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Edmar Oliveira

Ouvindo vozesHistrias do hospcio e lendas do EncantadoInclui Anotaes para o cemitrio dos vivos, de Lima Barreto

Rio de Janeiro, 2009

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2009 by Edmar Oliviera Direitos desta edio reservados a vieira & lent casa editorial Ltda. Rua Senador Dantas 118 | cj.407 20031-201 | Rio de Janeiro | RJ Telefax | 21 2262 8314 [email protected] www.vieiralent.com.br Editor assistente Raphael Vidal Capa Verbo Arte e Design | Fernando Leite Editorao e projeto grco Leandro Collares (Selnia Servios) Reviso Cristina Augusto de Moura e Maria Beatriz Branquinho da Costa

Editado conforme o Novo Acordo Ortogrco da Lngua Portuguesa de 1990 em vigor a partir de 2009. Capa: Obra de Raphael Domingues. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.

CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

O46o Oliveira, Edmar Ouvindo vozes : histrias do hospcio e lendas do Encantado / Edmar Oliveira. - Rio de Janeiro : Vieira & Lent, 2009. 280p. : il. Inclui bibliograa ISBN 978-85-88782-60-0 1. Instituto Municipal Nise da Silveira - Histria. 2. Doentes mentais - Cuidado e tratamento - Rio de Janeiro (RJ). 3. Assistncia em hospitais psiquitricos - Rio de Janeiro (RJ). I. Ttulo. 09-2801. 09.06.09 18.06.09 CDD: 362.2040981 CDU: 364.4-616.89-008 013234

1a edio, agosto de 2009 vieira & lent casa editorial Ltda.

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O real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia.Joo Guimares Rosa

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Para que este livro fosse possvel tive o amparo de algumas fadas: Patrcia Schmid e Ana Ceclia, que com a mgica do condo fizeram histrias banais virarem fbulas; Sandra Chaves e Ariadne, que me ensinaram a escrever: usar vrgulas e acertar concordncias e discordncias; Marcelina, por no se importar que eu fosse o louco e no o mdico.

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SumrioUm guizo no prefcio, 9 Antes do comeo, 13 Manual do gestor, 19 O voo da vitria, 28 Os antigos castelos, 33 As dores de um parto prematuro, 41 No quintal da loucura, 48 Ferindo o drago, 55 Das urgncias da alma, 70 A morte da morte silenciosa, 77 No calor da luta, 85 O hospcio dentro de ns e a morte no hospcio, 87 Das dores da alma, 93 Quatro guerreiros contra o drago, 100 Vidas soterradas, 116 Voltar a viver, 124 Seu Joo Barbeiro, 133 Estrangeiros de outros hospcios, 137 Das dvidas, 143 Gerao de sonhos, 149 O caminhante das estrelas, 156 Riqueza histrica, 163 Das encrencas da poltica, 170 Posfcio E se essas histrias s ficarem nas pginas de um livro?, 179

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Cronologia da Sade Mental no Brasil, 185 Notas, 195 Imagens..., 197 Sobre Lima Barreto, 209 Anotaes para o cemitrio dos vivos, de Lima Barreto, 211

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Um guizo no prefcio

Quem se arriscar a fazer a travessia destas pginas poder vir a descobrir apenas um lamento de quem se atreve a buscar razes na insnia. Tanto que o mote loucura. Porm, convenhamos assim, enfrente a rdua leitura como apenas um depoimento, uma verso. O mundo que vemos no mais que isso. Vrias verses. No desejamos aqui saber dos significados e significantes da lingustica ou do Lacan.1 Nos apoiamos na vivncia, nas narrativas, no afeto de quem ama essas coisas. Nem pensem na irresponsabilidade das letras a seguir. Simplesmente nos desvencilhamos de todas as armadilhas do saber. Ele existe e muito lhe devemos. cruel, mas necessrio. Fiz um trabalho acadmico que est depositado nas prateleiras da biblioteca do Engenho de Dentro. L esto, h as citaes, as referncias, a bibliografia do que li e sei, de outras que no entendi, outras mais de que discordei. Pacincia. Aqui s usei da narrativa. Sem nenhum compromisso com a verdade ou a Academia. Como uma verso, apenas minha, que ter oposies de outras verses. E muito bom que seja assim. Isto s um apaixonamento da alma. Porque sem ela, seja o que for esse substantivo, no podemos tomar partido de nada. A narrativa de que aqui se trata est apoiada nas vozes dos loucos do Instituto Municipal Nise da Silveira, mais conhecido como hospcio do Engenho de Dentro, j que se encontra na anti-

