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PRÁTICA DE CONSUMO EM VIDEO GAME
Adelaide Maria de Lima MAGEDANZ
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem
Universidade Federal de Mato Grosso
RESUMO: Este artigo é parte de minha dissertação de mestrado (MAGEDANZ, 2016),
realizada no âmbito dos estudos de Letramento Digital, desenvolvida com adolescentes que
têm a prática de jogar vídeo game, cujo objetivo se voltou para a compreensão das
construções de sentidos desses jogadores acerca da questão de consumo nessa prática, com
base nas asserções teóricas dos estudos sobre novos letramentos e multiletramentos
desenvolvidos por Lankshear e Knobel (2007) e Cope e Kalantzis (2001). No que tange à
análise da pesquisa, respalda-se nos estudos sobre consumo (BAUMAN, 1998, 2001, 2008).
A pesquisa é de base interpretativo-qualitativa, norteada pelos autores Bortoni-Ricardo (2008)
e Denzin e Lincoln (2006), tendo em vista uma maior compreensão do diálogo dos
entrevistados. Os participantes são quatro adolescentes, entre doze e quatorze anos,
regularmente matriculados no sétimo ano do Ensino Fundamental e primeiro ano do Ensino
Médio. A partir dos resultados obtidos das entrevistas, revelaram-se percepções de que, na
prática do GTA, os adolescentes são expostos a uma série de influências sociais e culturais,
como a prática de consumo, a fim de satisfazer seus desejos, pautado em um bem-estar
líquido que busca, cada vez mais, consumir de forma incessante, segundo a ideologia de uma
sociedade que prega uma cultura de consumo. Os resultados apontam ainda para práticas com
pouco espaço para uma possível reflexão crítica.
PALAVRAS-CHAVE: vídeo game consumo, práticas de letramentos, construção de
sentidos.
ABSTRACT: This article is part of my master's thesis (MAGEDANZ, 2016), held under the
Digital Literacy studies, developed with adolescents who have the practice of playing video
games, aimed turned to understanding the construction of meanings of these players about
consumer question this practice, based on theoretical assertions of studies on new literacies
and multiliteracies developed by Lankshear and Knobel (2007) and Cope and Kalantzis
(2001). Regarding the analysis of the research draws upon studies on consumption
(BAUMAN, 1998, 2001, 2008). The survey is interpretive and qualitative basis, guided by –
the authors Bortoni-Ricardo (2008) and Denzin and Lincoln (2006), with a view to greater
understanding of the respondents dialogue. Participants are four teenagers, between twelve
and fourteen, enrolled in the seventh grade of elementary school and first year of high school.
From the results of the interviews revealed perceptions that the practice of GTA, teens are
exposed to a range of social and cultural influences, such as the practice of consumption in
order to satisfy their desires, based on a net welfare seeking, increasingly consume
incessantly, according to the ideology of a society that preaches a consumer culture. The
results also point to practices with little room for a possible critical reflection.
KEY-WORDS: videogame, consumption, literacies practices, construction of meaning.
INTRODUÇÃO
De fato, o mundo atual é marcado virtualmente pelos meios de comunicação e mídias
digitais, é parte integrante da nossa cultura e permeia a vida de adultos, jovens e adolescentes
de forma naturalizada. Um cenário caracterizado pela comunicação audiovisual que seduz,
especificamente no tocante a vídeo games, provocando transformações no âmbito da
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linguagem, afetando o seu modo de se expressar e relacionar com o mundo. Tal conjuntura
tem sido alvo de questionamentos sobre a sua aplicabilidade, principalmente por educadores,
pais, psicólogos, também áreas de comunicação social e engenharia de computação,
evidenciando o quão importante é discutir essa prática bastante popular na
contemporaneidade.
Na perspectiva desse cenário, entendo que o jogo se caracteriza como um evento
dinâmico, híbrido, uma prática contemporânea que apresenta significados culturais, escolhido
pelos jovens, adolescentes e crianças, para brincarem livremente, longe de olhares
disciplinadores de pais e educadores. No entanto, embora os vídeo games tenham conquistado
uma posição de destaque na economia e na sociedade contemporânea, ainda assim, não são
vistos com seriedade e, assim, sentimos a necessidade de mais estudos em torno dessa prática,
até porque tal abordagem é, ainda, pouco realizada em estudos linguísticos; além do mais, as
pesquisas concretizadas até o momento não conseguiram situar o vídeo game em um grau de
importância maior na área educacional.
Com base nisso, o artigo que segue se propõe apresentar resultados que surgem no
contexto de uma pesquisa com vídeo game, especificamente o GTA V no modo On-line, a
qual objetiva compreender os sentidos que os adolescentes dão a consumo na prática desse
jogo. Essa investigação se situa dentro de uma perspectiva de práticas de letramentos, na
prática de vídeo games, desenvolvida por jovens e adolescentes, de forma recorrente, fora das
paredes escolares. O enfoque pretendido dessa prática é a compreensão sobre os sentidos
construídos acerca de consumo dos adolescentes com esses novos letramentos e
multiletramentos, consequentemente, saber se jogam por diversão ou de maneira produtiva,
como essa prática de letramentos é interpretada, como torná-la útil e favorável aos que jogam.
Para isso, entendo que seja necessário entrar no jogo, saber como os adolescentes se
apropriam dessas práticas letradas até porque o adolescente pode realizar ações e, ao mesmo
tempo, pode não ter muita criticidade nas questões que envolvem o jogo, como o grau de
violência, sobre a sustentabilidade nos temas, visto apenas como entretenimento.
Diante da posição ocupada pelo vídeo game na cultura contemporânea, como um
importante meio de expressão digital, mesmo imersos nesse universo multiletrado, crianças e
adolescentes, os principais consumidores dessa prática, possivelmente, consomem o produto e
pouco questionam; e o educador, como coordenador, na perspectiva do letramento crítico, é o
mediador do conhecimento. Jordão (2007, p. 20), na concepção de língua e seu impacto na
contemporaneidade, destaca: “é papel do professor, ampliar seu leque de procedimentos
interpretativos e visões de mundo, para poder ajudar os alunos a ampliarem também os seus,
ou seja, o professor precisa expor seus alunos a diferentes textos e a diferentes modos de ler e
construir sentidos”. Nesse caso, tratando de games, os discentes são os especialistas, onde as
ações serão compartilhadas, e os docentes atuam como coordenadores desses sentidos que,
conforme constatamos, são construídos nessa modalidade de letramento.
