

e talvez não seja alcançada nem mesmo ao final dos debates, as atividades de acusação e

defesa tomam corpo em um ritual retórico em que, na falta de uma demonstração rigorosa, a

única alternativa possível para as partes é buscar tudo o que seu ponto de vista comporta de

verossímil e, durante o jogo do contraditório, exercitar habilmente estratégias discursivas com

vistas a persuadir o julgador da verossimilhança de suas teses.

Para a instância julgadora, cabe o encargo de se posicionar favorável ou

contrariamente a uma ou outra parte, já que o Estado não pode se furtar à prestação

jurisdicional. Nesse papel de acatar uma ou outra tese, o julgador, na verdade, constrói uma

nova versão para os fatos, resultante de sua atividade interpretativa, e é essa a versão que

adquire valor de verdade, graças à força da instituição judiciária.

Retomando Perelman, temos que, para alcançar a adesão de um auditório às suas teses,

o orador deve estar munido de um repertório eficaz de técnicas argumentativas, a partir das

quais desenvolverá seus raciocínios e conduzirá o raciocínio dos auditores. Essas técnicas se

apresentam sob dois aspectos diferentes: ora assumem a forma positiva de processos de

ligação, ora a forma negativa de processos de dissociação. A forma positiva consiste na

criação de um vínculo de solidariedade entre teses que se procuram promover e as teses já

admitidas, enquanto o aspecto negativo busca romper a solidariedade existente entre as teses

já admitidas e as que se opõem às teses do orador (PERELMAN, 1987).

Entre os processos de ligação, encontram-se três grandes grupos, que são os

argumentos quase-lógicos, os argumentos fundados sobre a estrutura do real e os argumentos

que fundam a estrutura do real.

Os argumentos quase-lógicos constroem-se à imagem de princípios lógicos. Por sua

estrutura, assemelham-se aos raciocínios formais e mostram uma preocupação do orador em

construir um pensamento preciso e bem elaborado. Contudo, por desenvolverem-se em língua

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natural e por estarem sob o influxo da controvérsia, são passíveis de interpretações distintas, o

que os afasta de seu ideal de formalização.

Os argumentos fundados sobre a estrutura do real, por sua vez, são construídos não a

partir do que é o real, no sentido ontológico, mas a partir do que o auditório acredita, isto é,

daquilo que ele toma por fatos, verdades ou presunções.

Já os argumentos que fundam a estrutura do real operam por indução, estabelecendo

generalizações e regularidades, propondo modelos, exemplos e ilustrações a partir de casos

particulares.

O quadro abaixo relaciona esses três tipos de argumentos aos seus subtipos:

PROCESSOS DE L IGAÇÃO

TIPOS DE ARGUMENTOS SUBTIPOS DE ARGUMENTOS

Argumentos quase-lógicos

(construídos à imagem de princípios lógicos)

Contradição, incompatibilidade, ironia, ridículo, identidade, definição, regra de justiça, quase matemáticos (transitividade, divisão, dilema, ad ignorantiam)

Argumentos fundados sobre a estrutura do real

(no sentido do que o auditório acredita ser o real)

Sucessão, argumento pragmático, finalidade (desperdício, direção, superação), coexistência (essência, pessoa – autoridade, argumento ad hominem), duplas hierarquias, argumentos a fortiori (“com maior razão”)

Argumentos que fundam a estrutura do real (operam por indução)

Exemplo, ilustração, modelo, comparação, argumento pelo sacrifício, analogia, metáfora

Quadro 2: Tipologia de Argumentos Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)

Como se vê, cada espécie de técnica argumentativa comporta uma série de tipos de

argumentos. A fim de não nos prolongarmos excessivamente na discussão de cada um deles,

organizamos os principais tipos de argumentos e suas definições correlatas em quadros

sintéticos e adaptados.

No quadro transcrito a seguir, listamos os argumentos quase-lógicos e sua definição:

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ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS

SUBTIPOS DE ARGUMENTOS DEFINIÇÃO

Contradição - verifica-se quando alguém sustenta, ao mesmo tempo, uma proposição e sua negação, no interior de um sistema próximo do formal

Incompatibilidade

- assemelha-se à contradição, mas, enquanto aquela pressupõe um formalismo ou um sistema de noções unívocas, esta é sempre relativa a circunstâncias contingentes, relacionadas a leis naturais, fatos particulares ou decisões humanas

Ironia

- figura pela qual “dá-se a entender o contrário do que se diz”; argumentação indireta, que sempre supõe conhecimentos complementares acerca dos fatos

Ridículo

- consiste em admitir momentaneamente uma tese oposta àquela que se quer defender, em desenvolver-lhe as consequências, em mostrar a incompatibilidade destas com o que se crê e passar daí à verdade da tese que se sustenta; o ridículo provoca o riso

Identidade

- toda atividade de conceitualização e classificação implica a redução de certos elementos ao que há neles de idêntico ou intercambiável; essa redução será quase-lógica quando a identificação de seres, de acontecimentos ou de conceitos não for totalmente arbitrária ou evidente, dando espaço, assim, ao desenvolvimento de uma argumentação

Definição

- trata-se de um procedimento de identificação, pois pretende estabelecer uma identidade entre o que é definido e o que define, de tal modo que seja possível substituir um pelo outro no discurso; impõe um determinado sentido em detrimento de outros

Regra de justiça

- requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou situações integradas numa mesma categoria; por ela, os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados do mesmo modo; é ela que permitirá apresentar sob a forma de argumentação quase-lógica o uso do precedente

Transitividade - é a propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos “A e B”, “B e C” e “A e C”; trata-se do silogismo retórico

Divisão - divide-se o todo – a tese por provar – em partes, e, depois de mostrar que cada uma delas tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem essa mesma propriedade

Dilema

- raciocínio que prova que os dois termos de uma alternativa levam à mesma consequência, sendo esta a tese

Quase matemáticos

Ad ignorantiam - mostra que todos os casos possíveis devem ser excluídos, salvo um, que é justamente a tese por provar, cuja admissão se pede por falta de coisa melhor

Quadro 3: Argumentos quase-lógicos Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)

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Na sequência, listamos os argumentos fundados sobre a estrutura do real e a definição

sintética de cada um:

ARGUMENTOS FUNDADOS SOBRE A ESTRUTURA DO REAL

TIPO DE ARGUMENTO DEFINIÇÃO

Sucessão

- pode-se argumentar constatando uma sucessão constante nos fatos e deles inferindo um nexo causal, não como um raciocínio demonstrativo, mas buscando estabelecer um juízo de valor

Pragmático

- permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de suas consequências favoráveis ou desfavoráveis, ou seja, para apreciar um acontecimento, deve-se reportar a seus efeitos; desempenha papel fundamental na argumentação e é desenvolvido, na prática, sem grandes dificuldades

Desperdício

- justifica o desprezo por um ato ou objeto porque ele implica desperdício de recursos; relaciona-se com o sentimento de uma oportunidade que não se pode perder ou um meio que existe e do qual é preciso servir-se

Direção

- consiste em rejeitar uma coisa, mesmo admitindo que em si é inofensiva ou boa, porque ela serviria de meio para um fim que não se deseja; desperta no auditório o temor de que uma ação nos envolva num encadeamento de reações indesejadas; o precedente fundamenta um direito, enquanto a direção prevê um fato

Finalidade

Superação

- parte da insatisfação inerente ao valor: nunca ninguém é bom demais, justo demais, desinteressado demais; o ideal inacessível mostra em cada conquista um trampolim para uma conquista superior, num progresso sem fim

Essência

- consiste em explicar um fato ou em prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele; tem alcance ético

- argumento de autoridade: consiste na citação de uma fonte confiável para deixar uma tese mais consistente; essa fonte pode ser um especialista no assunto, dados de instituição de pesquisa, uma frase dita por um líder político ou um pensador, enfim, uma autoridade no assunto

Coexistência (extraem-se argumentos

da relação de coexistência entre as

coisas)

Pessoa

(aplicação da essência; baseia-

se no nexo entre a pessoa e seus

atos) - argumento ad hominem: é o argumento de autoridade invertido; consiste em refutar uma proposição recorrendo a uma personalidade odiosa

Duplas hierarquias

- consiste em estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando cada um deles aos de uma escala de valores já admitida

Argumentos a fortiori (“com maior razão”) - desdobramento das duplas hierarquias Quadro 4: Argumentos fundados sobre a estrutura do real Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)

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No quadro seguinte, constam os argumentos que fundam a estrutura do real e sua

definição sintética:

ARGUMENTOS QUE FUNDAM A ESTRUTURA DO REAL

TIPO DE ARGUMENTO DEFINIÇÃO

Exemplo - fundamenta o real pelo recurso a um exemplo, permitindo,

com isso, a realização de uma generalização; é o argumento

que vai do fato à regra (indução)

Ilustração

- é um exemplo que pode ser fictício e cuja função não é

provar a regra, mas dar-lhe “presença na consciência” e

reforçar assim a adesão; enquanto o exemplo deve ser

incontestável, a ilustração pode ser duvidosa, mas deve

causar forte impressão na mente do auditório

Modelo - é um exemplo dado como digno de imitação; podem servir

de modelo pessoas ou grupos cujo prestígio valoriza os atos

Comparação - cotejam-se vários objetos a fim de avaliá-los um em

relação ao outro, permitindo justificar um dos termos a partir

dos demais

Argumento do sacrifício

- é um tipo de comparação; consiste em estabelecer o valor

de uma coisa ou de uma causa pelos sacrifícios que são ou

serão feitos per ela

Analogia

- raciocinar por analogia é construir uma estrutura do real

que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma

semelhança de relações; trata-se de estabelecer uma

similitude de estruturas, cuja fórmula genérica é A está para

B assim como C está para D

Metáfora

- a metáfora condensa uma analogia; argumenta

estabelecendo contato entre dois campos heterogêneos,

ressaltando um elemento em comum em detrimento dos

outros, por enfatizar uma semelhança e mascarar diferenças

Quadro 5: Argumentos que fundam a estrutura do real Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)

A dissociação das noções, em oposição às técnicas de ligação, consiste em recusar-se o

estabelecimento de uma associação aceita como válida em um momento anterior do debate

argumentativo. “A experiência, real ou mental, a modificação das condições de uma situação

e, mais especialmente, em ciências, o exame isolado de certas variáveis, poderão servir para

provar a falta de ligação.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 467). Assim,

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busca-se separar as noções em pares hierarquizados, como aparência/realidade, meio/fim,

letra/espírito, saber/ignorância, belo/feio, verdade/mentira, virtude/vício. Com isso, a

dissociação modifica profundamente as realidades que desliga, dirimindo incompatibilidades

e adquirindo o caráter de convincente e duradoura.

Para a eficácia da argumentação, é essencial, portanto, que o orador conheça este

conjunto de técnicas de associação e dissociação, pois, ao contrário do lógico ou do

matemático, que agem no interior de um sistema de elementos fechados, o orador retira seus

argumentos de um celeiro indeterminado, composto por teses do senso comum ou de uma

disciplina especializada, que podem produzir maior ou menor intensidade de adesão. Tais

técnicas, fundadas em procedimentos indutivos e dedutivos, encontram sua razão de ser no

jogo interlocutivo e se desenvolvem em função das finalidades persuasivas da argumentação.

Ilustrando essa observação, tomamos novamente como exemplo o caso delineado em

nosso corpus. Em um processo judicial, a partir de premissas extraídas da lei, da doutrina e da

jurisprudência, os operadores do direito constroem raciocínios hipotético-dedutivos, a fim de

demonstrarem que o ato concreto praticado pelo réu se subsume (ou não) ao disposto

genericamente na lei. Nesse ponto, a argumentação jurídica se aproxima mais de um

raciocínio lógico. Entretanto, essa pretensa racionalidade também obedece a uma finalidade

persuasiva, pois a tese só será tida como “verdadeira” se conquistar a adesão do julgador.

Assim, em nosso corpus, o trabalho do Promotor é o de mostrar que a conduta,

teoricamente, praticada pela ré – introduzir uma sonda em seu útero para destruir o feto ali

alojado – enquadra-se na conduta genericamente tipificada na primeira parte do artigo 124 do

Código Penal (autoaborto), enquanto a tarefa do Defensor é a de levantar hipóteses que

possam negar a prática do ato abortivo (através da alegação de que não havia nos autos prova

sequer da gravidez da ré, por exemplo), ou então encontrar justificativas legais (ou

socialmente aprovadas) para o ato.

Perelman sempre foi alvo de críticas por conferir à sua teoria da argumentação um

caráter excessivamente lógico, racionalizante e, também, por não desenvolver um estudo

sistematizado sobre o papel das emoções e do caráter do orador na empresa de persuasão.

Examinando o Tratado da Argumentação (1996), constatamos que, no bojo das três partes

que compõem a obra (Os Âmbitos da Argumentação, O Ponto de Partida da Argumentação e

As Técnicas Argumentativas), há apenas referências esparsas ao ethos e ao pathos. De fato, o

foco de Perelman encontra-se bastante voltado para o estudo do logos.

Outro elemento que parece gerar certa rejeição por sua obra nos meios linguísticos é o

fato de que Perelman é um jusfilósofo e, como tal, traz para seus estudos influências do

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campo da Filosofia e do Direito. Até mesmo os exemplos apresentados por ele ao longo de

seus escritos são retirados de corpora bem diferentes dos usados na Linguística: o Tratado da

Argumentação é pleno de citações de filósofos e de juristas. Tudo isso provoca um

estranhamento, ou uma “não-identificação”, dos linguistas para com Perelman.

Apesar desse conflito aparente de posições entre um domínio e outro, vemos, na

atualidade, um esforço de vários estudiosos das Ciências da Linguagem para desmistificar a

obra perelmaniana, movimento que tem a sua frente Ruth Amossy, que busca aliar a dimensão

filosófica da argumentação, especialmente em sua vertente neo-retórica (Perelman), a uma

dimensão linguístico-discursiva, com vistas à criação de um método de análise argumentativa.

Dessa forma, seria possível unir a análise das técnicas argumentativas fornecidas pela

retórica, como o entimema, a analogia, a definição, as figuras de estilo, à análise dos meios

particulares encontrados nos recursos da língua, da arte, do estilo, como a paráfrase, o encaixe

de vozes narrativas, o ritmo, etc.

Em seguida, tecemos algumas considerações acerca das pesquisas de Ruth Amossy.

2.3 A argumentação no discurso

Ao discorrermos sobre o trabalho de Amossy, optamos por abordá-lo sempre em

paralelo com Perelman, pois, a nosso ver, sua produção faz mais sentido quando analisada na

confluência dos estudos retóricos com os estudos linguísticos, já que a autora parte das duas

fontes para elaborar seu programa de pesquisa. Por isso, apresentamos as conclusões de

Amossy em cotejo com Perelman, sem deixar de explicitar as contribuições da autora para

uma redefinição da retórica perelmaniana como um dos ramos da linguística do discurso, ao

fornecer-lhe instrumental teórico-metodológico adequado ao estudo concreto do discurso

argumentativo.

A primeira observação colocada por Amossy (2005b) consiste em solucionar uma

questão de delimitação dos campos de interesse da retórica e da Análise do Discurso. A

retórica, nesse sentido, se interessaria apenas por discursos com propósito persuasivo

declarado, enquanto a Análise do Discurso abriga estudos de corpora de natureza mais

diversa, a fim de apanhar a articulação entre uma organização textual e um dispositivo de

enunciação tributário de uma situação social. Existiria também uma divergência quanto aos

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objetos de estudo de uma e outra área: enquanto a retórica focaliza as técnicas argumentativas,

a Análise do Discurso estuda todo discurso no quadro de troca onde ele se desenvolve.

Amossy (2005b) argumenta, então, que o pesquisador deve estar atento ao que ela

chama de visée argumentativa e dimensão argumentativa: se considerarmos a interação verbal

como um jogo de influências recíprocas, podemos entender que todo discurso tende a agir

sobre o parceiro, incitando-o a ver e pensar de um certo modo, a partilhar um ponto de vista.

Mas nem todos os discursos possuem um mesmo objetivo. Um discurso eleitoral ou

publicitário, um manifesto, uma carta aberta se constroem em torno de uma “visée

persuasiva”, da qual o auditório é bem consciente, ao passo que textos literários não buscam

diretamente a persuasão, embora indiretamente comportem também uma orientação

argumentativa, na medida em que apresentam uma certa visão de mundo.

Com essa hipótese, Amossy (2005b) defende um alargamento do campo de

abrangência da retórica, que, aliada à Análise do Discurso, não precisaria se restringir ao

estudo de corpora onde há a presença explícita de uma dissensão, bem como a existência

declarada de um proponente e de um oponente. Isso não significa, contudo, que não é

necessário o conflito; apenas exclui-se a obrigatoriedade do conflito declarado.

Se admitirmos a distinção entre dimensão e visée argumentativas, de acordo com a

autora, podemos estender a análise argumentativa a corpora tradicionalmente olvidados pela

retórica, para submetê-los a uma avaliação em termos de interação e de eficácia. Abre-se

também a possibilidade de pensar que existem meios de agir sobre o outro que não são

reportados nos catálogos de técnicas argumentativas. Como afirma Amossy:

[Os discursos] tanto utilizam a seu modo as técnicas argumentativas descritas nos tratados de argumentação e nos manuais de retórica – como entimema, analogia, definição, figuras de estilo etc – como empregam meios particulares encontrados nos recursos da língua, da arte da narrativa ou do estilo – como o parenthèse, o discurso reportado, o encaixe de vozes narrativas, o ritmo, a escritura branca, etc. Aos tipos de argumentos e às figuras retóricas se juntam assim os numerosos e diversificados meios verbais. (AMOSSY, 2005b, p. 167, tradução nossa)3.

A análise argumentativa resultante desse amálgama entre retórica e Análise do

Discurso não imporia restrições, inclusive, à utilização dos instrumentos fornecidos pela

Teoria da Argumentação na Língua, de Ducrot e seus colaboradores, no que se refere,

3 Tantôt ils utilisent à leur façon les techniques argumentatives décrites dans les traités d’argumentation et les manuels de rhétorique – comme l’enthymème, l’analogie, la définition, les figures de style, etc. Tantôt ils emploient des moyens particulariers puisés dans les ressoursces de la langue, de l’art du récit ou du style – comme la parenthèse, le discours rapporté, l’emboîemente des voix narratives, le rythme, l’écriture blanche, etc. Aux types d’arguments et aux figures rhétoriques se joignent ainsi des moyens verbaux nombreux et diversifiés.

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sobretudo, aos elementos que garantem a ligação entre enunciados e que conferem a eles sua

dimensão argumentativa, a saber, os conectores e os topoï pragmáticos (AMOSSY, 2005b).

Amossy (2002) postula que a obra de Perelman já se encontra bastante adaptada aos

recursos da linguística do discurso nas suas vertentes enunciativa e pragmática, no que se

refere à atenção dada à situação de enunciação, à função do alocutário, ao saber comum e aos

pressupostos que autorizam a interação verbal, assim como à eficácia da palavra definida em

termos de ação. Identifica, assim, na obra de Perelman a presença da concepção do quadro

enunciativo de Benveniste, ao apresentar e desenvolver sua Nova Retórica não como sistema

à maneira estruturalista, mas como uma situação de troca entre parceiros no discurso, que

visa, em ultima instância, à ação de um sobre o outro, pela palavra.

Para a autora, a retórica, da qual se alimenta Perelman, e também a linguística da

enunciação, analisam a linguagem “em situação”, na sua dimensão intersubjetiva, onde o eu

implica um tu, mesmo quando este não esteja explicitado por marcas linguísticas. Em suma,

na perspectiva retórica, adotada pela Nova Retórica, todo enunciado é necessariamente

direcionado no sentido do alocutário, com vistas a orientá-lo nos modos de ver e de pensar. O

sujeito falante aciona o aparelho formal da enunciação não só para se comunicar, mas também

para agir sobre o indivíduo a quem se dirige.

Outro ponto observado por Amossy (2002) é o de que, no Tratado da Argumentação,

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) afirmam que todo o processo argumentativo, desde a

escolha das premissas até as palavras empregadas pelo orador no seu projeto de persuasão, é

sujeito à incidência de valores, tanto que a argumentação, para eles, é uma lógica dos juízos

de valor. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) também se referem, no Tratado, à escolha da

qualificação e à apresentação dos dados do discurso. Eles mostram que, na seleção de epítetos

e de qualificações para um determinado objeto, há uma clara orientação argumentativa.

Assim, chamar a Revolução Francesa de “sangrenta revolução” revela claramente um

propósito e uma direção argumentativa.

Essa incidência dos valores e, consequentemente, da subjetividade na língua, é

estudada de forma mais pontual pela linguística, através da pesquisa dos procedimentos

linguísticos (shifters, modalizadores, termos avaliativos, etc.) pelos quais o locutor imprime

sua marca à enunciação, se inscreve na mensagem e se situa em relação ao outro. Essa marca

pode ser encontrada pela análise linguística dos substantivos axiológicos (positivos ou

negativos), dos adjetivos afetivos (aqueles que enunciam, ao mesmo tempo, uma propriedade

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do objeto que eles determinam e uma reação emocional do sujeito falante diante desse objeto),

dos verbos ocasional ou intrinsecamente subjetivos4.

Nesse sentido, segundo Amossy (2002), a Nova Retórica teria se adiantado em alguns

aspectos aos trabalhos da semântica pragmática de Anscombre e Ducrot, que propuseram a

definição do sentido da palavra tendo em conta sua orientação argumentativa.

Uma questão que perpassa o trabalho de linguistas e neo-retoricistas é o

reconhecimento do papel constitutivo do alocutário. Um dos postulados centrais da Nova

Retórica é a necessidade de adaptação do orador a seu auditório. Amossy (2002) reconhece

que, sob uma mesma perspectiva, Nova Retórica e Ciências da Linguagem se interrogam

sobre as modalidades de inscrição do alocutário no discurso, se bem que a reflexão linguística

sobre esse ponto seja ancorada nos trabalhos da vertente francesa de Análise do Discurso,

especialmente nos estudos de Pêcheux (1969), bem mais que nas teorias da argumentação.

Embora não faça menção expressa a Bakhtin, essa preocupação de Perelman com o auditório

mostraria os influxos do dialogismo em sua obra.

Perelman observa que o tipo de auditório visado determina quais as melhores técnicas

argumentativas a serem empregadas pelo orador. Em função de suas características, os

auditórios podem ser classificados como particular ou universal, homogêneo ou heterogêneo,

simples ou compósito. As Ciências da Linguagem, segundo Amossy (2002), se preocupam

menos com a natureza do auditório e mais com os modos de presença do alocutário na

comunicação, de forma que estabelecem classificações quanto às instâncias de recepção em

função do grau de presença e de atividade, em trabalhos desenvolvidos sobretudo por

Goffman (1967).

Na teoria da argumentação perelmaniana, o discurso se apóia sobre as crenças e as

opiniões em voga no meio social. Como já se afirmou, para começar a desenvolver uma

argumentação, o orador deve estabelecer antes um acordo prévio com o auditório, sendo que

para Perelman, esse acordo repousa sobre os fatos (aquilo que é considerado como tal), as

verdades (aquilo que o público entende como verdade) e as presunções (que se cuidam válidas

em função das normas admitidas). A partir dessas bases, o orador pode prosseguir em seu

discurso argumentativo apoiando-se em técnicas de ligação e de dissociação, em função dos

esquemas lógico-discursivos que desfrutam de largo reconhecimento, até a generalização.

Perelman se apropriaria assim dos lugares comuns de Aristóteles, ou topoï, com pequenas

4 De acordo com Kerbrat-Orecchioni (1999), os verbos "ocasionalmente subjetivos" exprimem uma disposição do sujeito, que pode ser favorável ou não, diante do processo enunciativo, enquanto os verbos "intrinsecamente subjetivos" implicam uma avaliação que tem sempre como fonte o sujeito da enunciação.

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alterações, e insistiria no papel persuasivo dos lugares do preferível (valores, hierarquias e

lugares).

Amossy (2002) explicita que essa abordagem dos topoï busca determinar os grandes

esquemas lógico-discursivos que articulam e modelam os raciocínios, mostrando que sua

força de convicção depende, em parte, dos lugares comuns sobre os quais eles se edificam. A

pragmática, que se interessa igualmente pelas premissas e pelos tópicos implícitos sobre os

quais se fundam os enunciados ou os encadeamentos de enunciados, busca também

reencontrá-los na materialidade linguística.

Enfim, ao fundamentar a arte da persuasão no bom uso dos tópicos, Perelman, na

visão de Amossy (2002), adianta os trabalhos da linguística contemporânea, especialmente da

Semântica e da Pragmática que, sob ângulos diversos, estudam a pressuposição, as

implicações e os topoï que asseguram o encadeamento dos enunciados e seu impacto na

interação. Nessa perspectiva, os trabalhos de Perelman evidenciam a importância dos

fundamentos do discurso argumentativo, a saber: dos tópicos, da doxa, do conhecimento

partilhado do senso comum, no qual o locutor se fundamenta para construir desde as

premissas iniciais até a conclusão, tudo isso discursivamente orientado para a persuasão de

um auditório5.

De acordo com Amossy (2006), a retórica ligou estreitamente o uso da palavra

persuasiva ao lugar sócio-institucional de sua produção e circulação, como se depreende da

distinção que fez entre os gêneros judiciário, deliberativo e epidítico. Tanto a retórica como a

Análise do Discurso colocam o gênero em posição capital. Contudo, ao analisar a obra de

Perelman, Amossy aponta que os discursos literário, filosófico, político e jurídico são

abordados como extratos, fragmentos extraídos alheatoriamente de um substrato maior, ao

qual parecem não dever sua própria essência. Nesse sentido, afirma-se que Perelman não

explora as modalidades argumentativas próprias aos diferentes gêneros do discurso. Os

esquemas de pensamento que sustentam a argumentação, bem como os procedimentos de

ligação e ruptura que podem ser mobilizados nas situações mais diferentes, seriam por ele

analisados sem se levar em conta a variação de um regime discursivo a outro. (AMOSSY,

2005b).

Nesse aspecto, em sua proposta de análise argumentativa, a autora se aproxima mais

da Análise do Discurso, para quem cada gênero adota as modalidades de persuasão verbal que

5 Voltaremos a tratar da questão dos topoï , com mais profundidade, no capítulo das Análises.

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lhe são mais convenientes. Assim, considera que a argumentação se encontra em uma relação

de dependência com o domínio do qual ela emerge e com gênero no qual se insere:

Não tentamos influenciar um júri no curso de um processo como tentamos fazer eleger um candidato em uma campanha eleitoral, ou fazer partilhar nossas opiniões por um amigo em uma conversação familiar, ou suscitar a reflexão do leitor sobre um estado do mundo em um texto romanesco. (AMOSSY, 2005b, p. 167)

Para Amossy (2005b), as estratégias argumentativas que a retórica clássica relaciona

ao logos, ao ethos e ao pathos são em boa parte modeladas pelo gênero de discurso. No que

diz respeito ao logos, por exemplo, a autora entende que o grau de formalização do raciocínio,

assim como a escolha e o agenciamento dos argumentos, diverge manifestamente de um

quadro a outro, mesmo se a tese defendida pelo locutor é similar.

Quanto ao pathos, a autora defende que o quadro genérico dita as modalidades de

apelo às emoções, sua intensidade e até a sua legitimidade (em uma carta de amor, é comum

um tom fortemente afetivo por parte do locutor, ao contrário de um artigo científico,

tradicionalmente pouco afeito às emoções).

Quanto ao ethos, Amossy (2005b) postula que cada gênero compreende uma

distribuição prévia dos papéis que modelam o dispositivo de enunciação, para o qual não se

pode negar a importância do estatuto do locutor e do quadro institucional no qual ele profere

sua palavra. A eficácia da palavra depende também da posição daquele que a detém e do grau

de legitimação que ele desfruta no seu meio social. A legitimidade do locutor, sua posição

social e institucional e sua reputação desempenham, na visão da autora, um papel bastante

importante na troca argumentativa, embora não sejam tudo.

Neste tópico, apresentamos uma proposta de uma teoria da argumentação no

discurso, fundada no modelo da retórica clássica e complementada pelos recursos da Análise

do Discurso. No tópico seguinte, finalizando o capítulo sobre teorias de argumentação,

abordamos um modelo que se coloca como um contraponto semântico-estrutural à concepção

retórica e neo-retoricista. Trata-se da Teoria da Argumentação na Língua, de Oswald Ducrot.

2.4 Percursos de uma teoria da argumentação na língua

De acordo com Plantin (2002), deve-se a Ducrot a retomada do interesse pelos estudos

da argumentação, a partir dos anos de 1970, no cenário da pesquisa linguística francesa.

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Para Ducrot e seus colaboradores, que iniciam seus trabalhos embebidos da

perspectiva semântica e estrutural, a argumentação é partidária da competência linguística,

ocupando posição, portanto, ao lado da língua. É possível observar, já a partir da influência do

estruturalismo sob esse modelo teórico, a distância que o separa das teorias clássicas sobre a

argumentação que, em geral, entendem que a argumentatividade não é uma competência da

língua, no sentido que Saussure dá ao termo, mas tipicamente uma competência da palavra, do

discurso.

Ducrot compreende a argumentação como o estudo das orientações semânticas e dos

encadeamentos de enunciados. As pesquisas desenvolvidas em torno dessa concepção

passaram por estágios diferentes, cada qual com suas especificidades teóricas e

metodológicas, até que o modelo adquirisse os contornos que apresenta na atualidade. Esses

estágios resultaram na associação de diversas nomenclaturas aos trabalhos desenvolvidos,

como Neo-Estruturalismo, Semântica Argumentativa, Teoria da Argumentação na Língua,

Teoria dos Topoï e Teoria dos Blocos Semânticos. Em nosso trabalho, optamos por empregar

a denominação Teoria da Argumentação na Língua (TAL).

Inicialmente, Ducrot procurou estabelecer uma ligação entre a linguagem e a lógica,

tentando descrever o que seria “a lógica da linguagem”. Em uma perspectiva tradicional, a

argumentação teria a seguinte formulação: um sujeito falante produz o enunciado A como

argumento para justificar um outro enunciado C, em sequências do tipo A logo C. Aqui, a

língua, considerada como conjunto de frases semanticamente descritas, não desempenha um

papel fundamental na argumentação. Ela fornece, por um lado, os conectores que estabelecem

uma relação argumentativa entre A e C, ao mesmo tempo em que intervêm na passagem do

fato F para C.

Tradicionalmente, esse movimento argumentativo é atribuído a critérios lógicos,

psicológicos, retóricos e sociológicos, exteriores à língua, que fazem parte da situação

discursiva. O modelo de Ducrot recusa essa compreensão tradicional, por entender que a

argumentação pode estar diretamente determinada pela frase e não simplesmente pelo fato F

que o enunciado da frase veicula. Esta compreensão permite a postulação da hipótese de que a

argumentação está na língua, nas frases e, mais ainda, que as próprias frases são

argumentativas, pois a especificação dos caminhos que o interlocutor deve seguir para

compreender os enunciados vem das próprias frases. Entre essas especificações, Ducrot

interessa-se pelas variáveis argumentativas, que indicam ao intérprete do enunciado que ele

deve atribuir ao locutor uma estratégia argumentativa determinada.

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Foi essa observação que balizou a edificação da Teoria da Argumentação na Língua

(doravante TAL), cuja hipótese central é de que as frases possuem um valor argumentativo

em si mesmas, por isso a significação dos encadeamentos argumentativos é possível a partir

dos enunciados. Como o valor semântico da frase está contido em instruções que determinam

a intenção argumentativa a ser atribuída a seus enunciados, a frase indica como se pode, e

como não se pode, argumentar a partir deles.

Considera-se, assim, que a relação argumentativa está intrinsecamente ligada à língua,

de forma que é impossível derivar qualquer conclusão de um conhecimento extralinguístico. É

justamente esse o ponto central de elaboração da TAL, segundo a qual estados físicos e

psicológicos são incapazes de explicar por que, em enunciados do tipo “são só oito horas”,

podemos encadear conclusões que não seriam pertinentes a enunciados do tipo “são oito

horas”.

Para explicar a possibilidade de movimento de um argumento (A) a uma conclusão

(C), buscou-se então a noção aristotélica de topoï, adaptando-a como garantia para os

encadeamentos discursivos pelos quais se opera a ligação conclusiva entre enunciados.

Amossy (2006) identifica nesse ponto um momento de harmonização entre a retórica

aristotélica e a semântica pragmática, no qual Ducrot integraria plenamente a dimensão

retórica na linguística. Para Ducrot, os topoï ou operadores do senso comum6, são

determinantes do ato de argumentar, pois ao mesmo tempo em que garantem a constante

regulação do sentido, sustentam a organização do discurso, conferindo a ele coesão e

coerência7 (SARFATI, 2002).

Assim, entende-se que, em uma enunciação, o locutor dá as indicações sobre o

caminho argumentativo que escolheu e o alocutário tenta reconstruir um itinerário a partir

dessas indicações que lhe foram fornecidas. Essas indicações são os topoï, que permitem

operar uma escolha entre vários caminhos possíveis. Os topoï funcionariam, portanto, como

princípios gerais que servem de apoio ao raciocínio, embora não se constituam como o

raciocínio propriamente dito. Utilizados como objeto de um consenso no seio de uma

comunidade mais ou menos vasta, eles não precisam ser explicitamente referidos por um

locutor, que não assume sua autoria.

6 Expressão utilizada por Sarfati (2002) para designar os topoï. 7 Uma decorrência fundamental da formulação do modelo teórico de Ducrot é a de que os topoï se encontram no nível lexical, de forma que a significação de um lexema é o conjunto de topoï que autoriza a aplicação. Haveria, assim, uma estruturação tópica do léxico.

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Algumas considerações a respeito dos topoï na TAL merecem ser sublinhadas: não se

pode utilizar uma língua – na medida em que ela comporta operadores argumentativos –

senão quando se tem a sua disposição e se pressupõe a existência de topoï; ainda que a

utilização da língua exija que se disponha de topoï, ela não determina o conteúdo específico

destes topoï. A mesma língua pode ser utilizada por coletividades que admitem topoï

contrários; contudo, a existência de topoï reconhecidos pela coletividade é indispensável.

Uma outra noção, intimamente relacionada à de topoï, adquire valor fundamental

nessa teoria: a de conectores. Atuando no nível do percurso que o interlocutor pode percorrer

para ir do enunciado à conclusão, os conectores impõem condições sobre as formas tópicas

mobilizadas em um enunciado. Por isso, eles têm o poder de interditar o acesso a certos

caminhos, restringindo assim o número de topoï aplicáveis.

Sob essa perspectiva, a significação de uma frase é o conjunto dos topoï cuja aplicação

ela autoriza, a partir do momento em que a frase é enunciada. Como exemplo, podemos

pensar que, ao qualificar uma compra como dispendiosa ou econômica, o locutor pode estar

constituindo uma situação não necessariamente circunscrita a uma zona de preço, mas ligada

à aplicação de topoï relativos a outros valores, como status social. Observamos, contudo, que

o emprego de determinados conectores seria capaz de definir, com mais certeza, a quais

valores o locutor estaria se referindo.

Outra consideração a respeito dos topoï nos trabalhos de Ducrot é a de que todo ato de

argumentação e toda orientação argumentativa de um elemento semântico implicam que

sejam convocados topoï graduais. Em outras palavras, os topoï compreendem predicados

passíveis de serem graduados, como inteligente, grande, rápido, trabalhador, etc. A relação

argumento + conclusão é gradual por natureza, pelo fato de que um argumento é mais ou

menos forte para uma conclusão dada. Conhecer o sentido de uma palavra é saber quais topoï

lhe estão fundamentalmente relacionados. À proporção que um item lexical convoca um topos

(ou vários topoï), ocorre a graduação, a qual se encontra no nível da imagem que o topos

selecionado dá ao item lexical. Observemos o exemplo canônico:

Está fazendo calor, então vamos à praia.

Nesse caso, as formas tópicas (+ calor , + ir à praia) são concordantes e representadas

pela formulação (+P, +Q).

Já no exemplo seguinte:

Está fazendo calor demais para ir à praia.

As formas tópicas (+ calor, - praia) são discordantes e representadas por (+P, -Q).

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Admitir, entretanto, que os topoï originam-se em um espaço extralinguístico,

representando esquemas socioculturais, estereótipos ou ideologias, representa um problema

em uma teoria que se propõe a estudar a argumentação de forma não-referencialista. Ducrot

busca então uma reformulação, a fim de mostrar que a descrição de um segmento S são os

encadeamentos evocados por S, ou seja, que pertencem ao semantismo intrínseco de S.

Emediato (2001) relata que Ducrot encontrou a seguinte solução: reconhecer a

existência de uma distinção entre topoï ou encadeamentos extrínsecos (ligados a certos

conhecimentos de mundo) e topoï ou encadeamentos intrínsecos (ligados à própria

significação das palavras).

Em Está fazendo calor, então vamos à praia, estamos diante de um topos extrínseco,

que só pode ser compreendido em função do contexto.

Já em Pedro é rico, ele pode comprar tudo que quiser, verifica-se a ocorrência de um

topos intrínseco, ou seja, o semantismo da palavra “rico” compreende ter dinheiro em

quantidade suficiente para custear a aquisição de muitos bens.

Elegendo os topoï intrínsecos como o paradigma de seus estudos, Ducrot acredita ter

solucionado o paradoxo que contaminava a Teoria da Argumentação na Língua.

Em um estágio mais recente de seus estudos, Ducrot tem trabalhado com a noção de

blocos semânticos. Nessa nova fase da teoria, a hipótese central é a de que há uma

interdependência radical entre os diferentes segmentos de um encadeamento. Essa

interdependência não tem natureza lógica ou veritativa, mas é fundamentada em um substrato

intrínseco à própria argumentação.

Nesse contexto, o encadeamento argumentativo existe não para justificar uma

afirmação a partir de outra afirmação já admitida, mas para qualificar uma coisa ou uma

situação pelo fato de que ela serve de suporte para uma certa argumentação (DUCROT,

2004). Parece-nos que, com essa concepção, Ducrot pretende retirar o aspecto inferencial até

mesmo dos topoï extrínsecos.

Propomos, a partir dos dados apresentados aqui, uma reflexão a respeito do

relacionamento da TAL com outras linhas de pesquisa, especialmente com as teorias de

argumentação de fundamento retórico e pragmático.

Para Sarfati (2002), a Nova Retórica, de Perelman, e a TAL, de Ducrot, têm em

comum a constituição, cada qual em um contexto epistemológico distinto, de uma legitimação

da reflexão sobre os mecanismos do discurso cotidiano, em reação ao logicismo e ao neo-

positivismo.

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Não obstante, percebemos que a definição de argumentação na TAL, consolidada

como um encadeamento de enunciados conduzidos para certa conclusão, se distancia

consideravelmente dos domínios da retórica. Conforme já discutimos em outras passagens, a

questão central para as pesquisas retóricas é a linguagem como meio de persuasão. A teoria de

Ducrot, diferentemente, não parece se interessar pela análise de técnicas de persuasão.

Quando a TAL trabalha com os topoï e os operadores argumentativos que permitem o

encadeamento dos enunciados na língua, aponta-se que sua abordagem desses elementos se

daria de forma pontual e ascritivista.

Há que se ponderar ainda que a TAL foi desenvolvida com base em dados restritos e

utilizando-se de convenções impregnadas de apriorismos técnicos muito específicos, de forma

que Ducrot e seus colaboradores permaneceram, durante muito tempo, isolados de outras

correntes de pesquisa, como a Análise do Discurso, que em seus primórdios era conhecida por

seu apelo fortemente sociopolítico, e a própria Nova Retórica, completamente imbuída dos

princípios do classicismo.

Por fim, resta considerar que Ducrot (2002) acredita que seus trabalhos recentes sobre

os encadeamentos argumentativos na língua abrem uma perspectiva diferente para a retórica

clássica, cuja concepção tradicional, para o autor, daria primazia à prova pelo logos. Esse

logos, contudo, enfraquecido por buscar conteúdo no senso comum, nas crenças

compartilhadas no meio social, deveria buscar reforço pelo recurso ao ethos e ao pathos, que

são os verdadeiros responsáveis pela eficácia persuasiva. Portanto, o logos retórico é uma

ilusão. Em conclusão, Ducrot afirma que a verdade não pode ser encontrada na argumentação,

como conclusão das premissas, mas somente através da crítica reflexiva de um discurso.

Por todos esses aspectos aventados, lançamos a seguinte indagação: a Nova Retórica e

a TAL são estruturalmente incompatíveis entre si e, mais ainda, não podem ser conjuntamente

aplicadas para a análise linguística de um corpus?

A Nova Retórica é um modelo teórico de base eminentemente filosófica, cujas

categorias, devido a seu alto grau de abstração, apresentam dificuldades práticas de

operacionalização. Parece-nos que, a fim de viabilizar a análise linguística de um corpus,

pode ser interessante aliar os postulados filosóficos de Perelman às contribuições pontuais da

TAL, sobretudo no que diz respeito aos operadores argumentativos, aos marcadores de

pressuposições, aos modalizadores, que revelam a atitude do locutor perante o enunciado que

produz, e os índices de polifonia.

Delineado o quadro teórico nos limites do qual inserimos a análise argumentativa de

nosso corpus, iniciamos, no capítulo seguinte, uma discussão a respeito das relações entre

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linguagem, complexo institucional e performatividade, necessária às finalidades de

abordagem do discurso processual penal que propomos neste trabalho.

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3 LINGUAGEM, AÇÃO E O CARÁTER INSTITUCIONAL DA ATIV IDADE

DISCURSIVA

Nosso objeto de investigação – o processo movido pela Justiça Pública, em face de

uma mulher, para apuração de suspeita de autoaborto – encontra-se circunscrito no âmbito de

um amplo domínio discursivo que toma corpo no território das práticas de linguagem: o

discurso jurídico.

Como observa Mendes (2007)8, a caracterização mais rigorosa dos domínios

discursivos, de um ponto de vista teórico, é extremamente importante para a qualidade dos

trabalhos desenvolvidos na linguística da enunciação/discurso, ainda que represente um

grande desafio para os pesquisadores, por exigir um trabalho interdisciplinar sistemático com

outras áreas do conhecimento, como a Sociologia, a História, a Psicologia, a Comunicação

Social, a Ciência Política, a Etnometodologia, o Direito, a Filosofia.

Trata-se, enfim, de uma investigação relevante e, ao mesmo tempo, desafiadora:

Os pesquisadores da lingüística da enunciação ou do discurso acabam circunscrevendo seus objetos de estudo no âmbito daquilo que chamamos de ‘discurso político’, ‘discurso jurídico’, ‘científico’, ‘publicitário’, ‘jornalístico’, ‘literário’, ‘religioso’, ‘filosófico’ etc. O fato é que essas ‘noções’ muito difusas não caracterizam algo que dominamos teoricamente. (MENDES, 2007).

Neste capítulo, buscamos elaborar uma caracterização um pouco mais segura do

domínio discursivo jurídico, pontuando alguns de seus aspectos que nos parecem muito

peculiares. Essa caracterização implicou, inicialmente, a investigação de sua dimensão

institucional.

Muitos autores já se dedicaram à tentativa de compreensão das relações entre

linguagem e instituição, cada um deles partindo de fundamentações teóricas tecidas em

campos diferentes de investigação e chegando a conclusões também heterogêneas.

Na “sociologia dos campos”, por exemplo, cujo expoente mais ilustre é Pierre

Bourdieu, encontramos a discussão sobre as relações entre linguagem e complexo

institucional voltada para a questão da eficácia da palavra. Bourdieu defende a hipótese de

que a força ilocucionária das palavras não pode ser encontrada nelas mesmas, ou seja, a

eficácia da palavra não está em sua substância propriamente linguística, mas na adequação

8 Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes, em proposta de formação do grupo de estudos para Análise de Discursos Institucionais - linguagem, ação e poder, do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas.

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entre a função social do locutor e seu discurso. Em outros termos, a eficácia da palavra não

depende do que ela enuncia, mas daquele que a enuncia e do poder do qual ele está investido

aos olhos do público. Destaca-se aqui a relevância do estatuto pessoal dos sujeitos, assim

como da autoridade institucional usufruída por eles (autoridade individual e institucional do

orador – a reputação de sua família, seu estatuto social, o que se sabe de seu modo de vida,

etc) para se alcançar uma finalidade por meio do discurso.

Ao abordar as relações entre linguagem e instituição, colocando esta última como

realidade exterior àquela, o sociólogo dirige seu foco de análise para as condições

institucionais a serem preenchidas a fim de que um discurso de autoridade seja reconhecido.

Mais ainda, a discussão é encaminhada para as condições a serem preenchidas para que a

própria instituição funcione.

Recentemente, os escritos de Bourdieu têm sido fonte de inspiração para estudiosos da

linguagem, sobretudo no âmbito dos estudos ethóticos.

Maingueneau (1997), situado no campo de investigações da Análise do Discurso,

aponta o fato de que, por muito tempo, os estudos discursivos teriam privilegiado a análise

dos diversos corpora sem levar em conta os atos de enunciação que os havia tornado

possíveis, como se tais fatos fossem apenas um conjunto de “unidades destacáveis” e não uma

dimensão constitutiva do discurso. Como sintomático dessa forma de pensar, a noção de

instituição recebia nas Ciências da Linguagem uma interpretação restritiva, que se aplicava

apenas à língua, e não ao discurso. Em sentido oposto, este autor propõe-se a rearticular a

questão da cena enunciativa e, ao mesmo tempo, aprofundar a discussão sobre o caráter

institucional da atividade discursiva – a linguagem como ação institucionalizada –, abordando

o complexo institucional associado à enunciação de qualquer discurso.

Amossy (2005a, 2005b, 2006), cuja perspectiva teórica apresentamos no capítulo

antecedente, aborda a eficácia da palavra por meio da articulação entre discurso,

especialmente na modalidade argumentativa, e complexo institucional. A autora reconhece o

valor, no dispositivo enunciativo, do estatuto do locutor e do quadro institucional no qual ele

profere sua palavra, por entender que tal dispositivo depende também da posição daquele que

tem a palavra e do grau de legitimação de que goza no espaço social onde circula. Contudo,

recusa a concepção de Bourdieu de que a palavra retira sua eficácia unicamente da autoridade

do locutor.

Finalmente, encontramos em Searle (1976, 1995c) a hipótese de que as regras dos atos

de fala, assim como as regras de um jogo, têm natureza constitutiva. Nesta construção teórica,

considera-se que a linguagem é uma forma de comportamento intencional regido por regras,

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as quais são da mesma ordem das regras de futebol: aquelas são responsáveis pelas

regularidades apresentadas na linguagem, enquanto estas dão conta das regularidades

apresentadas em uma partida de futebol. Essa hipótese prevê o papel das instituições como

pressuposto necessário para que as regras adquiram sentido. Encontramos ainda em Searle

(1976) a questão do estatuto dos interlocutores relacionada à força ilocucionária de um ato de

fala, ou condições preparatórias para que este ato seja desempenhado com sucesso.

Nos tópicos seguintes, aprofundamos um pouco mais a discussão sobre as relações

entre linguagem, discurso e instituições segundo os autores explicitados acima, tomando

como fio condutor do raciocínio a questão do complexo institucional articulado à

performatividade da palavra.

3.1 Bourdieu e a sociologia dos campos

De maneira bem sintética, as incursões de Bourdieu pelas Ciências da Linguagem

parecem ter se desenvolvido como uma reação à linguística de procedência saussuriana,

recusada pelo sociólogo por buscar apenas no funcionamento interno da língua as explicações

necessárias para a compreensão dos diferentes posicionamentos dos sujeitos em uma dada

situação de comunicação. Essa preocupação estruturalista teria gerado uma ruptura entre o

estudo da língua e suas condições sociais de produção, reprodução e circulação, acarretando,

com isso, uma busca inútil do poder da palavra na própria palavra.

Segundo Bourdieu (2008), esse poder estaria em uma posição exterior ao verbo, na

medida em que as trocas simbólicas não se reduzem à relação de mera comunicação de

conteúdos, ou seja, falar não é somente transmitir uma informação. Quem fala quer ser

ouvido, obedecido, respeitado e para isso, deve ocupar, na estrutura social, determinada

posição que garanta à sua alocução o atributo de legitimidade. Por isso, afirma o autor que:

[...] todos os esforços para encontrar na lógica propriamente lingüística das diferentes formas de argumentação, de retórica e de estilística, o princípio de sua eficácia simbólica, estão condenados ao fracasso quando não logram estabelecer a relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo. (BOURDIEU, 2008, p. 89).

Para Bourdieu (2008), não se pode explicar linguisticamente o princípio da lógica e da

eficácia da linguagem institucional desprezando o fato de que a autoridade de que se reveste a

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linguagem “vem de fora”, é exterior ao orador. Dessa forma, parece claro que o autor desloca

para o campo da autoridade a discussão acerca do poder da palavra.

Em outros termos, a eficácia das manifestações performativas, segundo Bourdieu,

seria um desdobramento de um poder que reside nas condições institucionais de sua produção

e recepção. Eficácia equivaleria, assim, a uma questão de autoridade. E uma característica

fundamental do discurso de autoridade é, no sentido proposto por Bourdieu, a necessidade de

reconhecimento.

Se comparado à força da autoridade, o papel da linguagem é bastante limitado na visão

do sociólogo:

Pode-se dizer que a linguagem, na melhor das hipóteses, representa tal autoridade, manifestando-a e simbolizando-a. Há uma retórica característica de todos os discursos institucionais, quer dizer, da fala oficial do porta-voz autorizado que se exprime em situação solene, e que dispõe de uma autoridade cujos limites coincidem com a delegação da instituição. As características estilísticas da linguagem dos sacerdotes e professores e, de maneira mais geral, dos quadros de quaisquer instituições, tais como a rotinização, a estereotipagem e a neutralização, derivam da posição ocupada num campo de ocorrência por esses depositários de uma autoridade delegada. (BOURDIEU, 2008, p. 87-88).

A explicação para a possibilidade de um sujeito agir mediante palavras em relação a

outros sujeitos encontrar-se-ia, em última análise, no capital simbólico concentrado por ele, de

forma que os locutores que detém maior capital simbólico estão habilitados a impor as regras

de produção e de aceitação das formas linguísticas tidas como adequadas.

Por fim, o autor entende que o reconhecimento implica também a cumplicidade por

parte dos que se subordinam, devido à atuação dos mecanismos sociais capazes de produzir

tal cumplicidade:

A autoridade da língua legítima reside nas condições sociais de produção e reprodução da distribuição entre as classes do conhecimento e do reconhecimento da língua legítima e não no conjunto das variações prosódicas e articulatórias definidoras da pronúncia refinada como sugere o racismo classista, e muito menos na complexidade da sintaxe ou na riqueza do vocabulário, quer dizer, nas propriedades do próprio discurso. (BOURDIEU, 2008, p. 93).

Ao refletirmos sobre o discurso jurídico, sobretudo quando enfocamos as condições

enunciativas dos proferimentos produzidos nesse domínio, nos deparamos com essa

problemática de considerar, ou não, o estatuto pessoal dos interlocutores como condição

suficiente para o sucesso de determinados atos de fala por eles executados. Se pensarmos

como Bourdieu (2008), somos levados a assumir a hipótese de que a eficácia da palavra

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proferida por Juízes, Promotores e Advogados deriva do fato de estarem investidos de um

estatuto social. A investidura é importante, nesse caso, porque

[...] transforma ao mesmo tempo a representação que a pessoa investida faz de si mesma, bem como os comportamentos que ela acredita estar obrigada a adotar para se ajustar a tal representação. Pode-se compreender nesta lógica o efeito de todos os títulos sociais de crédito ou de crença – o que os ingleses denominam credentials – os quais, a exemplo do título de nobreza ou do título escolar, multiplicam de maneira duradoura o valor de seu portador ao multiplicar a extensão e a intensidade da crença em seu valor. (BOURDIEU, 2008, p. 100).

Contudo, se nos situamos na perspectiva discursiva, nossa compreensão da questão da

investidura caminha no sentido de considerar que o estatuto é relevante, mas a legitimidade do

locutor é construída também por meio de seu discurso. Em Maingueneau e Amossy

encontramos a fundamentação para esse modo de pensar.

Antes de iniciar a abordagem acerca da perspectiva discursiva, acreditamos ser

conveniente lembrar que o pensamento de Bourdieu tem inspirado trabalhos na Análise do

Discurso principalmente em torno da noção de ethos. Nessa vertente, postula-se a integração

do ethos retórico ou pragmático, fundado na eficácia da palavra, ao ethos formulado segundo

a hipótese de Bourdieu, na qual se defende a necessidade de levar em conta a posição do

locutor como ser empírico no campo em que ele se situa (político, intelectual, literário ou

outro).

3.2 O contraponto discursivo à sociologia dos campos

Diferentemente da sociologia dos campos, em uma perspectiva que alia Pragmática e

Análise do Discurso, a eficácia da palavra é pesquisada no interior da troca verbal, relegando-

se a um segundo plano os rituais exteriores à prática linguageira. Nesse domínio, interessam

os dispositivos de enunciação, as relações entre um dizer, um dito e uma instituição, ou seja, a

possibilidade de uma articulação entre linguagem e instituição, e não esta última considerada

isoladamente.

Em torno dessa possível articulação, destacamos os trabalhos de Maingueneau (1997,

2008) e de Amossy (2005a, 2005b, 2006).

Maingueneau (2008) direciona seus esforços na tentativa de articular, no nível do

discurso: enunciado e enunciação, linguagem e contexto, fala e ação, instituição linguística e

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instituições sociais. Para essa articulação, parte de um conceito fundamental, que constitui a

pedra angular de seu pensamento: o conceito de formação discursiva, tomado de empréstimo

de Foucault (2000), na Arqueologia do saber. A partir desse conceito, Maingueneau (1997)

estabelece inclusive a abrangência do termo discurso em sua teoria, que seria o conjunto de

enunciados produzidos a partir de uma certa posição, bem como o sistema de restrições que

permite analisar as especificidades desta superfície discursiva. Em relação a essas restrições, o

autor afirma que:

Este mesmo sistema de restrições pode ser considerado uma espécie de ‘competência’, no sentido chomskiano, ou seja, um conjunto de regras capazes de produzir uma infinidade de enunciados, realizados ou não, a partir da posição enunciativa estudada. A esta fonte de deslizamentos semânticos, acrescenta-se o que diz respeito aos elementos que supostamente entram na delimitação do ‘discurso’: para alguns, apenas os enunciados são integrados, enquanto outros levam em conta o complexo institucional que está associado à sua enunciação. (MAINGUENEAU, 1997, p. 23).

Maingueneau pode ser incluído no conjunto dos que levam em consideração o

complexo institucional como elemento de delimitação do discurso, tanto que em seus

trabalhos, propõe-se a reelaborar a questão da cena enunciativa e, ao mesmo tempo,

aprofundar a discussão sobre o caráter institucional da atividade discursiva, tratando, assim, a

linguagem como ação institucionalizada.

Na obra Gênese dos Discursos, Maingueneau (2008) aborda a imbricação entre um

discurso e uma instituição em termos de um sistema de restrições semânticas situadas além do

enunciado e da enunciação. Trata-se de uma semântica global, responsável por restringir, em

um determinado domínio discursivo, as temáticas abordadas, o vocabulário, as instâncias de

enunciação, a intertextualidade. Esse sistema permitiria que os discursos fossem analisados

juntamente com a rede institucional que a enunciação, a um só tempo, supõe e torna possível.

A partir dessa concepção, o autor afirma que:

Se se constata que a mudança de dominação discursiva num campo é acompanhada também de uma mudança correlativa dos espaços institucionais, e que tal mudança é pensável em termos de semântica global, isso significa que também nesse nível não há transformação gradual dos enunciadores de um discurso em enunciadores de outro discurso por uma série de microevoluções, mas substituição do conjunto de uma população de enunciadores, de uma rede de produção-difusão etc... de um certo tipo por outros. (MAINGUENEAU, 2008, p. 121).

