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1 | 17 0 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS Poiésis Matemática INGRID LILIAN SEELAENDER 1 Abstract. This paper aims the study of mathematics inside the history of ma- thematics, as mathematical praxis. We will focus in the transformations of the mathematical signs and the transformations in the painting art, which have ha- ppened synchronically, and wtih a similar semiotic meaning. Keywords: Mathematics. Semiotics. History of Mathematics. Resumo. Este trabalho se propõe o estudo da matemática dentro da história da matemática, como prática da matemática. Focaremos nas transformações dos signos da matemática e as transformações nas artes da pintura, que aconteceram sincronicamente, e que tem um significado semiótico semelhante. Palavras Chave: Matemática. Semiótica. História da Matemática. 1. Introdução Queremos mostrar, neste trabalho, as relações da matemática com a socie- dade que a produz, numa visão contrária à ideia de que a matemática existe num espaço imutável, eterno e inumano, mas sim como uma fazer humano, dentro da cultura. Isso, através da percepção de que mudanças na matemática e mu- danças que ocorrem na arte tem uma certa sincronia, estando dentro da mesma estrutura cultural. Primeiro veremos matemática como técnica; a seguir a mate- mática como um sistema de signos, usando o enquadramento peirciano usado por Brian Rotman; depois daremos uma olhada nos conceitos da arte da pintura e nas relações entre a arte e a sociedade onde ela se insere. Examinaremos então algumas mudanças na arte e na matemática, sincronicamente, e depois as abor- dagens inovativas que estão acontecendo tanto na matemática quanto na arte. Finalmente concluiremos o trabalho, pensando no estudo da matemática dentro da história da matemática, contextualizada nas práticas do fazer matemático da época para compreensão dos seus objetos e conceitos. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Poiésis Matemática

INGRID LILIAN SEELAENDER1

Abstract. This paper aims the study of mathematics inside the history of ma-thematics, as mathematical praxis. We will focus in the transformations of the mathematical signs and the transformations in the painting art, which have ha-ppened synchronically, and wtih a similar semiotic meaning.

Keywords: Mathematics. Semiotics. History of Mathematics.

Resumo. Este trabalho se propõe o estudo da matemática dentro da história da matemática, como prática da matemática. Focaremos nas transformações dos signos da matemática e as transformações nas artes da pintura, que aconteceram sincronicamente, e que tem um significado semiótico semelhante.

Palavras Chave: Matemática. Semiótica. História da Matemática.

1. IntroduçãoQueremos mostrar, neste trabalho, as relações da matemática com a socie-

dade que a produz, numa visão contrária à ideia de que a matemática existe num espaço imutável, eterno e inumano, mas sim como uma fazer humano, dentro da cultura. Isso, através da percepção de que mudanças na matemática e mu-danças que ocorrem na arte tem uma certa sincronia, estando dentro da mesma estrutura cultural. Primeiro veremos matemática como técnica; a seguir a mate-mática como um sistema de signos, usando o enquadramento peirciano usado por Brian Rotman; depois daremos uma olhada nos conceitos da arte da pintura e nas relações entre a arte e a sociedade onde ela se insere. Examinaremos então algumas mudanças na arte e na matemática, sincronicamente, e depois as abor-dagens inovativas que estão acontecendo tanto na matemática quanto na arte. Finalmente concluiremos o trabalho, pensando no estudo da matemática dentro da história da matemática, contextualizada nas práticas do fazer matemático da época para compreensão dos seus objetos e conceitos.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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2. Criação MatemáticaMatemática é poiésis. Matemática é criação. É fabricação, produção; em latim,

ars, techné em grego. Técnica, techné, traduzida como “ofício, habilidade, arte, ciência aplicada” (PETERS, 1983, p. 224). Uma técnica é uma competência produ-tiva, e não instinto (physis).

