Os Predicados Da Ordem: Os Usos Sociais Da Justiça Nas Minas Gerais

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    O TEMA DA JUSTIA NA HISTORIOGRAFIA

    Em boa parte da produo historiogrfica, a formao do Estado nacio-nal descrita, grosso modo, como o desenrolar de uma paulatina imposiode uma ordem e dominao sobre o conjunto da sociedade, cujos setores, exceo do dominante, seriam amorfos e incapazes de resistir ou negociar al-ternativas. As anlises centradas no processo de construo e consolidao doEstado, tradicionalmente, tm se detido nos atores que atuaram a partir de

    dentro,nos setores dominantes que ocupavam posies de poder econmico

    Revista Brasi leira de Hist ria. So P a ulo , v. 25, n 50, p. 167-200 - 2005

    Os p re d ic a d o s d a o r d e m :

    o s u s o s s o c ia is d a ju s t i a n a s

    Min a s Ge ra is 1780-18401

    Ivan de Andrade VellascoUniversidade Federal de So Joo del Rei - UFSJ

    RESUMO

    Atravs da anlise da atividade do siste-ma de justia na comarca do Rio das Mor-

    tes, durante o perodo de construo doEstado imperial, este artigo busca eluci-dar seus usos e significados entre os dife-rentes grupos sociais, salientando suapresena na resoluo dos conflitos coti-dianos e na negociao da ordem. Pre-tende-se discutir determinados aspectosda construo do Estado, associados aoprocesso progressivo de monopolizaoe controle da ordem social,sendo esta to-mada como resultante da crescente capa-cidade do Estado em negociar seus par-metros atravs do sistema jurdico.Palavras-chave: Estado; Justia; Socie-dade.

    ABSTRACT

    Through an analysis of the justice systemactivity in the region of Rio das Mortes

    (Minas Gerais) throughout the ImperialState construction, we intend to clarifyits uses and significations for the pop-ulation, highlighting its presence in theresolution of everyday conflicts amongthe various social strata. A discussion iscarried out on certain aspects of thebuilding of the State related to the con-tinuous process of social order monop-olization and control, this being takenas a result of the States growing capac-ity to negotiate its parameters throughthe juridical processing.Keywords: State; Justice; Society.

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    ou poltico e das relaes entre eles, seus interesses, estratgias e alianas. Ainexistncia de uma sociedade civil, de grupos sociais com capacidade deorganizao e presso que se contrapusessem aos interesses das elites domi-nantes, somada realidade do sistema escravista e seu carter profundamen-te excludente, teria feito que o teatro poltico do Imprio se realizasse prati-camente margem, e por cima, da maior parte da populao, formada porescravos, libertos e homens livres pobres.A grande maioria desses setores nose teria feito presente na arena poltica, at mesmo pela absoluta inexistnciade canais institucionais capazes de absorver, em um modelo minimamenterepresentativo,seus anseios e demandas. Assim, sua irrupo no cenrio pol-tico, quando e onde tenha ocorrido, teria sido pontual e no dirigida ao Esta-do, mas a situaes de dominao cuja visibilidade era imediata, ainda queproduzidas ou sustentadas pela atuao da mquina estatal. Torna-se, por-tanto, pouco relevante perguntar-se sobre o que significava o Estado para amaioria da populao cujos papis no drama que se desenvolve eram inteira-mente secundrios, oscilando entre a acomodao e a resistncia espasmdi-ca em movimentos errticos.

    Entretanto, foroso reconhecer que o poder do Estado que se afirmavano podia prescindir, no controle da ordem e na administrao dos conflitossociais, de espaos e margens de negociao. Era nesses espaos que se defi-niam os limites da obedincia e da revolta, que se estabelecia uma contnuasondagem entre governantes e sditos, a fim de descobrir o que eles podemefetuar impunemente.2 As situaes de domnio necessitavam manter umabase de legitimidade e seus ratiosde poder articulados a alguma forma de re-ciprocidade e negociao com a massa de excludos das arenas decisrias doEstado, fossem eles os homens livres pobres, os mestios e negros libertos, ouos setores mdios emergentes, que apresentavam padres mais sistemticosde busca de participao e interveno na esfera poltica. Negociao essa que

    inclua, como vrios trabalhos recentes o tm demonstrado de modo inequ-voco, a imensa massa de escravos.3 Ou seja, a manuteno da ordem e do con-trole social, aspectos centrais na viabilizao das formas de dominao, nose assentavam exclusivamente, nem o poderiam, no recurso violncia e sforas de represso, at porque so temas constantes nos documentos da po-ca correspondncia de juzes e magistrados, relatrios de ministros e pre-sidentes de provncias sobre a segurana pblica as queixas sobre a inefi-cincia das foras de represso e a apresentao, sistemtica, de um quadro

    nada promissor a respeito do aparelhamento das foras pblicas.Uma imagem instrumental do poder judicirio e suas relaes com a po-

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    pulao faz parecer que esta apenas assistia passivamente aos exerccios depoder de uma burocracia que, em ltima instncia, era somente uma fachadalegal para o domnio e controle estatal em consonncia com os interesses po-lticos e econmicos dos potentados locais. Esta viso historiogrfica tem si-do consistentemente questionada a partir dos trabalhos que, ao se deteremsobre os processos criminais e fontes judicirias, revelam que homens e mu-lheres pobres, mestios e escravos, a aparecem no apenas como rus, mascomo vtimas e queixantes que demandam a ao e interveno da justia.Obviamente, no se trata de inverter o quadro em prol de uma viso que lheseja diametralmente oposta. Parece ntido que em uma estrutura social per-versa e altamente desigual, alicerada num sistema escravocrata, a justia as-sumia, em vrios momentos de seu exerccio, uma funo diretamente rela-cionada s formas de dominao. Entretanto ela o fazia em consonncia eateno a um modelo que constitui uma racionalidade prpria e que, por suaespecificidade, como uma burocracia voltada para o implemento de normase regras impessoais, se constitui num campo permanentemente aberto aoquestionamento e expresso dos conflitos.4

    lugar comum em nossa historiografia a caracterizao da justia noImprio como ineficiente, inoperante e, sobretudo, inacessvel aos que noperfilassem na estreita faixa social dos homens de posses e recursos. A admi-nistrao da justia, por suas precariedades e vcios de origem, uma estruturaarcaica e um arcabouo legal ultrapassado e confuso herdados da metrpolequando da implementao do Estado fiscalista, tem sido freqentemente ca-racterizada como representando um dos aspectos mais cristalinos e revelado-res da ineficcia e debilidade do poder pblico, incapaz de fazer frente aos po-deres privados e suas formas de justia direta. Em Caio Prado Jniorencontra-se uma exposio desse quadro herdado da administrao colonial:Justia cara, morosa e complicada; inacessvel mesmo grande maioria da

    populao. O autor conclui afirmando que se o banditismo e o crime per-manente no assolaram a colnia excessivamente, isto se deveu muito mais ndole da populao, e no s providncias de uma administrao inexistentena maior parte do territrio da colnia.5

    Vrios autores que analisaram as imbricaes e vicissitudes dos arranjosque marcaram a ao dos poderes de Estado, em seu processo de centraliza-o, frente s diversas formas de manifestao dos poderes privados e locais,realizaram um diagnstico semelhante da ao da justia e seus impedimen-

    tos. De modo geral, a ordem legal se apresentava como uma fico que, quan-do muito, poderia se prestar a ser apropriada e instrumentalizada pelos po-

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    derosos como uma extenso de seus exerccios de dominao, fizessem elesparte da burocracia de Estado ou fossem parte da plutocracia imperante emdeterminado territrio. De resto, a persistente incapacidade, ou mesmo im-possibilidade, do Estado, face aos arranjos e compromissos que supriam suaautoridade, em construir e efetivar uma arena burocrtico-legal capaz de des-colar-se das ingerncias solapadoras dos poderes privados do patronato, tor-nou a justia no transcorrer do Imprio algo virtual e rarefeito.

