Piaget e a Questao Ambiental

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PIAGET E A QUESTÃO AMBIENTAL SUJEITO EPISTÊMICO, DIAGNÓSTICO E CONSIDERAÇÕES EDUCACIONAIS CARLA LUCIANE BLUM VESTENA

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Piaget e a Questao Ambiental

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  • Piaget e a questo ambientalSujeito epiStmico, diagnStico e conSideraeS educacionaiSCARLA LUCIANE BLUM VESTENA

  • Piaget e a questo ambiental

  • Conselho editorial aCadmiCoresponsvel pela publicao desta obra

    eduardo Jos manzinidagoberto Buim arena

  • CARLA LUCIANE BLUM VESTENA

    Piaget e a questo ambiental

    Sujeito epiStmico, diagnStico e conSideraeS educacionaiS

  • 2011 editora Unesp

    Cultura Acadmica

    Praa da s, 108

    01001-900 so Paulo sP

    tel.: (0xx11) 3242-7171

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    editora afiliada:

    este livro publicado pelo Programa de Publicaes digitais da Pr-reitoria de Ps-Graduao da Universidade estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (UnesP)

    CiP Brasil. Catalogao na Fonte

    sindicato nacional dos editores de livros, rJ

    V655p

    Vestena, Carla luciane Blum

    Piaget e a questo ambiental: sujeito epistmico, diagnstico e considera-

    es educacionais/Carla luciane Blum Vestena. so Paulo: Cultura acadmica,

    2011.

    inclui bibliografia.

    isBn 978-85-7983-190-4

    1. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Psicologia educacional. 3. educao am-

    biental. i. ttulo.

    11-7543 Cdd: 370.15

    Cdd: 37.015.3

  • Aos meus filhos, Gabriel e Milena, por terem chegado a mim e a cada dia me ensinarem muito atravs de seus olhares de criana,

    de to pouco que acredito saber.

    Ao meu amor, Leandro, pela dedicao carinhosa de uma vida juntos.

    Dedico

  • AgrAdecimentos

    Antes de tudo, preciso expor que meus agradecimentos no so protocolares. Quero agradecer a todas as pessoas que se fizeram presentes. Mas sei que agradecer sempre difcil. Posso cometer mais injustias esquecendo pessoas que me auxiliaram do que fazer jus a todas que merecem. Apesar de dever muito a todas as pessoas mencionadas aqui, intelectual e emocionalmente.

    De alguma forma, todos os que realizam um trabalho de pesqui-sa sabem que no o fazem sozinhos, mesmo que seja solitrio o ato da leitura (em nossos tempos) e o da escrita. O resultado de nossos estudos foi possvel somente pela cooperao e pelo esforo de ou-tros antes de ns. Pesquisadores como Newton j falaram sobre o fardo que conferimos aos ombros dos gigantes que nos antecede-ram. De fato, sinto que este trabalho no s meu. Pelos autores que li, pelos professores com quem tive aulas na ps-graduao, pelos colegas de doutorado que me proporcionaram momentos de discusses e conversas os quais me levaram a aprender, e pelos co-mentrios e sugestes feitos aos meus rabiscos iniciais da tese.

    Agradecimento especial fao ao meu orientador, dr. Adrian Os-car Dongo Montoya, antes de mais nada pela pacincia que teve comigo, pelos ensinamentos e dicas de pesquisa, e pelas horas de leituras gastas no meu trabalho. Suas sugestes nunca soaram arro-

  • gncia de quem detm o ttulo de doutor, mas foram sempre teis, sempre bem-vindas, e acabaram por constituir-se neste trabalho. Adrian, muito obrigada.

    Queria agradecer professora Lvia de Oliveira, pelas sugestes e pela participao, juntamente com o prof. Nelson Pedro da Silva (a quem agradeo aqui: obrigada), na minha banca de qualificao. Boa parte das sugestes desses dois professores est aqui incorporada.

    Aproveito para externar meus sinceros agradecimentos profes-sora Maria Suzana Stefano Menin e professora Tania Stoltz pelas contribuies dadas na defesa da tese, muitas por mim incorpora-das neste livro; outras, salvo guardadas para futuras publicaes. E professora Snia Maria Marchiorato Carneiro, a qual foi suplente na banca de defesa, dedicou-se leitura da tese, e informalmente exps comentrios interessantes sobre meu trabalho de pesquisa.

    professora, colega e amiga Carmen Lcia Dias, que carinho-samente abriu sua casa para me hospedar, no medindo esforos, obrigada por sua amizade e carinho.

    s professoras Lia Zaia, Odete e Eliane Saravali, pelo apoio na estadia em Campinas (SP), o acompanhamento na coleta de dados em Itapira (SP), e a sugesto de uma das escolas investigada.

    Aos colegas do GEPEGE (Grupo de Estudos e Pesquisa de Epistemologia Gentica e Educao), pelas trocas tericas realiza-das durante os encontros. De forma especial, Josana, pelas con-versas e o ombro amigo nos momentos de dificuldades.

    CAPES, pelo apoio financeiro durante um perodo do curso de doutorado.

    Ao Programa de Ps-Graducao da UNESP/Marlia, pela oportunidade e pela, confiana no meu trabalho, e o apoio financei-ro dado minha participao e apresentao de trabalho realizado no Troisime colloque Constructivisme et ducation: Construction in-tra intersubjective des connaissances et du sujet connaissant, realizado pelo Servio de Pesquisa em Educao da Repblica de Genebra, em parceria com a Universidade de Genebra, na Sua.

    UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste), pela oportunidade de dedicar-me como docente e pesquisadora.

  • Em especial, professora Ana Aparecida de Oliveira Barby, pelos momentos de discusso piagetiana, pela amizade e a parceria nos projetos de pesquisa. professora Maria Elda Garrido, amiga e profissional dedicada, que gentilmente leu a tese tecendo seus co-mentrios.

    s acadmicas do curso de Pedagogia da UNICENTRO, Mary, Rayanny e Joyce, e s ex-alunas Fernanda e Adriana, pela ajuda na transcrio das entrevistas.

    Ao meu marido, Leandro, pelo carinho, encorajamento, com-preenso e apoio na elaborao da pesquisa.

    Ao meu filho, Gabriel, pela compreenso nas minhas eventuais ausncias.

    Aos meus pais e ao meu irmo, que sempre estiveram presentes em todas as minhas conquistas, pelo apoio e carinho.

    s diretoras, s professoras e aos alunos das escolas pesquisa-das, pela acolhida carinhosa, a oportunidade de realizar a pesquisa, e o auxlio durante a coleta de dados.

  • sumrio

    Apresentao 13

    1 As principais concepes de mundo advindas da relao homem-meio ambiente 17

    2 A emergncia e os fundamentos da educao ambiental 413 O processo de construo do conhecimento em Piaget 574 As operaes lgicas, a vida social e o julgamento moral 795 O conhecimento ambiental das crianas e dos adolescentes

    de diferentes contextos escolares e o juzo moral 109

    Consideraes finais 159

    Referncias bibliogrficas 165

  • ApresentAo

    O trabalho que apresentamos constitui, originalmente, nossas investigaes preliminares sobre especificidades do desenvolvi-mento cognitivo e moral1 das crianas e dos adolescentes de escolas pblicas e privadas a respeito de questes ambientais, bem como aponta estratgias de educao ambiental para essas crianas. Tais investigaes integram a tese de doutorado desenvolvida junto ao programa de Ps-Graduao em Educao, da Faculdade de Filo-sofia e Cincias da Universidade Estadual Paulista UNESP, cm-pus de Marlia, em 2010.

    A construo do texto segue os principais momentos pelos quais se sucederam as problemticas, as hipteses e os dados empricos, organizado com base em uma linha de pesquisa que acompanha-mos, a qual procura relacionar a epistemologia gentica e a proble-

    1 Buscamos nos dirigir, nos interrogatrios feitos a crianas e adolescentes, ape-nas realidade de alguma forma indireta, por meio de dilemas e questes elabo-radas, visto que um problema moral submetido criana ou ao adolescente est muito mais afastado de sua prtica moral do que um problema intelectual de sua prtica lgica. Decidimos e procuramos estudar no o ato, mas simplesmente o julgamento do valor moral, em especial, o respeito. Em outras palavras, analisa-mos a maneira pela qual eles avaliam esta ou aquela conduta, no avaliamos suas decises nem mesmo suas lembranas de aes. Destaca-se que a moral pode se expressar em atitudes ou no, pois o que pensa uma criana ou um adolescente sobre moral no tem relao precisa com o que faz concretamente.

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    mtica cognitiva e moral (em especial o conhecimento e o respeito) de crianas e adolescentes sobre questes ambientais locais. Rea-lizamos um estudo exploratrio de diferentes grupos de crianas e de adolescentes, com idades distintas, para verificar como as con-dutas aparecem e mudam. O delineamento transversal foi adotado por permitir uma viso de dados evolutivos em pouco tempo e o exame de um grande nmero de sujeitos. Nessa linha de pesquisa, desenvolvemos tambm esforos para possibilitar a discusso de estratgias e mtodos para a superao de prticas tradicionais de Educao Ambiental junto a essas crianas e adolescentes.

    No primeiro captulo, debatem-se as principais concepes de mundo, isto , a concepo ecolgica judaico-crist, a meca-nicista e a organicista. A discusso nos permite destacar, nessas concepes, dados e explicaes parciais sobre o desenvolvimento do conhecimento das crianas e dos adolescentes sobre o meio am-biente, em especial as questes ambientais, bem como imaginar a constituio de uma terceira interpretao, a qual ser desenvol-vida no terceiro captulo.

    O segundo captulo destinado anlise dos fundamentos te-ricos e epistemolgicos da Educao Ambiental (EA). Nessa anli-se, salientamos os processos e o caminho do progresso da Educao Ambiental.

    No captulo terceiro, discutimos como se d o desenvolvimento do conhecimento do ponto de vista do sujeito epistmico, partindo da ao operao, interao social e tomada de conscincia.

    No quarto captulo, discute-se a construo da moral, em espe-cial as operaes lgicas, a vida social e o julgamento moral. Quanto a este ltimo, nos detemos sobre as noes de respeito e responsa-bilidade na vida social e a moral no mbito escolar, fundamentais conscincia ambiental.

    No quinto captulo, por meio de investigaes de cunho psicoge-ntico realizadas por ns, tratamos de refletir sobre a prxis da EA do ponto de vista da ao do sujeito, e deparamos com o primeiro problema da pesquisa: as crianas e os adolescentes no possuem conhecimento ambiental, elas ainda esto interagindo com o meio

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    ambiente local de tal maneira que, em lugar de prevenir e minimi-zar os problemas ambientais, esto ocasionando alteraes negativas no meio ambiente e na vida do ser humano, apesar de participarem de atividades de EA. Contudo, enfatizamos um segundo problema: o desrespeito ambiental como fundamento da investigao moral; assim formulamos uma estratgia diagnstica dos juzos morais das crianas e dos adolescentes por meio de dilemas morais de cunho ambiental, sobretudo, aqueles que tenham a ver com o descarte dos resduos slidos, a poluio das guas e o corte de rvores.