A filosofia grega separou a técnica (techné) e a episteme (episteme), a techné sofística desvalorizada frente à episteme filosófica. “A técnica é o impensado.” (STIEGLER, p. 9, tradução própria, ênfase no original). A técnica para os filóso-fos gregos, quando produzia coisas úteis, tinha algum valor, ainda que sendo apenas mimesis, cópia da cópia imperfeita da Ideia, mas Platão condenava as atividades que visavam unicamente o prazer sem a preocupação com a Verdade, as coisas belas que não contivessem a essência da beleza que leva ao conheci-mento, colocando por exemplo o teatro fora de sua cidade ideal (PLATÃO, 2006). A matemática, para Platão e para os neoplatônicos, era dividida em dois grandes grupos: a matemática dos números como noetas, a matemática dos filósofos, que não é mutável, os objetos matemáticos sendo objetos do pensamento, eternos e imóveis, e não dos sentidos; e a matemática da manipulação dos aisthetas, fe-nômenos sensíveis transitórios, que aparecem nas contas, medidas e contagens, por exemplo na forma de números-vasilhas, números-ovelhas para contagem de vasilhas e ovelhas, na logística, na mecânica. Uma ciência pura dos números e uma arte prática do cálculo, da contagem e da medida, das coisas medidas e contadas (KLEIN, 1992).

Mas não temos que concordar com Platão, e esta sua dualidade.

Para São Tomás de Aquino, arte (ars) é a noção correta do fazer, “mais pre-cisamente, ars é a aplicação do saber correto a algo que se produz (“applicatio rationis rectae ad aliquid factibile”)(SPEER, 2008, p. 26), hábito adquirido que con-fere o poder de bem operar. A ars possui para ele um cunho construtório-opera-tório e é particular, relacionada a uma finalidade determinada, e portanto limita-da. “A ars contém – de acordo com a distinção aristotélica entre Praxis e Poiesis – um saber produtivo [recta ratio factibilium] e um não saber ativo” (SPEER, 2008, p.26). A matemática em São Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, seria uma disciplina abstrata, em contraposição à física, concreta. A matemática é pensada conhecimento abstrato.

Essa separação de saber teórico abstrato e saber prático operatório (e muitas vezes a expropriação do saber prático popular pelos grupos dominantes) aparece muitas vezes quando olhamos as sociedades ao longo do tempo. Tatiana Roque, no seu livro sobre a História da Matemática, comenta sobre “a imagem da mate-mática como um saber superior, acessível a poucos, ainda é usada para distinguir as classes dominantes das subalternas, o saber teórico do prático” (ROQUE, 2013, Intro, §9). Se durante a antiguidade grega tivemos uma matemática pura de fi-lósofos que, buscando a verdade, formalizaram as demonstrações, uma série de argumentos que logicamente vão de verdade em verdade como consequências

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de uma lista explícita de axiomas, a Idade Média foi mais prática (ROQUE, 2013). E a Renascença retorna à matemática ao seu status teórico privilegiado, mesmo com o uso da matemática prática – como a criação da contabilidade das partidas dobradas – espalhando-se devido às necessidades comerciais.

Para Bernard Stiegler, a técnica é um “modo de fazer sair do oculto”, faz ser o que não é por ser poiésis, a partir de Heidegger, para quem a técnica não seria simplesmente um meio e fazer do homem, mas sim tirar do oculto algo que não estava lá e que não se produz a si mesmo. E diferentemente da técnica antiga, que tinha a poiésis como sentido, a técnica moderna coloca-se como violência à physis, pela razão e cálculo, e objetivando o domínio e posse da natureza (STIE-GLER, 2003). “A técnica moderna é o raciocínio da natureza e do homem por meio do cálculo” (STIEGLER, 2003, p. 10, tradução própria). E o próprio ente acaba menos em posição de domínio da natureza por meio da técnica que submetido ele mesmo aos imperativos da técnica por pertencer a natureza (STIEGLER, 2003).