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ga Estrada do Engenho de Dentro que vinha do Mier em direo ao serto carioca. Na encosta do morro dos Pretos Forros. O stio do hospcio separa o bairro do Engenho de Dentro do bairro do Encantado. Encantado, diz a lenda, por conta de uma carruagem que sumiu nas guas do rio Faria. Encantou-se. As histrias que aqui temos o atrevimento de contar entraram pelo Engenho adentro e saram no Encantado. Do lado de dentro para o lado de fora. So lendas do Encantado. Apenas palavras, histrias contadas e ouvidas no meio de um lugar nenhum. Como que a despertar vidas soterradas no hospcio. Quase um voltar a viver dos que se agarraram aos sonhos. Sobreviventes de um naufrgio da alma. E nas palavras nos socorremos para descrevermos nossos sonhos. A nica arma que me resta a palavra. Ela pode ferir, incomodar, ressuscitar polmicas. desse lugar, qual o bufo escudeiro de D. Quixote,2 que lavro o verbo. Como testemunha do que aconteceu, escarafunchando o passado, as construes do presente e as projees do futuro. O que cantado hoje pode ser um rudo infernal amanh. Podem interromper a leitura e saltar o resto desse prefcio os que no conhecem um hospcio. O que vem da pra frente um inventrio de apropriaes indbitas e reconhecidas. S podia escrever na primeira pessoa depois de ouvir a voz de muita gente. Vozes reais e imaginrias. Algo do que digo aqui so vozes que saram da boca de Ariadne, Flvia, Ana Raquel, Cndido, Patrcia Schmid, Mnica Marchese, Gilson, Snia Poswolski, Rossana, Sandra Helena, Regina Roquete, Edilberto, Dimas, Ana Paula, Rogrio, Viviane, Luiza, Rosngela, Jussara, Patrcia Guimares, Vilma, Adriana Rosa, Clema, ris, rika Pontes, Carlos, Aline, Renata, Ana Paula, Fernanda, Luciane, Luciana, Kelly, Rita de Cssia, Severina, Cyntia, Ana Maria Lambert, Cacilda, Seu Madeira, Solange,

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Marta, Valria, Adriene, Paula Borsoi, Patrcia Miranda, Maria Kemple, Mariana, Aline, outra, Marta Macedo, Mnica Cadei, Karine, Karla, Marcos Jos, Gina Ferreira, Cristina Macedo, Lula Vanderlei, Esther Bussman, Carmem Sobreira, Paulo Botelho, Gilson, Andria, Lcia, Bete Babo, Daniele, Rosely, Luizo, Marilene, Maria Helena, Lcia, Ana Paula, uma outra, Eda Neimar, Anbal, Conceio, Pricila, Alzira, Sandra, Ktia Frazo, Laerte, Tvora, Mrcia Selma, outra Viviane, Marcelo, Roberto, Luiz Carlos, Luizinho, Celso, outro Roberto, Nelson, Adriano, Paulo, Lira, Pinto, outro Luiz Carlos, Jnior, Gladys, Teresinha, Ana, Jobson, Diderot, Mrcia, Bete, Flvia, Dbora, Srgio, Carol e muitas outras gentes que aconteceram. Do lado de fora no tenho como no agradecer a Hugo, Madalena, Patrcia, Andria, Martha Morais, Borga, Cludia Nastari, Luis Cludio, Constncia e a todas as pessoas que tentaram construir uma rede de sade digna de nota. Essas pessoas e outras que porventura esqueci dividiram o sonho comigo. Contudo, se tiverem coragem, me acompanhem, os melhores personagens ainda se faro presentes com suas vozes, quando falarem mais frente.