  • 1 As principAis concepes de mundo AdvindAs dA relAo

    homem-meio Ambiente

    [...] a violncia da separao, da guerra de todos contra todos e, em particular, da cincia contra as outras formas de conhecimento. Essa reviravolta fez mais que substituir o antigo pelo novo, ela significou uma mudana de direo: os saberes monrquicos se substituem no um ao outro, mas um refluxo histrico desse privilgio diante da coalizo do conhecimento e do desconhecido, pois a partir do familiar, pois a partir do imaginrio e do individual nasce o fruto do indispensvel esforo de restaurar a plenitude dos laos com a natureza. (Moscovici, 2007, p.124)

    Ao longo da histria, a forma como homem se relaciona com o meio ambiente foi evoluindo, assim como as concepes constru-das com base nessas relaes. A relao do homem com o meio am-biente deu-se a partir de suas maneiras de conceber a estrutura e o funcionamento dos fenmenos da natureza e o mundo em geral. Por isso, abordaremos as principais concepes de mundo que sub-sidiam a atual forma como o homem concebe o meio ambiente e se relaciona com ele.

    No incio, o processo de interao do homem com a natureza foi assinalado por sua capacidade adquirida de ficar totalmente ere-to, apoiado sobre os ps; pelo uso da fala, e pela adoo de meios tecnolgicos. A primeira lhe permitiu a liberao das mos para a construo de instrumentos, visando obteno de caa. A segunda lhe proporcionou a comunicao e facilitou a cooperao do grupo, a organizao social mais elaborada e os avanos culturais. A tercei-ra possibilitou ao homem ultrapassar as dificuldades impostas pe-

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    los meios ambientes e criar instrumentos cada vez mais elaborados para determinados fins (Ponting, 1995).

    Inicialmente, pensava-se que a linguagem e a fabricao de ferra-mentas fossem caractersticas especficas dos homens e que isso lhes tivesse possibilitado agir sobre o mundo com soberania. Entretanto, a linguagem, apesar de sua importncia capital, um indcio insegu-ro para diferenciar os homens dos animais (Moscovici, 1975, p.82).

    De fato, a partir dos estudos de antroplogos e etlogos,1 con-cluiu-se que os chimpanzs so capazes de adquirir um vocabu-lrio muito amplo e de usar com soltura um cdigo semelhante ao que usam os surdos-mudos (Brailovsky, 1992, p.30), ou seja, os animais se comunicam.

    Contudo, o ser humano possui uma forma peculiar de pensa-mento e linguagem, o que o capacita a manejar o fogo. Antes de po-der acend-lo, o homem teve de manipul-lo, conhecer seus efeitos e suas formas de atuao, teve medo, depois pde refletir sobre esse fenmeno e transform-lo em ao concreta. E [...] essa capacida-de de operar o abstrato e aplic-lo vida o que nos faz humanos (Brailovsky, 1992, p.30).

    Logo depois que se passou a conhecer melhor os povos, graas diligncia dos antroplogos, verificou-se que os traos exclusivos da cultura, como o domnio do adulto sobre o jovem e do macho sobre a fmea, e a cooperao, no faltavam ao homem porque ele possua uma natureza social.

    Diante disso, sucessivas tentativas tericas para pr a natureza frente sociedade levavam descoberta de outra concepo de so-ciedade, a predatria essencialmente diferente da do selvagem, da do animal, supostamente considerada irracional. Logo, de ter criado a sociedade, a espcie humana imprimiu-lhe uma estrutu-ra particular. A natureza do homem social, dizia-se, para opor s outras espcies. Porm, verifica-se que a natureza de numerosas espcies social, e a oposio j no se mantm sob este aspecto (Moscovici, 1975, p. 183).

    1 Profissionais formados em Etologia, cincia que se dedica ao estudo dos hbi-tos dos animais e de suas acomodaes s condies do ambiente.

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    A partir da ao do homem, no sentido de modificar os ecossis-temas naturais em funo da sua capacidade de operar o abstrato e aplic-lo vida, e no mais apenas em funo de suas necessidades de alimentao, e gerao de calor, entre outras, que aparecem os pro-blemas ambientais. Os homens comeam a se fixar em locais e a de-senvolver a agricultura, o que lhes permite a estocagem de alimentos, possibilitando o surgimento, assim, das primeiras aldeias e cidades.

    Porm muitas dessas atividades alteram consideravelmente o meio ambiente, causando problemas ambientais que figuram no planeta desde a pr-histria, entre os perodos Paleolticos e Meso-lticos, marcados pela descoberta do fogo (Diegues, 1994, p.20).

    Diamond (2005), em Collapse: How societies choose to fail or succeed, afirmou que, nos piores casos de catstrofes ambientais, as pessoas emigravam seguindo seu instinto natural ou morriam.

    Como exemplo de extino de civilizaes antigas, o autor cita a Ilha de Pscoa, um pedao de terra isolado no Oceano Pacfico, que chegou a abrigar uma populao de 20 mil pessoas, em meados do sculo XVIII. Nesse perodo, os humanos foram extintos por pr-ticas de matana entre irmos e de canibalismo, que decorreram do corte de todas as rvores que serviam de fonte de alimento, de com-bustvel e de madeira para construo. Outros desastres ambientais que podem ser destacados so um extenso perodo de seca que aca-bou com a avanada civilizao maia, no Mxico, h mil anos, e o ltimo registro dos vikings na Groenlndia, que desapareceram no sculo XV graas pequena Era do Gelo (Diamond, 2005).

    Diamond (2005) no restringe seus estudos apenas s civiliza-es antigas que fracassaram, mas tambm avana sobre exemplos contemporneos, como os de Ruanda e do Haiti, e casos de suces-so, como os da Islndia e do Japo que, de certo modo, superaram parte de seus problemas ambientais. Portanto, o estudo das civili-zaes que sucumbiram conduz reflexo sobre a maneira como as sociedades contemporneas podero se esquivar do destino de suas antecessoras desaparecidas.

    Os fatores que causaram o fracasso das sociedades, para Dia-mond (2005), foram os danos ambientais, as mudanas climticas,

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    os vizinhos hostis, a falta de parceiros comerciais e a ausncia de reaes por parte da sociedade (Quadro 1.1).

    Quadro 1.1 Fatores e exemplos de sociedades fracassadas.

    Fatores responsveis pelo fracasso

    Exemplos

    Danos ambientais Na Ilha de Pscoa, no Pacfico Sul, a devastao das florestas levou a guerras, revoltas e a uma queda na populao, por volta do ano 1600.

    Mudanas climticas

    Para o povo anasazi, do sudoeste dos Estados Unidos, anos de severas secas resultaram na decadncia, no ano 1200.

    Vizinhos hostis Para os maias, na Amrica Central, a hostilidade dos vizinhos (somada devastao ambiental e s mudanas climticas) conduziu ao colapso, por volta do ano 850.

    Falta de parceiros comerciais

    Na Polinsia, as populaes das Ilhas Henderson e Pitcairn foram extinguindo seu sistema comercial, antes de desaparecerem, por volta do ano 1500.

    Ausncia de reaes por parte da sociedade

    Os vikings que colonizaram a Groenlndia no conseguiram reagir diante da destruio das florestas, da mudana climtica, de vizinhos hostis e da ausncia de comrcio, o que levou ao desaparecimento de sua civilizao, por volta do ano 1450.

    Fonte: Adaptado de Diamond (2005).

    Avanando na reflexo sobre de onde teriam se originado os problemas ambientais, provenientes da relao homem-meio am-biente, adentramos mais a fundo nas concepes de mundo. Com base na forma como os homens estabeleciam relaes com a nature-za, emergiram determinados problemas ambientais, como poluio atmosfrica, perda de fertilidade do solo (eroso) e poluio hdrica. Para compreender a problemtica ambiental, abordaremos as prin-cipais concepes de mundo: a ecolgica judaico-crist, a mecani-cista e a evolucionista, tambm chamada de organicista.

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    A concepo ecolgica judaico-crist

    Plotino, o Platnico, prova por intermdio das flores e folhas que partindo do Deus Supremo cuja beleza invisvel e inexprimvel, a Providncia atinge as coisas aqui embaixo. Ele salienta que esses objetos fracos e mortais no poderiam ser dotados de uma beleza to imaculada e to primorosamente elaborada, se no brotassem da divindade que permeia incessantemente todas as coisas com sua beleza invisvel.

    Santo Agostinho,apud Bateson

    Tal proposta afirma que o homem no seria o rei da criao, mas o rei da Terra, e que todas as ervas, rvores, pssaros e tudo o que se move sobre ela estaria sua disposio, como est escrito em Gnesis 1, 26-29:

    Ento Deus disse: Faamos o homem nossa imagem e se-melhana. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus, sobre os animais domsticos e sobre toda terra, e sobre todos os rpteis que se arrastam sobre a terra [...]. Deus disse: Eis que eu vos dou toda a erva que d semente sobre a terra, e todas as rvores frutferas que contm em si mesmas as suas sementes, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos cus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda a erva verde por alimento. (Bblia, 1995)

    A expresso rei da criao uma indicao dos limites do que

    os homens podem fazer com a natureza porque limita a pura ex-plorao dos homens. Essa qualificao conferida espcie humana parece dar a entender uma absoluta indiferena da natureza diante das aes dos homens, para qualquer conduta predatria. Porm, no h referncias a um uso caprichoso ou predatrio dos recursos naturais, uma vez que a dominao aponta uma ao do homem sobre a natureza, e no o contrrio. O domnio referido em Gnesis

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    o reinado da criao, porm, para a legislao bblica, h uma diferena entre um rei e um tirano. Os reis da Bblia esto sujeitos do estrito cumprimento das normas de Deus. E a misso ser como Salomo, e no Herodes (Brailovsky, 1992, p.46-7).

    Na concepo de mundo baseada no conhecimento religioso, a natureza foi criada por Deus como obra pura e perfeita. De acor-do com a passagem escrita em Gnesis, o homem constitui o elo final e a natureza toda se encontra sua disposio, bastando ape-nas utiliz-la e usufruir de seus benefcios. Os acidentes ambientais e as catstrofes provocados por fenmenos climticos no seriam de responsabilidade humana, mas castigos enviados pelo ser divino para punir os homens.

    Durante o ano de 140 d.C., o Imprio Romano se expandiu prati-camente por toda a Europa, parte da sia e norte da frica. A expan-so romana, de conquista e grandeza, refletiu-se em atitudes tomadas em relao natureza. Como as rvores no davam a mesma glria, o mesmo prestgio que as obras pblicas, os romanos no as utilizaram na conteno de encostas. Assim, para evitar inundaes, pntanos e deslizamentos, preferiram escavar canais e drag-los continuamente. Seu esforo, no entanto, resultava intil, uma vez que estavam pro-vocando o desflorestamento contnuo. Eles tinham, assim, uma con-cepo parcial dos processos ecolgicos e da cidade.