O artigo traz resultados que focalizam a inquietação em compreender as interpretações
construídas pelos investigados sobre consumo, ao se apropriarem da prática de vídeo game,
em que valores culturais são edificados e consentem visões de mundos específicos. Indicam
outros caminhos no modo de ensinar, desencadeando transformações no sujeito, onde os
adolescentes usuários dessa mídia podem encontrar possibilidades de pensamento crítico,
viabilizando ao sujeito uma influência direta sobre eventos que ocorrem à sua volta. Entende-
se, dessa maneira, que essa proposição busca expandir perspectivas sobre letramentos digitais,
um repensar acerca de novas performances que refletem práticas de novos saberes, que
requerem habilidade em proceder e agir na busca por novos sentidos, uma prática que pode
permitir quebrar regras e inovar, conforme Lankshear e Knobel (2007), ou seja, busca-se
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repensar as estratégias de letramentos na contemporaneidade e suas relações com a cultura
atual, cultura dos games e, a partir desses espaços interacionais, perceber a complexidade das
práticas de letramentos marcadas pelas transformações comunicacionais.
O aporte teórico, neste artigo, se constrói pelos estudos sobre consumo, de Bauman
(1998, 2001, 2008), além de estudos sobre novos letramentos e multiletramentos, de
Lanksheare Knobel (2007) e Cope e Kalantzis (2001). O procedimento da pesquisa
apresentada segue a interpretativo-qualitativa, de acordo com metodologias descritas por
Bortoni-Ricardo (2008) e Denzin e Lincoln (2006). Optar pela abordagem qualitativa é
perceber a pluralidade de diferentes olhares, sem se preocupar em testar teorias formuladas e,
sim, focar nas interações entre os sujeitos. Nesse norte, a pesquisa qualitativa propõe o
enfoque na percepção e interpretação dos significados que são construídos pelos participantes
do jogo, e como figuram o mundo, firmados em suas próprias realidades, considerando seu
envolvimento em contextos sociais, atribuindo sentidos segundo suas experiências.
A pesquisa contou com quatro adolescentes, 3 (três) garotos e 1 (uma) garota, todos
praticantes de vídeo game cotidianamente, com idade entre 12 (doze) e 14 (catorze) anos,
matriculados regularmente no Ensino Fundamental e Médio, todos pertencentes a uma rede
particular. A escolha desse perfil de participantes se deveu por ser uma prática recorrente nas
suas vidas diárias e o fato de serem colegas na mesma escola, e amigos dos meus dois filhos,
ele com 12 e ela com 14 anos, também participantes da pesquisa; além da praticidade em
realizar a pesquisa na própria residência. Conhecer previamente a geração dos dados, também
foi fator determinante para a escolha desses adolescentes para a realização das atividades
propostas. Receberam as explicações de que os procedimentos de pesquisa consistiam em
participar das entrevistas, jogar o game e responder a um questionário.
A fim de alcançar os objetivos propostos, realizei esta pesquisa com um olhar
contemplativo e observacional ao fenômeno em questão, direcionei o trabalho através da
técnica de entrevistas semiestruturadas, com questões com respostas abertas, nas quais os
respondentes puderam escrever suas respostas com suas próprias palavras (FLICK, 2013).
Por ser um trabalho que apresenta caráter midiático e interativo, para a coleta de dados com os
participantes, utilizei o celular para as gravações, notebook e o aplicativo Whatsapp,
facilitando a troca concomitante de experiências, além da observação participante do objeto
pesquisado.
1 SOBRE A VISÃO DE CONSUMO DENTRO DO JOGO
Como apontado anteriormente, entendo que os adolescentes, dentro do jogo, são
engajados em práticas de letramentos em que se apropriam de diversas linguagens, um espaço
híbrido em que, raramente, a criticidade está em jogo; particularmente instigada com essa
questão, busco tratar desse consumo com um viés crítico.
Embora conhecedores de que jogam por diversão, nota-se que essas práticas carregam
outras práticas; os adolescentes, mesmo que inconscientes, exercitam práticas variadas, não
escolares, como letramentos do consumidor, prática esta, bastante familiar na nossa vida
diária. São letramentos imbricados de valores culturais e ideológicos com pouco sinal de
interpretação ou reflexão.
Nesse segmento, retomo a ideia de que o game pode ser uma conexão para o
desenvolvimento crítico mais alargado; o adolescente consome o produto e pouco questiona
sobre suas próprias práticas dentro do jogo. De acordo com Monte Mór (2013), os letramentos
críticos envolvem uma reconstrução da compreensão acerca das instituições e práticas sociais,
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e das ideologias nelas presentes. Com forte influência das concepções freirianas, a autora
sustenta que o letramento crítico envolve a linguagem em sua natureza política, devido às
relações de poder nela presentes. Com essa asserção, é possível pontuar que o jogo oferece, ao
jogador adolescente, a possibilidade de não apenas compreender seus conteúdos, mas também
buscar entender quais as intenções e ideologias de seus produtores, desenvolvendo a
habilidade de construção de sentidos (meaming making).
Por conseguinte, ao perscrutar os dados por meio das falas dos participantes, eis que
emerge a prática de consumo, que exemplifico com os dizeres de um deles: “O GTA é isso,
matar gente, só interessa em ganhar dinheiro e gastar (risos). A gente gosta de ostentar
dentro do jogo...”. Isso caracteriza uma produção de práticas que vem contribuir para a
compreensão de que, ao tratarmos do jogo digital, os participantes são arriscados a se
embrenhar em um universo multidisciplinar, complexo, que possibilita a descoberta de
valores culturais e ideológicos. Nesse seguimento, o GTA é resultado do projeto do modo de
produção existente e não apenas um consumo direto do entretenimento, porém, um modelo
presente na vida socialmente dominante (DEBORD, 1994).