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Antes do comeo

As histrias aqui contadas acontecem no hospcio de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em processo de desativao. Esse hospcio carrega a marca de sua histria singular, secular e idiossincrtica que, como ferro em brasa, atravessou a alma das criaturas que habitaram seus subterrneos. Antes do comeo, o bairro do Engenho de Dentro foi herdeiro do primeiro hospcio da Amrica Latina. Bela construo em mrmore imponente, que se ergueu na poca do Imprio, na Praia Vermelha, lugar onde hoje o bairro da Urca e fica localizado o Po de Acar, um dos smbolos da cidade. Vamos antes falar do Rio antigo, na corte de Pedro II. no dia da sagrao de Pedro II, o Imperador menino, aos 16 anos, em 18 de julho de 1841, desejando assignalar o fausto dia da Minha Sagrao (...) hei por bem fundar um Hospital destinado privativamente para o tratamento de Alienados, que se imagina uma casa de doidos no Brasil. Entre o decreto e a inaugurao, so mais de dez anos de construo do hospcio. E na Praia Vermelha, por ser um lugar estratgico. A entrada para a cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro fazia-se pela bela Baa de Guanabara, guarnecida na sua embocadura para o oceano pelo Forte de So Joo, no Rio, e a Fortaleza de Santa Cruz onde hoje Niteri. A baa era o ancoradouro das naus que faziam a travessia dos mares e nos traziam os

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visitantes. Esses visitantes, ao entrarem na Baa de Guanabara a partir de 1852, poderiam ver, esquerda, a primeira edificao da cidade, o hospcio de Pedro II, como a anunciar que a civilizao estava definitivamente cravada no Novo Mundo. Uma cidade que cuida de seus loucos uma metrpole civilizada, pois j se passara quase um sculo da libertao dos loucos por Pinel, na Frana, o bero da Europa civilizada. Libertao que foi tirar os loucos da Bastilha e enfi-los no manicmio, imaginrio tratamento que se transformou em pesadelo. Localizar o hospcio, mesmo hoje desativado, pode ser feito com ajuda de fotografias e pinturas da poca: direita, o morro do Po de Acar, que no futuro aferrolharia o bondinho, carto-postal da cidade. esquerda, tudo deserto naquele tempo, avistava-se o costado da montanha do Corcovado, que, em 1931, recebe a esttua do Redentor e passou a ser o smbolo da cidade. Se isto ainda no fosse percebido pelo visitante que aqui chegava na segunda metade do sculo XIX, o prdio imponente da Praia Vermelha mostrava, antes de se chegar ao centro da cidade, que o Imprio sabia cuidar de seus loucos. E ao descer no cais do porto, no Largo do Pao, o visitante podia constatar a higiene urbana traduzida pelo recolhimento dos loucos da via pblica. Entretanto, o Imprio, mesmo tendo inventado o hospcio, tinha tolerncia com seus loucos mansos. A imprensa da poca retrata a presena de vrios tipos pelas ruas, que s eram levados ao hospcio na crise aguda. Um desses tipos, o rei Zulu, era mesmo recebido pelo Imperador Pedro II no dia do beija-mo, deixando-o abenoar seus sditos, dividindo com o colega o recinto pblico, num belo exemplo de tolerncia loucura. Historinha digna de nota: na Repblica, Zulu