Álvaro Vieira Pinto, quando fala de tecnologia, começa falando do maravi-lhamento do homem, antigamente pela natureza, depois por suas próprias obras:

A concepção generalizada (…) segundo a qual nos encontramos em uma era de inédi-ta grandiosidade, pois jamais o homem realizou tão triunfalmente seu domínio sobre as forças naturais e criou artefatos tão espantosos, conheceu tão profundamente os segredos dos processos naturais, esta concepção reedita o velho estado de espanto e maravilha, mas agora em face dos tempos que nos são dados. Nessa atitude se revela a principal raiz da ingenuidade da expressão crise do nosso tempo. Não há crise, e sim a manifestação de uma particular forma de alienação, que afeta especialmente os eruditos, privados de consciência crítica. O homem maravilha-se diante do que é produto seu porque, em virtude do distanciamento do mundo, causado pela perda habitual da prática de transformação material da realidade e da impossibilidade de usar os resultados do trabalho executado, perdeu a noção de ser o autor de suas obras, as quais por isso lhe parecem estranhas. (VIEIRA PINTO, 2008, p.35)

A matemática é prática, techné, um fazer. Um fazer que gera no seu fazer sig-nos chamados números, formas geométricas, vetores, tensores, equações, uma miríade de signos matemáticos.

E o que é um signo? O que significa um signo matemático?

3. Semiótica MatemáticaA matemática é aqui entendida como um sistema de signos, um discurso de

signos matemáticos. Um signo, segundo Charles Sanders Peirce é o que repre-senta algo para alguém, numa conexão tripla: signo, coisa significada, cognição produzida na mente (PEIRCE, 2010, p. 46). O signo não se confunde com o objeto, está em seu lugar. Mas não apenas em seu lugar, o signo produz uma compreen-são do objeto, pois existe uma interpretação na mente de quem usa o signo. E a interpretação permite que se vá além do signo, para outro signo, através de suas relações com as outras partes do conteúdo. Signo é produção.

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Os números, as formas geométricas e outros objetos matemáticos não são objetos, coisas num mundo ideal, mas signos que se constroem no fazer mate-mático. “Os números, então, aparecem tão logo há um sujeito que conta” (ROT-MAN, 2000, p. 38, tradução própria).

Mas quem conta?

Para reconhecer quem pensa e escreve teoremas, axiomas, conjecturas, quem conta, quem mede, quem calcula, usamos um modelo semântico criado por Brian Rotman baseado em Pierce. Neste modelo o fazer matemático é dividido em três papéis. Temos o Matemático, aquele que pensa a matemática, escreve e lê os teoremas, axiomas, provas, problemas, conjecturas, aquele a quem as instruções do passo a passo das explicações de um teorema são direcionadas; é ele que realiza as demandas de provar, considerar, definir. Mas o Matemático não exe-cuta as ações matemáticas, e sim seu Agente: é o Agente que conta, multiplica, incrementa, integra, etc, executando idealmente as ações propostas como um experimento mental; por ser uma pessoa virtual, pode contar até o infinito, pode medir irracionais e reais, pode dividir no limite quase até zero, executar qualquer operação matemática sem restrições físicas. E há a Pessoa, que opera os signos da linguagem natural e é responsável pela subjetividade da metamatemática, sendo chamado a interpretar os signos matemáticos, cujo significado escapa ao Matemático; somente a Pessoa vai entender o argumento, o resultado da prova, a verdade matemática. A Pessoa vai procurar “a ideia por trás da prova”. Apesar do Matemático seguir a prova no nível puramente formal, verificando sua con-sistência, as inferências são feitas pela Pessoa a partir das narrativas subjacentes. Essas narrativas é que constroem a persuasão e a convicção necessárias à prova (ROTMAN, 2000).