Diante disso, conforme esse autor, mercadoria à disposição dos jogadores, entra como
movimento essencial do espetáculo - aqui relaciono o jogo com um espetáculo - que consiste
em ingerir tudo o que existe na atividade humana em estado líquido1 para, depois, despejá-lo
em estado de solidificação, dominando tudo o que é vivido. “O mundo da mercadoria é
mostrado como ele é, com seu movimento idêntico ao afastamento dos homens entre si, o
mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existem acima deles”
(DEBORD, 1994, p. 37).
Por esse pressuposto, a mercadoria aparece, de forma efetiva, como uma potência que
vem ocupar a vida social, e é aí que Debord afirma que a economia política entra como a
ciência dominante, isto é, o espetáculo do jogo é o momento em que a mercadoria chega à
ocupação total da vida social desses jogadores; tudo isso é visível com relação à mercadoria,
pois nada mais se vê, senão ela, o mundo visível é o seu mundo. Compreende-se, dessa forma,
que, no jogo, o espetáculo é a outra face do dinheiro, que equivale ao abstrato das
mercadorias.
Por outro lado, Goffman (2002) emprega a metáfora da ação teatral para evidenciar a
estrutura que o sujeito desenvolve diante de qualquer situação social, no sentido de comandar
as impressões que possam ter dele. Nesse momento, o ator faz uso das técnicas de
sustentação, na esperança de que seus observadores respondam às impressões sustentadas
diante deles. Essas técnicas de sustentação utilizadas, também caracterizadas como artífices,
que possibilitam ao ator ser quem deseja ser, Goffman descreve como sendo: vestuários,
gênero, idade, altura, aparência, atitude, padrões de linguagem, cenário, gestos corporais para
sustentar mentiras, ou, verdades infundadas sobre seu status social. Na minha compreensão,
esse conjunto de artífices seria a mercadoria ou o abstrato dela para a representação da vida
cotidiana do autor.
Da mesma forma, pode-se referir ao jogo GTA como jogadores livres para a criação e
atuação, que se apropriam de mercadorias diversas, para simularem uma vida de consumo
permeada de relações de poder, em que realizam diversas atividades, ganham dinheiro,
1 O sentido de liquidez, aqui empregado, como também, em outros momentos, no decorrer do trabalho, relaciona
ao que Bauman propõe, no sentido de que os líquidos não têm uma forma, ou seja, são fluídos que se moldam
conforme o recipiente nos quais estão contidos, Os fluídos se movem facilmente, quer dizer: simplesmente
“fluem”, “escorrem entre os dedos”, “transbordam”, “vazam”, “preenchem vazios com leveza e
fluidez”(BAUMAN, 2001: Livro Modernidade Líquida). Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss.
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adquirem bens (automóveis de luxo, apartamentos, aviões, roupas, etc.); são consumidores
virtuais, se utilizam das diversas linguagens de forma simultânea, agem sobre o mundo com
autonomia e conhecimento; aqui se tornam agentes de letramentos, buscam a ostentação como
forma de satisfação ilusória, em busca de status, valores esses, pregados pela sociedade
capitalista, cada vez mais seletiva econômica e socialmente.
Hoje, com os jogos disponibilizados na modalidade on-line, nota-se verdadeiros
espetáculos sendo reproduzidos nas telas, repletos de conteúdos que considero “sérios”, em
que os adolescentes participam de forma ativa, são postos a tomarem decisões, atuam como
adultos autênticos, em busca da realização de seus interesses. Nesse sentido, faz-se necessário
um breve enfoque, a fim de entendermos o conceito acerca de consumo, abordado por
Bauman (2008), na contemporaneidade. Embora o consumo seja visto de maneira trivial, é
uma prática diária realizada por nós humanos, de diversas formas.
Assim, “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de
vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros
quanto ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade,
uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além
da formação de indivíduos humanos, “desempenhando ao mesmo tempo um papel importante
nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução
de políticas de vida individual e de grupo” (BAUMAN, 2008, p. 41).
No jogo do consumo GTA, os jogadores são estimulados a se engajarem numa
incessante atividade de consumo; tarefas espetaculares são desenvolvidas na tela, representam
diversos personagens, em um universo que se assemelha ao mundo real, apropriam-se de um
avatar e se inserem num espaço cultural infindável, sentem-se livres para fazer o que desejam;
se apossam de bens virtuais, como: ganhar dinheiro, comprar automóveis sofisticados,
adquirir apartamentos, roupas, além de criar equipes, comunicar com jogadores de qualquer
lugar; a fim de colaboração, executam atividades ilícitas: assaltos, assassinatos, etc. São
experiências de práticas de letramentos em tempo real, on-line, vivenciadas na vida diária de
muitos adolescentes, que são silenciadas pelos adultos. No jogo, os adolescentes são treinados
em um conjunto de práticas, ou seja, brincam para viver segundo o modelo social vigente, são
alimentados pela disputa, pela gestão do poder para a conquista do bem-estar e da felicidade
(BAUMAN, 1998).
Bauman (2001) busca compreender a liberdade consumidora que proporciona, aos
indivíduos líquidos, o sonho de uma vida feliz que nunca chegará. Para ele, o momento
presente pode ser caracterizado como a era da liquefação do projeto moderno, ou seja,
vivemos um momento em que tudo se dilui, como a afetividade, a tradição, a religião, dentre
outros. Dessa forma, a modernidade entrou numa fase aguda de individualização, de forma
que os indivíduos não possuem mais padrões de referência, onde possuem mais lugares pré-
estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente, de forma
solitária, para se inserirem numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.
Nesse contexto, se baseia no paradoxo de que sociedades, a cada dia, se tornam mais
ricas; também, têm a cada dia pessoas menos felizes, insinuando que a riqueza parece não ser
o principal motivo da felicidade, mesmo com o crescimento da economia que parecia oferecer
tal felicidade; porém, traz mais incertezas na vida futura dos indivíduos. Acrescentando a isso,
presencia-se a felicidade ser vendida pelos mercados; vendem outros bens que podem
substituir aqueles que não podem ser comercializados, os ditos valores humanos, como
merecimento, coragem, reputação, alegria e outros.