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no foi recebido por Deodoro e, recolhido ao hospcio, morreu triste. Junto com as lutas dos ideais republicanos, os alienistas, ainda no Imprio, reivindicavam maior poder no hospcio, que j estava a produzir um excesso de contingente, provocando o surgimento das colnias da Ilha do Governador. Os alienistas queriam mostrar que o excesso era decorrente da no medicalizao do hospcio, que, segundo eles, fora desviado da proposta de Pinel.3 Passados cem anos, propuseram a implantao da Doutrina Moral do incio da psiquiatria, chamada de Pedagogia da Ordem sob a tutela mdica. A organizao cientfica poderia conduzir o hospcio para a cura e diminuiria o excedente, que povoava as colnias. interessante notar que, aps a tomada do hospcio pelos alienistas, na Repblica, a fria classificatria mdica organiza os pavilhes, mas no evita o excesso, que agora vai para as colnias organizadamente, dentro da classificao diagnstica dada pelo poder do ato mdico. E, se no iam s colnias, pior sair ao cemitrio. O So Joo Batista ficava atrs do hospcio, no muito longe, no dizer de Lima Barreto,4 que prometia ir tumba se de novo fosse parar na Praia Vermelha. Foi sem precisar voltar ao hospcio. Se para as colnias da Ilha do Governador ia o excedente masculino desde ainda na Monarquia, na Repblica, essas colnias foram transferidas para Jacarepagu, local mais espaoso e mais longe das vistas, e aparece, no incio da segunda dcada do sculo XX, a colnia de Alienadas do Engenho de Dentro. As colnias masculinas eram essencialmente agrcolas, tendo no trabalho braal o que se imaginava teraputico, apesar da praga das savas que infestavam a Ilha do Governador. No Engenho de Dentro, a colnia feminina teve outro destino.

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Ainda no Imprio, a Estrada de Ferro D. Pedro II, que ligava a Corte regio cafeeira do Vale do Paraba, fez aparecer no serto carioca os bairros que vo compor o subrbio do Rio de Janeiro. Nos primeiros anos do sculo XX, vrios desses bairros se consolidam como alternativas mais baratas e saudveis de vida, dado o inchao populacional da cidade. Mier, Piedade, Inhama, Todos os Santos e Engenho de Dentro, entre outros, registram j trinta por cento dos habitantes da Capital Federal no final do sculo XIX. Se cada uma dessas localidades tem uma histria caracterstica, a do Engenho de Dentro singular. A implantao de uma grande oficina de conserto de trens onde hoje so o Museu do Trem e o Estdio do Engenho faz a regio ser conhecida como Bairro das Oficinas. Isto porque, em torno da oficina de trens, artfices e oficineiros de vrios matizes colocavam sua mo-de-obra especializada disposio da cidade, num s local. Fenmeno que, mais tarde, vai se reproduzir no comrcio de outros bairros do subrbio, com a concentrao de uma atividade o bairro tornar-se especialista: em luzes e luminrias, Benfica, em refrigerao, Cascadura, em doces, Quintino, entre outros. Outra caracterstica de Engenho de Dentro, consequncia da concentrao de artfices, a proliferao de pequenas fbricas pelo bairro. Na rua Maria Flora havia uma fbrica de louas que, quando desativada, foi transformada por Oswaldo Cruz em enfermaria para internar pacientes durante o surto de clera, em 1908. Em 1911, essa mesma edificao vai receber o primeiro contingente de excedente feminino do hospcio da Praia Vermelha. Assim nascia a colnia de Engenho de Dentro, que tem um crescimento vertiginoso com o recebimento de novos hspedes. No segundo ano de funcionamento, mais um pavilho constru-

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do para duzentas novas almas, classificadas como incurveis pelo hospcio Nacional. No seu apogeu, o hospcio de Engenho de Dentro chega a abrigar mais de 1.500 pessoas em seus pavilhes, que se espalham na encosta do Morro dos Pretos Forros e se derramam no bairro do Encantado, na divisa do Engenho de Dentro. Trs dcadas depois de inaugurada a colnia, j com a denominao de Centro Psiquitrico Nacional, todos os pacientes da Praia Vermelha foram transferidos para o Engenho de Dentro, num movimento de afastar a loucura do centro da cidade e levar para o subrbio. O hospcio j no era visto como o centro de cura de uma metrpole civilizada, mas um depsito de vidas soterradas para a cura da sociedade, que fora infectada por degenerados biolgicos. No Engenho de Dentro, tem lugar o desenvolvimento das experincias biolgicas eugnicas, com a fundao da Liga Brasileira de Higiene Mental. Foi construdo, alm de um pavilho de isolamento para doenas infectantes, o Bloco Mdico Cirrgico, com maternidade e clnicas especializadas para os loucos. O que se passava por trs dos muros inspirava medo aos habitantes do bairro. S aps muito tempo mostrou-se ao bairro o que havia atrs desses muros, pois poucos dos que estavam l dentro circulavam aqui fora. Embora o bairro tenha a rua das Oficinas, ruas Dr. Leal e Dr. Padilha donos de pequenas fbricas no subrbio , essas atividades no vingaram. No h vestgios de oficinas e fbricas, como caracterstica do bairro no Engenho de Dentro de h muito tempo. Ironicamente, parece que a oficina que prosperou foi a da fbrica de loucos. E justamente nessa fbrica, em vspera de completar 100 anos, foi instalado um processo de desativao do qual tratam estas linhas, para contar histria e histrias de almas, soterradas na escurido do tempo, que renasceram para a vida no