    Para Manuela Carneiro da Cunha a contradio fundamental entre, deum lado, o discurso liberal de uma elite inserida no circuito do capitalismomundial e, de outro, uma economia baseada no trabalho escravo e nos laosde dominao pessoal, teria ocasionado a existncia de uma separao irre-dutvel entre o formal e o real, entre o direito positivo e o direito costumeiro,com suas distintas esferas de atuao. Ao direito costumeiro caberia reger asrelaes entre senhores e escravos, ambos colocados respectivamente acima eabaixo da lei; ao direito positivo, s leis e ao sistema jurdico, restaria o uni-verso dos homens livres pobres. Resta a questo de se esses homens poderiamesperar da justia a defesa de seus direitos em face da lei. A julgar pela posi-o de classe dos juzes e por sua funo poltica, seria pouco provvel quea aplicao da justia se fizesse com um mnimo de universalidade, tal comopreconizado no direito positivo.6

    Trabalhos como o de Fernando Uricoechea e de Maria Sylvia de Carva-lho Franco, que se inserem nessa perspectiva, embora no tenham o objetivocentral de analisar a justia e seu funcionamento, na medida em que ambi-cionavam explicar processos mais amplos, apontam os mesmos problemas.Para Uricoechea, a possibilidade de implementao de um padro normati-vo era permanentemente posta diante de constantes entraves acarretados pe-lo estado de indigncia brancalenica do aparato administrativo,bem comoobstruda pelo imenso poder que desfrutavam os proprietrios de terras lo-

    cais e suas clientelas patriarcais.7 A precariedade de uma ordem institucionalera dada pelas condies do terreno no qual ela buscava se alicerar, domina-do pela ingerncia das foras privadas que o Estado necessitava cooptar pa-trimonialmente a fim de poder exercer o monoplio legtimo da coero.

    Em Maria Sylvia Franco, entretanto, a abordagem do problema maisespecfica, uma vez que as prprias fontes que utiliza processos criminais permitiram autora deter-se sobre o funcionamento da justia no muni-cpio de Guaratinguet. A nfase nos laos de dependncia e submisso do

    homem livre pobre e sua total incapacidade para a ao autnoma, somadass consideraes sobre a indiferenciao entre o espao pblico e o poder pri-

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    vado, levam-na a concluir, categoricamente, sobre a impossibilidade do re-curso justia por parte daqueles que no pertencessem camada dominan-te.8 Veja-se, na mesma direo, Srgio Adorno, por exemplo, afirmar que oexerccio da justia, como algo pblico, extravasava os limites da conscinciado homem comum e ainda que os fazendeiros mantinham controle quaseabsoluto sobre o veredicto do jri e sobre as decises judicirias.9 E, mais re-centemente, o livro no qual o autor, baseando-se diretamente nas fontes deMaria Sylvia Franco, afirma taxativamente que se a presena dos homens li-vres e pobres era predominante como acusados,o mesmo no acontecia quan-do eram vtimas de crime, pois negou-se a eles at mesmo o direito de recor-rer justia.10

    O trabalho de Patricia Ann Aufderheide,11 em meados da dcada de 1970,avanou questes importantes sobre o tema da justia e seu papel na inter-mediao das relaes sociais e administrao dos conflitos entre iguais. Paraos objetivos da discusso que se pretende desenvolver, importante ressaltar,em pr imeiro lugar, o fato de que, ao contrrio das interpretaes at entopredominantes, a autora considera a justia como uma instncia fundamen-tal de mediao dos conflitos que surgiam permanentemente entre os quepartilhavam um acordo bsico sobre as normas. Esse papel fazia do sistemajudicirio uma instncia de reiterao das relaes tradicionais, exatamentepor essa capacidade de processamento das disputas que lhe permitiam reafir-mar a ordem e seus pressupostos hierrquicos. Em segundo lugar, ela afirmaque esse espao pblico de mediao era, muito provavelmente, mais neces-srio quela camada formada pelos homens livres sem propriedade (free butpropertyless), pela precariedade de sua situao, por terem o que defender epouco poder para tal, e por sua presena crescente na vida social, proporcio-nalmente aos demais grupos. Por ltimo, salienta o processo de ampliao dajustia e padronizao dos procedimentos legais, atravs das reformas judi-

    ciais, limitando o arbtrio do poder privado e tornando-se acessvel ao cres-cente nmero de homens livres que a usariam para arbitrar suas desavenas.12

    A partir dos anos 80 comearam a surgir trabalhos, com inequvoco las-tro emprico, cujas fontes eram exatamente processos criminais, aes de li-berdade, livros de sentenas, enfim, a documentao produzida pelo sistemade justia. Talvez um dos traos mais distintivos dessa produo seja, alm dotratamento exaustivo da documentao, uma disposio menos apriorsticana leitura das fontes e menos ancorada em pressupostos tericos rigidamente

    definidos.A reviso historiogrfica ento realizada ampliou consideravelmen-te o escopo da discusso sobre o tema da justia e seus usos. Centrada, sobre-

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    tudo, no universo da escravido,e a, nas complexas relaes entre senhores eescravos e nas estratgias usadas por estes na busca da liberdade, ou mesmono questionamento dos poderes senhoriais, essa produo trouxe cena o Es-tado e seu aparato judicial, como permanente mediador das tensas e amb-guas relaes geradas no interior do sistema escravista.

    Em Campos da violnciaa autora discute aspectos da montagem das es-truturas de controle social na segunda metade do sculo XVIII, ressaltandoas medidas que visavam centralizao e padronizao na aplicao das leis,com vistas regulagem do poder senhorial em termos de parmetros toler-veis. A discusso do castigo e suas aplicaes so exemplificaes do controledo Estado sobre os limites da justia privada trata-se aqui da mais restritaesfera privada, pois refere-se ao domnio dos escravos. Buscava-se cercear opoder privado do proprietrio, atravs de punies e penalidades que o con-tivessem, sem, contudo, deixar que, aos olhos dos escravos, isso se definissecomo uma brecha para o enfraquecimento do poder dos senhores e um es-pao para o seu enfrentamento respaldado pelo poder da Coroa. Por fim, a imagem cristalizada da fragilidade do poder pblico no interior da colnia questionada. O poder pblico no era fraco, muito menos inexistente, erareconhecido enquanto tal e utilizado, na medida da sua importncia, no jogosocial do poder; e tanto assim que era disputado pelos indivduos ou gruposdominantes em luta. Nesse sentido, o recurso instncia jurdica implicavatornar pblico o particular, submetendo-o s regras e hierarquias; implicavabuscar a mediao entre interesses heterogneos, e no uma mera instrumen-talizao a servio de interesses dados como unvocos.13

    Sidney Chalhoub, em trabalho em vrios aspectos inovador sobre as l-timas dcadas da escravido, ressalta as diversas estratgias pelas quais os es-cravos buscavam obter sua liberdade, via justia, e questionar os limites dosistema escravista e sua lgica. Suas aes judiciais afirmavam noes pr-

    prias sobre seus direitos e as formas tolerveis do exerccio da escravido: opreo justo da alforria, a recusa migrao forada, o direito manutenodos laos fami liares, a denncia de tratamento injusto e castigos excessivospor parte dos proprietrios, entre outras queixas, faziam parte do leque dequestes que os escravos apresentavam nas cortes, conseguindo a impor pe-lo menos em parte certos direitos adquiridos e consagrados pelo costume. Enas cortes e nos juzes, ao contrrio de um aparato submisso aos interessessenhoriais, os escravos encontraram uma arena decisiva na luta pelo fim da

    escravido em suas dcadas finais.14Hebe Maria Mattos de Castro e Keila Grinberg15 deram contribuies sig-

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    nificativas nessa direo. Suas obras avanam sobre o terreno contraditriodas complexas relaes entre o direito e o universo da escravido durante oImprio. Pela anlise cuidadosa das aes de liberdade, entre outras fontes, asautoras apontam as imbricaes entre o direito costumeiro e as leis positivas,ambas demonstrando que os silncios da lei no impediram que as dispu-tas entre escravos e senhores fossem encaminhadas atravs da justia; tam-pouco que os escravos encontrassem a as formas de apresentar suas reivindi-caes e utilizar-se do arcabouo jurdico consubstanciado nas ordenaesfilipinas, no direito romano, nas leis extraordinrias (inclusive as que versa-vam exclusivamente sobre a escravido indgena), na defesa de seus direitos elegitimao de suas causas. E muitos ganharam e muitos perderam, mas plas-maram seus significados da liberdade tambm em uma arena cujos efeitosno foram defini tivamente nulos. E as cortes no se limi taram ao papel desustentculos dos interesses senhoriais, nem os resultados das aes puderamser antecipados ao seu desenrolar e aos seus rumos muitas vezes surpreen-dentes.