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Uma vez que os bens capazes de tornar a vida mais feliz começam a se
afastar dos domínios não-monetários para o mercado de mercadorias, não há
como os deter; o movimento tende a desenvolver um impulso próprio e se
torna autopropulsor e autoacelerador, reduzindo ainda mais o suprimento de
bens que, pela sua natureza, só podem ser produzidos pessoalmente e só
podem florescer em ambientes de relações humanas intensas e íntimas.
(BAUMAN, 2008, p. 16).
Com o intuito de manter essa busca através do consumo, o mercado do jogo se mune
de artifícios, como aparelhos de grifes e objetos de altíssimo valor, de maneira que esta seja
sempre inalcançada, dessa forma, tornando-se temporária, e daí o desejo de consumir cada
vez mais, trazendo a ilusão da alegria e bem-estar.
Nessa perspectiva, Bauman vem dizer que os mercados vendem a felicidade, ou mais
precisamente, vendem outros bens que podem substituir aqueles inatingíveis e não
negociáveis, como amor, amizade, paz, etc., de forma que os bens são capazes de tornar a
vida mais feliz. Dessa forma, no jogo GTA, os jogadores são postos a consumir objetos que
servem ao consumo, com o intuito de alcançar o reconhecimento perante os outros jogadores.
Bauman (2008) ressalta que essa busca incansável, no desejo de sentir-se realizado ou
mesmo reconhecido dentro do jogo, tem impactos importantes na identidade. Na experiência
dos participantes, conforme a versão líquida da modernidade, a identidade é continuamente
montada e desmontada, até porque, essa busca não pode se prender a uma “identidade” para
não resultar em um destino infeliz.
Diante desses letramentos, especificamente do game GTA, posso apreender que esses
jogadores são dispostos de forma direta com diversos temas da contemporaneidade: consumo,
sexualidade, competitividade, preconceito, ostentação, poder, individualismo, religiosidade,
compulsão, exibicionismo; são postos a reproduzirem valores sociais da modernidade líquida
defendida pelo mesmo autor.
2 LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS EM JOGO
Assim, voltando ao cerne deste artigo, à compreensão sobre consumo através de vídeo
game praticada pelos adolescentes pesquisados e, conforme citado anteriormente, a
fundamentação teórica também está imbricada na prática de letramentos, defendida por
Lankshear e Knobel (2007), que traz uma característica mais ampla, envolvendo outras
práticas como um conjunto de práticas sociais que envolvem leitura e escrita, em que cada
sujeito seja cingido pelas práticas sociais e contextos sociais específicos e a forma como tais
habilidades se relacionam, segundo as necessidades de cada um. Nessa perspectiva, a prática
de jogar GTA será concebida como uma prática social de letramentos, pelo caráter múltiplo
que envolve um conjunto de habilidades, tarefas e performances evidenciadas, ou seja, são
novas práticas de letramentos que emergem no contexto do referido objeto em estudo.
Hoje em dia, numa sociedade em que a comunicação se constrói pela linguagem
tecnológica e digital, novas habilidades são exigidas, como: saber pesquisar, enviar um e-
mail, utilizar redes sociais, entre outros, segundo as necessidades de cada um. Tomamos,
como exemplo, algumas habilidades desenvolvidas num jogo, tais como, manusear um
controle, a descoberta de pistas para cumprir uma missão, entender as mensagens dos
comandos, enfim, saber se apropriar do jogo sem a necessidade do deslocamento geográfico,
que hoje faz parte do mundo contemporâneo.
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Nesse sentido, revisito o discurso de Rojo (2009), que caracteriza os games como
sendo uma dessas mídias, uma prática dinâmica, múltipla, híbrida e, também, textos
multimodais e multiculturais que integram a linguagem; novos letramentos estão
incorporados; enfim, um universo em que os alunos adolescentes estão imersos diariamente.
Saber se jogam por diversão ou de maneira produtiva, como essa prática de letramento é
interpretada, como torná-la útil e favorável aos que jogam, é uma necessidade. Para isso,
entendemos que seja necessário entrar no jogo, saber como os adolescentes se apropriam
dessas práticas letradas.
Dentre esses textos multimodais e multiculturais, incluímos o vídeo game, como um
artefato multiletrado, que precisa ser entendido e, para tal, faz-se necessário ocupar esse
universo, entrar no jogo, saber como é interpretado, até porque o adolescente pode realizar
ações e, ao mesmo tempo, pode não ter muita criticidade nas questões que envolvem o jogo,
como o grau de violência, sobre a sustentabilidade nos temas, e o docente tem um papel
relevante, no sentido de interferir nessa realidade híbrida, visto pelos usuários adolescentes
como entretenimento. São envolvidos por sensações, atitudes e hábitos, encontram um
universo que valoriza a superação; a cada jogo, uma experiência nova, tendo influência direta
sobre os eventos que ocorrem à sua volta, desde escolher companheiros, missões, ou então,
simplesmente administrar uma cidade, como em Sim City. Enfim, os jogos de vídeo game
apresentam significados intimamente ligados a elementos culturais, históricos e sociais. Trata-
se de um universo multifacetado, onde os jogadores podem encontrar inúmeras possibilidades
de letramentos.
Pensando nas práticas sociais contemporâneas, em especial dos letramentos,
Lankshear e Knobel (2007), citados por Rojo (2013), tentam apontar o que é realmente
inovador nos estudos dos letramentos digitais, por eles designados de novos letramentos. Para
esses autores, um letramento que envolva tecnologia de ponta, mas que não coloque em
prática uma nova forma de ação, não pode ser considerado um novo letramento.
Em consonância com as assertivas, que já expus anteriormente, considero que tais
abordagens teóricas contemplam muitas das inquietações, emergidas no contexto das
tecnologias, associadas aos letramentos. Essas teorias implicam novos olhares acerca do
trabalho com um viés mais crítico.