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Encantado. Ainda estamos antes do comeo. Em Anotaes para o cemitrio dos vivos (ver p. 211), Lima Barreto narra sua passagem pela Praia Vermelha. Mas, ainda bem, quis o destino quase sempre to cruel com o escritor que Lima Barreto no fosse soterrado em vida, piorando ainda mais seu triste fim. Aos sem cura, o destino eram as colnias. Essas colnias, filiais da matriz da Praia Vermelha, cresciam medida que o alienista, em sua fria classificatria, a elas encaminhava almas condenadas pela falta da cura, embora a matriz as fabricasse com intensidade. Nestas pginas, vamos tentar seguir a histria da filial, que incorporou a matriz para destino e glria do alienismo nacional.

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Manual do gestor

J havia exercido cargos de direo aqui e ali, na prpria instituio e fora dela, antes de assumir a direo do hospcio para a tarefa que descreverei. Entretanto, estava, no anteceder do encargo, afastado deles por quase dez anos. Por uma trajetria que aqui no vou narrar, no tinha mais interesse em exercer a funo de direo, to envolvido estava com a prtica clnica. Comparada s atividades burocrticas, a prtica clnica em Sade Mental tem uma vantagem: a loucura dos pacientes bem menor que a loucura da mquina pblica para o funcionamento de um servio. H muito tempo eu j conhecia os mecanismos delirantes da mquina burocrtica e, numa de minhas renncias aos cargos pblicos, explicitei essa tese a meu chefe. Embora, naquele instante, isso parecesse no ser novidade, em vrias oportunidades dessa minha experincia seria surpreendido de forma muito mais intensa que no passado. Nada to ilgico como a gesto pblica, a mquina parece organizada para no funcionar. Se assim to complicado, por que aceitei a tarefa? Talvez deva esta explicao a mim mesmo mais do que aos outros. Lembro que vinha sendo pressionado pelos colegas para voltar a um cargo pblico, no que relutava sempre, to satisfeito estava com o trabalho clnico. Argumentava que a velha institui-

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o que me abrigava tinha que ser direcionada, para ser compatvel com o que convencionamos chamar de Reforma Psiquitrica, em trs aspectos: (1) a municipalizao da instituio que era federal (2) sua integrao na rede de sade local e, (3) pelo menos, a inteno dos gestores em permitir uma grande transformao nos rumos do hospcio secular. Como o grave defeito do contador de histrias falar demais, imagino que mordi a lngua e o engodo. A velha instituio, junto com outros hospitais federais, foi municipalizada; os gestores, nos planos federal, estadual e municipal, ofereceram a inteno reclamada, e a arrumao foi colocada na minha cota de responsabilidade. Se assim no foi, assim entendo que aconteceu. De fato, a direo que me antecedeu queria recuperar o Hospital como o gigante que havia sido no passado e, fora alguns funcionrios preocupados com os rumos da Reforma Psiquitrica, a maioria dos servidores queria as glrias do hospcio conquistadas no passado. Essa marca do passado, impressa no presente, seria um grande problema a ser superado no futuro de que trata este depoimento. Na minha concepo, fora as dificuldades de hotelaria, pela degradao do abandono de dcadas, a decadncia era at um facilitador de sua desativao. Mas no comungava desse mistrio com os outros fiis, inclusive com meus primeiros parceiros da equipe inicial. E ainda foi muito forte a marca que a municipalizao trouxe ao corpo de servidores: sentiam-se diminudos. Ser federal dava muito mais status que municipal. A instituio no recebeu bem o que entendia ser um rebaixamento. A fratura no se instalou ali, porque meu antecessor no era bem quisto e, alm disso, no foi muito presente. Se no fui bem recebido, mal tambm no, como era um funcionrio de carreira da instituio federal tambm podia entender o suposto desprestgio que