Maingueneau (2008) aponta alguns fatores que podem auxiliar na identificação do

funcionamento de um complexo institucional, como um todo, e seu inter-relacionamento com

a discursividade. Incluem-se aí o organograma de uma instituição, as regras que governam as

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instituições nas quais se desenvolve determinado discurso, sua organização espacial, o modo

de enunciação de sua formação discursiva, o conteúdo dos proferimentos, o laço semântico

essencial de um funcionamento institucional, os modos de difusão desenhados pela própria

rede institucional.

Diante de suas constatações sobre a relação entre semântica do discurso e instituição, o

autor é levado a se distanciar da concepção de instituição como “suporte” para enunciações,

ou ainda, de um esquema fixo em que as instituições seriam a causa e o discurso, seu reflexo.

Assumindo hipótese contrária, Maingueneau (2008) afirma que as enunciações devem ser

consideradas de acordo com a mesma dinâmica das instituições onde são produzidas, pois “a

organização dos homens aparece como um discurso em ato, enquanto o discurso se

desenvolve sobre as próprias categorias que estruturam essa organização”.

(MAINGUENEAU, 2008, p. 128).

O modo como Maingueneau compreende as relações entre discurso e instituição

apresenta desdobramentos também para seus estudos sobre gêneros e sobre ethos.

No que diz respeito aos gêneros, observa-se uma passagem da concepção que

identifica os gêneros segundo suas características formais e adota-se uma concepção

institucional, na qual forma e condições de enunciação se fundem.

Para Maingueneau (1997), um gênero discursivo sujeita-se a condições de natureza

comunicacional e de natureza estatutária. As condições comunicacionais são aquelas

relacionadas à forma oral ou escrita, aos suportes e circuitos de difusão. As condições

estatutárias, por sua vez, afinam-se com a questão da legitimidade do lugar que o enunciador

ocupa no processo enunciativo, ou o tipo de estatuto que o enunciador genérico deve assumir

para tornar-se sujeito de seu discurso:

[...] não é por terem dado prova de competência que determinados indivíduos da população detêm o discurso médico, mas porque o exercício deste discurso pressupõe um lugar de enunciação afetado por determinadas capacidades, de tal forma que qualquer indivíduo, a partir do momento que o ocupa, supostamente as detém. (MAINGUENEAU, 1997, p. 37).

Neste ponto, a colocação de Bourdieu (2008) de que a eficácia da palavra é uma

questão de autoridade é deslocada para o plano da enunciação. Diferentemente do sociólogo,

Maingueneau (2008) entende que os próprios enunciadores definem seu “estatuto” e seu

“modo de enunciação”, inscrevendo a si e a seus enunciatários em uma certa posição social,

marcando sua relação com um determinado saber e legitimando sua fala. Parece claro que,

para Maingueneau (1997, 2005, 2008), esse fenômeno tem lugar no próprio discurso. O

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discurso é o lugar onde ocorre a atribuição de estatutos. Nesse contexto, o ethos surgiria como

componente essencial da eficácia da palavra, relacionando-se ao estatuto do locutor, mas

encontrando sua legitimidade no discurso.

Em seguida, encaminhamos a discussão para a dimensão institucional do domínio

discursivo jurídico, no qual se insere nosso corpus.

3.3 A dimensão institucional do discurso jurídico

Neste tópico, ainda abordando as relações entre linguagem, discurso e instituições,

tentamos elaborar uma hipótese explicativa da dimensão institucional do discurso jurídico,

tomando como base a teoria da construção da realidade social, elaborada por Searle (1995b).

Mendes (2006) dá a essa teoria contornos mais concretos e valiosos para os objetivos

de nossa pesquisa, ao evidenciar como as relações entre os fatos institucionais do discurso

jurídico se materializam em níveis, mais ou menos profundos, de busca de consenso

pragmático:

a) o nível inferior, dos atos de fala;

b) o nível intermediário, dos gêneros do discurso e

c) o nível superior, do domínio discursivo.

Para a abordagem de cada um desses três níveis de busca de consenso pragmático, nos

apoiamos na Teoria dos Atos de Fala (Austin, 1990; Searle e Vanderveken, 1983; Mari, 2001)

e nos trabalhos de Bazerman (2005) e Travaglia (2002), entre outros.

Percebemos que, com a articulação desses postulados teóricos, poderíamos traçar uma

gradativa ampliação do nosso campo de análises, explicando, com isso, a dinâmica em que se

constrói o discurso processual penal no interior do domínio discursivo jurídico.

Assim, assumimos a hipótese de que os atos de fala definem e designam os gêneros

discursivos, além de contribuírem para sua orientação argumentativa; cada sujeito processual,

em uma situação de interação linguageira travada nos limites de um processo judicial, produz

conjuntos de gêneros no desempenho de suas atividades profissionais; diversos conjuntos de

gêneros se articulam para a formação de sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um

domínio discursivo e realizam fatos sociais. Com isso, obtivemos a seguinte representação:

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HIPÓTESE EXPLICATIVA

Atos de Fala

Conjuntos de Gêneros

Sistemas

de Gêneros Domínio

Discursivo Fatos Sociais

Quadro 6: Hipótese explicativa do funcionamento do domínio discursivo jurídico Fonte: Elaborado pela autora

De acordo com Searle (1995b), o domínio discursivo jurídico pode ser caracterizado

pelo relacionamento dos fatos institucionais que o constituem. O que seriam, então, esses

fatos institucionais, cujas relações intrínsecas constituem e caracterizam o campo jurídico,

assim como o político, o religioso ou qualquer outro campo discursivo?

Os fatos institucionais são, para Searle (1995b), uma subcategoria especial dos fatos

sociais. Fato social é qualquer fato que envolva intencionalidade coletiva. Os fatos

institucionais, além da intencionalidade coletiva, requerem instituições humanas especiais

para sua existência, especialmente, a linguagem. Os fatos sociais e sua subcategoria existem

em oposição aos fatos brutos, que não dependem de quaisquer instituições para existirem,

nem mesmo da instituição da linguagem, e precisam dela apenas para que possam ser

declarados.

A realidade social, que está intrinsecamente associada à existência de uma

comunidade que partilha um conjunto de crenças, de valores ou de bens simbólicos, é criada

por um dispositivo de produção de fatos institucionais, ao qual Searle (1995b) denomina

“poderosa máquina de geração de realidade social”9.

O funcionamento dessa “máquina” apóia-se em um movimento contínuo e próprio do

universo humano, no qual os sujeitos, por meio da intencionalidade coletiva, atribuem

funções a objetos ou fenômenos que não as possuem previamente, criando, com isso, um fato

novo – um fato institucional – que só existe e se mantém em virtude do consenso humano.

A intencionalidade coletiva é um fenômeno biologicamente primitivo, que de forma

alguma pode ser reduzido à somatória de intencionalidades individuais. O elemento crucial na

intencionalidade coletiva é o senso de fazer (querer, acreditar, etc) algo juntos, e a

intencionalidade individual, que cada pessoa tem, é derivada da intencionalidade coletiva de

que todos partilham.

9 [...] powerful engine in the generation of social reality (Searle, 1995b, p. 51).

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O papel por ela desempenhado nesse processo de criação da realidade social é tão

importante que a própria definição de fato social, segundo Searle, está atrelada à

intencionalidade coletiva. Para o autor, qualquer fato que envolva intencionalidade coletiva é

um fato social. E ainda: “a forma mais simples de fatos sociais envolve formas simples de

intencionalidade coletiva.” (SEARLE, 1995b, p. 37, tradução nossa)10.

A respeito do segundo componente do aparato de construção de fatos institucionais – a

imposição de funções a entidades – Searle (1995b) explica que é uma característica própria de

seres conscientes a capacidade de atribuir funções a objetos e outros fenômenos que, por suas

propriedades, não possuem tais funções. O autor ressalta que essas funções nunca são

intrínsecas e que são atribuídas relativamente aos interesses dos usuários.

Em outras palavras, a função é desempenhada apenas como um assunto de cooperação

humana, e este é, segundo Searle, um elemento crucial na criação de fatos institucionais. Esse

tipo de imposição de funções constitui, assim, um passo além daquelas situações que

envolvem a imposição coletiva de funções a objetos cujas características inerentes permitem

que eles desempenhem tal função, como um pedaço de madeira utilizado como assento ou

uma vara usada como alavanca:

O movimento radical que nos leva de fatos sociais simples, como este que nós estamos sentados juntos em um banco ou estamos tendo uma queda de braço, a fatos institucionais como dinheiro, propriedade e casamento, é a imposição coletiva de função a entidades que – ao contrário de alavancas, bancos e carros – não podem desempenhar as funções somente em virtude de sua própria estrutura física. (SEARLE, 1995b, p. 41, tradução nossa)11.

Retomando o raciocínio de Searle, o elemento chave na criação de fatos institucionais

é, então, a imposição de um estatuto coletivamente reconhecido a uma entidade cuja estrutura

física é apenas arbitrariamente relacionada ao desempenho da função. Trata-se do movimento

de atribuição de “funções-estatuto”. Como ilustração, Searle lembra o caso do dinheiro,

especialmente a evolução da moeda corrente em papel.

Esse movimento de atribuição de funções-estatuto a determinadas entidades é

representado pela forma geral “X (fato bruto) vale como Y (função-estatuto atribuída por

intencionalidade coletiva) em C (contexto que se traduz pela rede integrada de relações com

outros fatos institucionais)”. Em outras palavras, o termo X é um objeto ou fenômeno que se

10 The simplest forms of social facts involves simple forms of collective behavior. 11 The radical movement that gets us from such simple social facts as that we are sitting on a bench together or having a fistfight to such institutional facts as money, property, and marriage is the collective imposition of function on entities which – unlike levers, benches and cars – cannot perform the functions solely by virtue of their physical structure.

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torna Y ao receber determinadas funções por via da imposição coletiva, em um contexto C,

ressaltando-se, mais uma vez, que o estatuto e a função que o acompanha vão além das puras

funções físicas brutas que podem ser atribuídas a X:

A aplicação da regra constitutiva introduz as seguintes características: o termo Y deve atribuir um novo estatuto que o objeto não tinha ainda apenas em virtude de satisfazer o termo X; e deve haver um acordo coletivo, ou pelo menos aceitação, tanto na imposição desse estatuto à coisa referida pelo termo X como sobre a função que segue com esse estatuto. (SEARLE, 1995b, p. 44, tradução nossa)12.

Para exemplificar a atuação de regras constitutivas de fatos institucionais no domínio

jurídico, podemos pensar em uma situação em que X (pedaço de papel com certos caracteres)

vale como Y (resumo de uma decisão judicial produzida por um colegiado de juízes ou,

simplesmente, Súmula) em um contexto C (Justiça brasileira).

O autor acrescenta ainda que a forma de atribuição de uma nova função-estatuto, que

como já se afirmou, pode ser representada pela fórmula “X conta como Y em C”, em algumas

situações, adquire uma configuração política, razão pela qual a fórmula ganha status

normativo. Isso é demonstrado pelo fato de que a regra geral cria a possibilidade de abusos

que não podem existir sem a regra, sendo que essa possibilidade de abuso é característica de

fatos institucionais.

Outra informação relevante é a de que a atribuição de função-estatuto pode ser

desdobrada de maneira iterativa, ou seja, podem ser atribuídas novas funções a objetos que já

tinham alguma outra função. No exemplo apresentado acima, podemos pensar que aquela

súmula agora é X e que, através do movimento de imposição de funções-estatuto, transforma-

se em Y (uma “Súmula vinculante”) no mesmo contexto C, da Justiça brasileira. A esse

respeito, Mendes (2008) complementa que “essas funções reiteradas historicamente podem

formar sistemas complexos de estruturas imbricadas e hierarquizadas, através do tempo”.

Traçando uma analogia com o que representam as Medidas Provisórias para o Poder

Executivo, conforme exemplo de Mendes (2008), esclarecemos o que são as chamadas

“súmulas vinculantes” para o Poder Judiciário: um tipo de ato de linguagem produzido por

julgadores, no interior de processos judiciais, que faz parte do gênero discursivo Acórdão e

que, no contexto institucional da Justiça brasileira, adquire foros de lei, passando a vincular,

ou obrigar, a decisão dos juízes de primeira instância como se lei fosse. Convém enfatizar

12 So the application of the constitutive rule introduces the following features: The Y term has to assign a new status that the object does not already have just in virtue of satisfying the X term; and there has to be collective agreement, or at least acceptance, both in the imposition of that status on the stuff referred to by the X term and about the function that goes with that status.

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que, apesar de vincular como lei, a súmula é produzida por um Poder que, no sistema de

Direito adotado pelo Brasil, não tem entre suas atribuições a faculdade de legislar, por isso

esse instituto tem gerado grande polêmica em meio aos estudiosos do Direito.

Pode-se inferir, então, de maneira sintética, que as instituições, ou os fatos

institucionais, são criados a partir de regras constitutivas, que têm a notação “X conta como Y

no contexto C” e que se opõem a regras meramente regulativas, que apenas regulam

atividades que já têm existência anterior às regras. Por exemplo, a regra: “dirija do lado da

mão direita da via” regula a direção; mas a direção existe antes da regra. As regras

constitutivas são aquelas que não apenas regulamentam, mas que também criam a

possibilidade de existência de certas atividades, como regras de xadrez, por exemplo: mais do

que regulamentar um jogo que já existe, elas criam a possibilidade de se jogar xadrez

(SEARLE, 1995b).

O autor chama a atenção para a postura dos sujeitos diante da realidade social,

afirmando que a atitude que nós temos diante do fenômeno é em parte constitutiva do

fenômeno. Acreditar que “algo é algo”: essa é uma característica notável dos fatos sociais,

que não encontra análogo entre os fatos físicos. Não obstante, o processo de criação de fatos

institucionais pode ocorrer sem que os participantes estejam conscientes de que isso está

acontecendo de acordo com a fórmula canônica. Primeiro porque nós nascemos e crescemos

em uma sociedade e recebemos suas instituições. Segundo porque os participantes não

precisam estar conscientemente atentos quanto à forma de intencionalidade coletiva pela qual

eles estão impondo funções a objetos.

Outro ponto a ser ressaltado é o de que existe uma relação especial entre imposição de

funções-estatuto e linguagem, e essa relação é tão estreita que se afirma que o elemento

linguístico é parte constitutiva dos fatos institucionais. Em outras palavras, a linguagem

aparece como fator essencial não apenas para a representação desses fatos, mas para sua

criação e manutenção. A título de ilustração, o autor mais uma vez apresenta o exemplo do

dinheiro: “as etiquetas que são partes da expressão Y, como a etiqueta ‘dinheiro’, agora são

parcialmente constitutivas do fato criado” (SEARLE, 1995b, p. 52)13. Desse modo, um grande

número de fatos institucionais pode ser criado pela explicitação de proferimentos

performativos (declarativos).

A linguagem desempenha ainda outros papéis no quadro dos fatos institucionais. Em

primeiro lugar, a linguagem é epistemologicamente fundamental. A complexidade das

13 The labels that are a part of the Y expression, such as the label “money”, are now partly constitutive of the fact created.

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instituições sociais requer linguagem para sua representação e comunicabilidade, pois sendo

os fatos inerentemente sociais, devem ser comunicáveis. E a linguagem é um meio de

comunicação pública. Como afirma Searle:

Porque o nível Y da mudança de X para Y na criação de fatos institucionais não tem existência apartada de sua representação, nós precisamos de um meio de representar isso. Mas não há um meio natural pré-linguístico de representar, porque o elemento Y não tem características naturais pré-linguísticas em adição ao elemento X que poderia prover os meios de representação. Então precisamos ter palavras ou outros meios simbólicos de performatizar a mudança de X para Y. (1995b, p. 69-70)14.

Investigando as características do domínio discursivo político, Mendes (2008)

observou que as relações entre os fatos institucionais que compõem esse domínio, assim como

qualquer outro, podem ser estruturadas em três níveis de complexidade, em termos das regras

pragmático-normativas que as constituem e a partir da integração de convenções psicossociais

e linguístico-enunciativas.

Para o autor, o primeiro nível, e mais elementar, concebido como um nível inferior de

consenso pragmático entre os interlocutores, é constituído pelos atos de fala, ou atos de

linguagem, na perspectiva assumida pela Teoria dos Atos de Fala.

O segundo nível, ou nível intermediário de busca de consenso pragmático, refere-se “à

rede de situações de comunicação, de gêneros situacionais ou de micro-contratos de

comunicação que se articulam de maneira imbricada e hierarquizada em função de um

terceiro e último nível”, denominado pelo autor de nível superior de busca de consenso

pragmático, que se refere ao campo do domínio discursivo.

Nas palavras do autor:

Os atos de linguagem elementares são articulados e encadeados sob a forma de gêneros discursivos, que são ‘modelos públicos’ de práticas de linguagem, ou ainda, dispositivos sócio-cognitivos de comunicação historicamente construídos, que configuram atos de linguagem de um nível superior de complexidade, a exemplo dos textos representativos de um comício, de uma entrevista ou debate eleitoral, de um projeto de lei, de uma propaganda de governo ou campanha, de uma reunião ministerial ou parlamentar, de um panfleto ou cartaz de protesto, de fóruns de discussão, apenas para citar alguns gêneros cuja rede hierarquizada constitui grande parte daquilo que chamamos de campo ou domínio discursivo político. (MENDES, 2008, p. 15).

14 Because the Y level of the shift from X to Y in the creation of institutional facts has no existence apart from its representation, we need some way of representing it. But there is mo natural prelinguistic way to represent it, because the Y element has no natural prelinguistic features in addition to the X element that would provide the means of representation. So we have to have words or other symbolic means to perform the shift form the X to the Y status.

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Nos tópicos seguintes, traçando uma analogia entre as observações reunidas por

Mendes (2008) quanto ao domínio discursivo político, tentaremos explicar as relações entre

os fatos institucionais, segundo os três níveis de busca de consenso pragmático, no campo do

discurso jurídico, buscando com isso uma melhor caracterização desse domínio discursivo.

3.3.1 As relações entre os fatos institucionais no nível dos atos de fala

Para compreender as relações entre os fatos institucionais do domínio jurídico no nível

dos atos de fala, ou atos de linguagem, é preciso estabelecer, inicialmente, em que sentido

compreende-se tal conceito.

Atribui-se à tradição anglo-saxônica o desenvolvimento do modelo conhecido como

Teoria dos Atos de Fala (TAF), no interior do qual o conceito de ato de fala é formulado a

partir de uma tentativa de se estabelecerem relações integradas entre o uso da linguagem e a

realização de ações. Desenvolvida a partir dos trabalhos de Austin, Searle e Vanderveken, em

uma perspectiva teórica sobre a qual se desenvolveu a pragmática, a TAF promoveu também

um deslocamento do conceito de enunciação em voga, por conceber a linguagem como

atividade, forma de ação linguística entre interlocutores. Esse deslocamento de perspectiva

ocorreu na medida em que:

Mudando-se a concepção de linguagem, passa-se de uma semântica representacional (centrada na questão do verdadeiro e do falso), para uma semântica discursiva: o enunciado produzido em determinadas circunstâncias pela pessoa apropriada [...] torna-se discurso – ele não pode ser descrito independentemente do contexto e das convenções sociais e culturais que regem sua enunciação. (BRANDÃO, 2002, p. 65).

Na obra Speech Acts: an essay in the philosofy of language (1976), Searle defende a

hipótese de que falar uma língua é performatizar atos de acordo com regras, já que uma

língua, em seu entender, pode ser considerada como uma realização convencional de uma

série de regras constitutivas. Dessa forma, atos de fala seriam atos caracteristicamente

executados pelo proferimento de expressões, em consonância com estes conjuntos de regras

constitutivas.

Ao tomar o ato ilocucionário como unidade de análise, considerando aqui sua força

ilocucionária e seu conteúdo proposicional, o autor conclui que existem apenas cinco

categorias gerais de atos ilocucionários, que se traduzem em cinco maneiras de usar a

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linguagem. Essas cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem correspondem àquilo

que um falante pretende realizar com o seu proferimento, por isso são chamadas por Searle de

propósito ilocucionário. Por meio delas, “dizemos às pessoas como as coisas são (Assertivos),

tentamos levá-las a fazer coisas (Diretivos), comprometemo-nos a fazer coisas

(Compromissivos), expressamos nossos sentimentos e atitudes (Expressivos) e provocamos

mudanças no mundo através de nossas emissões linguísticas (Declarações)”. (SEARLE,

1995a, p. 10).

Desenvolvendo o raciocínio de Searle, Mendes (2004) afirma que:

[...] há apenas cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem, que se traduzem pelos pontos assertivo, diretivo, comissivo, declarativo e expressivo, os quais se desdobram em múltiplas possibilidades de modos de realização do ponto, em função de certas condições de sucesso – a saber, as condições de conteúdo proposicional, preparatórias e de sinceridade – e de suas respectivas direções de ajuste da proposição em relação ao mundo e vice-versa, que orientam as condições de satisfação dos atos. (MENDES, 2004, p. 29).

Dessa forma, temos que os propósitos ilocucionários se traduzem por cinco pontos de

realização de um ato, que são o assertivo, o comissivo, o diretivo, o declarativo e o

expressivo.

Assim, um ato que se realiza no ponto assertivo reporta um estado de coisas que

preexiste à sua enunciação. Nesse ponto, a linguagem desempenha o papel de apenas

descrever o estado de coisas, que independe dela. A linguagem retrata a visão do locutor, por

isso o fato relatado é passível de julgamento quanto ao valor de verdade. Na medida em que

um ato que se realiza no ponto assertivo pretende descrever um estado de coisas já existente,

sua direção de ajustamento é a de palavra-mundo.

Um ato realizado no ponto comissivo projeta uma ação futura do locutor, que poderá

ser realizada em seu próprio favor ou em favor de seu alocutário. A linguagem cria entre os

interlocutores um laço de compromisso. É fundamental, contudo, que o locutor seja capaz de

realizar a ação intentada. Tem uma direção de ajustamento mundo-palavra, pois implica a

realização de ações representadas no conteúdo proposicional desses atos, a serem

desencadeadas num tempo futuro ao da enunciação.

No ponto diretivo, o ato projeta uma ação futura a ser desempenhada pelo alocutário,

ou seja, o locutor propõe uma ação, que não será realizada por ele próprio, mas pelo outro. O

pressuposto é o de que o alocutário seja capaz de realizar a ação e que esta não lhe seja

prejudicial. Assim como o comissivo, tem direção de ajustamento mundo-palavra.

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No ponto declarativo, o ato cria um estado de coisas a partir da enunciação de um

locutor, sendo a linguagem condição necessária para isso. O estado de coisas instaurado não

pode ser avaliado como falso ou verdadeiro, mas por outros valores que se associam ao status

de quem o profere. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de algum tipo de

autoridade. Esse ato possui dupla direção de ajustamento, porque instaura um estado de coisas

a partir de sua enunciação.

Um ato que se realiza no ponto expressivo representa um estado psicológico do

locutor. A linguagem serve de parâmetro para mostrar se o gesto do locutor em relação ao

alocutário é de aproximação/distanciamento, cortesia/repulsa, engajamento/indiferença, etc.

Avaliações sobre a natureza do estado de coisas são suspensas em nome da interação e do teor

protocolar de sua ocorrência. O pressuposto é o de que o locutor seja capaz de expressar um

sentimento ou de usar um protocolo apropriado. Atos realizados no ponto expressivo têm

direção de ajustamento nula, uma vez que expressam estados psicológicos de quem os realiza.

O agrupamento dos atos de fala em apenas cinco padrões, contudo, projeta uma visão

muito restrita do comportamento linguístico, de forma que é necessário operar uma abertura

que contemple a pluralidade de usos refletidos na fala. Essa abertura se faz pelos modos de

realização, que operam “[...] uma especificação, uma especialização, em razão de

circunstâncias próprias, da maneira pela qual o ponto de realização de uma força ilocucional

deva ser desempenhado para assegurar a satisfação de um ato de fala” (MARI, 2001, p. 121).

As inúmeras formas que o modo pode assumir em cada ponto de realização decorrem de

particularidades relacionadas aos componentes do processo enunciativo, ao conteúdo

proposicional e à utilização de formas linguísticas próprias.

As condições de conteúdo proposicional determinam restrições gerais a serem

impostas sobre a natureza do conteúdo proposicional de uma dada expressão linguística.

Assim, atos realizados nos pontos comissivo e diretivo requerem que os seus conteúdos

proposicionais representem uma ação futura do locutor e do alocutário, respectivamente, a

serem realizadas num tempo futuro ao de sua enunciação, de acordo com as circunstâncias

determinadas (MENDES, 1998).

Bazerman (2005) afirma que, para realizarem atos, as palavras devem ser ditas pela

pessoa certa, na situação certa, com o conjunto adequado de compreensão. O autor refere-se,

aqui, às condições preparatórias de realização de um ato por meio da linguagem, as quais se

relacionam à natureza das convenções reguladoras da situação de interação e aos papéis aí

desempenhados. Um ato declarativo como “declaro aberta a sessão”, por exemplo, só alcança

eficácia se for pronunciado por alguém investido do poder de presidir uma reunião, ou ainda,

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um ato com a força de uma ordem pressupõe uma relação hierárquica entre os interlocutores,

onde um deles encontra-se em uma posição superior.

Por fim, as condições de sinceridade se referem à intenção dos participantes da

interlocução de se engajarem, de fato, na execução das ações produzidas pela enunciação de

certos atos de fala, de modo que o desempenho do ato vale como a expressão de um estado

psicológico/mental específico do locutor pela qual este se responsabiliza (MENDES, 1998).

Assim, um locutor que enuncia, explica, faz uma asserção ou uma alegação, expressa uma

crença em determinado fato; aquele que promete, jura, ameaça ou se empenha em fazer algo,

expressa uma intenção de fazê-lo; aquele que ordena, manda, pede a alguém que faça alguma

coisa, expressa um desejo, uma vontade e assim por diante. Como afirma Searle (1995a, p. 7)

“o estado psicológico expresso na realização do ato ilocucionário é a condição de sinceridade

do ato.”

Em nossa cultura, os atos de fala definem e nomeiam os gêneros de discurso, ao

mesmo tempo em que instauram sua função social. Essa função é estabelecida no interior de

quadros sociais e institucionais bem definidos, que dão as “condições de felicidade” para sua

ocorrência, determinando até mesmo quem são os seus produtores esperados pela sociedade

(TRAVAGLIA, 2002). Um gênero que se enquadraria bem nessa observação seria, por

exemplo, uma citação judicial. Definida no Código de Processo Civil como “o ato pelo qual

se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender”, tem como local de ocorrência

os quadros institucionais do Poder Judiciário (BRASIL, 2011). O ato de fala que a nomeia e

que instaura sua função social é o verbo performativo “citar” (cita, ficam citados).

Considerando, portanto, o número significativo de textos definidos e nomeados por

atos de fala em nossa sociedade, entende-se que é necessário buscar uma explicação teórica

que relacione os conceitos de gênero e de atos de fala. Nesse sentido, parece mais pertinente

analisar a configuração de um gênero em função das forças ilocucionais que se manifestam

predominantemente em seu bojo.

Alguns domínios discursivos, que sofrem uma maior restrição institucional, por

exemplo, apresentam uma recorrência de certos tipos de atos de fala. Em outras palavras,

determinados tipos de atos de fala emergem como condição primária para a constituição de

certos tipos de discursos. Assim, textos/discursos produzidos no âmbito militar terão atos de

fala predominantemente diretivos (ordem), enquanto no âmbito legislativo, prevalecerão atos

declarativos. Já o discurso político tem como peculiaridade a produção de atos comissivos e

assertivos, que constituem condições enunciativas necessárias para sua construção.

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Tendo em vista essa preocupação teórica, no tópico seguinte, elaboramos uma

abordagem mais pontual dos gêneros discursivos, identificando o modelo teórico sobre o qual

apoiamos as discussões realizadas neste trabalho e buscando uma melhor compreensão das

relações entre atos de fala, gêneros e realização de atividades.

3.3.2 As relações entre os fatos institucionais no nível dos gêneros discursivos

Inicialmente, é necessário apontar a reflexão para alguns pressupostos que compõem o

quadro conceitual da discussão sobre gênero, desde a forma como foi concebido por

Aristóteles e Bakhtin, até estudos mais recentes, que caminham para uma perspectiva em que

os gêneros são vistos como situações retóricas do convívio social direcionadas a um propósito

– gênero como fato social.

Como já observamos, Aristóteles classificava os gêneros oratórios em três categorias,

de acordo com a função que o auditório deveria desempenhar em cada situação. Assim, no

gênero deliberativo, ou político, o auditório deveria ponderar a respeito de questões públicas

propostas por um orador; no gênero judiciário, o auditório, identificado com a figura do Juiz

de Direito, deveria decidir acerca de uma disputa entre dois proponentes, e no gênero

epidíctico, caberia ao público, composto de espectadores comuns, ou cidadãos, apenas

usufruir dos discursos produzidos em homenagem a uma pessoa ou à grandiosidade de uma

cidade, de um ato, de uma conquista.

Para Bakhtin (1997), os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados

produzidos pela língua, nas mais diversas situações da atividade humana. Em uma perspectiva

dialógica, o autor toma como parâmetro a noção de que os interlocutores, na comunicação

verbal, selecionam as palavras segundo as especificidades do gênero de que participam, sendo

que certos tipos de enunciados são gerados por uma determinada função (científica, técnica,

oficial, cotidiana, etc) e por determinadas condições de comunicação, próprias de cada campo.

Sem perder de vista o dialogismo bakhtiniano, a pesquisa sobre os gêneros do

texto/discurso segue enfoques diferentes na atualidade, conforme o quadro teórico e a

metodologia adotados, mas todas as abordagens têm como ponto de contato entre si o olhar

social sobre a linguagem.

Meurer, Bonini e Motta-Routh (2005) reconhecem três grandes correntes teórico-

metodológicas de estudos contemporâneos sobre os gêneros, que recebem o rótulo de

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abordagens sociossemióticas, sociodiscursivas e sociorretóricas, segundo traços teóricos

gerais que unem os trabalhos.

As abordagens sociossemióticas, inspiradas em maior ou menor grau pela gramática

sistêmico-funcional de Halliday, evidenciam a correlação entre texto e contexto, linguagem e

vivência humana. Inserem-se, nessa corrente, pesquisadores como Ruqayia Hasan, Jim

Martin, Roger Fowler e outros.

As abordagens sociodiscursivas, cujos representantes são Jean-Michel Adam,

Bronckart e Maingueneau, entre outros, abarcam pesquisas realizadas tanto no quadro da

Análise do Discurso francesa como no quadro do interacionismo sociodiscursivo e

encontram-se bastante voltadas para a questão das práticas de ensino de produção textual.

As abordagens sociorretóricas, nascidas a partir da tradição dos estudos retóricos,

gravitam em torno da compreensão de que os gêneros são situações retóricas do convívio

social direcionadas a um propósito. São expoentes desse pensamento John Swales e Charles

Bazerman. Enquanto Swales (1990) volta seu olhar para o conceito de “comunidades

discursivas”, Bazerman ocupa-se em lançar as bases de uma teoria das ações retóricas e é essa

a perspectiva teórica que nos parece mais apropriada para os fins propostos em nosso trabalho

de pesquisa.

Em prefácio à obra Gêneros textuais, tipificação e interação, publicada por Bazerman

em 2005, Marcuschi apresenta o autor como um teórico “filiado à escola de gêneros na linha

da nova retórica de base pragmática, com um pé na filosofia analítica”, que adota “uma

perspectiva sócio-interativa fortemente vinculada ao aspecto histórico e cultural no contexto

da linguística aplicada com ênfase na produção e uso de conhecimentos retóricos”

(MARCUSCHI, 2005, p. 10).

Sob essa perspectiva, “o núcleo da observação parte sempre da interação na situação

histórico-cultural, espraiando-se pela realidade social para observar conjuntos de gêneros e

atividades, sem se limitar às formas individuais.” (MARCUSCHI, 2005, p. 10).

Segundo Bazerman (2005, p. 31), os “gêneros emergem nos processos sociais em que

pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e

compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos”. (BAZERMAN, 2005, p. 31).

Os estudos do autor vão muito além, contudo, das definições estanques sobre gênero,

abrangendo também seus meios ou canais de circulação, modos retóricos e tipificação.

O conceito de tipificação, aliás, é fundamental para a compreensão dessa perspectiva

teórica:

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Os gêneros são produzidos quando interpretamos situações novas como sendo similares a outras e criamos tipificações que serão incorporadas a nossa experiência e aplicadas a novas situações. Incorporados ao repertório sociorretórico de seus usuários, os gêneros funcionam como mecanismos estruturadores e, de certo modo, reguladores das ações e interações sociais. (RODRIGUES, 2007, p. 252).

As tipificações a que se refere Rodrigues (2007) surgem como uma forma de

minimizar os esforços de compreensão em uma situação de troca linguageira15, uma vez que

aquilo que falamos ou escrevemos pode produzir sentidos diferentes daqueles esperados por

nós, o que acarreta dificuldades de entendimento entre falante e ouvinte. Agir de modo

“típico”, ou seja, seguindo certas regularidades facilmente reconhecíveis como realizadoras de

determinados atos em determinadas circunstâncias, se apresenta como um meio eficaz de

melhor coordenar nossos atos de fala uns com os outros.

A tipificação, contudo, obedece a um regime dinâmico: o gênero é uma categoria

sócio-histórica e, por isso mesmo, sujeita a um constante processo de mutação. Essa condição

de “prática discursiva historicamente determinada” faz com que se considerem mais

relevantes os aspectos funcionais dos gêneros do que os formais.

Nesse sentido, Mendes (2004) entende que a sociedade está organizada em “[...]

‘setores (esferas) de atividades’ que só se realizam sob a forma de práticas discursivas

institucionalizadas correspondentes àquilo que intuitivamente é chamado de ‘discurso

filosófico’, ‘religioso’, ‘científico’, ‘jurídico’, ‘literário’, ‘político’, ‘midiático’, etc.”. Estes

grandes domínios de linguagem, que se constituem como uma espécie de memória

interdiscursiva, “materializam-se textualmente sob a forma de um conjunto de gêneros

diversos associados a diferentes situações de comunicação, portanto, a diferentes condições

sócio-cognitivas de produção, recepção e circulação, e ainda, a diferentes convenções

lingüístico-enunciativas de ordem formal.” (MENDES, 2004, p. 120).

Os estudos de Bazerman ainda avançam em direção ao inter-relacionamento entre

gêneros, atos de fala, fatos sociais e realização de atividades, relação que nos parece de suma

importância para a consecução dos objetivos do presente trabalho, razão pela qual passamos

agora a aproximar os postulados da Teoria dos Atos de Fala (TAF) às reflexões desse autor.

Conforme se alegou anteriormente, a preocupação da TAF é a de explicar, de forma

lógica, as relações entre linguagem e ação. Essas duas categorias – linguagem e ação – são

15 Evidenciando esse aspecto da economia procedimental, vale a pena transcrever o conceito elaborado por Mari e Silveira (2004, p. 66), segundo os quais os gêneros emergem “(...) à primeira vista, como um ‘script’ – onde algum esqueleto mental de percepção e de inferências está estruturado e/ou disponível – que visa a uma economia cognitiva drástica no processamento da informação, fim maior que vemos circunscrito à existência de tal categoria, como manifestação de uma racionalidade desejável para as práticas de linguagem.”

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indissociáveis uma da outra, sendo possível afirmar-se que toda declaração realiza alguma

coisa, mesmo que apenas declare um estado de coisas como verdadeiro (AUSTIN, 1990).

Sob essa perspectiva, tudo aquilo que as pessoas dizem pode ser analisado em três

dimensões distintas. A primeira delas é a do que é “literalmente dito”; a segunda dimensão

abrange aquilo que se “pretende realizar com o que é dito” e a terceira corresponde ao que “as

pessoas entendem daquilo que é dito”.

A primeira dimensão, que inclui um ato proposicional, é denominada ato locucional. A

segunda dimensão, ato ilocucional e a terceira dimensão é chamada de efeito perlocucional.

A produção de qualquer enunciado implica a enunciação de pelo menos um ato

ilocucional. A ocorrência de atos ilocucionais é um fator de articulação entre os elementos

que compõem um texto/discurso, constituindo-se como fundamental para o reconhecimento

de um conjunto de enunciados como um gênero. A esse respeito, Mendes explica que:

[...] os discursos não são construídos apenas por um conjunto de palavras articuladas em frases que, por sua vez, se articulam sob a forma de textos – que podem assumir um formato dialogal, descritivo-narrativo, argumentativo, ou até mesmo um formato que seja a mistura de alguns ou de todos esses misturados –, mas, sobretudo, por um conjunto organizado de ‘atos ilocucionais’, isto é, de perguntas, afirmações, pedidos, promessas, declarações, atitudes proposicionais, predições, etc. – articulados e encadeados entre si sob a forma de gêneros, representativos de um editorial de jornal, de uma propaganda eleitoral, de um projeto de lei, de um panfleto sindical, de uma entrevista, de uma carta, de uma crônica, etc., os quais coexistem e se interrelacionam na sociedade em geral. (MENDES, 2004, p. 128)

Avançando um pouco mais na discussão, os efeitos perlocucionais de um ato, ou a

maneira como os alocutários recebem esse ato, são determinantes para o comportamento

destes na situação de interação. O ponto crucial da questão é que nem sempre há a

convergência do efeito perlocucional com a intenção ilocucional. Nesse sentido, Austin

explicita que:

[...] sempre temos que nos lembrar da distinção entre produzir efeitos ou consequências que são intencionais ou não intencionais; e entre (I) quando a pessoa que fala tenciona causar um efeito que pode, contudo, não ocorrer e (II) quando a pessoa que fala não tenciona causar um efeito ou tenciona deixar de causá-lo e, contudo, o efeito ocorre. (AUSTIN, 1990, p. 92)

O efeito perlocucional, para Bazerman (2005), estaria associado ainda aos fatos sociais

que são realizados por um texto: “[...] consideramos o texto, de uma forma geral, como tendo

uma ou algumas ações dominantes que definem sua intenção e propósito, que recebemos

como efeito perlocucional ou como o fato de realização social do texto.” (BAZERMAN,

2005, p. 35).

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Assim, quando as pessoas utilizam textos, produzem efeitos ainda mais amplos do que

a organização de atividades cotidianas: produzem também significações e fatos sociais, em

um processo interativo tipificado, no interior de um sistema de atividades que encadeia

significativamente as ações discursivas. Muitos fatos sociais, portanto, para se tornarem reais,

dependem da utilização de textos por parte das pessoas.

Pode-se afirmar, ainda, com base em Bazerman (2005), que cada texto encontra-se

encaixado em atividades sociais estruturadas e depende de textos anteriores que influenciam a

atividade e a organização social, criando, assim, condições que terão influência em atividades

subsequentes.

Essa observação pode ser ilustrada com um exemplo apresentado por esse mesmo

autor, que consiste no relato de uma situação em que um aluno se matricula em uma disciplina

de graduação e pratica, durante o período letivo, os atos necessários para ser aprovado. Na

sequência de eventos desencadeada nesse ínterim de produção e avaliação acadêmicas,

emergem “[...] gêneros altamente tipificados de documentos e estruturas sociais altamente

tipificadas nas quais esses documentos criam fatos sociais que afetam as ações, direitos e

deveres das pessoas.” (BAZERMAN, 2005, p. 21).

Esses fatos sociais que afetam ações, direitos e deveres das pessoas, corresponderiam,

então, aos efeitos perlocucionais obtidos pela manipulação de textos. No entendimento de

Bazerman (2005), muitos fatos sociais estão na dependência direta dos atos de fala e do

preenchimento de suas condições de sinceridade. Se as condições são efetivamente satisfeitas,

as palavras tornam-se fatos completos e ganham força de acontecimentos. Nas palavras do

autor:

Cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social. Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através de formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que estão relacionadas a outros textos e gêneros que ocorrem em circunstancias relacionadas. (BAZERMAN, 2005, p. 22).

Identificados, então, os níveis inferior e intermediário de busca de consenso

pragmático entre os interlocutores, constituídos, respectivamente, de atos de fala e gêneros

discursivos, bem como as relações travadas entre eles para a realização de atividades,

passamos agora à abordagem do nível superior: os domínios discursivos mais amplos, que

devem ser entendidos também sob essa perspectiva relacional de produção de fatos sociais,

como veremos no tópico seguinte.

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3.3.3 As relações entre os fatos institucionais no nível dos domínios discursivos organizados

por sistemas de gêneros

No nível superior de busca de consenso pragmático, encontramos os domínios

discursivos, cujos funcionamento e constituição (como pode se depreender de tudo o que foi

discutido até aqui) só podem ser explicados à luz dos níveis mais elementares, que são os atos

de fala e os gêneros de discurso. No interior desses domínios discursivos amplos, atuam

sistemas de gêneros, que organizam o trabalho discursivo e as relações sociais dentro de um

domínio.

Retomando o pensamento de Bazerman (2005), observamos que os fatos sociais

produzidos pela utilização de gêneros emergem tanto de conjuntos de gêneros, como de

sistemas de gêneros.

Os conjuntos de gêneros são a coleção de textos produzidos por um sujeito no

desempenho de um determinado papel social. O estudo de um conjunto de gêneros permite

que sejam catalogadas a extensão do trabalho, a habilidade de articulação e a competência de

um determinado profissional. Entende-se, com isso, que um conjunto de gêneros é aferido

tomando-se o locutor/agente como o parâmetro da classificação, o que implica a observação

de que cada especialista realiza determinadas ações tipificadas na instituição jurídica, as quais

são mais facilmente textualizadas quando se conhece o gênero apropriado para sua efetivação

no meio escrito (FUZER e BARROS, 2008).

Diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham juntas de forma

organizada compõem um sistema de gêneros. Um sistema de gêneros organiza o trabalho

discursivo, as relações sociais e a circulação de gêneros no interior de uma instituição. Parece

que o critério utilizado para se caracterizar um sistema de gêneros não é mais o agente, como

no conjunto de gêneros, mas a relação de interdependência que existe entre as produções

discursivas, que lhes dá a configuração de uma rede. A análise dos sistemas permite que essa

interdependência ou intertextualidade seja colocada à mostra.

Como afirma Bazerman:

Examinar o sistema de gêneros permite a você compreender as interações práticas, funcionais e sequenciais de documentos. Compreender essas interações também permite a você ver como os indivíduos, ao escrever qualquer novo texto, estão intertextualmente situados dentro de um sistema, e como a escrita é direcionada

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pelas expectativas de gêneros e amparada por recursos sistêmicos. (BAZERMAN, 2005, p. 43).

Bazerman postula ainda que a organização do trabalho discursivo e das relações

sociais no interior de um domínio, através dos sistemas de gêneros, é vista de forma muito

nítida nos discursos jurídicos processuais, em que “[...] o trabalho todo é realizado no

desenrolar de uma série de textos e enunciados; todos os recursos externos, para se tornarem

relevantes aos procedimentos jurídicos, precisam ser incorporados na sequência de

enunciados por um processo de tradução e avaliação.” (BAZERMAN, 2005, p. 146).

Essa afirmação é corroborada por uma máxima vigente no direito, segundo a qual “o

que não está nos autos não está no mundo”16, o que implica dizer que o Juiz deve julgar uma

causa levando em conta apenas o que está materializado nos autos; todos os recursos externos,

se não carreados ao feito, devem ser ignorados pelo julgador.

O autor reforça também o papel das regulamentações nesse sistema, lembrando que os

textos aí produzidos têm de estar em consonância com o que prescreve a ordem jurídica, com

suas leis, instituições e precedentes, que definem o desenrolar intertextual dos enunciados.

Comentando os trabalhos de Engeström (1992) e Stratman (1994), Bazerman afirma que:

Nos casos em que a tarefa é produzir discurso, tal como a produção de um discurso judicial – cujo objetivo é tornar claras e responsabilizáveis todas as ações desenvolvidas em apoio às decisões tomadas num processo judicial –, a organização processual e formal, através da qual emerge o discurso, tanto modela o produto discursivo final como enquadra a participação de cada pessoa no tribunal. (BAZERMAN, 2005, p. 132)

De fato, existem, por um lado, as normas processuais penais que determinam o rito a

ser seguido para a apuração do crime como, por exemplo, no Código de Processo Penal está

escrito que os crimes dolosos contra a vida são de competência do Tribunal do Júri. Por outro

lado, existem as normas de organização judiciária, que regulamentam detalhadamente o

andamento do feito nas Secretarias. Assim, o trabalho de um auxiliar da justiça, consistente

em proceder à juntada de documentos, abrir vistas a uma e outra parte, fazer os autos

conclusos ao juiz, redigir documentos (como mandados de citação) e digitar termos de

depoimentos, está rigidamente previsto em normas de organização judiciária.

3.4 O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional

16 No original, o brocardo latino é formulado como “Quod nom est in actis nom est in mundo”. (THEODORO JÚNIOR, 1992, p. 413)

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Para compreendermos melhor a perspectiva sistêmico-institucional e começarmos a

pensar o Processo Penal como um sistema de gêneros, propomos uma primeira abordagem do

processo que constitui nosso corpus de pesquisa. Nesse sentido, adotamos os seguintes

procedimentos:

a) O primeiro passo foi fazer um levantamento de todos os sujeitos que atuaram no

Processo, indicando os gêneros utilizados por cada um deles para a realização dos atos

processuais. Esse procedimento nos possibilitou identificar o conjunto de gêneros de cada

sujeito processual;

b) Em um segundo momento, buscou-se investigar como esses conjuntos de gêneros

vão se entrelaçar para constituir um sistema de gêneros e, nessa qualidade, produzir fatos

sociais, provocando alterações na realidade social.

Os procedimentos sugeridos por essa metodologia implicam a resposta às seguintes

perguntas: quais sujeitos atuaram no processo penal selecionado? Que gêneros cada sujeito

utilizou para executar seu papel no processo? Que atividades os textos produzidos por esses

sujeitos ajudaram a realizar? Que fatos sociais emergem da atuação articulada de conjuntos de

gêneros diversos?

Em seguida, apresentamos possíveis respostas a esses questionamentos.

3.4.1 Os sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros

Estudiosos do Direito Processual Penal ensinam que sujeitos processuais, ou titulares

da relação processual, são aquelas pessoas entre as quais se institui a relação jurídico-

processual.

Em levantamento realizado nos autos ora analisados, constatou-se que participaram

dessa relação jurídico-processual o Promotor de Justiça, o Escrivão de Polícia, o Delegado de

Polícia, o Detetive de Polícia, o provedor da Santa Casa de Perdões, a Diretora Clínica do

SUS, o Escrivão Judicial, escreventes, auxiliares de Secretaria e de Promotoria, o Juiz de

Direito, a funcionária do Serviço de Controle e Avaliação da Secretaria Municipal de Saúde, o

médico que prestou atendimento à ré, o Oficial de Justiça, o Defensor, auxiliares da justiça em

segundo grau, o Procurador de Justiça, Desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas

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Gerais, o Escrevente do Júri, jurados, o Oficial de Justiça avaliador e o médico que atestou

impossibilidade de comparecimento de jurado à sessão de julgamento.

O Juiz, o Promotor de Justiça e o Defensor/acusado são considerados sujeitos

principais da relação jurídico-processual. Ao longo da demanda analisada, esses sujeitos

principais praticaram uma série de atos e produziram inúmeros documentos.

O Juiz, por exemplo, produziu ao longo do processo, vários despachos e ofícios, um

edital de convocação do Júri, um mandado para notificação de jurados, um termo de

verificação de cédulas (digitado por uma auxiliar da justiça e assinado por ele), uma decisão

de pronúncia da ré e uma sentença que extinguiu o processo.

Esses documentos compõem, assim, o conjunto de gêneros produzido pela instância

julgadora e aferem qual a função desempenhada por ela na aplicação da justiça penal, que é a

de prover à regularidade do processo, determinando o que deve ser feito pelos auxiliares da

justiça, bem como manter a ordem das audiências, das sessões ou diligências, além da função

precípua de decidir.

No quadro a seguir, os documentos produzidos pelo Juiz, que compõem seu conjunto

de gêneros, são listados juntamente com a atividade desempenhada por meio deles:

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CONJUNTO DE GÊNEROS DO JUIZ DE DIREITO

Documento Atividade desempenhada

Despacho

Mandar que o Inquérito Policial seja enviado ao Promotor para que este se manifeste a respeito de pedido de dilação do prazo feito pelo Delegado; Deferir o pedido de dilação de prazo feito pelo Delegado; Mandar que o Inquérito Policial seja enviado ao Promotor para que este informe se pretende que sejam feitas novas diligências; Mandar que os autos sejam enviados à Delegacia de Polícia para novas diligências requeridas pelo Promotor; Designar realização de Audiência; Determinar a revogação do benefício de suspensão condicional do processo em gozo pela ré e designar Interrogatório da mesma; Nomear defensor à ré; Nomear outro defensor à ré, dada a desistência do primeiro defensor; Nomear novo defensor à ré, dada a desistência do segundo defensor nomeado; Designar audiência de Instrução e Julgamento; Receber o recurso em sentido estrito impetrado pelo Defensor e determinar seu processamento; Manter a decisão recorrida de pronunciar a ré; Determinar novo envio dos autos ao TJMG; Mandar que os autos sejam enviados ao Promotor de Justiça para oferecimento de libelo; Recebimento do libelo-crime e intimação de testemunhas; Nomear novo defensor à ré; Mandar que os autos sejam enviados ao Promotor de Justiça para que este se manifeste acerca de certidão do oficial de justiça; Decretar a prisão preventiva da ré; Mandar que o processo seja incluído na pauta de julgamento; Designar data para sorteio dos jurados; Mandar que o Promotor de Justiça seja ouvido quanto à dispensa de testemunha; Mandar que seja ouvida a Defesa sobre dispensa de testemunha pelo Promotor de Justiça

Ofício

Informar à Polícia que a ré está em gozo do benefício de suspensão condicional do processo e determinar que a polícia fiscalize o cumprimento das condições deste benefício pela ré; Requisitar ao comandante de polícia que compareça em juízo para testemunhar; Solicitar o comparecimento da testemunha em juízo para prestar depoimento; Requisitar policiais militares para a segurança da Sessão de Julgamento; Requisitar força policial para conduzir a ré à Sessão de Julgamento; Comunicar a absolvição da ré à diretora do Instituto de Identificação

Pronúncia Pronunciar a ré, determinando seu julgamento pelo Tribunal do Júri

Edital Convocar os jurados que foram sorteados para comparecer à sessão de julgamento

Mandado Mandar que cada jurado sorteado seja notificado a comparecer à sessão de julgamento

Termo

Certificar a verificação de cédulas para o sorteio de jurados que irão participar efetivamente do julgamento

Sentença Com base na decisão proferida pelo Júri, decretar a absolvição da ré

Portaria Designar data para realização da sessão de julgamento e para o sorteio dos jurados

Despacho Determinar o arquivamento do feito Quadro 7: Conjunto de gêneros e atividades do Juiz de Direito Fonte: Elaborado pela autora

O Promotor de Justiça produziu Denúncia, Alegações Finais do Ministério Público,

Contra-razões Recursais do Ministério Público, Libelo-Crime Acusatório, pedido de prisão

preventiva e debates orais na sessão de julgamento, além de declarações, requerimentos e

pareceres. Emerge daí o conjunto de gêneros do Promotor de Justiça (quadro a seguir), bem

como a função que desempenha no Processo Penal: a doutrina o considera parte e “senhor da

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ação”, por ser ele fiscal da aplicação da lei e, ao mesmo tempo, responsável pela atividade de

acusação do réu.

CONJUNTO DE GÊNEROS DO PROMOTOR DE JUSTIÇA

Documento Atividade desempenhada

Denúncia Denunciar à justiça alguém que o Promotor acredita ter cometido um crime

Parecer Opinar sobre requerimento, feito pelo Delegado, de dilação de prazo para a conclusão do Inquérito Policial

Requerimento Solicitar à autoridade judiciária o retorno do Inquérito Policial à Delegacia, para diligências; Propor a Suspensão do Processo contra a ré; Requerer à autoridade judiciária a revogação da suspensão condicional do processo da ré; Requerimento de decretação de prisão preventiva da ré

Declaração

Declarar que apresentará denúncia e proposta de suspensão do processo; Declarar ciência do conteúdo de ato do Juiz designando audiência; Declarar ciência de ato do juiz decretando a revogação do benefício de suspensão condicional do processo; Declarar apresentação de Alegações Finais; Declarar ciência da decisão de Pronúncia; Declarar ciência da retratação do Juiz; Declarar apresentação de libelo; Declarar a dispensa de testemunha; Declarar ciência de despacho do juiz

Alegações finais Apresentar argumentos que sustentem a tese de acusação

Contra-razões recursais Apresentar resposta às Razões de Recurso da defesa

Libelo

Expor de forma escrita e articulada o fato criminoso reconhecido na pronúncia, com indicação do nome da ré, das circunstâncias agravantes previstas na lei penal e dos fatos que devam influir na fixação da pena

Debates orais Promover a acusação da ré na sessão de julgamento

Quadro 8: Conjunto de gêneros e atividades do Promotor de Justiça Fonte: Elaborado pela autora

O Defensor, que representa a voz do réu no processo, produziu Defesa Prévia,

Alegações Finais, petição de interposição de recurso em sentido estrito, Razões Recursais,

debates orais na sessão de julgamento, declarações.

A ré, por razões não explicitadas no processo em tela, mas que acreditamos estarem

relacionadas à sua situação de pobreza, não constituiu advogado para defender-se. A

principiologia que orienta o Processo Penal, contudo, não permite que nenhum réu seja

processado sem que um defensor atue como contraparte ao órgão acusador, de forma que o

Juiz deve nomear um defensor dativo, custeado pelo Estado, para exercer essa função.

O quadro a seguir representa o conjunto de gêneros do Defensor, assim como as

atividades desempenhadas por ele:

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SUJEITO PROCESSUAL

CONJUNTO DE GÊNEROS ATIVIDADE DESEMPENHADA

Defensor nomeado I

1. Petição Pedir ao Juiz que seja nomeado outro defensor à ré

Defensor nomeado II

1. Petição Pedir ao Juiz que seja nomeado outro defensor à ré

1. Defesa prévia Dizer que os fatos não ocorreram conforme narrado na denúncia e arrolar testemunhas

2. Alegações finais Apresentar argumentos que sustentem a tese da defesa

3. Petição Pedir ao Juiz vistas dos autos para interposição de recurso em sentido estrito

4. Recurso Apresentar razões à instância superior para que a ré não seja levada a julgamento pelo Júri

Defensor nomeado III

5. Petição Pedir ao Juiz a exoneração da nomeação

1. Contrariedade ao libelo Apresentar contrariedade ao libelo oferecido pelo Promotor

Defensor nomeado IV

2. Debates orais Promover a defesa da ré na sessão de julgamento

Quadro 9: Conjunto de gêneros e atividades do Defensor Fonte: Elaborado pela autora

No caso analisado, o Juiz indicou um primeiro advogado que, alegando razões de foro

íntimo, declinou da intimação. Foi nomeado um segundo advogado, que também declinou. O

terceiro advogado indicado aceitou a nomeação e seguiu como defensor da ré até terminar a

primeira etapa do processo. Ao final dessa etapa, pediu destituição. Outro defensor foi

nomeado em seu lugar. Isso explica as várias petições de destituição e de exoneração

encontradas no processo analisado.

No exercício da função jurisdicional, o Juiz conta com a colaboração de outros agentes

no que se relaciona à atividade de documentação e de execução dos atos processuais. São os

chamados auxiliares da justiça, que atuam para tornar a relação jurídico-processual concreta,

promovendo andamento prático ao feito, executando atividades técnicas e burocráticas que

vão dar materialidade ao Processo Penal. A doutrina os classifica como partes acessórias do

processo. São eles: o Distribuidor, que registra e distribui os feitos entre as Secretarias; o

Escrivão ou chefe da Secretaria para onde o feito é remetido e os escreventes, que são seus

auxiliares; o Oficial de Justiça, que executa os mandados de citação, intimação, busca e

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apreensão, diligências, prisão, etc; os auxiliares de cartório, que se incumbem dos protocolos,

entregas de autos, etc (MIRABETE, 2001).