Imbuída dessa preocupação, parece-me relevante trazer o Letramento Crítico com a
perspectiva de que a leitura é decorrente da produção de sentidos em um dado contexto sócio-
histórico, integrando também as relações de poder.
Desse modo, Cope e Kalantzis (2006) discutem a necessidade do desenvolvimento da
postura crítica e reflexiva diante do texto escrito, fazendo-a também a partir da interpretação
de novas linguagens e tecnologias. Em contrapartida, os sentidos são sujeitados a esses
diversos meios que são disponibilizados, clamando um letramento multimodal.
Sendo assim, Multiletramentos consiste, então, na necessidade de combinar o
desenvolvimento de uma postura crítica e reflexiva diante de uma sociedade que adota o texto
escrito, bem como o suporte textual existente em novas linguagens e tecnologias. Cope e
Kalantzis (2006), na perspectiva dos Multiletramentos, caracterizam a construção de sentidos,
recorrendo, não só ao material impresso, por igual, aos recursos oferecidos por mecanismos
digitais. Em suma, a perspectiva dos Multiletramentos espera dos sujeitos o posicionamento
reflexivo-crítico, não apenas quando estes são expostos a textos escritos, mas também a textos
visuais, sonoros e gráficos, culminando na interpretação de mundo.
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Lankshear e Knobel (2007, p. 14) designam Multiletramentos de Novos Letramentos,
ou “formas socialmente reconhecidas de gerar, comunicar e negociar contexto significativo
por meio de textos codificados dentro de contextos de participação em discursos (ou como
membros de discursos)”. Nessa esteira, os sujeitos deixam de ser vistos como aculturados,
revelando-se pessoas com culturas complexas, que se inter-relacionam com seus contextos.
Por isso, a importância da competência letrada no tocante às práticas mediadas pela internet.
Nesse sentido, nota-se que há uma preocupação na utilização de uma maior variedade
de gênero de esferas sociais e culturais diversas, que mesclam imagens, sons, gráficos, vídeos,
permitindo que os que se apropriam desses elementos lidem com maior complexidade de
sentidos. Dessa forma, Multiletramentos define um processo de letramento no qual os sujeitos
podem transitar por entre as multimodalidades, observando e (re)conhecendo as várias formas
de linguagem que as diferentes mídias oferecem, com o intuito de auxiliar na construção de
novos sentidos e assim produzir textos autênticos.
No entendimento desses conceitos de letramento, pode-se antever uma complexidade
de habilidades que devem ser desenvolvidas pelo indivíduo, pelo fato de que estamos,
atualmente, vivendo novas práticas de comunicação propiciadas pela tecnologia. Nessa
direção, especificamente no caso dos games, caracterizam um universo dinâmico, usado
apenas como diversão pelos jovens, crianças e adolescentes; se sentem livres para desenvolver
práticas de leitura e escrita, distintas das que o mundo real oferece, distantes das costumeiras
práticas de codificação e decodificação.
Em suma, Lankshear e Knobel (2011) observam que saber ler e escrever já não é
suficiente para que sujeitos e cidadãos funcionem adequadamente em seu ambiente social. O
sujeito moderno precisa dominar várias habilidades, não só para usufruir dos benefícios da
vida moderna, mas também para participar de forma ativa e consciente de seu espaço, fazendo
intervenções construtivas, contribuindo para o avanço das práticas sociais.
Em vista dessas novas configurações, em que o mundo atual provoca a emergência de
sujeitos com performances diferentes de como era no século passado, é preciso que o vídeo
game assuma uma posição de reconhecimento por carregar inúmeros letramentos, valores,
ideologias, discursos e visão de mundo que estão naturalizados na vida de crianças e
adolescentes.
3 ANÁLISES SOBRE CONSUMO NO JOGO
A fim de entender que sentidos são construídos pelos adolescentes acerca de consumo
através da prática do GTA, em que os jogadores se colocam como consumidores de
mercadorias desejáveis do universo real, que vêm como que concretizar seus desejos,
proporcionando-lhes uma sensação agradável, focalizo os excertos fornecidos pelos
entrevistados por meio de entrevistas, que são apresentados e comentados nas páginas a
seguir:
Nas duas primeiras sessões em análise, os dizeres dos jogadores parecem exprimir
essa prática de consumo.
Sessão 1
P: O que você faz no jogo?
J2: “No jogo eu faço o que quiser como ter dinheiro, subir de nível e RP
(reputação)...”
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“Você pode escolher o seu carro, comprar casa com garagem, elevador ou comprar
um apartamento...”
J4: “...Fica gastando porque não tem nada pra fazer (risos), a gente gosta de ostentar
dentro do jogo.”
(Entrevista em 15-08-2015)
Nas falas do J2 e do J4, da sessão 1, observo que o GTA é um espaço virtual em que
podem realizar seus desejos de consumo, com os dizeres; “ter dinheiro, subir de nível”. Os
verbos “escolher, comprar, gastar e ostentar” levam a pensar em uma prática comum na vida
das pessoas, uma situação sociocultural dentro do jogo que os faz se sentirem próximos do
mundo real, porque, na verdade, é o que a maioria das pessoas buscam e praticam,
cotidianamente, no mundo líquido. O J4, ao dizer “fico gastando porque não tem nada pra
fazer”, evidencia satisfação em gastar; embora o GTA se caracterize como um jogo que
disponibiliza múltiplas atividades ao jogador, ganhar dinheiro e gastá-lo para se exibir, parece
estar como uma das atividades primordiais dentro dessa prática.
Dessa maneira, posso averiguar que o GTA, um ambiente virtual complexo,
multidisciplinar, possibilita a descoberta de valores culturais e ideológicos, ou seja, se mostra,
não só como resultado da proposta do modo de produção existente e não apenas um consumo
direto de entretenimento, mas também, um modelo presente na vida socialmente dominante
(DEBORD, 1994). Por conseguinte, para poder se ostentar, conforme o J4 relata, se apoiam
em cenários constituídos de objetos, como carros, casas, roupas, acessórios, ou seja, são
providos de elementos criativos e envolventes; assim, um ambiente pode se tornar um fator de
conquista no ato de sua representação. Nesse sentido, o espaço do jogo pode se transformar
em uma visita à loja, em uma experiência prazerosa para o consumidor jogador adolescente.