    No ano 476 d.C. chega ao fim o Imprio Romano no Ocidente. Com isso, havia milhares de habitantes e uma classe dominante que no consideravam a cidade prpria para se viver. medida que a ci-dade crescia, as inundaes se agravavam em virtude de problemas nos mecanismos de drenagem, entre outros. A cidade era insalu-bre, as casas eram ainda piores. As dos ricos eram agradveis, mas a maioria dos romanos vivia em grandes edifcios de apartamen-tos, bebiam gua de fontes pblicas e utilizavam latrinas pblicas. Nos interiores se acumulavam o povo, os insetos, os roedores e os escombros. Apesar disso, a sobrevivncia ecolgica em Roma foi possvel por causa do abastecimento de gua, porque o bom sistema provinha de canais e aquedutos que transportavam-na de manan-ciais, rios, lagos e arroios situados a quilmetros da cidade.

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    Roma nos d exemplo de como a cultura absorve e traduz os efeitos de uma catstrofe ecolgica. A massa popular no sabia como aconteciam os problemas mdicos ou ambientais; os homens acreditavam que as causas eram divinas. Por ocasio de doenas, a peste era vista como castigo de Deus e as cidades se enchiam de flagelados e penitentes, as energias voltavam-se para os aspectos simblicos, e muito pouco se destinava aos aspectos materiais: lim-peza de edifcios, enterro de mortos, estratgias de preveno ou de evacuao ordenada.

    H que se considerar, ainda, a preocupao de Deus com o conjunto de seres vivos: Olhai as aves do cu: no semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimen-ta; tal como a chuva e a neve caem do cu e para l no volvem sem ter regado a terra, sem dar o gro a semear e o po a comer; e nenhum pardal passa despercebido diante de Deus (Brailovsky, 1992, p.49).

    Na Idade Mdia, do sculo VI ao XV, a viso de mundo orgnica implicava um sistema de valores que conduzia ao comportamento ecolgico. De acordo com Merchant (1980, p.3), a imagem da Terra como organismo vivo e me nutriente serviu como restrio cultu-ral, limitando as aes dos seres humanos. Segundo esse autor, no se mata facilmente uma me, perfurando suas entranhas em busca de ouro [...]. Ao passo que a terra fosse considerada viva e sensvel, seria uma violao do comportamento tico humano levar a efeito atos destrutivos contra ela.

    Toda a estrutura cientfica dessa viso orgnica de mundo estava embasada no naturalismo de Aristteles e na fundamentao teri-ca de Plato e Santo Agostinho, que consideravam mais importan-tes as questes referentes a Deus, alma humana e tica.

    A partir do perodo iniciado no sculo XV, ao qual os historia-dores denominaram Idade Moderna, surgiu o Renascimento, que reposicionou o homem como centro do universo o antropocentris-mo. Com o Renascimento, o comrcio comeou a tomar fora e com ele surgiram as grandes companhias de navegao, caracterizando--se esse perodo pelos descobrimentos martimos e, como conse-

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    quncia, pelo apogeu do mercantilismo, do racionalismo e o advento da experimentao cientfica. De acordo com esse modelo de cincia, o homem, senhor do mundo, podia transformar a natureza, explor--la, e ela deveria servi-lo, fazendo-se escrava e obediente.

    Por volta dos sculos XVI e XVII, iniciou-se uma mudana na natureza e no pensamento medieval e renascentista. A viso de um mundo orgnico, vivo e espiritual, foi sendo substituda gradativa-mente pela noo de um mundo-mquina, composto de objetivos distintos, em funo das revolucionrias mudanas na Fsica e na Astronomia, ocorridas depois de Coprnico, Galileu e Newton. A mudana de imagem da natureza, de organismo para mquina, teve um poderoso efeito sobre a atitude das pessoas em relao ao meio ambiente natural. Sai de cena o conceito de terra como me nutri-dora e entra o de natureza supridora de todos os desejos do homem. Do ponto de vista da cincia, essa mudana da relao homem-na-tureza alterou tambm a relao tica do homem consigo mesmo.

    Na verdade, essa viso homem-mquina deu origem a um novo mtodo de investigao cientfica que envolvia a descrio matem-tica da natureza, defendida por Francis Bacon. A filosofia capita-neada por esse pensador mudou profundamente a compreenso da natureza crist, j presente na Antiguidade, que idealizava a vida em harmonia com a natureza e a realizao da cincia para a glria de Deus. Objetivando separar o que essencial do que ele chamava de acessrio, foi criado um dos catorze princpios de Fayol, mais tarde conhecido como subordinao do interesse particular ao interesse geral . Esse perodo, chamado de Revoluo Cientfica, teve seu incio com Nicolau Coprnico. Ao conceber o Sol como centro do universo, Coprnico foi contra a concepo de Ptolomeu e da Bblia, aceita por mais de um milnio, de que a Terra era o cen-tro do universo. Sob a influncia do pensamento medieval, concluiu ainda que o Sol ocupava a posio central do universo, o que, para ele, simbolizava a Luz de Deus.

    A concepo teolgica s comeou a ser abalada no transcur-so do sculo XIX quando, a partir dos estudos de Alexandre Von Humboldt feitos durante viagens, surgiu a argumentao de que

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    a distribuio dos seres vivos na superfcie terrestre era explicada pela ao climtica e no como obra da vontade divina. Essa pro-posta desenvolveu um ambiente propcio para a aceitao das teses evolucionistas elaboradas posteriormente por Darwin. Esses dois eventos contriburam para que a explicao divina do mundo e con-sequentemente dos problemas ambientais fosse repensada.

    A concepo mecanicista de mundo

    Se antes a Natureza podia criar o medo, hoje o medo que cria uma natureza meditica e falsa, uma parte da Natureza sendo apresentada como se fosse o todo.

    Milton Santos

    Nessa proposta, a maneira de compreender o mundo deve se processar distinguindo-o parte por parte e reconstituindo as liga-es entre elas. Tal proposio teve origens explcitas no pensa-mento de Descartes e dominou a partir do sculo XVIII. Essa nova viso, surgida essencialmente com o Renascimento, mudou a viso do homem sobre si mesmo e sobre seu entorno. Deus deixa de ser o centro do mundo e o homem se apodera desse lugar, e o faz para dominar o mundo. No por acaso que essa poca marcada por grandes descobrimentos geogrficos. Os limites do mundo se am-pliam enormemente e os homens da Europa alcanam seus ltimos confins, o que eleva seu impacto ecolgico (Brailovsky, 1992, p.72).

    Quanto ao mtodo de Descartes, este consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes e em disp-las em sua or-dem lgica. Esse mtodo analtico de raciocnio , provavelmente, a maior contribuio de Descartes cincia e tornou-se uma carac-terstica essencial do moderno pensamento cientfico e provou ser extremamente til no desenvolvimento de teorias cientficas e na concretizao de complexos projetos tecnolgicos.

    Tal concepo mecanicista possibilitou, por exemplo, a viagem do homem Lua. Por outro lado, a excessiva nfase dada ao mto-do cartesiano levou fragmentao, caracterstica do pensamento

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    de grande parte da humanidade e das disciplinas acadmicas. Alm disso, tambm ocasionou a atitude generalizada de reducionismo da cincia a crena de que todos os aspectos dos fenmenos com-plexos podem ser compreendidos se reduzidos s suas partes cons-tituintes (Capra, 2006, p.54-5).

    Nas Cincias Humanas, especificamente, a diviso cartesiana redundou em interminvel confuso acerca da relao entre men-te e crebro. Na Fsica, dificultou imensamente aos fundadores da teoria quntica a interpretao de suas observaes dos fenmenos atmicos. Segundo Heisenberg (1962), que se debateu com o pro-blema durante muitos anos:

    Essa diviso penetrou profundamente no esprito humano nos trs sculos que se seguiram a Descartes e levar muito tem-po para que seja substituda por uma atitude realmente diferen-te em face do problema da realidade. (Heisenberg, 1962, p.81)

    Nessa perspectiva, a explicao dada aos problemas ambientais passa a estar de acordo com a viso mecanicista de mundo, a qual, como vimos, considera a organizao composta por peas elemen-tares e separadas, que se integram num funcionamento similar ao das mquinas. Assim, a natureza composta por fenmenos imbri-cados em uma cadeia de ligaes necessrias, tendo o homem como centro do mundo.

    A mecanizao da cincia tambm contribuiu para o desapa-recimento das restries culturais. A concepo cartesiana do uni-verso como sistema mecnico forneceu uma sano cientfica para a manipulao ocidental. O prprio Descartes compartilhava do ponto de vista de Bacon, de que o objetivo da cincia o domnio e o controle da natureza, afirmando que o conhecimento cientfico podia ser usado para tornar os homens senhores e dominadores da natureza. No sentido de construir uma cincia natural completa, Descartes estendeu sua concepo mecanicista da matria aos orga-nismos vivos: as plantas e os animais passaram a ser considerados mquinas, ao passo que os seres humanos eram habitados por uma

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    alma racional que estava ligada ao corpo por meio da glndula pi-neal, no centro do crebro (Capra, 2006, p. 56).

    Depois de Descartes, Newton viu o mundo como um enigma e acreditou que as chaves para sua compreenso poderiam ser en-contradas no s por meio de experimentos cientficos como tam-bm por revelaes crpticas das tradies esotricas. O palco do universo newtoniano, no qual todos os fenmenos fsicos aconte-ciam, era o espao tridimensional da geometria euclidiana clssica. Era um espao absoluto em sua prpria natureza sem levar em conta nada que lhe fosse externo permanente, sempre inalte-rado e imvel. O modelo newtoniano de matria era atomstico, mas diferia da moderna noo de tomos pelo fato de as partculas newtonianas terem todas a mesma substncia material. O movi-mento das partculas era causado pela fora da gravidade. Newton considerava que tanto as partculas como a fora da gravidade eram criadas por Deus e, por conseguinte, no estavam sujeitas a uma anlise ulterior. Nessa perspectiva, Deus criou no incio as part-culas materiais, as foras entre elas e as teorias fundamentais do movimento. Todo universo foi posto em movimento desse modo e continuou funcionando desde ento, como uma mquina governa-da por leis imutveis.

    Neste sentido, Capra (2006, p.61) aponta que:

    Na concepo newtoniana, Deus criou, no princpio, as partculas materiais, as foras entre elas e as leis fundamentais do movimento [...] A concepo mecanicista da natureza est, pois, intimamente relacionada com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca mquina csmica completamente causal e determinada.

    Os sculos XVIII e XIX serviram-se com enorme sucesso da mecnica de Newton, que foi capaz de explicar o movimento dos planetas, da Lua, dos cometas, nos mnimos detalhes, assim como o fluxo das mars e vrios outros fenmenos relacionados gravi-dade. Porm, os estudos desenvolvidos por Faraday e Maxwell a

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    respeito das foras eltricas e magnticas, denominadas por eles de campo de fora, conseguiram ultrapassar a Fsica newtoniana, mostrando que os campos tm sua prpria realidade e podem ser estudados sem nenhuma referncia a corpos materiais. A essa teo-ria eles denominaram eletrodinmica. Mesmo com essa mudana, a mecnica newtoniana continuou a ser a base de toda a Fsica.