No processo analisado, observamos que os sujeitos acessórios produziram diversos

termos, mandados, certidões. Os quadros representativos dos conjuntos de gêneros e

atividades produzidas pelos sujeitos acessórios encontram-se no Apêndice A deste trabalho.

Fuzer e Barros (2008) lembram que alguns gêneros, no interior de um Processo Penal,

só podem ser utilizados por um determinado sujeito processual. No mesmo sentido, Travaglia

(2002) afirma que, em quadros institucionais rígidos, existem os “produtores esperados” de

certos tipos de textos. Assim, o Relatório de Inquérito só pode ser produzido/assinado pelo

Delegado de Polícia que investigou o caso, da mesma forma que a Denúncia só pode ser

produzida/assinada pelo Promotor de Justiça e a sentença, pelo Juiz que preside o processo.

Outros gêneros, como despachos e ofícios, são de domínio menos restrito e podem ser

produzidos tanto pelo Juiz, pelo Delegado de Polícia e pelo Promotor.

3.4.2 Os sistemas de gêneros

Conforme se afirmou anteriormente, a reunião de diversos conjuntos de gêneros

utilizados por pessoas que trabalham juntas, de forma organizada, compõe um sistema de

gêneros, que organiza o trabalho discursivo, as relações sociais e a circulação de gêneros no

interior de uma instituição.

O critério utilizado para se caracterizar um sistema é a relação de interdependência

existente entre as produções discursivas, que lhes dá a configuração de uma rede. A análise

dos sistemas permite que essa interdependência ou intertextualidade seja colocada à mostra.

O esquema a seguir representa os principais atos que se verificaram no

Processo/corpus, assim como os principais documentos produzidos pelos sujeitos processuais:

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Quadro 10: Esquema representando os principais atos e documentos produzidos no Processo/corpus Fonte: Elaborado pela autora

Observamos que nessa rede onde se imbricam conjuntos de gêneros produzidos por

vários sujeitos processuais, um ato ou documento não poderia ser produzido sem que outro o

fosse previamente. Existe uma forte relação de interdependência entre as práticas,

regulamentada pela legislação processual penal.

Assim, o Inquérito Policial, cujo responsável é o Delegado de Polícia, auxiliado pela

Polícia Civil e Militar, é pré-requisito para que o Promotor de Justiça possa apresentar a

Denúncia. Com fundamento nos fatos narrados e nas provas produzidas nesse inquérito é que

o Promotor a redige. Entretanto, por regulamentação legal, a Denúncia é acostada como a

primeira peça do processo e o Inquérito Policial, autuado na sequência, acaba desempenhando

o papel de um anexo da Denúncia, ao qual o Promotor de Justiça faz referências a todo

momento, citando trechos, documentos, depoimentos compilados ali.

Desse modo, a Denúncia é a primeira peça encartada, apesar de não ter sido a primeira

a ser produzida. Ocorre que os documentos não são autuados necessariamente na ordem

cronológica em que são produzidos, mas em uma ordem prescrita pelo Código de Processo

Penal, que garante a aplicação concreta do princípio do contraditório: primeiro se manifesta a

acusação, depois, a defesa.

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A Defesa Prévia da ré, oferecida pelo Defensor, só pode ser produzida após o

interrogatório. O Código prescreve a realização de uma audiência de instrução e julgamento,

na qual são ouvidas as testemunhas e, supostamente, esclarecidos os fatos que levaram a ré a

ser processada.

Somente após essa audiência, o Promotor tem condições de oferecer as Alegações

Finais da Acusação, porque, nessa peça, ele faz uma revisão geral do processo, comentando as

provas, articulando argumentos, para encerrar com o pedido de condenação da ré.

Em refutação aos argumentos do Promotor, o Defensor apresenta as Alegações Finais

da Defesa, construindo sua argumentação com base em fatos e provas que permitam a ele

encerrar pedindo a absolvição da ré. As alegações do Promotor são autuadas anteriormente às

alegações do Defensor para que, ao elaborar sua peça, este tenha ciência do conteúdo de toda

a acusação, e assim possa contrariá-la amplamente, em respeito ao princípio do contraditório e

da ampla defesa.

É que norteando o processo penal, existem alguns princípios que tentam tornar a

relação entre o Estado, que é o órgão que detém a persecução penal, e o réu um pouco menos

desequilibrada, ao conceder a este (a parte mais fraca), algumas garantias de que não será

sumariamente condenado, sem ao menos ter o direito de defesa17.

Com a Decisão de Pronúncia, o Juiz decide pelo menos sobre esse primeiro conflito

instaurado no processo.

Dessa forma, o Processo Penal pode ser considerado um sistema de gêneros, uma vez

que os textos que constituem seus autos não podem ser analisados isoladamente; eles fazem

parte de uma rede constituída de outros textos, que ajudam a realizar atividades específicas

que competem aos participantes do sistema. Esses participantes – os operadores do Direito –

fazem uso de uma série de documentos que podem ser reconhecidos por funções e formas

específicas, configurando-se em gêneros discursivos que se inter-relacionam para se alcançar

um fim.

Na parte seguinte, apresentamos o corpus que será objeto de análise segundo os

modelos teóricos apresentados até aqui; discorremos, de forma breve, a respeito do contexto

institucional em que foi produzido e explicitamos os procedimentos metodológicos adotados

para sua seleção e análise.

17 A esse respeito, abrimos um parêntese para lembrar a situação surreal vivida pelo personagem Joseph K., na obra O Processo, de Kafka. O personagem se vê como réu em um processo sobre o qual não lhe é informado sequer o conteúdo da acusação, o órgão acusatório, o tribunal em que será realizado o julgamento. Enfim, a trama criada por Kafka nos faz sentir o caos que viveríamos sem a segurança do devido processo legal.

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4 EM TORNO DO CORPUS: ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

4.1 Apresentação do corpus

Selecionamos como corpus da pesquisa que aqui se propõe os autos de um processo

judicial penal, movido pelo Ministério Público em face de uma ré (doravante R), pela suposta

prática de crime de aborto.

Consta dos autos que essa mulher teria introduzido uma sonda em seu útero para

interromper uma gestação de cerca de dois meses.

O procedimento teria provocado complicações e, ao buscar atendimento médico, a

acusada foi encaminhada à polícia para prestar esclarecimentos.

Instaurou-se um inquérito policial para averiguações. Concluído o inquérito, o

Ministério Público ofereceu denúncia contra ela. Sendo um crime contra a vida, o processo

seguiu o rito dos crimes de competência do Tribunal do Júri.

Em 18/04/04, foi realizada a sessão de julgamento de R, a qual resultou em sua

absolvição por falta de provas, de acordo com entendimento dos jurados.

O Código de Processo Penal prescreve que compete ao Tribunal do Júri o julgamento

de crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, e os crimes a eles conexos. São

crimes contra a vida: o homicídio (art.121); o induzimento, a instigação ou o auxílio a

suicídio (art.122); o infanticídio (art. 123) e o aborto (arts. 124 a 127). (BRASIL, 2011).

Ao longo do processo instaurado para o julgamento de R, foram produzidos inúmeros

atos e peças processuais. Percebe-se assim que, do embate judicial travado entre acusação e

defesa e mediado pelo juiz, emerge uma profusão de proferimentos e atos processuais,

formando uma teia dialógicoargumentativa em que o discurso de um está presente no do

outro, constituindo-o para ser confirmado ou, então, refutado.

4.2 Critérios de seleção

Ao iniciarmos nossa pesquisa, já havíamos decidido por proceder a uma investigação

linguístico-discursiva de um processo de competência do Tribunal do Júri, mas subsistiam

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dúvidas acerca de qual espécie de processo escolher, pois a competência do Júri abrange todos

os crimes dolosos contra a vida, o que inclui a prática de homicídio, de infanticídio, de delitos

ligados à instigação do suicídio e ao aborto.

No campo das Ciências da Linguagem, outros trabalhos já foram desenvolvidos em

torno da análise linguística de processos instaurados para apuração de crimes de homicídio no

Tribunal do Júri, entre os quais citamos Fagundes (1987, 1995) e Fuzer e Barros (2008). Nos

trabalhos de Lima (2001, 2006), os processos analisados apresentam, como ponto de contato,

a figura da mulher como sujeito passivo de assassinatos violentos.

Ao fazer um estudo dos demais crimes encampados por essa instituição, aventamos a

possibilidade de trabalharmos com um crime de aborto, pois encontramos na tipificação dessa

conduta um procedimento de ponderação de bens que, em algum sentido, se assemelha à

hierarquização de valores proposta por Perelman em sua teoria da argumentação: no aborto,

dois bens jurídicos fundamentais estão em posição de conflito: o direito à vida, por parte do

feto, e o direito à livre disposição do corpo, por parte da mãe.

Assentado, então, que trabalharíamos com esse tipo de delito, iniciou-se uma nova e

difícil etapa de nossas pesquisas. Procurando processos de aborto em sites jurídicos

especializados, encontramos, na maior parte, feitos instaurados em face de médicos que

mantêm clínicas clandestinas, ou contra pessoas leigas que adotaram a prática da interrupção

da gravidez como profissão (“aborteiros”). Esses casos não nos interessavam, porque

acreditamos que a ponderação de bens é mais evidente naquelas situações em que a própria

gestante pratica em si o ato.

Seguindo com as buscas, nos deparamos com os autos de um processo instaurado para

julgamento de um crime de autoaborto em uma comarca do interior do Estado de Minas

Gerais. Este processo havia tramitado conforme o rito do Tribunal do Júri e já estava

encerrado com o julgamento do mérito, o que equivale a dizer que o caso havia passado por

todas as fases previstas no Código de Processo Penal, desde a abertura do inquérito policial, a

instauração do respectivo processo, a pronúncia da ré e seu julgamento pelo corpo de jurados.

Pareceu-nos, então, que seria produtivo submeter tal processo à análise, considerando

que as diversas fases de tramitação correspondem, na linguística do discurso, a momentos

enunciativos diferentes, o que possibilitaria uma visão global do dispositivo de enunciação em

um processo penal.

Ainda em relação à seleção do processo tomado como corpus, acreditamos ser

necessário esclarecer que o caso foi encontrado por meio de buscas no site do Tribunal de

Justiça de Minas Gerais, pelo link consultas-jurisprudência-acórdãos. Neste site, cujo acesso é

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público, encontram-se disponíveis tanto a ementa quanto o inteiro teor do acórdão que

determinou o julgamento da ré pelo Tribunal do Júri. Consta também o número do processo

na comarca de origem.

De posse desse número, nos dirigimos à comarca onde foi instaurado o feito e então

protocolamos uma petição destinada ao Juiz responsável, solicitando que nos permitisse

acessá-lo, ao que tivemos resposta positiva.

Ao compulsar os autos, percebemos que se tratava de um caso curioso, edificado sobre

as bases de um paradoxo que não se desfez nem mesmo ao final do processo, com o

julgamento da acusada pelo corpo de jurados.

4.3 Hipótese e justificativa

Nosso interesse pelo estudo da argumentação no domínio discursivo jurídico surgiu

em decorrência da observação empírica de que nem sempre o litigante que detém a razão em

um determinado processo, ao final, é julgado vencedor. Se a relação entre a verdade dos fatos

e a procedência de uma ação fosse assim tão direta, não haveria necessidade de advogados

para defenderem as partes, bem como de ritos processuais que determinam o momento de

cada um expor suas razões e produzir suas provas.

Depreendemos, então, que, em um processo judicial, a verdade é construída nos

próprios autos, discursivamente, através da fala dos sujeitos ali envolvidos, pois são eles que

apresentam formalmente os fatos, discutem as provas, solicitam a realização de diligências,

enfim, reconstroem a realidade de acordo com as finalidades almejadas. A maior habilidade

de um advogado em gerenciar os recursos argumentativos colocados à sua disposição pode

trazer a vitória a seu cliente, ainda que a “verdade do mundo” não esteja a seu lado.

No Direito Penal e no Direito Processual Penal, a relevância da ação de advogados e

promotores é notória, pois sua aplicação nunca se limita ao exame das provas materiais e

técnicas dos casos em consideração. Chalita (2007) afirma que o Direito Penal é

essencialmente discursivo, pois seu exercício depende, sobretudo, da habilidade em

argumentar de cada uma das partes.

No Tribunal do Júri, em que a tramitação do processo se dá em um rito extremamente

teatralizado, seguindo uma tradição secular, o estudo da argumentação é ainda mais

produtivo, pois é ela a gerenciadora das interações e ou intenções comunicativas.

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Nesse sentido, Chalita (2007) entende que “nos debates entre acusação e defesa nos

tribunais do júri se articulam mais intensamente e se batem as habilidades dos profissionais do

Direito, envolvidos na tarefa de conduzir um corpo de jurados rumo a uma determinada

decisão”. (CHALITA, 2007, p. 6).

Como explicita Lima (2001), “no júri, o objetivo dos advogados de acusação e defesa

é persuadir os jurados e obter sua adesão. Assim posto, nada mais pertinente do que analisar

as estratégias argumentativas18 utilizadas por ambas as partes”. (LIMA, 2001, p. 26).

Filiando-nos ao estudo da argumentação no discurso, conforme propõe Amossy

(2006), e considerando que as relações discursivas entre locutor e alocutário, assim como a

orientação argumentativa de um discurso, são tributárias do quadro formal e institucional no

qual tem lugar a interação, fomos levados a investigar também a caracterização do domínio

discursivo jurídico.

Essa investigação implica, a nosso ver, a avaliação das condições enunciativas que

caracterizam o discurso jurídico em geral e, mais especificamente, o tipo de discurso aqui

analisado – o discurso processual penal – em função dos atos de fala que o constituem e das

restrições impostas pelo quadro institucional do qual esse tipo de discurso emerge.

Chegamos, então, à constatação de que uma das características fundamentais dessa

modalidade discursiva é a performatividade da linguagem, aqui entendida como a propriedade

de realizar ações e provocar alterações na realidade social pelo proferimento de determinados

enunciados, obedecidas certas condições.

Considerando-se que a dinâmica em que se constrói o discurso processual penal só

pode ser compreendida nos limites de seu quadro institucional, adotamos como hipótese de

pesquisa a observação de que os atos de fala definem e designam os gêneros discursivos, além

de contribuírem para sua orientação argumentativa; cada sujeito processual, em uma situação

de interação linguageira travada nos limites de um processo judicial, produz conjuntos de

gêneros no desempenho de suas atividades profissionais; diversos conjuntos de gêneros se

articulam para a formação de sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um domínio

discursivo e realizam alterações na realidade social. Na medida em que são produzidos e

lançados aos autos todos esses proferimentos que, ao final, formam uma rede dialógico-

argumentativa, a verdade acerca da conduta imputada a um réu é construída e reconstruída

pelos sujeitos processuais e, ao final, parece surgir como resultado da dinâmica desse sistema

de gêneros e atividades sociais.

18 Estratégias argumentativas são recursos, procedimentos ou instrumentos utilizados para se alcançar a adesão do auditório, segundo nota da autora. (Lima, 2001, p. 26).

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4.4 Objetivos

4.4.1 Objetivo geral

O objetivo geral deste trabalho é o de propor uma reflexão acerca do domínio

discursivo jurídico e de suas características constitutivas, definindo sua situação no interior do

vasto território das práticas de linguagem. Por opção metodológica, fizemos um recorte nesse

domínio amplo e escolhemos trabalhar com uma de suas manifestações, que é o discurso

judicial processual penal do Tribunal do Júri.

4.4.2 Objetivos específicos

Como objetivos específicos do presente trabalho, relacionam-se os seguintes:

• Construir um discurso explicativo do discurso judicial processual penal do Tribunal

do Júri, por meio da avaliação: a) de aspectos relativos a suas condições enunciativas e à

orientação argumentativa encontrada nos diversos gêneros produzidos pelos sujeitos que

participam de uma relação processual (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares da Justiça, entre

outros), b) do inter-relacionamento entre esses gêneros e c) das atividades sociais produzidas

como resultado final da tramitação do processo;

• Delimitar as condições enunciativas próprias de cada etapa processual, assim como

dos atos e proferimentos selecionados para análise, levando em consideração as restrições

impostas pelos dispositivos legais, que determinam regras de procedimento a serem

observadas nesse local específico de fala;

• A partir da delimitação das condições enunciativas, refletir sobre a

performatividade da linguagem no âmbito do discurso judicial processual penal, abordando

aspectos da força ilocucional dos atos de fala encontrados nos atos processuais e

proferimentos investigados;

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• Correlacionar a força ilocucional dos atos de fala à orientação argumentativa dos

proferimentos, buscando explicar as relações entre linguagem e ação no espaço demarcado

para nossa pesquisa;

• Analisar a estrutura argumentativa dos gêneros que compõem o processo

selecionado como corpus, privilegiando aspectos como: a) as condições prévias para a

instalação da argumentação, a par das restrições genéricas e institucionais impostas pelo

Tribunal do Júri; a) as estratégias argumentativas desenvolvidas por acusação, defesa e

instância julgadora; b) a disposição dos argumentos no discurso e a relação entre eles; c) a

construção das provas retóricas nos proferimentos em análise e sua articulação no projeto

persuasivo dos oradores.

• Discutir os conceitos de doxa, representações sociais, topoï e seus correlatos e a

função que tais elementos desempenham em um discurso argumentativo no interior do

domínio discursivo jurídico.

4.5 A posição do discurso processual penal no domínio discursivo jurídico

Inicialmente, parece relevante situar o discurso processual penal, do qual nosso corpus

é representante, no interior do domínio discursivo jurídico e em relação às outras modalidades

adjacentes.

Seguindo um raciocínio que caminha do todo para as partes, podemos afunilar ainda

mais a posição de nosso corpus neste vasto domínio discursivo: trata-se de um representante

do discurso processual penal do Tribunal do Júri, e não de outro trâmite.

Assim como Maingueneau (2008), estamos conscientes de que as tipologias criadas

em torno da classificação de discursos são necessárias para “organizar um pouco o universo

discursivo”, embora careçam de substrato teórico efetivo. Utilizam-se, para fins didáticos e

metodológicos, tipologias funcionais (discurso jurídico, religioso, político...) e formais

(discurso narrativo, didático...), as quais o autor taxa de insignificantes, embora inevitáveis.

Isso porque, segundo Maingueneau (2008), “não se pode definir o discurso como um gênero

cujos diversos tipos seriam suas diferenças específicas; assim como não existe discurso

absoluto que, num espaço homogêneo, regularia todas as traduções de um tipo de discurso

para outro, também não existe disjunção entre os diversos tipos” (MAINGUENEAU, 2008, p.

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25). Contudo, parece-nos que mostrar a posição do discurso processual penal no domínio

discursivo jurídico é uma necessidade da qual não podemos nos eximir.

Como já afirmamos, o processo que constitui nosso corpus foi produzido no interior

de um domínio amplo, que é o domínio discursivo jurídico. Adotando distinção metodológica

proposta por Ferraz Jr. (1997), com algumas adaptações, temos que esse domínio é

constituído por:

a) discurso da norma;

b) discurso da Ciência do Direito e

c) discurso judicial.

O discurso da norma é definido por Bittar (2009) como aquele produzido por um

sujeito específico, que é o legislador (agente investido de competência e poder para a

realização da tarefa social de regulamentação de condutas) e cujo destinatário é, de modo

geral, o povo, que deve ajustar suas condutas ao que é prescrito pela norma. O discurso

normativo possui, segundo o autor, técnica e coerência próprias, além de ferramentas

específicas que permitem aos enunciatários a compreensão instantânea do grau de

taxatividade que o caracteriza:

O texto normativo, além de transmitir de modo direto uma mensagem que deve ser retratada na sociedade, e que deve ecoar no comportamento de seus cidadãos, deve traduzir claramente o grau potestativo que encarna. Assim, o uso de ferramentas específicas permite que da simples leitura do texto de lei se perceba o grau de cogência contido no dispositivo. São expressões como “fica instituída”, “é vedada qualquer”, “é defeso à parte”, “deverá o órgão expedir em 30 dias ato que regulamenta”, “fica proibida”, “qualquer que seja o fundamento, far-se-á”, “qualquer alteração será comunicada”, “não se configura crime”, “está obrigado a cumprir esta obrigação quem”, “é assegurado”, “é proibida”, que cumprem esse papel. (BITTAR, 2009, p. 373)

O discurso da norma é considerado um discurso fundador da significação jurídica, pois

o legislador desempenha, aqui, o papel de delimitar o que é jurídico em oposição ao não-

jurídico, em uma atividade de criação do jurídico.

A explicação do que se entende por discurso da Ciência do Direito é uma tarefa

complexa, pois demandaria, à primeira vista, a definição dos termos “Ciência” e “Direito”, o

que, nos limites deste trabalho, seria impraticável.

Com apoio em Bittar (2009), buscamos, então, uma delimitação operacional,

considerando a função, a atividade e o desempenho das práticas discursivas científicas. Para

este autor, o discurso da Ciência do Direito não normatiza (como o faz o Discurso da Norma),

não operacionaliza (como o Discurso Judicial), mas constrói sentido jurídico, em uma

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atividade de interpretação, daí a natureza fundamentalmente exegética das produções textuais

jurídicas: “é em função da necessidade de construir sentido sobre normas, decisões e atos

administrativos que se constroem teses, teorias e interpretações científico-jurídicas.”

(BITTAR, 2009, p. 331).

Bittar (2009) chama ainda a atenção para a natureza não-prescritiva e não-

performativa do discurso científico, na medida em que opera com realidades exteriores

àquelas do próprio discurso, mas que, na qualidade de fonte do direito, atua na construção do

sentido jurídico.

O discurso de natureza judicial, que nos interessa mais especificamente, tem como

elemento característico a regulamentação ou o controle formal por regras jurídicas. Situam-se

nesse campo os discursos processuais, contratuais, comerciais e outros, que se caracterizam

por serem rigidamente controlados pela lei. As ações daí decorrentes são institucionalizadas e

generalizadas.

A seguir, apontamos algumas características do discurso judicial19:

- a subordinação ao discurso normativo;

- a atividade de mediação entre a instância estatal e os interesses dos particulares;

- a performatividade da linguagem, uma vez que, com sua elocução, os sujeitos

realizam atos externos à linguagem. Conforme Bittar (2009, p. 272), “ao reproduzir o discurso

normativo, [o discurso judicial] está realizando atos de mandamento, de prescrição, criando a

necessidade de condutas com a elocução dos signos textuais”.

Uma das manifestações mais importantes do discurso judicial é o discurso processual,

aquele produzido nos tribunais, como um instrumento estatal utilizado para compor os

conflitos sociais, de acordo com regras preestabelecidas. Nas palavras de Ferraz Jr.:

O sentido oficial do processo judiciário [...] é o de instrumento de composição de uma lide. Sob o ponto de vista da situação comunicativa discursiva, diríamos que se trata de uma relação entre diversos partícipes, cujo sentido é a representação da busca de uma decisão, de acordo com certas regras. (FERRAZ JR., 1997, p. 73).

Ferraz Jr. identifica, como componentes básicos da situação comunicativa judicial,

quem são emissores e receptores nesse discurso, não no sentido linguístico dos termos, mas

no sentido de quem emite e de quem deve cumprir uma decisão judicial:

19 Bittar (2009), criando uma tipologia de discursos própria, não fala em discurso judicial, mas em discurso burocrático. Pensamos, contudo, que algumas características apontadas por Bittar (2009) como próprias do discurso burocrático parecem se encaixar perfeitamente à modalidade que Ferraz Jr. (1997) denomina discurso judicial.

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[...] distinguimos, em princípio, entre aqueles que decidem – emissores – e aqueles que são os destinatários da decisão (receptores). Os emissores não são, necessariamente, os juízes, mas todos aqueles que devem encontrar a decisão. Os receptores, por sua vez, são os que devem tomá-la como premissa do seu próprio comportamento. Sendo alvo do discurso a decisão, o seu objeto é dialógico – dubium –, de discussão-contra – conflitivo. (FERRAZ JR., 1997, p. 74).

O discurso processual, por sua vez, pode ser de natureza civil ou penal. O corpus

selecionado para análise neste trabalho tem natureza penal, pois, nesse caso, a finalidade

perseguida com a movimentação do aparato judicial é o julgamento de uma pessoa acusada de

praticar um crime de aborto e a consequente aplicação da penalidade prevista em lei.

O discurso processual penal é produzido no interior de um sistema de normas

imperativas e ordenatórias, que é o Direito Processual Penal ou, simplesmente, Processo

Penal, que pode ser definido como “o conjunto de atos cronologicamente concatenados

(procedimentos), submetido a princípios e regras jurídicas destinadas a compor as lides de

caráter penal.” (MIRABETE, 2001, p. 29).

Todos esses atos cronologicamente concatenados estão previstos no Código de

Processo Penal, enquanto as regras que definem o que é crime e tipificam as condutas

criminosas, com a atribuição da respectiva penalidade, é o Código Penal. Assim, por exemplo,

o Código Penal (BRASIL, 2011) estatui em seu artigo 155, caput, que a conduta “subtrair,

para si ou para outrem, coisa alheia móvel” constitui crime e o Código de Processo Penal

estabelece os procedimentos a serem observados para a apuração das circunstâncias em que o

crime ocorreu, do grau de culpabilidade da pessoa que praticou o ato e da penalidade a ser

aplicada, caso ela seja considerada culpada. Nesse sentido, “o processo, como procedimento,

é o conjunto de atos legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e exata aplicação

da lei” (NORONHA, 1971, p. 4).

O Processo Penal se ocupa também das relações entre as pessoas que intervêm no

processo, ou sujeitos processuais (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares da justiça), e à

coordenação das atividades por elas desenvolvidas.

O quadro esboçado abaixo dá um panorama geral acerca das modalidades discursivas

que compõem o domínio discursivo jurídico:

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Quadro 11: Esquema representando as modalidades do Domínio Discursivo Jurídico

Fonte: Elaborado pela autora

Se tomarmos o quadro sombreado e, a partir dele, prosseguirmos nessa atividade

classificatória, chegamos às modalidades do Discurso processual penal, entre as quais se

inclui o discurso processual penal do Tribunal do Júri. A respeito da atividade discursiva do

Tribunal do Júri, Bazerman afirma que:

[...] a atividade do tribunal (e não somente suas ações subordinadas) é a de produzir um objeto discursivo – o veredicto ou julgamento. O objetivo de produzir um veredicto a ser enunciado pelo júri e registrado nos vários documentos é, então, realizado através de muitas e altamente estruturadas atividades discursivas, papéis e gêneros que dão uma forma familiar, reconhecível e regular a eventos típicos do tribunal e que restringem e direcionam o discurso que ocorre dentro e em torno do fórum judiciário. (BAZEMAN, 20005, p. 132).

Na medida em que levamos em conta o funcionamento do complexo institucional para

a caracterização da atividade discursiva, cremos ser pertinente a apresentação dessa

instituição para as finalidades de nossa pesquisa.

É o que fazemos no tópico seguinte.

Discurso judicial Discurso da Ciência do Direito

Discurso da norma

Domínio discursivo jurídico

Discursos contratuais

Discursos processuais

Discursos comerciais

Discurso processual penal

Discurso processual civil

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4.6 Nota sobre o Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri é uma instituição sui generis no direito brasileiro e internacional.

Trata-se de um órgão colegiado, constituído por um Juiz togado (Presidente) e por juízes

leigos – os jurados – escolhidos por sorteio entre os cidadãos.

Nos termos do art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal, “é reconhecida a

instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento

dos crimes dolosos contra a vida”. (BRASIL, 2011).

O procedimento do Júri é especial, diferenciado e divide-se em duas fases. A primeira

delas, conhecida como judicium accusationis, inicia-se com o oferecimento da denúncia e se

encerra com a decisão de pronúncia ou impronúncia, a qual irá determinar se deve ou não o

réu ser submetido à segunda etapa, a judicium causae, que tem início com o libelo e é

finalizada com uma Sessão de Julgamento do réu por um Corpo de Jurados (MIRABETE,

2001).

Observa-se que a primeira fase é semelhante ao procedimento para a apuração de

outros crimes do Código Penal. A diferença substancial está contida na segunda fase, na

Sessão de Julgamento, pois aqui, o Juiz togado vai assumir a função de apenas presidir os

trabalhos e de calcular a pena a ser imposta. A decisão a respeito da culpa do réu ficará a

cargo de sete jurados e, por força constitucional, essa decisão é soberana.

Servir como jurado é um ato cívico, obrigatório para os maiores de 18 anos,

possuidores de notória idoneidade e alistados pelo Juiz Presidente entre cidadãos que fazem

parte de associações de classe e de bairro, de entidades associativas e culturais, instituições de

ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos.

Não se pode definir, com exatidão, o critério de “notória idoneidade”, por se tratar de

termo vago e impreciso. A doutrina entende que se deve verificar, pelo menos, se o cidadão

alistado para exercer essa função não possui antecedentes criminais. Para Fagundes (1995), a

vagueza e a ambiguidade da expressão abrem espaço para que haja uma avaliação subjetiva

da vida das pessoas no interior de sua comunidade sociopolítica. Tem-se, assim, uma “noção

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ideológica, pois deixa que se expressem as crenças valorativas ideológicas e imaginárias do

magistrado sobre o modo de vida dos cidadãos [...]”.20

A origem dessa instituição tão diferenciada e polêmica é atribuída à Inglaterra, depois

que o Concílio de Latrão, em 1215, aboliu as ordálias, nas quais o julgamento de um suspeito

era realizado por provas de resistência física: “o acusado provava sua inocência,

mergulhando, por exemplo, a mão em água fervente, pegando um ferro em brasa,

atravessando fogueiras, etc., e saindo incólume dessas provas, demonstrava, perante o Juízo

de Deus, sua inocência” (NORONHA, 1971, p. 229).

Nesse sentido, parece claro que o Júri representou uma grande inovação para a época,

pois os julgamentos, até então, eram baseados em crendices e superstições. Entretanto, mesmo

essa nova maneira de julgar advinda com o fim das ordálias sofreu a influência de fórmulas

místicas e crenças religiosas do homem medieval. Entre essas crenças compartilhadas, havia a

convicção de que, quando doze homens de consciência imaculada se reuniam para julgar uma

pessoa e invocavam a Deus para conduzir os trabalhos, a verdade surgia milagrosamente entre

eles. Trata-se de uma clara transposição de uma cena bíblica para a cena jurídica:

Desta crença teria nascido o Júri. A origem mística e o caráter religioso se observam ainda na fórmula do juramento do Júri inglês. Há a invocação expressa de Deus. Para esta constatação, não é preciso ir além da origem da palavra Júri: vem de juramento, que é a invocação de Deus por testemunha. Era, portanto, o antigo julgamento de Deus que se restabelecia, ou que se mantinha reformado. (NORONHA, 1971, p. 229).

Da Inglaterra, o Júri foi conquistando outros países, como os Estados Unidos da

América do Norte, em decorrência da própria colonização, e a França, onde foi adotado a

partir da Revolução de 1789. A instituição adequava-se perfeitamente aos ideais defendidos

pelo Iluminismo, tornando-se, por isso mesmo, um símbolo do Estado de Direito, erigido

como garantia das liberdades individuais:

O Tribunal do Júri, especificamente após a Revolução Francesa, adquiriu significado político de cunho liberal, ligado aos movimentos de ampliação de direitos civis e participação popular. Terá enfatizado, a partir de então, o seu caráter democrático, aberto à participação de representantes da sociedade e compatível, portanto, com as novas transformações políticas que se operavam. O Júri representava, mais que qualquer outra instância judiciária, os ideais de igualdade jurídica da modernidade. (FONTOLAN, 1994, p. 69).

20 A vagueza e a ambiguidade da linguagem jurídica são amplamente abordadas por Fagundes (1995). Entre outros casos, a autora comenta as expressões “mulher honesta”, que aparecia na antiga redação dos artigos 215, 216 e 219 do Código Penal (só alterados recentemente, com as Leis nº 11.106, de 2005 e nº 12.015, de 2009), “relevante valor social ou moral” e “motivo fútil” (artigo 121 do Código Penal). Ao que nos parece, o Direito Penal pátrio é pródigo no emprego de expressões vagas e ambíguas.

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Com a evolução das ciências jurídicas e sob a influência dos países que o adotaram, o

Júri foi adquirindo características próprias em cada ordenamento jurídico. No Brasil, foi

instituído em 1822, com a atribuição de julgar crimes de impressa. Funcionando com 24

jurados, dos quais o réu poderia recusar até 16, tinha o Príncipe Regente como instância

recursal máxima. Em 1824, com a promulgação da Constituição do Império, alcançou status

constitucional e sua competência, antes restrita, passou a abranger tanto atos da vida civil

como da vida criminal.

Em relação à escolha dos jurados, Fagundes (1995) lembra que, naquele momento

histórico, só poderiam desempenhar essa função os chamados “homens bons”. Em uma

sociedade escravocrata, homem bom era aquele que possuía renda e propriedade, o que

revelava uma semente elitista da instituição e levantava dúvidas sobre sua representatividade:

Entre nós – por que não dizer? – tem sido instrumento político-capitalista. Com muito poucas exceções, não há réu que, gozando do bafejo político ou desfrutando de boa posição social, seja condenado por ele [...] Máxime nas pequenas comarcas do interior, a influência política é decisiva. Freqüentemente, não é o réu que se julga mas o Cel. Fulano, o Prefeito Beltrano, o Dr. Sicrano, etc. (NORONHA, 1971, p. 232).

Segundo Fontolan (1994), também encontramos, no Brasil, um paralelo entre a sua

regulamentação – mais ou menos liberal – e os graus de abertura política que a sociedade

experimentava. Com exceção da Constituição de 1937, elaborada sob a égide do Estado

Novo, o Tribunal Popular sempre se fez presente na ordem constitucional pátria. Enquanto a

Constituição de 1824 elencou o Júri no capítulo dedicado à organização do Poder Judiciário,

as de 1891, 1946, 1967 e de 1988 deram a ele status de "direito e garantia fundamental". Com

isso, observa-se que a instituição saiu da esfera do Estado para o campo da cidadania.

Atentando para a realidade brasileira, Fontolan (1994), em estudo realizado em uma

comarca no interior do estado de São Paulo, observa que desde a inauguração do Júri local, na

década de 50, apesar de não existirem mais vetos formais para o exercício da função de

jurado, a escolha, feita a dedo pelo juiz e pelo escrivão, recaía sempre sobre os “notáveis” da

cidade – os membros da elite – especialmente, industriais, grandes comerciantes e contadores,

prática que perdurou até o final da década de 70.

A vertente liberal que inspirou a instauração do Júri deixou também uma herança

negativa no que se refere à participação das mulheres no Conselho de Sentença. O sujeito

ideal para atuar em um julgamento seria o do gênero masculino, porque “somente os homens

poderiam se libertar das paixões e exercer plenamente a racionalidade e a avaliação imparcial.

As mulheres, ligadas permanentemente à natureza, seriam incapazes de controlar suas

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emoções e atingir a objetividade necessária para as decisões públicas.” (FONTOLAN, 1994,

p. 71).

A partir dos anos de 1980, ainda segundo pesquisa de Fontolan (1994), houve uma

mudança na sistemática da escolha de jurados, que alcançou a maior parte das comarcas.

Entidades passaram a ser instadas a indicar nomes e, a partir dessas indicações, a lista era

formada. Nesse momento, o Júri já não desfrutava do mesmo prestígio de outros tempos e a

maior parte das sessões de julgamento já passavam despercebidas na mídia. “A antiga

ansiedade por participar foi cedendo lugar a reclamações sobre a extensão dos julgamentos e a

interrupção que acarretavam na rotina dos jurados sorteados.” (FONTOLAN, 1994, p. 72)

A mudança na organização foi acompanhada por alterações na lógica da escolha de

jurados: membros de grupos sociais antes excluídos passaram a ser convocados, registrando-

se, a partir daí, a participação de funcionários públicos de escalões mais baixos, pequenos

comerciantes e também de mulheres. Contudo, o “veto informal” permaneceu quanto aos

membros das camadas mais pobres da população e às donas de casa. A participação feminina

aumentou na década de 80, mas somente de mulheres que trabalhavam “fora”.

A exclusão de donas de casa se justificava porque elas eram consideradas inaptas para

a função. Alegava-se que não tinham experiência, conhecimento de mundo, eram

despreparadas, etc. Acreditava-se que as mulheres, “[...] por não disporem de maiores

conhecimentos formais, não conseguiriam entender as questões técnicas envolvidas e,

portanto, tenderiam a se confundir na apreensão das provas e votação dos quesitos.”

(FONTOLAN, 1994, p. 73).

Já os pobres, por possuírem um universo cultural diverso do das camadas médias e

altas que partilhariam da realidade que a legalidade legitima, tenderiam a considerar normal o

que é ilegal ou passível de punição. “Convocar os pobres seria colocar pares dos réus na

banca de jurados, aumentando as possibilidades de julgamento contra as provas dos autos.”

(FONTOLAN, 1994, p. 73).

A instituição do Júri, como já se afirmou, representou um grande avanço para a justiça

penal, tanto por ser uma alternativa aos julgamentos cruéis e infamantes que eram realizados

antigamente, como pela abertura da justiça à participação popular. Mas, nos dias de hoje, em

que a sociedade cobra a especialização e o conhecimento técnico dos juízes togados, dada a

complexidade das questões submetidas a julgamento, seria realmente viável se manter uma

instituição com essas características?

A morosidade, a complicação do procedimento e o excesso de atividades e incidentes

que procrastinam o andamento do processo e atrasam a decisão do caso concreto são alvos

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constantes de crítica. A própria sessão de julgamento é questionada, pois se gastariam, em

plenário, horas e horas, muitas vezes até dias, para que se cumpra o ritual previsto na lei.

Encontramos, contudo, uma contradição que parece insuperável no interior desse

sistema. Por um lado, a representatividade e a capacidade dos jurados de decidir a sorte dos

acusados, sem disporem de conhecimentos técnicos especializados sobre o Direito, geram a

desconfiança de muitos juristas. Por outro lado, a racionalidade de certos grupos sociais de

“menor expressividade” seria descartada pela instituição, porque em desacordo com o que o

“todo social” considera aceitável, “como se o único tipo de razão capaz de garantir a

imparcialidade e a justeza de uma decisão fosse a racionalidade legal e, nesse sentido, o legal

acaba por se transformar em justo.” (FONTOLAN, 1994, p. 85).

Assim, a própria instituição do Júri acabaria perdendo o sentido que a valoriza

enquanto instância judiciária, que é o sentido da participação popular e da abertura para a

influência de outras racionalidades nas decisões judiciais.

Mas, como bem observa Lyra (1971), “o que constitui defeito no juiz togado é virtude

no jurado, homem comum integrado no torvelinho das provações” (LYRA, 1971, p. 64). E

ainda:

O júri elabora as interpretações transcendentais e satisfaz as imanências da justiça com o realismo da observação comum e do senso coletivo. O júri existe para romper os quadros rotineiros e lançar-se em braçadas livres ao pélago das compreensões abrangendo o conjunto das realidades individuais e sociais. Ele liberta a flama representativa para a estilização do verdadeiro, do justo e do útil. O juiz togado é obrigado a despojar-se da carga comum, o jurado intensifica-a totalmente para conscientizá-la. (LYRA, 1971, p. 64).

Foi nos limites dessa instituição, festejada por uns e condenada por outros, que

tramitou o processo que ora tomamos como corpus, o que equivale a dizer que a produção

discursiva por nós analisada foi moldada conforme os contornos do Tribunal do Júri. Resta-

nos agora refletir sobre o estatuto do aborto no direito brasileiro contemporâneo.

4.7 Aborto: entre o “ser” e o “dever ser”

O debate sobre o aborto ocorre em um espaço onde se entrecruzam os discursos

originários dos espaços público e privado da organização social brasileira.

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Encontramos, sobre essa temática, manifestações produzidas no âmbito dos Poderes

Legislativo, Judiciário e Executivo, em forma de leis, decretos e projetos de lei, debates no

Congresso ou em comissões especiais, decisões judiciais em primeira e segunda instâncias,

além de publicações de grupos feministas, declarações de religiosos, pronunciamentos de

médicos, desembargadores, sociólogos, enfim, uma vasta produção discursiva que alimenta a

polêmica e divide a sociedade em grupos de posições mais ou menos antagônicas.

Há os que defendem a descriminalização ampla do aborto, inclusive com a

obrigatoriedade de atendimento público para as gestantes que queiram se submeter a esse

procedimento; os que defendem uma descriminalização com ressalvas, segundo um critério de

prazos e indicações estipulados legalmente; os que admitem a figura do aborto apenas como

último meio de salvar a vida da mãe e, finalmente, os que não o admitem em hipótese alguma.

No espaço público, observamos um notório descompasso entre a atuação do Poder

Judiciário, representado por seus juízes e desembargadores, que aplicam a lei ao caso

concreto, e o Poder Legislativo, cujos membros elaboram as leis, como o Código Penal (que

criminaliza a prática intencional do aborto) e o Código de Processo Penal (que estabelece os

procedimentos a serem seguidos para a persecução do crime).

Vejamos: no Brasil, o delito de aborto encontra-se tipificado na Parte Especial do

Código Penal, no Capítulo I (Dos crimes contra a vida) do Título I (Dos crimes contra a

pessoa), o que nos colocaria no rol das legislações mais restritivas do mundo ocidental em

relação ao aborto (TESSARO, 2006). No entanto, as estatísticas mostram que, entre as

inúmeras ocorrências de suspeita de interrupção intencional de gravidez cotidianamente

relatadas à polícia, muito poucas chegam a ter um veredicto de condenação na instância

judicial.

Em levantamento realizado junto às secretarias criminais de três Fóruns localizados na

comarca de São Paulo/SP, entre as décadas de 70 e 80, Ardaillon (1994) observou que a maior

parte dos autos que levavam o rótulo de Processo de Aborto, na verdade, não passavam de

inquéritos policiais arquivados.

Observou também que, entre os inquéritos que se transformaram em processo, apenas

4% terminaram em condenação, o que permitiu a conclusão de que se trata de “[...] um crime

raramente punido quando as acusadas são as gestantes, levemente penalizado no caso das

‘parteiras’, ‘enfermeiras’ e outros agentes” (ARDAILLON, 1994, p. 247).

Enfim, esse panorama nos revela que a sociedade insiste e investe em sua proibição,

reclamando leis de natureza criminal que estabeleçam penas duras a quem incorra nessa

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prática, mas quando um caso concreto chega à instância judiciária, observa-se pouco interesse

na condenação de fato.

Olhando a questão a partir do “dever ser”, vislumbramos um terreno aparentemente

pacífico, onde vigora uma legislação datada de 1940, segundo a qual a mulher que pratica

aborto em si mesma, ou que permite que outra pessoa o faça, comete um crime e por isso

mesmo está sujeita a uma pena de um a três anos de detenção. A mesma legislação determina

também a aplicação da pena à pessoa que pratica o aborto na gestante, com ou sem o seu

consentimento. Essa previsão engloba aqueles profissionais popularmente conhecidos como

“fazedores de anjo”, “aborteiros”, “parteiras” e outros.

Textualmente: “Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho

provoque: Pena - detenção, de um a três anos” (BRASIL, 2011).

À primeira vista, consultando a letra da lei, parece não haver dificuldade nenhuma em

se afirmar que uma pessoa praticou, ou não, aborto. Entretanto, apesar da aparente facilidade,

nos deparamos com um problema logo de início, que é a definição do que seja provocar

“aborto”, pois o Código Penal não traz nenhuma elucidação nesse sentido: trata-se de

definição a ser preenchida com suporte na valoração social que recai sobre o fato, o que abre

uma fenda em um terreno que parecia tão sólido e pacificado em forma de lei (DELMANTO

et al, 1998). Essa abertura permite que questões de ordem biológica, moral e religiosa influam

na taxatividade da lei penal e encaminhem a discussão para um ponto bastante polêmico, que

é o início da vida humana no útero materno.

Existem diversas correntes de pensamento a esse respeito, algumas mais atreladas a

conceitos biológicos, como a fecundação, a nidação ou o início da atividade cerebral, outras

mais voltadas para valores filosóficos, como a que entende que a vida humana se inicia com o

estabelecimento de um compromisso relacional entre mãe e filho, ou seja, quando a mãe

reconhece o produto da concepção como pessoa.

Renomados criminalistas brasileiros entendem que, em nossa legislação, o aborto é

punido de forma absoluta: não se faz distinção entre as fases de desenvolvimento do embrião,

bem como entre fecundação, nidação ou início da atividade cerebral. Basta que o exame de

corpo de delito realizado na mulher seja capaz de detectar resíduos de uma gravidez

(HUNGRIA, 1981). Outros, também renomados, postulam que no Brasil, o crime de aborto se

restringe ao período da gravidez que se segue à nidação, ou seja, quando o ovo é implantado

no útero materno (DELMANTO et al, 1998).

Outra questão que vem fomentando a discussão entre juristas é uma ponderação entre

bens jurídicos fundamentais que se encontra na base da tipificação dessa conduta.

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Contemporaneamente, entende-se que a função primordial do Direito Penal é a proteção dos

chamados bens jurídicos, que são aqueles valores mais caros à sociedade, como vida humana,

integridade física, liberdade sexual, patrimônio e outros. Para a proteção do bem jurídico

“vida humana”, por exemplo, o Código Penal prevê, entre outras condutas, a figura do

homicídio. Assim, aquele que pratica a ação “matar alguém”, está sujeito à pena do artigo 121

(reclusão, de seis a vinte anos).

Ao estatuir, no Código Penal, que provocar aborto é crime e determinar que uma

gestante deva prosseguir com uma gravidez ainda que não desejada, o legislador fez antes

uma valoração entre bens jurídicos que pertencem à esfera da mãe – saúde, dignidade,

exercício livre da sexualidade e da faculdade de reprodução – e um bem jurídico próprio do

nascituro, que é o direito à vida.

Em nosso ordenamento, o direito à vida tradicionalmente ocuparia posição de

superioridade, embora parte da doutrina argumente que existem outros pontos a serem

pensados nessa ponderação, como por exemplo, o questionamento se o nascituro realmente é

uma pessoa, no sentido jurídico do termo, ou se é apenas uma “expectativa de pessoa”, e aí

seus direitos não seriam tão amplos quanto os de um ser humano com vida extrauterina.

Sob o influxo de uma corrente teórica voltada aos estudos de gênero feminino e

masculino, Ardaillon afirma que “o sistema normativo, que se propõe à defesa da liberdade de

indivíduos considerados iguais, sanciona ao mesmo tempo uma estrutura de relações

perversamente assimétricas entre homens e mulheres” (ARDAILLON, 1994, p. 214).

Nesse sentido, a criminalização do aborto significaria:

[...] uma situação-limite da ação do Estado sobre aquilo que é para mulheres e homens o espaço privado por excelência, o seu corpo. Por ser um corpo reprodutor, porém, o corpo da mulher não faz jus à privacidade, à autonomia. O ventre feminino foi controlado desde sempre, e em todas as sociedades. O direito de abortar parece simbolizar a extrema subversão que representa, na nossa sociedade, a autonomia de um indivíduo feminino sobre o processo de reprodução. (ARDAILLON, 1994, p. 215).

Observamos que, para o discurso feminista, o importante seria resguardar o direito de

escolha da mulher, como fruto de uma mudança em relação à sexualidade feminina e pré-

requisito para a criação de uma nova ordem social, onde homens e mulheres ocupem posição,

de fato, igualitária.

Analisando a questão em seu viés histórico, notamos que a forma como o Direito

encampou a interrupção voluntária da gestação nem sempre foi tão taxativa como é hoje.

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Nessa corrida pela adequação do “ser” ao “dever ser”, observam-se flutuações entre

criminalização e descriminalização, entre maior e menor reprovação social.

Hungria (1981) leciona que a prática intencional do aborto é de todos os tempos,

embora nem sempre tenha sido incriminada. Vigorava uma regra geral de impunidade, desde

que o ato não acarretasse dano à saúde ou a morte da gestante.

Em diversas cidades-estado da Grécia Antiga, no tempo de Platão e Aristóteles, a

prática era corrente em todas as classes sociais, sendo até mesmo aconselhada, como método

de controle do crescimento populacional. Em Esparta, contudo, o aborto era proibido, pois o

Estado evocava para si o direito de contar com o maior número possível de atletas e

guerreiros (TESSARO, 2006).

Em Roma, considerava-se o aborto como um atentado contra a moral, mas não contra

o direito, tanto que no período republicano e no início do Império, ele não era tipificado como

crime. Mesmo sendo taxada de imoral, era uma prática corriqueira, pois se acreditava que o

embrião constituía somente uma parte do corpo da mulher, tal como uma víscera, e por isso

ela poderia dispor dele como bem entendesse.

Posteriormente, o direito romano passou a tratar o aborto como uma lesão ao direito

do marido à prole e, em reação à permissividade do passado, eram aplicadas penas

gravíssimas à gestante, justificadas à época sob o argumento de que “[...] essa mulher ‘tinha

destruído a esperança de um pai, a memória de um nome, a garantia de uma raça, o herdeiro

de uma família e um cidadão destinado ao Estado.” (CÍCERO apud HUNGRIA, 1981, p.

271).

Com o advento do Cristianismo, consolidou-se a reprovação social e jurídica ao

aborto. O antigo direito romano, reformado segundo o entendimento dos imperadores

Adriano, Constantino e Teodósio, assimilou o aborto ao homicídio, equiparando as penas

aplicadas a um crime e outro. Relata-se que, na base da tipificação dessa conduta, verificava-

se no legislador a intenção de se coibir a prática de adultério por parte das mulheres e não um

desejo primordial de proteção da vida do feto (TESSARO, 2006).

Na Idade Média, teólogos como Santo Agostinho pregavam que “o aborto só era crime

quando o feto já tivesse recebido alma, o que se julgava ocorrer 40 ou 80 dias após a

concepção, segundo se tratasse de varão ou de mulher.” (HUNGRIA, 1981, p. 272). A

preocupação aqui era com a perda da alma do nascituro que, sem o sacramento do batismo,

estaria condenada a vagar na erraticidade.

A discussão a respeito do início da vida, então importante para a estipulação do

quantum de pena a ser aplicada ao acusado, perdurou por 18 séculos na Igreja Católica e só

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foi mais ou menos resolvida a partir do Iluminismo, que revogou a equiparação das penas do

aborto e do homicídio, por considerar que o crime praticado contra a pessoa é mais grave que

aquele cometido contra o nascituro.

No Brasil, a primeira referência ao crime de aborto é encontrada no Código Criminal

do Império, de 1830, que incriminava o terceiro que praticasse o aborto na mulher, com ou

sem o consentimento dela. A incriminação não atingia, portanto, a própria gestante. O Código

Penal Republicano, de 1890, incriminou também o autoaborto e instituiu a figura do aborto

terapêutico, ou seja, aquele realizado como meio necessário para salvaguardar a vida da mãe.

O Código em vigência atualmente, de 1940, recrudesceu o sistema, alargando o

número de condutas abrangidas pela tipificação penal, que hoje inclui quatro práticas

distintas:

a) aborto provocado pela própria gestante;

b) consentimento da gestante a que terceiro lhe provoque o abortamento;

c) aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante e

d) aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante menor de 14 anos

de idade ou, por qualquer outra razão, incapaz para os atos da vida civil21.

Permaneceu a figura do aborto terapêutico e instituiu-se o aborto em caso de gravidez

resultante de estupro como ato não punível.

Refletindo sobre essa evolução na maneira da sociedade e do direito lidarem com o

aborto voluntário, observamos que uma das crenças que parece ter resistido à passagem do

tempo e sobrevivido até, pelo menos, a década de oitenta, é a de que a criminalização do

aborto é útil para reprimir a prática de infidelidade conjugal por parte da mulher. Um famoso

penalista brasileiro, Nelson Hungria, afirma textualmente que “preconizar o aborto é

aconselhar a prática de um ato profundamente imoral e anti-social. Com a licença para o

aborto, a mulher perderia o medo de conceber filhos ilegítimos e estaria assim assegurado

livre curso aos amores extra matrimonium.” (HUNGRIA, 1981, p. 284).

Além da dificuldade de determinação do início da vida humana, para fins de

incidência da tutela penal, existe ainda uma dificuldade de comprovação da prática voluntária

de interrupção da gravidez, o que compromete sobremaneira a aplicação de pena na esfera

judiciária. Ardaillon tece o seguinte comentário a esse respeito:

21 Essa figura abrange aquelas situações em que o consentimento da gestante não é legalmente válido, seja por sua idade biológica reduzida, por alguma doença que a impeça de manifestar sua vontade de forma consciente, como a alienação mental, por exemplo, ou pelo consentimento obtido mediante fraude, violência ou grave ameaça.

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Houve aborto? Houve crime? A materialidade desse fato não é tão facilmente comprovada, nem atribuível a sua autoria, como se poderia pensar de início. De fato, tem que ter havido uma gravidez plenamente comprovada; a interrupção dessa gravidez tem que ter sido provocada com real intenção de abortar, tem que haver um feto, e, se achado o feto, ele tem que ser daquela mulher que, supõe-se, abortou. (ARDAILLON, 1994, p. 233).

Por estar capitulado entre os crimes contra a vida, ao lado do homicídio, do

infanticídio e do induzimento ao suicídio, o aborto segue o procedimento do Tribunal do Júri,

o que, à primeira vista, parece confirmar a severidade do legislador pátrio na punição a essa

conduta. Muitos processos, como os relacionados ao divórcio e à separação judicial, correm

em segredo de justiça, porque a lei garante que os cônjuges e seus familiares tenham

resguardados os fatos que dizem respeito à sua vida íntima. O que justificaria, então, que o

aborto seja levado a julgamento em um Tribunal Popular, onde o procedimento, em tese,

propicia a irrestrita publicidade dos atos processuais? É certo que a forma ritualística como é

realizada a sessão de julgamento dá ao acontecimento ares de encenação teatral. Assim,

poderia se pensar em mais um ato de controle da conduta moral e do corpo feminino, como

parte de uma tradição histórica de vigilância da mulher, em que a simples denúncia da prática

abortiva já geraria uma sanção social.

Pode-se argumentar, em sentido oposto, que a instituição do Júri é uma forma

democrática de aplicação da justiça, na qual os acusados são julgados por seus próprios pares

e não por um juiz situado em uma posição diferenciada por possuir um capital simbólico

maior que os demais. Dessa forma, o julgamento poderia ser um pouco mais fundado no

sentimento de equidade do que no positivismo jurídico, com vantagens para o réu.

Como já se afirmou, não se pode olvidar que a instituição representou um grande

avanço para a justiça penal, tanto por ser uma alternativa aos julgamentos cruéis e infamantes

que eram realizados antigamente, como pela abertura da justiça à participação popular. E é

justamente esse sentido da participação popular e da abertura para a influência de outras

racionalidades nas decisões judiciais que justificam a possibilidade de existência de uma

instituição como esta nos dias atuais.

Em seguida, partimos para a descrição dos procedimentos metodológicos empregados

para a análise de nosso corpus.

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5 O PROCESSO PENAL EM UMA VISÃO SISTÊMICO-INSTITUCI ONAL: UMA

PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA DE ABORDAGEM DO CORPUS

Neste capítulo, descrevemos a proposta teórico-metodológica de abordagem de nosso

corpus, segundo a qual o Processo Penal é encarado em uma perspectiva sistêmico-

institucional, em que sistemas de gêneros se inter-relacionam no interior dos domínios

discursivos.

Com fundamento nessa proposta, foram realizadas análises linguístico-discursivas que

visam a demonstrar, em uma situação institucional de uso da linguagem, como as categorias

argumentação, atos de fala, fatos institucionais, gêneros e domínios discursivos estão

articuladas na produção de alterações na realidade social.