    Por fim e retornando ao tema dos homens pobres livres frente justia,o estudo de Celeste Zenha realizou uma detalhada descrio e anlise das pr-ticas judicirias em nvel local, entre os anos de 1841 e 1890 no municpio deCapivari, no Rio de Janeiro. Partindo de um ponto de vista menos apriorsti-co, a autora conseguiu resultados mais aproximativos na compreenso e nodesvendamento da trama e das motivaes das aes que se desenrolam nosistema judicirio, realizando uma anlise mais matizada tanto no que dizrespeito montagem e ao funcionamento do aparelho de justia local, quan-to no modo como foram processadas as lutas entre os diversos poderes queforjaram a prtica da justia.16

    No deixa de ser curioso o fato de que a anlise da justia e de seus pa-dres de resposta s demandas sociais tenha sido reintroduzida e problemati-

    zada na discusso historiogrfica a partir das pesquisas que se ocuparam dosseus usos e significados para os escravos que reivindicaram seus direitos nostribunais. Exatamente aqueles sobre os quais a lei silenciava e que, por defini-o, se viam excludos do exerccio dos direitos civis. Ao depararmos com adocumentao produzida pelos tribunais de justia, somos obrigados a reco-nhecer que, em alguma medida,os atores sociais que buscaram a o reconhe-cimento e a efetivao de seus direitos perfizeram um leque mais amplo e sig-nificativo, socialmente, do que o at ento suposto. Ali surgem homens e

    mulheres, representantes dos mais diversos estratos sociais, demandando aao da justia e buscando a efetivao de seus direitos formalmente garanti-

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    dos. medida que ampliamos as percepes sobre os usos sociais da justia,torna-se possvel redimensionar o debate dos espaos de cidadania e ativaodos direitos civis na sociedade que se desenha concomitantemente emer-gncia do Estado. Por mais limitadas e exguas que possam ter sido as possi-bilidades de fazer valer o preceito da igualdade diante da lei, atravs do recur-so justia foi experimentado e potencializado, pelos homens comuns, oexerccio de direitos que, conveno-me cada vez mais, no estiveram ausentesnem foram de todo desprezveis na nossa formao social.17

    OSUSURIOSDA JUSTIA

    No perodo que vai da segunda metade do sculo XVIII ao primeiro quar-tel do sculo XIX, a retrao da atividade mineradora acentuara o processode diversificao das atividades produtivas e a alternncia, em termos do de-senvolvimento econmico,entre as diversas regies das Minas Gerais.18 A co-marca do Rio das Mortes se projetara como a mais populosa e economica-mente dinmica ao final do perodo, abarcando os maiores entrepostoscomerciais da provncia, So Joo del Rei e Barbacena.19 Uma estrutura pro-dutiva diversificada e um complexo quadro de atividades ocupacionais sero

    caractersticas econmicas predominantes no cenrio que analisamos.O alto grau de interdependncia das diversas atividades econmicas que

    compunham o mosaico produtivo das Minas oitocentistas interdependn-cia essa gerada pela lgica dos efeitos multiplicadores de uma economia cu-jo centro dinmico era a atividade exportadora muito provavelmente se-ria responsvel pela intensificao das redes de trocas sociais, da extenso eampliao da base de sociabilidade necessria estruturao dessas redes e, omais importante aqui, das condies de previsibilidade da ordem, estabilida-

    de de normas e condutas e confiabilidade em relao expectativa das aesrecprocas. O que se argumenta , em outras palavras, que ia longe a realida-de de uma capitania colonial cuja atividade mineradora eixo organizadorda produo econmica e do mundo da vida marcava em seus primrdiosa instabilidade social, a itinerncia, o imediatismo, o carter provisrio as-sumido pelos empreendimentos.20

    A crescente interligao comercial da regio Centro-Sul e a afirmao dacomarca do Rio das Mortes como centro produtor e abastecedor da Corte se-

    ro responsveis por sua importncia capital no processo de interiorizaoda metrpole e formao das bases do Estado nacional.21 No inteiramente

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    ocioso chamar a ateno para o fato de que as atividades comerciais, intensa-mente desenvolvidas no sculo XIX, somadas a uma produo diversificada ede intensa circulao pela provncia e fora dela, demandavam, por natureza,a existncia de um mercado, cuja viabilidade se articulava estreitamente coma presena do frum.22 Talvez seja o caso de sugerir que a imagem de anomiae desestruturao do mundo da vida dos homens e mulheres livres que nose localizavam nos extremos da estrutura social escravista seria inteiramenteinadequada para descrever a realidade da poca.A essa poca a estrutura mo-vedia da sociedade colonial e da economia mineradora, da qual nos fala Sr-gio Buarque, j havia se sedimentado; os desclassificados j haviam sido ab-sorvidos; a ordem j ganhara ares de permanncia e durao.23

    Quanto estrutura social importante salientar ao menos dois aspec-tos. Em primeiro lugar, as possibilidades alargadas de independncia econ-mica dos homens livres, asseguradas pela economia de subsistncia. Comoafirma Douglas Libby, no resta dvida de que o recurso mais importanteera o acesso terra e a possibilidade, ainda que parcial, de sobrevivncia, atra-vs do cultivo e da criao para autoconsumo.24 Em segundo, o grau acen-tuado de generalizao e pulverizao da propriedade escrava fazendo que otopo da pirmide social, aquele constitudo pelos proprietrios de escravos[fosse] surpreendentemente alargado [com] mais de dois teros dessa cama-da [possuindo] cinco escravos ou menos.25 O que, segundo o autor, se nopermite afirmar a idia de um escravismo democrtico, uma vez que seguiaexistindo uma enorme massa de unidades familiares que no participava daposse da mais bsica forma de propriedade do regime escravista,26 refora,entretanto, a idia de que o alargamento ocorrido na base dos proprietrios,com uma enorme quantidade de pequenos proprietrios de escravos, teriagarantido a base de sustentao poltica e social do regime escravista.

    Some-se a isso o fato de o quadro populacional de Minas Gerais em 1821

    indicar que, aproximadamente, 24 por cento da populao negra era livre e,entre os mulatos, esse nmero subia para cerca de 90 por cento.27 E no eradesprezvel a quant idade dos que, entre eles, conseguiram ascender social-mente atravs da posse de escravos.Tal fato levaria Evaristo da Veiga,em 1832,a argumentar que posto que muitos mulatos e negros livres eram eles mes-mos donos de escravos, deveriam compartilhar os interesses dos brancos pa-ra impedir que se difundisse o feroz haitianismo.28 Ou seja, estariam eles,tanto quanto os brancos proprietrios, suficientemente comprometidos com

    o sistema escravista para no desejar a sua desestabilizao, vale dizer, parano desejar a desestabilizao da ordem reinante sobre as coisas e os homens.

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    O que o raciocnio de Evaristo da Veiga indica a percepo de que a ba-se social da ordem se ampliara, alargando a possibilidade de comprometi-mento de grupos, mais vastos do que os situados no topo da pirmide social,com a sua manuteno e defesa dos possveis ataques da anarquia. A incor-porao ao mundo da ordem significava a absoro e entrada em um sistemade valores e regras garantidos, em ltima instncia, pela existncia do apara-to jurdico e sua fora coercitiva. A possibilidade de incorporao de indiv-duos dos grupos sociais subalternos s fileiras dos estabelecidos, ou seja, da-queles que partilhavam alguma forma de acesso, ainda que reduzida, soportunidades e aos bens que caracterizavam um horizonte de mobi lidadena sociedade da poca o acesso alforria, a posse de escravos e o uso daterra estabelecia a base de aquiescncia em relao s instituies que or-denavam o espao social.

    Atravs da anlise da documentao judiciria da comarca do Rio dasMortes este trabalho analisa as formas de interao entre a mquina judici-ria e os diferentes grupos sociais ao longo do sculo XIX. A hiptese traba-lhada a de que o judicirio ter-se-ia constitudo em um lcus privilegiadodo processo de negociao da ordem e afirmao do poder pblico como umespao de mediao das relaes sociais. Tratou-se de analisar o funciona-mento da justia e o seu significado social, no que diz respeito s alteraesnas relaes entre Estado e sociedade, produo de representaes sociaisda justia pblica e seus espaos de ao, enfim, ao modo pelo qual a popula-o estabelece as relaes com o poder, naquele que um campo de atuaodecisivo do seu exerccio.