Assim, os números, formas geométricas, equações, estão dentro do texto, como signos, e não como objetos dados, são algo que se constrói na leitura/escrita. “Os signos não são lidos em si mesmos, mas ‘declarativamente’, isto é, na relação mantida com o texto que os enuncia” (TEIXEIRA COELHO, 1980, p. 46). E quem faz ela leitura do texto é a Pessoa, que dá sentido à matemática. A pessoa legitima a verdade matemática.

Os signos matemáticos têm três dimensões, uma discursiva, uma instrumen-tal e uma lúdica (ROTMAN, 1993). A discursiva é o próprio texto matemático, a leitura matemática do mundo; a instrumental está no seu uso, e pode ser en-contrada claramente nas ciências por exemplo; e como um jogo de números e demais signos matemáticos, encontramos a dimensão lúdica.

Signos resultantes de um fazer, uma técnica, ars.

4. Arte, Bela ArteQuando pensamos em ars, pensamos nas artes, nas belas artes. Onde tam-

bém ocorre uma divisão, a partir da Renascença, entre o teórico e o prático, ou

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melhor, entre o simples fazer e o Belo, o Sublime. O gênio nasce na Renascença. Dentro do espaço das Belas Artes, não mais somente arte. Falando da arte italia-na, sobre Florença, Fernand Braudel mostra que “após 1434, todo o discurso ar-quitetônico, pictórico e literário da cidade é a transcrição do gosto de um grupo muito restrito — já uma corte principesca” (BRAUDEL,2007, p. 67).

A Renascença italiana, irrigada pela queda de Constantinopla, a fuga dos intelectuais gregos para a Itália representando uma enorme transferência de co-nhecimentos, e pela expansão comercial da Itália em direção ao ocidente, traz uma dispersão dos italianos por todo o ocidente, comerciantes e principalmente agiotas (BRAUDEL, 2007, p. 49). Além de uma grande expansão da riqueza e da pobreza nas grandes cidades italianas de Florença, Veneza, Milão, Gênova: “Só a colossal diferença entre a fortuna dos ricos e a miséria dos pobres explica as enormes construções do Renascimento” (BRAUDEL, 2007, p. 67).

A arte se liga ao contexto da cultura e da realidade social. Uma história da arte segundo Giulio Carlo Argan só é possível e legítima se admite uma relação entre todos os fenômenos artísticos, todos os fenômenos culturais. “Qualquer discurso sobre a arte não pode dizer respeito a arte em geral, mas à precisa con-dição da arte e dos estudos sobre a arte numa determinada situação histórica” (ARGAN, 1993, p. 85).

A arte é histórica, assim como qualquer fazer humano.

5. Arte e MatemáticaAssim, propusemo-nos a estudar a matemática e a arte historicamente. Da

mesma forma que uma obra de arte é valorizada de forma diferente por seu criador e os contemporâneos e por nós agora, “a obra é a mesma, mas as cons-ciências mudam” (ARGAN, 1993, p. 25), também os números e outros signos ma-temáticos são apreendidos, entendidos de forma diferente. Se existe uma con-tinuidade histórica na ideia dos números, é porque fazemos uma apropriação retroativa deles, dos números e demais signos matemáticos, assim como havia um modo diferente de se fazer matemática.

Tanto a arte quanto a matemática são techné. A técnica determina o modo humano de percepção do mundo, e essa percepção é organizada e interpretada através do pensamento:

Ao longo de grandes períodos históricos modifica-se, com a totalidade do modo de existir da coletividade humana, também o modo de sua percepção. A maneira pela qual a percepção humana se organiza – o meio em que ocorre – não é ape-nas naturalmente, mas também historicamente determinado. (BENJAMIN, 2017, ênfase no original, p. 58)

Queremos estudar a matemática contextualizada nas práticas do fazer mate-mático, olhando para essas práticas como eram executadas pelos que as execu-

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tavam no seu tempo, sem uma apropriação retroativa, sem anacronismos, para reaver o significado dos conceitos matemáticos. Estudar o passado procurando descobrir os problemas que os moviam, assim como ter em mente o que busca-mos responder hoje, tanto para a arte como para a matemática, e aliás as ciên-cias, ou qualquer história:

Para vencer os anacronismos, deve-se tentar mergulhar nos problemas que ca-racterizavam o pensamento de certa época em toda a sua complexidade, con-siderando os fatores científicos, mas também culturais, sociais e filosóficos. Só assim será possível vislumbrar os problemas e, portanto, o ambiente em que se definiram objetos, se inventaram métodos e se estabeleceram resultados. (RO-QUE, 2003, Apres, §14)

Para Rotman, ocorreram no Renascimento grandes rupturas semióticas na arte da pintura e na matemática. Na matemática houve a introdução do zero na prática da aritmética, e na arte da pintura a criação do ponto de fuga da perspectiva:

O zero está para os signos do número como o ponto de fuga está para as ima-gens em perspectiva (…), o signo introduzido é um signo sobre signos, uma meta-signo, cujo significado é indicar, por meio de uma sintaxe que chega com ele, a ausência de certos outros signos. (ROTMAN, 1987, p. 1, tradução própria)

A introdução do zero é feita junto com a passagem dos numerais romanos aos hindus, muito mais fáceis de serem usados para cálculos, mas que eram rejei-tados, no desacordo entre abacistas, que escreviam numerais romanos mas cal-culavam com o ábaco, e os algoristas, que escreviam e calculavam com numerais hindus. Como o zero podia ser usado para representar a linha vazia do ábaco, ele começou a ser aceito inclusive pelos defensores dos numerais romanos – a linha vazia sempre foi um problema para ser registrada – mas isso também levou a um aumento da resistência ao zero pois como os algoristas usariam um ‘vazio’ nos seus cálculos? O zero era visto como um vazio e não como signo de um numeral. Como o zero poderia ser usado nos cálculos se não correspondia a nenhuma quantidade positiva ou real?

Mas a facilidade de usar os numerais hindus para os cálculos, necessários devido ao incremento do comércio do Renascimento e suas demandas, acabou ganhando a disputa. E com os numerais hindus, o zero entrou no sistema de significação da matemática ocidental, que passou da igreja em latim para os co-merciantes, cientistas-artesãos, arquitetos, e outros leigos que se ocuparam das novas ideias do Renascimento.

O zero tem um duplo aspecto, ele é um meta-signo, um signo-sobre-signos, indicando a falta de outro signo, e é um signo, um número dentro do sistema numérico. Como meta-signo, ele é um nome que aponta para a ausência dos outros nomes 1, 2, …, 9 naquela posição. E é um número, indicando a ausência de protonúmeros. Protonúmeros são o resultado mais simples da contagem, a con-catenação de marcas iguais, como I, II, III, IIII, etc, para escrever o resultado dessa

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contagem, e ganham um significado de sequência ordenada quando o ‘etc’ é interpretado como um imperativo matemático para a continuação da contagem. Essa ausência pode ser interpretada cardinalmente como sinal da pluralidade va-zia, o limite da correspondência um-a-um, a ausência de marcas corresponden-tes, já que os protonúmeros nesse caso correspondem iconicamente às plurali-dades contadas. E de forma ordinal, o zero representa o ponto do começo do processo, a posição inicial do sujeito que conta ao longo da repetição dos passos da contagem (ROTMAN, 1987).

Assim, o zero aponta para a ausência de certos signos tanto ao conotar a origem da quantidade, a pluralidade vazia, ou ao conotar a origem da ordenação, a po-sição que exclui a possibilidade de antecessores. Estas conotações constituem o papel do zero como um meta-signo formulado em termos de, mas separado e externo aos, protonúmeros. Mas o zero também ocorre dentro do domínio do “número” em contato aritmético direto com os números comuns. Em equa-ções como 0 = 0, 1 - 1 = 0, 3 + 0 = 4 - 1, 3 * (2 - 2) = 0, etc., o zero aparece explicitamente como um número entre números, tendo o mesmo status, ope-rando no mesmo plano, e intercambiável com os demais números. (ROTMAN, 1987, p. 13, tradução própria)

A perspectiva é uma representação visual que dominou a arte da pintura ocidental por muito tempo desde a Renascença na tentativa de representar a aparência de um espaço sólido e ocupável numa imagem bidimensional. Numa pintura em perspectiva, a imagem deve ser vista como se fosse emoldurado por uma janela retangular fixa, e o pintor deve criar a cena como se aquele que vê estivesse testemunhando a cena original.