Em capítulo anterior, empreendemos um primeiro ensaio de análise de nosso corpus

conforme os princípios da proposta ora apresentada. Naquele momento, nos ativemos ao

funcionamento do processo como um todo, em uma visão global, iniciando os trabalhos a

partir de um levantamento dos sujeitos que aturam no Processo, dos conjuntos de gêneros de

cada um deles e de como esses conjuntos se entrelaçaram para a prática de atividades.

Em contrapartida, neste capítulo, propomos um modelo de análise mais pontual dos

principais documentos produzidos por Juiz, Defensor e Promotor de Justiça, respeitando a

ordem em que tais documentos foram acostados ao processo. A abordagem particularizada,

contudo, não significa que abandonamos a visão do todo: mais uma vez, salientamos que o fio

condutor das análises é a visão sistêmico-institucional do discurso processual penal.

Antes de partirmos para as análises, alguns critérios devem ser explicitados de forma

clara, tarefa a que nos dedicamos a seguir.

5.1 Divisão metodológica do Processo

Para fins metodológicos, o Processo foi dividido em 7 etapas, observando-se a ordem

cronológica em que os atos e documentos foram acostados aos autos e as condições

enunciativas próprias de cada uma das fases:

a) Fase Policial;

b) Juízo Singular (da Denúncia à Decisão de Pronúncia);

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c) Sequência típica executada após a Pronúncia;

d) Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão);

e) Preparação para a Sessão de Julgamento;

f) Sessão de Julgamento e

g) Sentença.

A primeira etapa – “Fase Policial” – foi marcada pelas figuras dos policiais civis e

militares, comandados pelo Delegado de Polícia. Foi ele quem tomou a frente das

investigações nesse momento, solicitou a realização de diligências, colheu depoimentos,

produziu peças dirigidas ao Juiz e ao Promotor.

A segunda etapa, chamada de “Juízo Singular”, desenrolou-se em um cenário

diferente, sob o comando do Juiz de Direito, com personagens próprios do meio judicial,

como o Promotor, os advogados, os serventuários da justiça.

A terceira etapa, à qual atribuímos o título “Sequência típica executada após a

Pronúncia”, é apenas uma amostra pontual de um momento em que se dá curso ou andamento

burocrático ao processo.

A quarta etapa, que recebeu o nome de “Fase Recursal”, teve lugar no Tribunal de

Justiça, e os personagens que aí atuaram foram os Desembargadores e os serventuários da

segunda instância, além do advogado e dos membros do Ministério Público.

Retornando os autos à primeira instância, teve lugar a quinta etapa, chamada de

“Preparação para a Sessão de Julgamento”. Trata-se do momento em que são apresentados o

Libelo, a Contrariedade ao Libelo, os Editais de convocação dos jurados, enfim, são tomadas

as medidas necessárias para a realização da sessão de julgamento.

A sexta etapa, a “Sessão de Julgamento”, é o ponto culminante do procedimento: o

caso é submetido aos juízes leigos, apresentam-se os fatos, defesa e acusação proferem

oralmente seus dizeres, a encenação do júri encontra seu momento máximo.

A sétima e última etapa é uma ratificação da anterior: a partir do veredicto apresentado

pelos jurados, o Juiz elabora a sentença que põe fim ao procedimento.

Na medida em que, no capítulo de análises, nos debruçamos sobre cada uma dessas

etapas, tratamos também de apresentar com maiores detalhes o processo selecionado como

corpus de pesquisa, oferecendo informações gerais acerca do tratamento dado pelo Judiciário

àqueles que incorrem na prática de crime de aborto, especialmente em autoaborto, a fim de

que pudéssemos realizar uma reflexão mais ampla sobre o caso que nos propomos a analisar.

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5.2 Peças selecionadas para análise

De cada um desses estágios, selecionamos documentos e ou atos processuais para

serem analisados, segundo o critério de apresentarem maior relevância para o desfecho da

ação instaurada.

Apenas da etapa e) não selecionamos nenhum proferimento, pois pareceu-nos que as

peças elaboradas nesse momento eram simples, concisas, caracterizadas por um vocabulário

excessivamente formulaico e que não trariam grandes contribuições para o trabalho.

Outro critério utilizado para essa seleção foi o de que, nos referidos documentos, a

relação dialógica entre as instâncias de acusação, defesa e julgamento se constituiu de uma

maneira bastante nítida, permitindo a reconstrução do movimento de apresentação e/ou

refutação das teses apresentadas.

O quadro abaixo representa as peças e atos processuais produzidos ao longo do

processo. As figuras preenchidas indicam as peças e/ou atos selecionados como objeto de

análise pontual:

Quadro 12: Esquema representando os atos e peças processuais selecionados para as análises Fonte: Elaborado pela autora

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5.3 Categorias e procedimentos de análise

O primeiro passo na execução dessa proposta de análise foi o levantamento dos

sujeitos que atuaram no Processo, dos conjuntos de gêneros que cada um deles produziu e de

como esses conjuntos se entrelaçaram para a prática de atividades. Tanto os sujeitos

processuais e seus conjuntos de gêneros quanto a configuração final do Processo foram por

nós esquematizados em quadros sintéticos e apresentados ao longo do capítulo “Linguagem,

Ação e o Caráter Institucional da Atividade Discursiva”.

Os documentos que compõem as etapas a) (Relatório de Inquérito Policial - Anexo A),

b) (Denúncia - Anexo B, Alegações Finais do Ministério Público - Anexo D, Alegações

Finais da Defesa - Anexo E, Sentença de Pronúncia - Anexo F) e g) (Sentença - Anexo H)

foram analisados pela combinação de postulados da Teoria dos Atos de Fala e das Teorias da

Argumentação de Perelman, Amossy e Ducrot (em menor extensão).

Adotando a Teoria dos Atos de Fala (TAF) como padrão de análise, buscamos uma

avaliação mais detalhada de ações determinadas pelo discurso judicial processual penal do

Tribunal do Júri, o qual engloba gêneros com maior ou menor grau de performatividade,

entendida aqui como uma maior capacidade de provocar mudanças na realidade social pela

linguagem.

Na verdade, observamos que as diversas peças processuais que fazem parte do

domínio jurídico, inclusive as formas cartoriais, são repletas de verbos performativos22 plenos,

no sentido dado a esse termo por Austin (1990), quando postulou a dicotomia

performativos/constativos, hoje já superada. O emprego do termo “performativo” se

justificaria, nesse sentido, porque a linguagem jurídica é uma forma de discurso social

marcada pela presença dos verbos performativos clássicos, provavelmente como decorrência

de uma necessidade de demarcar espaços específicos de atuação dos sujeitos e etapas

processuais.

No entendimento de Bittar:

O ato performativo requer, para sua caracterização, a capacidade de fazer coisas por meio do discurso (o que os define como performatif acts), o que efetivamente se dá com a aparição de cada discurso decisório. Esses atos performativos de linguagem

22 Verbos performativos são aqueles cuja enunciação realiza a ação que eles exprimem, ou que descrevem certa ação do sujeito que fala. Como exemplos, podem ser citadas as formas verbais, conjugadas na primeira pessoa, “eu digo”, “eu prometo”, “eu juro”, uma vez que ao enunciar essas frases, o sujeito pratica a ação de dizer, prometer, jurar.

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resultam de uma enunciação contextual própria, o que é feito por meio da decisão, com a qual se manifesta a autoridade decisória. Nesse sentido, é exatamente o que faz, por exemplo, uma sentença judicial, constituindo, desconstituindo, declarando, condenando, pois encarna um conteúdo que tem um valor material concreto, socialmente engajado e que corresponde a uma prática que se sustenta institucionalmente. (BITTAR, 2009, p. 301).

A análise dos proferimentos consistiu na elaboração de uma reflexão inicial acerca das

condições enunciativas próprias de cada documento analisado já que, como afirma Mari

(2001, p. 124), “a efetivação de uma força ilocucional decorre da realização de um complexo

de fatos, reunidos todos no processo enunciativo”. Alguns desses fatos contêm presença

material nesse processo, outros são apenas uma “base de sustentação” que possibilita a

funcionalidade dos demais (MARI, 2001).

Em seguida, tais documentos foram transcritos e segmentados em parágrafos, que, por

sua vez, foram decompostos em atos ilocucionários, adotando-se como critério geral a

hipótese metodológica de que tais atos constituem-se como unidades mínimas de análise.

Partiu-se então para a análise das unidades mais representativas de cada documento,

pela aplicação dos postulados da Teoria dos Atos de Fala, com a explicitação do ponto de

realização, modo, condições de conteúdo proposicional, condições preparatórias e condições

de sinceridade.

No quadro abaixo, apresentamos os sinais utilizados nas análises:

COMPONENTES DO ATO DE FALA

ππππ: ponto de realização (diretivo, comissivo, assertivo, declarativo, expressivo)

µ: modo de realização (ordem, pedido, promessa, desejo, juramento, afirmação, exoneração, nomeação, cumprimento, etc)

θ: condição de conteúdo proposicional/forma lingüística da proposição (incluindo tempo verbal, propriedades de itens lexicais e o agente da ação)

∑: condições preparatórias (fatos associados à identidade dos interlocutores e ao estatuto de um em relação ao outro)

ψψψψ: condição de sinceridade (compatibilidade entre o estado psicológico do locutor e o conteúdo do ato proferido) Quadro 13: Componentes do ato de fala Fonte: Elaborado pela autora

A partir da construção do cenário enunciativo – como o locutor se constitui, constitui o

mundo e seus interlocutores – foi possível partir também para a investigação das estratégias

que orientam argumentativamente os proferimentos. De uma maneira global, foram

consideradas na análise da argumentação: as condições prévias para seu exercício, a par das

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restrições genéricas e institucionais impostas pelo Tribunal do Júri; as estratégias

argumentativas desenvolvidas por acusação, defesa e julgador; a disposição dos argumentos

no discurso e a relação entre eles; aspectos das forças ilocucionais presentes nos

proferimentos e a orientação argumentativa que os atos de fala conferem ao discurso, entre

outros.

A investigação da fase c), “Sequência típica executada após a pronúncia”, visou a

apontar como os sujeitos processuais dão andamento ao processo e materializam as decisões,

por meio de gêneros típicos do quadro institucional. Por isso, as categorias de análise

utilizadas para essa etapa relacionam gêneros e realização de atividades.

Para a análise da fase d), cujo proferimento mais importante foi o Acórdão (Anexo G),

e da fase f) (depoimentos concedidos pela ré), foram empregadas as categorias da

argumentação no discurso, de Amossy, aliadas aos conceitos de lugar comum, lugar

específico, doxa, heterogeneidade discursiva, representações sociais, estereótipos e imagens

de si no discurso.

A seguir, passamos às Análises.

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6 ANÁLISE DO CORPUS

6.1 A Fase Policial

Inquérito policial, de acordo com o Código de Processo Penal, é todo procedimento

instaurado pela polícia judiciária com vistas à apuração da prática de uma infração penal e de

sua autoria. Trata-se de um procedimento administrativo-informativo, que dá início às

investigações sobre a possível ocorrência de um fato delituoso, constituindo a “porta de

entrada” de um processo penal. Dessa forma, seu objetivo é coletar informações sobre a

autoria de um incidente e sua materialidade e sua função é servir de base para a acusação no

processo penal.

O Inquérito é presidido pelo Delegado de Polícia, o qual não dispõe de legitimidade da

jurisdição. Em outras palavras, ao Delegado cabe apenas a tarefa de investigar. A instauração

de um processo penal, para impor uma pena criminal a alguém, é, na maior parte dos casos,

prerrogativa do Estado, por meio do Ministério Público. Daí se afirmar que o inquérito é

apenas um procedimento preliminar.

No caso ora analisado, o desenrolar dos fatos que culminaram no julgamento de R

pelo Tribunal do Júri parece contrariar o que normalmente ocorre no país em situações

semelhantes.

Como já se afirmou, as estatísticas demonstram que há um número reduzido de

processos instaurados para apuração de crime de aborto no Brasil. Na verdade, esse tipo de

conduta, principalmente quando a própria gestante provoca a destruição do feto (autoaborto,

em oposição às clínicas em que “profissionais” praticam o ato), em razão da ausência de

lesividade a terceiros e de o procedimento se realizar numa espécie de submundo, dificilmente

chega ao conhecimento de uma autoridade pública23.

O fato só chega a essa esfera quando, por exemplo, a Polícia é acionada para socorrer

uma gestante em trabalho de “parto prematuro”, ou quando recebe denúncias de

funcionamento de clínicas clandestinas de aborto, ou ainda por informações da administração

23 Essa constatação, fruto de conversas e observações informais com advogados e funcionários do Poder Judiciário, encontra amparo na já referida pesquisa de Ardaillon (1994).

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do hospital onde são internadas mulheres com abortos provocados incompletos, denominados

“abortos infectados” (ARDAILLON, 1994).

Foi exatamente essa última hipótese que parece ter ocorrido no processo sob análise:

segundo narrativa atribuída à própria gestante/ré, ela estaria no segundo ou terceiro mês de

gestação e, por não possuir condições financeiras de criar mais um filho, teria tentado

interromper a gravidez introduzindo uma sonda em seu útero, o que lhe teria provocado uma

forte infecção.

Acometida por dores abdominais, mau cheiro e febre, acabou procurando atendimento

médico na Santa Casa da cidade. O médico que lhe atendeu desconfiou de que poderia se

tratar de aborto provocado e comunicou o fato ao administrador da Santa Casa. Este, por sua

vez, enviou um ofício ao Delegado de Polícia, pedindo a apuração do ocorrido.

Nesse sentido, Pérez (2006, p. 11) comenta que, “desconsiderando as questões sociais

que derivam da problemática da clandestinidade do aborto e os direitos reprodutivos e sexuais

das mulheres, os profissionais de saúde se limitam a perceber o aborto como crime”. E por

essa razão acabam acionando a polícia.

O investigador de polícia compareceu então ao hospital para ouvir a suspeita, que

parece ter confirmado para ele a prática abortiva. Com isso, foi instaurado um Inquérito

Policial, conduzido pelo Delegado, para investigar se havia provas que pudessem sustentar

uma acusação criminal. A suspeita foi interrogada na Delegacia, pelo Delegado, e concedeu o

seguinte depoimento:

QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar; QUE, comprou a sonda e sozinha praticou o aborto; QUE, não teve orientação de nenhuma outra pessoa; QUE, o motivo foi que já possuía um casal de filhos sendo um com quatro e outra com dois anos de idade e que não tem condições financeiras para cuidar de todos e ainda na época morava com sua prima; QUE, foi o único aborto que praticou; QUE, faz uso de bebida alcoólica, fuma cigarros, não faz uso de drogas, não faz uso de remédio controlado, nunca foi internada em casa de tratamento de doenças mentais, já teve envolvimentos com brigas e já foi processada cumprindo pena até a presente data. (R)24.

Esclarecemos que essas primeiras declarações formais da ré foram colhidas sem a

presença de um advogado de defesa.

Testemunhas também foram ouvidas no Inquérito. Em geral, seus depoimentos foram

vagos, pois não haviam presenciado o ato e só podiam falar do ocorrido a partir do ingresso

da suspeita no hospital. O médico que realizou os procedimentos, que poderia ter dado

24 Interrogatório prestado perante o Delegado de Polícia em 23/11/00, fls. 34.

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informações mais precisas, se furtou a prestar esclarecimentos conclusivos, talvez porque não

desejasse se comprometer, talvez por ética profissional.

O aborto é um crime que deixa vestígios no mundo físico, razão pela qual o Código de

Processo Penal determina sua comprovação por meio de Exame de Corpo de Delito. Como a

suspeita compareceu ao hospital alguns dias depois de ter supostamente provocado a morte do

feto, não havia mais como se realizar esse exame nos moldes do que prescreve a lei

processual, então se tentou supri-lo através do laudo médico produzido por ocasião do

atendimento. Nesse laudo, o médico diagnosticou “abortamento infectado” e encaminhou a

paciente para o procedimento de curetagem uterina.

No decorrer do processo, o laudo médico produzido nessa fase investigatória foi

inúmeras vezes retomado e, em torno dele, produziu-se uma ampla produção discursiva, tanto

por parte da defesa como da acusação.

A esse respeito, julgamos interessante a observação de Sartori:

Os laudos sobre os indivíduos envolvidos nos crimes são respaldados na cientificidade dos saberes da medicina, da psicologia e da sociologia, e por isso são tidos como incontestáveis, no interior do Sistema Judiciário. Esses saberes atuam no interior do discurso jurídico elaborando provas e indícios, que oferecem legitimidade para aplicação de penas e possibilitam o enquadramento dos indivíduos em criminosos ou inocentes. O delito criminoso é então construído durante o processo penal por meio das tensões existentes entre o saber científico (medicina, psicologia e sociologia) e a normatização da ‘ordem pública’. (SARTORI, 2008, p. 4).

Concluídas as investigações, o Delegado de Polícia elaborou o Relatório de Inquérito

Policial, onde indiciou formalmente a suspeita e determinou o envio do feito ao Promotor de

Justiça, para que este tomasse as providências legais.

Dentre todos os atos, diligências e proferimentos produzidos no decorrer do Inquérito,

optamos por realizar uma análise mais aprofundada do Relatório de Inquérito Policial, o qual

se propõe a fechar o procedimento investigatório, pois acreditamos que em seu bojo estão

contidas as vozes de todos os sujeitos que participaram do suposto fato criminoso e de sua

apuração na esfera policial, vozes que foram processadas, reproduzidas e/ou reelaboradas de

acordo com os propósitos ilocucionários do sujeito enunciador “Delegado de Polícia”.

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6.1.1 O Relatório de Inquérito Policial

Inicialmente, pensando sobre as condições enunciativas que perpassam o Relatório de

Inquérito Policial (doravante RIP), observamos que ele se configura como desfecho de um

procedimento conduzido por uma autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, sob a

direção de quem inúmeras diligências são praticadas por policiais civis e militares; são

produzidos laudos periciais, ouvidas testemunhas; é interrogado o suspeito. Todo esse

proceder institucionalizado, que tem lugar no interior de uma estrutura recorrente e prescrita,

de forma detalhada, pela lei processual penal, resulta em um RIP. Este, por sua vez, se aceitas

as provas nele contidas, dará a base para a Denúncia a ser ofertada pelo Ministério Público.

Biazotto (2006) buscou responder, à luz da teoria dos gêneros, se o RIP constituiria-se

como um gênero no sentido concebido por Bakhtin (1997), Bazerman (2005) e Fairclough

(2001). Considerando os gêneros como eventos sociocomunicativos relativamente estáveis,

como entidades discursivas com propósitos estabelecidos e estruturalmente regulares do ponto

de vista linguístico, a autora obteve resposta afirmativa para essa primeira questão. Em outras

palavras, concluiu que se trata de um gênero, por satisfazer a esses elementos conceituais.

Assumindo a hipótese defendida por Biazotto (2006) e tentando avançar um pouco

mais em seus aspectos descritivos, temos que o RIP é um gênero discursivo próprio do

domínio jurídico, de produção exclusiva do Delegado de Polícia (autoridade policial).

Seu alocutário imediato é o Juiz de Direito, que deverá recebê-lo juntamente com os

autos do Inquérito Policial e, em seguida, encaminhá-lo ao Promotor de Justiça, para que este

ofereça, ou não, a Denúncia. Parece-nos que o papel do julgador, nesse caso, é o de

intermediar uma relação, pois caberá ao membro do Ministério Público se interar do conteúdo

do Inquérito e tomar as providências legais. Dessa forma, pensamos que este último também

é alocutário imediato do Delegado.

É importante esclarecer que, uma vez instaurado um Inquérito Policial, somente o

Juiz, a requerimento do Promotor, tem o poder de mandar arquivá-lo. Mesmo se o Delegado

entender que não houve crime, ou que não há como se descobrir o autor, ele não tem o poder

de arquivar o procedimento. Ele informará ao Promotor sobre os resultados da investigação; o

Promotor, por sua vez, fará o requerimento ao Juiz e este dará a palavra final.

A partir dessas observações, construímos o seguinte esquema representativo das

condições enunciativas do RIP:

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Locutor : Delegado de Polícia

Enunciação (EÃO)

Enunciado: Instaurou-se os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no Artigo 124 do Código Penal Brasileiro.

imediato(s): Promotor de Justiça e Juiz de Direito Alocutário(s)

mediato(s): Advogado (ré), policiais civis e militares, jurados, etc

Quadro 14: Condições enunciativas do RIP Fonte: Elaborado pela autora

Após solucionar a primeira questão relativa ao gênero, Biazotto (2006) passou à

investigação das características do Inquérito Policial, de uma maneira mais ampla, e do RIP,

especificamente, para observar se a maneira como os delegados produzem essa peça, no

cotidiano das delegacias de polícia, mantém paralelo com as determinações da legislação

processual para a elaboração de documentos dessa natureza.

Inicialmente, convém esclarecer que há na lei apenas breves referências ao RIP, o que

poderia dar a equivocada impressão de que se trata de uma peça de menor importância. Uma

dessas referências está no artigo 10, do Código de Processo Penal, onde consta que “a

autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz

competente”; e ainda: “[nesse relatório] poderá a autoridade indicar testemunhas que não

tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas”. (BRASIL,

2011).

Na doutrina jurídica, também não se encontram maiores esclarecimentos. De maneira

geral, os autores entendem que faz parte dos deveres da autoridade policial (leia-se “Delegado

de Polícia”), especialmente em seu relatório final (RIP), a obrigação de prestar todas as

informações e considerações que possam ser de utilidade no esclarecimento do crime

investigado (MIRABETE, 2001).

Biazotto (2006) percebeu, então, que o sistema legal espera que o RIP seja uma peça

objetiva, já que ele é o produto de um procedimento administrativo – o Inquérito Policial –

que, segundo o CPP, é sigiloso, inquisitivo, discricionário, formal, sistemático e unidirecional.

Contudo, a pesquisadora encontrou uma realidade bastante diferente daquela preconizada pela

lei, ao analisar um RIP no âmbito de sua dissertação de mestrado. Tal proferimento

caracterizava-se, de acordo com suas observações, por um alto grau de subjetividade,

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avaliação e modalização, o que denotaria uma inadequação da prática ao que prescreve a lei

processual. Nas palavras da autora:

O vocabulário, a força ilocucional, as expressões e as orações modalizadas, as avaliações e a ideologia presentes no texto do RIP analisado demonstram que esse gênero (pelo menos o analisado), na prática social, não ocorre como prevê o CPP. Como diz Bazerman, nem sempre os indivíduos fazem textos conforme os regulamentos, ou, até mesmo, às vezes, tentam fazer algo que está além do que foi regulamentado. É o que parece ocorrer nesse gênero: fazer algo que está além de sua alçada. (BIAZOTTO, 2006, p. 90).

Como o objetivo de nosso trabalho se volta, fundamentalmente, para a investigação da

força ilocucional que emerge dos gêneros produzidos no interior do domínio jurídico,

propomos, em seguida, uma análise de determinados atos de fala selecionados por nós no

RIP, buscando relacionar a descrição de tais atos, obtida a partir dos parâmetros da TAF, à

orientação argumentativa que assumem nos proferimentos. Para isso, dividimos o RIP em três

partes, conforme seu conteúdo temático e estrutural: a primeira, à qual chamamos de prólogo;

a segunda, que recebeu o nome de desenvolvimento, e a terceira, por nós intitulada de

desfecho. Vejamos.

6.1.1.1 Prólogo

Enunciado Estrutura

ππππ: assertivo

µ: narração

θ: verbo pronominal/voz passiva pronominal pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

Instaurou-se [sic] os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no artigo 124 do Código Penal Brasileiro.

ψψψψ: crença

Quadro 15: Componentes de um ato de fala no prólogo do RIP Fonte: Elaborado pela autora

Neste excerto, pelo qual o locutor inicia seu proferimento, observamos a ocorrência de

um ato de fala do tipo (π) assertivo, já que reporta um estado de coisas que preexiste à sua

enunciação, realizado no modo (µ) narração.

O conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo, no modo narração, obedece à condição

de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em contraste com o instante da

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enunciação, que é o do oferecimento do RIP. Essa exigência faz com que a forma verbal seja

morficamente representada no tempo pretérito.

No enunciado em análise, o verbo “instaurar” aparece conjugado no pretérito perfeito

do indicativo (instaurou-se), na terceira pessoa do singular. O que chama atenção, nesse

aspecto, é a voz do verbo, ou seja, “a forma assumida pelo verbo para indicar que a ação

verbal é praticada ou sofrida pelo sujeito” (CEGALLA, 1993, p. 205). Em “instaurou-se os

presentes autos”, o sujeito (“os presentes autos”) é paciente, já que recebeu a ação de ser

instaurado. A voz passiva é formada, nesse caso, com o pronome apassivador “se” associado a

um verbo transitivo da 3.ª pessoa. A Gramática fala, então, em voz passiva pronominal, ou

voz passiva sintética, em que o verbo concorda com o suposto objeto direto, que desempenha,

na verdade, a função de sujeito da oração. A forma gramaticalmente aceita seria, portanto,

“instauraram-se os presentes autos”.

Justifica-se o emprego do pretérito perfeito do indicativo porque, nesse ponto, o

locutor faz uma observação a respeito de um estado de coisas que, sem dúvida alguma,

ocorreu: os autos de Inquérito Policial foram instaurados por via de uma Portaria expedida

pelo próprio Delegado (Instaurou-se [sic] os presentes autos de Inquérito Policial por

portaria). Quanto a essa primeira parte, não há dúvidas.

Contudo, ao explicitar a causa que teria levado o locutor a instaurar o investigatório,

subsiste uma incerteza, manifesta pela expressão verbal escolhida para descrever o motivo de

se promover o Inquérito Policial: “tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto

(...)”. O uso da expressão verbal composta pelo verbo auxiliar “ter” + o verbo principal

“provocar”, conjugada no futuro do pretérito do indicativo (tempo composto), é bastante

apreciado no meio jurídico quando a intenção do locutor é atribuir um feito a alguém, sem,

todavia, comprometer-se com tal atribuição. Nesse sentido, encontramos na Gramática a

explicação de que esse emprego se justifica porque o futuro do pretérito pode exprimir

dúvida, incerteza, probabilidade (CEGALLA, 1993).

As condições preparatórias do ato ( ∑ ) relacionam-se à posição assumida pelo

Delegado de Polícia, na instituição policial, e de seus alocutários, bem como ao conhecimento

que ele tem sobre os atos praticados no início do Inquérito Policial.

Da mesma forma, a condição de sinceridade (ψ), nesse enunciado, é a expressão da

crença do Delegado no estado de coisas reportado, ou seja, a instauração do investigatório por

Portaria, devido às informações de que teria ocorrido um crime.

Se concordarmos com Biazotto (2006) acerca da necessidade de o Delegado produzir

uma peça de caráter objetivo e imparcial, diríamos que, até aqui, esse sujeito procedeu da

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maneira como prescreve a lei. Ao empregar a expressão verbal “teria provocado”, ele deixa

margens para que seu alocutário pense de forma diferente dele. Contudo, na parte

subsequente, parece haver uma mudança de orientação.

6.1.1.2 Desenvolvimento

Dando sequência à análise do RIP, chegamos à parte por nós intitulada de

desenvolvimento. Nesta parte, o locutor faz uma síntese dos fatos que ocorreram ao longo do

Inquérito e comenta os depoimentos colhidos até ali.

Abaixo, selecionamos um excerto para análise da força ilocucional emergente de um

dos enunciados do desenvolvimento. Por este enunciado, introduzimos também uma reflexão

acerca das formas e funções desempenhadas pelo discurso relatado ao longo dos

proferimentos que compõem um processo penal, como se vê adiante:

Enunciado Estrutura ππππ: assertivo

µ: relato

θ: verbo conjugado no pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

A testemunha T2, fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo.

ψψψψ: crença

Quadro 16: Componentes de um ato de fala no desenvolvimento do RIP Fonte: Elaborado pela autora

Identificamos nesse enunciado a presença de um ato de fala realizado no ponto

assertivo (π), no modo relato (µ).

Nesse momento, torna-se necessário fazer uma pausa na investigação da força

ilocucional do proferimento, para buscar a compreensão das formas e funções desempenhadas

pelo discurso relatado em nosso corpus, de uma maneira geral, e no enunciado selecionado,

de maneira mais específica25.

25 Mais adiante, em tópico distinto, voltaremos a abordar a função do Discurso Relatado no domínio jurídico.

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Inicialmente, devemos retornar ao Inquérito Policial e aos atos investigatórios de

tomada de depoimento, a fim de buscar informações sobre as condições de produção desse

enunciado.

Como já informamos, durante a fase inquisitorial, em que o Delegado de Polícia

procede à investigação de um fato provisoriamente classificado como crime, são produzidas

as primeiras provas que poderão servir de suporte a um processo penal. Uma delas é o

depoimento testemunhal. Embora se configure, no processo criminal, como a mais comum e

fundamentadora de outras provas, é também a mais controvertida. Isso ocorre porque, na

qualidade de narrativa cuja função é a reprodução de um fato apreendido e conservado pela

memória, pode sofrer variados tipos de influências, como por exemplo, do estado psicológico

do depoente ou mesmo do passar do tempo.

A forma como os depoimentos são colhidos na Delegacia também gera controvérsias,

pois o conteúdo exato da fala passa por acomodações até se adaptar ao estilo institucional.

Fala-se em três procedimentos possíveis:

- na primeira hipótese, o delegado de polícia questiona a testemunha e em seguida dita

ao escrivão o texto que será reduzido a termo;

- outra situação possível é o delegado questionar a testemunha, esta responder e o

escrivão ir reduzindo a termo concomitantemente e

- por último, o próprio escrivão realiza as duas atividades (questionar e reduzir a

termo), sem a presença do delegado.

Em nosso corpus, acreditamos que tenha ocorrido a segunda forma, ou seja, o

Delegado inquiria as testemunhas e elas respondiam oralmente; o Delegado então

retextualizava suas falas e ditava ao escrivão o texto pronto, para que este apenas o digitasse.

Colhidos sob essas três formas, os depoimentos orais ganham formato escrito e

distanciam-se ainda mais da realidade dos fatos, como aponta Romualdo:

[...] ao construírem o discurso escrito a partir do que ouvem, os agentes da justiça instauram uma outra situação enunciativa que carreia perdas, seleções e acréscimos com relação à voz original. Logo, as modificações que ocorrem nas falas das testemunhas devem-se não só às variações de percepção pessoal e de tempo, como afirma a bibliografia jurídica, mas também às influências dos escrivães, delegados e juízes no assentamento dos textos orais. (ROMUALDO, 2003, p. 234)

Como salienta Romualdo (2003), ao construírem o discurso escrito a partir do que

escutam das testemunhas, os agentes policiais instauram uma outra situação enunciativa, a

qual carreia perdas, seleções e acréscimos com relação à voz original.

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O que observamos sobre a prova testemunhal em nosso corpus é o fato de que, ao

produzirem seus proferimentos, os sujeitos processuais principais (Juiz, Promotor e Defensor)

recuperaram os depoimentos concedidos pelas testemunhas, tanto na fase policial quanto na

fase judicial e, ao introduzirem em suas falas as vozes dos depoentes, o fizeram sempre com

um direcionamento persuasivo e não meramente informativo.

Tomando o enunciado selecionado como exemplo, propomos uma verificação de

como se dá esse processo de retomada da fala de uma dada testemunha – T2 (médico) – pelos

sujeitos processuais. Inquirido pelo Delegado, T2 prestou o seguinte depoimento:

Que é médico obstetra e trabalha no hospital Santa Casa da cidade de C e relata que nos últimos meses vinha acontecendo número de abortos com mais freqüência do que o habitual e que através de terceiros tomou conhecimento de que havia pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo, porém, em virtude de se manter o segredo médico e não ter provas concretas sobre o ato o depoente se abstém de citar nomes de pacientes que se submeteram a utilizar tal método, mas pede que se investigue e se apure quem fornece e vende tal remédio. (T2)

26

De acordo com as pesquisas de Romualdo (2003), o enunciado acima transcrito não

pode ser considerado como o “original”. Assim, ainda não teríamos chegado à forma que

inaugurou toda uma rede de produção discursiva, porque esse testemunho não é a reprodução

fiel das respostas dadas por T2. Já é, na realidade, uma retextualização, promovida pelo

Delegado, das informações orais que obteve de T2 por ocasião da tomada de seu depoimento.

Com base nesse testemunho, o Delegado de Polícia, mais adiante, produziu o

enunciado que ora analisamos, utilizando-se da forma do discurso indireto para inserir em seu

RIP a voz do médico que atendeu a suspeita:

A testemunha T2 [médico], fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo. (Delegado de Polícia)27

Nesse caso, em que se empregou o discurso indireto como forma de retomada da fala

do outro, entrevemos três planos enunciativos, ou seja, estão presentes três locutores distintos,

em uma sobreposição de vozes:

26 Termo de depoimento prestado perante o Delegado de Polícia, fls. 14. 27 Relatório de Inquérito Policial, fls. 36.

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L1: terceiros/informantes do médico (haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo); L2: médico, que relata o discurso dos informantes (tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo); L3: Delegado/escrivão, que reporta o discurso relatado pela testemunha (declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo).

Nesse enunciado, o depoimento testemunhal é inserido pelo verbo dicendi “declarar”,

conjugado no pretérito perfeito do indicativo, na terceira pessoa do singular, o que propicia

uma acomodação sintática para permitir a asserção da fala da testemunha no relato do

Delegado.

Retomando a análise quando aos componentes do ato de fala selecionado, temos que

esse verbo marca uma relação entre o ato ilocucionário assertivo e o resto do discurso ou

contexto da emissão (SEARLE, 1995a).

Considerando que uma das funções da reprodução de falas alheias é introduzir

informações sobre fatos pretéritos na nova situação enunciativa, o conteúdo proposicional (θ)

do ato realizado no modo relato obedece à condição de que a forma verbal contenha uma

expressão de passado em contraste com o instante da enunciação, que é o do oferecimento do

RIP.

Para a efetivação dessa força ilocucional de caráter assertivo, é preciso que condições

preparatórias ( ∑ ) sejam preenchidas por parte do locutor – Delegado de Polícia – e dos

alocutários – Juiz de Direito e Promotor de Justiça, sinteticamente. Assim, além do estatuto

formal de que todos devem estar investidos, concedidos a eles por uma instituição

extralinguística, o locutor deve admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado, ou seja,

o locutor deve crer na veracidade do depoimento da testemunha T2 (médico), o qual foi a base

para a construção do enunciado em análise.

Relacionadas às condições preparatórias, estão as condições de sinceridade do ato (ψ),

ou seja, o estado psicológico expresso em sua realização que, nesse caso, é a crença.

Ainda na parte narrativa do depoimento, encontramos outros enunciados em que as

falas de um policial e de outra testemunha são relatadas pelo locutor, também na forma de

discurso indireto, como em: “A testemunha T1, fls 10, declarou que na época dos fatos era

gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer curetagem.”

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6.1.1.3 Desfecho

Enunciado Estrutura

ππππ: declarativo

µ: formal

θ: verbo conjugado na primeira pessoa do singular, presente do indicativo ∑: além da posição do locutor na instituição policial, o indiciamento obedece a critérios legais

Ante ao exposto, e a vista de tudo mais que dos autos constam, indicio formalmente R às penas dos Artigos 124 e 33028 do Código Penal Brasileiro.

ψψψψ: crença + desejo Quadro 17: Componentes de um ato de fala no desfecho do RIP Fonte: Elaborado pela autora

Segundo Mirabete (2001, p. 88), indiciamento “é a imputação a alguém, no inquérito

policial, da prática do ilícito penal”. A lei não se refere expressamente ao ato de

“indiciamento” do autor de uma infração, nem determina o momento próprio para que tal ato

ocorra. No caso em análise, ao proferir o enunciado “indicio formalmente R às penas dos

Artigos 124 e 330 do Código Penal Brasileiro”, o Delegado produziu um ato de fala

declarativo (π), no modo formal (µ), pois é necessário que o enunciador do ato possua

determinado estatuto oriundo de uma instituição extralinguística e que, ao mesmo tempo,

observe os limites impostos pelos quadros genéricos de sua função.

O conteúdo proposicional (θ) do ato nos leva a crer que estamos diante de um

performativo nos moldes da concepção inicial de Austin (1990): fórmula canônica “indiciar”,

conjugada na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo. Como afirma Searle (1995a),

trata-se de um ato que precisa ser realizado como um ato de fala.

Uma vez satisfeitas as condições necessárias, a pessoa sobre a qual recai o ato deixa de

ser uma mera suspeita para se tornar uma “indiciada”, pois a realização bem sucedida do ato

produz a correspondência entre a palavra proferida – indiciar – e a realidade, ao mesmo

tempo em que a nova realidade se ajusta à palavra expressa.

É interessante observar que, nos autos de um processo penal, as formas de designação

da pessoa considerada autora de um suposto delito sofrem diversas alterações, conforme a

fase do processo e o maior ou menor grau de convicção sobre a sua culpa: na fase do inquérito

policial, ela é “investigada”, “suspeita”, “averiguada”, “indigitada autora”, “indiciada”; se o

28 Como a suspeita deixou de comparecer à Delegacia para prestar esclarecimentos quanto ao hipotético crime de autoaborto, o Delegado considerou que ela havia também praticado o crime previsto no art. 330, do Código Penal (desobedecer a ordem legal de funcionário público). O Promotor, contudo, desconsiderou o indiciamento de R quanto a esse crime.

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inquérito se transforma em ação penal, pelo oferecimento da Denúncia pelo Promotor de

Justiça, a pessoa recebe a designação de “denunciada”, “acusada”; a partir do momento em o

Juiz recebe a Denúncia, ela passa a ser “ré”.

Como condições preparatórias ( ∑ ) necessárias ao sucesso do ato, aponta-se a posição

institucional do locutor, no caso uma autoridade policial, e a observação dos preceitos legais

que orientam o procedimento investigatório.

O estado mental pressuposto (ψ) é a crença do locutor na existência de indícios

suficientes de autoria e materialidade pesando contra a indiciada e o desejo de que seus

alocutários (Juiz e Promotor) atentem para eles.

6.1.1.4 Considerações

No Relatório de Inquérito Policial ora analisado, parece-nos que a força ilocucional

resultante do conjunto dos atos de fala que o compõem está voltada para o convencimento do

Promotor e dos demais alocutários, de que a suspeita é culpada pelo crime. A intenção

condenatória por parte do sujeito enunciador se torna clara quando é proferido o ato

declarativo supra-analisado – “indicio formalmente a ré às penas dos artigos 124 e 330 do

CP” – , já que a condição de sinceridade para a expressão desse ato é a crença, por parte da

autoridade policial, de que um crime foi cometido e de que a suspeita é sua autora.

Corroborando essa observação, temos que o próprio conteúdo proposicional de

diversos atos que compõem o proferimento, encobertos por aparente espectro de neutralidade,

revela a intenção condenatória do Delegado de Polícia. Enunciados em que ele reelabora os

depoimentos das pessoas ouvidas no curso da investigação policial, empregando expressões

verbais taxativas quanto à prática do ato criminoso, como em “a testemunha (...) declarou que

na época dos fatos era gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer

curetagem; “o mesmo [detetive] constatou que foi a autora quem provocou o aborto (...)”.

Nesse último enunciado, por meio do discurso indireto, o Delegado traz ao RIP a voz

do detetive, que é um dos sujeitos do Inquérito Policial, responsável pela investigação in loco

dos fatos supostamente criminosos. Assim, o Delegado não assume sua crença na culpa da

suspeita, mantendo aparente neutralidade, mas, pela reprodução da voz de outro sujeito, acaba

por postular seu propósito persuasivo.

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Encontramos ainda nessa peça uma referência ao laudo médico como se fosse uma

prova incontestável, empregada como um verdadeiro argumento de autoridade (“Juntou-se

cópia do Laudo Médico, fls. 20, comprobatório da materialidade do delito”), quando, na

verdade, essa foi uma das provas mais debatidas e contestadas ao longo de todo o processo.

De forma categórica, Biazotto (2006) defende que o RIP, como resultado de um

procedimento apenas investigativo, deveria ser um gênero objetivo, elaborado com uma

linguagem neutra, sem juízo de valor ou avaliação por parte de seu autor. Portanto, seu

objetivo não seria nem acusar, nem defender.

Contudo, no RIP sob análise, não há que se falar em neutralidade ou imparcialidade,

uma vez que a conclusão do proferimento é um ato declarativo de indiciamento, portanto, está

evidente a posição da autoridade policial. Parece claro, desse modo, que no decorrer da peça

ele deveria desenvolver uma narrativa que direcionasse o raciocínio do alocutário rumo à

incriminação da suspeita. Dessa forma, pensamos que o propósito subjacente à elaboração do

RIP analisado é mesmo o convencimento do Promotor de Justiça sobre a necessidade de

instauração de uma ação penal contra a indiciada. Nesse sentido, a afirmação de Lima (2006)

e Ardaillon (1994) de que, já a partir do Inquérito Policial, recai sobre o “averiguado” uma

espécie de condenação, é convalidada pelo caso ora analisado.

Não obstante, não podemos deixar de considerar que o locutor adota uma estratégia de

não evidenciar seu propósito persuasivo, já que ele tenta reproduzir em seu RIP também “o

outro lado da questão”, quando, por exemplo, relata indiretamente a fala de uma testemunha

que afirma não se recordar do caso (“A testemunha T3 declarou que não recorda-se do fato”).

Ou ainda, quando inicia a peça modalizando a questão da autoria do delito: Instaurou-se [sic]

os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria

provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no artigo 124 do Código Penal

Brasileiro.

Assim sendo, talvez fosse o caso de se afirmar que o RIP fica nos limites entre o

discurso de visée persuasiva e o discurso que apenas comporta uma dimensão argumentativa,

considerando, com Amossy (2005b) que todo discurso tende a agir sobre o parceiro,

incitando-o a ver e pensar de um certo modo, a partilhar um ponto de vista, mas que nem

sempre se busca com ele o objetivo de persuasão.

Na medida em que o enunciador do RIP elege um ponto de vista em seu proferimento,

mas não o defende abertamente devido às coerções genéricas que não lhe permitem silenciar

quanto ao outro lado da questão, e dada a característica informativa do gênero imposta pela

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lei, podemos inferir que neste caso ora analisado, o proferimento tem apenas uma dimensão

argumentativa.

Pensando agora este proferimento segundo as categorias de Bazerman e dos demais

autores que tomamos como base teórica, chegamos ao seguinte quadro representativo:

Atos de fala Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros Domínio discursivo Fatos sociais

assertivo

declarativo

RIP

Portaria

Ordem de serviço Ofícios

Termos de depoimento Petição ao juiz

RIP

Processo Penal

jurídico

investigação

Quadro 18: RIP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora

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6.2 O Juízo Singular: da Denúncia à Sentença de Pronúncia

Retomando a sucessão de atos e proferimentos que compuseram o processo

selecionado como corpus, adentramos, a partir desse momento, a instância efetivamente

judicial.

Findas as investigações, o Delegado de Polícia enviou ao Juiz de Direito os autos de

Inquérito com o indiciamento formal de R. O Juiz, por sua vez, encaminhou o feito ao

Promotor de Justiça, pois é a ele que cabe a iniciativa de denunciar o indiciado à justiça, para

que este seja submetido a um processo judicial.

Conforme Ardaillon (1994), a maior parte dos inquéritos policiais instaurados para

apuração de aborto se encerra nesse momento, quando a maioria dos Promotores de Justiça,

olhando o caso concreto, costuma se convencer de que não há como reunir provas de autoria e

materialidade, e pugnar pelo arquivamento do feito. Entretanto, em nosso corpus de pesquisa,

o Promotor se mostrou convencido de que as provas reunidas até ali eram suficientes para a

instauração de um processo criminal, por isso, produziu a peça chamada “Denúncia” e propôs

à ré a suspensão condicional do processo.

Para que o réu faça jus a esse benefício, impõem-se os seguintes requisitos: que a pena

mínima cominada para o delito seja igual ou inferior a 01 ano, que o acusado não esteja sendo

processado ou não tenha sido condenado por outro crime e que a medida seja socialmente

recomendável. A indiciada R, inicialmente, preencheu os requisitos legais, mas algum tempo

depois, ainda no curso do benefício, supostamente deu causa à instauração de outra ação penal

por prática de tráfico de entorpecentes, e teve o gozo desse benefício revogado.

O processo voltou a tramitar. A ré foi intimada para constituir defensor, mas não o fez.

Como ninguém pode ser processado criminalmente sem um advogado para acompanhar a

ação, o Juiz de Direito nomeou um defensor dativo para fazer a defesa da ré. No entanto, a

nomeação foi recusada. Outro advogado foi nomeado na sequência, e também declinou. O

terceiro advogado nomeado aceitou a incumbência e produziu a primeira peça da defesa

nesses autos, a “Defesa Prévia”, alegando sucintamente que os fatos narrados na Denúncia

não eram condizentes com a realidade.

Foi realizada a Audiência de Instrução e Julgamento. As testemunhas novamente

prestaram depoimento só que, desta feita, diante do Juiz de Direito e do Promotor de Justiça.

A primeira pessoa a ser ouvida nessa audiência foi a própria acusada, que mais uma vez

reconheceu os fatos imputados contra ela como verdadeiros.

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Pode parecer, à primeira vista, que a realização de nova oitiva da acusada e das

testemunhas em juízo é um ato repetitivo, excessivamente burocrático. Mas, na verdade, é

mais uma garantia para o réu, uma vez que são de conhecimento público as práticas de

agressão física e moral por parte de certos policiais brasileiros, que muitas vezes usam de

expedientes violentos para obter a confissão do acusado, levando-o a assumir atos criminosos

e a apresentar informações sob poder de tortura. Em seguida, transcrevemos trecho do

depoimento da acusada diante do Juiz de Direito, desta feita já assistida por um advogado:

Que são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto; que em sua casa introduziu essa sonda na vagina causando a morte do feto; que fez isso por volta de meio dia; que passados uns 15 dias a depoente começou a ter febre, inclusive foi para a cama; que ai procurou a Santa Casa; que ao chegar na Santa Casa verificou que infeccionou; que o médico pediu que enquanto a depoente não dissesse a verdade não iria olhá-la; que nisso a depoente ficou calada; que no outro dia a depoente contou que tinha feito e foi imediatamente para a sala de cirurgia para fazer a curetagem pois a infecção já havia aumentado e atingido o útero da depoente; que fez isso porque já tinha uma menina de 9 meses, estava morando com a sua prima e estava muito difícil; que já foi presa e processada criminalmente; que não bebe, não fuma e não usa drogas; que nessa época já estava separada de seu marido; que não tem condição de pagar um advogado, sendo mantida a nomeação do Dr._. (R)29

Já discorremos sobre a forma como são colhidos os depoimentos. A título de

recordação, lembramos que na fase judicial, eles são tomados segundo as regras do sistema

presidencial. Nesse sistema, somente ao juiz é permitido dirigir as perguntas às testemunhas.

Advogado e Promotor dirigem suas perguntas para o Juiz, que as reformula para a

testemunha, podendo, no entanto, recusar a pergunta se julgar que ela não tem relação com o

processo ou se for repetição de outra já respondida anteriormente. Ao obter a resposta, o juiz

realiza, então, a consignação, ato de ditar ao escrevente o que deve constar nos autos. Na

realidade, verifica-se um processo de mediação entre o que é dito e o que é consignado e de

reacomodação das formas sintáticas.

Na sequência, agindo como manda a lei processual penal, o Promotor de Justiça

produziu a peça intitulada “Alegações Finais do Ministério Público”, onde requereu ao Juiz

que pronunciasse a acusada para julgamento pelo Tribunal do Júri, porque, segundo ele,

estariam comprovadas a autoria e a materialidade do crime (ainda que não existisse um

Exame de Corpo de Delito, entendeu o Promotor que o laudo médico que atestou “aborto

infectado” era suficiente).

29Depoimento prestado por R no primeiro interrogatório em Juízo, fls. 60.

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O Defensor, em resposta, também fazendo uso do gênero “Alegações Finais”, pediu a

decretação da Impronúncia, postulando a insuficiência do conjunto probatório e a

impossibilidade de comprovação da materialidade do crime.

Abrimos parênteses para explicar que, para que um processo prossiga com chances de

ser bem sucedido, é preciso que existam, inicialmente, pelo menos indícios de que a pessoa

sob a qual recai uma suspeita seja mesmo a autora do crime – trata-se da autoria. A

comprovação da materialidade ocorre quando há provas ou indícios suficientes da ocorrência

de um crime.

Autoria e materialidade são dois conceitos fundamentais do direito penal e processual

penal porque funcionam como uma espécie de franquia a autorizar uma absolvição, quando

ausentes, ou a fundamentar uma condenação, quando comprovados.

Na verdade, os dois conceitos atuam como “coringas” a serem explorados por

acusação e defesa. Em torno desses dois pólos, giram as interpretações doutrinárias, as

tentativas comprobatórias de acusação e defesa e a atribuição do qualificativo de criminoso a

um fato. Ao seu redor, constitui-se uma “rede de relações de causa e efeito, com malhas mais

ou menos frouxas por onde se insinuam e se instauram todas as dúvidas possíveis”.

(ARDAILLON, 1994, p. 227).

No caso analisado neste trabalho, observamos que toda a argumentação de acusação e

defesa foi tecida a partir dos conceitos de autoria e materialidade, pois a falta de Exame de

Corpo de Delito deixou dúvidas quanto à existência do crime: a acusada estava mesmo

grávida ou era apenas uma suspeita de gravidez? Há que se observar que, se não existisse

gravidez, o crime seria impossível30.

Para o Juiz responsável pelo feito ora analisado, entretanto, parece não ter havido

dúvidas. Em seu ponto de vista, a materialidade do fato restou incontroversa e a autoria, não

negada pela ré, foi confirmada pelo conjunto probatório. Por esse motivo, entendeu por bem

pronunciar a acusada, determinando seu julgamento pelo Júri Popular da Comarca.

Nessa primeira fase do processo, foram produzidas várias peças processuais e

realizados diversos atos burocráticos para o bom andamento do feito, conforme as regras do

ordenamento jurídico pátrio.

Por opção metodológica, selecionamos como objeto de análise a Denúncia, que é a

peça inaugural do processo penal; as Alegações da Acusação e as Alegações da Defesa, por

30 O crime impossível tem lugar quando, por ineficácia absoluta do meio ou por impropriedade absoluta do objeto, torna-se impossível a consumação do crime. Exemplos clássicos: desferir facadas em um cadáver ou realizar práticas abortivas em mulher que não está grávida (DELMANTO et al, 1998).

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seu forte teor argumentativo, e a Decisão de Pronúncia, por encerrar a primeira parte do feito,

produzindo grande alteração na realidade social.

6.2.1 A Denúncia

A Denúncia, peça inaugural do Processo Penal, é um dos documentos que fazem parte

do conjunto de gêneros de produção exclusiva do Promotor de Justiça. Trata-se de um gênero

discursivo próprio do domínio jurídico e que se submete, de maneira bastante acentuada, às

coerções genéricas e institucionais dos quadros onde é produzida.

Ao elaborar essa peça, o Promotor deve estar atento ao que prescreve a lei processual

penal para sua redação, ou seja, tanto o conteúdo temático quanto a forma composicional

desse gênero são previamente estabelecidos em lei. Dessa forma, há pouca liberdade para o

locutor inovar nesses aspectos, restando-lhe um pouco mais de flexibilidade apenas no que

respeita ao estilo pessoal.

A orientação normativa para sua elaboração está contida no artigo 41 do Código de

Processo Penal, onde se lê que a Denúncia deverá conter a exposição do fato criminoso e das

circunstâncias que o circundaram, a identificação mais completa possível do autor do fato e o

rol de testemunhas, se necessário (BRASIL, 2011).

Se for imprecisa, omissa ou pouco clara, pode ser rejeitada pelo Juiz, pois dificultaria

a realização da defesa por parte do indiciado, uma vez que, sem o conhecimento exato do que

lhe é atribuído, ele não pode elaborar uma defesa completa. Como já se afirmou, vigoram no

Processo Penal alguns princípios que tentam tornar a relação entre o Estado, que é o órgão

que detém a persecução penal, e o réu, um pouco menos desequilibrada, ao conceder a este, a

parte mais fraca, algumas garantias de que não será sumariamente condenado, sem ao menos

ter o direito de defesa.

Tradicionalmente, ao elaborarem suas Denúncias, os Promotores de Justiça optam por

fazer a narração dos fatos imputados a um sujeito-autor, seguida da citação do artigo penal em

que essa conduta encontra guarida no Código Penal e do pedido de acolhimento da peça pelo

Juiz responsável pelo processo.

Refletindo sobre as condições enunciativas consubstanciadas no gênero Denúncia,

observamos que um discurso dessa natureza só pode ser produzido em um domínio discursivo

como o jurídico, onde locutor e alocutário estão investidos de um estatuto formal de

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operadores do direito, e se movimentam no interior de um quadro institucional em que as

regras para a troca linguageira são previamente criadas por meio de um processo legislativo

típico. Nesse caso, uma instituição extralinguística garante o estatuto formal de que são

investidos os sujeitos da enunciação. Da mesma forma, o sucesso dos atos ilocucionários

verificados nesse âmbito está relacionado às posições particulares ocupadas por falante e

ouvinte no interior desta instituição.

Cabe ressalvar que, apesar de as instituições extralinguísticas conferirem estatuto de

uma maneira relevante para a força ilocucionária, nem todas essas diferenças derivam de

instituições. Como afirma Searle, “(...) um assaltante armado, por possuir um revólver, pode

ordenar a suas vítimas – em oposição, por exemplo, a pedir, rogar ou implorar – que levantem

as mãos. Seu estatuto, porém, não deriva de uma posição numa instituição, mas da posse de

uma arma.” (SEARLE, 1995a, p. 10-11).

Na Denúncia ora analisada, o locutor se identifica e esclarece a posição de onde fala,

que é a de Promotor de Justiça a serviço de uma instituição judiciária – o Ministério Público

do Estado de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, instaura seu alocutário imediato, o Juiz de

Direito, que se constitui como uma autoridade legal, e apresenta o referente de seu discurso,

que é a pessoa sobre a qual recai a suspeita de haver cometido um crime.

Nessa peça, em que a constituição do alocutário imediato parece bem clara, há também

uma série de alocutários mediatos, ou seja, sujeitos também atingidos de alguma forma pelos

efeitos do oferecimento da Denúncia, e que serão levados a praticar alguma ação a partir

desse momento. Por exemplo, uma vez recebida a peça inaugural pelo Juiz, abre-se para a

denunciada a possibilidade/necessidade de constituir advogado e preparar sua defesa. Como

parte de seu trabalho, o Defensor deverá conhecer o teor da acusação para tomar as medidas

cabíveis.

Da mesma forma, oficiais de justiça, peritos, policiais e outros serventuários terão que

praticar atos para garantir o andamento prático do processo em uma secretaria judicial, como

redigir e entregar mandados e intimações; elaborar termos; executar pedidos de diligências,

etc.

Há que se considerar ainda que, se o proferimento do Promotor for bem sucedido, a

denunciada pode ser enviada a julgamento pelos jurados do Tribunal do Júri. Estes terão

acesso a todos os documentos do processo e serão instados a dar o veredicto sobre o caso.

Assim, observamos que o universo de alocutários mediatos é bem amplo.

Refletindo a partir do excerto que consideramos mais representativo dessa peça

processual, chegamos ao seguinte quadro enunciativo:

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Locutor : Promotor de Justiça

Enunciação (EÃO)

Enunciado: O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do Promotor de Justiça desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente Denúncia em desfavor de: R , brasileira, separada judicialmente, profissão do lar, filha de _ e de _ , domiciliada à Rua _ , no Município de _ , pelos seguintes fatos...

Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Advogado (ré), funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc

Quadro 19: Condições enunciativas da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora

A aplicação dos parâmetros da TAF a este proferimento, aliada à investigação das

condições enunciativas determinantes de sua produção, permite uma compreensão mais

aprofundada da natureza do gênero Denúncia.

Para fins metodológicos, dividimos a peça ora analisada em três partes: prólogo,

desenvolvimento e desfecho, e aplicamos os procedimentos de análise em cada uma delas,

como se vê em seguida.