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a prefeitura representava. Meu antecessor, sabendo da exonerao, escafedeu-se, no passou o cargo. Foi ruim chegar assim no que parecia vazio. Dois meses depois de estar na funo, fui empossado. Nesse tempo, andei feito um zumbi entre pacientes e funcionrios, nas alamedas e pavilhes. Tambm bati pernas, conhecendo os servios do distrito sanitrio, onde estava adormecido o paquidrmico hospcio, isolado do mundo, da cidade, do bairro, vivendo por trs de muros altos, dentro de si, sem se importar com o que acontecia l fora. Fui, com vagar, montando a equipe de diretores. Gente de fora, de dentro, tendo em comum apenas o discurso da Reforma Psiquitrica. Um discurso que no era to homogneo assim, como veria depois. Entre essas atividades frenticas, os pensamentos eram quase como ouvidos do lado de fora da cabea, feito vozes que os pacientes costumam escutar, tentando elaborar um plano gestor. As tarefas do dia a dia no me aborreciam, fazia-as com facilidade, dado minhas experincias anteriores. Novo e desafiador era o projeto a ser executado no macro, na conjuntura, na desconstruo do hospcio. Por onde comear? E a resistncia que advinha dos contrrios a esse propsito? Perguntas complicadas. Por essa poca fazia uma releitura de Grande serto: veredas, de Guimares Rosa.5 Justo na parte em que Riobaldo assume a chefia do bando para proteger Diadorim e fazer glria e justia no territrio das Gerais, comecei a anotar o que a literatura podia me ensinar sobre como conduzir um bando para fazer o projeto. A primeira lio de Riobaldo: Um chefe carece saber aquilo que ele no pergunta. Milhes de exemplos me valeram a verdade desse enunciado do gestor jaguno. Prestando ateno nos interstcios foucaultianos da instituio, muito aprendi sobre seus segredos, que me foram teis ao elaborar a proposta. Durante todo o pero-

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do de gesto, aprimorei saber aquilo que no perguntava. Em uma instituio do peso daquela, sem as trocas com o lado de fora, se o diretor tiver ouvidos, ele acaba sabendo de tudo o que acontece. Desenvolvi uma capacidade sensitiva para ouvir o que Guimares e Foucault podiam me ensinar. O primeiro, com a perspiccia de saber sem perguntar. O segundo, na arqueologia de revolver camadas do stio paleontolgico das relaes de poder. O enfermeiro do hospcio herdou as prticas do servio de guarda primitivo, misto de carcereiro e juiz dos acontecimentos de dentro da enfermaria. A conteno, o sossega-leo (medicao injetvel de sedao), a sada da enfermaria, o cigarro, as roupas, o privilgio do banho, em suma, o prmio e o castigo, eram decises desse funcionrio primitivo, senhor dos destinos, preso histria de uma psiquiatria do passado. Dessa situao no se sabia perguntando, mas revolvendo camadas das relaes dos pequenos poderes. Perdi o hbito de perguntar e, no remexer das camadas institucionais, muito aprendi para elaborar um plano de ao. Riobaldo tambm dizia que ser chefe, s vezes, isso: que se tem de carregar cobras na sacola, sem concesso de se matar. Muito mais cedo do que imaginava, esse dito me foi muito valioso. Um membro da equipe mostrou-se contrrio ao projeto de desativar o hospcio. Comeou mesmo a fazer propostas contrrias ao projeto apresentado. O restante da equipe percebeu a dificuldade de continuarmos juntos. Entretanto, avaliamos que, por razes de injunes internas, no era o momento da ruptura. Tentei acalmar todos, fazendo-os entender que ser chefe isso: ter que carregar cobra etc., com os devidos cuidados. Foi preciso aguardar o momento oportuno de matar as cobras. E no precisava mostrar o pau, j que as cobras estavam sob nossa responsabilidade e atuando junto. Evitar o bote era a misso do gestor.