    Mais tarde, Einstein foi capaz de reconhecer claramente as ex-plicaes de Maxwell sobre os campos como estados de tenso me-cnica em um meio muito leve e difundido por todas as partes, ao qual denominou ter. Porm, como afirma Capra (2006, p.65), Einstein reconhece esse fato em nosso sculo, quando declarou que o ter no existe e que os campos eletromagnticos so entida-des independentes que podem viajar atravs do espao vazio e no podem ser explicados mecanicamente.

    Surgia, assim, uma nova concepo de mundo que suplantou a imagem da mquina newtoniana e dominou no s o sculo XIX, mas o pensamento cientfico do futuro, a concepo organicista.

    Concepo organicista de mundo

    Combinar a operao atravs da qual ns associamos o que est dissociado, fazemos vir ao mundo, aquilo de que sentimos falta. No existe limite previsvel para a abundncia infinita de seres e de bens que podem resultar.

    Serge Moscovici

    A concepo orgnica de mundo envolve a ideia de evoluo, de mudana e desenvolvimento. Conforme Capra (2006, p.65), a noo de evoluo decorrente dos estudos de fsseis levaram os cientistas concluso de que o estado atual da Terra era resultado de um desenvolvimento contnuo causado pela ao de foras natu-rais durante imensos perodos de tempo.

    Para ele, a mudana decisiva ocorreu com Lamarck, no comeo do sculo XIX, que foi quem primeiro props uma teoria coerente

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    da evoluo, segundo a qual todos os seres vivos teriam evoludo tomando-se por base as formas mais primitivas e mais simples, sob a influncia do meio ambiente.

    Algumas dcadas depois, a Teoria da Evoluo das espcies de Darwin (1859) rompeu com a viso antropocntrica e mecanicista. O homem deixou de ser o centro do mundo para ser simplesmente um pequeno elemento deste. Um dos fatores decisivos para a cons-tituio das cincias do homem, segundo a dimenso gentica, foi a descoberta, ou redescoberta de Darwin, da evoluo dos seres or-ganizados. Uma vez que o homem deixa de ser concebido como se partisse de um comeo absoluto (pr-formado ou predeterminado), o conjunto de questes que dizem respeito s suas atividades pe-se em termos inteiramente novos de explicao causal.

    Tais questes obrigam a investigar os fatores reais que permiti-ram espcie humana, desembaraada da animalidade, construir lnguas, sociedades, uma vida mental, criar tcnicas e uma organi-zao econmica. O universo passou a ser descrito como um siste-ma em evoluo e em permanente mudana, no qual as estruturas complexas se desenvolviam valendo-se de formas mais simples. Em suma, passaram-se a engendrar as inmeras estruturas sobre as quais s se conheciam, at ento, a existncia e os caracteres mais aparentes do funcionamento. Desde ento, a compreenso de sua formao tornou-se obrigatria.

    Na perspectiva evolucionista, a formao do homem passa a ter um significado completamente novo, tornando necessrio compreen-der o modo de produo dos fenmenos, sem se reduzir o ideal cientfico apenas funo nica de previso fundada nas leis da perspectiva da evoluo. As imagens da natureza e da sociedade, anteriormente vistas como peas de mquinas de um todo, so substitudas pela viso sistmica (Capra, 2006, p.260). O referido autor verifica que a analogia fundamental era fornecida pela din-mica biolgica, tendo em vista que cada sistema possui diversos ele-mentos componentes, com suas caractersticas e funes.

    Contudo, enquanto a evoluo, em Biologia, significou um movimento no sentido de uma ordem e uma complexidade crescen-

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    tes, na Fsica passou a significar justamente o oposto um movi-mento com a finalidade de uma crescente desordem (Capra, 2006, p.69). Nesse sentido, as trs primeiras dcadas do sculo XX mar-caram duas descobertas no campo da Fsica moderna que culmina-ram na teoria da relatividade e na teoria quntica. Tais teorias vo contra todos os principais conceitos da viso de mundo cartesiana e da mecnica newtoniana: a noo de espao e tempo absolutos, as partculas slidas elementares, a substncia material fundamental, a natureza estritamente causal dos fenmenos fsicos e a descrio objetiva da natureza.

    Na Fsica quntica, interconexes invisveis tautolgicas, que a princpio se julgavam separadas, so a base de tudo. Nela, toda rea-lidade que emerge e pode ser observada vem das relaes. A viso de mundo que decorre da aceitao da Fsica moderna (quntica) pode caracterizar-se por palavras como orgnica, holstica e ecol-gica, e tambm pela viso sistmica, no sentido da Teoria Geral dos Sistemas, proposta por Bertalanffy (1973). Essa teoria , portanto, uma cincia geral da totalidade, uma disciplina lgico-matem-tica formal, mas aplicada a vrias cincias empricas. Apregoa que todas as coisas esto inter-relacionadas, isto , interconectadas, e, assim, o planeta Terra um sistema e seu desequilbrio coloca em perigo a prpria existncia do homem. A partir da TGS, a socieda-de passa a se preocupar com a questo ambiental.

    A nova viso da realidade se baseia na conscincia do estado de inter-relao e interdependncia essencial de todos os fenmenos fsicos, biolgicos, psicolgicos, sociais e culturais (Capra, 2006, p.259). Essa viso transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais e concebe o mundo com base em relaes de integra-o. Os sistemas so totalidades integradas, cujas propriedades no podem ser reduzidas s de unidades menores. Todos os siste-mas naturais so totalidades cujas estruturas especficas resultam de interaes e da interdependncia de suas partes. O pensamento sistmico pensamento de processo: a forma torna-se associada ao processo, inter-relao, interao, e os opostos so unifica-dos pela oscilao.

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    A Teoria Geral dos Sistemas prope um novo paradigma, per-mitindo a aplicao de um conjunto de princpios a todos os sis-temas. Ao cri-la, Bertalanffy (1973) reorientou o pensamento da viso linear mecanicista, de forma que o mundo fosse visto como uma grande organizao, opondo-se s leis cegas da natureza. Ele props uma distino didtica dos sistemas em: (a) sistemas reais; (b) conceituais; e (c) abstratos. Por sistemas reais, entendem-se as entidades percebidas mediante observao, cuja existncia inde-pende do observador. Os sistemas conceituais, como a Matemtica e a Lgica, so construes simblicas, isto , sistemas abstratos que correspondem a uma realidade.

    Para o mesmo autor, os limites entre tais sistemas no so to ntidos quanto aparentam, pois ele considera todos os limites mais dinmicos do que espaciais. As inter-relaes existentes entre as partes de um sistema so construes conceituais. Dessa forma, nossa experincia diria no apenas resultado de dados sensoriais ou de percepes, mas tambm fruto de nossas construes basea-das no que experimentamos, ora na experincia anterior e ora em processos de aprendizagem. a conjuno desses fatores que forma o sistema do ser vivente.

    Nesse sentido, Bertalanffy (1973) sugere no somente estudar partes e processos isoladamente, mas tambm resolver os decisivos problemas encontrados na organizao e na ordem que os unifica, resultantes da interao dinmica das partes. Aplicando essas refle-xes compreenso do comportamento humano, no se pode mais reduzir o homem a uma mquina capaz de gerar fatos mentais seu comportamento a um rol de sensaes, impulsos e reaes inatas, sem nenhuma funo ou conexo entre si e o seu agente.

    Assim, ele aponta as questes vitais atuais em relao ao proble-ma da posio especial do homem na natureza. Dentre os pressu-postos de sua evoluo, encontram-se dois fatores que estreitamen-te se correlacionam e que so monoplio do homem: a linguagem e a formao de conceitos. A linguagem, no sentido mais amplo da palavra, compreende no somente a fala, mas tambm a escrita e o sistema simblico da matemtica, que, por sua vez, tradicional e

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    criado livremente. Em segundo lugar, os ensaios e erros fsicos, em grande parte caractersticos do comportamento animal, so subs-titudos pela experimentao mental, isto , por aquela que feita com smbolos conceituais. Por essa razo, torna-se possvel o esta-belecimento de uma meta. A regulao dos acontecimentos, com a finalidade de manuteno, produo e reproduo de totalidades orgnicas, um critrio geral da vida.

    O todo assume estrutura e funcionalidade diferenciadas dos seus subcomponentes. Inerentes totalidade, encontram-se a concepo e a anlise da complexidade. Os sistemas complexos apresentam diversidade de elementos; encadeamentos, interaes e fluxos e mecanismos de retroalimentao (mecanismos que ten-dem a reforar ou a diminuir a tendncia de um sistema para a mudana) compem uma entidade organizada. A unidade repre-senta qualidade do que um nico, uno ou sem partes, sendo tudo o que pode ser considerado individualmente.

    Ainda segundo Bertalanffy (1973), o poder social, o mundo simblico, que torna o homem humano, ao mesmo tempo pro-duz o curso sangrento da histria por oposio simples luta pela existncia dos indivduos, a histria humana , em grande parte, dominada pela luta de ideologias (simbolismos) que so tanto mais perigosas quanto mais disfaram instintos primitivos. Por outro lado, este mundo simblico torna-se um poder capaz de conduzir a graves perturbaes. Se h um conflito entre o mundo simblico que na sociedade humana emergiu na forma de valo-res morais e de convenes sociais , e os impulsos biolgicos que se acham deslocados no contorno cultural , o indivduo de-para uma situao propensa psiconeurose. Contudo, depende do homem aplicar seu poder de previso para elevar-se ou para dar origem sua prpria aniquilao.

    Nas cincias, os estudos que consideram o todo organizado apresentam significado semelhante aos estudos que se ocupam de acontecimentos causais (teoria das possibilidades). Isso indica os principais propsitos da Teoria Geral dos Sistemas:

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    1. Tendncia geral no sentido da integrao em vrias cincias, naturais e sociais;

    2. Esta integrao parece se centralizar em uma teoria geral dos sistemas;

    3. Essa teoria pode ser um importante meio para alcanar uma teoria exata nos campos no fsicos da cincia;

    4. Desenvolvimento e princpios unificadores que atravessam verticalmente o universo das cincias individuais: essa teoria se aproxima da meta da unidade da cincia.

    5. Isso pode conduzir integrao muito necessria na educao cientfica. (Bertalanffy, 1973, p.62)

    De acordo com Capra (2006, p.262), o que diferencia a con-cepo mecanicista (a das mquinas) da Teoria Geral dos Siste-mas (viso de organismos) que as mquinas so construdas reunindo-se e montando-se um nmero bem definido de peas de modo preciso e previamente estabelecido, ao passo que os organismos, por outro lado, mostram um elevado grau de flexi-bilidade e plasticidade internas. O formato de seus componen-tes pode variar dentro de certos limites e no h dois organismos que tenham peas rigorosamente idnticas. Embora o organis-mo como um todo exiba regularidades e tipos de comporta-mento definidos, as relaes entre suas partes so rigidamente determinadas. Sendo assim, se as atividades de uma mquina so determinadas por sua estrutura, a relao se inverte nos or-ganismos a estrutura orgnica determinada por processos (Figura 1.1).