    Valendo-me dos livros de querela, rol dos culpados e processos criminaisrefao algumas trajetrias e componho algumas histrias que buscam recons-truir a faina cotidiana da justia e sua presena na administrao dos confli-tos dirios. Artesos, oficiais mecnicos, pequenos comerciantes, homens e

    mulheres pobres e escravos surgem nas pginas dos processos e dos autos noapenas como objetos inertes da ao de controle social e imposio da ordem,mas, e de modo surpreendentemente freqente, como demandantes da lei eda ordem, naquilo em que elas podiam significar um instrumento para a ob-teno de direitos e garantias consubstanciados nos cdigos legais. A imagemresultante dessa reconstruo fica longe das vises prevalecentes a respeito dadinmica que se estabelecia entre a sociedade e o poder judicial. Quantifica-dos, os demandantes da justia surgem de diferentes posies na estrutura

    social, definindo um quadro que indica presena e legit imao crescente deuma burocracia judiciria na administrao dos homens e das coisas. Escra-

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    vos e livres, homens e mulheres, pobres, ou das camadas intermedirias, com-postas por pequenos artesos, lavradores e comerciantes, e mesmo as eliteslocais que supostamente estariam acima da lei , todos esses, em maiorou menor grau, recorriam justia para soluo de seus conflitos, e, de algu-ma forma,demandaram um espao de ordem e previsibilidade para viver etrabalhar. E mais do que isso, enxergaram no recurso justia e na ativaodas letras da lei uma forma de participar da ordem.

    A anlise dos livros de querela bastante reveladora acerca de quem soe o que buscam os demandantes da justia. At a promulgao do Cdigo doProcesso Criminal havia duas formas de ao da justia: as devassas e as que-relas. As primeiras eram os atos jurdicos que partiam do prprio poder judi-cirio, podendo ocorrer numa poca determinada do ano, as chamadas de-vassas ordinrias; as segundas consistiam em um auto cvel ou criminaliniciado por denncia ou queixa feita por uma das partes; dizia-seperfeitaaquela que envolvia, alm da denncia, juramento, indicao de trs testemu-nhas e pagamento de fiana por perdas e danos,se o caso no pertencesse aoacusador.29 Os livros de querela encontrados, oito no total, cobrem um pe-rodo que se estende de 1779 a 1833, quando com o novo cdigo a forma suprimida.A ficaram registradas as queixas levadas justia, as razes apre-sentadas pelos querelantes, acompanhadas muitas das vezes pelos depoimen-tos das testemunhas, e os exames de corpo de delito.

    A Tabela 1 nos d uma viso de conjunto dos motivos apresentados. Emfuno do que pretendo ressaltar, procurei manter ao mximo o registro daqueixa tal como aparece no documento, agregando apenas aqueles cuja se-melhana e pequenas variaes tornaram possvel agrupar sem interferir naamostra.

    Tabela 1Queixas nos livros de querela 1779-1832

    Queixa Total

    Abuso da filha 1

    Adultrio 5

    Bofetada no rosto 2

    Bulra e enliciao 1

    Crcere privado 3

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    Danos materiais 16

    Defloramento da filha 1

    Desonra filha 1Estupro 1

    Falsificao de bilhete e furto 1

    Falsificao de crdito e carta para conseguir dinheiro emprestado 1

    Ferimentos em cavalo 1

    Ferimentos em gados 1

    Ferimentos, porretadas, aoites, espancamentos 120Furto 61

    Homicdio 4

    Induo de escravos 4

    Induo, seduo, fuga e prostituio com a mulher do querelante 1

    Invaso da casa 1

    Licitao e iliciao 1

    Matana de gados e tentativa de homicdio 1

    Matana de porcos 1

    Matana e ferimentos de porcos 1

    Matou o porco do querelante e vendeu a carne 1

    Matou uma vaca do querelante 1

    Negociou o escravo do querelante 1

    Ocultamento de escrava 1

    Ofensas 1

    Rapto da filha 1

    Roubo, seduo, traio e calnia 1

    Sedio 1

    Seduo 3

    Ivan de Andrade Vellasco

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 50178

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    Tentativa de homicdio 4

    Uso ilegal de armas proibidas 2

    Venda ilegal de casa 1Venda ilegal de escravos 1

    Venda ilegal de terras 1

    Vendas de um cetro 1

    Total Global: 251

    Fonte: Livros de querela AMRSJDR.

    A maior parte das queixas contrapunha personagens do mesmo univer-so social, constitudo por artesos, ferreiros, roceiros, pardos, crioulos e bran-cos. Entre estes ltimos, principalmente, figuravam tambm pessoas de pos-ses, negociantes, padres, capites e alferes, tanto como querelantes quantocomo querelados. Casos como o de Dona Ana Bernardina de Castilho, quedenunciou o assassinato de seu marido ocorrido na fazenda de seu pai, comum tiro de espingarda dado pelo escravo de seu pai Jos Benguela,que ser-

    viu de sua pagem.

    30

    Ou do alferes Bento Leite de Faria, negociante de escra-vos negros novos ... senhor e possuidor de um stio,que se queixa das agres-ses feitas a um de seus escravos.31 Embora sejam poucos os casos em que asocupaes de ambas, ou mesmo de uma das partes, tenham sido registradasnos livros de querela, o que no permite uma verificao mais apurada nessesentido, a meno da cor torna possvel uma quantificao mais representati-va. O quadro resultante, at onde a cor pode ser tomada como indicativo dashierarquias sociais, d mostras da diversidade tanto entre aqueles que se quei-xavam justia quanto daqueles que seriam os ofensores.

    Tabela 2Cor dos Querelantes livros de querela 1779 -1832

    Cor Total

    Branco 60

    Cabra 1

    Crioulo 8

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    Pardo 43

    Preto 15

    Total: 127

    Fonte: Livros de querela, AMRSJDR.

    Tabela 3Cor dos Querelados livros de querela 1779-1832

    Cor Total

    Bastardo 1

    Branco 54

    Caboclo 2

    Cabra 10

    Crioulo 23

    Mestio 2

    Pardo 55Preto 4

    Total: 151

    Fonte: Livros de querela, AMRSJDR.

    Na Tabela 2, computado o total das querelas em que a cor do querelante designada,a presena de pretos, crioulos, cabras e pardos, somando mais de

    50 por cento do total, certamente um indicativo da extrao social de gran-de parte daqueles que procuravam a justia. A leitura mais detida desses re-gistros refora esses dados e ainda indica que, entre os declarados brancos,boa parte constituda por homens e mulheres que pouco se diferenciam dacondio social que prevalece no restante da amostra. Na Tabela 3 a amostraapresenta maior diversificao, com o surgimento de mestios, bastardos ecaboclos, designaes que qualificavam os descendentes indgenas, e um au-mento da presena de pardos, crioulos e cabras. Somados, os no brancos

    compem aproximadamente dois teros do total. A razo disso o fato deque pardos, crioulos e cabras apresentavam queixas, na maioria dos casos,

    Ivan de Andrade Vellasco

    Revista Brasileira de Histria, vol. 25, n 50180

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    contra seus iguais em cor, sendo suas queixas contra brancos em nmero maisreduzido; por sua vez,os brancos, embora concentrassem suas queixas sobreoutros brancos, as davam tambm de pardos e dos demais. Isso refora a idiade que as disputas se estabeleciam fundamentalmente entre os membros domesmo grupo social, que competiam pelos mesmos recursos materiais e sim-blicos, embora algumas fronteiras fossem mais borradas, sobretudo as queseparavam brancos e pardos; entre estes que se apresenta o maior nmerode conflitos que extravasam as fronteiras da cor. Alm disso, esses dados pa-recem indicar que,ainda que as condies econmicas os aproximassem epor isso mesmo , a cor permanecia funcionando como um critrio de hie-rarquizao social. A Tabela 4 apresenta uma visualizao mais clara do queafirmo.

    Tabela 4Cor dos querelados e querelantes livros de querela 1179-1832

    Querelantes

    Querelados Branco Cabra Crioulo Pardo Preto No consta Total

    Bastardo 1 1

    Branco 21 1 1 7 2 22 54Caboclo 1 1 2

    Cabra 1 2 1 6 10

    Crioulo 3 3 4 6 7 23

    Mestio 1 1 2

    Pardo 13 2 15 4 21 55

    Preto 2 2 4No consta 22 2 13 63 100

    Total: 60 1 8 43 15 124 251

    Fonte: Livros de querela, AMRSJDR.