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Foram inmeras as vezes em que os conselhos de Grande serto: veredas me ajudaram a evitar que o projeto fosse posto em risco. Basaglia6 j dizia para colocar entre parnteses a doena para que o paciente fosse visto. Riobaldo propunha colocar parnteses nas cobras para que a situao fosse melhor avaliada. Como mais um exemplo de manual do gestor jaguno de Grande serto: veredas, anotamos na nossa carta de intenes: Ao chefe no convm deixar os outros repararem que ele est ansiando preocupao incerta. Essa sapincia propositiva foi dividida com todos os chefes que compunham nossa equipe. Era preciso certeza na dvida para conduzir o projeto frente s adversidades. A preocupao incerta pode existir, mas no pode ser percebida. No observar essa proposio pode transmitir uma insegurana que coloca em risco a direo a seguir, que no contenha grande hegemonia. Essa ansiedade pode provocar a desavena. No entanto, naquele momento de solido, dois meses antes da posse, esses mandamentos s me apuravam a f cega. No tinha ainda amolado a faca. Vagando, perambulando, um plano foi se formando. Mas atrs de uma nvoa, que s viria a se dissipar aps consolidar uma equipe, para que o pensar coletivo pudesse enunciar uma proposta. O momento da posse foi surpreendente. O grande auditrio no tinha lugar para todos. Amigos com cargos pblicos, sem cargos, pessoas de outras instituies, outras que no conhecia, ou s de nome, chegaram de todas as partes. Sentei mesa com dois secretrios, da Ao Social e da Sade, com a coordenadora de Distrito e com o prefeito da cidade. Se lembro disso agora, porque essa surpresa despertou em mim a expectativa da tarefa que deveria ser levada a cabo. E aumentou a responsabilidade e a angstia dos dois meses anteriores. Por certo, depois de tanto

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tempo, muitos nem lembram mais e, com certeza, no devo ter correspondido a todas as expectativas ali colocadas. Registro aqui este momento para destacar a importncia que teve a cerimnia para mim e para a equipe dirigente que estava sendo montada naqueles dois meses que antecederam a homologao do cargo e do projeto. Meu discurso improvisado resumia uma proposta ainda no definida. Na medida em que desativar o hospcio pressupunha a construo de servios em comunidade, era difcil aceitar a nomeao da instituio como Centro Psiquitrico Pedro II. Isso porque esse ttulo simbolizava uma proposta centrpeta, tendo o leito hospitalar como a finalidade do tratamento. A proposta que ainda imaginava, e sobre a qual tinha as primeiras discusses com a equipe, era de natureza centrfuga, para fora da enfermaria e do leito, ou seja, para a cidade, o bairro e a comunidade. Pelo menos a descentralizao era imaginada como meta. No se havia ainda elaborado como alcanar a meta. Tnhamos, primeiro, de acertar entre a equipe, antes de combinar com o adversrio. O que ocorreu mais merecia ser contado como piada, vista a reao em gargalhada da plateia. Destaco o ocorrido porque representa, de uma forma engraada, as diversas dificuldades que tive com a mquina pblica e seus burocratas, que sempre pareceram trabalhar para enlouquecer a linha de comando de quem fica na ponta do sistema, e para destacar o tal jogo de cintura que se exige dos cargos pblicos com os superiores poderosos. Durante minha fala, discorria sobre os conceitos de centrpeta e centrfuga, para falar de uma poltica de Sade Mental que fugisse do leito. Enquanto dizia o que seria a proposta centrfuga, o senhor prefeito da cidade me corrigiu, dizendo que o termo que significava para fora era centrpeta, numa tentativa de me ajudar no discurso. Certo de que as palavras se prestam a confuses, sendo a inteno do