6.2.1.1 Prólogo

O prólogo constitui a abertura do proferimento.

Nessa parte, o locutor se apresenta, institui seu alocutário e enuncia o ato mais

representativo desse gênero, o qual tem a força de um declarativo formal.

Vejamos:

Enunciado Estrutura

ππππ: declarativo

µ: formal θ: locução verbal (vem - verbo auxiliar, oferecer -

infinitivo) presente do indicativo terceira pessoa do singular

Locutor: que o Promotor de Justiça possa oferecer Denúncia

Alocutário: que o Juiz seja capaz de receber a Denúncia

O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do Promotor de Justiça desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente Denúncia em desfavor de: R, brasileira, separada judicialmente, profissão do lar, filha de _ e de _, domiciliada à Rua _, no Município de_ , pelos seguintes fatos...

ψψψψ: crença + desejo

Quadro 20: Componentes de um ato de fala no prólogo da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora

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Quando enunciado por uma autoridade investida de poder, em um meio onde pesam

fortes restrições institucionais, conforme se comentou acima, o ato de “oferecer denúncia”

adquire configuração de ato declarativo (π), realizado no modo formal (µ).

Apesar de o conteúdo proposicional do ato aparentar assertividade, na verdade, seus

efeitos práticos são muito mais amplos do que simplesmente descrever um estado de coisas.

Como esclarece Searle, embora as declarações tentem levar a linguagem a corresponder ao

mundo, “não o fazem através da descrição de um estado de coisas existente (assertivos), nem

procurando levar alguém a produzir um estado de coisas futuro (como os diretivos e os

compromissivos)”. (SEARLE, 1995a, p. 29).

Isso ocorre porque os atos declarativos possuem dupla direção de ajustamento entre

palavra e mundo, ou, conforme ensina Mari:

na dupla direção de ajustamento, um estado de coisas de um mundo possível é alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o anunciou – MUNDO-PALAVRA – , da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva de seu locutor – PALAVRA-MUNDO. Assim, anula-se a precedência de linguagem sobre ação e vice-versa, antes considerada como fundamento para direções de ajustamento precedentes. (MARI, 2001, p. 115).

Ainda segundo Mari (2001), as marcas mais visíveis da dupla direção de ajustamento,

observadas na força ilocucional que se realiza no ponto declarativo, verificam-se em situações

sobre as quais pesam convenções institucionalizadas de usos da língua. No enunciado ora em

análise, a partir do momento em que o Promotor oferece a Denúncia, há uma alteração

profunda na situação jurídica da pessoa denunciada, ao mesmo tempo em que se institui para

o Juiz a perspectiva de aceitação, ou recusa, dessa peça acusatória. Materializam-se, assim, as

possibilidades de que a acusada seja condenada pela prática de um crime, através da

instauração de um processo judicial de natureza criminal, que pode se encerrar com uma

sentença condenatória, com imposição de pena e declaração positiva de antecedentes

criminais.

Ainda a esse respeito, parece-nos também que o significado literal da sentença – vem

oferecer a presente denúncia – não coincide com o significado da emissão do falante. A

justificativa para essa constatação está na observação de Searle (1995a) de que alguns

membros da classe das declarações sobrepõem-se a membros da classe dos assertivos31, pois

31 Ao estabelecer as cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem, ou as cinco categorias de atos ilocucionários, Searle (1995a) não descarta a hipótese de que uma mesma emissão se inclua em mais de uma categoria.

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em certas situações institucionais, não basta que o enunciador apure os fatos, é preciso que ele

tome providências. Ao denunciar alguém, o Promotor está realizando um ato que vai muito

além de oferecer um simples documento: na realidade, ele está colocando em movimento todo

o aparato judicial com vistas à persecução penal da pessoa denunciada.

Retornando às condições de conteúdo proposicional (θ), é interessante observar a

opção do locutor pelo emprego da locução verbal “vem oferecer” (conjugação composta de

“vem” - verbo auxiliar e “oferecer” - infinitivo), em vez da forma simples do presente do

indicativo “oferece”. Parece-nos que essa opção pela forma mais rebuscada faz parte do

repertório dos operadores do Direito32.

Por outro lado, a forma verbal flexionada na terceira pessoa do singular denota uma

tentativa de apagar marcas de subjetividade do locutor, conferindo-lhe um distanciamento em

relação ao caso concreto, afinal, o Promotor fala em nome do Ministério Público do Estado de

Minas Gerais, e não em nome próprio.

Para a efetivação dessa força ilocucional de propósito declarativo, é preciso que

condições preparatórias ( ∑ ) sejam preenchidas por parte dos interlocutores. Assim, além do

estatuto formal que se deve fazer presente em relação a eles, o locutor deve estar habilitado a

oferecer a Denúncia, conforme as leis de organização judiciária, a Lei Orgânica do Ministério

Público e outras em vigência, ao mesmo tempo em que o alocutário imediato, a quem se

direciona o proferimento, deve ser capaz de recebê-lo.

Por outro lado, o ato de “oferecer denúncia” expressa, como condição de sinceridade

(ψ) ψ) ψ) ψ) por parte do locutor, um estado mental de crença na culpa de R e de desejo de fazer pesar

sobre ela um processo de natureza criminal.

6.2.1.2 Desenvolvimento

No desenvolvimento, o Promotor faz uma exposição detalhada do fato criminoso

supostamente praticado pela suspeita. Aplicando as categorias da TAF a um enunciado da

parte narrativa da Denúncia, chegamos ao quadro abaixo:

32 Sobre esse assunto, vide discussão em Fagundes (1995).

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Enunciado Estrutura

ππππ: assertivo

µ: narração

θ: verbo conjugado no pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

Aproximadamente no dia 23 de setembro de 1999, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.

ψψψψ: crença Quadro 21: Componentes de um ato de fala no desenvolvimento da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora

A exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias é um requisito

imposto pelo artigo 41, do Código de Processo Penal, para que a Denúncia possa ser recebida

pelo Juiz (BRASIL, 2011). Essa determinação legal se traduz, no documento ora analisado,

pela predominância de atos assertivos (π) nessa parte, no modo narração (µ), ou seja, atos que

reportam um estado de coisas pré-existente à enunciação. Trata-se, portanto, de uma direção

de ajustamento palavra-mundo, já que o proferimento reporta uma suposta realidade

previamente existente. É o que se verifica no enunciado sob análise.

Como a função da Denúncia é relatar os fatos ocorridos no passado a fim de persuadir

o alocutário da conveniência de executar uma ação futura, o relato da conduta atribuída à

denunciada é feito pelo emprego de verbos que expressam um tempo passado em contraste

com o instante da enunciação. Obedecendo a essa condição de conteúdo proposicional (θ), o

emprego do pretérito imperfeito do indicativo remonta ao tempo mais distante: “a

denunciada, que estava grávida de dois meses (...)”. A interrupção ao estado de gravidez é

narrada com o emprego do pretérito perfeito do indicativo: “praticou, sozinha, um aborto

(...)”. A articulação desses dois tempos verbais, sem qualquer modalização, confere ao

enunciado um efeito de realidade, certeza, afastando da mente do alocutário qualquer dúvida

em relação à ocorrência do fato criminoso.

A lei processual penal impõe ainda que, para o oferecimento da Denúncia, o Promotor

deve encontrar nos autos do Inquérito Policial elementos que formem sua convicção pelo

menos quanto à ocorrência do crime (ou materialidade). No crime de aborto, por exemplo,

pode haver incerteza quanto à pessoa responsável pela destruição do feto, mas não podem

subsistir questionamentos acerca da veracidade da situação de gravidez. Por isso, pode-se

afirmar que o estado psicológico expresso na realização desse ato ilocucionário, ou condições

de sinceridade do ato (ψ), é a crença do locutor na conduta criminosa da acusada.

Assim, paralelamente às condições de sinceridade, avultam como condições

preparatórias (∑) a possibilidade de o locutor formar sua convicção com base nas provas

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produzidas até ali, como os depoimentos das testemunhas, a confissão da indiciada e o exame

médico pericial.

Assim como fez o Delegado de Polícia no Relatório de Inquérito Policial já analisado,

a menção do Promotor ao laudo médico adquire contorno de argumento de autoridade, sobre o

qual o locutor se apoia para justificar sua tese acusatória: “Com isso, a autora deu entrada no

nosocômio da Santa Casa, neste Município, com os sintomas de aborto provocado, conforme

o laudo médico, sendo necessário providências.” (fls. 2).

6.2.1.3 Desfecho

No desfecho, o Promotor de Justiça expressa a natureza da pretensão que justifica seu

ato de oferecer a Denúncia:

Enunciado Estrutura

ππππ: diretivo

µ: requerimento

θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: locutor capaz de oferecer a Denúncia; alocutário imediato capaz de recebê-la

Isto posto, tendo a denunciada incorrido nas sanções do art. 124 do Código Penal, requer esta Promotoria de Justiça sua citação para interrogatório e defesa que tiver, ouvindo-se oportunamente as testemunhas abaixo arroladas, devendo ser, ao final, condenada nas penas que lhe couberem.

ψψψψ: desejo

Quadro 22: Componentes de um ato de fala no desfecho da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora

Nesse enunciado, emerge um ato realizado no ponto diretivo (π), no modo (µ)

requerimento. Por meio dele, o Promotor requer ao Juiz que acolha a Denúncia e que tome as

providências necessárias para o prosseguimento do feito, com a citação da denunciada.

Trata-se de uma ação a ser realizada pelo alocutário em um momento posterior ao da

enunciação, portanto, as condições de conteúdo proposicional (θ) comportam um verbo

conjugado no presente do indicativo, na terceira pessoa do singular (apagando marcas de

subjetividade) e apontam para um tempo futuro. A direção de ajuste é mundo-palavra, pois

antes de o locutor proferir a peça acusatória, não havia no mundo nenhum requerimento de

pronúncia da acusada.

Uma questão interessante a ser pensada diz respeito às condições preparatórias ( ∑ )

do ato e todas as implicações daí decorrentes. Sabemos que um ato realizado no ponto

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diretivo implica um compromisso entre locutor e alocutário, no sentido de que este último

realize uma ação futura nos moldes do desejo manifestado pelo primeiro. Pensamos que, para

fazer um requerimento de recebimento da Denúncia ao Juiz, a condição preparatória geral é a

de que o locutor esteja investido do estatuto de Promotor de Justiça e que, de acordo com a lei

processual penal, seja o titular da ação. O alocutário, por sua vez, deve estar investido do

estatuto de Juiz de Direito e deve estar habilitado, também pela lei processual, a funcionar

nesse processo. Portanto, também como condição preparatória, emerge a possibilidade de o

enunciatário vir a acatar o requerimento do enunciador.

Quanto às condições de sinceridade (ψ), o estado psicológico expresso nesse ato

diretivo é o desejo, por parte do enunciador, de que a Denúncia seja acolhida pelo

enunciatário, com a consequente instauração do processo penal.

Relacionando-se às condições de sucesso do ato, coloca-se a questão da força com que

o propósito ilocucionário é realizado. Searle (1995a) explica que atos como “sugiro irmos ao

cinema” e “insisto em irmos ao cinema” possuem o mesmo propósito ilocucionário, que é o

de tentar levar o alocutário a fazer uma ação futura. Contudo, os dois enunciados têm graus

variáveis de força ou compromisso. O autor vincula essa variação quanto à intensidade da

força a diferenças de estatuto entre os interlocutores. Voltamos ao exemplo da relação entre

um general e um soldado:

[...] se o general convida o soldado raso a limpar o quarto, trata-se, provavelmente, de um comando ou ordem. Se o soldado raso convida o general a limpar o quarto, é provável que se trate de uma sugestão, proposta ou pedido, mas não de uma ordem ou comando. (SEARLE, 1995a, p. 8)

No enunciado ora analisado, a posição estatutária do Promotor conferiria exatamente

qual grau de intensidade a um ato diretivo/requerimento, quando dirigido a um Juiz de

Direito? Qual a posição hierárquica de um e outro em um processo penal? A Lei nº 8.906/94,

em seu art. 6 º, prevê que “Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados

e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito

recíprocos” (BRASIL, 1994).

É certo também que o Juiz, no exercício de seu mister, dispõe da faculdade do livre

convencimento. Com base em sua convicção, fundamentada nos elementos probatórios dos

autos, poderá receber ou não a Denúncia (contudo, se decidir pelo não recebimento, abre-se a

possibilidade, ao Promotor, de interpor recurso da decisão denegatória).

De qualquer forma, considerando-se que a especificação de um modo para o ponto

diretivo requer uma avaliação direta do grau de hierarquia entre os interlocutores, e tendo em

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vista que nesse caso concreto trata-se de sujeitos de mesmo nível hierárquico, pensamos que a

esse ato corresponde um grau de intensidade considerável, razão pela qual optamos pela

classificação do mesmo como requerimento e não como pedido.

O modo (µ) pedido não seria de todo descabido, mas parece-nos, ademais, que em

uma situação onde pesam as restrições institucionais, o termo mais técnico a ser empregado é

mesmo “requerimento”. A preferência por essa expressão é também referendada pelo

conteúdo do verbete no dicionário Aurélio (1999, p. 1749). Uma das definições atribuídas a

requerer é “encaminhar (petição) a autoridade ou pessoa em condições de conceder o que se

pede”. E ainda: “Pedir em juízo; impetrar ação de.”

6.2.1.4 Considerações

De uma maneira geral, refletindo acerca dos atos ilocucionários analisados neste

proferimento, pensamos que ao “oferecer a denúncia”, o Promotor enuncia um ato declarativo

fundamental, uma vez que, a partir desse momento, instaura-se um estado de coisas novo: a

mulher que era apenas suspeita, alvo de uma investigação policial, agora encontra-se

denunciada perante o juízo criminal.

No entanto, para que esse documento realmente produza os efeitos amplos que são

esperados dele no universo jurídico, é necessária uma contrapartida por parte do Juiz, pois ele

tem a faculdade de aceitar ou não essa peça processual que lhe é oferecida pelo Promotor. Por

esse motivo, ganha destaque também o conteúdo diretivo do gênero Denúncia.

Aliás, esse é um ponto que gera grande polêmica entre os estudiosos do Direito: há

uma discussão na doutrina jurídica acerca do momento, de fato, em que se inicia uma ação

penal – se no momento do oferecimento da Denúncia pelo órgão do Ministério Público, ou se

no momento em que ela é acolhida pelo julgador.

Neste trabalho, consideramos que a instauração da relação processual penal ocorre

com o recebimento da Denúncia pelo julgador, de forma que, a nosso ver, o ato de oferecer

provoca, sim, uma alteração na realidade social, mas essa alteração é limitada e só se

completa com o ato de recebimento por parte do Juiz de Direito. A partir daí, está completa a

relação processual.

Dessa forma, dada a configuração da Denúncia como um gênero cujo propósito

ilocucionário é o de uma declaração aliada a um requerimento, consideramos que, apesar da

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forma composicional aparentemente narrativa, a Denúncia é uma peça caracterizada por uma

forte visée persuasiva (AMOSSY, 2005b). A narrativa, aqui, obedece a propósitos claramente

persuasivos, pois o Juiz de Direito decidirá sobre a sorte da acusada de acordo com o grau de

persuasão que o Promotor tiver conseguido despertar nele.

Aplicando à Denúncia os critérios de Bazerman, temos o seguinte quadro sintético:

Atos de fala

Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros

Domínio discursivo

Fatos sociais

declarativo assertivo diretivo

Denúncia

Denúncia Parecer

Requerimento Declaração

Alegações Finais Contra-razões

recursais Libelo

Debates orais

Processo Penal

jurídico

acusação

Quadro 23: Denúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora

6.2.2 A Defesa Prévia

A Defesa Prévia (ou alegações escritas) é produzida pelo Defensor logo após o

interrogatório da ré. De natureza facultativa, essa petição dá uma primeira mostra da

estratégia que se pretende desenvolver a favor da ré na instrução criminal e traz o rol de

testemunhas de defesa.

A praxis forense ensina que o advogado deve ser sucinto para não revelar os detalhes

da tese que defenderá em plenário, caso seu cliente seja mesmo levado a julgamento no Júri, o

que facilitaria o trabalho da acusação.

Por uma opção de natureza metodológica, não analisaremos a Defesa Prévia produzida

no processo selecionado como corpus. Passamos, então, à investigação das Alegações do

Ministério Público, cronologicamente, a peça produzida na sequência do processo penal.

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6.2.3 As Alegações Finais do Ministério Público

As Alegações Finais são apresentadas em um momento processual decisivo, logo

depois da audiência de instrução e julgamento, quando já foram produzidas todas as provas

passíveis de incriminar ou inocentar um réu no processo, como a oitiva das testemunhas e a

juntada de documentos. Portanto, nessa etapa, cabe à acusação e à defesa elaborarem suas

estratégias se apoiando no que se considera a “verdade dos autos”, que, como se afirmou, não

necessariamente condiz com a verdade factual.

As Alegações não se constituem como um gênero exclusivo do Promotor de Justiça:

tanto o membro do Ministério Público quanto o Defensor da ré terão oportunidade de

apresentá-las, oralmente (em audiência) ou por escrito, lembrando que em nosso corpus,

acusação e defesa optaram pela apresentação de alegações escritas, como faculta a lei

processual.

Como elas finalizam a preparação do processo para que o Juiz profira seu decreto

determinando a pronúncia ou a impronúncia da ré, pode-se considerá-las o ponto alto da

argumentatividade na primeira etapa do Processo Penal.

As condições enunciativas encontradas aqui se assemelham às condições verificadas

na Denúncia. O Promotor de Justiça, ao proferir suas Alegações, instaura um alocutário

imediato, que é o Juiz de Direito, e também um alocutário mediato, que é o Defensor da ré,

seu oponente nesse debate que tem o Juiz como centro de onde emanam as decisões.

Há que se considerar também que as peças processuais produzidas pelo Promotor e

pelo Defensor serão apresentadas na sessão de julgamento, quando os jurados terão acesso a

seu conteúdo, assim como as pessoas que estiverem presentes à audiência.

Os sujeitos processuais secundários, no exercício de suas atividades profissionais,

também têm acesso ao material produzido nos autos e acabam se tornando interlocutores das

instâncias de acusação, defesa e julgamento. Em algumas circunstâncias, configuram-se até

mesmo como alocutários imediatos do juiz e do Promotor, quando estes determinam que

cumpram determinada tarefa, como expedir documentos, entregar mandados e citações.

Considerando esse universo amplo de alocutários, esquematicamente, as condições

enunciativas desse proferimento podem ser representadas da seguinte forma:

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Locutor : Promotor de Justiça

Enunciação (EÃO)

Enunciado: Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia.

Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Advogado (ré), funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc

Quadro 24: Condições enunciativas das Alegações Finais do Ministério Público Fonte: Elaborado pela autora

Não encontramos na legislação nenhuma prescrição especificamente quanto à forma

de se redigirem as Alegações, mas os operadores do direito seguem, com maior ou menor

rigor, uma fórmula já canonizada nos manuais de redação forense, onde se observa uma

divisão estrutural da peça em três partes distintas, que são o relatório, o fundamento e o

requerimento33.

Esse foi o molde seguido pelo Promotor no proferimento ora analisado, como se vê em

seguida:

6.2.3.1 Relatório

No caso em tela, o Promotor inicia sua peça traçando um relato sintético dos fatos

supostamente praticados pela ré e que teriam dado causa à instauração da Ação Penal. A essa

primeira exposição, o acusador atribui o título de relatório.

No quadro abaixo, selecionamos um enunciado típico dessa parte das Alegações:

Enunciado Estrutura ππππ: assertivo

µ: narração

θ: locução verbal, pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

MM. Juiz, Teve início a presente ação penal através de denúncia contra _ , dando-lhe como incursa nas penas do 124, CP, pois, no dia 23-09-99, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou um aborto, usando uma sonda que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto. ψψψψ: crença

Quadro 25: Componentes de um ato de fala no relatório das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora

33 Nos proferimentos analisados até aqui, procedemos a uma divisão estrutural de suas partes e atribuímos a elas os títulos de prólogo, desenvolvimento e desfecho. Nas Alegações Finais da Acusação, contudo, o próprio autor da peça (Promotor de Justiça), deu nome às suas partes, por isso, optamos por respeitar o projeto autoral e designar as partes conforme planejamento do Promotor.

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Como no enunciado supra, os atos de fala expressos nessa parte são

predominantemente assertivos (π), no modo (µ) narração. Da mesma forma que na parte

narrativa da Denúncia, aqui também o Promotor dá uma orientação argumentativa à sua fala,

uma vez que, entre o universo de acontecimentos factuais e processuais delineados até aquele

momento, ele elege apenas aqueles que revelam um suposto caráter duvidoso da ré,

executando, com isso, um projeto de persuasão que tem como uma de suas estratégias a

construção de uma imagem negativa da acusada.

O conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo, no modo narração, obedece à condição

de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em contraste com o instante da

enunciação, que é o do oferecimento das Alegações.

Nesse excerto, observamos a instauração de quatro situações temporais diferentes:

- o momento da enunciação, que é o presente (oferecimento da peça);

- o momento em que se iniciou a perspectiva de ação penal, com a apresentação da

Denúncia (“teve início a presente ação penal ...” - pretérito perfeito do indicativo);

- a situação de gravidez da acusada que, por ser um estado que perdurou no tempo, foi

narrado no pretérito imperfeito do indicativo (“estava grávida”) e, finalmente,

- o momento em que teria sido interrompida a gestação, narrado por meio do pretérito

perfeito do indicativo (“praticou um aborto...”).

As condições preparatórias do ato ( ∑ ), além da posição estatutária dos sujeitos,

relacionam-se à convicção presumida do locutor quanto à prática do delito pela ré, convicção

esta fundamentada nas possíveis provas produzidas até ali, como já se comentou, e a condição

de sinceridade (ψ)ψ)ψ)ψ), nesse enunciado, é a expressão da crença do Promotor de Justiça no estado

de coisas reportado.

6.2.3.2 Fundamento

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Enunciado Estrutura

ππππ: assertivo

µ: afirmação

θ: verbo conjugado no tempo pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do plural ∑: posição estatutária dos interlocutores; o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança.

ψψψψ: crença

Quadro 26: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora

Depois de relatar os fatos criminosos imputados à ré, o locutor passa a comentar as

provas e atos produzidos durante o processo judicial, como a proposta de suspensão

condicional do processo e a subsequente revogação do benefício; o não comparecimento da

acusada ao primeiro interrogatório designado pelo juiz; a apresentação de defesa prévia e a

realização posterior de audiência de instrução e julgamento, com interrogatório da ré e oitiva

de testemunhas. Nessa parte da narrativa, percebe-se que o Promotor faz um recorte, no

universo processual, daqueles elementos probatórios hábeis para enfatizar a culpa da ré e

descarta outros elementos que poderiam levantar dúvidas na mente de seu alocutário.

No excerto analisado, o ato ilocucional se realiza no ponto assertivo (π), no modo (µ)

narração. O locutor expõe que a acusada confessou a prática do delito e, por meio do discurso

relatado, introduz as falas atribuídas a ela a fim de comprovar a tese da acusação.

Ao examinarmos a peça denominada Relatório de Inquérito Policial, afirmamos que o

discurso relatado, que se concretiza nas modalidades de discurso direto e ou discurso indireto,

é muito utilizado pelos diversos sujeitos processuais na construção dos proferimentos por

meio dos quais se manifestam ao longo da tramitação de um processo penal. No caso do RIP,

selecionamos um excerto em que o locutor Delegado de Polícia empregou o discurso indireto

a fim de trazer a seu proferimento a voz de uma das testemunhas, com o intuito de comprovar

a tese por ele defendida.

No enunciado que analisamos agora, verifica-se também o emprego do discurso

relatado, na forma discurso indireto, mas desta feita, o enunciador retoma o depoimento

produzido pela ré (e não por uma testemunha), obtido pelo procedimento específico da lei

processual penal, que é o interrogatório do acusado.

O interrogatório encontra-se disciplinado no Código de Processo Penal pelos artigos

185 a 196, onde estão previstas normas relativas à forma e ao conteúdo das perguntas a serem

elaboradas pela autoridade e dirigidas ao réu (BRASIL, 2011). Da inteligência desses artigos,

tem-se que o interrogatório pode ser efetuado em vários momentos processuais: no inquérito

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policial, no auto de prisão em flagrante, logo após o recebimento da denúncia e antes da

defesa prévia, no plenário do Júri, etc.

Em nosso corpus, a ré foi interrogada pela primeira vez durante o Inquérito (fls. 34),

pela segunda vez, na audiência de instrução e julgamento (fls. 60) e, pela terceira e última

vez, na sessão de julgamento do Tribunal do Júri (fls. 172). Portanto, são três momentos

enunciativos completamente distintos, ainda que nos três a mesma pessoa seja a declarante.

É interessante observar que o discurso relatado, introduzido pelo verbo dicendi

“dizendo”, é empregado pelo locutor com função argumentativa. Vejamos:

A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança. (Promotor de Justiça)34

Inicialmente, observamos que, ao inserir no enunciado o conteúdo da confissão da

acusada, via discurso indireto, o locutor confere maior autenticidade à sua narrativa segundo a

qual ela de fato cometeu um crime. A descrição detalhada do modo como a conduta teria sido

praticada, a menção ao instrumento usado para destruir o feto e ao motivo que teria dado

ensejo ao crime, todos esses detalhes enriquecem a narrativa e produzem o efeito de “presença

na consciência” do alocutário.

Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o efeito de “presença na consciência”

é um dos elementos que reforçam a persuasão nos argumentos de ilustração. Como esses

argumentos não dependem da lógica, mas da experiência do auditório e dos elos reconhecidos

entre as coisas, eles tornam possível uma maior proximidade entre orador e auditório no que

diz respeito às crenças compartilhadas e, assim, exercem forte poder de persuasão.

Observamos também que, ao retomar o primeiro depoimento da ré (colhido durante o

Inquérito) e equipará-lo ao segundo depoimento (colhido em juízo), o locutor estabelece uma

relação de comparação entre dois termos, de maneira a justificar um termo a partir do outro.

Estamos aqui diante de um argumento de comparação, conforme definição de Perelman e

Olbrechts-Tyteca (1996), introduzido pelo operador “tanto quanto”.

Na realidade, o argumento só é considerado rigoroso se comparar realidades do

mesmo gênero, que possam ser submetidas ao mesmo critério. Quando se comparam

realidades heterogêneas, tende-se – muitas vezes erroneamente – a torná-las homogêneas35.

34 Alegações Finais do Ministério Público, fls. 67. 35 Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o argumento de comparação é quase-lógico por considerarem que medida é um ato matemático. Para Reboul (2004), a quem seguimos nesse aspecto, o que se mede é sempre

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Em “A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no

art. 124 do CP (...)”, o locutor compara realidades de natureza heterogênea, já que a confissão

feita por uma pessoa ao ser interrogada por um Delegado de Polícia, sem o acompanhamento

de um advogado e sem a garantia do contraditório, não tem o mesmo valor de uma confissão

realizada em Juízo, diante de um Juiz de Direito e na presença de um defensor constituído. A

própria doutrina jurídica já reconheceu essa divergência e atribui valor reduzido à confissão

perante a polícia.

Ainda nesse enunciado, na menção aos motivos que teriam ensejado a prática delitiva,

(“agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar

de mais uma criança”), notamos que o lugar comum da qualidade é chamado a justificar a

conduta da ré e assim tornar mais verossímil a hipótese de que ela teria mesmo praticado o

aborto voluntário. O operador argumentativo “porque” introduz a justificativa para o ato de

abortar: quanto mais filhos, menor a possibilidade de subsistência da família, portanto, maior

a possibilidade de uma gravidez não-planejada ser dolosamente interrompida.

Se, de acordo com Ducrot, considerarmos o topos como um princípio escalar que

relaciona dois predicados graduais, encontramos neste enunciado os predicados: (P) gerar

filhos e (Q) condições de subsistência. Assim, teríamos dois predicados graduais [P (+ filhos),

Q (- subsistência)] que compõem um topos extrínseco, regendo o encadeamento entre os

enunciados e dando abertura para a incidência de uma crença socialmente compartilhada de

que as altas taxas de natalidade entre as classes populares justificam suas precárias condições

de vida.

As condições de conteúdo proposicional (θ) desse ato assertivo refletem as diversas

cenas enunciativas encaixadas no enunciado pelo discurso relatado. Assim, observamos que:

- o primeiro tempo é o da enunciação, o presente, tomado como referência (tempo em

que são apresentadas as Alegações);

- o segundo, é o tempo em que os fatos teriam se desenrolado na prática (quando a ré

supostamente “introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto” - verbo

conjugado no pretérito perfeito do indicativo, mostrando a certeza do locutor quanto à

ocorrência do ato);

- o terceiro, é o momento processual em que a acusada confessou pela primeira vez,

formalmente, a prática do suposto crime de aborto (fase de interrogatório da ré na Delegacia)

empírico e a comparação se liga, portanto, ao ato de fundar as estruturas do real. Na prática linguageira, o argumento é utilizado sem guardar rigor quanto à natureza dos termos comparados.

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- o quarto, é o momento processual em que a acusada confessou formalmente a prática

do suposto crime de aborto em Juízo.

As condições preparatórias do ato ( ∑ ) relacionam-se à posição estatutária dos

interlocutores, assim como à possibilidade de o locutor admitir como verdadeiro o estado de

coisas reportado.

Como condição de sinceridade do ato (ψ), emerge o estado mental de crença do

locutor na confissão da ré, teoricamente corroborada pelos depoimentos das testemunhas, pelo

laudo pericial e pela justificativa de que ela já teria um casal de filhos.

Fechando a parte argumentativa do proferimento, após mencionar as provas

produzidas no processo e utilizá-las discursivamente na fundamentação de sua tese

condenatória, o Promotor assevera que estão presentes os requisitos necessários à submissão

da acusada a julgamento diante do Tribunal do Júri e encaixa uma citação direta de

jurisprudência produzida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo a qual:

“Comprovadas a autoria e materialidade do aborto, inclusive por prova indireta da gravidez

e expulsão do útero materno, impõe-se a submissão dos acusados ao julgamento pelo júri

(TJSP - RT 562/325)”. (fls. 68)

A citação de julgados é uma prática muito comum entre os operadores do direito, tanto

na área cível como na criminal, apesar de, em nosso ordenamento, o papel da jurisprudência

não alcançar taxatividade absoluta, como ocorre nos países da Common Law36. Considerando

que, nessas Alegações, o alocutário imediato é o Juiz de Direito, “figura de incontestável

erudição”, qual seria a finalidade de se transcrever uma orientação jurisprudencial que,

presumivelmente, ele já conhece? Acreditamos que, além de funcionar como um argumento

de autoridade, na medida em que mostra que a tese defendida pelo locutor já encontrou

acolhida por outros juristas de notoriedade, a jurisprudência desempenha também o papel de

“lugar específico” do discurso jurídico, sendo capaz de dar maior sustentação a uma tese

defendida em juízo.

Ademais, devido às condições enunciativas verificadas nessa peça, percebe-se que o

universo de alocutários instaurado no Tribunal do Júri é bastante amplo e abrange também

pessoas leigas quanto à técnica jurídica, de forma que a citação de julgados se torna um

recurso bastante eficaz para se comprovar a verossimilhança de uma tese diante de um

auditório tão heterogêneo.

36 Países que adotam o chamado Direito Costumeiro, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e outros de tradição anglo-saxônica.

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6.2.3.3 Requerimento

Enunciado Estrutura

ππππ: diretivo

µ: requerimento

θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o alocutário deve ser capaz de desempenhar a função

Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia.

ψψψψ: desejo

Quadro 27: Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora

Finalizando as Alegações da Acusação, na parte intitulada Requerimento, encontramos

um ato que se realiza no ponto (π) diretivo, no modo (µ) requerimento. Como já

mencionamos, consideramos, com apoio no Estatuto da OAB, que os interlocutores estão em

um mesmo nível hierárquico e uma posição equiparada produz o modo “requerimento”, dado

o teor institucional do ato.

Como condição preparatória ( ∑ ) geral para a efetivação da força ilocucional, exige-se

que o alocutário seja capaz de executar a ação, o que nesse caso, implica estar legalmente

habilitado a funcionar nesse processo e proferir uma decisão de pronúncia da acusada, de

acordo com os critérios legais.

São válidas, aqui, as observações já tecidas em relação ao estatuto dos interlocutores,

Juiz e Promotor, e em relação à intensidade da força ilocucionária da emissão: o requerimento

do Promotor de Justiça não é impositivo, mas, o não-acatamento por parte do Juiz, pode dar

ensejo a recurso. Se submetido a julgamento pela instância superior, abre-se a possibilidade

de reforma da decisão.

A condição de sinceridade (ψ) desse ato é a expressão do desejo do Promotor de que

o Juiz acolha a tese acusatória e pronuncie a ré.

Trata-se de uma ação a ser realizada em um momento posterior ao da enunciação,

portanto, as condições de conteúdo proposicional (θ) apontam para um tempo futuro. A

direção de ajuste é mundo-palavra.

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6.2.3.4 Considerações

A análise das Alegações Finais do Ministério Público, à luz da TAF, nos mostra que

essa peça, que constitui o ponto alto da argumentação na primeira fase do procedimento do

Júri e que se configura como um gênero típico do domínio discursivo jurídico, pode ser

definida como uma “pretensão fundamentada” do Promotor à admissibilidade da acusação

contra a ré.

Deriva daí que o principal ato de fala emergente do conjunto do proferimento é um ato

diretivo, no modo requerimento. Mas a efetivação de sua força ilocucionária está

condicionada ao convencimento do alocutário quanto à possível culpa da ré, de maneira que é

exigido do locutor que fundamente sua pretensão pela apresentação das provas presentes no

processo. Por isso, os atos assertivos são encontrados em grande número nesse proferimento.

Temos, para o gênero Alegações Finais do Ministério Público, o seguinte quadro

sintético:

Atos de fala

Gênero Conjunto de gêneros

Sistema de gêneros

Domínio discursivo

Fatos sociais

declarativo assertivo diretivo

Alegações

Finais

Denúncia Parecer

Requerimento Declaração

Alegações finais Contra-razões

recursais Libelo

Debates orais

Processo Penal

jurídico

acusar

Quadro 28: Alegações Finais do MP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora

6.2.4 As Alegações Finais da Defesa

Em resposta às Alegações Finais da acusação, o Defensor produz as Alegações Finais

da Defesa. Trata-se, portanto, de um gênero utilizado tanto por um sujeito processual quanto

por seu oponente direto, de forma que as regras gerais para a elaboração dessa peça são as

mesmas para um e outro, assim como os prazos a serem observados para sua apresentação.

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Com a juntada dessa resposta por parte do defensor da ré, mantém-se o equilíbrio entre os

dois pólos em debate em um processo penal, garantindo-se, assim, a concretização dos

princípios orientadores de seu legítimo funcionamento.

As condições enunciativas encontradas em torno desse proferimento são semelhantes

ao que se discutiu até aqui quanto ao meio institucional em que são produzidas as Alegações,

que é a instância judiciária. Aqui também valem as observações sobre a extensão do universo

de alocutários instaurados com esse proferimento, tanto no que tange a quantidade de sujeitos

envolvidos, como a heterogeneidade de suas características de formação, grupo social, idade,

gênero, etc.

Vale lembrar que o Advogado, assim como o Juiz (seu alocutário imediato nessa peça)

e o Promotor de Justiça (seu oponente), também possui uma condição especial, um estatuto

que lhe é conferido por uma instituição extralinguística, garantido por sua inscrição na Ordem

dos Advogados do Brasil (OAB). Sem essa inscrição, o bacharel em Direito não é um

advogado no sentido estrito do termo, e não está habilitado, consequentemente, a funcionar

em um processo judicial como procurador da parte.

Representamos as condições enunciativas das Alegações da Defesa pelo seguinte

esquema:

Locutor : Advogado (ré)

Enunciação (EÃO)

Enunciado: Ante ao exposto, requer que seja acolhida a preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecido o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.

Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Promotor, funcionários da Justiça, jurados, etc

Quadro 29: Condições enunciativas das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora

Estruturalmente, essas alegações seguem o mesmo padrão observado pelas alegações

da acusação. Identificamos nelas três partes principais: o relatório, o fundamento e o

requerimento37.

37 Nos proferimentos analisados até aqui, procedemos a uma divisão estrutural de suas partes e atribuímos a elas os títulos de Prólogo, Desenvolvimento e Desfecho. Nas Alegações Finais da Defesa, assim como nas Alegações da Acusação, o próprio autor da peça (Advogado), deu nome às suas partes, por isso, optamos por respeitar o projeto autoral e designar as partes conforme seu intuito.

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6.2.4.1 Relatório

O Relatório inicia-se com um prólogo, onde são apresentados os componentes da ação

(nome da ré, artigo em que se enquadraria sua suposta conduta, etc).

Em seguida, o Advogado menciona os atos e fatos processuais ocorridos até o

momento, com o cuidado de excluir aqueles prejudiciais à imagem da ré, já bastante

desgastada. Dessa forma, a conduta criminosa imputada a ela não é discursivamente

explicitada (o Defensor fala apenas que o Promotor a denunciou nas sanções do art. 124 do

Código Penal, mas não descreve a ação teoricamente praticada).

Também não há referências ao não comparecimento da acusada à audiência de

interrogatório, assim como é suprimida a informação de que ela gozava do benefício de

suspensão do processo quando teria voltado a delinquir, o que acarretou a revogação da

concessão.

Predominam nessa parte atos de fala assertivos, realizados no modo narração/relato, já

que se trata de um registro de fatos e atos processuais.

Como não se verificaram inovações dignas de nota nessa parte do Relatório, passamos

para a parte seguinte – o Fundamento – , de onde extraímos dois enunciados para análises,

dado o teor diferenciado apresentado por eles.

6.2.4.2 Fundamento

Em sede de Alegações, a lei faculta ao Defensor pleitear a impronúncia da ré, a

desclassificação do delito ou a absolvição sumária, sendo que cada uma dessas alternativas

traz resultados diferentes no mundo do direito.

No proferimento em questão, foi pleiteada a impronúncia, com base na tese de que o

exame de corpo de delito fora produzido de maneira desrespeitosa às regras processuais,

dando causa à arguição de nulidade absoluta do processo. Como o aborto é um crime que

deixa vestígios, esse exame é indispensável para sustentar um decreto condenatório. Na visão

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do Advogado, o laudo médico juntado aos autos não era capaz de suprir a falta do corpo de

delito, porque não havia sido elaborado com todas as fórmulas previstas em lei. Os

testemunhos poderiam sanar essa ausência, mas os depoimentos colhidos nos autos, na

perspectiva do Defensor, também foram reticentes e conflitantes. A única prova a se

considerar seria então a confissão da gestante, mas a confissão, isolada de outras provas, não é

considerada meio hábil a sustentar uma condenação.

Colocando a questão em termos técnicos, a Defesa arguiu preliminar de nulidade

absoluta e a consequente impronúncia da ré por faltar no processo provas concretas de autoria

e materialidade.

Vejamos o enunciado abaixo, extraído da parte intitulada fundamento:

Enunciado Estrutura

ππππ: declarativo µ: formal θ: locução verbal presente do indicativo primeira pessoa do plural ∑: além da posição dos interlocutores na instituição judiciária, a arguição de nulidade obedece a critérios legais (artigos 563 a 573, Código de Processo Penal)

Preliminarmente, queremos argüir nulidade absoluta, conforme falaremos deste vício processual que eivou todo o processo. E por causa dela não tem como R ser pronunciada nos termos do art. 408 do Código de Processo Penal

ψψψψ: crença + desejo

Quadro 30: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora

A preliminar de nulidade, que pode ser absoluta ou relativa, deve ser alegada pela

parte, em peça processual, antes de ter início a discussão sobre o mérito da causa.

A nulidade absoluta pode ser apontada em qualquer momento do processo, mas a

praxis forense aconselha que seja feita nas Alegações. Da mesma forma, ao elaborar suas

sentenças e decisões interlocutórias, o Juiz deve apreciar primeiro as arguições de preliminar

para depois enfrentar o mérito.

No enunciado acima, a preliminar de nulidade é apresentada por meio de um ato

realizado no ponto declarativo (π), no modo (µ) formal, pois é necessário que os

interlocutores envolvidos na satisfação do ato possuam determinado estatuto oriundo de uma

instituição extralinguística. A realização bem sucedida do ato produz a correspondência entre

a palavra proferida – “arguir nulidade” – e a realidade, ao mesmo tempo em que a nova

realidade se ajusta à palavra expressa.

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Parece-nos que estamos diante de um ato cujo conteúdo proposicional (θ) deve conter

a fórmula canônica “arguir nulidade”, ou outra de igual natureza. Como afirma Searle

(1995a), trata-se de um ato que precisa ser realizado como um ato de fala.

Como condições preparatórias ( ∑ ) necessárias ao sucesso desse ato, aventam-se a

posição institucional dos sujeitos e a observação dos preceitos legais para a arguição de

nulidades processuais.

O estado mental pressuposto (ψ) é a crença do locutor na existência de vícios

insanáveis no processo e o desejo de que, com seu proferimento, o Juiz atente para eles.

Importa observar que o acolhimento dessa preliminar por parte do Juiz constitui outro

momento processual. Com esse declarativo, a intenção do Advogado é a de fazer constar a

arguição.

Para fundamentar a tese da insuficiência de provas, o locutor transcreve trechos de

depoimentos prestados por testemunhas, faz citações literais de artigos da lei e de orientações

jurisprudenciais, conduzindo, dessa forma, sua argumentação para um campo mais técnico. O

Defensor tenta instaurar a dúvida em seu alocutário: a ré teria mesmo sofrido um

abortamento? Seria esse abortamento provocado? Existia um estado anterior de gravidez?

Abaixo, transcrevemos outro enunciado do Fundamento para submetermos à análise:

Enunciado Estrutura

ππππ: diretivo/comissivo

µ: convite

θ: locução verbal conjugada no modo imperativo, primeira pessoa do plural ∑: que o alocutário possa praticar a ação sugerida

Com relação a esta posição, vamos conferir algumas decisões de nossas cortes superiores: “A confissão da suposta gestante, como é cediço, não supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT 496/326). ψψψψ: desejo

Quadro 31: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora

Parece-nos que a classificação desse enunciado quanto aos critérios da TAF está

estreitamente vinculada à compreensão das estratégias argumentativas adotadas por seu

locutor. Pensando de acordo com tal perspectiva, fomos levados a crer que se trata de um ato

diretivo (π), na modalidade (µ) convite. O Advogado poderia ter optado pelo ponto assertivo

para a realização do ato, jogando com expressões linguísticas como “com relação a esta

posição, as Cortes Superiores têm decidido que...”, mas ao recorrer ao ato diretivo, o locutor

busca uma maior aproximação entre ele e seu alocutário, através do emprego de uma forma

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alocutiva, em que o outro é convidado simbolicamente a se juntar ao enunciador, para juntos,

ambos analisarem uma questão digna de cuidado.

O ato diretivo enfatiza a relação entre os interlocutores, distribuindo entre eles funções

específicas na realização do ato. Assim, caberia ao Advogado apresentar os fundamentos de

sua tese (a decisão das Cortes Superiores) e ao Juiz de Direito restaria atentar para os

argumentos e, ao final, agir de acordo com as pretensões da Defesa (desconsiderar a confissão

da gestante). Sendo a relação entre os interlocutores teoricamente equiparada, já que

Advogado e Juiz ocupam, teoricamente, mesma posição hierárquica, pensamos no modo de

realização como um “convite retórico”, uma conclamação do locutor para que seu alocutário

conheça e partilhe de um ponto de vista que teria sido, inclusive, referendado por uma

instância julgadora superior.

Por outro lado, observando que há um engajamento do locutor na tarefa proposta ao

alocutário (o locutor está se comprometendo a demonstrar alguma coisa), e levando em

consideração a forma verbal utilizada (primeira pessoa do plural), o mais adequado seria

admitir a ocorrência de um ponto misto, do tipo diretivo/comissivo.

No conteúdo proposicional (θ) do ato, encontramos uma expressão verbal conjugada

no modo imperativo afirmativo, na primeira pessoa do plural (nós locutor + alocutário), já

que a ação a ser executada pelo alocutário terá lugar em um tempo futuro ao da enunciação do

ato. As condições preparatórias ( ∑ ) pressupõem, além da posição dos interlocutores no

complexo institucional, que a ação sugerida possa ser praticada pelo alocutário, sem prejuízo

para si próprio. Como condição de sinceridade (ψ), emerge o desejo do locutor de que o

alocutário atenda a seu chamado e que, ao final, compartilhe a tese apresentada.

Assim como fez o Promotor em suas Alegações Finais, o defensor utilizou-se da

estratégia de reprodução de um julgado para conferir maior poder de persuasão a seu

argumento a favor da absolvição da ré: “A confissão da suposta gestante, como é cediço, não

supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT

496/326).

6.2.4.3 Requerimento

Após apresentar os argumentos que sustentam sua tese, o Advogado encerra o

proferimento dirigindo ao Juiz de Direito mais um ato diretivo, como se vê em seguida:

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Enunciado Estrutura

ππππ: diretivo

µ: requerimento

θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: que o alocutário possa praticar a ação sugerida

Ante ao exposto, requer que seja acolhida a preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecido o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.

ψψψψ: desejo

Quadro 32: Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora

Trata-se de um ato diretivo (π), no modo (µ) requerimento, expresso pelo locutor na

tentativa de fazer seu alocutário imediato realizar uma ação futura, que é a de acolher a

preliminar de nulidade e impronunciar a ré. Em outras palavras, a pretensão do Advogado é a

de que o Juiz encerre o processo, sem determinar que a acusada seja submetida a julgamento

pelos jurados do Tribunal do Júri.

Como condição preparatória do ato ( ∑ ), mais uma vez emerge a questão da posição

ocupada pelos interlocutores no interior de uma instituição extralinguística, assim como a

equiparação hierárquica existente entre eles, justificando a classificação do modo de

realização como um requerimento e não um pedido, simplesmente.

As condições de sinceridade (ψ) apontam para a expressão de um estado mental de

desejo do locutor de que o alocutário tome determinada medida no processo. Nesse caso, a

direção de ajuste é mundo-palavra, ou seja, o locutor (Advogado) profere um ato e o mundo

(Juiz) deve se movimentar para se adequar a ele.

6.2.4.4 Considerações

Parece interessante observar que a petição conhecida como Alegações (ou alegações

Finais, no jargão forense) pode ser compreendida pela força que emerge especialmente do ato

diretivo de requerimento, expresso no final de seu corpo, pelo qual o Advogado pleiteia a

impronúncia da ré.

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Os assertivos dispostos ao longo do Fundamento são fundamentais para que o Juiz seja

conduzido, por via da argumentação, a acolher a tese da defesa, de forma que é possível

definir as Alegações como um pedido baseado na exposição de uma crença argumentada em

um determinado estado de coisas.

Chegamos então ao seguinte quadro sintético:

Atos de fala

Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros

Domínio discursivo

Fatos sociais

assertivo diretivo

Alegações

Finais

Defesa Prévia

Alegações Finais Petição de interposição de recurso em sentido estrito

Razões Recursais Debates orais Declarações

Processo

Penal

jurídico

defender

Quadro 33: Alegações Finais da Defesa - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora

6.2.5 A Sentença de Pronúncia

No feito ora analisado, por meio da Sentença de Pronúncia, o julgador aderiu à tese

defendida pela acusação, pronunciando a ré como incursa nas sanções do art. 124 do Código

Penal (BRASIL, 2011) e determinando que ela fosse levada a julgamento perante o corpo de

jurados.

A legislação processual penal estabelece os requisitos a serem observados pelo Juiz no

momento de elaborar as sentenças. Elas devem ser compostas de três partes: o relatório, com

identificação das partes, exposição dos conflitos do processo e dos procedimentos; os

fundamentos ou a motivação da decisão a ser tomada; e a decisão propriamente dita, chamada

de dispositivo.

Até o momento processual anterior, estávamos diante de um embate discursivo

instaurado entre Promotor e Advogado, com vistas a persuadir o julgador da verossimilhança

de suas teses. Passamos, agora, da abordagem das instâncias de acusação e defesa para a

instância de julgamento, que é constituída por um sujeito de reconhecida cultura e erudição,

detentor de uma posição muito prestigiada em nossa sociedade – o Juiz de Direito.

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Empregando terminologia de Bourdieu (2008), diríamos que se trata de um sujeito portador

de considerável capital simbólico38.

Em outras palavras, o julgador, até aqui, configurou-se como auditório do Promotor e

do Defensor. Intuitivamente, somos levados a pensar no auditório universal, de Perelman

(1987), mas assumir a hipótese de que o Juiz seja o “ser de razão” equivale a aceitar,

indiretamente, que suas decisões seriam sempre justas e irretocáveis, portanto, estaríamos

justificando uma “ditadura dos magistrados”.

Nesse momento processual, o Juiz é o orador e o Promotor e o Defensor, ao lado da ré

e de outros sujeitos processuais, são seu auditório.

Como já mencionamos, os sujeitos processuais secundários, no exercício de suas

atividades profissionais, também aparecem como interlocutores das instâncias de acusação,

defesa e julgamento. Nesse proferimento, observamos a ocorrência de atos diretivos no

fechamento da peça, voltados especificamente para funcionários conhecidos como

“cartorários”, o que parece ser bem característico do gênero Pronúncia. Por meio deles, o

locutor dá ordens aos auxiliares da justiça para que tomem as providências necessárias ao

cumprimento da decisão, como em “Publique-se, registre-se e intime-se” e para o oficial de

justiça, a exemplo de “Intime-se pessoalmente a denunciada”.

Esquematicamente, as condições enunciativas desse proferimento podem ser

representadas da seguinte forma:

Locutor : Juiz de Direito

Enunciação (EÃO)

Enunciado: Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.

Alocutários: Ré/Advogado; Promotor de Justiça; jurados; sujeitos processuais secundários, sociedade

Quadro 34: Condições enunciativas da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora

38 Lembrando que Bourdieu (2008) constrói uma crítica sociológica à teoria linguística, no centro da qual encontra-se a proposta de substituição da noção de competência linguística pela de capital simbólico. Em seu ponto de vista, as interações linguísticas estão sempre condicionadas pela estrutura das relações de força entre os grupos sociais e, dentro destes, dos interlocutores. Essa estrutura relaciona a língua legítima aos locutores com maior capital simbólico, capazes de imporem as regras de produção e de aceitação das formas linguísticas adequadas.

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Para compor as análises deste tópico do trabalho, selecionamos excertos de cada uma

das partes da decisão, considerados os mais característicos de cada uma delas.

6.2.5.1 Relatório

Ato Estrutura

ππππ: assertivo

µ: narração/relato

θ: locução verbal/voz passiva analítica tempo pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular ∑: posição estatutária dos interlocutores; o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

R, já qualificada, foi denunciada como incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal, porque, segundo a denúncia: no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.

ψψψψ: crença

Quadro 35: Componentes de um ato de fala no relatório da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora

No relatório, o Juiz do processo ora analisado teceu uma breve exposição dos fatos, da

qual emergiram predominantemente atos de fala assertivos (π), realizados no modo (µ)

“narração/relato”, como no enunciado transcrito no quadro acima. A função da linguagem

aqui é a de descrever o estado de coisas pré-existente, sendo que o ato comporta um

julgamento do seu valor verdade, pois os acontecimentos narrados podem ter ocorrido ou não.

No caso, a ré pode ou não ter praticado o autoaborto. A direção de ajuste, nesse caso, é a de

palavra-mundo.

As condições de conteúdo proposicional (θ) implicam o emprego de um tempo verbal

pretérito, uma vez que os fatos relatados ocorreram em um momento anterior ao da

elaboração da pronúncia. Observamos o encaixe de dois momentos enunciativos: tomando

como referência o momento da enunciação, presente (quando o locutor prolata a sentença),

temos:

- um passado mais recente, que é o momento em que foi ofertada a Denúncia contra a

ré, expresso pelo verbo conjugado no pretérito perfeito composto, na voz passiva analítica,

demonstrando a certeza da ocorrência do fato narrado (R, já qualificada, foi denunciada como

incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal);

- outro passado, mais remoto, correspondente ao tempo em que a acusada teria

praticado o crime, expresso também por um verbo conjugado no pretérito perfeito do

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indicativo (no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela

introduzida em sua vagina, causando a morte do feto).

É interessante observar que a forma verbal escolhida pelo locutor para narrar esse fato

– verbos conjugados no pretérito perfeito do indicativo – confere uma carga de certeza quanto

à prática do crime.

A narrativa só perde um pouco sua taxatividade porque o locutor faz remissão a um

trecho da Denúncia, produzida pelo Promotor, como forma de modalizar sua fala: “R, já

qualificada, foi denunciada como incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal, porque,

segundo a denúncia [de autoria do Promotor]: no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto

(...)” . É interessante observar que, com esse expediente de explicitar que a fonte da acusação

se encontra na Denúncia, o Juiz se exime da responsabilidade pela atribuição dos fatos à

suposta autora.

Como afirma Maingueneau (1997), relatar o discurso de outro é uma maneira hábil de

sugerir algo sem se comprometer com a sugestão. Parece-nos que essa é a atitude do Juiz

nessa parte de seu proferimento: dar a entender que a ré praticou realmente os atos a ela

imputados, mas não afirmar ainda de forma contundente e definitiva.

As condições preparatórias ( ∑ ) para a efetivação do ato relacionam-se ao estatuto dos

interlocutores, em especial à possibilidade de o locutor formar sua convicção com base nos

elementos processuais. Como condição de sinceridade (ψ), destacamos a crença do Juiz na

ocorrência dos fatos descritos.

Parece-nos que o relatório não comporta uma argumentação mais apurada e apenas

constitui uma preparação do alocutário para a parte seguinte – o fundamento – esta sim,

marcada por seu alto teor argumentativo. Entretanto, por suas escolhas linguísticas, o Juiz dá

sinais da orientação argumentativa que assumirá na parte seguinte. A atribuição do

qualificativo “regular” para os procedimentos de coleta de prova utilizados no processo, por

exemplo, deixa claro que a tese defendida pelo Advogado, segundo a qual a prova do

processo está contaminada por vícios de nulidade, será refutada pelo julgador: “Regular a

instrução do processo, vieram as alegações finais, pugnando o ilustre Promotor de Justiça

pela pronúncia da denunciada, ao passo que a defesa alega nulidade por falta de perícia e,

alternativamente quer a impronúncia.” (fls. 75)

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6.2.5.2 Fundamento

Ato Estrutura

ππππ: assertivo

µ: sustentação

θ: verbo de ligação, conjugado no presente do indicativo, primeira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado

Pelo que se apurou nos autos tem-se como suficiente para embasar o prosseguimento do feito, visto que estou convencido de que houve o crime e de que o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos.

ψψψψ: convicção

Quadro 36: Componentes de um ato de fala no fundamento da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora

O fundamento é a parte da sentença em que o juiz apresenta os motivos de fato e de

direito que o levaram a concluir por determinada decisão. Nessa parte, o locutor explicita os

caminhos percorridos por seu raciocínio, acolhendo ou refutando as alegações feitas pelas

partes no curso do processo. Contudo, não há necessidade de que o Juiz, ao fundamentar sua

decisão, responda exaustivamente à totalidade da argumentação, desde que conclua com

firmeza e assente o decisório em fundamentos idôneos para sustentarem a conclusão. O

critério é o de se exigir uma “fundamentação suficiente”, mas não absolutamente exaustiva.

No excerto selecionado, observamos a ocorrência de um ato cuja realização se dá no

ponto assertivo (π), no modo (µ) sustentação.

As condições de conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo impõem, como restrições

para o seu desempenho, a regra de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em

contraste com o instante da enunciação. Contudo, no enunciado em análise, o verbo encontra-

se conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (“estou convencido de

que houve o crime e que o Denunciado seja o seu autor”).