    Um outro dado acerca daqueles que procuravam os servios judiciais surpreendente e revelador. Do total de 251 lanamento nos livros de querela,

    216 indicam o local de moradia do querelante; destes, 76 (35,2%) so regis-trados como moradores nesta vi la, So Joo; sete (3,2%) aparecem como

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    moradores dos subrbios da vila, arraiais ou paragens que podiam distar en-tre uma e duas lguas da vila; os demais 133 (61,6%) eram moradores prove-nientes de aplicaes, arraiais e vilas espalhados pelo vasto territrio da co-marca do Rio das Mortes, tais como Lavras,Garambu,Tamandu,Trs Pontase Baependi, cuja distncia da sede da vila de So Joo era significativa, algoem torno de quinze a vinte lguas, ou ainda mais. Ou seja, a maioria daque-les que se dirigiam justia, homens e mulheres o mais das vezes de nenhu-ma ou modestas posses, atravessava grandes distncias, nas pssimas condi-es das estradas de ento, na expectativa de fazer suas queixas serem ouvidase ganharem curso nos trmites jurdicos, em busca de resultados que talvezcorrespondessem s suas esperanas.

    O conjunto dos dados analisados parece indicar que, em primeiro lugar,ao contrrio do que supem alguns autores, a clientela do sistema de justiaque se vai desenvolvendo durante o sculo XIX apresentava uma diversidadesocial muito mais ampla, abrindo um leque que incorporava as demandas dasdiferentes classes e grupos tnicos que compunham a rede social. Em segundolugar, as expectativas sociais em torno da justia se manifestavam em toda asociedade e, de modo acentuado,entre aqueles que no detinham poder pes-soal ou posio para fazer justia por seus prprios meios. Por ltimo, era exa-tamente no horizonte de viso dos homens e mulheres sem posses que o ritualda justia parecia ganhar contornos mais ntidos e carregados de significados.Razes para tal podem ser encontradas na leitura das querelas e processos.

    Jos Antnio do Nascimento, homem pardo e senhor e possuidor deuma vaca cor de rato, acusou Domingos da Silva Reis, que assim se chama-va em tempo de cativo e agora depois de forro se trata com o nome de Do-mingos Jos de Souza, de t-la roubado e vendido a carne no aougue de umapreta por nome Francisca Fernandes.32 Alexandre Gonalves da Silva, ho-mem branco,dirigiu-se casa do juiz ordinrio, capito Jos Loureno,para

    queixar denunciar e querelar de Bartolomeu Batista, crioulo forro casado eseu vizinho, por ter este matado e desmanchado um porco que entrara emseu cercado e pertencia ao querelante. O querelado vendeu partes das carnese comeu o resto se lhe ficando por isso mesmo na pena de furto.33 ManuelGonalves, crioulo forro ... senhor e proprietrio da preta por nome Joana,de nao Angola, apresentou queixa de Leonor Teixeira da Conceio,cabraou crioula forra, pelos insultos e ferimentos feitos em sua escrava,a qual es-tando quieta e pacfica sem dar causa alguma a ser ofendida, foi insultada e

    provocada ... por Leonor, [que] depois de lhe dar uns bofetes, lhe fez comsua faca de ponta os ferimentos que constam do auto de exame.34 Ainda em

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    uma briga entre dois homens, motivada pela disputa de uns adobes, que re-sultou em ferimentos e acabou na justia, uma testemunha alega ter tentadodissuadir um deles alegando que no parecia bem que sendo ele um homempardo brigue com um negro publicamente.35

    Esses relatos tipificam os modos pelos quais as distines vo sendo ope-radas em funo dos lugares e papis desempenhados frente justia por que-relantes e querelados. Assim que o pardo Jos Antnio do Nascimento seapresenta ou apresentado como senhor e possuidor de uma vaca quelhe teria sido roubada por um homem forro ao qual ele se refere pelo nomeque possua quando cativo,como a explicitar que a troca de nome no lhe apa-gava a condio de origem ainda recente. A mesma condio de Manuel Gon-alves, tambm crioulo forro,a quem, no entanto, dada a qualidade de se-nhor e proprietrio de uma escrava, em sua queixa contra Leonor, tambmcrioula forra. Como proprietrios igualavam-se a Alexandre Gonalves, bran-co e dono de um porco, que teria sido roubado por seu vizinho Bartolomeu,crioulo forro.Atravs do registro pblico de suas posses, ambos eram reco-nhecidos como senhores de algo ou algum, afastando-se ritualmente daque-les contra quem davam queixas, pela linha demarcatria fundamental de umasociedade contraposta entre senhores e escravos, possuidores e possudos.Al-go ainda mais significativo pelo fato de serem situaes como essas que tradu-ziam as poucas possibilidades de diferenciao entre aqueles que competiamnos mesmos espaos sociais. Quanto aos forros, vale salientar que o ingressona justia como demandantes os igualava formalmente aos homens livres e osdistanciava da sua condio anterior de escravo. provvel que todos eles te-nham levado em conta a advertncia contida no depoimento da testemunha,de no brigar com um negro publicamente, o que poria a perder a oportuni-dade que o momento lhes apresentava, invertendo a assimetria da situao.36

    A quantidade de casos de brigas, agresses e ferimentos que se origina-

    ram das tentativas de acerto de contas privadas, cobranas de pequenas dvi-das e solues de conflitos de posses indicam que no eram poucos os que re-corriam a solues privadas para problemas dessa natureza. Entretanto,acabavam por ver-se envolvidos no cerimonial jurdico como agressores erus. Como no processo que envolveu Francisco Dias, sua mulher e sua so-gra,crioulos livres, presos e obrigados ao pagamento de fiana por teremespancado a forra Jacinta Prudenciana pelo sumio de uma camisa de caa evrias galinhas do poleiro.37 Tambm Maria Marcela, mulher parda e soltei-

    ra, queixou-se da surra e das chicotadas que lhe deram Gertrudes Martins,mulher cabra, seu marido Nicolau Moreira, a fi lha deste e sua irm, mulher

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    cabra, com seu marido,homem de mistura da terra, alm de uma escrava eoutro homem. O motivo teriam sido algumas pequenas dvidas que a que-relada tinha com as outras envolvidas.38 Em ambas as querelas os juzes con-denaram os agressores. Provavelmente, casos como esse representassem umincentivo para que tais assuntos fossem entregues deliberao da justia.

    Uma das razes que moviam aqueles que procuravam a justia certamen-te residia em algum clculo razovel a respeito das possibilidades de atendi-mento de suas demandas. De um ponto de vista estritamente lgico, poucoprovvel que tais clculos no se fizessem presentes no ato dos que, cotidiana-mente e de maneira crescente, decidiam por submeter apreciao e escrut-nio das normas jurdicas suas desavenas, contendas e dramas particulares. Aprpria deciso de faz-lo , por si s, indicativa de uma racionalidade que re-vela noes sobre a ordem coletiva e o papel das instituies em administr-la, em oposio queles que, como vimos, movidos pelo impulso das paixesou por outros clculos, decidiam resolver por conta prpria suas rixas e neg-cios. Ainda que a base de clculo dos que recorriam ao arbtrio dos juzes fos-se dada pela impossibilidade de enfrentamento do oponente por sua prpriaconta e risco, isso no seria um mvel suficiente para o recurso s vias legais.Restaria ainda, por exemplo,buscar socorrer-se junto aos que detinham pres-tgio e poder privado ou simplesmente resignar-se, o que de supor que mui-tos tenham feito. O que quero dizer, frisando o que para alguns pode parecerbvio, que a demanda pela justianajustia revela uma escolha, entre outraspossveis e provveis, que implica o acatamento prvio das regras e dos ceri-moniais que a regem, tanto quanto algum nvel de crena na instituio e nasua eficcia resolutiva.Por eficcia deve-se entender a capacidade de processare produzir resultados, que no podem ser aquilatados em termos de critriosformalmente definidos, mas, sobretudo, em relao s expectativas e motiva-es dos que pleiteavam sua ao. Em vrios dos casos, como os aqui apresen-

    tados,essas expectativas pareciam girar menos em torno da imposio de pe-nas e reparao, do que da possibilidade de tornar pblico um conflito peloseu registro na arena jurdica, e sinalizar ao oponente uma disposio de en-frent-lo legalmente e legitimar sua posio em relao ao outro.39