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alcaide apenas professoral, no me cabia sair de um trilho que podia atrapalhar meu raciocnio improvisado. Mesmo sabendo que estava certo, concordei com o erro apontado pelo prefeito, argumentando, com a plateia cmplice, que no se pode discordar do prefeito, mas que dali pra frente, entendessem que centrpeta significava sair do centro para a periferia, por decreto municipal. Assim continuei meu discurso. Vrias vezes tive que usar desse expediente para fazer o to propagado jogo de cintura. Acrescentei esse truque ao meu manual de gestor. Desse dia, que me marcou muito, o principal estava por vir: a festa que os pacientes do hospital no qual eu estava lotado at ser convidado para a direo fizeram foi inesquecvel. O responsvel pela cantina, em cujo servio trabalhavam pacientes, havia proposto preparar o buf da cerimnia de posse. Mas as autoridades da prefeitura no concordaram, argumentando que o prefeito e os secretrios estariam presentes, o que, no fundo, encobria o preconceito com o trabalho dos maluquinhos. Fiquei do lado dos pacientes, confiando na colega que coordenava a oficina. A discusso foi feita na vspera da festa. Combinamos assim, na minha teoria adaptada do jogo de cintura: para as autoridades, a prefeitura prepararia o buf; para os outros convidados, o rega-bofe seria de responsabilidade dos pacientes. Foi impossvel conter o riso e o prazer ao ver o pessoal da prefeitura apavorado com o atraso do buf das autoridades, enquanto os pacientes serviam os outros convidados no tempo certo e com uma qualidade de encher os olhos famintos do meio-dia. As autoridades, no aguentando esperar o buf oficial, beliscavam o rega-bofe da periferia. Do lado de fora, a festa rolou durante todo o dia. Barraquinhas, conjuntos musicais, um encantamento nos pacientes

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EDMAR OLIVEIRA

que circulavam livres das amarras e das grades que os prendiam. Nunca vou esquecer a esperana nos olhares. Ali parecia construdo um compromisso que jamais abandonei: era para os seres excludos e soterrados que se faria toda a ao daquela gesto. Compromisso anotado no manual do gestor. Foi pelo brilho do olhar que firmamos o compromisso. Uma professora de dana da Secretaria de Ao Social, amiga de tempos, me fez lgrimas nos olhos. Danou com um paraplgico, que caa da cadeira de rodas para o palco, em movimentos mgicos da dana que dispensava a ao da gravidade. Naquele dia firmei um compromisso que carrego comigo. Se com ele era possvel levitar, porque no libertar vidas aprisionadas na gravidade centrpeta do hospcio? O dia terminaria entre chopes, comemoraes e xtases. Na ressaca do dia seguinte, voltou a angstia de antes. Fiquei com meu manual de gesto incompleto. Embora no tivesse sido responsvel pela internao de ningum, a casa estava cheia de desclassificados da sociedade, mas classificados nos diagnsticos cientficos. E ainda tinha muitas dvidas no manual, que no se completariam naquele momento, s muito depois. Apesar de j ter especializao em gesto pblica, fiz questo de fazer novo curso de formao. Ser submetido aos bancos escolares da academia foi um sacrifcio enorme. Mas precisava estar preparado e conhecer o campo do inimigo para colocar na luta nosso exrcito de Brancaleone.7 No final do curso, apresentei um trabalho, elaborado pela minha equipe, com as linhas gerais do planejamento estratgico para a ao da desativao do manicmio. E tudo o que ali se planejou, foi executado. Menos de um ano depois daquele incio de trabalho, senti que ele ressoava l fora e ainda no era percebido pela popula-

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o. Um vizinho do hospcio, de uma sensibilidade apurada nas agruras da vida e ao que tudo indica pela psiquiatria ameaadora, enviou-me um bilhete de advertncia. Como se estivesse com medo de que me desviasse do propsito iniciado. Anotei cada palavra no meu manual. Alis, transformei a advertncia singela no primeiro mandamento embora nunca o tenha conhecido e, em destaque, colei na parede do meu gabinete, para que todos pudessem ver e eu decorar, pela insistncia da leitura de todos os dias. Assim dizia Luiz Nunes Brasil, que assinava a advertncia:Sr. Diretor, lembra-te de combater os crimes e evitar as doenas transmitidas por psiquiatria, com psiquiatria, em psiquiatria. Obrigado.

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