Trata-se, então, de mercadorias à disposição dos jogadores, como movimento
essencial do espetáculo, que consiste em ingerir tudo o que existe na atividade humana em
estado fluido para depois despejá-lo em estado de solidificação, dominando tudo o que é
vivido. Conforme Debord (1994, p. 37), “O mundo da mercadoria é mostrado como ele é,
com seu movimento idêntico ao afastamento dos homens entre si, o mundo sensível é
substituído por uma seleção de imagens que existem acima deles”. Mais evidências disso são
mostradas na sessão a seguir:
Sessão 2
P: E como isso é feito?
J3: “Aparecem missões e as listas de serviços, eu clico nelas porque quero ganhar
dinheiro para comprar carro, moto e outras coisas, como roupas, acessórios, barco...”
(Entrevista em 15-08-2015)
Nas respostas da sessão 2, os jogadores são estimulados a se engajarem numa
incessante atividade de consumo, em que mercadorias e objetos são a matéria que realiza seus
sonhos; embora seja uma prática mais comum da vida adulta, ao lançar mão de expressões
“ter dinheiro, subir de nível, comprar casa com garagem, elevador, carro, moto, roupas,
acessórios, barco...”, subentende-se que se sentem motivados para adquirir bens virtuais com
base numa transação comercial, prática característica da sociedade ligada ao capitalismo. Essa
prática de consumo é um tipo de arranjo social que resulta da reciclagem de vontades, desejos
humanos rotineiros, permanentes, “transformando-os na principal força propulsora e operativa
da sociedade, desempenhando também um papel importante nos processos de auto-
identificação individual e de grupo, bem como na seleção e execução de políticas de vida
individual e de grupo” (BAUMAN, 2008, p. 41).
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Nas análises da sessão 3, outros elementos linguísticos configuram a interação entre os
participantes a partir da transação comercial, com vistas na aquisição de bens, reputação e,
novamente, a ostentação.
Sessão 3
P: Notei que nesse jogo há equipes formadas por jogadores. O que é preciso para
fazer parte ou entrar na equipe?
J4: “Aparecem os nomes dos jogadores, o nível, a habilidade, força, daí eu vejo, se o
nível for alto, eu entro...”
P: Quer dizer que alguns critérios são observados para fazer parte?
J4: “(risos)... é melhor porque me ajuda a conseguir as coisas: ganhar dinheiro,
comprar o melhor carro, avião folheado a ouro... ganhar RP, só para se exibir, ser o
melhor...”
J4: “Porque você tem que se mostrar superior aos outros, mostrar que é um cara rico
e se você ver um cara com um carro ruim (feio, simples, barato), você verá que ele tem um
nível ruim e ele é pobre, e no jogo, o que fala que um cara é bom, é o seu nível, habilidade e
dinheiro que tem a ver com o V/M (ser e ter uma boa arma).”
P: Suponhamos que você não queira gastar o dinheiro que conseguiu, o que faz com
ele?
J4: “O dinheiro você guarda numa conta no banco porque se andar com ele no bolso,
o outro poderá te matar e roubar. O que mais ostenta é o seu veículo, mas também o seu
apartamento além das roupas que te ajudam a ostentar, que mostram que você é rico. As
roupas mais caras custam até 118.000,00.”
(Entrevista em 21-08-2015)
Conforme as respostas na sessão 3, do participante 4, pode-se antever um cenário
ambientado de práticas sociais de letramentos, a partir das ações, interações e modos de agir
presentes no decorrer do game. Através do emprego dos verbos ganhar, comprar e ostentar
parece querer reforçar uma cultura de consumo, em que não se trata de um jogo apenas, mas
também, um jogo de valores sociais, de práticas ideológicas; a competitividade presente a fim
de superar o outro, adquirir bens materiais do mais alto valor e poder ostentar-se e adquirir o
título de “o melhor”.
Nessa perspectiva, para manter a sua “fachada” (GOFFMAN, 2002), ou sustentar
outro plano de vida, a chamada segunda vida, na qual represente a forma como deseja ser
visto por outros jogadores, logo, um conjunto de artífices que se pode chamar de mercadorias
e outros elementos semelhantes são ativados, se tornando, dessa forma, refém de uma fachada
de impressões, diante da situação social que ele vive.
Nos trechos da fala do jogador 4: “Aparece os nomes dos jogadores, o nível, a
habilidade, força, daí eu vejo, se o nível for alto, eu entro... é melhor porque me ajuda a
conseguir as coisas: ganhar dinheiro, comprar o melhor carro, avião folheado a ouro,
ganhar RP”, nota-se que, para fazer parte de uma equipe, considera relevantes alguns
substantivos, como: nível, habilidade, força, que devem estar presentes na equipe escolhida;
tais características são importantes para que possa usufruir da ajuda desse comando para
conseguir seu objetivo que é “ser o melhor”.
Percebe-se, a partir dessa interpretação, que as escolhas não são neutras, a busca da
relação com a equipe se dá por uma intenção, isto é, por um propósito. Há um jogo de
interesses presente no próprio game GTA, em que a vantagem está em jogo. Isso faz parecer
que, na representação virtual dessa prática de consumo, há uma valorização de atributos
típicos da sociedade neoliberal, como nível, força, habilidade e dinheiro, ou seja, eu vou me
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relacionar ou interagir com aquele que poderá me auxiliar na realização de meus anseios
subjetivos. Segundo Bauman (2008), nas relações humanas, a soberania do sujeito se
representa como a soberania do consumidor, em que a dualidade sujeito-objeto é incluída,
tornando-se assim uma interação que traz aspectos de transação comercial, a partir de um
relacionamento humano que aqui julgo, em destaque, na tela do GTA V On-line.