    O que tento exemplificar aqui que, em grande parte, ainda que o acu-sado por algum delito ou conduta indevida pudesse ou conseguisse subtrair-se s penas, seja dificultando o andamento da causa, obtendo a absolviojunto ao juiz ou frente ao jri, ou simplesmente fugindo todas as trs hi-

    pteses eram freqentes , ainda assim seus acusadores poderiam sair mo-ralmente vitoriosos da contenda. O acesso justia era, por si, um objetivo

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    crescentemente almejado por aqueles que viviam ou tentavam viver em umacordo bsico com as regras sociais imperantes. A administrao da justiavinha, progressivamente, aumentando sua capacidade de responder a essasdemandas e, nesse sentido, o juizado de paz visava propiciar o recurso justi-a a uma clientela mais ampla e, desse modo, solidificar o compromisso coma ordem sob controle dos poderes pblicos. Ainda que fossem precrios osinstrumentos e os meios para impor a reta aplicao das penas previstas nasordenaes e, posteriormente, no cdigo criminal, o fato de ser citado pelajustia por algum tipo de deli to j implicaria transtornos e custos, inclusivemateriais, capazes de dissuadir e refrear as aes futuras daqueles que se viame viviam sob a esfera de ao e alcance dos juzes. Se fato que a justia im-plicava custos e despesas para aqueles que a ela recorriam, certo que o mes-mo era posto para aqueles que nela tinham de conduzir sua defesa, e, em ca-so de condenao, essas despesas seriam ampliadas para o total das custas doprocesso. Talvez isso no representasse grande coisa para os que nada tinhama perder,mas certamente no se dava o mesmo com os que necessitavam man-ter seu lugar social, seguir tocando seus negcios e desempenhando suas ati-vidades e funes, garantias de sua incluso no universo social. Isso incluauma parte significativa dos atores presentes nas aes judiciais, incluindo rus,vtimas e testemunhas; artesos, ofciais mecnicos, lavradores, roceiros, mili-tares de vrias patentes e negociantes, enfim, eram representativos do amploe diversificado espectro ocupacional do perodo. Para essa parcela da popula-o, como afirma Patricia Aufderheide, a preservao da lei e da ordem era agarantia do Estado populao estabelecida ... e a garantia para o Estado dacontinuidade da lealdade e dos rendimentos.40

    A frmula repetida nos autos de querelas, apenas com ligeiras variaespara sua (do querelado) emenda, exemplo dos outros e satisfao da rep-blica, talvez resuma as funes e os usos sociais da justia numa sociedade

    como essa. Em primeiro lugar, afirmada a necessidade de punio e conten-o das condutas indesejveis que constituam o foco dos conflitos e precipi-tavam desafios ordem, alicerada em expectativas de comportamentos rec-procos; em segundo, o carter pedaggico da ao da justia, que dissuadiriapela exemplaridade da punio e reconduziria o ritmo da vida aos trilhos de-sejveis; e, por fim, a afirmao do Estado, do poder pblico expresso na for-ma repblica que encerra, tanto o poder que a governa quanto o carter decoisa pblica da justia.

    Esse quadro, alm de fornecer uma base compreensiva para o entendi-mento da ampliao e diversificao da demanda pela implementao da jus-

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    tia e, conseqentemente, pelas expectativas de manuteno da ordem, tornapossvel explicar, em grande medida, a resposta do aparelho jurdico, mesmoque num plano l imi tado, em atendimento a essa demanda. Seja na sua pro-gressiva expanso e reforma, assunto central na montagem da mquina, sejana capacidade operativa e em sua razovel eficcia no processamento e reso-luo das disputas jurdicas em atendimento ao que prescreviam as leis. Pelomenos, o que faz supor o fato de que do total das querelas apresentadas justia constantes da Tabela 1, 169 nomes so encontrados no rol dos culpa-dos, e seis outros na lista dos processos criminais, um total, portanto, de 70por cento das queixas registradas, como mostra a Tabela 5. Considerando-seo reduzido nmero de processos que restaram do perodo, possvel aindaque esse nmero encontrado seis processos esteja sub-representado naamostra, j que no h homologia entre o conjunto destes e os lanamentosno rol dos culpados. Isso significa que a ampla maioria das querelas levadas justia resultou em conseqncias judiciais para aqueles que praticaram osdelitos. O lanamento no rol j implicava pronncia priso e livramento,o que obrigava obteno da carta de seguro para permanecer em liberdade,coisa que muitos deles obtiveram, segundo as anotaes sobre a situao doru constantes no livro. Em vrios dos registros constam, no mesmo campo,anotaes como dei mandado de priso ao querelante no mesmo dia,pre-so,foi remetido o translado da culpa para o Juzo de Fora do Rio,fugiu,entre outras; todas elas indicaes das medidas tomadas que,se no resulta-vam em priso, implicavam custos impostos ao ru. Deve-se atentar, ainda,para o fato de o mandado de priso ser entregue ao prprio querelante, coisaque certamente o colocava, alm de moralmente vitorioso, em posse de umconsidervel instrumento de poder sobre o oponente, fonte de possveis ne-gociaes e barganhas. O mandato de priso era um documento legal a serencaminhado s autoridades judiciais e policiais, do distrito ou freguesia, pa-ra que dessem cumprimento a ele.

    Tabela 5Querelas lanadas no rol dos culpados

    Querela Total

    Adultrio 4

    Bofetada no rosto 2

    Crcere privado 2

    Ivan de Andrade Vellasco

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    Danos materiais 10

    Defloramento da filha 1

    Facadas 1

    Falsificao de bilhete e furto 1

    Ferimentos em gados 1

    Ferimentos, porretadas, aoites,espancamentos 76

    Furto 47

    Homicdio 3

    Induo de escravos 2Induo, seduo, fuga e prostituio com a mulher do querelante 1

    Invaso da casa 1

    Licitao e iliciao 1

    Matana de gados e tentativa de homicdio 1

    Matana de porcos 1

    Matou uma vaca do querelante 1

    Negociou o escravo do querelante 1

    Ofensas 1

    Rapto da filha 1

    Roubo, seduo, traio e calnia 1

    Sedio 1

    Seduo 2

    Tentativa de homicdio 2

    Uso ilegal de armas proibidas 2

    Venda ilegal de escravos 1

    Vendas de um cetro 1

    Total: 169

    Fonte:Rol dos culpados, proc. criminais. AMRSJDR.

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    Tal eficincia, obviamente considerada dentro das condies que anali-sei (nunca demais repetir), alimentava as expectativas depositadas na aoda justia, ampliando sua base de legitimidade, o que reforava, por sua vez,a sua funo social e firmava sua preeminncia como arena de resoluo dosconflitos e negociao da ordem. Fato que, certamente, melhorava sua capa-cidade de afirmar-se na disputa com outras fontes de recursos concorrentes,entre eles os poderes privados.

    A LUTA PELA JUSTIA NA JUSTIA

    Vimos como mulatos, pardos e negros libertos, tanto quanto homens

    brancos e livres, porm pobres, compareciam justia em busca de interme-diao e arbitragem de suas disputas. Para a ampla maioria dos que compu-nham a base social da ordem, a justia passava a representar um poder coati-vo capaz de intermediar e solucionar conflitos, aumentando as expectativasde ordem frente aos desafios competitivos permanentemente postos, tantoquanto um espao de afirmao de valores e adeso ordem como sinal dedistino social.

    A historiografia vem j, de algum tempo, desvendando as formas pelas

    quais os escravos,sobre quem as leis sempre se mantiveram no terreno da am-bigidade, perceberam na justia as possibilidades e brechas que tornavampossvel superar a incapacidade jurdica que, do ponto de vista formal, os ca-racterizava. Para os libertos, que passavam a enfrentar obstculos de toda na-tureza para sua plena incorporao vida social, uma vez que medidas legis-lativas especficas sempre procuraram limitar seus espaos sociais, o recurso justia representava, seguramente, um ganho, propiciado pela nova condi-o; representava a probabilidade de, graas intermediao e chancela do

    poder pblico, agregar status condio existente e buscar uma integrao sociedade dos livres. Onde as oportunidades de incluso e mobilidade se ob-jetivavam no limite possvel, tornar-se registrado para o poder pblico eraum meio de reconhecimento de seus atributos como cidado, de igualar-sesob padres universalizantes.