A fim de fazer a imagem fingida apropriada, o pintor imagina linhas no espa-ço conectando os objetos ao seu olho; onde essas linhas cruzam a tela, ele as marca. Se ele mantiver seu olho sempre no mesmo ponto, essas marcas serão signos representando, continuamente ponto a ponto, as superfícies das coisas no mundo visível. (ROTMAN, 1987, p. 17, tradução própria)

Entre esses signos há um com um status especial, privilegiado, situado no ho-rizonte, onde as linhas perpendiculares da tela convergem, um único ponto que organiza a imagem em perspectiva para o espectador, o ponto de fuga. Aquele que vê a tela tem o olhar atraído em direção ao ponto de fuga, que muitos pin-tores renascentistas enfatizaram em sua alteridade e exterioridade colocando-o numa abertura emoldurada, uma porta, uma janela, um espelho ou outra pintura.

O ponto de fuga tem esse status privilegiado por seu caráter semiótico du-plo: como um signo entre os signos, ele atua como signo representativo, pictó-rico, representando uma localidade definida dentro da cena física representada, um local infinitamente longe na distância. E como meta-signo, ele é o organiza-dor da imagem, tornando-a unificada e coerente – se compararmos a pintura em perspectiva com seu ponto de fuga e a pintura gótica da Idade Média, notamos a diferença na ordenação, naquela a perspectiva ordena os objetos na cena pela

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autoria visual do artista, nesta os objetos são mostrados independentemente de sua posição física na imagem, diferentes lugares e realidades históricas exibidas ao mesmo tempo no mesmo espaço, sem o olhar particularizado individual, mas tudo ordenado pelo eterno olho de Deus.

O ponto de fuga funciona como um zero visual facilitando a geração de uma infinidade de imagens em perspectiva, da mesma maneira que o zero gera uma infinidade de numerais. E da mesma maneira como o zero faz a mediação entre duas subjetividades diferentes, a daquele que contou e registrou e daquele que leu os numerais, tornando ambos aquele-que-conta, o ponto de fuga permite ao espectador a possibilidade de se tornar momentaneamente, através de um expe-rimento mental, no artista, ambos aquele-que-vê. Como Brunelleschi espetacu-larmente dramatizou no seu experimento mostrando a perspectiva comparando a imagem espelhada do Batistério com a imagem pintada, “o ponto de fuga age como um espelho, refletindo de volta ao espectador uma versão imaginada de si mesmo, um eu visual fictício com o papel do artista” (ROTMAN, 1987, p. 19, tradução própria).

E a perspectiva necessita, para ser bem feita, executada e entendida, de um conhecimento das proporções, conhecimento que nessa época era também ne-cessário para o capitalismo mercantil, que necessitava das proporções para reali-zar transações comerciais entre países, com diferentes sistemas monetários e de medidas, de peso, volume, tamanho. Um formalismo aritmético simples e eficien-te para fazer conversões era a “regra de três”, onde a partir de três valores co-nhecidos encontra-se um quarto, uma igualdade entre razões aritméticas. A pro-porção ensinou os artistas a pintar em perspectiva, e às pessoas olhar um quadro como se estivesse em três dimensões, a proporção como um princípio cognitivo da pintura, da arquitetura, do comércio, da matemática (ROTMAN, 1987).