Ao expressar as orações, nas respostas do J4: “O que mais ostenta é o seu veículo, mas
também o seu apartamento, além das roupas que te ajudam a ostentar, que mostram que você
é rico”, compreende-se que o que importa no jogo é ter dinheiro, assim como carros luxuosos,
apartamento e roupas caras, em busca do bem-estar, se sentir melhor, se sentir superior. Nota-
se, então, ideologias reforçadas de uma sociedade de consumo, individualista, em que o “eu”
é mais importante. Para Bauman (2001), essa visão de mundo individualista é reforçada pela
multiplicidade e “liquidez” desses cenários que nos são apresentados. O jogo permite a
conquista da riqueza pela forma mais fácil e rápida, em que os valores estão à venda.
Interpreto, ainda, que, “ter nível baixo, ser pobre”, no jogo, remete a valores que são
concebidos como um preconceito, um crime, portanto, merece julgamento e condenação.
Por outro lado, esses dizeres denotam práticas que reafirmam valores sociais do
mundo moderno. Exibicionismo, ostentação, compulsão, riqueza e poder são valores
característicos do mundo líquido, e que tomam corpo no jogo GTA, assim como a
subjetividade também é tocada. No jogo, o jogador adolescente é treinado num conjunto de
práticas, ou seja, brincar para viver no modelo social vigente; em outras palavras, alimenta o
que há de mais corrosivo na modernidade, a disputa pelo poder, além de reproduzir práticas
homogênicas daquilo que seria do mundo contemporâneo, que é a competição desmedida da
gestão do poder para a conquista do bem-estar e da felicidade. Como observamos a seguir:
Sessão 4
P: Conte-me a tua experiência para conseguir chegar ao nível alto?
J4: “Como eu queria conseguir mais dinheiro, busquei outra maneira que no jogo não
permite, que é raquear. Descobri como se faz isso e hoje estou no alto nível... com 3.000.000
na conta.”
(Entrevista em 18-07-2015)
A partir disso, pode-se antever uma compulsão à competição, podendo provocar, nos
jogadores adolescentes, sensação de bem-estar, a liberdade de satisfazer o seu desejo de estar
no topo; mas também um mal-estar, caracterizado por Bauman (1998) de ansiedade moderna.
Para a conquista do poder, vale violar ou transgredir as regras do jogo, pois sabe que a
punição está descartada.
Dentro do jogo GTA V On-line, o jogador vive sua segunda vida, entrelaçada por uma
sociedade de consumo, cujas estruturas reconstituem à ascensão da burguesia, na qual vivem
o hábito de ir às compras em uma jornada de lazer. A atmosfera de necessidade embutida nos
verbos comprar, subir, ostentar, ser... retratam, de forma prática, os apelos que os jogadores
apresentam para construir o ideal imaginário de status, de vida ideal de bem-estar
desenvolvidos em suas mentes.
Na esteira de Bauman (1998), a marca da pós-modernidade é a “vontade de
liberdade”, elemento que acompanha a velocidade das mudanças econômicas, tecnológicas,
culturais e do cotidiano. Essa experiência na qual o mundo vive, segundo o autor, implica em
um mundo incerto, incontrolável e até assustador, coisas que vão de encontro com uma vida
projetada em torno de uma vida social estável, ou da ordem.
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Ainda sobre a expressão do jogador 4 que diz: “O dinheiro você guarda numa conta no
banco porque, o que mais ostenta é o seu veículo, apartamento e as roupas”, subentende-se
que o dinheiro guardado no banco não mostra riqueza, mas o carro de luxo, roupas caras
materializam o seu poder, a sua superioridade e, consequentemente, se tornando feliz,
realizado; a busca de prazer por meio de objetos de consumo (BAUMAN, 2008, p. 33).
Pelo que parece, a apropriação desses bens garante o respeito perante outros jogadores,
vindo como fator motivacional para a realização de seus anseios e permanência no jogo,
configurando formas de construção de sentidos.
Outrossim, me senti aguçada em perguntar sobre a notável rivalidade existente entre
os comandos.
Sessão 5
P: Na posição de rivais, como é o relacionamento entre vocês equipes?
J1: “Quando é comando versus comando, a gente trata com menos respeito, mas por
causa da rivalidade, a gente não está nem aí (gesticula, expressão facial). O GTA é isso:
matar gente, só interessa em ganhar dinheiro, é você conseguir fazer o seu melhor entre seus
amigos ou inimigos, você ser o mais rico, você ter as melhores coisas...”
Nesses dizeres, o J1 reforça novamente a busca contínua do status social, não mede
esforços para essa conquista, que vem dentro do jogo como um elemento primordial, não
importa que estratégias são usadas, como um vale-tudo, desde o desrespeito verbal e não-
verbal, conforme a fala: “a gente não está nem aí”, isso tudo visando a autoimagem positiva a
qualquer preço.
Assim, o jogo GTA V On-line se caracteriza como um espaço aberto, de livre ação
para o jogador simular o seu papel, de construir sua vida e se inserir dentro das condições
impostas por uma sociedade de desigualdades sociais, em que a felicidade está relacionada ao
consumo. Da mesma forma, Bauman (2001) entende que, na era da liquidez, os indivíduos
não possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem
lutar livremente, por sua própria conta e risco, para se inserirem numa sociedade cada vez
mais seletiva econômica e socialmente; na ilusão de que os bens necessários a uma vida feliz
podem ser comprados com dinheiro, há um contra senso; as pessoas se tornam mais ricas,
porém, menos felizes.
No entanto, os mercados vendem a felicidade, ou mais precisamente, vendem outros
bens que podem substituir aqueles intangíveis e não negociáveis: a alegria, o amor, a amizade,
a adrenalina dentro de um jogo, os prazeres de uma viagem, a autoestima, entre outros, ou
seja, os bens necessários para uma vida feliz não podem ser comprados com dinheiro. Mas, o
que deixa evidente, nesses jogadores, é o desejo de cada vez mais ganhar dinheiro para
consumir e se tornar superior, ou seja, estar no topo, mesmo que seja uma ilusão.