    Neste caso, por exemplo, a afirmativa de que a Amaznia o pulmo do mundo dada comparando-a com um rgo vital do corpo humano. No caso do planeta Terra, sua destruio acarreta-ria danos irreparveis do sistema e comprometeria a prpria exis-tncia humana. A afirmao posta com a finalidade de a Amaz-nia ser preservada, caracterizando-se em uma viso organicista de mundo, conforme Christofoletti (1999).

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    Mquinas

    So construdas

    Organismos

    Eles crescem

    Construo: nmero reduzido de peas

    Funcionamento: cadeias lineares de causa e efeito

    Atividade: determinada pela estrutura

    Orientao: em direo ao processo do nmero de peas

    Funcionamento: guiado por modelos cclicos de fluxo de informao conhecidos por laos de realimentao

    Estrutura orgnica: determinada por processos

    Figura 1.1 Funcionamento das mquinas e dos organismos.

    Nessa viso, os grupos humanos devem compreender as caracte-

    rsticas e o funcionamento dos sistemas do meio ambiente e evitar in-troduzir aes que provoquem rupturas no equilbrio, ocasionando os impactos ambientais que ultrapassam a estabilidade existente. As pessoas absorvem a linguagem simples e apelam para as qualidades de deciso e escolha, quando afirmam que a natureza sbia.

    A tarefa primordial da Biologia descobrir as leis dos sistemas biolgicos, o que apontaria para uma mudana bsica na concep-o do mundo (Bertalanffy, 1973). Reconhecendo os organismos como entidades organizadas, assim como so os grupos sociais, que se automantm e se auto-organizam, os sistemas possuem uma na-tureza orgnica; se uma das partes sofrer alguma mudana, inevi-tavelmente as outras sofrero seus reflexos, resultando ou no em mudanas no sistema.

    A plasticidade e a flexibilidade internas dos sistemas vivos, cujo funcionamento controlado mais por relaes dinmicas do que por rgidas estruturas mecnicas, do origem a numerosas proprie-dades caractersticas que podem ser vistas como aspectos diferentes do mesmo princpio dinmico o princpio de auto-organizao.

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    Isso implica que um organismo vivo um sistema auto-organiza-dor, o que significa que sua ordem, em estrutura e funo, no im-posta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo prprio sistema.

    Por esse fato, os sistemas auto-organizadores exibem certo grau de autonomia. Por exemplo, tendem a estabelecer seu tamanho de acordo com princpios internos de organizao, independentemen-te de influncias ambientais. Mas isso no significa que os sistemas vivos estejam isolados do seu meio ambiente; pelo contrrio, eles interagem.

    Vejamos, por exemplo, a ecologia, que determina a forma global de uma coletividade; todavia:

    [...] no modula as normas e os comportamentos particulares, pois h certa autonomia da funo social e das estruturas que ela reveste, mesmo j nos primatas. As relaes naturais dos pri-matas esto submetidas ao substrato gentico e influncia do mundo social, intervindo paralelamente no mundo fsico e com si prprio. (Moscovici, 1975)

    O substrato gentico engloba os dois principais fenmenos di-nmicos da auto-organizao, que so a autorrenovao e a auto-transcendncia. O primeiro compreende a capacidade dos sistemas vivos de renovar e reciclar continuamente seus componentes, sem deixar de manter a integridade de sua estrutura global. O segundo compreende a capacidade de se dirigir criativamente para o desen-volvimento dos processos fsicos e mentais (Capra, 2006, p.263).

    Contudo, a incluso de novas perspectivas relacionadas abor-dagem em sistemas promoveu a revitalizao das concepes orga-nicistas bsicas, embora juntamente com outros contextos concei-tuais e analticos, que repercutiram na maneira de focar as questes ambientais.

    Gare (1995) assevera que as perspectivas sistmicas surgiram considerando o desenvolvimento provindo da Biologia Teortica, com as inovaes introduzidas por Ludwig von Bertallanfy, sendo esta considerada uma proposta da modernidade.

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    Nesse sentido, o crescente desenvolvimento econmico das ci-dades industrializadas e o elevado custo da subsistncia de toda a populao exigem o intensivo consumo de matrias-primas e de recursos no renovveis. No caso da energia nuclear, do aumento o gasto energtico imposto pelo desenvolvimento tecnolgico causa graves perigos, notadamente sade do homem. Os dejetos indus-triais, detergentes e resduos orgnicos de origem domstica, que no podem ser degradados pela ao de bactrias, contaminam o ar e as guas de rios e mares.

    Assim sendo, o sculo do progresso , em muitos casos, um aler-ta degradao das condies ambientais, visto o impacto negativo do homem sobre o meio natural, muitas vezes irreversvel. Por outro lado, considerando o conjunto da humanidade, detectam-se novos focos de preocupao: o ritmo de crescimento da populao mundial, impulsionado por altas taxas de natalidade das camadas populares e as baixas taxas de natalidade das classes mdia e alta, tem levado alguns demgrafos a imaginar um planeta com uma superpopulao num futuro no distante, nos pases de terceiro mundo.

    Nesse sentido, lembra Capra (2006, p.253) que, quanto mais se estudam os problemas sociais desse tempo, mais se percebe que a viso mecanicista do mundo e o sistema de valores que lhe est associado geraram tecnologias, instituies e estilos de vida profun-damente patolgicos.

    Portanto, constata-se que os problemas ambientais se intensifi-cam com o aumento da capacidade do homem de intervir na natu-reza, auxiliado pelo advento de novas tecnologias e associado a uma sociedade de consumo (que a cada dia demanda mais recursos natu-rais), que privilegia o lucro, o acmulo de capital em detrimento das condies ambientais, mais impactos ambientais.2

    2 Compreende-se por impacto ambiental qualquer alterao das propriedades fsicas, qumicas e biolgicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indire-tamente, afetam: I a sade, a segurana e o bem-estar da populao; II as atividades sociais e econmicas; III a biota; IV as condies estticas e sa-nitrias do meio ambiente; V a qualidade dos recursos ambientais (Resoluo Conama, n.001, de 23 de janeiro de 1986).

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    Tais impactos ambientais, segundo Drew (1994, p.30), tm provocado um processo de desestabilizao do sistema meio am-biente como um todo. A reao do sistema ambiental, perante um esforo ou tenso que lhe imposto, ocasiona: (a) a cessao da tenso anterior do nvel limiar possui condies para recuperao e restaurao; (b) com a continuao da tenso, at que o sistema ultrapasse o nvel do limiar, no h mais condies para voltar ao estado original. Quando h a eliminao da tenso, a estabilidade ocorre em um novo nvel de equilbrio (Figura 1.2).

    Figura 1.2 Reao do sistema perante a aplicao de uma tenso (Drew, 1994, p.30).

    Conforme Bertalanffy (1973), a fragmentao proposta por Des-cartes e o reducionismo dos fenmenos complexos em partes e proces-sos elementares so importantes e do bons resultados quando aplica-dos ao estudo de fatos observados em cadeias isoladas, com duas ou poucas variveis. Alm disso, o exame das partes isoladas no informa sobre como cada uma das partes codifica e processa a informao e, na presena de muitas variveis, a questo torna-se ainda mais complexa.

    As sociedades, sobretudo as mais recentes, so descritas de maneira simultnea, notadamente as mais desenvolvidas e as mais complexas. Em cada etapa do desenvolvimento, elas teriam menos do natural e mais do cultural, suprimindo sempre mais a primeira

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    caracterstica para favorecer a segunda. A sua qualidade de exceo e de unicidade com a vida a procurar uma causa excepcional liga--as a um acontecimento nico. A superioridade da sociedade torna--se, assim, o princpio explicativo e o fenmeno a explicar. por isso que se procura sempre explicar a formao do lao humano por meio de raciocnios que legitimam ao mesmo tempo a sua perdura-bilidade e justificam suas vantagens. Os costumes, as instituies, as proibies que os homens ditam mutuamente so dirigidos con-tra o fundo biolgico que neles permanece contra a incerteza dos seus comportamentos individuais (Moscovici, 1975, p.172).

    Esse mesmo autor salienta que, se tudo no universo e em ns mesmos estivesse funcionando harmoniosamente, o fenmeno so-cial no teria nenhuma razo de existir. Ele existe e produzido na inteno de corrigir quando a necessidade se faz sentir, quando a economia defeituosa do universo ou do organismo de uma espcie em luta contra os rigores de um ambiente inclemente de uma for-a psicobilogica transbordante. A imposio de um controle, de uma regulao contratual das interaes, simultaneamente a solu-o dada a um problema no resolvido em escala animal, salienta Moscovici (1975, p.173). Dessa forma, o controle e a regulao de-finem a sociedade que se apoia sobre eles mesmos como uma nega-o de tudo que espontneo.

    Tendo isso em vista, a tomada de conscincia dos problemas ambientais tem crescido consideravelmente com os estudos sobre o modelo de desenvolvimento econmico, os limites de crescimento e a planificao do desenvolvimento do mundo.

    A separao homem-natureza, caracterstica marcante do pen-samento que tem predominado na sociedade ocidental, de matriz filosfica grega e romana clssica, aconteceu no decorrer da histria do Ocidente em luta com outras formas de pensamento e prticas sociais. Compreender esse processo de viso dicotomizada do ho-mem e da natureza faz-se necessrio para entender o atual movi-mento ecolgico, que tem questionado o conceito de natureza em vigor, como ele perpassa o sentimento, o pensamento e a ao da sociedade, ou seja, o modo de ser, de produzir e de viver. Diante

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    disso, perguntamos: a viso dicotomizada estaria determinando a concepo de natureza e, respectivamente, as aes do homem no meio ambiente?

    Ao questionar a viso dicotomizada do homem e da natureza, o movimento ecolgico parte do pressuposto sistmico de meio am-biente, e, por conseguinte de planeta Terra, em que todos os elemen-tos esto integrados, formando um todo organizado e articulado.

    Nesse sentido, passo a passo, o planeta Terra tem sido considerado um complexo ecossistema,3 cujo bom funcionamento exige a gesto adequada dos recursos naturais e grandes esforos para a conservao do equilbrio ambiental. A complexidade dessa temtica demanda a contribuio de muitos especialistas nas investigaes.

    Na concepo de que o planeta Terra um sistema, que o ser humano um elemento que depende dos demais em determinado nvel de equilbrio, que alteraes nesse sistema podem acarretar grandes problemas ambientais e afetar drasticamente o equilbrio do sistema, comprometendo a prpria existncia humana, surgem aes com a finalidade de preservar e conservar determinado equi-lbrio no sistema Terra.

    Desse modo, foi recomendado pela Conferncia Intergover-namental da Unesco, em 1977, o desenvolvimento de programas de Educao Ambiental, que pretendem, de modo geral, facilitar a compreenso dos sistemas de relaes homem-meio ambiente e promover uma maior sensibilizao da problemtica ambiental, em escala local. A ideia que se apresenta que devemos pensar os pro-blemas ambientais globalmente, mas agir localmente.