    Talvez,para aquele homem apresentado anteriormente, Manuel Gonal-ves, crioulo forro ... senhor e proprietrio da preta por nome Joana, antesescravo, agora forro e proprietrio de uma escrava, como para tantos outros

    da mesma condio, que deixaram suas queixas registradas, o acesso justiateria que ser conseqncia e desdobramento naturais do seu ingresso num

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    mundo de livres e proprietrios que, em ajuste com a ordem, deveriam lutarpor suas posies, defendendo suas propriedades e seus direitos garantidospela leis do Estado e do monarca. O que separava os estabelecidos dos que vi-viam margem era o acordo bsico sobre uma ordem plausvel e uma con-duta que buscasse demonstrar publicamente essa concordncia; seja mani-festa nas festas cvicas, nas disciplinadas manifestaes religiosas dasirmandades, em uma conduta pautada por princpios de acatamento das au-toridades representativas do poder monrquico, e, finalmente, pelo recurso justia como o frum de resoluo de conflitos e implementao da lei e ma-nuteno da ordem.

    Eram esses mesmos personagens, forros, livres pobres, homens de con-dio modesta, roceiros, pequenos lavradores, artesos, vendeiros e lavadei-ras os que compareciam na justia na qualidade de testemunhas. O papel des-sas nos processos era extremamente relevante, uma vez que, mais do que asprovas materiais comumente inexistentes seus depoimentos que cons-tituam a matria da acusao. Segundo o Cdigo do Processo Criminal, noartigo 134,bastavam para a formao do auto de corpo de delito, na inexis-tncia de vestgios que podem ser ocularmente examinados ... duas testemu-nhas, que deponham da existncia do fato e suas circunstncias. Para proce-der formao de culpa era suficiente que o juiz procedesse inquirio deduas at cinco testemunhas que tiverem notcia da existncia do delito e dequem seja o criminoso. A lei da reforma de 1841 ampliaria esse nmero, noscasos de denncia, para cinco at oito testemunhas.41 Entretanto,pelo quese pode deduzir da leitura dos processos, esse nmero era freqentemente su-perior, alcanando no raro o envolvimento de vinte, trinta ou mais testemu-nhas, o que indica um elevado grau de envolvimento e comprometimentocom o processamento judicirio e seus resultados. Porm, o cerimonial dajustia lhes possibil itava espaos de afi rmao de suas vises e construes

    prprias sobre a ordem e a justia. Um dado interessante, nesse sentido, e quese evidencia nas narrativas dos processos e no modo como estes so monta-dos,diz respeito ao papel atribudo s testemunhas, que se encarregam de re-velar uma espcie de perfil scio-comportamental do ru. Atravs dos seusdepoimentos, via de regra vizinhos e iguais das partes envolvidas, vai-se cons-truindo uma espcie de quadro de referncias sobre quem era o ru, comocostumava agir, enfim, qual a voz corrente a seu respeito.Os depoimentos ini-ciam-se pelas expresses sabe por ver e sabe por ouvir dizer e ser pblico e

    notrio, esta indicando, geralmente, uma avaliao pblica sobre o ru e oque se diz sobre seu perfil moral e propenses, bem como seu envolvimento

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    com o fato em pauta. Essavox populidefine, de certo modo,as caractersticase o enquadramento do processo, o clima no qual se desenrolar. O papel dastestemunhas se revestia de grande importncia na resoluo dos casos e nojulgamento final, j que residia a a fonte bsica de elucidao do delito ocor-rido. Perguntava-se sobre a conduta costumeira do ru, se este era turbulentoe dado a violncia, por exemplo; as testemunhas, vivendo nas mesmas condi-es do ru e da vtima, emitem suas opinies sobre o que teria gerado a de-sordem, j que em muitos casos so os prprios vizinhos, depois testemu-nhas,que tomam a iniciativa de chamar o inspetor de quarteiro ou os guardase efetuar a priso.Assim eram elas, em ltima instncia, que definiam a sortee o destino dos rus.

    Na denncia feita por Maria Caetana ao juiz de paz de Santana do Jaca-r, contra o escravo Quintiliano e Jos Machado, crioulo liberto, por tereminvadido sua casa e a intimidado com uma faca e um jogo de pistolas e ... fora usa[do] dela desonestamente, as cinco testemunhas do processo crimeso unnimes em acusar o ru por duas razes: todas sabiam do fato por serpblico e notrio e porque os dois so usados a fazer semelhantes afora-mentos. Nenhuma delas presenciara o fato.42 Em outro processo, o procedi-mento final registrado reala a funo das testemunhas: por no ter o juizmais a perguntar declarou ao ru que podia dizer e alegar o que tivesse emsua defesa, pois que a voz pblica e as testemunhas o indicavam ru do deli-to, ao que nada respondeu.43

    Com expresses como segundo seu mau gnio e costumes, por ser seucostume,por ser violento e rixoso e turbulento, por ter fama de valento,entre outras, as testemunhas vo afirmando seus valores e juzos morais a res-peito dos rus, o que terminava por desenhar sua culpabilidade. Ou sua ino-cncia, quando atravs de frases como respeitador das leis,homem pacfi-co e temente a Deus, as testemunhas vo expressando suas simpatias.

    Vejamos a histria de Manuel Machado e Lauriano Jos de Souza, am-bos pardos. Eles so acusados da morte de Antnio Dias de Carvalho, homembranco, ocorrida no Arraial do Crrego, curato da vila de So Jos, quandoManuel Machado e Lauriano vinham com suas famlias de uma novena quese fazia no Arraial do Crrego. Segundo uma das testemunhas, o caso se de-ra da seguinte maneira:

    estando ele testemunha em sua casa aprontando-se para sair com sua famlia a

    ir assistir as novenas de Nossa senhora da Natividade ... ouviu ele testemunhauma gri taria assim como conheceu a voz de Manuel Machado [ e gri tos de] no

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    matem o meu marido, e da a mulher da testemunha abriu a porta e logo entrouManuel Machado com uma espada na mo e a outra mo muito ensangentadadizendo ele que lhe tinham cortado os dedos e da saiu ele testemunha, fechou asua porta e logo chegou a mulher de Lauriano de tal e perguntando ele testemu-nha que desordem foi esta, [ela diz] eu ia c atrs e vi dois vultos chegar [sic] ,um era o falecido e outro o no conhecia e dizendo o falecido a ele Machadoaqui que se pagam elas e o Machado e aquele Lauriano responderam tam-bm estou pronto e meteram logo mos aos ferros que traziam e a houve a de-sordem e morte, e que sabe por ouvir dizer que o vulto que vinha com o faleci-do fora seu cunhado Patrcio Gonalves.

    A tocaia armada por Antnio Dias, a vtima no processo e seu cunhadoPatrcio Gonalves, contra Manuel Machado, tinha como motivo uma rixaanterior, que principiara em um Domingo transato ... por causa de jogo on-de houve descomposturas e brigas do falecido com o dito Machado.AntnioDias e Patrcio aguardavam Manuel na sada da novena, este vinha acompa-nhado de sua mulher e de seu amigo Lauriano, com mulher e filhos. A brigaenvolvendo os quatro resulta no ferimento de Manuel e na morte de AntnioDias. Na medida em que os depoimentos vo se somando comea a se des-vendar uma histria que, reconstruindo os antecedentes da briga, vai apon-

    tando os responsveis pelo trgico acontecimento e o modo como as teste-munhas os julgam, com sutis diferenas. Das 31 testemunhas arroladas naprimeira parte do processo doze so brancas, duas cabras, quatro crioulas etreze pardas. Cabras, crioulos e pardos formam, portanto, uma ampla maio-ria.A exceo de duas testemunhas brancas, o restante unnime em afirmar,por saber ou ouvir dizer, que a vtima, que era homem mau por natureza,armara a tocaia a esperar de propsito com o objetivo de vingar-se de rixasanteriores havidas com Manuel, e a comea a avultar-se o papel de Patrcio

    Gonalves, o parceiro e cunhado da vtima.Teria sido ele o principal respon-svel que fomentara esse assassnio, tendo instigado e incendiado Ant-nio Dias a vingar-se dos desaforos que Manuel lhe fizera. Entre as doze tes-temunhas brancas seis se referem a Patrcio como o instigador da tocaia e dosplanos de vingana; j entre os treze pardos, dez denunciam o papel de Iagodesempenhado por Patrcio. A diferena relevante pelo fato de dois dos par-dos e um crioulo acrescentarem o argumento que Patrcio teria usado paraconvencer seu cunhado: a cor de Manuel. Um deles afirma que ele fomentou

    dizendo que em um negro que passava a mo em um branco se dava panca-das ; outro afirmou que ele incitara o falecido a ir fazer esse distrbio di-

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    zendo que um homem que nunca foi desfeitado no deveria ficar assim emuito mais de um negro que era o Machado; por ltimo,o crioulo forro Pe-dro da Silva depe que

    Patrcio dissera ao falecido que era desaforo um negro dar em um branco eque se havia de desforrar, ao que respondia o falecido isso j passou, [e] ele per-to mais dizia tu ento um homem de tanta fama h de ficar assim com um ne-gro, tu no tens vergonha, e assim por este modo reduzira ao dito cunhado paraa sua morte.