A representação mórfica do verbo no presente do indicativo é admitida porque, com

apoio em Mari (2001), entendemos que apesar da diferenciação da forma verbal, o conteúdo

proposicional refere-se a um estado de coisas – o juiz ter formado sua convicção – que é

anterior ao ato de sua enunciação.

Nas palavras do autor, encontramos a seguinte explicação:

No ponto assertivo, verificamos uma condição inversa: a forma verbal precisa conter uma expressão de passado em contraste com o instante da enunciação. Esta nova exigência admite que o verbo esteja morficamente representado no presente do indicativo – Informo que seu candidato está à frente nas pesquisas – , no presente do subjuntivo – Nego que o seu candidato esteja à frente nas pesquisas (em

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contextos especiais) ou no pretérito perfeito/imperfeito – Afirmo que o seu candidato esteve/estava à frente nas pesquisas. Apesar da diferenciação da forma verbal, o conteúdo proposicional reporta um estado de coisas – o candidato estar à frente nas pesquisas – anterior ao ato de enunciá-lo. (MARI, 2001, p. 123-124).

Como condição preparatória ( ∑ ) geral para o ato assertivo, tem-se a aceitação, por

parte do locutor, da veracidade do estado de coisas por ele reportado.

Relacionada às condições preparatórias, temos como condição de sinceridade (ψψψψ) do

ato assertivo, que o locutor acredite naquilo que está a proferir, senão, “ele estaria sendo

insincero ao afirmar um conteúdo proposicional e acrescentar, na sequência, sua descrença

nesse mesmo conteúdo” (MARI, 2001, p. 127). Essa condição geral deve ser acrescida por

outras condições especiais, próprias de certos modos do ponto assertivo. O modo sustentar,

por exemplo, exige uma crença argumentada na verdade dos fatos.

Quando o Juiz de Direito profere o ato “estou convencido de que houve o crime e que

o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos”, ele

manifesta mais que uma crença no estado de coisas reportado: ele expressa convicção e, em

seguida, aponta as causas que engendraram seu estado mental. Ou seja, o ato de sustentar a

veracidade de um estado de coisas exige um estado mental de crença argumentada na verdade

dos fatos. Assim, a referência às provas dos autos funciona, neste enunciado, como uma

espécie de argumento de autoridade, que fundamenta a convicção do Juiz e justifica a

submissão da ré a julgamento pelo Júri Popular.

Abrimos parênteses para conjecturar que, nesse enunciado em que o julgador se afirma

convencido de que houve crime e de que a ré é sua autora, vislumbramos a concretização de

um efeito perlocucional favorável aos interesses da acusação. Com isso, fomos levados a crer

que, ao proferir o mandamento condenatório, o Juiz de Direito acatou, efetivamente, os

argumentos da acusação e que, por isso, deu ganho à tese defendida pelo Promotor de Justiça.

Contudo, em breve militância na carreira jurídica, percebemos que, na maioria das vezes, por

motivos relacionados ao volume de processos a analisar, o julgador faz uma leitura muito

superficial das peças produzidas pelas partes, concentrando sua atenção, com muito mais

intensidade, nos exames periciais, nas provas documentais, nos depoimentos das testemunhas.

Dado o próprio teor legal da exigência de fundamentar, observa-se nesta parte do

proferimento uma forte argumentatividade na fala do Juiz. Aqui estão explicitados os motivos

de fato e de direito que o levaram a determinada conclusão, assim como os argumentos que o

ajudaram a construir uma tese decisória. Percebe-se, assim, uma recorrência de atos assertivos

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que se realizam no modo afirmação/confirmação e negação/refutação, por fazer menção aos

argumentos das partes para então acatá-los ou refutá-los.

6.2.5.3 Dispositivo

Ato Estrutura

ππππ: declarativo

µ: formal (semelhante a “declarar culpado”)

θ: verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo ∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)

Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.

ψψψψ: crença + desejo

Quadro 37: Componentes de um ato de fala no dispositivo da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora

Acompanhando a sequência lógica da decisão judicial, tem-se a parte final, que é o

dispositivo (momento em que o Juiz aplica a lei ao caso concreto).

Com um ato de fala declarativo (π), formalmente realizado (µ), o locutor pronunciou a

ré, determinando seu julgamento pelo Tribunal do Júri da comarca.

O ato declarativo tem a propriedade de reunir locutor e alocutário em torno de um

estado de coisas que é criado, com vistas a uma integração. Possui dupla direção de ajuste,

conforme explicação de Mari (2001, p. 115):

[...] um estado de coisas de um mundo possível é alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o enunciou – MUNDO-PALAVRA – , da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva do seu locutor – PALAVRA-MUNDO. (MARI, 2001, p. 115).

Quanto às condições de conteúdo proposicional (θ), tem-se um verbo conjugado na

primeira pessoa do singular do presente do indicativo, que é a forma verbal performativa

canônica.

As condições preparatórias ( ∑ ) estão vinculadas ao estatuto institucional do locutor e

dos alocutários. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de um poder nesse ato, o

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que se verifica no caso em análise: apenas um Juiz de Direito, investido dos poderes que o

Estado lhe confere, formalmente designado para presidir aquele processo, pode pronunciar a

ré a ser julgada pelo Tribunal Popular. Como esclarece Searle:

O domínio, por parte do falante e do ouvinte, das regras que constituem a competência linguística não é, em geral, suficiente para a realização de uma declaração. Deve existir também uma instituição extralinguística, e tanto o falante como o ouvinte devem ocupar lugares especiais no interior dessa instituição. É apenas por haver instituições como a igreja, o direito, a propriedade privada, o estado – posições especiais do falante e do ouvinte no interior dessas instituições – que se pode excomungar, designar, doar e legar bens, declarar guerra. (SEARLE, 1995a, p. 28)

Como condições de sinceridade (ψ) para a satisfação do ato, observam-se um misto de

crença na ocorrência do crime e na culpa da ré e desejo de aplicação da lei penal a essa

situação concreta.

6.2.5.4 Considerações

Na doutrina jurídica, a Pronúncia é considerada como um julgamento da

admissibilidade da acusação para submissão do caso concreto ao Tribunal do Júri. Em outras

palavras, trata-se do “sinal verde”, dado pelo Juiz, para a submissão do caso à apreciação dos

juízes de fato.

O principal ato verificado nesse proferimento é o declarativo. Por meio dele, o Juiz

instaura um estado de coisas novo, modificando, com isso, a situação da ré diante da justiça e

da sociedade. Esse ato declarativo só alcança esse efeito amplo porque realizado no interior

do domínio jurídico e por ter sido proferido por um enunciador revestido do estatuto legal de

julgador.

A decisão de pronúncia que ora analisamos se insere no interior de uma modalidade

discursiva denominada por Bittar (2009) como “discurso decisório”, cujo atributo principal é,

para ele, seu caráter performativo:

Além de se dizer que todo ato-de-linguagem decisório constrói, faz, constitui, realiza, é de dizer também que o faz por força de que não se trata de um discurso que se encerra em sua mera atividade de fazer discursivo. Sua primordial função é a de produzir efeitos não-discursivos, ou seja, de produzir efeitos extra-autos, modificando coisas-do-mundo e estados-do-mundo. Trata-se de um discurso que se impõe, por derivar de uma estrutura de poder, sobre a qual se assenta, e a qual faz funcionar. (BITTAR, 2009, p. 301)

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Pensando na decisão de pronúncia como um macroato declarativo, podemos,

juntamente com Bittar (2009), salientar seu caráter performativo, na medida em que é capaz

de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo simples fato de sua enunciação com caráter

de publicidade e oficialidade. Para o autor, “o poder discursivo de elocução” de uma sentença

é derivado de outro discurso, o normativo. Nesse sentido, considera-se que seu papel é o de

formação de uma norma individual, aplicável ao caso concreto, a partir da norma genérica

contida no discurso da norma.

Ainda segundo Bittar (2009), examinando a sentença como um ato de linguagem pelo

qual se decide o processo em instância judicial, essa performatividade relaciona-se

intimamente com algumas outras condições que ele pontua como: uma sentença deve ser

emitida por um órgão investido no poder de julgar, dotado de autoridade e competência para

tanto; apresentar-se em três partes formais, que são o relatório, o fundamento e o dispositivo;

apresentar-se linguística e juridicamente como aceitável; encontrar-se inserida no contexto de

um processo e de um conflito material existente na esfera jurisdicional; obedecer aos trâmites

processuais, a um procedimento prefixado em lei, segundo o qual existe um momento preciso

para a enunciação desse ato; resultar na formação de uma norma individual; ser dotada de

publicidade; ter como teleologia a apresentação da opinião conclusiva do juiz acerca de todos

os elementos formadores do processo, com o qual se conclui uma fase de procedimento

jurisdicional, apresentando um julgamento com ou sem a resolução do conflito material.

A questão da publicidade da decisão judicial a que se refere Bittar (2009) nos remete

aos modos de difusão e de consumo do discurso, os quais, de acordo com Maingueneau

(2008), são desenhados pela própria rede institucional:

O texto pode ser objeto de modos de difusão muito variados e não se poderia estabelecer uma exterioridade entre esse aspecto e seu conteúdo próprio. A própria rede institucional desenha uma rede de difusão, as características de um público, indissociáveis do estatuto semântico que o discurso se atribui. (MAINGUENEAU, 2008, p. 134).

Pensando sobre os modos de difusão e consumo do discurso judicial, observamos que

os meios de circulação da instituição judiciária são bastante restritivos no que diz respeito ao

público.

Os principais atos processuais são publicados em jornais impressos e digitais

especializados, lidos somente por sujeitos diretamente interessados no andamento dos

processos. Na realidade, apenas advogados fazem esse tipo de leitura, pois, por meio de

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publicações resumidas e esporádicas, são chamados para dar andamento ao feito. Autor e réu

normalmente não acompanham a causa por esses meios oficiais.

No caso mais específico das sentenças, a publicidade representa a passagem de um ato

de linguagem subjetivo da autoridade para a esfera de conhecimento público, segundo

definição de Bittar (2009). Essa publicidade, contudo, é alcançada na prática por um

expediente que faz com que apenas os interessados imediatos tenham ciência do conteúdo do

ato. No tópico seguinte, ao falarmos sobre um movimento de expediente forense, abordamos

essa questão com mais profundidade.

Sintetizando, temos o seguinte quadro representativo da Sentença de Pronúncia:

Atos de fala

Gênero Conjunto de gêneros

Sistema de gêneros

Domínio discursivo

Fatos sociais

assertivos

declarativos diretivos

Sentença

de Pronúncia

Despacho

Ofício Pronúncia

Edital Mandado Termo

Sentença Portaria

Processo Penal

jurídico

pronunciar

a ré

Quadro 38: Sentença de Pronúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora

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6.3 Sequência típica executada após a Pronúncia: movimentos de uma rotina forense

Para que a Sentença de Pronúncia analisada no tópico anterior alcançasse a

publicidade exigida pela lei e, assim, efetivamente produzisse efeitos concretos, iniciou-se

uma movimentação na secretaria judicial para dar cumprimento às determinações do juiz.

A fim de demonstrar como se dão a publicidade e o cumprimento de uma decisão, na

prática, apresentamos uma análise dos atos processuais realizados imediatamente após sua

prolatação pela instância julgadora.

Logo abaixo da Sentença de Pronúncia, às fls. 77, após a data e a assinatura do Juiz, há

um carimbo (1) de um auxiliar da justiça, com os seguintes dizeres:

[1] “Aos 04 de 06 de 03 me foram entregues estes autos. Do que para constar lavrei este. Eu, ________.”

Em seguida, fls. 78, há um outro carimbo (2), também assinado por um auxiliar da

justiça, em que este certifica a publicação da sentença:

[2] “PUBLICAÇÃO Aos 05 de 06 de 03 Faço Público a veneranda Sentença retro. Do que para constar lavrei este. O Escrivão _________.”

Abaixo deste, ainda às fls. 78, novo carimbo (3), em que o auxiliar da justiça certifica

que a decisão foi registrada em livro próprio:

[3] “CERTIDÃO Certifico e dou fé que registrei a J. sentença sob n.º _, fls._, livro n.º _. Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, _______.”

Segue outro carimbo (4), assinado pelo mesmo sujeito processual, em que se certifica

a expedição de mandado:

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[4] “CERTIDÃO Certifico e dou fé que expedi mandado Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, ______.”

Finalmente, um carimbo (5) em que se certifica o encaminhamento do expediente de

intimação ao Defensor da ré:

[5] “CERTIDÃO Certifico e dou fé haver encaminhado o expediente de intimação do(a) Dr(a)

[advogado da ré] ao Jornal Ocasião para publicação. Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, _____.”

No verso das fls. 78, há mais um carimbo (6), subscrito por um outro funcionário da

secretaria, certificando a intimação do Promotor de Justiça do conteúdo da decisão de

Pronúncia:

[6] “CERTIDÃO DE INTIMAÇÃO CERTIFICO que nesta data intimei o Dr. Promotor de Justiça por todo conteúdo fls. _. Dou fé. do que para constar lavrei este. Comarca, 09 de junho de 2003. A Escrivã, _____”.

Em seguida, a manifestação do Promotor de Justiça, de próprio punho, declarando

ciência do conteúdo da decisão de fls. 74-77, proferida pelo Juiz.

Um sétimo carimbo documenta a efetiva intimação do Defensor da ré pela publicação

no jornal local:

[7] “CERTIDÃO Certifico que a intimação foi publicada no ‘O Ocasião’ do dia 08.06.03, com início da contagem do prazo para o dia 10.06.03. Comarca, 09/junho/2003. A Escrivã, _____.”

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Às fls. 79, encontra-se a cópia do mandado de intimação da ré, entregue pessoalmente

a ela pelo Oficial de Justiça, informando-a de que seria levada a Júri Popular.

Os sujeitos que assinaram os textos padronizados em forma de carimbos executaram

uma sequência de atos processuais fundamentais, como receber e guardar os autos que lhe

foram confiados, dar publicidade à Sentença de Pronúncia, registrar a decisão em livro

próprio e assim por diante. Todos esses atos foram executados e certificados pelos agentes e,

desta forma, adquiriram materialidade no mundo jurídico. Trata-se, assim, de atos

protocolares, utilizados com a função de legitimar, publicizar ou autenticar certos objetos e

comportamentos.

Outro fato a observar é que esses textos apostos nos autos são tão padronizados e

estáveis que já veem formatados em carimbos, como se fossem fórmulas, que deixam espaço

apenas para o preenchimento manual de datas, nomes próprios e assinaturas.

Na sequência, logo abaixo do carimbo 6, há a resposta do Promotor de Justiça à

intimação que lhe foi feita:

“Ciência, d. supra.” Assinatura do Promotor.

Retornamos ao território dos gêneros produzidos por esse sujeito principal. Trata-se de

uma “declaração”, em que o Promotor realiza o ato de declarar que tomou conhecimento da

decisão de pronúncia e que está de acordo com uma realidade afirmada pelo auxiliar da

justiça.

O carimbo 7, que informa a publicação da intimação ao Defensor, também compõe o

conjunto de gêneros dos auxiliares da justiça. O ato que ele certifica – a intimação do

Defensor para conhecer o conteúdo da decisão de pronúncia – instaura para a acusada a

possibilidade de refutar tal decisão e não apenas de tomar ciência dela.

Várias outras sequências de carimbos, como esta, são encontradas ao longo do

processo analisado. A título de exemplo, vejamos como dessa sequência de atos processuais

praticados e documentados no processo às fls. 78 e 78v, pode-se abstrair uma série de

esclarecimentos à luz de uma teoria linguístico-discursiva.

Em relação à estrutura sintática e semântica encontrada nessas manifestações

procedimentais, Bittar (2009) esclarece que “o uso de expressões e fórmulas pré-concebidas é

o que impera como prática do bureau, de modo a se perpetuarem as estruturas de discurso

consagradas no ambiente burocrático”.

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De um lado, a sequência típica permite a visualização de como conjuntos de gêneros

se inter-relacionam no domínio discursivo jurídico, compondo um sistema de gêneros através

do qual se dá o efetivo andamento de um processo por uma Secretaria judicial. Nessa

instituição, todos os atos processuais são documentados, certificados, atestados, de acordo

com uma regulamentação minuciosa da lei processual, em que tudo segue uma ordem

rigidamente estabelecida.

De outro lado, a sequência traz às claras os fatos sociais realizados pelos sujeitos

processuais por meio da utilização de textos. Uma vez instaurada uma relação processual

penal, ainda que a ré seja absolvida no fim do julgamento, terá havido uma modificação na

realidade social.

Outro desdobramento relevante do funcionamento do sistema de gêneros é a

materialização do princípio do contraditório: qualquer ato do Juiz (nesse caso, uma decisão de

Pronúncia da ré) é comunicado ao Defensor (pela publicação de intimação no jornal local) e

ao Promotor de Justiça (intimação pessoal). A própria acusada é informada pessoalmente da

decisão, através de mandado judicial redigido pelo Escrivão e entregue a ela, pelo Oficial de

Justiça. A obediência a esse princípio dá às partes a oportunidade de contestarem os atos e

termos do processo, além se ser um corolário do princípio maior de ampla defesa do acusado.

Há que se observar ainda que o sistema de carimbos, em que os auxiliares da justiça

certificam exaustivamente a prática de atos, pode parecer, à primeira vista, um interminável

ritual de documentação burocrática, que atrasa a marcha processual e a celeridade da justiça,

mas, na realidade, talvez tenha sido o sistema mais eficaz encontrado para a garantia do

cumprimento dos princípios do direito processual.

Essa rigidez de procedimentos corrobora ainda a hipótese defendida por Fuzer e

Barros (2008), de que o complexo sistema de gêneros em que se constituem os autos de um

Processo Penal funciona como um dos mecanismos de manutenção do caráter altamente

especializado das atividades realizadas pelos representantes da instituição jurídica.

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6.4 Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão)

Nas três primeiras fases metodologicamente recortadas do Processo/corpus, o foco das

análises foi direcionado para a performatividade da linguagem. O estudo da argumentação

ficou em posição de menor relevo, se comparada aos aspectos relacionados aos atos de fala,

suas modalidades e efeitos. Por essa razão, nos ateremos, na análise da Fase Recursal, aos

aspectos argumentativos observados.

Inconformado com a decisão do Juiz, o Defensor da ré ingressou com um “Recurso

em Sentido Estrito”, para que ela fosse revista pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais,

órgão decisório de 2.ª instância, competente para julgar recursos cíveis e criminais oriundos

das comarcas mineiras de 1.ª instância. O Promotor de Justiça apresentou suas “Contra-

Razões de Recurso”, ou seja, a resposta da acusação às razões recursais impetradas pela

defesa. Por determinação do Juiz da causa, o processo “subiu” para o Tribunal, como se diz na

linguagem forense, para que lá fosse apreciado por um Colegiado de Juízes.

A tramitação de um processo criminal no órgão de segunda instância segue as normas

prescritas pelos códigos processuais, além do Regimento Interno do Tribunal. Esses órgãos

são compostos por muitos magistrados, mas um processo não é apreciado por todos eles. É o

regimento interno que determina quais os responsáveis pelo julgamento e a forma como ele

será realizado. Normalmente, o regimento interno prevê a divisão dos magistrados em grupos

menores, denominados turmas ou câmaras especializadas em algum ramo do direito (turmas

cíveis, criminais, etc).

No caso em análise, a chegada do feito ao Tribunal foi documentada por um Termo de

Recebimento, Análise e Remessa de Autos, assinado por um funcionário da seção (fls. 99).

Em seguida, os autos foram remetidos para a Divisão de Distribuição de Feitos, onde foi

realizado um sorteio para definir quem seria o Relator (Juiz do Tribunal a quem cabe explanar

o caso concreto no momento em que vai ser julgado). Daí, os autos foram remetidos para a

Procuradoria-Geral de Justiça. Foi realizado um segundo sorteio para decidir sobre a

distribuição do feito entre um dos Procuradores de Justiça, que são o órgão do Ministério

Público responsável por fiscalizar o andamento de um processo na segunda instância39. O

Procurador emitiu “Parecer” favorável à manutenção da decisão de pronúncia, afirmando que:

39 O Promotor de Justiça é o responsável por essa tarefa na primeira instância, enquanto o Procurador de Justiça atua na segunda instância.

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a própria acusada reconheceu que se submeteu a um voluntário procedimento de aborto [...]; quando a ré foi atendida já não havia o que recolher do feto, porque só restavam parcelas diminutas e indefinidas do ser já decomposto [...], tornando necessária uma curetagem que não redundou na coleta de porções identificáveis do pobre ser. (Procurador de Justiça)40

Em seguida, o processo foi remetido ao Desembargador Relator. O primeiro ato

praticado por ele consistiu em documentar o recebimento e a conclusão do feito, para depois

lançar a peça denominada Relatório.

Em seguida, o Escrivão da secretaria incluiu o processo na pauta de julgamento da 3.ª

Sessão Ordinária.

O processo foi então apreciado por três Desembargadores do Tribunal, que proferiram

um “Acórdão” negando provimento ao recurso da defesa, em outras palavras, mantendo a

decisão de primeira instância que determinou o julgamento da ré pelo Júri Popular.

Entenderam os Desembargadores que havia fortes indícios de autoria e materialidade contra a

acusada.

Em síntese, esses foram os principais acontecimentos da fase recursal. Ao longo dessa

etapa, foram produzidas quatro peças processuais fundamentais: Recurso em sentido Estrito,

Contra-Razões de Recurso em Sentido Estrito, Parecer do Procurador de Justiça e Acórdão,

além de inúmeros atos processuais praticados por Desembargadores, Procuradores Gerais de

Justiça e funcionários das secretarias.

Inserimos, nesse momento, as análises da peça processual intitulada Acórdão,

selecionada para ser objeto de uma investigação mais aprofundada por constituir o ponto

culminante da fase recursal, já que contém em seu bojo as vozes das instâncias de acusação,

defesa e julgamento, das testemunhas e da ré; vozes das quais se apropriaram os

Desembargadores no intuito de construírem um novo pronunciamento – o Acórdão – com

força conferida por lei, para substituir a decisão monocrática de primeira instância.

6.4.1 O Acórdão

Inicialmente, para a compreensão do gênero Acórdão e de suas condições

enunciativas, foi necessário que fizéssemos um passeio pelas normas contidas nos Códigos

40 Parecer emitido por Procurador de Justiça, fls. 112-113.

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Processual Civil e Processual Penal e no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado

de Minas Gerais.

A reconstrução da cena enunciativa que envolve o proferimento de uma peça dessa

natureza não é uma tarefa fácil. A dificuldade maior reside em não haver, na legislação, uma

preleção contínua sobre os requisitos e condições para sua elaboração. Também não há uma

descrição detalhada da sessão de julgamento dos recursos, de forma que foi necessário reunir

e acomodar vários fragmentos de leis e artigos, para obter pistas mais ou menos seguras de

como se configura essa cena enunciativa.

A primeira questão a nos ocorrer foi conceitual: o que é um Acórdão? A palavra

acórdão deriva de "acordam", forma adotada para iniciar o texto da decisão, isto é, "põem-se

de acordo", "ficam de acordo", quanto a uma determinada questão de fato e de direito

submetida a julgamento. No artigo 163 do Código de Processo Civil, encontramos que

Acórdão é o julgamento proferido pelos Juízes dos tribunais (BRASIL, 2011). De acordo com

a Constituição Federal, os Juízes que atuam nos Tribunais de Justiça dos Estados são

chamados Desembargadores (BRASIL, 2011). Nessa primeira definição, já se faz presente

uma menção aos produtores autorizados desse gênero (Desembargadores), bem como ao

quadro institucional em que são produzidos (Tribunais de Justiça).

Pela definição legal, percebemos que o acórdão possui uma unidade, embora surja

como resultado da manifestação da convicção de três julgadores. Buscando a recuperação da

cena enunciativa, questionamos as condições práticas em que essa peça unitária é elaborada.

Na legislação, encontramos que o recurso interposto contra decisão de primeira instância é

julgado em uma sessão ordinária do Tribunal, a qual se desenrola no seguinte formato: o

Presidente anuncia o julgamento do recurso e as partes são apregoadas pelo Oficial de Justiça.

Em seguida, o Relator faz a exposição do feito (leitura do Relatório). O advogado da parte

poderá fazer a sustentação oral das razões de seu recurso, assim como o órgão da acusação,

desde que solicitem com antecedência. Nos autos ora analisados, não houve sustentação oral

por nenhuma das partes. Na sequência, são proferidos os votos, começando pelo Relator. O

voto é proferido oralmente e registrado pelos taquígrafos ou digitadores do tribunal.

Concluído o julgamento, o Presidente proclamará a decisão, que será sumariamente

publicada no "Diário do Judiciário".

O regimento interno determina que o Acórdão será lavrado pelo Relator e conterá a

identificação do presidente, do relator e dos demais julgadores e a ele serão juntados os votos,

revistos e autenticados pelos julgadores. No caso ora analisado, como o julgamento foi

unânime e houve voto escrito apenas do relator, com a manifestação dos demais julgadores de

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que estavam “de acordo”, somente esse voto foi publicado na íntegra. Em outras palavras, o

voto do Relator consubstanciou-se no texto resultante do julgamento.

A título de ilustração, elaboramos o seguinte quadro enunciativo:

Locutor : Desembargadores (Primeira Câmara Criminal)

Enunciação (EÃO)

Enunciado: Vistos etc., acorda, em Turma, a PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM, À UNANIMIDADE, REJEITAR PRELIMINAR E NEGAR PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.

Alocutário imediato: Ré/Advogado, Juiz de Direito de primeira instância, Promotor de

Justiça, Procuradores de Justiça

mediato: demais sujeitos processuais, sociedade

Quadro 39: Condições enunciativas do Acórdão Fonte: Elaborado pela autora

Nesse texto, estão contidos todos os requisitos essenciais definidos pelo entendimento

de vários artigos: o artigo 165, combinado com os artigos 458 e 563, do Código de Processo

Civil e o artigo 82 do Regimento Interno (BRASIL, 2011). Por eles, fica estabelecido que os

acórdãos devem conter: a ementa (resumo dos votos); a súmula; a indicação do órgão que fez

o julgamento; o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do

réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; os

fundamentos, em que o magistrado analisará as questões de fato e de direito; o dispositivo, em

que o magistrado resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.

Vejamos:

6.4.1.1 A ementa

A ementa é o resumo dos votos que integram o acórdão. Tem início com a palavra ou

expressão designativa do tema principal:

EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE (CP, ART. 124) - CRIME QUE DEIXA VESTÍGIO - PRELIMINAR - NULIDADE ABSOLUTA COM EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO, EM FACE DA FALTA OU VÍCIO DO EXAME DE CORPO DE

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DELITO - DESCABIMENTO - DESAPARECIDOS OS VESTÍGIOS DO ABORTO - IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - CPP, ART. 167 - ADMITIDA A PROVA TESTEMUNHAL E LAUDO MÉDICO, CORROBORADOS PELO DEPOIMENTO DA ACUSADA - ACD INDIRETO - ADMISSIBILIDADE - PROCESSO MODERNO - BUSCA DA VERDADE REAL - TODAS AS PROVAS DEVEM SER IGUALMENTE CONSIDERADAS, NÃO EXISTINDO, ENTRE ELAS, HIERARQUIA - LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO - MÉRITO - CPP, ART. 408 - IMPRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - INVIABILIDADE - INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO SOCIETATE' - INVERSÃO AO NATURAL PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO REO' - RESTA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI (CF/1988, ART. 5, XXXVIII) - PRECEDENTES DO STF, STJ E TJMG.

6.4.1.2 A súmula

Súmula é a síntese ou enunciado de um entendimento jurisprudencial extraído de

reiteradas decisões no mesmo sentido. No proferimento analisado, recebeu o seguinte

formato:

SÚMULA: À UNANIMIDADE, REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.

6.4.1.3 O voto

A parte substancial do Acórdão encontra-se no voto. À maneira da sentença, o voto se

divide em três momentos: relatório, fundamento, dispositivo.

A lei estatui que o relatório conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da

resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do

processo.

No fundamento, o juiz analisará as questões de fato e de direito e no dispositivo,

resolverá as questões que as partes lhe submeterem.

O resultado final da combinação de todas essas partes é uma peça processual

completa, composta por ementa, acórdão, votos e súmula, que recebe o nome genérico de

Acórdão.

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Algumas questões para reflexão: além de definir o acórdão e de preceituar quem são

seus produtores, o Código ainda estabelece que, quando for proferido verbalmente, o

taquígrafo ou datilógrafo registrará o acórdão, submetendo-o aos desembargadores para

revisão e assinatura. O voto de um desembargador é proferido oralmente durante a sessão de

julgamento e reproduzido pelo escrevente através de notas taquigráficas. Mas não há marcas

de oralidade nesse proferimento.

Outra questão é a relação entre a sentença de primeiro grau, objeto de recurso, e o

acórdão, que também é uma sentença, mas proferida em um segundo grau de jurisdição. No

que diz respeito às condições enunciativas, observamos uma diferença bastante nítida entre

ambos. A sentença é resultado da convicção de um juiz apenas. O acórdão é o resultado da

deliberação de três desembargadores, em uma instância superior, que dará a palavra final

quanto ao conflito instaurado.

Por conter as vozes dos sujeitos processuais que atuaram na tramitação do processo na

primeira e segunda instâncias (acusação, defesa e julgamento, testemunhas, ré), assim como

as vozes da legislação, da ciência do direito e dos julgamentos produzidos em outros

tribunais, essa peça chama atenção quanto ao seu aspecto dialógico/polifônico. Em seguida,

nos inclinamos sobre ele.

6.4.1.4 Análise argumentativa do Acórdão: quadro institucional, doxa, premissas

Para a análise argumentativa do Acórdão nos moldes propostos por Amossy (2006),

devemos inicialmente nos ater ao quadro institucional, que modela e determina o

funcionamento discursivo voltado à persuasão.

Conforme já discorremos, no discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri,

tem-se um quadro argumentativo semelhante a um jogo retórico/dialético. Acusação e defesa

lançam suas teses na tentativa de alcançar a adesão de um auditório particular, representado

pela instância julgadora: o Juiz de Direito, na primeira fase do processo; os Desembargadores

do Tribunal de Justiça, na fase recursal; o Corpo de Jurados, durante a Sessão de Julgamento

no Tribunal do Júri.

Especificamente na fase recursal, sobre a qual nos reclinamos agora, o auditório

compreende um órgão judicial de segunda instância, composto por Desembargadores, que

são, nas palavras de Bourdieu (2008), sujeitos portadores de um estatuto social que lhes

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garante considerável poder simbólico aos olhos do público, até mesmo perante os magistrados

de primeira instância, dada a posição hierárquica que detêm na estrutura judiciária.

Para Amossy (2006), o uso da palavra persuasiva está condicionado ao lugar

socioinstitucional de sua produção e circulação, daí decorrendo a distinção entre os gêneros

judiciário, deliberativo e epidítico. Dessa forma, a argumentação se encontra em uma relação

de dependência com o domínio do qual ela emerge e com o gênero no qual se insere,

adotando, assim as modalidades de persuasão que lhe são mais pertinentes.

No discurso processual penal, o jogo discursivo submete-se a regras tanto quanto à

condição de quem pode desempenhar o papel de jogador, como para o próprio funcionamento

da partida. Por isso, suas produções discursivas sujeitam-se a fortes restrições por parte da lei,

dos regulamentos e dos procedimentos próprios do domínio jurídico.

Quanto ao papel dos “jogadores”, lembramos que a palavra é prerrogativa do Juiz de

Direito, do Promotor, do Advogado e, em algumas situações, das pessoas chamadas a

colaborar com a efetivação da Justiça, como peritos, testemunhas, escreventes, etc. O réu,

maior interessado no resultado desse embate discursivo, só pode se manifestar pessoalmente

em momentos processuais bem específicos, como os interrogatórios diante do Juiz e do Corpo

de Jurados. O Defensor fala em seu nome na maior parte do tempo. Na fase recursal, a palavra

é prerrogativa do Advogado de Defesa, do Procurador de Justiça e dos Desembargadores.

Considerando que a verdade factual não é dada previamente na situação processual, e

talvez não seja alcançada nem mesmo ao final dos trâmites legais, acusação e defesa buscam

reunir tudo o que seu ponto de vista comporta de verossímil, exercitando os recursos da língua

a fim de persuadir o julgador da plausibilidade de suas teses.

Para a instância julgadora, fica o papel de se posicionar favorável ou contrariamente a

uma ou outra parte, vez que o Estado não pode se furtar à prestação jurisdicional. Já nos

arriscamos a afirmar que, nesse papel de acatar uma ou outra tese, o julgador, na verdade,

constrói uma nova versão para os fatos, resultante de sua atividade interpretativa, e é essa a

versão que adquire valor de verdade, graças às relações de poder que perpassam o

funcionamento da instituição judiciária. Inclusive, é no discurso decisório produzido pelas

instâncias julgadoras que se manifesta o padrão mais típico de performatividade da

linguagem, conforme pensado por Austin (1990), na primeira fase de sua Teoria dos Atos de

Fala41.

41 Sobre a performatividade da linguagem nas decisões judiciais, já discorremos nos tópicos anteriores.

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Estabelecidos os participantes que atuam nesse jogo retórico/dialético, podemos

pensar então nas estratégias argumentativas empregadas por eles para obter a persuasão. Na

retórica clássica, considera-se que o orador, apoiando-se em um tópico (um conjunto de

lugares comuns), tenta fazer seus interlocutores aderirem às teses que apresenta a seu

assentimento. Devemos considerar, contudo, que diferentemente do lógico ou do matemático,

que agem no interior de um sistema de elementos fechados, no discurso argumentativo o

orador constrói seus argumentos a partir de fontes diversificadas, que incluem tanto elementos

do senso comum, como elementos especializados de uma disciplina específica.

Esses elementos são genericamente chamados por Amossy (2006) de elementos

dóxicos e são definidos como o conjunto de saberes e crenças coletivos, constitutivos dos

pontos de acordo que fundamentam qualquer argumentação e dos quais depende o efeito de

persuasão. Para a autora, o estudo dos elementos dóxicos justifica-se na medida em que estes

contribuem para a compreensão de um funcionamento discursivo cujo objetivo central é a

adesão de um adversário, em uma situação de comunicação determinada.

Dessa forma, nas teorias que estudam a argumentação em sua vertente retórica, entre

as quais se filiam a teoria de procedência perelmaniana e a análise da argumentação no

discurso, de Amossy, considera-se que o discurso argumentativo é construído sobre os pontos

de acordo estabelecidos entre orador e auditório. Daí a afirmação de que “[...] é sempre em

um espaço de opiniões e crenças coletivas que [o orador] tenta resolver uma diferença ou

consolidar um ponto de vista. O saber partilhado e as representações sociais constituem,

portanto, o fundamento de toda argumentação”. (AMOSSY, 2006, p. 99, tradução nossa)42.

É interessante observar que, para Amossy (2006), o discurso argumentativo ancora-se

em uma doxa que perpassa o sujeito argumentante sem que ele esteja absolutamente

consciente dela. Assim, a autora relativiza a noção retórica de sujeito, segundo a qual o orador

seria um ente soberano, que utiliza os procedimentos a serviço de uma finalidade explícita.

Maingueneau também critica essa concepção retórica de sujeito, a qual, nas palavras do autor,

“coloca dois indivíduos face a face e lhes propõe um repertório de ‘atitudes’, de ‘estratégias’

destinadas a atingir esta ou aquela finalidade consciente” (MAINGUENEAU, 1997, p. 33).

Para ele, as formas de subjetividade são implicadas nas condições de possibilidade de uma

formação discursiva.

42 [...] c’est toujours dans um espace d’opinions et de croyances collectives qu’il tente de résoudre um différend ou de consolider un point de vue. Le savoir partagé et les représentations sociales constituent donc le fondement de toute argumentation.

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Amossy se lança ainda à tarefa de atribuir ao conceito de doxa e a seus correlatos,

como “topoï”, “estereótipo”, “ideia recebida”, “opinião partilhada”, “representações sociais”,

etc, um balizamento mais claro e mais profundo, dada a complexidade e a universalidade

dessas noções. Sendo assim, em sua proposta de análise da argumentação no discurso, a

autora relaciona a noção de doxa ou opinião comum, de um lado, aos conjuntos discursivos –

discursos sociais ou interdiscursos – que a veiculam, e de outro lado, às formas lógico-

discursivas particulares – topoï, ideias recebidas, representações sociais e estereótipos, que

são os canais de onde ela emerge de maneira concreta.

A noção de interdiscurso é desenvolvida por Maingueneau (2008) paralelamente aos

conceitos de formação discursiva e intersubjetividade enunciativa. Em nosso trabalho,

optamos por não adotar essa vertente como instrumento de análise. Por uma questão de

coerência à concepção de gêneros textuais e domínios discursivos que assumimos aqui, na

descrição e explicação da dimensão institucional do discurso jurídico, apenas tangenciaremos

os conceitos de formação discursiva, intertexto, intertextualidade e outras. Portanto, nos

limites deste trabalho, nos ateremos à segunda vertente de abordagem dos elementos dóxicos:

as formas lógico-discursivas particulares (topoï, ideias recebidas, representações sociais e

estereótipos).

Formas lógico-discursivas particulares: topoï

Os princípios de classificação aristotélica dos topoï já receberam reformulações

diversas, conforme a linha de pesquisa adotada por quem os sistematiza.

Em seu estudo sobre a doxa, Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) retornam aos topoï

aristotélicos e, a exemplo de outros autores, como Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) e

Ducrot (1989), também operam uma nova sistematização metodológica nos conceitos de

lugares comuns e lugares específicos.

As autoras definem o lugar comum (topos/topoï) como estrutura formal, esquema

lógico-abstrato sem conteúdo determinado, que modela a argumentação. Na qualidade de

esquemas formais, os lugares comuns podem ser concretizados nas mais diversas

modalidades, como por exemplo: “o que vale para o menos, vale para o mais”. Porém, essa

concretude subentende a predominância de certos valores, em determinada época, em um

dado contexto. Trata-se, portanto, de esquemas que podem ser convertidos em raciocínios

completos, cuja proposição é apenas uma das inúmeras atualizações possíveis.

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Amossy (2006) apresenta como decorrentes dos lugares comuns enunciados como: se

uma pessoa pode dedicar tanto tempo para ajudar os vizinhos, pode certamente consagrar

algum tempo para ajudar sua própria família; aquele que é bom para o menos próximo, pode

ser melhor para o mais próximo. O lugar comum, nesses exemplos, seria o já referido “o que

vale para o menos, vale para o mais”.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) elaboram uma classificação dos lugares

aristotélicos definindo-os em sua relação com valores e hierarquias e com o grau de adesão

que suscitam no auditório. Assim, afirmam que, para fundamentar valores ou hierarquias, ou

reforçar a intensidade da adesão que eles provocam, é possível relacioná-los a outros valores

ou hierarquias, mas pode-se também recorrer a premissas gerais, chamadas lugares.

Os autores distinguem entre os lugares comuns, que são afirmações muito amplas

acerca do que se supõe valer mais em qualquer domínio, e os lugares específicos, que

determinam o que vale mais em um domínio particular.

Entre os lugares comuns, incluem-se os lugares da quantidade e da qualidade.

Compreendem-se como lugar da quantidade os lugares que afirmam que alguma coisa é

melhor do que outra por razões quantitativas. Por outro lado, aparecem na argumentação os

lugares da qualidade quando se contesta a virtude do número. Perelman (1987) fala também

nos lugares da ordem, nos lugares do existente, nos lugares da pessoa e outros.

Por ser abstrato e desprovido de conteúdo, o lugar comum sustenta um número

ilimitado de proposições concretas. Por isso, haveria um mal-entendido na interpretação dos

tópicos aristotélicos quando se considera que os lugares comuns são reservatórios de

argumentos. Para Amossy e Herschberg-Pierrot, os lugares específicos, relativos a um gênero

e a um sujeito determinado, é que desempenham esse papel de repertório, uma vez que “ [...]

recuperam as opiniões correntes, as ‘ideias recebidas’ de uma coletividade” (AMOSSY;

HERSCHBERG-PIERROT, 1997, p. 103, tradução nossa)43.

Em síntese, depreende-se que a eficácia argumentativa depende não só da validade do

esquema lógico ou lugar comum, mas também do julgamento do conteúdo das proposições.

Nessa concepção, o lugar específico seria, então, o canal de entrada dos elementos dóxicos e

ideológicos.

Aplicando essas formulações ao corpus em estudo, de uma maneira geral, podemos

afirmar que, no discurso processual penal do Tribunal do Júri, o conjunto dóxico que

determina a situação de discurso na qual se argumenta, atua condicionando os sujeitos e

43 Ces lieux spécifiques, ou encore spéciaux, recoupent les opinions courantes, les « idées reçues » d’une collectivité [...].

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modelando sua palavra, sem que eles tenham plena consciência de sua dimensão. Esse

conjunto é composto pelos saberes próprios do campo jurídico – saberes científicos,

legitimados pelas instâncias de produção de discursos dessa natureza, como as academias, os

tribunais, as instituições legislativas – e também por representações sociais acerca do aborto,

dos gêneros masculino e feminino e do papel do judiciário na sociedade.

Vejamos, no Acórdão ora analisado, como lugares comuns e lugares específicos são

invocados para fundamentar uma argumentação no âmbito de um Processo Penal.

Ao longo de todo esse proferimento, encontramos várias sequências textuais em que o

locutor faz citações literais de trechos de obras da doutrina jurídica, de dispositivos legais e de

jurisprudência, originária tanto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais quanto de outros

tribunais. Destacamos, nessas sequências, o encaixe de várias frases genéricas, como as que

transcrevemos a seguir:

Tudo que lícito for, idôneo será para projetar a verdade real. (jurisprudência do STJ, fls. 123) Todas as provas são relativas: nenhuma delas terá ex vi legis valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra. (orientação constante da Exposição de Motivos do CPP, citada em jurisprudência do STJ, fls. 124) Todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia. (jurisprudência do STJ, fls. 125)

Trata-se de enunciados amplos, produzidos como resultado de um raciocínio

elaborado para uma situação específica, mas que são redigidos de tal forma que podem ser

alocados para qualquer outra situação enunciativa em que se encontre em pauta a temática por

eles abordada. Dessa forma, devido a seu alto grau de generalização, eles podem ser

descolados da situação original de produção e encaixados em outras situações enunciativas, a

fim de referendar um caso particular a partir de um saber global (AMOSSY, 2006).

Entretanto, cabe a ressalva de que tais enunciados, apesar de genéricos, são próprios

do domínio jurídico, ou seja, têm sua ocorrência circunscrita ao gênero judiciário,

assemelhando-se, em sua estrutura composicional e funcionamento discursivo, ao dispositivo

de lei. Por isso, em nossa leitura de Amossy e Herschberg-Pierrot (1997), considerando sua

produção e circulação praticamente restrita aos quadros institucionais da justiça, tomamos tais

enunciados como exemplos de lugares específicos do direito.

Dessa forma, observamos que nos enunciados genéricos analisados acima, o discurso

da norma e o discurso judicial, conforme classificação de Ferraz Jr., são invocados para

fundamentar o raciocínio do Desembargador que elaborou o presente Acórdão. Na verdade,

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não só o discurso da norma perpassa e constitui os demais: o discurso judicial e o da ciência

do direito também desempenham papel fundador.

Maingueneau (2008) defende que “as remissões de um campo a outro”, materializadas

em citações, esquemas tácitos ou captações, são muito úteis para a eficácia discursiva, pois:

[...] confrontando com um discurso de certo campo, um sujeito encontra elementos elaborados em outro lugar, os quais, intervindo sub-recepticiamente, criam um efeito de evidência. Assiste-se a uma metáfora, a uma transposição generalizada de um campo a outro (mas não de qualquer campo para não importa qual outro), sem que seja possível definir um lugar de origem, em “sentido próprio”. (MAINGUENEAU, 2008).

O “campo” a que o autor se refere corresponde aos grandes domínios discursivos: o

político, o jurídico, o religioso, o filosófico. Por analogia, observamos que, mesmo no interior

de um único campo, no qual se verificam subcampos, essas remissões são recorrentes. No

domínio jurídico, por exemplo, que abrange uma grande variedade de subdomínios de

natureza tão diversa (como o discurso da norma, da ciência do direito e judicial), as atividades

de transposição de um lugar para outro são essenciais.

Adentramos, com isso, o espaço dos fenômenos de heterogeneidade discursiva.

Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva

Authier-Revuz (2004), analisando a presença do outro no discurso, elabora os

conceitos de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. No primeiro caso,

trata-se de “formas marcadas que atribuem ao outro um lugar linguisticamente descritível,

claramente delimitado no discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 21). A heterogeneidade

constitutiva, por sua vez, é identificada por meio de formas dispersas, lacunares, não tão

facilmente recuperáveis no discurso.

No mesmo sentido, Maingueneau (1997) afirma que:

A primeira [heterogeneidade mostrada] incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda [heterogeneidade constitutiva] aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva. (MAINGUENEAU, 1997, p. 75)

O autor entende que elaborar uma categorização exaustiva das marcas de

heterogeneidade é uma tarefa arriscada, que pode levar a erros. Por isso, opta por elaborar

uma classificação empírica, na qual divide, em dois conjuntos, os mecanismos que considera

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de utilidade para a Análise do Discurso. Assim, os mecanismos de polifonia, a pressuposição,

a negação, o discurso relatado, as palavras entre aspas, o metadiscurso do locutor, a

parafrasagem, o discurso indireto livre, a ironia, o argumento de autoridade e outros são

tratados por Maingueneau (1997) como fatos de heterogeneidade mostrada. A

heterogeneidade constitutiva é abordada pelo autor no nível do interdiscurso.

Observemos uma manifestação de heterogeneidade mostrada na sequência textual

apresentada a seguir. No caso, a estratégia do discurso relatado compreende o agenciamento,

por parte do locutor, de vozes outras para relatar uma enunciação.

No excerto abaixo, o locutor faz uma citação literal de um autor que goza de bastante

prestígio no meio jurídico, que parece corroborar a tese defendida por ele até ali. O locutor

escreve:

Neste sentido, ensinamentos de JÚLIO FABBRINI MIRABETE: Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto. Citem-se como exemplo o homicídio praticado por afogamento em alto-mar em que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é recuperada, o estupro e o atentado violento ao pudor quando o fato é levado ao conhecimento da autoridade muitos dias após a ocorrência, etc... (fls. 122)

Chamamos a atenção para o fato de que o nome do autor foi grafado em caixa alta,

para sublinhar a posição ocupada por ele no meio jurídico. Aqui, o discurso da ciência do

direito é chamado para compor a base de sustentação do raciocínio, confirmando a

verossimilhança da tese defendida pelo locutor.

A citação literal, que é uma das modalidades do discurso relatado, é considerada por

Maingueneau (1997) como uma das manifestações mais clássicas da heterogeneidade

enunciativa. Nas palavras de Maingueneau (1997), “o discurso direto [citação literal] se

caracteriza pela aparição de um segundo ‘locutor’ no enunciado atribuído a um primeiro

‘locutor’”. (MAINGUENEAU, 1997, p. 85).

Trata-se de uma “teatralização de uma enunciação anterior”, sem que se verifique,

necessariamente, uma similitude absoluta. Dessa forma, segundo o autor, seria ingenuidade

crer que o discurso direto pretende apenas relatar fielmente as palavras citadas.

Ao avaliar o grau de adesão do locutor àquilo que está afirmando, Maingueneau

identifica uma ambiguidade fundamental do fenômeno de citação. Essa ambiguidade consiste

em uma variação do grau de distanciamento do locutor, conforme se explica a seguir:

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O locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como a ‘autoridade’ que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o que enuncio é verdade porque não sou eu que o digo’, quanto o contrário. O que é afinal ‘autoridade’ em matéria de discussão, senão o nome de um ausente? Se a autoridade invocada estivesse presente, expor-se-ia à discussão anulando-se como tal. O valor de autoridade ligado a toda enunciação (‘é verdade, porque eu o digo’) é geralmente insuficiente e cada formação discursiva deve apelar à autoridade pertinente, considerando sua posição. (MAINGUENEAU, 1997, p. 86).

No excerto transcrito acima, o grau de distanciamento entre o Desembargador e o

autor citado por ele (Mirabete) parece mínimo, enquanto a adesão do primeiro à asserção do

segundo atinge grau máximo.

Após a citação direta das lições de Mirabete, o locutor traz mais um elemento para

confirmar sua tese. Desta vez, transcreve literalmente trecho de um acórdão relatado por um

Ministro do Superior Tribunal de Justiça, relativo ao julgamento de um outro caso:

Vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em lapidar acórdão relatado pelo Min. Vicente Cernicchiaro: ‘Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso. Diz-se direto quando reúne elementos materiais do fato imputado. Indireto, se, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. A Constituição da República resguarda serem admitidas as provas que não foram proibidas por lei. Restou, assim, afetada a cláusula final do art. 158, CPP, ou seja, a confissão não ser idônea para concorrer o exame de corpo de delito. No processo moderno, não há hierarquia de provas, nem provas específicas para determinado caso. Tudo que ilícito for, idôneo será para projetar a verdade real (...)’. (fls. 122)

No nível microcontextual, em que se observa a estrutura linguística das citações,

Maingueneau (1997) chama a atenção para os verbos que introduzem o discurso relatado, pois

“em função do verbo escolhido (sugerir, afirmar, pretender...), toda a interpretação da citação

será afetada”. (MAINGUENEAU, 1997, p. 88).

Na citação transcrita acima, o locutor introduz a fala do Ministro do Tribunal de

Justiça com a seguinte expressão: “vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL

DE JUSTICA, em lapidar acórdão relatado pelo Min....”. Nesse caso, o verbo “valer” veicula

o pressuposto de que a opinião do locutor citado referenda a opinião daquele que faz a

citação, sendo, portanto, válida para afastar qualquer dúvida que pudesse subsistir sobre o

fato.

Destaca-se ainda o qualificativo empregado para designar o local de onde proveio a

citação – o “colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA” – reforçando o acerto da

proposição e o valor argumentativo da autoridade da pessoa que o proferiu. Nesse ponto, é

oportuna também a constatação de que o grau de distanciamento entre o Desembargador e o

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autor citado é mínimo, enquanto a adesão do primeiro à asserção do segundo atinge grau

máximo.

Para compreender o mecanismo de agenciamento de vozes neste último excerto

transcrito, chamaremos o Desembargador que o relatou de l1 (locutor 1) e o acórdão analisado

de A1 (acórdão 1). A1 e l1 serão tomados como parâmetros. Os demais locutores agenciados

por l1 serão chamados de l2, l3 e assim sucessivamente. Veremos como se encaixam diversos

enunciadores, em diversas situações enunciativas diferentes, em uma peça processual, com

vistas à persuasão do auditório.

L1 cita um outro acórdão (A2), produzido por um outro locutor (l2), que se constitui

como instância decisória em uma outra ação judicial, portanto, em uma situação enunciativa

diversa, para corroborar seu raciocínio.

Nesse acórdão que foi citado (A2), l2 constrói sua argumentação com base em

ensinamentos de autores consagrados da ciência do direito; faz menção a dispositivos da lei,

especialmente da Constituição Federal (CF) e do Código de Processo Penal (CPP) e também

traz à sua fala um terceiro acórdão (A3).

De maneira esquemática, temos o seguinte quadro representativo dessa rede de

citações diretas e indiretas:

Quadro 40: Discurso relatado no Acórdão Fonte: Elaborado pela autora

Na sequência do proferimento analisado, l1 ainda transcreve literalmente as súmulas de

outros quatro acórdãos, tudo para dar balizamento à sua tese de que foram produzidas nos

autos provas suficientes da autoria e da materialidade do delito.

Discurso da ciência do direito

A1 L1

Discurso da norma

Discurso judicial

Doutrinador 1

CPP

A2 L2

Doutrinador 2

A3

Discurso da ciência do direito

Discurso da norma

Discurso judicial

CPP, CF

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Já nos referimos, neste trabalho, às formas e funções desempenhadas pelo discurso

indireto como meio de persuasão. Nesse sentido, afirmamos que, ao produzirem seus

proferimentos, os sujeitos processuais principais (Juiz, Promotor e Defensor) recuperam os

depoimentos concedidos pelas testemunhas, tanto na fase policial quanto na fase judicial, e os

introduzem nas peças processuais que elaboram, sempre com um direcionamento persuasivo e

não meramente informativo.

Prosseguindo na análise do emprego do discurso relatado em nosso corpus, passamos

a abordar, a partir daqui, seu funcionamento como mecanismo argumentativo de manifestação

das representações sociais e estereótipos no discurso.

Discurso relatado, representações sociais e estereótipos

No interior do conjunto fluido e indeterminado do “já conhecido”, do “já-dito”, do

familiar e do partilhado, Amossy (2006) chama a atenção para as representações sociais que

emergem do discurso, de maneira mais ou menos implícita.

Com base em Moscovici (2003), Leyens (1986) define representação social como “um

processo de construção social do real que, de maneira esquemática, tenta explicar e

categorizar o real que nos rodeia; este processo vai, por sua vez, regular a dinâmica da

sociedade”. (LEYENS, 1986, p. 362). O autor enfatiza que ela não é apenas uma crença, mas

uma forma mesmo de construção da realidade e, como tal, produz efeitos sobre nossos

comportamentos.

Para Jodelet (2001), trata-se de “fenômenos complexos sempre ativados e em ação na

vida social”, que surgem como formas de conhecimento reveladas a partir de elementos

cognitivos, como imagens, conceitos, categorias, teorias. (JODELET, 2001, p. 21).

Ao investigar as representações sociais sobre a Justiça em Portugal, Leyens (1986)

chega à conclusão de que, nas relações entre Direito e sociedade, o pensar, por exemplo, que

“o mundo é justo e que cada um tem o que merece”, pode ter consequências consideráveis.

Nesse sentido, Franco atribui às representações sociais um caráter preditivo: “uma vez

que, segundo o que um indivíduo diz, não apenas podemos inferir suas concepções de mundo,

como também podemos deduzir sua ‘orientação para a ação’”. (FRANCO, 2004, p. 171)

Rodrigues, Sousa e Marques (1986) complementam que “ao determinar os

comportamentos face ao ‘real’, o ‘representado’ determina a estrutura e actividade social

objectiva. A representação social acaba, assim, por contribuir para a manutenção ou para a

transformação de uma estrutura social”. (RODRIGUES; SOUSA; MARQUES, 1986, p. 388).

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Cada área de pensamento aborda a temática das representações sociais de acordo com

seus métodos próprios de análise. Trata-se, portanto, de um tema transversal, que atravessa

diferentes campos de estudos.

Assim, na Psicologia Social, são aplicados questionários, entrevistas estruturadas e

outros métodos empíricos para se conhecerem as representações sociais dos sujeitos

pesquisados acerca de um determinado tema44.

No campo dos estudos da linguagem, mais particularmente na Análise da

Conversação, propõe-se um tratamento discursivo e conversacional para as representações

sociais.

Py (2000) trata dessa temática ao abordar os fenômenos de heterogeneidade

discursiva, postulando que esta última desempenha um papel fundamental na circulação dos

elementos dóxicos, de maneira geral, e das representações sociais, de maneira mais específica.

Serra (2000) também relaciona heterogeneidade discursiva e representações sociais ao

analisar dados de um corpus no qual aparecem várias instâncias enunciativas: o locutor

(falante), os participantes da conversação, outros locutores (às vezes coletivos) evocados

pelos falantes, e um enunciador anônimo, não especificado, responsável por proposições

genéricas que vão servir de tema para a interação conversacional.

Como afirma Serra (2000), no âmbito da análise da conversação, as representações

sociais veiculadas pelos discursos argumentativos ocupam posição central nos raciocínios

desenvolvidos no decorrer do jogo conversacional. Nesse sentido, a autora defende que as

representações servem para provar, motivar ou legitimar aquilo que se alega, ao instituir uma

relação simétrica entre a construção argumentativa do eu e do outro, apoiando-se na palavra

do discurso precedente e criando um novo discurso a partir da relação com os parceiros.