    As prticas de EA teriam como fundamento pedaggico uma pe-dagogia ativa que pretende substituir a contemplao idlica da natu-reza por uma percepo direta do meio ambiente e estimular ativida-des que levem tomada de conscincia dos problemas ambientais.

    Valendo-se do exposto, a presente pesquisa fundamenta-se na concepo de mundo orgnica, em que o sistema ambiental resul-

    3 Conjunto formado por uma comunidade de organismos (biocenoses) e a teia de elementos fsicos (bitopo) que constituem o meio em que estes vivem (Capel; Urteaga, 1991).

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    tado da integrao e da interdependncia de todos os fenmenos fsicos, biolgicos, psicolgicos, sociais e culturais, ou seja, uma totalidade. Fundamenta-se tambm no pressuposto de que a EA seria um processo essencial na preveno e na mitigao dos pro-blemas ambientais.

  • 2 A emergnciA e os fundAmentos

    dA educAo AmbientAlO grande problema das cincias exatas e naturais a pobreza das relaes interdisciplinares.

    Jean Piaget

    A Educao Ambiental foi instituda no Brasil valendo-se de iniciativas externas provenientes dos resultados da discusso de eventos internacionais, a fim de atender aos esforos da humanidade na busca pelo desenvolvimento sustentvel. Isso ocorreu mediante propostas polticas que culminaram na implantao de iniciativas de EA em instituies formais e informais, de vrios segmentos da sociedade, incluindo as escolas. Assim, neste captulo, apontamos alguns aspectos relevantes ao surgimento da EA e sua implanta-o na escola como tema transversal e interdisciplinar.

    No incio, a sobrevivncia do homem era sobremaneira depen-dente de sua relao com o meio ambiente. Meadows (1989, p.7) alerta-nos que a natureza era mais poderosa que os homens e os afetava mais do que era afetada por eles. Por isso, s sobrevivia quem soubesse se relacionar com o meio ambiente, ou tivesse sorte nessa relao.

    Para Meadows (1989), aes de EA j eram observadas no incio da humanidade, desde quando os homens comearam a interagir com o meio. Com a necessidade de sobreviver, os homens primiti-vos precisavam saber quais frutos eram comestveis, como encon-trar gua durante a estao seca, como evitar animais perigosos, que materiais melhor se adaptavam construo de casas, como fazer um bom fogo ou um bom remdio. O conhecimento ambiental era

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    tambm necessrio para proteo contra ataques da natureza e in-tempries para o aproveitamento de suas riquezas.

    Paulatinamente, a natureza passou a ser concebida como algo a ser observado, sentido, como fonte de alegria, beleza, identidade, status pessoal, inspirao para a msica, para a arte e a religio, motivando, portanto, valores internos e perenes pelos quais se de-veria lutar.

    Com o incio do processo de fixao do homem terra ocorrem o desenvolvimento e a evoluo da civilizao humana, bem como a urbanizao. No decorrer do tempo, comea a manifestar-se um maior conhecimento do ambiente e uma maior explorao de seus recursos. As cincias evoluem e os fenmenos naturais comeam a ser compreendidos. A natureza passa a manter uma relao de subservincia em relao espcie humana. O conhecimento da natureza e a transmisso desse conhecimento serviram apenas para que o ambiente fosse mais dominado e explorado. Conforme Capra (2006, p.47), construmos o conhecimento por meio de uma per-cepo estreita da realidade, baseado no pensamento racional, que se caracteriza pela linearidade. Ainda salienta que fragmentamos o saber, trabalhando os problemas ambientais isoladamente, de for-ma no relacional.

    No incio, o estudo do meio ambiente envolveu a cincia pr-tica de extrao de recursos, como tambm o estudo do mundo natural com a finalidade de montar catlogos e descries dos ambientes naturais. Nos dois casos, a natureza era considerada algo separado e inferior sociedade humana. Em ltima anlise, optou-se por uma utopia desenvolvimentista antropocntrica, no dizer de Buarque (1993), marcada pela falta de solidariedade entre os homens e desvinculada da natureza, que no teve ne-nhuma preocupao em estabelecer uma coviabilidade a longo prazo dos ecossistemas e dos estilos de vida que eles suportam (Vieira; Weber, 1996).

    Esse processo civilizatrio, pautado por modelos de sociedade incompatveis com a sustentabilidade biolgica, social, cultural e econmica, desencadeou, com o decorrer dos anos, tudo isso a que

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    chamamos de crise ambiental. Na verdade, uma crise manifesta-da pela degradao ambiental.

    A problemtica da concepo instrumental do conhecimento, segundo Grun (2007), poderia ser entendida como uma das causas da grave crise ecolgica que se enfrenta na atualidade. Portanto, ao longo dos ltimos 300 anos, a Natureza foi transformada em mero objeto de manipulao disposio da razo humana. A viso das paisagens e dos lugares de modo quase mecnico e sem vida levou a uma completa separao entre os seres humanos e o meio ambiente.

    Hoje, a crise ambiental muito sria e grave, considerada no s um problema nacional, mas, tambm, um problema internacional. Est vinculada, igualmente, s questes de segurana, diretamente relacionada nossa sobrevivncia, das futuras geraes e do pla-neta que nos abriga.

    Na escola, a temtica ambiental passou a figurar em muitos t-picos de programas e de vrias disciplinas, mas firmou suas bases especialmente nas cincias. Pensava-se que a interligao de todas as cincias iria permitir uma viso completa do funcionamento do planeta, possibilitando ao homem interagir com ele de maneira mais proveitosa.

    Como o volume de informaes a ser aprendido em cada cin cia crescesse e as pessoas se especializassem cada vez mais [...] ningum pode reunir todas as disciplinas para uma viso total do planeta, muito menos para uma compreenso da sua in-terao com os sistemas culturais e econmicos da humanidade. (Meadows, 1989, p.8)

    Entretanto, na metade do sculo XX, intensificam-se os proble-mas ambientais, reais e urgentes, que assumiram propores alar-mantes, como os episdios de contaminao do ar em Londres e Nova York, entre 1952 e 1960; os casos fatais de intoxicao com mercrio em Minamata e Niigata, entre 1953 e 1965; a morte de aves provocada pelos efeitos secundrios e imprevistos do DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano); a diminuio da vida aqutica em

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    alguns dos grandes lagos norte-americanos; bem como a contami-nao do mar provocada pelo petroleiro Torrey Canyon, em 1966.

    nesse contexto de crise ambiental que se formulou o termo Educao Ambiental (Environmental Education), como uma alternativa para a preveno e a minimizao dos impactos am-bientais ocasionados pela industrializao. A expresso EA foi utilizada pela primeira vez na Conferncia de Educao da Uni-versidade de Keele (1965), em Londres, Inglaterra, como uma proposta para superao dos problemas ambientais; no caso es-pecfico, a catstrofe ocorrida em 1952 na cidade de Londres, em que a poluio do ar ocasionada por indstrias vitimou cerca de 1.600 pessoas.

    No fim dos anos 1960 e incio dos anos 1970, muitos problemas ambientais reais e prementes tornaram-se avassaladoramente gri-tantes e urgentes. Desertos foram se espalhando no lugar de reas de florestas, a poluio do ar ameaava a sade dos moradores das cidades, lagos secavam, os solos erodiam. Muitos destes problemas, transcendiam as fronteiras nacionais dos pases, surgiam como o resultado de grandes alteraes nos processos ambientais regionais ou globais, fruto de enormes impactos causados pela sociedade hu-mana, ressalta Meadows (1989, p.8).

    Tais problemas no se encaixaram em projetos educativos ou disciplinas cientficas isoladas; eles ilustraram o fato de que a vida humana depende de processos naturais complexos, conforme Mea dows (1989, p.9). Ainda no se falava de Educao Ambiental nas escolas, mas os problemas ambientais surgidos j demonstra-vam, claramente, a irracionalidade do modelo de explorao utili-zado pelo homem.

    De acordo com Sato (2003, p.63), com a atuao da mdia e a fal-ta de conhecimento adequado da populao, os conceitos e obje-tivos gerais da Educao Ambiental, ainda hoje, esto relacionados somente aos estudos de conservao.

    Algumas descobertas cientficas ajudavam a perceber a emer-gente globalidade dos problemas ambientais. Comeava a consoli-dar-se a construo de uma nova cincia, a Ecologia, e fundamen-

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    tava-se a necessidade de uma Educao Ambiental. Muitos dos conhecimentos atuais sobre sistemas ambientais comearam a ser produzidos nas dcadas de 1960 e 1970. A dcada de 1970 presen-ciou as primeiras experincias e implementaes da EA voltadas essencialmente a aspectos ecolgicos.

    A Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente Hu-mano, realizada em Estocolmo, Sucia, em 1972, foi, oficialmente, o primeiro evento internacional sobre a questo do meio ambiente, porm antecedido de iniciativas e realizaes significativas, como conferncias, rgos, obras e aes ambientalmente engajadas. Ou-tras iniciativas j tinham sido realizadas internacionalmente, como: a primeira conferncia sobre a proteo da natureza, na Sua (Ber-na, 1913 e 1932; Basileia, 1946); a abertura do Escritrio Interna-cional para a Proteo da Natureza (tambm em Berna, 1928); a primeira Conferncia das Naes Unidas sobre os Problemas do Meio Ambiente, Nova York, 1949, como evidencia Gmez Cari-de (1991 p.47-8). No Brasil, a primeira Conferncia Brasileira de Proteo Natureza ocorreu em 1932, no Museu Nacional, Rio de Janeiro (Vestena; Carneiro, 2006).

    As iniciativas voltadas EA abrangiam internacionalmente, como destacam Vestena e Carneiro (2006), a implementao de programas no decorrer da dcada de 1940; a criao em 1948 de um rgo de conservao da natureza e dos recursos naturais; a publi-cao de obras como Primavera silenciosa em 1962, de Rachel Car-son; a realizao de eventos no final da dcada de 1960 e incio da de 1970 para discutir a crise ambiental.