Uma outra época que poderíamos estudar são o desenvolvimento das ge-ometrias não euclidianas e da arte moderno no fim do século XIX. Aqui vai um esboço, que ainda precisa ser mais examinado e pesquisado.

Se a matemática ocidental foi construída sobre o método axiomático de-dutivo, baseado na organização inventada na antiguidade e demonstrada nos Elementos de Euclides, onde, a partir de cinco afirmações cuja comprovação é desnecessária por evidente, todas as afirmações da geometria plana foram de-duzidas por meio de um raciocínio formal rigoroso, no século XIX uma delas, a quinta, foi questionada. A partir desse questionamento, novas geometrias foram pensadas, as geometrias não euclidianas. Que não puseram em dúvida o método axiomático dedutivo, mas mostraram que axiomas não são verdadeiros ou falsos em si, mas pontos de partida para o desenvolvimento da matemática, hipóteses iniciais das quais os demais enunciados são logicamente derivados.

Na pintura moderna, a partir de meados, fim do século XIX, a ideia de arte como reprodução exata da realidade deixa de ser o princípio diretor. A arte passa a ser “um meio de conceber o mundo visualmente” (READ, 1978, p. 10, ênfase

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no original). Segundo Herbert Read, a história da arte é a “história de modos de percepção visual, das várias maneiras como o homem viu o mundo” (READ, 1978, p. 10, ênfase no original). A arte moderna concebe-se como uma construção da realidade, assim como a percepção também passa a ser concebida como constru-ída, a visão como aprendida, a visão, um hábito, uma convenção.

Tanto na matemática quanto na arte, seus fundamentos passam a ser dis-cutidos, que eles são construídos e não são verdades anteriores independentes.

5. Mais Arte e MatemáticaHoje é corrente se falar em crise da arte. Quando a arte perde sua aura, se-

gundo Walter Benjamin porque esta foi atrofiada pela reprodutibilidade técnica da obra, a arte começa a se pensar mais, torna-se mais conceitual. E que aura? Para Benjamin a aura é uma trama peculiar do espaço-tempo, uma distância que existe independente de quão próximo o objeto está (BENJAMIN, 2017), aura que Charles Baudelaire definia como o belo que era metade da arte, o eterno e imu-tável, enquanto a outra metade era o belo transitório, efêmero, contingente, e que se algum faltasse deixava no objeto um vazio abstrato (BAUDELAIRE, 1995a). Mas o artista perdeu sua aura, sua auréola, que caiu na rua quando o artista atra-vessou a rua correndo para não ser atropelado, provavelmente amassada e com certeza suja de lama (BAUDELAIRE, 1995b). A unicidade e a duração são perdidas, é a destruição da aura, a remoção do objeto de seu invólucro, tudo é estatística, massa. A fotografia, a cópia, a digitalização tiram a aura da arte da pintura. A ideia da arte como cópia (ou cópia da cópia), buscando mostrar como as coisas realmente são, não se sustenta mais. A arte reflete sobre si mesma no seu fazer. Não há mais o distanciamento em relação ao observador, olhar uma pintura não é mais uma atitude contemplativa, mas ativa.

Não se busca mais na arte da pintura a reprodução, mas percebe-se que a própria visão é também uma construção, a origem cultural da maneira como olhamos. Novos enfoques, novas ideias, mais conceitual, a arte em crise cria.

Estariam os objetos matemáticos também em crise, uma crise como a do ob-jeto na arte atual? Muito se falou da crise dos fundamentos da matemática no iní-cio do século XX, quando uma profusão de paradoxos apareceu na matemátcica! Sua solução se fez por duas principais maneiras, pela restrição da amplitude de ação das teorias, e pelo enriquecimento da base teórica, pela maior formalização, com a criação de novos conceitos/objetos e a correta aplicação de seus campos de significação, e a apresentação de novos axiomas para uma formulação mais rígida para a teoria dos conjuntos, fonte de muitos paradoxos. Assim a crise foi contornada, mitigada, enfraquecida. Mas há crise ainda?