Serra (2000) considera ainda que a palavra cristaliza as representações. Py (2000)

acrescenta a ressalva de que, mesmo cristalizadas, as representações sociais são dinâmicas

(PY, 2000). Elas são colocadas em movimento por diversos processos de interação discursiva:

inicialmente, aparecem através de fórmulas estereotipadas, mas isso não significa que não

estejam sujeitas aos influxos das mudanças por atenuação, modalização ou redução no interior

do domínio discursivo em que são aplicadas, sobretudo quando contestadas por um

enunciador.

44 Um exemplo dessa forma de abordagem é a dissertação de mestrado de Pérez (2006). A pesquisa realizada por ela contemplou 147 mulheres que haviam se submetido a procedimento voluntário de aborto. Para a coleta dos dados, Pérez (2006) realizou entrevistas e aplicou teste de livre associação de palavras. Os aspectos quantitativos da pesquisa foram observados no processamento estatístico das informações por meio do software EVOC 2000. Em seguida, procedeu-se à análise temática dos dados.

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Na Análise argumentativa proposta por Amossy, assim como na vertente francesa de

Análise do Discurso, as representações sociais, que emergem de maneira mais ou menos

implícitas no discurso, são apreendidas pela noção de estereótipo:

[...] no sentido estrito do termo, o estereótipo pode ser definido como uma representação ou uma imagem coletiva simplificada e cristalizada dos seres e das coisas que herdamos de nossa cultura e que determinam nossas atitudes e comportamentos. Considerado tanto como uma crença como uma opinião comum, ele releva sempre do pré-construído e aparece frequentemente como um preconceito. (AMOSSY, 2006, p. 121, tradução nossa)45.

Assim, os elementos de estereotipia são identificados por meio de seus componentes

discursivos, como as escolhas lexicais, as imagens circulantes, o estudo dos implícitos.

Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) lembram que em todas as disciplinas, observa-se

uma tendência de se tratar da estereotipia como algo pejorativo, que dificulta a livre apreensão

do real, bem como a produção de algo original e inovador. Dessa forma, as autoras propõem

que a análise ideológica do estereótipo seja substituída por uma abordagem em que ele é

considerado um fenômeno inevitável, sem o qual não seria possível qualquer operação de

categorização, de generalização ou de construção da identidade dos interlocutores (AMOSSY,

2006).

Para a eficácia da palavra, aqui mensurada com base em seu poder de persuasão, o

estereótipo é muito importante, assim como os demais elementos dóxicos. A estereotipia

consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, na qual a

comunidade avalia e percebe o indivíduo e o classifica segundo um modelo pré-constituído.

Desse modo, “o estereótipo permite designar os modos de raciocínio próprios a um grupo e os

conteúdos globais do setor da doxa na qual ele se situa” (AMOSSY, 2005a, p. 126). Sob essa

perspectiva, um sujeito só pode representar os demais se os relacionar a uma categoria social,

étnica ou política, como por exemplo, a classe dos socialistas, dos comunistas, dos liberais,

das feministas, etc.

Leyens (1986) ressalta a funcionalidade social dessa atividade de categorização, ou

esquematização, afirmando que:

45 [...] au sens restreint du terme, le estéréotype peut se définir comme une représentation ou une image colletive simplifiée et figée des êtres et des choses que nous héritons de notre culture, et que détermine nos attitudes et nos comportements. Considéré tantôt comme une croyance et tantôt comme une opinion, il relève toujours du préconstruit e s’apparente souvent au préjugé.

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[...] nós não podemos saber de tudo em pormenor; nem podemos permitir-nos testar todas as hipóteses possíveis quanto à personalidade e ao comportamento das pessoas que encontramos pela primeira vez; temos que agir, que interagir o mais rápida e eficazmente possível sob pena de a interacção ficar por ali. (LEYENS, 1986, p. 361)

Nem sempre o estereótipo é enunciado com todos os seus atributos, o que demanda

uma atividade de “deciframento” acurada por parte dos alocutários, na qual as características

do grupo focado devem ser identificadas e relacionadas a um modelo cultural já existente. Daí

o caráter dialógico da estereotipia.

Amossy (2006) afirma que, na maioria dos casos, os dados discursivos são indiretos

ou implícitos, esparsos e lacunares, de modo que o estereótipo precisa ser recomposto a partir

de diversos elementos, para a identificação de um traço típico. No mesmo sentido, Authier-

Revuz postula que:

No caso do (ou, sem dúvida, ‘dos’) discurso(s) indireto(s) livre(s), da ironia, da antífrase, da imitação, da alusão, da reminiscência, do estereótipo (...) a presença do outro não é explicitada por presenças unívocas na frase: a ‘menção’ que duplica o uso que é feito das palavras só é dada a reconhecer, a interpretar, a partir de índices recuperáveis no discurso em função de seu exterior. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 17-18, grifo nosso).

Para Authier-Revuz (2004), essa forma de “jogo com o outro” opera no espaço do

implícito, do não-revelado, do enigmático e é muito usada por discursos de natureza retórica.

Trata-se de uma atividade de risco, pois o “deciframento” pode se dar de acordo com o

projeto do locutor, ou não.

Tomemos um exemplo de uma possível necessidade de “deciframento” no Acórdão

ora analisado:

No caso dos autos, constata-se que a prova médica foi contundente, não só nos depoimentos dos médicos, alarmados com o crescimento dos casos de aborto na cidade, bem como na juntada da ficha correspondente ao internamento da Recorrente no Pronto-Socorro, tudo por causa das complicações que teriam nascido de um quadro de aborto. (fls. 126)

Neste excerto, observa-se que havia uma crença compartilhada de que, cada vez mais,

mulheres estavam se submetendo a procedimentos de interrupção voluntária de gravidez na

cidade em que R foi processada. Essa crença foi disseminada entre os diversos sujeitos que

participaram da relação processual e foi veiculada logo na abertura do Inquérito Policial,

quando os funcionários da Santa Casa foram chamados a prestar depoimento. A partir dessa

crença, o locutor do proferimento em análise produziu o enunciado acima.

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Em uma atividade de deciframento dos elementos lacunares, podemos dizer que R foi

relacionada a um grupo de mulheres que, hipoteticamente, vinham praticando autoaborto na

cidade. Essas mulheres possuiriam em comum a característica de serem econômica e

socialmente desfavorecidas, já que se utilizavam de expedientes perigosos para induzir a

morte do feto, como a introdução de uma sonda no útero ou a ingestão de medicamentos

abortivos, em todos os casos, se sujeitando a consideráveis riscos de morte.

Ao sofrerem com as complicações advindas de procedimentos arriscados, tais

mulheres, pobres, recorreriam aos serviços públicos de saúde, onde possivelmente eram

recebidas como criminosas e não como pacientes em busca de atendimento médico. Essa

atitude dos funcionários públicos de denunciarem R à autoridade policial se relaciona à crença

na necessidade de punição a quem pratica uma conduta socialmente reprovável, até mesmo

para servir como exemplo para outras mulheres46.

A estereotipia é tanto mais necessária ao funcionamento argumentativo quanto maior a

plausibilidade que conferir à tese desenvolvida. No caso de R, identificada sua pertença a um

grupo determinado de mulheres, não causa estranhamento ao alocutário o raciocínio dedutivo

segundo o qual: muitas mulheres desfavorecidas estavam induzindo aborto no local. R tinha

sintomas de aborto. Logo, R interrompeu voluntariamente sua gestação.

Na tipologia de argumentos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), acreditamos que

esta forma de raciocínio receberia a classificação de argumento quase-lógico, construído à

base de uma relação de transitividade, segundo a qual é possível passar da afirmação de que

existe a mesma relação entre os termos “A e B”, “B e C” e “A e C”. Esse modo de construção

é conhecido como silogismo retórico, ou seja, não é um raciocínio perfeito, lógico, pois suas

premissas são distorcidas para adquirirem aspecto de lógicas.

Há ainda outro excerto deste Acórdão que nos parece interessante para ilustrar a

atividade de reconstrução de pistas lacunares do discurso. Vejamos:

Daí que, existindo fortes indícios sobre a autoria e a materialidade, outra solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada, preservando a competência constitucional do Tribunal do Júri (CF/1988, art. 5, XXXVIII). (fls. 131)

46 Nesse sentido, parece interessante registrar a conclusão de Debuyst, em pesquisa sobre as representações sociais da Justiça em Portugal, em que o autor identifica um sistema de filtragem do aparelho judiciário, responsável pela criação de bodes expiatórios: “[...] por um lado, existe uma zona, a que chamamos de ‘infrações ligeiras’ que poderiam ser facilmente descriminalizadas e face às quais o aparelho judiciário aparece como inadequado. Por outro lado, [...] existiria uma outra zona (as infrações graves) em que se deveria sobreinvestir ao nível da repressão e da vigilância. Qual é o sentido deste sobreinvestimento que nos parece ser, em grande parte, simbólico e que visa designar bodes expiatórios que a Justiça, por outro lado, cria através do seu sistema de filtragem?” (DEBUYST, 1986, p. 374).

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Neste excerto, o desembargador associa a pessoa do magistrado de primeiro grau, que

produziu a decisão de pronúncia de R, ao grupo social composto por juízes, investidos pelo

Estado na responsabilidade de zelar pela aplicação da lei e pelo bom funcionamento do poder

judiciário. Como membro de um grupo tão ilustrado e restritivo, esse magistrado não poderia

se manter inerte diante de indícios de interrupção voluntária de gravidez: seu papel, como

aplicador da lei e guardião da sociedade e da instituição judiciária, é o de mandar R a

julgamento, restando pouco ou nenhum espaço para manifestação da sua subjetividade

quando o assunto é o cumprimento da lei.

Em alguns textos, ao contrário, o estereótipo aparece de forma explícita, quando então

percebemos que seus constituintes são apresentados de modo visível. Não se torna necessária,

assim, uma atividade mais complexa de “deciframento”, ou de preenchimento das lacunas,

por parte do alocutário.

No acórdão ora analisado, destacamos, a este propósito, as formas de tratamento

empregadas para se fazer referência aos juízes, promotores, desembargadores, procuradores e

advogados, em oposição às formas empregadas para o réu. Como o lugar deste é desprovido

de qualquer prestígio, não há para o sujeito processado qualificações, senão aquelas previstas

na legislação, como: réu, acusado, investigado, indiciado, indigitado autor, etc.

Para os membros da justiça, portadores de grande capital simbólico, são utilizadas

fórmulas já cristalizadas, repetidas desde longa data sem que os interlocutores questionem seu

sentido e que, de tão usuais, podem ser até mesmo arbitrariamente abreviadas, já que os

destinatários do proferimento são capazes de reconhecer seu significado de forma

praticamente automática.

Assim como os sujeitos membros da Justiça, seus atos, órgãos e proferimentos

também são frequentemente acompanhados de qualificativos, como em: MM. Juiz de Direito;

douta Procuradoria de Justiça; colendo Superior Tribunal de Justiça; lapidar acórdão; excelso

Supremo Tribunal Federal; eg. [egrégio] Tribunal de Justiça de Minas Gerais; i. [ilustre]

Procurador de Justiça.

Até esse momento, discorremos sobre a função da estereotipia para a plausibilidade do

discurso argumentativo. Propomos agora uma reflexão sobre o papel dos estereótipos no

processo de construção de imagens de si e do outro que circulam no discurso argumentativo.

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Ethos e estereotipia

Com apoio em Amossy (2005a), pode-se afirmar que o processo de construção de

imagens ocorre do seguinte modo: na relação constitutiva entre as partes argumentantes, a

doxa adquire o sentido de saber prévio que o auditório possui sobre o orador. Ao tomar a

palavra, o orador faz uma idéia de seu auditório e da maneira pela qual será percebido;

ampara, então, seus argumentos sobre a doxa e modela seu ethos pelas representações

coletivas que acredita terem valor positivo aos olhos do auditório. Nas palavras da autora:

O orador adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados por seu público alvo. Ele não o faz somente pelo que diz de sua própria pessoa (freqüentemente, não é de bom-tom falar de si), mas também pelas modalidades de sua enunciação. É então que ele incumbe o receptor de formar uma impressão do orador relacionando-o a uma categoria conhecida. O discurso lhe oferece todos os elementos de que tem necessidade para compor um retrato do locutor, mas ele os apresenta de forma indireta, dispersa, lacunar ou implícita. (AMOSSY, 2005, p. 126-127).

Assim, no excerto supra-analisado, quando o Desembargador afirma que “outra

solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada”, ele está oferecendo

pistas para que o alocutário tenha uma imagem positiva desse magistrado, relacionando-o à

categoria dos membros do Poder Judiciário que cumprem seu dever com desvelo e atenção.

Da mesma forma, ao concordar com a posição defendida por este magistrado “competente e

zeloso”, o Desembargador pleiteia também para si as virtudes que atribuiu ao colega da

instância inferior.

No mesmo sentido, os qualificativos empregados para designar os membros do

Judiciário e seus atos realizados no curso do processo podem ser compreendidos em sua

função argumentativa de construção de imagens positivas dos sujeitos processuais principais,

em oposição à imagem negativa da ré, que ao longo do feito, foi relacionada a categorias

desprovidas de prestígio social.

Reafirmamos, assim, a importância dos processos de estereotipia para o bom

funcionamento da argumentação, tanto como apoio para as premissas assumidas quanto para a

construção de imagens de si e do outro no discurso.

Amossy (2006), ao explicar o papel do estereótipo enquanto esquema ativado pelo

destinatário e relacionado a um modelo cultural conhecido, faz, contudo, uma ressalva quanto

a sua contribuição à eficácia dos discursos de visée persuasiva. Relativizando seus efeitos, a

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autora defende que o estereótipo favorece a empresa de persuasão, mas também pode

prejudicá-la em algumas situações, como por exemplo:

Se, com efeito, o alocutário detecta facilmente no discurso as representações sociais que pertencem ao grupo adverso ou que, por uma ou outra razão, lhes parecem inadmissíveis, a simples presença do estereótipo será suficiente para desqualificar as posições do argumentante. Se, ao contrário, ele adere às imagens que são colocadas sob seus olhos, ele poderá se deixar levar pela argumentação que se alimenta das representações procedentes de sua própria visão de mundo. (AMOSSY, 2006, p. 123).

Parece interessante, nesse ponto, retomar a discussão sobre a questão da eficácia da

palavra pela articulação entre discurso, especialmente na modalidade argumentativa, estatuto

do sujeito e complexo institucional.

Já afirmamos neste trabalho que, para Bourdieu (2008), ser ouvido e respeitado é uma

questão de autoridade, que depende unicamente do estatuto que o locutor ocupa na estrutura

social.

Maingueneau (2008), por sua vez, entende que os próprios enunciadores definem seu

“estatuto” e seu “modo de enunciação”, inscrevendo a si e a seus enunciatários em uma certa

posição social, marcando sua relação com um determinado saber e legitimando sua fala.

Já para Amossy (2005b), o estatuto do locutor e o quadro institucional no qual ele

profere sua palavra são importantes, mas não garantem por si sós a eficácia da palavra. Sendo

assim, o mecanismo de construção de imagens torna-se fundamental para a empresa da

persuasão.

No caso dos autos ora analisados, juízes, promotores, desembargadores, como

membros do Poder Judiciário, por seu próprio estatuto e pela posição ocupada na instituição

judiciária, parecem ter uma grande vantagem sobre a ré no que diz respeito às imagens

prévias que circulam de si no meio social. Mas isso, apenas, não garante o sucesso de suas

teses em qualquer embate argumentativo travado nos limites do processo. A imagem prévia

precisa ser corroborada por elementos discursivos, como os que demonstramos acima.

Para essa finalidade de “reforço” da imagem prévia por meio de elementos

discursivos, acreditamos que uma estratégia utilizada pelo Desembargador da peça em análise

é a citação de autores renomados da literatura jurídica, de decisões proferidas pelos Tribunais,

em outros casos, e de dispositivos de lei. Como já demonstramos, o mecanismo de

agenciamento de vozes é importante para dar plausibilidade às teses defendidas pelo

Desembargador, mas nos parece que também tem consequências para a constituição de sua

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imagem de jurista estudioso, afinado com a evolução da ciência do Direito, que procura

fundamentar suas decisões com o que há de mais moderno na doutrina e jurisprudência.

Considerações

Finalizando a análise do Acórdão, acreditamos ser conveniente ressaltar dois pontos

que caracterizam os discursos de natureza decisória, de maneira geral, e que foram descritos

de forma pontual nesse proferimento: o dialogismo na formação do juízo decisório e a

realização de ações por meio da linguagem.

A respeito do dialogismo na formação do juízo decisório, transcrevemos a elucidativa

observação de Bittar:

Se nenhum discurso se forma ex nihilo, é porque existem regras e coerções que impedem o arbitrário da decisão unilateral, de modo que se avoca, para perto de toda decisão, uma conjuntura de elementos que passa a caracterizar sua própria corporeidade. Provas, escritos, documentos, textos, interpretações de normas e fatos se encontram para formar o conjunto de instrumentos pelos quais se decide, e isso dentro de regras (procedimentos processuais) que disciplinam os meios, os momentos, os modos, as técnicas... de influir na persuasão racional do juiz. Outras regras presidem, também, os meios de valoração das provas, textos, normas... pelo julgador, a partir do momento em que, dos entremeios dessa textualidade, extrai o discurso decisório judicial. (BITTAR, 2009, p. 316-317).

Quanto à performatividade, são aplicáveis aqui as observações formuladas

relativamente à Sentença de Pronúncia. O acórdão pode confirmar uma decisão de primeira

instância ou então alterá-la, sempre com consequências para a situação jurídica de um sujeito,

pelo simples fato de sua enunciação com caráter de publicidade e oficialidade.

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6.5 Preparação para a Sessão de Julgamento

Com a manifestação da instância decisória, encerrou-se a primeira fase do processo

dos crimes de competência do júri. A partir desse momento, começa a segunda fase desse

processo, esta sim, com procedimentos muito peculiares a serem observados.

Assim que os autos retornaram à Secretaria da comarca onde tramitaram, abriu-se

vista ao Promotor de Justiça para o oferecimento de “Libelo”.

O Libelo é uma peça muito simples, sucinta, que deve conter a “imputação e o pedido

de condenação a fim de que, desse modo, a acusação esteja completa e íntegra” (MIRABETE,

2001, p. 498).

O Defensor foi notificado para que oferecesse resposta. Contudo, declinou da

nomeação, o que levou o Juiz a nomear outro Defensor para a ré (o quarto), que apresentou a

contrariedade ao Libelo.

Ao tentar intimar a ré da Sentença de Pronúncia que pesava contra ela, o Oficial de

Justiça constatou que ela não mais residia no endereço constante dos autos, encontrando-se

em local incerto e não sabido. O Promotor requereu a decretação de sua prisão preventiva, no

que foi atendido pelo Juiz. A acusada, na verdade, já se encontrava detida na Cadeia Pública

local, por ter sido condenada na outra ação penal que a Justiça Pública lhe movia, por tráfico

de entorpecentes.

Iniciaram-se os preparativos para a realização da Sessão de Julgamento. O Juiz, agora

na qualidade de Presidente do Tribunal, marcou dia para o julgamento e para o sorteio dos

jurados. Os vinte e um jurados sorteados foram convocados a comparecer na sessão de

julgamento por meio de edital e de intimação pessoal.

Esclarecemos que os gêneros processuais escritos produzidos nessa fase – o Libelo

Crime Acusatório e o Contra-Libelo – têm estrutura composicional bastante rígida, com muito

pouco espaço para inovações por parte de seus produtores. São peças simples, concisas, de

poucas linhas, caracterizadas por um vocabulário formulaico. Por isso, deixamos de analisá-

las e passamos à abordagem da última etapa do processo selecionado como corpus.

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6.6 A Sessão de Julgamento

No dia designado, presentes 18 jurados dos 21 convocados, foram abertos os trabalhos

de julgamento da ré. Na ata da sessão do Tribunal do Júri, foram consignados os principais

fatos ocorridos durante o evento. Como não presenciamos o julgamento, tivemos que nos ater

a este documento para reconstituir a cena que ali se delineou47. Os dispositivos da lei

processual penal também auxiliaram nessa reconstituição, uma vez que os atos processuais a

serem realizados em uma sessão como esta são taxativamente definidos pela lei.

[...] presente o MM. Juiz de Direito da Comarca e Presidente do Tribunal [...], o Promotor de Justiça [...], comigo, Escrevente do Júri, que esta subscreve, e os oficiais de Justiça servindo de Porteiro do Tribunal [...] e os estagiários do curso de direito [...]. (Escrevente).48

O ritual inicia-se com a chamada dos jurados: “pelo MM. Juiz, depois de verificar,

publicamente, a urna que continha 21 cédulas, com os nomes dos jurados sorteados, mandou

que procedesse à chamada” (fls. 164).

Instalados os trabalhos, o próximo ato é o pregão: “Apregoadas as partes, compareceu

a ré a quem o MM. Juiz perguntou o seu nome, idade e se tinha advogado ao que respondeu

chamar R, 25 anos de idade e que tinha advogado na pessoa do Dr., ao que o MM. Juiz

convidou o defensor a tomar assento na Tribuna da defesa” (fls. 165).

Em seguida, tem-se a formação do Conselho de Sentença:

Verificado pelo MM. Juiz que se encontravam dentro das respectivas urnas as cédulas relativas aos jurados presentes, anunciou que ia proceder ao sorteio dos Sete jurados que deveriam compor o CONSELHO DE SENTENÇA. Advertiu os jurados dos impedimentos entre si, das incompatibilidades legais, e da proibição de se comunicarem com outrem, ou de manifestarem a sua opinião. À medida que eram as cédulas extraídas da urna, o Juiz lia em voz alta os nomes contidos na mesma. Foram sorteados e aceitos para constituírem o conselho de sentença, os jurados seguintes: [...] (Escrevente)49.

Definidos os sete jurados, o Juiz fez a exortação, proferindo tradicional fórmula do

Direito (fls. 171): “Em nome da Lei, concito-vos a examinar com imparcialidade essa causa e

a proferir vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da Justiça”, ao que

47 É importante esclarecer que as alegações orais produzidas pelo Promotor de Justiça e pelo Defensor não foram transcritas a termo, ou seja, o inteiro teor desses proferimentos não consta da ata da Sessão de Julgamento. Dessa forma, não tivemos acesso a seu conteúdo, o que nos impossibilitou de proceder à sua análise. 48 Ata da Sessão de Julgamento, fls.164. 49 Ata da Sessão de Julgamento, fls. 165.

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os jurados responderam “assim o prometo”. Cada jurado recebeu, então, cópia da decisão de

pronúncia. Em seguida, como não foram arroladas testemunhas para novamente deporem em

plenário, passou ao interrogatório da ré. Diante do Júri Popular, ela afirmou não ter cometido

crime de aborto.

O Juiz fez então o relatório do processo, expondo os atos, as provas e as conclusões

das partes, sem manifestar a sua opinião.

A palavra foi inicialmente concedida ao Promotor de Justiça, que leu o libelo-crime

acusatório, os dispositivos da lei penal e produziu a acusação durante 67 minutos. Nesse

momento, o Promotor de Justiça é o orador e seu auditório, ou seja, as pessoas a quem quer

influenciar com sua argumentação, é fundamentalmente o corpo de jurados, já que eles têm o

poder de decisão sobre o destino da ré.

Em seguida, passou-se a prerrogativa da palavra ao Defensor, que proferiu a defesa

durante 34 minutos. Esse formato em que primeiro se manifesta o promotor, depois o

defensor, faz com que o pronunciamento da defesa seja construído pela apropriação do

discurso da acusação, para então promover a refutação dos argumentos apresentados por ela.

Concluídos os debates, o Juiz indagou aos jurados se consideravam-se habilitados a

julgar a causa ou se precisavam de mais esclarecimentos. Leu os quesitos formulados e

explicou o significado legal de cada um, perguntando às partes se tinham algum requerimento

ou reclamação a fazer, ao que obteve resposta negativa. Anunciou que ia proceder ao

julgamento, mandando retirar o réu e convidando os presentes a deixarem a sala.

Fechadas as portas, seguiu-se a votação dos quesitos, sendo observada a completa

incolumidade dos jurados do Conselho entre si e entre outras pessoas, tanto durante os

trabalhos secretos de votação de quesitos, como durante os anteriores trabalhos públicos da

sessão.

O quesito de número 1 questionava aos jurados se a acusada, no dia declinado na

Denúncia, estando no interior de sua residência, havia provocado aborto em si própria. Três

jurados responderam que sim, enquanto quatro responderam de forma negativa. Os três

quesitos seguintes restaram prejudicados. Com isso, a ré foi absolvida pelo Conselho de

Sentença, com o resultado de quatro votos a favor e três contra, ou seja, por muito pouco ela

não foi condenada.

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6.6.1 Aborto, direito e justiça: considerações sobre orador, auditório, elementos dóxicos e

provas do discurso, a partir do veredicto do Conselho de Sentença

Como nessa última etapa do Tribunal do Júri o veredicto final cabe aos jurados, sendo

o juiz apenas o responsável pela direção do processo e pela fixação da pena a ser cumprida

pelo condenado, os discursos da acusação e da defesa são dirigidos, ao mesmo tempo, a vários

alocutários, o que exige um cuidado especial na formulação dos argumentos. Esse auditório

composto pelo corpo de jurados configura-se, assim, como um espaço heterogêneo, no qual

estão inscritos diferentes atores sociais.

A lei processual penal prescreve apenas que os juízes leigos sejam cidadãos de notória

idoneidade moral, maiores de 18 anos, brasileiros e residentes na comarca, não exigindo,

portanto, que tenham conhecimentos jurídicos. No caso em análise, o Conselho de Sentença

foi composto por um engenheiro civil, um professor, uma estudante, um técnico em

agrimensura, dois comerciantes e um cirurgião dentista.

Assim, diferentes formações culturais, étnicas, sociais, econômicas, etc., poderão estar

representadas em um Conselho de Sentença e caberá ao orador tecer sua argumentação na

medida das crenças e dos saberes partilhados por esse auditório tão multifacetado. Como já se

afirmou, apoiar a argumentação em elementos dóxicos genericamente aceitos pelo auditório é

um passo importante para garantir sua adesão às teses apresentadas.

Nos limites do discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri e, mais

especificamente, no corpus analisado, tanto o Promotor de Justiça quanto o Advogado de

Defesa buscaram seus argumentos no celeiro de uma pretensa cientificidade, trazendo a tona

teses baseadas na interpretação da norma jurídica, apelando sobretudo para elementos da

legislação processual relacionados à comprovação da materialidade do delito.

Quando selecionamos esse processo para compor o corpus da pesquisa, supomos estar

diante de um caso concreto de interação judiciária no qual predominaria uma construção

discursiva voltada para a dimensão patêmica da trilogia aristotélica, já que o crime de aborto

associa-se a uma doxa que remonta a elementos relacionados ao pathos, como vida do feto,

integridade da mãe, liberdade sexual, direitos reprodutivos, o papel dos gêneros masculino e

feminino na sociedade, valores morais e religiosos, etc.

Por se tratar da apuração de um crime de autoaborto praticado por uma mulher pobre,

negra, sem instrução, emprego ou estrutura familiar, completamente à margem da sociedade,

imaginamos que o Defensor mobilizaria todos os recursos discursivos para direcionar as

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emoções (piedade, equidade, justiça social, etc) do julgador e do Corpo de Jurados rumo ao

veredicto final de absolvição de R.

Acreditávamos que o Promotor de Justiça apelaria também para o sentimento das

instâncias julgadoras, sobretudo dos membros do Conselho de Sentença, baseando seus

proferimentos na crença compartilhada socialmente sobre a origem divina da vida humana, da

abominação social ao aborto induzido, da crença no instinto maternal, da expectativa em torno

do potencial da criança que “poderia ter sido e não foi”.

Contudo, ao analisar as peças processuais produzidas ao longo dos autos, não foi esse

o quadro que encontramos. Parece-nos que, nesse caso particular de interação judiciária no

Tribunal do Júri aqui analisada, sobressaiu a dimensão lógico-retórica do discurso

argumentativo, já que as instâncias de acusação, defesa e julgamento se ativeram ao

gerenciamento de recursos técnicos em seus projetos discursivos, fundamentados na discussão

sobre a materialidade delitiva (corpo de delito ausente/insuficiente/nulidade).

Outra questão a se pensar é que tanto a defesa quanto a acusação se abstiveram da

discussão acerca do mérito da prática de autoaborto. Em outras palavras, queremos dizer que,

ao adotar a estratégia de declarar sua cliente inocente, o Defensor desviou-se do cerne da

questão, contornando a necessidade que teria de abordar uma temática ainda tão conflituosa

no meio social. Com isso, não precisou comparar o valor da “vida do feto em formação” ao

valor da “liberdade reprodutiva da mulher”, por exemplo, o que certamente provocaria um

conflito com o pensamento de alguns jurados, pois cada um pode hierarquizar esses valores de

forma diferente.

Lembramos que, no meio social, encontramos pessoas que defendem a

descriminalização ampla do aborto, inclusive com a obrigatoriedade de atendimento público

para as gestantes que queiram se submeter a essa prática; pessoas que defendem uma

descriminalização com ressalvas, segundo um critério de prazos e indicações estipulados

legalmente; outras que admitem a figura do aborto apenas como último meio de salvar a vida

da mãe e, finalmente, pessoas que não o admitem em hipótese alguma.

O Defensor isentou-se também de tocar em questões referentes à desigualdade social,

ao tratamento dado pela Justiça, pelo Estado e pela sociedade a homens e mulheres que fazem

parte das chamadas minorias sociais, que têm menor poder aquisitivo, menor grau de

instrução, etc, como parece ser a situação da ré.

No que diz respeito ao Promotor de Justiça, a opção pela elaboração de peças

processuais mais “técnicas” permitiu a ele que se mantivesse distante dos aspectos polêmicos,

éticos e morais, de se processar uma mulher pela suposta prática de aborto.

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Essas observações nos fazem crer que houve uma abordagem tradicional e, talvez,

superficial, do caso. Em outros termos, diríamos que o debate se manteve no nível do direito

positivo, ou seja, a dinâmica argumentativa se encerrou nos limites do dever ser, afastando-se

do nível axiológico. Nesse sentido, parece interessante transcrever a seguinte observação de

Brum:

Não resta a menor dúvida de que na dimensão axiológica da sentença está sua parte mais difícil, porque os valores incrustados na significação de base da norma legal podem estar em conflito com os valores predominantes na realidade social. A exigência de que a decisão, além de legal, deve ser justa, coloca o julgador muitas vezes diante do dilema de optar entre a legalidade e a eqüidade e, ao mesmo tempo, deixar a impressão de que não houve tal opção valorativa. Compatibilizar o incompatível é uma das tarefas que se pede ao órgão decisório, coisa que somente é viável no terreno retórico. (BRUM, 1980, p. 82-83).

Fagundes (1994), ao dissertar sobre o Tribunal do Júri, afirma que, no lugar da

promotoria, o objetivo principal do discurso é o de defender um ponto de vista sem colocar

sob suspeição o sistema jurídico.

Para o advogado de defesa, cabe o papel de levantar suspeitas acerca do

funcionamento local do sistema de investigação (policial e jurídica) e a aplicabilidade da

norma genérica à circunstância. Assim, apenas aparentemente o discurso da defesa é contrário

à lei: na verdade, ele submete-se a um processo baseado na lei.

Por sua vez, a sociedade julga reproduzindo a ideologia de, a cada caso particular,

aplicar o sistema genérico, que em si é tido como “perfeito e completo” (FAGUNDES, 1994).

Nas palavras da autora, “trata-se de criticar localmente, aceitando e mantendo o

sistema jurídico, condição necessária para a produção do discurso e da discussão.”

(FAGUNDES, 1994, p. 128-129).

Nesse sentido, observamos que os sujeitos que participaram desse embate judicial

parecem ter travado entre si um acordo prévio no qual tacitamente aceitaram a lei posta como

legítima: mais que o atributo da legalidade, teria sido reconhecido à tipificação do aborto o

caráter de justo. Assim, não havia porque contestarem a letra da lei, não havia espaço para

argumentos baseados na livre disposição do corpo pela mulher ou na sua liberdade

reprodutiva. Restava apenas o questionamento sobre a comprovação, ou não, da prática

delitiva. E foi nesse sentido que o feito caminhou, pois desde a instauração do procedimento

penal, o Advogado batalhou pelo reconhecimento da insuficiência das provas, enquanto o

Promotor afirmava ser suficiente o laudo médico supostamente produzido sem observância

das formalidades legais.

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Os poucos momentos em que a discussão se encaminhou para outro lado foram

protagonizados pela ré, nos primeiros depoimentos que ela prestou junto à autoridade policial

(na Delegacia) e ao Juiz, na primeira fase do Processo.

Para entendermos melhor essa afirmação, transcrevemos, em seguida, trechos de

depoimentos da ré coletados em três momentos processuais distintos, nos autos do processo

que constitui nosso corpus: o primeiro termo de declarações, colhido pelo Delegado de

Polícia na fase de Inquérito Policial (fls. 34); o segundo interrogatório, colhido pelo Juiz de

Direito, na audiência de instrução (fls. 60) e o terceiro interrogatório, realizado também pelo

Juiz, na Sessão de Julgamento (fls. 172).

6.6.1.1 O depoimento na Delegacia de Polícia

No primeiro depoimento, a ré diz o seguinte:

QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de ano 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar; QUE, comprou a sonda e sozinha praticou o aborto; QUE, não teve orientação de nenhuma outra pessoa; QUE, o motivo foi que já possuía um casal de filhos sendo um com quatro e outra com dois anos de idade e que não tem condições financeiras para cuidar de todos e ainda na época morava com sua prima; QUE, foi o único aborto que praticou; QUE, faz uso de bebida alcoólica, fuma cigarros, não faz uso de drogas, não faz uso de remédio controlado, nunca foi internada em casa de tratamento de doenças mentais, já teve envolvimentos com brigas e já foi processada cumprindo pena até a presente data. (R)50

Nesse primeiro excerto, a locutora R tem como alocutário direto o Delegado de

Polícia. Vislumbramos aqui o seguinte quadro enunciativo:

Locutor : Ré

Enunciação

(EÃO)

Enunciado: QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de ano 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar;

Alocutário: Delegado de Polícia

Quadro 41: Condições enunciativas do depoimento de R na Delegacia de Polícia Fonte: Elaborado pela autora

50 Primeiro interrogatório perante o Delegado de Polícia, fls. 34.

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Quando prestou esse depoimento, R não estava acompanhada por um advogado de

defesa. Falando em seu próprio nome, teve a primeira oportunidade concreta de desconstruir a

imagem negativa de si que circulava no meio policial.

Como se sabe, ainda que não pese sobre o investigado uma condenação formal, já na

fase do Inquérito Policial, ele é socialmente julgado e condenado pelo público. No caso de R,

a reprovação social de sua conduta é forte, já que boa parte da sociedade não admite que

mulheres atentem contra o “instinto maternal”, que se acredita existir naturalmente no sexo

feminino.

A fala da acusada sobre si mesma servirá de matéria-prima para que o Promotor de

Justiça e o Defensor elaborem os seus proferimentos ao longo do processo, tomando de

empréstimo o que lhes for conveniente e refutando aquilo que possa comprometer a força

persuasiva de sua argumentação.

Talvez por desconhecer os meandros da justiça, R confessa explicitamente a prática

criminosa e apresenta detalhes do procedimento que teria adotado para provocar a morte do

feto que gerava em seu ventre.

Respondendo às perguntas elaboradas pelo Delegado, age de forma a dificultar

posteriormente o trabalho da defesa, reforçando a imagem de que era inconsequente (“faz uso

de bebida alcoólica, já se envolveu em brigas e já foi processada”) e descompromissada com

o papel a ser teoricamente cumprido por uma mulher “de bem” na tradicional sociedade

católica mineira: uma boa mãe, ainda que miserável e sacrificada.

Essa constatação vai ao encontro das observações que Pérez (2006) reúne ao analisar

representações sociais de mulheres que praticaram autoaborto:

Em nossa cultura, o sofrimento e o sacrifício são vistos como condições necessárias à maternidade. Desta forma, a boa mãe seria a que sofre bastante na gravidez e mais ainda no parto, que sacrifica sua vida profissional e sexual pelo amor e doação aos filhos e que aceita passiva e alegremente cada um destes limites e dores como conseqüências naturais da maternidade. (PÉREZ, 2006, p. 66).

Percebemos que a ré enfrenta, de alguma maneira, esse consenso supostamente

generalizado quanto à necessidade de tipificação do aborto, tanto que elabora uma

justificativa para o ato que a acusam de ter praticado. Sua justificativa, situada no campo das

dificuldades econômicas de se criar mais um filho, é mais aceitável, do ponto de vista social,

do que se tivesse afirmado cabalmente que não desejava a maternidade (ARDAILLON,

1994).

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6.6.1.2 O depoimento diante do Juiz de Direito

No segundo excerto, transcrito em seguida, a locutora tem o Juiz de Direito como

alocutário imediato:

Locutor : Ré

Enunciação

(EÃO)

Enunciado: QUE são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto [...]

Alocutário imediato: Juiz de Direito

mediato: Promotor, funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc

Quadro 42: Condições enunciativas do interrogatório de R pelo Juiz de Direito Fonte: Elaborado pela autora

Nesse momento, ela continua confessando a conduta criminosa, ao mesmo tempo em

que novamente busca justificar seu ato por meio de suas condições precárias de vida. Parece-

nos que há um cuidado um pouco maior com sua imagem, que pode ter sido orientado pelo

Advogado de defesa que passou a atuar no processo. Vejamos:

QUE são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto; que em sua casa introduziu essa sonda na vagina causando a morte do feto, que fez isso por volta de meio dia; que passados uns 15 dias a depoente começou a ter febre, inclusive foi para a cama; que aí procurou a Santa Casa; que ao chegar na Santa Casa verificou que infeccionou; que o médico pediu que enquanto a depoente não dissesse a verdade não iria olhá-la; que nisso a depoente ficou calada; que no outro dia a depoente contou o que tinha feito e foi diretamente para a sala de cirurgia para fazer a curetagem pois a infecção já havia aumentado e atingido o útero da depoente; que fez isso porque já tinha uma menina de 9 meses, estava morando com sua prima e estava muito difícil; que já foi presa e processada criminalmente; que não bebe, não fuma e não usa drogas; que nessa época já estava separada de seu marido; que não tem condição de pagar um advogado. (R)51

6.6.1.3 O depoimento diante do Conselho de Sentença

No terceiro excerto, a locutora tem, no seu universo de alocutários, os jurados do

Conselho de Sentença:

51Primeiro interrogatório em Juízo, fls. 60.

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Locutor : Ré

Enunciação

(EÃO)

Enunciado: Que não tinha certeza que estava grávida; que estava sentindo muitas cólicas e febre [...]

Alocutário imediato: Jurados (Conselho de Sentença)

mediato: Juiz de Direito, Promotor, funcionários da Justiça, jurados, público, etc

Quadro 43: Condições enunciativas do depoimento de R diante do Conselho de Sentença Fonte: Elaborado pela autora

O conteúdo de seu depoimento é completamente diverso do que vinha declarando até

então. De uma maneira geral, R nega a prática de aborto voluntário e levanta dúvidas acerca

de seu estado de gravidez. Identificamos aqui um processo de recuperação de sua imagem

atrelada à desconstrução da imagem do médico da Santa Casa, no momento em que ela afirma

que este se negou a atendê-la e, por isso, levou-a a introduzir uma sonda no útero, como uma

tentativa desesperada de se fazer ouvir.

Ao mesmo tempo, R reivindica para si a crença compartilhada no instinto maternal da

mulher, explicitando que “sempre cuidou e manteve os seus outros dois filhos na sua

companhia”:

Que não tinha certeza que estava grávida; que estava sentindo muitas cólicas e febre; que não chegou a ser examinada por nenhum médico; que o Dr. _ só ia atender se ela falasse a verdade; que tinha passado a sonda para ver se ele a atendia; que não é verdade que não queria o filho; que sempre cuidou e manteve os seus outros dois filhos na sua companhia. (R)52

Percebe-se, assim, que houve uma alteração significativa na imagem criada por R

desde os seus dois primeiros depoimentos (quando confessa o crime, se diz usuária de bebida

alcoólica e justifica a prática voluntária de aborto por sua situação de pobreza), até o

depoimento na fase final, quando se nota cautela e um grau maior de elaboração em sua fala.

Retomando a discussão sobre o papel da estereotipia no processo de construção de

imagens de si e do outro que circulam no discurso argumentativo, pensamos que, com essa

mudança de depoimento, R tentou se afastar da categoria de mulheres que vinham praticando

autoaborto na cidade, com a qual ela havia sido identificada nos depoimentos das

testemunhas.

52 Depoimento prestado na Sessão de Julgamento, fls. 172.

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Com a nova versão apresentada para os fatos, sua categorização poderia ser alterada,

harmonizando-se com a categoria das mães sacrificadas, que a despeito das condições

precárias de vida, aceitam seus filhos e cuidam deles com todas as dificuldades. Com isso, a

ré parece ter finalmente aderido ao acordo tácito travado entre acusação e defesa,

compreendendo as regras do jogo retórico que haviam sido adotadas em seu julgamento.

6.6.1.4 Considerações

De acordo com Ardaillon (1994), o Júri é muito pouco condenatório em relação ao

crime de aborto, especialmente quando o acusado é a gestante que provoca em si mesma a

interrupção da gravidez. No entanto, ainda conforme essa pesquisadora, a sociedade faz

questão de que essa conduta – o aborto voluntário – esteja no rol dos crimes previstos pelo

Código Penal. Qual seria, então, a lógica do Júri Popular, que é constituído por membros

dessa sociedade que investe na tipificação criminal do aborto e sente, ao mesmo tempo, um

constrangimento em condenar quando é chamada a julgar um suposto criminoso?

A autora afirma que existe, entre os atores que atuam no Júri, uma “intenção” prévia,

que pode ser de natureza absolutória ou condenatória, identificada nas sentenças do Juiz, nas

denúncias do Promotor, nas alegações da defesa e nos votos dos jurados. Essa intenção estaria

sujeita aos influxos das crenças compartilhadas por tais atores, já que “os membros do

judiciário não são isentos de ideias preconcebidas em relação à questão do aborto e em

relação ao que deva ser a sexualidade de uma mulher. Elas jorram das dobras dos processos,

particularmente quando as provas não são contundentes.” (ARDAILLON, 1994, p. 240).

Assim, “dependendo das circunstâncias e da disposição do promotor e do juiz em

relação ao aborto, será dado maior ou menor peso ao laudo de exame de corpo de delito, à

confissão da gestante a aos depoimentos das testemunhas.” (ARDAILLON, 1994, p. 240).

A chamada intenção condenatória parece se manifestar naqueles processos em que está

em jogo a preservação da moralidade: quando a gravidez é resultante de relação

extraconjugal, por exemplo; ou se o aborto foi cometido porque a gestante simplesmente não

desejava a maternidade (e aí não se admite a ausência de um instinto maternal); ou, ainda, se a

mulher é considerada uma “devassa”.

Já a intenção absolutória teria lugar nos casos em que a gestante transmite uma

imagem de mulher ignorante, frágil, inocente, enganada por um homem que não quis assumir

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nenhuma responsabilidade. O mesmo se verifica quando a gestante alega ter agido sob a

pressão de um estado de necessidade, incluídos sob essa designação problemas financeiros e

medo da condenação social.

Aplicando esse raciocínio ao caso analisado neste trabalho, questionamos se é possível

identificar, entre os sujeitos que nele atuaram, uma intenção condenatória ou se, ao contrário,

havia uma intenção absolutória entre eles.

Para refletir sobre essa questão, devemos nos recordar que, até um certo momento, a

decisão sobre o caso esteve concentrada nas mãos de membros do aparelho judiciário, como o

Juiz de primeira instância e os Desembargadores do Tribunal de Justiça. O Juiz de primeira

instância, que presidiu o processo, decidiu pela pronúncia da ré, afirmando que havia

elementos probatórios suficientes para sua condenação. Esta era também a tese defendida pelo

Promotor de Justiça responsável pelo processo: o caso, que poderia ter sido arquivado a seu

pedido logo no início, chegou até a fase máxima, que foi a Sessão de Julgamento pelo Júri

Popular.

Inclusive, quando o Juiz pronunciou a ré, o Tribunal de Justiça ratificou sua decisão

em grau de recurso, o que mostra que havia a crença em um conjunto probatório

razoavelmente forte para lastrear uma condenação, ou pelo menos, uma clara intenção no

sentido condenatório.

Quando a decisão saiu das mãos dos sujeitos especialistas e se tornou prerrogativa de

um tribunal popular, contrariando todas as expectativas no sentido da condenação, a ré foi

absolvida.

Encontramos na jurisprudência criminal a afirmação de que para a condenação da ré, é

necessária a prova da gravidez da mulher, não a suprindo a confissão da gestante, nem meros

indícios. E mais: “ficha clínica mencionando restos ovulares não substitui o exame [de corpo

de delito]; na falta de certeza da gravidez, por inexistir exame histológico para se aferir se o

feto tinha vida, absolve-se.” (TJSP, RT 697/352, citado por DELMANTO et al, 1998, p. 237).

Se pensarmos que não havia nos autos uma prova efetiva de que R estivesse mesmo

grávida; que, ainda que ela estivesse gerando um filho, não havia prova de que o feto era

viável e que, por fim, não foi realizado Exame de Corpo de Delito, como justificar que um

processo fundamentado em provas tão frágeis, como a mera confissão da ré, tenha ido tão

longe? Seria mais um indício de que havia uma intenção condenatória por parte dos membros

da Justiça?

Nos limites deste trabalho, torna-se impraticável tentar formular respostas para as

questões aventadas. Na verdade, nossa pretensão era mesmo a de lançar novos elementos para

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incitar a discussão sobre essa antiga e polêmica temática. Mas, de qualquer forma, parece-nos

oportuno concluir com a afirmação de que o resultado final (de quatro votos a favor da

absolvição e três contrários) ilustra a observação de que, em um processo judicial, a verdade é

construída nos próprios autos, discursivamente, através da fala dos sujeitos que nele atuam,

pois são eles que apresentam formalmente os fatos, discutem as provas, solicitam a realização

de diligências. Enfim, esses sujeitos constroem e reconstroem uma verdade processual que

parece de acordo com as finalidades almejadas, e não com a verdade factual.

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6.7 A Sentença

Encerrada a votação dos quesitos, o Juiz de Direito proferiu imediatamente a sentença

que deu fim ao processo, lendo-a em seguida para o público, em presença da ré, para dar

publicidade a seu conteúdo.

Segundo Mirabete (2001), “a sentença proferida no Tribunal do Júri é de formação

complexa ou subjetivamente complexa, pois provém de um órgão jurisdicional composto, em

que os jurados decidem sobre o crime (...)” (MIRABETE, 2001, p. 541). Em outras palavras,

os juízes de fato decidem sobre o crime e o Juiz Presidente, com base nessa decisão, declara a

absolvição ou então faz a dosimetria da pena, se os jurados optaram pela condenação do réu.

Aplicando os parâmetros da Teoria dos Atos de Fala ao proferimento ora investigado,

podem ser abstraídas algumas considerações relevantes para a caracterização do gênero

sentença. Em outro momento deste trabalho, analisamos a Sentença de Pronúncia, quando

então ficou demonstrado seu caráter marcadamente performativo, devido ao macroato de fala

declarativo presente em seu bojo.

O proferimento sobre o qual nos inclinamos agora também faz parte do gênero

sentença e, em muitos aspectos, assemelha-se à de Pronúncia, sobretudo no que diz respeito à

performatividade. Contudo, apresenta algumas peculiaridades relevantes, como por exemplo,

prescindir da fundamentação.

Conforme já se afirmou, os gêneros judiciais de natureza decisória são elaborados em

um regime de forte coerção determinada pela lei e pelos procedimentos judiciários. Assim, no

caso da sentença, há que ser seguida a instrução legal quanto às partes que compõem o texto

(relatório, fundamento, dispositivo) e quanto ao momento processual de lançá-lo aos autos.

No caso analisado, os jurados votaram os quesitos decidindo pela absolvição da ré. Assim,

fica dispensada qualquer fundamentação, limitando-se o juiz a declarar o resultado da

votação.

As coerções abrangem também a condição pessoal, ou estatuto institucional, dos

locutores autorizados a produzirem gêneros dessa espécie: esse tipo de sentença terminativa

do processo só pode ser produzida pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri e, de acordo com a

lei processual, o momento para sua prolação e leitura é logo após a apuração dos quesitos,

antes de encerrada a sessão de julgamento.

Considerando as condições enunciativas do proferimento, elaboramos o seguinte

quadro:

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Locutor : Juiz de Direito

Enunciação

(EÃO) Enunciado: Dessa forma, atendendo à decisão de E. Conselho de Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, IV, do CPP.

Alocutários: Ré/Advogado; Promotor de Justiça; jurados; sujeitos processuais

secundários; sociedade

Quadro 44: Condições enunciativas da Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora

Assim como a Decisão de Pronúncia, a Sentença terminativa dispõe de um Relatório,

no qual o juiz apresenta sucintamente o caso e o voto dos jurados. A seguir:

Ato Estrutura

ππππ: assertivo

µ: narração/relato

θ: verbo no tempo pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular

∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)

A acusada R, contra a qual pesa nestes autos a acusação da prática de crime de aborto previsto no art. 124, do Código Penal, foi nesta data submetida a julgamento do Tribunal do Júri, que, ao votar os quesitos formulados, houve por bem reconhecer que a mesma não praticou o delito.

ψψψψ: crença

Quadro 45: Componentes de um ato de fala assertivo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora

De maneira sintética, observamos nesse enunciado a ocorrência de um ato de fala

assertivo, realizado no modo narração/relato, reportando um estado de coisas preexistente à

sua enunciação.

As condições preparatórias ( ∑ ) para a efetivação do ato relacionam-se ao estatuto dos

interlocutores, relativamente ao quadro institucional de produção do discurso.

Como condição de sinceridade (ψ), destacamos o estado mental do Juiz de crença na

ocorrência dos fatos descritos.

Mas o ponto alto desta sentença está no seguinte enunciado:

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Ato Estrutura

ππππ: declarativo

µ: formal

θ: verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo ∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)

Dessa forma, atendendo à decisão de E. Conselho de Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, IV, do CPP.

ψψψψ: crença + desejo

Quadro 46: Componentes de um ato de fala declarativo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora

Por meio de um ato de fala declarativo (π), formalmente realizado (µ), o locutor

determinou a absolvição da ré, ratificando, assim, a decisão a que chegaram os jurados com a

votação dos quesitos.

Conforme já se afirmou, o ato declarativo tem a propriedade de reunir locutor e

alocutário em torno de um estado de coisas que é criado, com vistas a uma integração. Possui,

assim, dupla direção de ajuste: mundo-palavra, já que “um estado de coisas é alterado para se

ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento”, e palavra-mundo, pois “o conteúdo

proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na

perspectiva do seu locutor”. (MARI, 2001, p. 115).

No que diz respeito às condições de conteúdo proposicional (θ), tem-se um verbo

conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, que é a forma verbal

performativa canônica.

As condições preparatórias ( ∑ ) estão vinculadas ao estatuto institucional do locutor e

dos alocutários. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de um poder, o que se

verifica no caso em análise: apenas um Juiz Presidente do Tribunal do Júri, investido dos

poderes que o Estado lhe confere, pode prolatar esse tipo de sentença.

Como condições de sinceridade (ψ) para a satisfação do ato, observam-se a crença na

ocorrência do fato que deu ensejo à prolação da sentença (a decisão dos jurados pela

absolvição) e o desejo de aplicação da lei penal à situação concreta.

Finalizando o proferimento, encontramos o seguinte enunciado:

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Enunciado Estrutura

ππππ: diretivo

µ: ordem

θ: imperativo afirmativo

∑: locutor-Juiz, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários capazes de desempenhar a função (serventuários da Justiça)

Publicada nesta assentada de julgamento, dou as partes por intimadas. Registre-se.

ψψψψ: desejo

Quadro 47: Componentes de um ato de fala diretivo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora

Nesse enunciado, emerge um ato realizado no ponto diretivo (π), no modo (µ) ordem.

Por meio dele, o enunciador manda aos auxiliares da justiça que tomem as providências

necessárias para o registro da decisão.

Trata-se de uma ordem advinda de um sujeito que ocupa, na instituição judiciária,

posição hierárquica superior em relação a seus alocutários. Assim sendo, as condições de

conteúdo proposicional (θ) comportam um verbo conjugado no modo imperativo e apontam

para um tempo futuro. A direção de ajuste é mundo-palavra, pois os alocutários devem se

movimentar para alterar um estado de coisas atual e deixá-lo conforme a ordem do Juiz.

Como um ato realizado no ponto diretivo implica um compromisso entre locutor e

alocutário, no sentido de que este último realize uma ação futura nos moldes do desejo

manifestado pelo primeiro, temos como condição preparatória ( ∑ ) que o locutor esteja

investido do estatuto de Juiz Presidente do Tribunal do Júri. Os alocutários, por sua vez,

devem ser serventuários da Justiça habilitados a atuar nesse processo. Portanto, também como

condição preparatória, emerge a possibilidade de o enunciatário vir a acatar a ordem do

enunciador.

Quanto às condições de sinceridade (ψ), o estado psicológico expresso nesse ato

diretivo é o desejo, por parte do enunciador, de que a sentença seja registrada pelo alocutário

e que venha a produzir seus jurídicos efeitos no mundo.

6.7.1 Considerações

Refletindo sobre a relação entre linguagem e realização de ações, já se constatou, com

apoio em Bittar (2009), que uma das características mais marcantes do gênero judicial

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decisório é a performatividade da linguagem, uma vez que, com sua elocução, os sujeitos

realizam atos externos a ela.

Tomando a sentença ora analisada como um macroato de fala declarativo,

sublinhamos, portanto, seu caráter performativo, na medida em que, observadas as condições

para o sucesso desse ato, ela é capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo

simples fato de sua enunciação nos moldes legais.

Por meio dessa sentença, o Juiz de Direito ratificou a decisão dos jurados, ou seja,

declarou um fato que já existia no mundo ou, nas palavras de Mari (2001), representou o

mundo como já estando assim alterado. E ao mesmo tempo, criou-se um estado de coisas

novo, resultando em mais uma alteração na situação jurídica de R: dessa vez, de pronunciada,

ela passou à condição de absolvida.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem linguístico-discursiva dos autos de um processo penal, instaurado para

julgamento de um crime de aborto, levou-nos a uma ampliação de nosso entendimento a

respeito do funcionamento da Justiça no sistema legal brasileiro.

Inicialmente, trabalhar com as teorias que compreendem o gênero discursivo em sua

vertente de ação social nos permitiu visualizar como ocorre, na prática forense, a aplicação da

lei, conceito abstrato, a um caso concreto submetido a julgamento. Assim, é no trabalho

cotidiano dos operadores do direito que a justiça é ministrada, pela elaboração e circulação de

textos que dão materialidade aos comandos genericamente dispostos na legislação.

Podemos afirmar, portanto, que um processo penal é construído pelo trabalho dos

sujeitos processuais, que são pessoas investidas de um estatuto institucional que lhes confere a

prerrogativa de participar ativamente de um caso de interação judiciária como o aqui

investigado. Esse trabalho consiste em produzir textos nos moldes prescritos pela legislação.

Cada um desses textos é composto por atos de fala que, proferidos pela pessoa autorizada e

nas condições apropriadas, articulam-se na criação de um gênero textual, que passa a compor

o repertório de quem o elaborou. Esses repertórios individuais, colocados em circulação,

compõem um sistema de atividades e, atuando harmonicamente entre si, produzem alterações

na realidade social.

A dinâmica desse sistema pode ser ilustrada com a descrição dos resultados que

obtivemos com a análise dos proferimentos que compuseram nosso corpus de pesquisa.

Vejamos.