    A Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco), com a colaborao do Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em resposta Reco-mendao 96 da Conferncia de Estocolmo, criou o Programa In-ternacional de Educao Ambiental (PIEA), com o princpio de promover nos pases-membros a reflexo, a ao e a cooperao in-ternacional em torno das questes ambientais. A proposta do PIEA auxiliar a enfrentar a ameaa de crise ambiental no planeta, por meio de aes agrupadas em trs fases:

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    1a promover, nos estados-membros, uma conscincia da iden-tificao das necessidades e prioridades de EA, o interesse pelos problemas do meio ambiente, e uma educao voltada aos mesmos;

    2a [...] elaborar os marcos conceituais e metodolgicos da EA, com o objetivo de proporcionar, aos estados-membros, refe-renciais teis para a incorporao da dimenso ambiental na prtica educativa em geral;

    3a [...] impulsionar o desenvolvimento de atividades prticas e de capacitao em alguns aspectos especficos da EA: na ela-borao de projetos experimentais e pilotos com a inteno de facilitar os esforos dos pases-membros, relacionado in-corporao prtica da EA na educao escolar e extraescolar. (Mininni Medina, 1994, p.29)

    No ano de 1997, realizou-se em Thessaloniki, Grcia, a Con-ferncia Internacional sobre Meio Ambiente e Sociedade, tendo como tema Educao e Conscincia Pblica para a Sustentabilidade. Reconheceu-se, nesse evento, que, aps cinco anos da Confern-cia Rio-92, o desenvolvimento da EA foi insuficiente. Alm disso, o Brasil apresentou o documento Declarao de Braslia para a Educao Ambiental, contendo as estratgias e os desafios da EA, dentre os quais se destacam:

    1. A ausncia de conceitos e prticas de Educao Am-biental nos diversos nveis e modalidade de ensino refora as lacunas na fundamentao terica dos pressupostos que a sustentam.

    2. A falta de compreenso por parte da classe poltica de que a Educao Ambiental no uma disciplina a mais no currculo, e que deve, por excelncia, permear todas as aes do conhecimento, devendo desta forma ser trabalhada em carter interdisciplinar.

    3. A ausncia de uma viso integrada que contemple a for-mao ambiental dos discentes e a incluso das questes

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    ticas e epistemolgicas necessrias para um processo de construo de conhecimento em Educao Ambiental.

    4. A falta de material didtico adequado para orientar o tra-balho de Educao Ambiental nas escolas, e os materiais disponveis, em geral, esto distantes da realidade em que so utilizados e apresentam carter apenas informativo e notadamente ecolgico, no incluindo os temas sociais, eco-nmicos e culturais, reforando as vises reducionistas da questo ambiental.

    5. A Educao Ambiental nos nveis fundamental e mdio apresenta-se geralmente por meio de atividades extraclasse escolares, tendo dificuldades para uma real insero no currculo e nos planos anuais de Educao.

    7. A falta de pesquisa na rea de Educao Ambiental inviabi-liza a produo de metodologias didticas pedaggicas para fundamentar a Educao Ambiental formal, e resgatar os valores culturais tnicos e histricos das diversas re-gies, incluindo a perspectiva de gnero.

    8. O modelo de educao vigente em escolas e universida-des responde a posturas derivadas do paradigma positi-vista e da pedagogia tecnicista que postulam um sistema de ensino fragmentado em disciplinas, o que constitui um empecilho para a implantao de modelos de Educao Ambiental integrados e interdisciplinares.

    Ressalta-se que muitos desses desafios foram apontados duran-te as Conferncias de Tbilisi (1977) e de Moscou (1987). Isso de-monstra que persistiam as dificuldades de se efetivar a Educao Ambiental no Brasil, e que pouco progresso tinha sido obtido desde a Eco-92. Mesmo assim, acreditava-se ser possvel alcanar os obje-tivos da EA no mbito escolar.

    Ainda no ano de 1997, no Brasil, foram elaborados os Parme-tros Curriculares Nacionais (PCNs), com o tema Convvio Social, tica e Meio Ambiente, em que a dimenso ambiental foi inserida como um tema transversal nos currculos do Ensino Fundamental.

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    A disseminao das propostas inseridas nos PCNs ofertada pela coordenao de Educao Ambiental do Ministrio da Educao e Cultura (MEC), por meio de sete cursos de Capacitao de Multi-plicadores e de cinco Teleconferncias. Esse nmero foi ampliado no ano seguinte para oito cursos de Capacitao de Multiplicado-res, cinco Teleconferncias, dois Seminrios Nacionais e dez vdeos a serem exibidos pela TV Escola. No final desse ano, a Coordena-o de Educao Ambiental foi inserida na Secretaria de Ensino Fundamental (SEF), no MEC, aps reforma administrativa.

    Em 27 de abril de 1999, foi promulgada a Lei no 9.795, que ins-tituiu a Poltica Nacional de Educao Ambiental, regulamentada aps as discusses na Cmara Tcnica Temporria de Educao Ambiental, no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

    Dessa forma, a EA foi instituda no Brasil e, com isso, as institui-es de ensino formal e no formal comearam a realizar a incluso da Educao Ambiental em todos os nveis e modalidades de ensino. A primeira recomendao bsica foi a integrao da EA s disciplinas de maneira transversal, contnua e permanente. A segunda foi a ade-quao da EA aos programas j vigentes de formao continuada de educadores, realizados na Educao Bsica, na Educao Superior, na Educao Especial, na Educao Profissional, na Educao de Jo-vens e Adultos e na Educao a Distncia (Brasil, 1999).

    A Portaria no 1648/99, do MEC, cria o Grupo de Trabalho com representantes de todas as suas Secretarias para discutir a regula-mentao da Lei no 9795/99/MEC e prope o Programa PCNs em Ao atendendo s solicitaes dos Estados. Assim sendo, o tema Meio Ambiente passou a ser trabalhado a partir do ano prece-dente, tendo como concepo de Educao Ambiental, aquela prescrita por lei:

    Os processos por meio do qual o indivduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competncias voltadas para a conservao do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. (Brasil, 1999, p.5)

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    A institucionalizao do Decreto no 4.281, de 25 de junho de 2002 que regulamenta a Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999 instituiu a Poltica Nacional de Educao Ambiental e deu outras providncias. Ficou estabelecido no Art. 5o: A incluso da Educao Ambiental em todos os nveis e modalidades de ensino e recomendaram-se como referncia os Parmetros e as Diretrizes Curriculares Nacionais, ob-servando-se: I a integrao da Educao Ambiental s disciplinas de maneira transversal, contnua e permanente; e II a adequao dos programas j vigentes de formao continuada de educadores.

    Contudo, para o cumprimento do estabelecido do Decreto, as instituies de ensino de diferentes fins comeam a elaborar progra-mas de Educao Ambiental, de acordo com o prescrito no Art. 6o:

    I a todos os nveis e modalidades de ensino; II s atividades de conservao da biodiversidade, de zonea-

    mento ambiental, de licenciamento e reviso de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras, de gerenciamento de resduos, de gerenciamento costeiro, de gesto de recur-sos hdricos, de ordenamento de recursos pesqueiros, de manejo sustentvel de recursos ambientais, de ecoturismo e melhoria de qualidade ambiental;

    III s polticas pblicas, econmicas, sociais e culturais, de cincia e tecnologia de comunicao, de transporte, de sa-neamento e de sade;

    IV aos processos de capacitao de profissionais promovidos por empresas, entidades de classe, instituies pblicas e privadas;

    V a projetos financiados com recursos pblicos; VI ao cumprimento da Agenda 21. (Decreto no 4.281, de 25

    de junho de 2002)

    No Brasil, a EA operacionalizada por uma coordenao-geral e um departamento. A Coordenao-Geral de Educao Ambien-tal (CGEA) foi estruturada na Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao, no Pro-grama Nacional de Educao para a Diversidade, a Sustentabilida-

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    de e a Cidadania. Juntamente com a Diretoria de Educao Am-biental do Ministrio do Meio Ambiente, a Coordenao-Geral de Educao Ambiental do MEC formou o rgo Gestor da Poltica Nacional de Educao Ambiental, criado com a regulamentao da Lei no 9.795/99 por intermdio do Decreto no 4.281/02, com o objetivo principal de atuar na formao de educadores ambientais, nos diversos nveis de ensino.

    O Departamento de Educao Ambiental foi institudo pelo Ministrio do Meio Ambiente MMA, em 1999, para desenvolver aes baseadas nas diretrizes definidas pela Lei no 9.795/99, que estabelece a Poltica Nacional de Educao Ambiental. A regula-mentao da Lei no 9.795/99 define que a coordenao da Poltica Nacional de Educao ficou a cargo de um rgo Gestor dirigido pelos ministros de Estado do Meio Ambiente e da Educao. De acordo com a Portaria no 268, de 26/06/2003, o Departamento de Educao Ambiental representa o MMA junto ao rgo Gestor. A misso do Departamento instigar a ampliao e o aprofundamen-to da EA em todos os municpios e setores do pas, cooperando para a construo de territrios sustentveis e pessoas atuantes.

    Assim, verificamos, no Brasil, a existncia de uma organiza-o governamental destinada a promover a Educao Ambiental nos diferentes nveis de ensino: fundamental, mdio e superior. A EA institucionalizada por lei, como uma prtica obrigatria, de-vendo permear as diferentes disciplinas como tema transversal no currculo. A EA brasileira apresenta uma estrutura organizacional consolidada.

    Apesar do avano significativo da institucionalizao da Educa-o Ambiental, estudos de Carneiro (1999) e Vestena (2003), entre outros, destacam que os projetos desenvolvidos nas instituies es-colares no tm atendido aos fins fundamentais da Educao Am-biental, prescritos no Art. 5o da Lei no 9.795/99. Tambm consta-taram que a EA tem-se constitudo em uma forma abrangente de educao porque prope atingir todos os cidados por meio de um processo pedaggico participativo permanente que procura incutir no educando uma conscincia crtica sobre a problemtica ambien-

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    tal, compreendendo-se como crtica a capacidade de captar a gnese e a evoluo de problemas ambientais.

    A Educao Ambiental compreende a abordagem da temtica meio ambiente, como resultado das interaes dos sistemas fsi-cos-qumicos, biolgicos e sociais, e procura desenvolver nas crian-as a capacidade para intervir de maneira solidria e cooperativa, no mbito cognitivo e tico. No mbito da prxis pedaggica, a EA de-fine-se metodologicamente com uma orientao interdisciplinar,1

    graas complexidade de seu objeto referencial, o meio ambiente. Isso ocorre porque analis-lo e compreend-lo demanda a contri-buio conjunta de cincias naturais e sociais, e no mbito escolar, das diversas disciplinas curriculares (Gmez Caride, 1991, p.2-24).

    No contexto pedaggico, a interdisciplinaridade implica a rela-o ensino-pesquisa, com vistas contextualizao e atualizao de contedos, em mbito metodolgico, possibilitando a identificao entre o vivido e o estudado (Fazenda, 1993, p.32) e pela mediao de uma metodologia criteriosamente pluralista da articulao org-nica de contedos, da interao entre disciplinas e do dilogo entre os sujeitos participantes das experincias (Fazenda, 1993, p.32).

    A orientao para o trabalho da Educao ambiental recomen-dada pelos estudos de Grun (2007), Loureiro et. al (2008), Carvalho (2008), Mininni Medina (2008), Reigota (2008), Carneiro (1999), Branco (2007) e Loureiro (2006), destaca a emergncia da institu-cionalizao da Educao Ambiental sobre o enfoque da dimenso ambiental,2 levando em considerao a sua complexidade.

    1 Compreendemos interdisciplinaridade como um termo que traduz uma nova postura diante do saber, uma busca da unidade do conhecimento. Pondo de lado a viso fragmentada ou dicotmica do objeto de estudo, busca a com-preenso do todo por meio da interao entre as diversas disciplinas (Queiroz, 2003, p.154).