O trabalho principal dos matemáticos é a prova de hipóteses, nas diversas divisões da matemática. Atualmente, provas matemáticas de hipóteses são verifi-cadas por computador, é fornecido ao computador o passo-a-passo da prova e o computador verifica se cada passo logicamente se segue ao anterior, procurando

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por falhas na demonstração. Na verdade, além disso, o computador ajuda tam-bém na busca de novas conjecturas, através de experimentos projetados para o computador. Provas colaborativas homem-máquina também são feitas, quando o homem induz a prova a um grande número de casos ou a uma computação complexa usando o computador. E mais ainda, o objetivo é que o computador busque a própria descoberta da prova formal, sem ajuda de qualquer humano, mas isso ainda não é possível. A própria demonstração colaborativa é compli-cada, cheia de questionamentos, porque muitas vezes a prova é buscada pelo cálculo para todos os possíveis valores, tomando grande tempo de computação e gerando arquivos enormes, custos enormes em computação com centenas de milhares de processadores em paralelo, provas que não seriam economicamen-te viáveis de serem repetidas, e a pergunta quem poderia verificar a prova? As pessoas especialistas no assunto não têm muitas vezes conhecimentos de ciência da computação, e os computadores podem não ser matematicamente rigorosos. A confirmação da prova por computação é assunto polêmico. Mas se possível, viável, verificável, a matemática poderá ser feita por computadores?

Seria o matemático não mais necessário, assim como o artista era pensado como não necessário no século XIX porque havia a fotografia e outras formas de reprodução?

6. ConclusãoOs matemáticos atualmente concordam que os computadores não fazem

autonomamente provas matemáticas. E do mesmo modo que em toda a Inte-ligência Artificial, a menos que a formalização de declarações seja considerada como expressando uma ideia, a automatização de provas não contém qualquer teor matemático além do conteúdo sintático, e portanto hoje os computadores não têm como iniciar o processo e terminá-lo. E como tudo na Inteligência Arti-ficial, as pessoas discordam sobre a possibilidade de isso acontecer algum mo-mento. Se pensarmos com o logicismo de Hilbert, que considerava que a mate-mática eram apenas regras lógicas, sinais sem significado manipuladas segundo regras formais, essas regras sendo a matemática, os computadores poderão fazer provas, levando-se em conta que um significado matemático é expresso apenas nas premissas e conclusões. A Pessoa é retirada da matemática! Porém o logicis-mo matemático perdeu força quando os próprios matemáticos demostraram que nem toda sentença formalizada tem uma prova, mas que existem indecidíveis, proposições que não podem ser derivados apenas dentro do próprio sistema, e que a própria indecidibilidade de uma proposição é indecidível.

Hoje encontramos uma arte efêmera e que tinha sido considerada marginal, batalhas de rima e grafite, intervenções urbanas reclamando o espaço da cidade, algoritmos matemáticos criando arte, gerando questões de originalidade e co-pyright, e até podemos dizer que existe a arte da codificação de algoritmos que cria programas representando ideias matemáticas que são belas.

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A arte não são mais as belas artes, eternas e guardadas nos museus, mas está na rua, viva, feita pelas pessoas comuns. A arte das ruas. Falta à matemática também sair para a rua, sem medo e sem assustar.

Olhar a matemática historicamente permite reconhecer que as interpreta-ções são provisórias, os sentidos são produzidos, a cognição e percepção apren-didos. Os números e formas geométricas, e equações, e gráficos, e demais signos matemáticos, são construídos historicamente, e retroativamente apropriados, as-sim acreditamos nos números como eternos, imutáveis, no mundo platônico das ideias. Mas podemos fazer matemática pensando nos modos de pensar a mate-mática e de fazer matemática. Críticos da matemática.

Nas dimensões do lúdico, do instrumental e do discursivo, dentro da história, fazemos matemática.

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