O Relatório de Inquérito Policial (RIP), produzido pelo Delegado de Polícia, fez com

que a notícia de ocorrência de um suposto crime de autoaborto chegasse às portas do

Judiciário. Em nossas análises, observamos que o RIP é uma peça portadora de certa

orientação argumentativa, embora da interpretação da legislação processual depreenda-se que

ela deveria ser apenas informativa. Os atos de fala que compõem esse proferimento são de

natureza assertiva e declarativa e, como tiveram suas condições de sucesso satisfeitas, foram

hábeis para a finalidade a que se destina esse gênero.

Com base nas informações aí contidas, o Promotor de Justiça elaborou sua Denúncia.

Por meio dela, esse sujeito processual legalmente habilitado, construiu uma tese acusatória em

face da ré e encaminhou essa tese ao Juiz de Direito, para que ele tomasse as providências

necessárias à instauração do processo penal. Observamos que a Denúncia reelabora o

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conteúdo do RIP. O mandamento legal de expor os fatos imputados à ré é cumprido mediante

atos de fala assertivos, que dão à peça a aparência de uma narrativa. Sobressai aqui seu

conteúdo diretivo, uma vez que, para produzir amplos efeitos no mundo jurídico, a Denúncia

precisa ser aceita pelo Juiz, daí a importância do ato de requerimento situado ao final da

exposição dos fatos. Destacamos, ainda, o forte teor argumentativo aí observado, pois é

necessário que seu locutor consiga angariar a adesão da instância julgadora para o propósito

de processar a ré.

No caso analisado, o Promotor obteve êxito quanto a esse propósito, já que o Juiz

acatou a Denúncia e determinou a instauração do feito.

Em seguida, foram praticados os atos processuais de praxe, como as oitivas da ré e das

testemunhas, e foram realizadas certas diligências.

Iniciou-se a fase das Alegações Finais, na qual acusação e defesa devem fazer um

levantamento de tudo o que consta dos autos e apresentar os argumentos que sustentam suas

teses. Temos aqui um dos pontos altos da argumentação nesse processo.

Primeiramente, manifestou-se o Promotor de Justiça, que apresentou suas alegações de

forma escrita. Como essa peça é uma “pretensão fundamentada” do Promotor à

admissibilidade da acusação contra a ré, predominam atos de fala assertivos, por meio dos

quais o locutor narra os fatos teoricamente praticados pela ré e introduz as vozes das

testemunhas para fundamentar seu propósito condenatório. Chama a atenção, aqui, a

introdução do discurso relatado como recurso argumentativo. O Promotor também lança mão

de uma gama variada de argumentos, entre os quais destacamos o estabelecimento de uma

relação de comparação entre os depoimentos prestados pela ré na Delegacia e em Juízo; o

apelo a um lugar comum da qualidade para tornar mais verossímil a hipótese de que ela teria

mesmo praticado o aborto voluntário e o encaixe de citações de jurisprudência a corroborar

seu ponto de vista. Encerrando o proferimento, localizamos um ato diretivo de requerimento,

que é fundamental para a caracterização do gênero Alegações Finais, pois, mais uma vez, a

faculdade de decidir pelo acatamento, ou não, do pedido formulado pelo Promotor, cabe ao

Juiz de Direito.

Para responder às alegações da acusação, a defesa apresentou também suas razões e de

forma escrita. Assim como seu oponente, o Defensor formulou atos assertivos para reconstruir

os fatos atribuídos a sua cliente, sempre com o cuidado de suprimir as informações que

pudessem prejudicar a imagem desta. A argumentação fundou-se no encaixe de vozes

narrativas, na contestação à prova pericial e na citação de julgados. A exposição,

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argumentada, da crença na não-realização da conduta pela ré encerra-se com o ato diretivo de

requerimento, por meio do qual o Advogado postula a impronúncia de sua cliente.

Na sequência do processo, veiculada pela Sentença de Pronúncia, surge a voz do Juiz

de Direito: o sujeito que tem o poder de dizer sobre a plausibilidade maior de uma ou outra

tese e, com isso, teoricamente, dirimir o conflito instaurado entre as instâncias de acusação e

defesa. Contudo, seu poder é limitado pelos dispositivos de lei e sua decisão não pode ser

fruto do arbítrio. Daí a obrigação de fundamentar as sentenças.

Assim como as Alegações são o ponto culminante da argumentação nessa etapa

processual, a Sentença de Pronúncia atinge o grau máximo da performatividade da linguagem.

Não que os gêneros anteriormente comentados sejam isentos desse atributo: na verdade, todos

eles realizaram ações por serem proferidos. Mas os efeitos sociais alcançados por uma

Sentença de Pronúncia nos parecem bem mais amplos, sobretudo para a situação jurídica da

acusada, sobre a qual, a partir desse momento, passa a recair uma carga acusatória mais

pesada e de consequências mais graves. Por essa razão, pensamos nesse proferimento como

um macroato declarativo, enfatizando, assim, seu caráter de performatividade, na medida em

que é capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo simples fato de sua enunciação

com caráter de publicidade e oficialidade.

Prolatada a Sentença de Pronúncia, inicia-se no interior da secretaria do fórum uma

movimentação a fim de conferir a ela esse caráter de publicidade e oficialidade ao qual nos

referimos. Mais uma vez, verificamos que essa atividade é realizada por meio do trabalho

com gêneros textuais, só que, desta feita, são utilizados modelos bem mais simples,

formulaicos mesmo, tão padronizados que são apostos nas páginas do processo por registro

com carimbos. Apesar da simplicidade da linguagem, tais gêneros são muito eficientes para a

consecução da tarefa a que se destinam.

Por não concordar com a Pronúncia, o Defensor exercitou o direito da ré de submeter

o caso à apreciação de um colegiado de juízes. Para isso, ele ingressou com um recurso e

apresentou suas razões. O processo, então, subiu para o Tribunal. O Promotor de Justiça

respondeu com suas contra-razões de recurso; o Procurador manifestou-se, em Parecer, como

favorável à manutenção do inteiro teor da Pronúncia e, novamente, o caso foi submetido à

decisão de magistrados. Essa decisão tomou corpo por meio do Acórdão, que é uma peça

processual resultante do entendimento de três Desembargadores (termo usado para designar

os juízes que atuam nas instâncias superiores) e que, em muitos aspectos, segue o padrão das

sentenças de primeira instância.

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Ao analisarmos o Acórdão, privilegiamos a investigação de sua estrutura

argumentativa. Tentamos identificar e correlacionar aspectos como o quadro institucional que

modela o exercício da argumentação nesse proferimento, os canais de entrada dos elementos

dóxicos, as manifestações de heterogeneidade mostrada, a presença das representações

sociais, a construção e circulação de imagens de si e do outro no discurso e os processos de

estereotipia.

Todas essas “categorias” foram apreendidas em função do uso que é feito delas em um

discurso de visée persuasiva, como é o Acórdão. Em linhas gerais, acreditamos ser possível

afirmar que o discurso judicial está impregnado dos valores e elementos dóxicos circulantes

no meio social. Por mais que se fale em uma pretensa imparcialidade ou neutralidade das

instâncias julgadoras diante dos casos que lhes são submetidos, esse é um ideal inatingível,

pois os membros do judiciário também estão sujeitos às crenças compartilhadas, às ideias

recebidas, aos estereótipos circulantes, como qualquer outro sujeito que viva em dada

sociedade, em certo momento histórico.

Após a confirmação da Sentença de Pronúncia pelos Desembargadores e cumpridos os

trâmites legais, finalmente, foi realizada a Sessão de Julgamento de R pelo Júri Popular. No

plenário, R alterou profundamente o conteúdo das declarações que vinha prestando até ali:

não mais confessou a prática abortiva e substitui a afirmação pela dúvida, ao dizer que não

sabia nem mesmo se estivera grávida. Parece-nos, então, que parte dos jurados se convenceu

de que as provas dos autos eram frágeis demais e quatro deles votaram pela absolvição por

insuficiência do conjunto probatório.

Restava ao Juiz trazer para o processo a decisão do Corpo de Jurados. Por meio de

uma nova Sentença, ele ratificou a decisão dos jurados, ou seja, declarou um fato que já

existia no mundo e, ao mesmo tempo, criou um estado de coisas novo: quanto à acusação de

ter praticado crime de autoaborto, fez constar que R não devia nada à Justiça.

Observamos, assim, que o atributo de performatividade relaciona-se intimamente com

a presença do ponto declarativo nas diversas peças processuais. Parece-nos que essa presença

se justifica porque as etapas do processo são sempre projetadas para um mundo possível, que

requer um ato que o institua, derivando daí sua importância para essa linguagem.

Na medida em que eram produzidos e lançados aos autos todos esses proferimentos,

que, juntos, formaram uma rede dialógico-argumentativa, a verdade acerca da conduta

imputada a R era construída e reconstruída pelos sujeitos processuais, surgindo, ao final,

como resultado desse sistema de gêneros e atividades sociais.

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Sinteticamente, foram essas as conclusões a que levaram nossa pesquisa sobre

argumentação e performatividade da linguagem no Tribunal do Júri. Trata-se de resultados

iniciais que, de forma alguma, pretendem se configurar como resposta definitiva para os

questionamentos aqui delineados. Ao contrário, algumas constatações nos levaram a tecer

novas perguntas, que ficam registradas como sugestão para trabalhos futuros.

Assim, acreditamos que algumas questões mereceriam um tratamento mais

aprofundado, dada sua importância para a compreensão do funcionamento do domínio

discursivo jurídico. Uma delas diz respeito às condições que sustentam o atributo de

performatividade da linguagem. Pensamos que seria interessante pesquisar mais sobre as

relações entre linguagem, ação e poder e, com isso, compreender um pouco melhor os

mecanismos dos discursos institucionais.

O estudo do papel desempenhado pelos elementos dóxicos nos gêneros jurídicos, na

perspectiva das representações sociais, também seria de grande relevância para a linguística

do discurso.

Por fim, registramos que o caso concreto que compôs o corpus do presente trabalho

levou-nos, ainda, a refletir sobre as relações de gênero masculino e feminino no meio

judiciário. Questionamos, nesse sentido, em que medida o fato de o Conselho de Sentença,

responsável pelo julgamento de R, ter sido composto por seis homens e uma mulher pode

justificar o resultado de quatro votos a favor da absolvição e três contrários. Uma presença

majoritariamente feminina poderia ter ensejado um resultado diferente? Essa é, a nosso ver,

mais uma questão digna de maior aprofundamento.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A - Sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros

Sujeito Conjunto de gêneros

Delegado de Polícia

1. Portaria (5) 2. Despacho (8) 3. Ordem de serviço (9) 4. Despacho (10) 5. Ofício (12) 6. Ofício (17) 7. Solicitação de dilação de prazo (18) 8. Relatório (27-28) 9. Ordem de colher depoimento (31v) 10. Ordem de serviço - condução coercitiva (33) 11. Despacho (35)

Quadro 1: Conjunto de gêneros do Delegado de Polícia

Sujeito Conjunto de gêneros

Escrivão de Polícia

1. autuação do Inquérito Policial 2. certidão de recebimento dos autos (20) 3. certidão (24) 4. intimação (25) 5. promoção dos autos (25v) 6. certidão de recebimento dos autos (31v) 7. mandado de intimação (32) 8. Certidão de cumprimento de despacho (35) 9. Autos conclusos ao Delegado (35) 10. Remessa dos autos à secretaria judicial (35)

Quadro 2: Conjunto de gêneros do Escrivão de Polícia

Sujeito Conjunto de gêneros

Detetive de Polícia

1. Boletim de Ocorrência (6-7) 2. Comunicação (10) 3. Comunicação (11)

Quadro 3: Conjunto de gêneros do Detetive de Polícia

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Sujeito Conjunto de gêneros

Desembargadores

1. Acórdão (118-133)

Quadro 4: Conjunto de gêneros dos Desembargadores do TJMG

Sujeito Conjunto de gêneros

Conselho de Sentença

1. Veredicto

Quadro 5: Conjunto de gêneros do Conselho de Sentença

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Sujeito Conjunto de gêneros

Auxiliares da Justiça

1. Remessa (18) 2. Autos conclusos ao juiz (19) 3. Autos entregues (19) 4. Certidão (19) 5. Certidão de intimação (19) 6. Autos entregues (19v) 7. Autos conclusos ao juiz (20) 8. Autos entregues (20) 9. Remessa à delpol (20) 10. Certidão de nada consta (29) 11. Autos conclusos ao juiz (30) 12. Autos entregues (30) 13. Vistas ao mp (30) 14. Autos entregues (30v) 15. Autos conclusos ao juiz 16. Autos entregues (31) 17. Remessa (31) 18. Termo/certidão de recebimento dos autos (35v) 19. Vistas dos autos ao promotor de justiça (35v) 20. Termo/certidão de recebimento dos autos (36v) 21. Certidão de autuação e registro (36v) 22. Autos conclusos ao juiz (37) 23. Termo/certidão de recebimento dos autos (37) 24. Certidão de expedição de mandado de intimação da denunciada (37) 25. Certidão de intimação do promotor de justiça (37v) 26. Juntada (37v) 27. Mandado de intimação (38) 28. Certidão de registro de sentença (39v) 29. Certidão de lançamento do nome da ré no livro de beneficiados pela lei 9099/95 30. Certidão de expedição de ofício (39) 31. Certidão de que consta novo feita contra a ré (41) 32. Vistas dos autos ao promotor de justiça (41v) 42. Autos entregues (42) 43. Autos conclusos ao juiz (42) 44. Autos entregues (43) 45. Juntada de mandado (43v) 46. Mandado de citação da ré para comparecer em juízo para ser interrogada (44) 47. Certidão de intimação do promotor de justiça (45) 48. Termo de audiência (46)

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49. Mandado de intimação da ré pra que indique um defensor (47)/por ordem do juiz 50. Certidão de que não houve manifestação da ré (48) 51. Autos conclusos ao juiz (48) 52. Autos entregues (48v) 53. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (48v) 54. Certidão de publicação da intimação ao defensor (48v) 55. Certidão de juntada (48v) 56. Autos conclusos ao juiz (50) 57. Autos entregues (50) 58. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (50) 59. Certidão de publicação da intimação ao defensor (50) 60. Certidão de juntada (50v) 61. Autos conclusos ao juiz (52) 62. Autos entregues (52) 63. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (52) 64. Certidão de publicação da intimação ao defensor (52) 65. Certidão de juntada (52v) 66. Autos conclusos ao juiz (54) 67. Autos entregues (54) 68. Certidão de expedição de ofícios e mandado (54) 69. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (54v) 70. Certidão de publicação da intimação ao defensor (54v) 71. Certidão de juntada (56v) 72. Mandado de intimação de testemunhas e da ré (56) 73. Certidão de intimação do promotor de justiça (57v) 74. Termo de audiência (59) 75. Qualificação e interrogatório (60) 76. Termo de declarações testemunha (61) 77. Termo de declarações testemunha (62) 78. Termo de declarações testemunha (63) 79. Termo de declarações testemunha (64) 80. Vistas ao promotor de justiça (65) 81. Autos entregues (68) 82. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (68) 83. Autos conclusos ao juiz (73) 84. Autos entregues (77) 85. Certidão de publicação da sentença (78) 86. Certidão de registro da sentença (78)

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87. Certidão de expedição de mandado (78) 88. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao defensor da ré (78) 89. Certidão de intimação do promotor de justiça (78v) 90. Certidão de publicação de intimação (78v) 91. Certidão de juntada (78v) 92. Mandado de intimação da ré, de ordem do juiz (79) 93. Autos conclusos ao juiz (81) 94. Autos entregues (81) 95. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (81) 96. Certidão de publicação da intimação (81) 97. Certidão de juntada (81v) 98. Autos conclusos ao juiz (98) 99. Autos entregues (98) 100. Autos conclusos ao juiz (105) 101. Autos entregues (105) 102. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (105v) 103. Certidão de intimação do promotor de justiça (105v) 104. Certidão de publicação da intimação (105v) 105. Autos conclusos ao juiz (106) 106. Autos entregues (106) 107. Remessa dos autos ao tjmg (106) 108. Autos entregues mp (137v) 109. Vistas ao promotor de justiça (138) 110. Autos entregues mp (140) 111. Autos conclusos ao juiz (141) 112. Autos entregues (141) 113. Certidão de expedição de mandado (141) 114. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (141v) 115. Juntada do mandado (141v) 116. Mandado de entrega do libelo e rol de testemunhas à ré (142) 117. Certidão de publicação da intimação (142v) 118. Juntada de petição (142v) 119. Promoção dos autos ao juiz de direito (144) 120. Autos conclusos ao juiz de direito (144) 121. Autos entregues (144) 122. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (144v) 123. Certidão de publicação da intimação (142v) 124. Juntada (144v)

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125. Promoção dos autos ao juiz de direito (146) 126. Autos conclusos ao juiz (146) 127. Autos entregues (146) 128. Abertura de vistas ao promotor de justiça (146v) 129. Autos entregues (147) 130. Autos conclusos ao juiz (147) 131. Autos entregues (149) 132. Certidão de que a ré encontra-se presa por crime apurado em outro processo (150) 133. Autos promovidos ao juiz de direito (150) 134. Autos conclusos ao juiz (150) 135. Autos entregues (145v) 136. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (150v) 137. Certidão de publicação da intimação (150v) 138. Certidão de expedição de ofícios e mandado (150v) 139. Juntada (151v) 140. Mandado de intimação de testemunha da acusação (152) 141. Autos entregues (153) 142. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (156v) 143. Promoção dos autos ao juiz de direito (157) 144. Autos conclusos ao juiz de direito (157) 145. Autos entregues (157) 146. Certidão de intimação do promotor de justiça (157v) 147. Autos entregues (157v) 148. Certidão de publicação da intimação ao defensor da ré (150v) 149. Juntada (158) 150. Autos conclusos ao juiz de direito (158v) 151. Autos entregues (158v) 152. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (158v) 153. Certidão de publicação da intimação ao defensor da ré (158v) 154. Juntada (162v) 155. Publicação da sentença (182) 156. Certidão de registro da sentença (182) 157. Certidão de encaminhamento de expediente de publicação (182) 158. Certidão de expedição de ofício (182) 159. Autos conclusos ao juiz (184) 160. Autos entregues (184) 161. Certidão de encaminhamento de expediente de

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publicação (182) 162. Certidão de publicação (184) 163. Certidão de intimação do promotor de justiça (184) 164. Juntada (184v) 165. Arquivamento (186)

Quadro 6: Conjunto de gêneros dos Auxiliares da justiça

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ANEXOS

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ANEXO A - Relatório de Inquérito Policial I. Policial nº: __ Inc. Penal: __ Local: __ Autor(a): __ Vítima: __ Data: __ Meritíssimo Juiz, Instaurou-se os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no Artigo 124 do Código Penal Brasileiro. Juntou-se comunicação de serviço do detetive X, fls 07, em que o mesmo constatou que foi a autora quem provocou o aborto, utilizando-se de uma sonda. A testemunha T1, fls 10, declarou que na época dos fatos era gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer curetagem. A testemunha T2, fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo. Alegou segredo médico para não citar nomes dos pacientes. A testemunha T3, fls. 12, declarou que não se recorda do fato. Juntou-se cópia do Laudo Médico, fls. 20, comprobatório da materialidade do delito. Juntou-se certidão do Escrivão de Polícia, certificando que a acusada foi intimada e não compareceu para sua oitiva nesta unidade policial. Ante ao exposto, e a vista de tudo mais que dos autos constam, indicio formalmente R às penas dos Artigos 124 e 330 do Código Penal Brasileiro. Recomendo ao Senhor Escrivão que to logo seja formalizado o presente feito, faça-se a remessa dos autos ao Meritíssimo Juiz de direito desta Comarca, observando as formalidades legais. É o relatório _ , 14, de setembro de 2000. Assinatura.

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ANEXO B - Denúncia

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE _ - MG

O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do PROMOTOR DE JUSTIÇA desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente DENÚNCIA em desfavor de:

R, brasileira, separada judicialmente, profissão do

lar, filha de _ e de _ , domiciliada à Rua _ , no Município de _ , pelos seguintes fatos: Aproximadamente no dia 23 de setembro de 1999, a

denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.

Com isso, a autora deu entrada no nosocômio da

Santa Casa, neste Município, com os sintomas de aborto provocado, conforme o laudo médico, sendo necessário providências.

Assim, a denunciada ficou em observação para ver

se haveria, realmente, a necessidade da retirada do feto, sendo que, após algumas horas, foi preciso fazer a curetagem, ficando a mesma alguns dias internada para ser medicada.

A denunciada confirmou, em seu depoimento, a

prática do ilícito penal. Isto posto, tendo a denunciada incorrido nas

sanções do art. 124 do Código Penal, requer esta Promotoria de Justiça sua citação para interrogatório e defesa que tiver, ouvindo-se oportunamente as testemunhas abaixo arroladas, devendo ser, ao final, condenada nas penas que lhe couberem. Rol de testemunhas: T1

T2

T3

T4

T5

_ , 07 de dezembro de 2000. Assinatura.

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ANEXO C - Defesa prévia EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE __ -MG

Processo nº _ R, já qualificada nos autos da Ação Penal movida

pelo Ilustre representante do Ministério Público, vem perante Vossa Excelência, através de seu procurador, apresentar sua DEFESA PRÉVIA por não condizer com a verdade os fatos narrados na denúncia.

Quanto ao mérito, reserva sua defesa para o

momento oportuno, requerendo a oitiva das testemunhas arroladas pelo representante do Ministério Público.

REQUER, desde já, a condenação do Estado de

Minas Gerais, para que este arque com os honorários advocatícios, por ter sido este humilde advogado nomeado defensor dativo por Vossa Excelência, em conformidade com o art. 272 da Constituição Estadual e o art. 1º, parágrafo 1º da Lei Estadual nº 13.166 de 20 de janeiro de 1999.

Pede e Espera Deferimento. __, 10 de abril de 2003. Assinatura.

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ANEXO D - Alegações Finais do Ministério Público

MM. Juiz, Teve início a presente ação penal através de

denúncia contra _ , dando-lhe como incursa nas penas do 124, CP, pois, no dia 23-09-99, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou um aborto, usando uma sonda que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.

Foi proposta à denunciada a suspensão condicional

do processo, que foi aceita (fls. 39). Contudo, foi o benefício revogado, uma vez que veio a ser processada , no curso da ação (fls. 43).

Citada (fls. 44/V), não compareceu ao

interrogatório (fls. 46). Defesa prévia às fls. 53. Na audiência que teve lugar no dia 15-05-03, a

acusada foi interrogada e foram ouvidas 04 testemunhas. É o relatório. A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo,

confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança (conf. Declarações de fls. 34 e 60).

Quando a denunciada deu entrada na Santa Casa de

Misericórdia de _ , no dia 23 de agosto de 1999, após a prática abortiva acima relatada, o médico que a atendeu, T2, suspeitou da ação criminosa e relatou o fato ao provedor daquela entidade, T3, que comunicou o fato à Polícia (conf. Ofício de fls. 08).

De acordo com a testemunha de fls. 13, T1, à época

gerente daquele nosocômio, a denunciada ali chegou “com fortes sintomas de que estaria tendo um aborto” (fls. 64).

Outrossim, o laudo médico de fls. 23 comprova a

materialidade. Destarte, presentes se fazem os requisitos

necessários à submissão da acusada a julgamento perante o eg. Tribunal do Júri desta Comarca, pois:

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“Comprovadas a autoria e materialidade do aborto, inclusive por prova indireta da gravidez e expulsão do feto do útero materno, impõe-se a submissão dos acusados ao julgamento pelo júri” (TJSP – RT 562/325).

Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a

acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia. _, 19 de maio de 2003. Assinatura.

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ANEXO E - Alegações Finais da Defesa

MM. Juiz, Estamos diante de uma ação penal pública

incondicionada intentada pelo Ilustre Promotor de Justiça desta comarca, no qual denunciou _ (fls. 2) nas sanções do art. 124 do Código Penal.

Foi apresentada defesa prévia – fls. 53. Na instrução foram ouvidas quatro testemunhas da

acusação, sendo que foi dispensada uma testemunha da acusação, antes dos depoimentos das testemunhas, a denunciada foi interrogada, fls. 60/64.

Em alegações finais o Ilustre Representante do

Ministério Público ratificou os termos da denúncia requerendo a pronúncia da denunciada, com o fim de que este seja julgado pelo Tribunal do Júri – fls. 66/68.

Este é o breve relatório Não temos nestes autos provas suficientes para que

a ré venha a ser submetida ao julgamento pelo Tribunal do Júri, já que o conjunto probatório, data vênia, apresentado até esta fase processual é falho, frágil e infestado por nulidade.

Preliminarmente, queremos argüir nulidade

absoluta, conforme falaremos deste vício processual que eivou todo o processo. E por causa dela não tem como _ ser pronunciada nos termos do art. 408 do Código de Processo Penal.

Por se tratar o delito do art. 124 do Código Penal

de crime que deixa vestígios há, conforme reza o art. 158 da Carta processual penal, que se fazer o Exame de corpo Delito, e não é o que ocorreu, e sendo assim acarretou nulidade absoluta transcrita no art. 564, III, b do Decreto-Lei 3689/41, como veremos a seguir:

“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será

indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”

“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

b) o exame de corpo de delito nos crimes que

deixam vestígios, ressalvado o disposto no artigo 167”;.

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O Ilustre representante do Ministério Público, cita em suas alegações finais um laudo médico de fls. 23 como prova da materialidade. Mesmo que este laudo fosse considerado como Exame de Corpo de Delito, este seria ineficaz, pois tal prova pericial, de acordo com a legislação processual penal, tem que ser feito por dois peritos oficiais, e na falta destes teria que se ter à nomeação de dois não oficiais, olhamos o que reza o nosso Código de Processo Penal.

“Art. 159. Os exames de corpo de delito e as outras

perícias serão feitos por dois peritos oficiais. (Redação dada ao caput pela Lei n.º 8.862, de 28.03.1994)”.

§ 1º. Não havendo peritos oficiais, o exame será

realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, escolhidas, de preferência, entre as que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do exame. (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 8.862, de 28.03.1994)

§ 2º. Os peritos não oficiais prestarão o

compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo”. Para reforçar minha tese, trago ao conhecimento de

Vossa Excelência, decisões de nossos tribunais: “A realização do exame de corpo de delito é

indispensável no processo relativo a crime que deixa vestígios, como o aborto, sem a possibilidade de ter-se consumado sem que os vestígios ficassem. Sua falta acarreta nulidade do processo, nos termos do art. 158 e 564, III “b”, do Código de Processo Penal”. (TJSP – AC. Rel. Adriano Marrey – RT 448/321.

“O aborto é um crime que deixa vestígios, sendo

indispensável a comprovação de sua existência material por meio de exame de corpo de delito”. (RJTJESP 44/329, 50/338, 51/298).

Como vimos, o procedimento jurisdicional não foi

usado corretamente, e por isso, está contaminado pela nulidade absoluta acima citada. Por não ter como fazer outro exame de corpo de delito, por se ter passado muito tempo e estes vestígios já não existirem mais, não temos mais provas contundentes da materialidade deste crime de aborto.

De acordo com nossa legislação, esta prova pericial

poderia ser substituída pelo exame de corpo de delito indireto, que é o suprimento daquela prova pericial por depoimentos de testemunhas.

Ocorre Meritíssimo que nestes autos as testemunhas

arroladas pela acusação em nenhum momento soube dizer, sobre os fatos, se houve um aborto provocado, senão vejamos:

“que para um médico é difícil dizer quando o aborto

é natural ou provocado, a não ser que seja encontrada a prova material no corpo da paciente, que no caso especial da denunciada não se recorda”. (depoimento do T2 , fls. 61).

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“que se lembra da denunciada e dela ter passado pela Santa Casa mas não se recorda qual o procedimento foi praticado nela”. (depoimento de T3 , fls. 62).

“que não chegou ao conhecimento do depoente se

esse aborto tinha sido provocado ou não”. (depoimento de T4, fls. 63) “que não se lembra se esse aborto tinha sido

provocado ou não”. (depoimento do T1, fls. 64). Nos autos só nos resta de comprovação da

materialidade e da autoria a confissão, pois a prova testemunhal apresentada não pôde suprir a falta do exame de corpo de delito, conforme aceita o art. 167 do Código de Processo Penal. E a confissão por si só, mesmo sendo considerada a rainha das provas, não é o meio probatório que possa substituir a prova pericial acima descrita.

Com relação a esta posição, vamos conferir

algumas decisões de nossas cortes superiores: “A confissão da suposta gestante, como é cediço,

não supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT 496/326).

“Não sendo possível o exame de corpo de delito, por

haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal ou documental poderá suprir-lhe a falta, ressalvando-se que a palavra da gestante não basta, por si só, para tal finalidade”. (RT 582/340, 562/325, 514/330, 457/322, 514/345, 496/326, 440/340, 382/69, 563/320, 569/330, 623/287 RTJESP 48/291, 49/195, 52/379).

“a prova da gravidez e de que o aborto foi

provocado é assunto médico-legal, normalmente esclarecido no laudo pericial, cuja eventual deficiência não impedirá a pronúncia e até mesmo a condenação do acusado, desde que apoiada noutros elementos persuasivos da materialidade do crime”. (TJSP – HC – Rel. Cavalcanti da Silva – RT 457/322).

Pelo que apresentamos, vemos que não tem como a

ré ser pronunciada para ir a julgamento pelo Tribunal do Júri, já que este processo está infectado por nulidade absoluta, não tendo como ser comprovada a materialidade, e as provas que poderiam suprir esta não são convincentes, e por fim, nem o material que teria sido, usado na prática do aborto foi apreendido.

Ante ao exposto, requer que seja acolhida a

preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecida o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.

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Nestes termos, pede de espera deferimento. _, 02 de junho de 2003. Assinatura.

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ANEXO F - Sentença de Pronúncia Comarca de __ Ação Penal Processo __ Vistos, ETC...

R, já qualificada, foi denunciada como incursa nas

penas do artigo 124 do Código Penal, porque, segundo a denúncia: “no dia 23.09.99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.

Com isso a autora teria dado entrada na Santa Casa

com sintomas de aborto provocado. Por preencher os requisitos legais, foi o processo

suspenso, nos termos da lei 9099, mediante algumas condições. Descumprida pela denunciada essas condições, foi

revogado o benefício da suspensão, retomando o processo sua marcha normal. Regular a instrução do processo, vieram as

alegações finais, pugnando o ilustre promotor de justiça pela pronúncia da denunciada, ao passo que a defesa alega nulidade por falta de perícia e, alternativamente quer a impronúncia.

É o relatório. DECIDO. A materialidade é incontroversa, diante do laudo de

fls. 23. A autoria não foi negada e é confortada pelo

conjunto probatório trazido aos autos. A defesa alega nulidade pela não realização de

perícia. Não é caso de nulidade a falta de realização de

perícia, conforme doutrina e pacífica jurisprudência. Também não é o caso de impronúncia, porque nesta

fase processual busca-se apenas indícios de autoria e materialidade, em razão do princípio “in dúbio pro societate”.

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É certo que a decisão de pronúncia deve cingir-se a uma análise mais superficial das provas, até mesmo para não influenciar no ânimo para o julgamento do E. conselho de Sentença.

Pelo que se apurou nos autos tem-se como suficiente

para embasar o prosseguimento do feito, visto que estou convencido de que houve o crime e de que o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos.

Eventuais agravantes e atenuantes poderão ser

discutidas em plenário e levadas à apreciação dos eminentes Juízes de fato. Assim sendo, Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada

R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.

Entendo desnecessária a prisão, neste momento,

visto que a denunciada respondeu a todo o processo em liberdade, comparecendo a todos os atos, além de ser tecnicamente primária, ter residência fixa e não registra antecedentes.

Deixo de lançar o nome da ré no rol dos culpados,

por força do que diz o art. 5º, inciso LVII. Publique-se, registre-se e intime-se, Intime-se pessoalmente a denunciada. __, 04.06.03. Assinatura.

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ANEXO G - Acórdão

EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE (CP, ART. 124) - CRIME QUE DEIXA VESTÍGIO - PRELIMINAR - NULIDADE ABSOLUTA COM EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO, EM FACE DA FALTA OU VÍCIO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - DESCABIMENTO - DESAPARECIDOS OS VESTÍGIOS DO ABORTO - IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - CPP, ART. 167 - ADMITIDA A PROVA TESTEMUNHAL E LAUDO MÉDICO, CORROBORADOS PELO DEPOIMENTO DA ACUSADA - ACD INDIRETO - ADMISSIBILIDADE - PROCESSO MODERNO - BUSCA DA VERDADE REAL - TODAS AS PROVAS DEVEM SER IGUALMENTE CONSIDERADAS, NÃO EXISTINDO, ENTRE ELAS, HIERARQUIA - LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO - MÉRITO - CPP, ART. 408 - IMPRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - INVIABILIDADE - INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO SOCIETATE' - INVERSÃO AO NATURAL PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO REO' - RESTA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI (CF/1988, ART. 5, XXXVIII) - PRECEDENTES DO STF, STJ E TJMG.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº _- COMARCA DE _- RECORRENTE(S): R - RECORRIDO(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. _

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a _ CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM , À UNANIMIDADE, REJEITAR PRELIMINAR E NEGAR PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.

Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2004.

DES. _ - RelatorNOTAS TAQUIGRÁFICAS

O SR. DES._ :

VOTO

Reunidos os pressupostos de admissibilidade, conhece-se do recurso.

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito (fls. 255/258-TJ) interposto contra a sentença de pronúncia (fls. 74/77-TJ) proferida pelo MM. Juiz de Direito da Comarca de _ /MG, nos autos da ação penal movida pelo Ministério Público contra a Recorrente, por infração ao disposto nos art. 124 do Código Penal (aborto provocado pela gestante).

Consta da denúncia (fls. 02/03-TJ) que, em 23/09/1999, a Recorrente, que estava grávida de dois meses, praticou sozinha o aborto, utilizando-se de uma sonda, que foi por ela

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introduzida em sua vagina, causando a morte do feto. Após, diante de complicações, deu entrada na Santa Casa do Município, ocasião em que ficou internada sob observação e submetida a uma sessão de curetagem.

Assim é que, autos enviados ao Ministério Público, este fez a proposta de suspensão do processo pelo período de dois anos (Lei nº 9.099/95, art. 89), mediante condições (fl. 36-TJ), que foram aceitas pela Recorrente e homologadas pelo MM. Juiz a quo (fl. 39-TJ).

Ocorre que, noticiada nos autos nova denúncia contra a Recorrente (fl. 41-TJ), foi requerido pelo Ministério Público a revogação da suspensão condicional do processo (fl. 41v-TJ), pedido deferido pelo Magistrado de primeiro grau, que determinou o prosseguimento do processo (fl. 43-TJ).

O MM. Juiz de primeiro grau passou então à fase instrutória dos autos, por fim, proferindo a r. sentença (fls. 74/77-TJ) pronunciando a denunciada como incursa nas sanções do art. 124 do Código Penal (aborto provocado pela gestante).

Recorre assim a Apelante (fl. 80-TJ - razões às fls. 82/93-TJ), pleiteando, preliminarmente, a nulidade absoluta diante da falta do exame de corpo delito com a conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 409 do CPP, pela falta de comprovação da autoria e da materialidade.

No mérito, caso superado o primeiro questionamento, requereu a anulação do processo pelo fato de que não foi utilizada a forma correta para a formalização do exame de corpo delito, e por não ter mais como fazê-lo.

Por fim, que seja condenado o Estado de Minas Gerais a pagar os honorários advocatícios do defensor dativo, em conformidade com o art. 1º, §1º da Lei Estadual nº 13.166/99.

Contra-razões apresentadas pelo Recorrido (fls. 94/97-TJ), sustentando a manutenção da r. decisão guerreada (a pronúncia), pois "em que pese a ausência de laudo pericial assinado por dois peritos oficiais, no caso vertente, não há dúvida acerca da autoria do delito e de sua materialidade, de forma que deve prevalecer a decisão de pronúncia" (fl. 96-TJ).

Em juízo de retratação, o Juiz a quo manteve a decisão guerreada (fl. 105-TJ).

Em seu parecer (fls. 110/113-TJ), opina a douta Procuradoria de Justiça, pelo conhecimento e desprovimento do recurso.

É, em síntese, o relatório.

Examinando as questões trazidas a esta instância recursal, passo a apreciá-las individualmente.

Inicialmente, quanto à preliminar de nulidade absoluta diante da falta do exame de corpo delito com a conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito, sem razão a Recorrente uma vez que, desaparecidos os vestígios do crime, conforme disposto no art. 167 do CPP, perfeitamente admissível outros indícios de autoria e materialidade que não o exame de corpo de delito direto, quais sejam, in casu, a prova testemunhal e o laudo médico

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constante da ficha hospitalar de internação da Recorrente, documentos e depoimentos que teriam ainda sido corroborados pela confissão da denunciada.

Art. 167. CPP. "Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta."

Neste sentido, ensinamentos de JÚLIO FABBRINI MIRABETE:

"Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto. Citem-se como exemplo o homicídio praticado por afogamento em alto-mar em que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é recuperada, o estupro e o atentado violento ao pudor quando o fato é levado ao conhecimento da autoridade muitos dias após a ocorrência, etc. Nessas hipóteses, inexistentes os vestígios, dispensa-se a perícia, fazendo-se então a prova da materialidade do crime por outros meios que não o exame direto. Forma-se, então, o corpo de delito indireto, como prevê a lei, em regra por testemunhas (art. 167). Ensina a doutrina que não há qualquer formalidade para a constituição do corpo de delito indireto, normalmente revelado por prova testemunhal. O juiz deve inquirir a testemunha sobre a materialidade do fato e suas circunstâncias e a palavra dela bastará para firmar o convencimento do julgador, de acordo com o princípio da livre apreciação. A única restrição prevista na lei a respeito é a de que o exame de corpo de delito indireto não pode ser suprido exclusivamente pela confissão do acusado. No mais, a prova da existência do crime pode ser formada por qualquer elemento probatório não vedado em lei. Por isso, já se deu por válido o laudo de exame de corpo de delito indireto elaborado com base em atestado passado pelo médico que assistiu a vítima de lesões corporais em pronto- socorro." - grifos nossos (Processo Penal - Ed. Atlas - SP - 15ª ed. - 2003 - p. 287).

Vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em lapidar acórdão relatado pelo Min. Vicente Cernicchiaro:

"'Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso. Diz-se direto quando reúne elementos materiais do fato imputado. Indireto, se, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. A Constituição da República resguarda serem admitidas as provas que não foram proibidas por lei. Restou, assim, afetada a cláusula final do art. 158, CPP, ou seja, a confissão não ser idônea para concorrer para o exame de corpo de delito. No processo moderno, não há hierarquia de provas, nem provas específicas para determinado caso. Tudo que ilícito for, idôneo será para projetar a verdade real. No caso concreto, além da confissão, houve depoimento de testemunhas'. Do corpo do acórdão: ‘O conceito de ‘corpo de delito', muitas vezes, é confundido com o ‘corpo de vítima'. A distinção é evidente. Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é a seguinte: ‘conjunto de elementos sensíveis do fato criminoso'. O exame de corpo de delito, di-lo a lei (CPP, art. 158), é direto ou indireto. O primeiro reúne elementos sensíveis do fato histórico. O segundo, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. Magalhães Noronha, Curso de Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 1986, 17. ed., p. 105, reconhece a impropriedade do Código, na matéria. Deixou estas palavras que merecem ser consideradas: ‘Viu-se que o exame direto ou indireto é indispensável no processo, que sem ele será nulo. Não nos parece que isso esteja muito de acordo com o sistema da verdade real (n. 55, abraçado pelo Código no art. 157). Ao contrário do que o art. 158 fala, a confissão do acusado, quando revestida dos requisitos de credibilidade, deveria supri-lo. Há mais de um século, Mittermayer

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escrevia: ‘Em resumo, o corpo de delito pode muito bem ser provado pela confissão do indiciado, mas por uma confissão perfeita em relação às condições de credibilidade requeridas: é preciso principalmente que não se possa duvidar do estado completamente são de seu espírito; que se demonstre que o crime, tal como foi consumado, não podia ter deixado vestígios ...'. Perante nossa lei, se um homem, sobre cuja imputabilidade não paira a menor dúvida, confessa ter assassinado outro, v.g., afogando-o em pleno oceano, e se essa confissão é corroborada por indícios, não pode o processo ser intentado - sob pena de nulidade - porque não há o exame de corpo de delito direto ou indireto. Não nos parece isso concorde com o sistema da verdade real ou com o livre convencimento do juiz, ou ainda, como se diz na Exposição de Motivos, frisando-se não haver hierarquia probatória: ‘Todas as provas são relativas: nenhuma delas terá ex vi legis valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra'. Agora, diante da Constituição que, como registrado, elimina, expressamente, qualquer hierarquia dos meios de prova, impondo restrição apenas quando o Direito os repelir, a confissão, como o testemunho, ou qualquer outro meio probatório devem ser levados em consideração para evidenciar o fato constante da denúncia. Aliás, o moderno Código de Processo Penal português é categórico no art. 125: ‘São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei'. Assim, para que um meio de prova não seja considerado, impõe-se vedada do Direito. Em conseqüência, o confronto da Constituição e o Código de Processo Penal repele a resolução, no particular, quanto à confissão do réu. No caso dos autos, a afirmação da existência do crime não repousa (...) dos co-réus, procuraria a autoridade policial e narraria o fato. É certo, esse depoimento pode ser resultado de vindita, resultante de divergência da vida em comum. Todavia, não se raciocina ainda com a conclusão definitiva, de definição do mérito. Ao contrário, está sendo considerado para arrimar a prisão cautelar. Nesse quadrante, evidencia-se suficiente, como bem realçou o v. acórdão' (STJ - RHC - 6ª T. - Rel. Vicente Cernicchiaro - j. 02.03.93 - RT 694/390-1). No mesmo sentido: Resp. 30.435-4 - j. 09.02.93; STJ - HC 1.394-2 (92.0018250-0) - 6ª T - j. 08.02.93." (Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial - Coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco - Ed. RT - SP - 2001 - vol. 2 - pp. 1738/1739).

Precedentes: "A nulidade insanável decorrente da falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígio constitui, sem dúvida, resquício do ultrapassado sistema da prova legal. No processo moderno, orientado pela busca da verdade real, todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia. Em havendo outras provas lícitas e idôneas a esclarecer a verdade dos fatos e formar o convencimento do juiz, a exigência indeclinável da prova pericial, evidentemente, desvirtuaria os fins do processo penal." (STJ - REsp. n. 62.366 - 5ª T. - Rel. Min. Edson Vidigal - j. 18.06.98 - DJU 03.08.98, p. 275). "Não sendo possível exame de corpo de delito, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, mormente se corroborada nos demais elementos de convicção existentes nos autos e reconhecidos pela sentença" (STJ - REsp. - Rel. Min. Edson Vidigal - RT 725/531).

E ainda, do excelso SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

"O exame de corpo de delito, em face do desaparecimento de vestígios, pode ser suprido pela prova testemunhal (art. 167 do CPP)" (STF - RHC - Rel. Min. Rodrigues Alckmin - RTJ 88/104).

Também deste eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, temos:

"PRONÚNCIA. MATERIALIDADE. INDÍCIOS DA AUTORIA. SUFICIÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUCINTA. POSSIBILIDADE. CORPO DE DELITO. AUSÊNCIA DE

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PERÍCIA. PROVA INDIRETA. VALIDADE. Para a prolação da decisão de pronúncia, suficientes a prova da materialidade e indícios da autoria. A inquinada nulidade, decorrente da falta de realização do exame de corpo de delito, não tem sustentação frente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não considera imprescindível a realização da perícia, se existentes outros elementos de prova. Precedentes do STF. Não invalida a decisão de pronúncia a fundamentação sucinta." (TJMG - RSE nº 1.0000.00.229.517-8/000 - Rel. Des. Roney Oliveira - 3ª CCr. - Julg. 07/08/2001 - Publ. 05/09/2001).

E, de outros eg. tribunais, in verbis:

"Não há falar em nulidade por falta de perícia, quando a realidade das lesões venha comprovada pela prova testemunhal e apresentação da vítima a pronto-socorro, elementos de convicção que suprem o exame de corpo de delito que não foi possível realizar" (TACRIM-SP - AP - Rel. Diwaldo Sampaio - JUTACRIM-SP 59/305).

"A prova da gravidez e de que o aborto foi provocado é assunto médico-legal, normalmente esclarecido no laudo pericial, cuja eventual deficiência não impedirá a pronúncia e até mesmo a condenação do acusado, desde que apoiada noutros elementos persuasivos da materialidade do crime" (TJSP - HC - Rel. Des. Cavalcanti Silva - RT 457/322).

No caso dos autos, constata-se que a prova médica foi contundente, não só nos depoimentos dos médicos, alarmados com o crescimento dos casos de aborto na cidade, bem como na juntada da ficha correspondente ao internamento da Recorrente no Pronto-Socorro, tudo por causa das complicações que teriam nascido de um quadro de aborto. Diante de tais dados, não se sentiu a necessidade de se produzir uma prova sobre o que já estaria suficientemente claro nos autos.

Além disso, constata-se ainda que, na fase da Defesa Prévia, a defesa nada questionou sobre a necessidade da realização da prova pericial que reclama agora, em sede de recurso. Assim, é de se constatar que quando o questionamento veio à baila, já estariam desaparecidos os vestígios do aborto, sendo inviável qualquer exame de corpo de delito, que por óbvio daria negativo, sendo de se admitir daí outros elementos para formar o livre convencimento do magistrado para a pronúncia, no presente caso, a prova testemunhal e o laudo médico, corroborados pela confissão da Recorrente, tanto na delegacia quanto em juízo.

Aplica-se daí o entendimento difundido na doutrina e jurisprudência dominantes, qual seja, do processo penal moderno prestigiando, mais do que nunca, a busca da verdade real, em que todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia.

Pode-se dizer ainda que, sem razão a Recorrente em suas pretensões, quando também alega a impossibilidade de se fazer o exame de corpo de delito, vício de forma e a falta de assinatura de dois peritos oficiais, uma vez que foi admitida a prova indireta diante das circunstâncias do caso, além do que o exame de corpo de delito sequer foi elaborado, não podendo ter a mesma exigência para o laudo médico de fl. 23-TJ.

O mesmo pode-se dizer da alegada falta de prova da ocorrência do crime, fato que levaria a impronúncia, objeto de exame mais apurado no mérito do presente recurso.

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Portanto, com tais fundamentos, rejeita-se a preliminar de nulidade levantada pela Recorrente.

Adentrando no mérito, verificamos, conforme o Magistrado de primeiro grau, admitindo a prova indireta, fortes indícios de autoria e materialidade contra a Recorrente, sendo estes suficientes para manter a decisão de pronúncia com o improvimento do recurso, senão vejamos.

Em se tratando de sentença de pronúncia, exige o art. 408 do CPC somente a certeza da ocorrência do crime e a provável autoria do autor:

"Art. 408. CPP. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronuncia-lo-á, dando os motivos do seu convencimento."

Assim é que EDGARD MAGALHÃES NORONHA, tecendo comentários sobre a pronúncia, pontificou:

"Numerosas são as definições da pronúncia: ‘É a decisão pela qual declara o juiz a realidade do crime e a sua suposição fundada sobre quem seja seu autor' [Bento de Faria]; ‘É a decisão em que se apuram a existência do crime, a certeza provisória da autoria e indícios da responsabilidade do réu' [Magarinos Tôrres]; ‘Pronúncia é a decisão pela qual o Juiz estabelece a existência de um crime e quem seja o seu autor' [Ari Franco]; ‘É a sentença em que, julgada procedente a denúncia ou queixa, é o réu considerado indiciado em infração penal, provada na sua materialidade, para o efeito de, com o nome lançado no rol dos culpados e sujeito à prisão imediata, ser submetido ao julgamento definitivo pelo Tribunal do Júri' [Espínola Filho]. (...) Convencendo-se da existência do crime e de indícios da autoria, o Juiz julgará procedente a acusação, pronunciando o acusado. (...) escreve Bento de Faria: ‘Basta que o Juiz, apreciando o valor dos elementos probatórios existentes nos autos, se convença da ocorrência de indícios'. Numa palavra: a pronúncia exige o corpus delicti, isto é, o fato típico demonstrado e a prova indiciária da autoria." (Curso de Direito Processual Penal - Ed. Saraiva - 3ª ed. - SP - 1969 - pp. 268/269).

O doutrinador ADRIANO MARREY, também ao dissertar sobre a pronúncia, assim leciona:

"Na decisão de pronúncia, que será fundamentada (‘dando os motivos de seu convencimento', art. 408, última alínea, do CPP), o juiz verificará se é certa a existência do crime imputado ao réu e provável a autoria que lhe é atribuída." (Teoria e Prática do Júri - 2000 - p. 260).

Seguindo tais prescrições, vamos ver que a documentação já destacada em sede de preliminar indicaria a possível existência do aborto, fato constatado pelo laudo médico de fl. 23-TJ. A questão sobre a espécie de aborto, ou seja, se seria criminoso, in casu, auto-aborto capitulado no art. 124 do CP, escapa da competência do Sentenciante na decisão de pronúncia. Mas a materialidade dos fatos parece que não guarda nenhuma controvérsia.

Ocorre que, em que pese a Recorrente argumentar em contrário, inclusive com trechos de depoimentos, a prova testemunhal trouxe indícios suficientes para a sua pronúncia, in litteris:

T1: "(...) que, na época dos fatos o depoente trabalhava como gerente no hospital Santa Casa de _ e certo dia o Dr. _ [T2] lhe comunicou que havia dado entrada naquele nosocômio uma paciente com sintomas de aborto provocado e pediu ao depoente que tomasse providências

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tendo em vista que já havia acontecido casos semelhantes e que se ocorresse algum problema com a paciente poderiam dizer que o hospital estaria sendo conivente; que se recorda que o nome da paciente é R; que, a paciente ficou em observação para ver se realmente haveria necessidade da retirada do feto, sendo que após algumas horas foi necessário fazer curetagem, sendo que a paciente ficou alguns dias internada para ser medicada. (...)" (fl. 13-TJ, confirmado em juízo as fl. 64-TJ);

T5: "(...) que na época dos fatos o depoente era provedor da Santa Casa; que o T1 era o gerente e trouxe ao conhecimento do depoente a prática do aborto, que teria sido relatada pelo Dr._ [T2]; que o depoente disse então que tinha que comunicar a polícia, o que foi feito; que não chegou a tirar a questão mais em detalhes (...)" (em juízo as fl. 63-TJ).

Fato também corroborado pelo esclarecedor depoimento da Recorrente em juízo (fl. 60-TJ), confirmando o prestado na delegacia (fl. 34-TJ), ocasiões em que teria admitido a prática dos fatos denunciados.

Tais dados nos mostram que existiriam indícios de materialidade do crime e de autoria.

No tocante às motivações, creio que se deva seguir a regra geral ditada pela sapiência da jurisprudência que aponta no sentido de que:

"Dolo - Cabe aos jurados a decisão sobre sua existência, não ao juiz na fase de pronúncia" (RT 504/324), apud Damásio de Jesus e seu CPP Anotado, 19ª ed., 2002, p. 325.

Neste sentido, posicionamento do Col. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, in verbis:

"A sentença de pronúncia precisa ater-se a evidenciar indícios de autoria e materialidade (CPP, art. 408). Em conseqüência, também o tribunal que processa e julga o recurso em sentido estrito. Devem ater-se aos aspectos mencionados. A competência para apreciar o mérito é do Tribunal do Júri." (STJ - RESP nº 85387-PR - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - 6ª Turma - DJ 19/05/1997 p. 20687 - j. 04/03/1997).

"Segundo precedentes, ‘o juízo de pronúncia é, no fundo, um juízo de fundada suspeita e não um juízo de certeza. Admissível a acusação, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao juiz natural da causa, em nosso sistema, o Tribunal do Júri'. (Resp 192.049, Rel. Min. Felix Fischer)." (STJ - RESP nº 225438- CE - Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca - 5ª Turma - DJ 28/08/2000 p. 103 - j. 23/05/2000).

Daí que, existindo fortes indícios sobre a autoria e a materialidade, outra solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada, preservando a competência constitucional do Tribunal do Júri (CF/1988, art. 5, XXXVIII).

Posicionamento, inclusive, consonante com o parecer do i. Procurador de Justiça:

"(...) Analisando os autos, entende a Procuradoria: a) a própria acusada reconheceu que se submeteu a um voluntário procedimento de aborto - tal como soube T1 ali no hospital (fl. 64) -, que se protraiu no tempo por cerca de 15 dias (vide fl.6), quando só então R procurou atendimento médico, donde a dificuldade de se colher a prova material; b) quando a ré foi atendida já não havia o que recolher do feto, porque só restavam parcelas diminutas e indefinidas do ser já decomposto, que causavam infecção na acusada ...; tornando necessária

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uma curetagem que não redundou na coleta de porções identificáveis do pobre ser. Contudo, o Relatório de fl. 23 e os testemunhos de T1 (f. 64) e do Dr. T2 (fl. 61) corroboram a confissão de R, constituindo ACD indireto. Diante do exposto, opina-se pelo conhecimento e improvimento do RSE. (...)" (fls. 112/113-TJ).

Por fim, o posicionamento deste eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA, através de julgamento unânime de semelhante Recurso em Sentido Estrito, pela PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL:

"Recurso em Sentido Estrito - Pronúncia - Prova da materialidade - Indícios de autoria - Absolvição sumária - Impossibilidade - Aplicação do princípio do ‘in dubio pro societate'." (TJMG - RSE nº 1.0000.00.350.189-7/000 - Rel. Des. Márcia Milanez - 1ª CCr. - Julg. 30/09/2003 - Publ. 03/10/2003).

Diante de falados fundamentos, a pretensão de anulação do processo pelo fato de que não foi utilizada a forma correta para a formalização do exame de corpo delito ou por não ter mais como o fazer, não pode persistir, eis que admitida perfeitamente a prova indireta para fins de colheita de indícios de autoria e materialidade contra a Recorrente.

Por fim, quanto ao pleito de condenação do Estado de Minas Gerais ao pagamento dos honorários advocatícios do defensor dativo, em conformidade com o art. 1º, §1º da Lei Estadual nº 13.166/99, cabe ressaltar que os honorários são arbitrados para o patrocínio da causa e não relativamente a cada ato ou fase do processo (TJMG - ACr. n. 324.077-7/00 - Rel. Des. Mercêdo Moreira - 3ª CCr. - Julg. 10/06/2003 - Publ. 14/08/2003), como pretende o advogado, além da supressão de instância (TJMG - ACr. n. 311.927- 8/00 - Rel. Des. Sérgio Resende - 2ª CCr. - Julg. 10/04/2003 - Publ. 10/06/2003), donde se conclui ser inviável a fixação neste momento, devendo aguardar a r. sentença do art. 492 do CPP, uma vez que a presente r. decisão objurgada é apenas contra a pronúncia (TJMG - ACr. n. 195.173-0/00 - Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro - 2ª CCr. - Julg. 19/10/2000 - Publ. 01/11/2000).

Com estas considerações, rejeita-se a preliminar de nulidade e nega-se provimento ao recurso.

Custas, na forma da Lei.

O SR. DES. _ :

VOTO

De acordo.

O SR. DES._ :

VOTO

De acordo.

SÚMULA : À UNANIMIDADE, REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.

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ANEXO H - Sentença

Comarca de __ Ação /Penal Processo: __ Vistos etc A acusada R, contra o qual pesa nestes autos a

acusação da prática de crime de aborto previsto no art. 124, do Código Penal, foi nesta data submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri, que, ao votar os quesitos formulados, houve por bem reconhecer que a mesma não praticou o delito.

Dessa forma, atendendo à decisão do e. Conselho de

Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, iv, do CPP. Publicada nesta assentada de julgamento, dou as

partes por intimadas. Registre-se. Sala das sessões do Tribunal do Júri de __, aos 18

dias do mês de agosto do ano de 2004, às 11,00 horas. Assinatura.