    2 A dimenso ambiental o conjunto de interaes dos processos sociais com os naturais, dentro dos quais os de produo e de consumo so muito impor-tantes no planejamento do desenvolvimento. Alm de ser, tambm, dimenso global dentro da qual se condicionam e relacionam os processos sociais e eco-nmicos. Portanto, necessrio que o tratamento de todas as dimenses seja inter-relacionado integralmente. A dimenso ambiental caracteriza o entorno de um dado sistema, tornando-o integral enquanto afetar o ente considerado (Carneiro, 1987, p.26-8; Luz, 1993, p.31).

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    Considerar a dimenso ambiental na proposta de EA significa explicar as modificaes do meio, da finalidade e da quantidade de vida no curto e no longo prazo.

    A utilizao da abordagem da dimenso ambiental nas propos-tas de EA proporciona um avano na discusso e no tratamento do tema meio ambiente nas escolas. Isso ocorre graas ao fato de que a dimenso ambiental da educao escolar compreende um conjun-to integrado de perspectivas ou aspectos de contedo e mtodo para o desenvolvimento da EA no contexto de um dado currculo esco-lar, com enfoque em trs dimenses:

    a) cognitiva conhecimentos cientfico-escolares e saberes de professores, alunos e outros atores sociais quanto questo ambiental;

    b) a metodolgica tratamento pedaggico-didtico da realida-de ambiental como contedo de conhecimento; e

    c) a afetivo-social desenvolvimento atitudinal de professores e alunos a respeito da questo ambiental. (Carneiro, 1987, p.26-8).

    Em geral, de acordo com a anlise do material e dos procedi-mentos didticos utilizados para o tratamento desse tema, decorre que o processo se d de forma desarticulada dos contedos e dos problemas ambientais vivenciados pelos alunos.

    Essa iniciativa tambm est associada ao atendimento do Ca-ptulo 36 da Agenda 21, intitulado Promoo do ensino, da cons-cientizao e do treinamento, que afirma serem o ensino, o au-mento da conscincia pblica, e o treinamento, fatores vinculados virtualmente a todas as reas de programas da Agenda 21 (Mininni Medina, 1994, p.40).

    As propostas de Educao Ambiental tm envolvido dois as-pectos:

    1o) o envolvimento de toda a instituio escolar com o intuito de diminuir, de forma consciente e informada, os impactos

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    causados pela escola, em que cada um desses indivduos tem uma participao;

    2o) a participao da escola a fim de criar um ambiente, tambm consciente em toda a instituio, de coerncia com aquilo que passar a ser visto em sala de aula.

    Tais iniciativas tm sido desenvolvidas a fim de evitar a seguin-te situao, apresentada por Barcelos e Noal (1998, p.101), e ainda presente em muitas escolas brasileiras:

    Ns sempre nos envolvemos nos projetos. Ningum con-tra a educao ambiental. Todos participam: o diretor libera os professores, os professores liberam os alunos, os pais deixam que os filhos participem das atividades propostas, at a delega-cia de ensino d fora, s que depois que as atividades de edu-cao ambiental terminam, ningum mais fala em ecologia, em educao ambiental.

    Assim, formulam-se as propostas gerais para a Educao Am-biental, com o objetivo de promover uma ampla conscincia p-blica, como parte indispensvel de um esforo mundial de ensino para reforar atitudes, valores e medidas compatveis com o desen-volvimento sustentvel, uma vez que ainda h muito pouca cons-cincia da inter-relao existente entre todas as atividades humanas e o meio ambiente, graas insuficincia ou inexatido da infor-mao, sobretudo nos pases em desenvolvimento, que carecem da tecnologia e dos especialistas competentes. Por isso, a Agenda 21 sugere que necessrio sensibilizar o pblico sobre os problemas de meio ambiente e desenvolvimento, faz-lo participar de suas so-lues e fomentar o senso de responsabilidade pessoal em relao ao meio ambiente e a uma maior motivao e dedicao em relao ao desenvolvimento sustentvel (Brasil, 1995).

    Contudo, a conscincia pblica no se constri pela infor-mao, como aponta a Agenda 21; necessrio superar essa con-cepo de senso comum, superficialista e fenomnica. De fato, a

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    educao tradicional, ao crer e valorizar os componentes de respon-sabilidade com a problemtica ambiental, seguiu esquemas frag-mentrios da realidade, promoveu a diviso entre as cincias sociais e as naturais, e desvinculou a relao entre as estruturas produtivas e a destruio do meio. Por meio da educao, foram reforados os valores de carter mercantil utilitrio e competitivo, como o consu-mismo, o individualismo, o lucro e a superexplorao dos recursos naturais e do prprio ser humano, valores todos eficientes nos siste-mas deteriorantes dos elementos do meio ambiente.

    De modo geral, estudos como os de Carneiro (1999) e Vestena (2003), entre outros, apontam que, no nvel do ensino fundamen-tal, vm ocorrendo trabalhos iniciais de informao, identificao e descrio relativos a elementos do meio, porm, com deficincia de orientao dos educandos para um raciocnio crtico-reflexivo sobre as dinmicas e os problemas ambientais.

    Corroborando essa afirmao, Robinson (1996, p.28) destaca que comum que projetos de EA no alcancem sucesso pelo fato de dependerem substancialmente da liderana de alguns indiv-duos, o que os torna vulnerveis a mudanas drsticas de direo ou partida desses indivduos. Por exemplo, secretrios munici-pais, diretores e professores de escolas que, ao serem substitudos, transferidos e/ou licenciados de seus cargos, acabam ocasionando a interrupo dos projetos de EA que vinham desenvolvendo.

    Nesse contexto de um enfoque superficial das questes ambien-tais, os educandos apresentam dificuldade no processo de apreen-der e construir valores referenciais para atitudes responsveis frente ao ambiente, e soluo e preveno de problemas ambientais. Nota-se que h uma dicotomia entre teoria e prtica.

    Conforme Freire (2001), prtica e teoria fundamentam-se em uma tica inspirada na relao homem-no-mundo, ou seja, estar no mundo, e na construo de seu ser-no-mundo-com-os-outros, isto , ser capaz de se relacionar com as pessoas e com a sociedade.

    Nesse sentido, caberia ao educador ambiental levar seus alunos a refletir sobre as questes ambientais e sobre o papel que cada um estabelece na relao com o meio (fsico ou humano), mediante uma

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    relao dialgica, possvel quando o pensamento crtico do edu-cador ou da educadora se entrega curiosidade do educando. Para isso, o dilogo no pode converter-se num bate-papo desobrigado que marche ao gosto do acaso entre professores ou professoras e educando (Freire, 2002, p.118).

    Para a construo de uma sociedade ecologicamente prudente e socialmente justa no bastam apenas mudanas culturais, so ne-cesrias tambm as mudanas sociais: uma dimenso social, econ-mica, poltica, ideolgica, cultural e ecolgica do problema ambien-tal, conforme destacam Loureiro (2008), Carvalho (2006), e Pdua e Matallo Jnior (2008).

    Assim, a EA reclama urgncia de empenho das instituies formadoras para o avano de seus programas, para a superao das temticas reducionista e pontual, buscando a incorporao da com-plexidade ambiental pela participao ativa dos agentes nas trans-formaes do conhecimento perante os paradigmas emergentes do saber ambiental.

    Resumindo, a EA, no Brasil, obrigatria no contexto esco-lar e vem sendo realizada desde 1999, devendo ser trabalhada de maneira transversal e sob o enfoque interdisciplinar. Diante disso, questionamos os efeitos da EA no conhecimento e no juzo moral de crianas e adolescentes sobre a temtica ambiental. Destarte, faz-se necessrio compreender como as crianas constroem seu co-nhecimento sobre os saberes ambientais e como julgam questes ambientais.

  • 3 o processo de construo do

    conhecimento em piAget

    O conhecimento humano essencialmente coletivo e a vida social constitui um dos fatores essenciais da formao e do crescimento dos conhecimentos pr-cientficos e cientficos.

    Jean Piaget

    Diante da importncia de se compreender como ocorre o pro-cesso de construo do conhecimento no sujeito, discorremos, nes-te captulo, sobre esse processo. Inicialmente, abordamos a forma como so elaborados os conceitos pelo sujeito epistmico no pla-no das representaes mentais. Depois, explicamos, por meio da noo de substncia, como ele opera no plano fsico, assim como ocorre em relao s questes ambientais. Concentramo-nos no processo da construo dos fatores sociais pelo sujeito, em especial sob a interao social, isto , a coordenao interindividual, e por conseguinte, a tomada de conscincia das aes.

    O processo de aquisio do conhecimento um ato do sujeito, ou seja, uma obra de criao e recriao que acontece de maneira pro-gressiva em funo de sua prpria interao. A origem das noes de conhecimento determinada pelas estruturas de aes, isto , os esquemas. As estruturas so fruto das modificaes ocorridas em funo das experincias ativas das crianas com os objetos exteriores e interiores, delineadas numa trajetria histrica. Desse modo, nas relaes que o sujeito estabelece uma relao de implicao com o meio, em um processo de busca de equilbrios que ele constri seu conhecimento. Veremos, mais adiante, que isso ocorre na aquisio

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    do conhecimento fsico do meio, de forma anloga ao conhecimen-to social, uma vez que decorre das aes e dos dados experimentais assimilados pelo sujeito nas interaes sociais com o meio ambiente.

    Segundo o estudo do nascimento da inteligncia na criana, feito por Piaget (1982), o perodo do desenvolvimento sensrio-motor evidencia as sucesses das fases de estruturao dos esquemas de ao, do exerccio reflexo (primeira fase) combinao mental de esquemas (sexta fase, que comea no processo de interiorizao), passando por fases de intensas coordenaes e modificaes. Nes-se processo de construo de estruturas, nota-se a continuidade de uma atividade de construo da noo de objetos por parte da crian-a, isto , a atividade estruturante, mesmo que essa atividade apre-sente modificaes e distines exigidas pelas novidades oferecidas pelos objetos (acomodaes).

    Ao nascer, a criana um ser extremamente desamparado, to-talmente incapaz de viver sem uma constante ajuda materna, ou de quem venha a desempenhar essa funo. Ela capaz de alguns mo-vimentos reflexos, de sentir e de realizar algumas atividades fisiol-gicas vitais autorreguladas; como exemplo, Piaget (1983b) descreve as mudanas do conhecimento que ocorrem durante o primeiro ano e meio de vida, perodo da inteligncia sensrio-motora, como um movimento contnuo de adaptao, por meio de aes coordenadas dentro de uma unidade sujeito-meio.

    Nesse processo, o meio entendido como algo que abrange tudo, natureza, objetos construdos pelo ser humano, ideias, valores, re-laes humanas, a histria e a cultura, caracterizando o objeto do conhecimento. No se limitando apenas a designar os objetos (ani-mados e inanimados) que nos rodeiam, o conhecimento no tem o significado do senso comum, uma vez que o termo conhecer tem sentido claro. Ele tem a funo de organizar, estr