Pode-se analisar, a partir de então, que o jogo GTA, em seu formato on-line, além de
proporcionar uma liberdade consumidora, possibilita experiências desenvolvidas, até então,
com muito mais abrangência de atividades vivenciadas pelos adultos fora do jogo. No jogo
podem fazer tudo o que querem, realizam desejos antecipados como se estivessem na vida
real. Além de ser um objeto amplo, carregado de complexidades, também transitam via
aplicativos, com outras mídias, favorecendo a comunicação em outros idiomas. Isso tudo
contando com um design atrativo, aprimorado com a simulação de ambientes por meio da
aplicação das últimas novidades científicas e tecnológicas (SANTAELLA, 2007, p. 279). As
interfaces sensoriais, que eles apresentam, permitem a interação com o próprio corpo do
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jogador que se desloca nos ambientes do jogo e acompanha fisicamente o desenvolvimento do
enredo e das ações vividas pelo participante (SANTAELLA, 2007, p. 176 e 184).
Nesse trilho, Lankshear e Knobel (2007) apostam na ideia de que são novas práticas
que resultam em novos “modos de fazer” proporcionados pelo digital, que precisam vir
acompanhadas de uma nova postura, de uma nova mentalidade, e que o digital possui uma
ordem diferente da que comandava os letramentos tradicionais (letramentos da letra ou
alfabéticos), exigindo, portanto, novas práticas e valores, o que vai caracterizar os novos
letramentos. Admitem que os novos letramentos podem ser, em sua essência, mais
“participativos”, “colaborativos” e “distribuídos” do que os letramentos convencionais.
Os perfis dos participantes parecem patentear traços de jogadores que se apropriam de
práticas de letramentos, fazem escolhas linguísticas para se situar no jogo, desvelando uma
performance de conhecimento e domínio acerca dos elementos relacionados à prática do GTA
V On-line. Nessa perspectiva, também representam como um agente, atuando interativamente
nas ações de um avatar; também como agentes do espaço, através dos controles e dos
comandos, completam qualquer serviço ou missão para ganhar dinheiro e reputação, assim
como personagem, roupas, armas e veículos preferidos. Todas as ações do jogador são
voltadas para o seu progresso no mundo, conhecendo novos personagens, novas missões,
novas recompensas, novos conteúdos que proporcionam ao jogador, projetar a suas próprias
corridas e oportunidades quase infinitas. Além de compartilhar a sua criação com amigos e
com o mundo ou jogar o conteúdo criado por outro.
Contudo, para que todas essas práticas se concretizem, ativam elementos linguísticos,
que caracterizam experiências de práticas sociais de letramentos, formas de construção de
sentidos, apropriação de saberes que abarca a simulação de papéis que são modos de ser e ter
de uma vida adulta; abordando temas sociais de forma lúdica, brincam de viver em uma
sociedade neoliberalista, ou seja, brincam outros modos de ser e de fazer em uma sociedade
cada vez mais líquida, inspirados por práticas consumistas que trazem a ilusão de ser livre e
feliz.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises dos dados aqui abordados se referem a uma investigação realizada com
quatro adolescentes de uma escola particular, que têm a prática de jogar vídeo game
diariamente. Nesta, foram propostas atividades que intentaram conhecer as interpretações
desses adolescentes a partir da prática do jogo, que propiciavam construir sentidos sobre
consumo. Como resultado, foi possível perceber que dentro do jogo GTA, os adolescentes são
expostos a uma série de influências sociais e culturais, como o desenvolvimento da prática de
consumo, em que mercadorias são postas ao alcance de todos, com o fim de satisfazer seus
desejos, pautado em uma falsa felicidade, um bem-estar líquido que busca cada vez mais
consumir de forma incessante. Uma prática em que os adolescentes encontram suporte para
realizar seus sonhos de consumo, conforme a sociedade capitalista impõe, desempenhando,
também, um papel importante nos processos de auto-identificação do jogador e do grupo.
Pelas falas analisadas, o jogo GTA é o espaço em que o jogador encontra sentidos para
materializar o seu poder, a sua superioridade e, consequentemente, se tornar feliz e realizado;
na busca de prazer por meio de objetos de consumo (BAUMAN, 2008, p. 33). Inclusive, ficou
claro que, para eles, é o fator principal dentro desse espetáculo.
Contudo, seus relatos trouxeram traços ideológicos de uma sociedade que prega a
prática de uma cultura de consumo como algo natural, com pouca possibilidade de reflexão
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naquilo que está fazendo (por ser um jogo constituído de ações simultâneas), mas que exige
um raciocínio rápido; conforme o contexto do jogo, a competitividade entra em jogo com o
intuito de superar o outro, se ostentar e produzir um papel de destaque, segundo o modelo da
sociedade moderna líquida.
Portanto, os resultados obtidos revelaram que os adolescentes concebem a prática do
jogo GTA como sinônimo de liberdade, por possibilitar múltiplas ações dentro do jogo;
apropriam-se dessa prática, integrando as múltiplas linguagens, possibilitando construir
sentidos sobre consumo onde encontram suporte para realizar seus desejos de consumo,
conforme a sociedade capitalista impõe.
Os resultados das análises apontam para um repensar no que tange às diversas práticas
de letramentos acerca do jogo digital. Nota-se o quanto é necessário conhecer o universo do
jogo digital e saber que muitos caminhos podem ser trilhados, por se tratar de um evento
complexo, transdisciplinar, que abrange diversos campos e que pode aprofundar o
conhecimento, a fim de entender a prática dos games, assim como outros estudos futuros
poderão complementá-la, estabelecendo um diálogo. Fica a certeza de que há um longo caminho a ser percorrido para que esse evento digital, tão presente na vida de adultos,
crianças e adolescentes, tenha o reconhecimento que merece, a ponto de ser aceito, não apenas
como uma mídia interativa que reúne pessoas para se comunicarem, também com o propósito
de contribuir para repensar o jogo digital como uma prática que pode ser útil em vários
aspectos, problematizar na perspectiva de uma prática de letramento crítico, em que seja
possível tratar de temas diversos.
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