    Apenas uma testemunha branca se refere cor alegando que Patrcio te-ria dito vs [sic] um homem que tem fama de valento, pega a arma que

    tem e vs disfarar com aquele negro Manuel Machado. A di ferena queaqui a cor no o elemento central e nem acrescida da dramatizao ope-rada pela recriao dos enfticos dilogos. Manuel, que no processo descri-to como pardo,aqui dado como negro e na qualidade de negros que as tes-temunhas, pardos, se colocam e definem sua solidariedade. Sentimento quese fazia presente nos demais pardos e crioulos que,no se referindo cor, acu-savam Patrcio e sua conduta. De todo modo, os depoimentos acabam pordefini r um consenso que condena os causadores da desordem, sobretudo

    Patrcio, por instigar e, entre os pardos e negros, por seu racismo. Uma visosobre o certo e o errado solidariza a todos e dentro dela,uma percepo maisespecfica da justia, une pardos e negros. Os rus so absolvidos.

    Mas ainda um outro detalhe do processo revela certo domnio das estra-tgias possveis no interior da justia. Lauriano encontrava-se preso e ManuelMachado fora encaminhado Junta de Justia na capital, Ouro Preto. Umavez l, Manuel exime-se do crime antes confessado e, com a ajuda de teste-munhas, transfere a culpa pela morte de Antnio Dias a Lauriano, que lhe te-

    ria dado o golpe fatal com uma foice. Inocentado pela junta de justia, Ma-nuel retorna e passa a assumir publicamente que fora ele o verdadeiro autordo golpe fatal, o que define o julgamento de Lauriano. No arrazoado de defe-sa apresentado pelo advogado de Lauriano ao jr i, em So Joo del Rei, a es-tratgia recontada:

    Todos sabem que foi ele quem feriu e matou a Antnio Dias de Carvalho; to-dos admiram o seu valor,animo e intrpida resoluo,mas como se procedia a de-

    vassa e se queria salv-lo mudou-se a face das coisas: espritos tbios e fracos, per-versos ou destros, ignorantes ou sbios o aconselharam que no fizesse tal confisso

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    ... Este mesmo Manuel Machado apenas se viu livre por sentena da Junta de Jus-tia, tomou aquela linguagem de pureza e de justia da qual usava antigamente,dando inocncia do ru [Lauriano] a homenagem que lhe era devida.

    As testemunhas so novamente peas chaves no desfecho do processo,revelando um perfil de Lauriano como homem de prudncia e verdade emtodos os seus tratos, sendo incapaz de faltar o respeito lei e todas as autori-dades, e que teria se visto envolvido na briga desarmado, j que se dirigira aolocal com sua mulher e trs filhas por ser ele o que ia tirar a novena em ra-zo de [ser] sacristo da Ermida.Alm disso, afirmam ter sido mesmo Ma-nuel que matara a vtima com sua espada, ou porque ele mesmo lhes disseraou porque viram a espada ensangentada.

    Assim, o jri responde os quesitos acusatrios pela parte negativa e ojuiz conclui que vista da deciso do jri, com a qual me conformo, absolvoo ru da acusao intentada, o seu nome seja riscado do rol dos culpados, ese d baixa na culpa.44

    A exemplaridade dessa histria se presta a resumir aspectos que surgem,embora no com essa riqueza ou de forma to condensada,nos vrios pro-cessos examinados. A interveno dos diversos atores no andamento e cursodo processo, e os usos dos recursos disponveis pela legislao denunciam a

    capacidade de atuar dentro do campo jurdico, em ateno s suas regras eprocedimentos. Isso, certamente, indica a presena de uma atividade advoca-tcia expressiva e acessvel a homens como Lauriano e Manuel Machado.45 Al-guns processos materializam batalhas judiciais envolvendo promotores, ad-vogados e juzes, cujas reviravoltas, por sua vez,demonstram a dificuldade deantecipar os resultados das disputas travadas no interior da justia. Como nocaso da morte do escravo Joo Crioulo, cujo corpo encontrado no Rio dasMortes. O delegado de So Jos pronuncia dois homens como responsveis

    pela sua morte que, segundo testemunhas, teria tido origem no espancamen-to sofrido pelo escravo, que se jogara no r io para escapar agresso. O juizmunicipal despronuncia os acusados, alegando tratar-se de um suicdio,e queo escravo fora pego roubando e tentara fugir. O promotor pblico recorre aojuiz de direito da comarca quanto deciso tomada pelo juiz municipal e seinicia a uma longa batalha jurdica entre as autoridades pblicas.46 O juiz dedireito acata, ao final, o recurso do promotor e o caso reaberto. Infelizmen-te a documentao no contm o desfecho da histria.

    Ainda um outro exemplo da utilizao dos recursos legais pelos rus e seusadvogados: o caso do escravo Francisco Antnio de Oliveira, o Porrada,acusa-

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    do de matar Joaquim Antnio da Silva, por t-lo surpreendido deitado com afilha de seu senhor, com a qual o escravo Francisco mantinha relaes ilcitas.Em que pese a situao lhe ser desfavorvel desde o incio, em funo dos de-poimentos das testemunhas e do auto de corpo de delito, o processo se esten-der por dois anos, com vrias trocas de curadores, recusa de jurados por partedo ru, direito assegurado pelo artigo 275 do Cdigo do Processo, e ainda re-curso ao Tribunal da Relao do Rio de Janeiro. Acrescente-se que o escravoFrancisco foi, logo de incio,entregue justia pela desistncia de seu dono emencaminhar sua defesa. O ru foi condenado pena de gals perptuas.47

    CONCLUSO

    Incio Jos queixa-se da embigada que Gregrio teria dado em sua mu-lher; Manuel Andr queixa-se de um vizinho judeu que afi rma que metadede seu stio lhe pertenceria; Joo Sampaio queixa-se de seu vizinho, o Sr. To-ms, que se apoderou de um leito seu que, furando a cerca, havia invadido ahorta do outro. Ao final, solicita ao juiz que mande citar a Assemblia pro-vincial ... para mandar fazer cercados de espinhos em todas as hortas ; Fran-cisco Antnio, natural de Portugal, queixa-se que o seu vizinho Jos da Silva

    se apoderou da cria de sua gua por ter o potro nascido malhado como o seucavalo; Francisco alega que os filhos pertencem s mes e a prova disto que a minha escrava Maria tem um filho que meu.

    Jos preso,a mando do juiz de paz,por Manuel Joo, roceiro pobre e sol-dado da Guarda, para ser enviado como recruta para lutar na provncia do RioGrande. No tendo onde passar a noite, preso espera de ser levado Corte,Jos trancado em um quarto na casa do prprio Manuel Joo. noite, a filhade Manuel liberta o preso e com ele foge para se casarem, pois ambos se ama-

    vam havia tempos. Feito isso retornam e comunicam o fato consumado ao paie todos se dirigem ao juiz de paz para comunicar o ocorrido e a impossibilida-de de recrutar Jos, agora que ele homem casado. O juiz aceita o fato, felicitaos noivos e terminam todos danando o fado bem rasgadinho.

    Como talvez o leitor j tenha se dado conta, todos esses relatos no soextrados de fontes histricas, mas sim da peaO juiz de paz na roa, de Mar-tins Pena,escrita provavelmente em torno do ano de 1833. A histria de Josconstitui o enredo da pea e as demais so as queixas que ilustram o cotidia-

    no de um juiz de paz na roa, ou seja, nas pequenas vilas e freguesias do pas.Entretanto, todas elas expressam, com fidedignidade, o quadro que encontra-

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    mos nos documentos e registros judiciais do perodo. A levar-se em conta osinegveis talentos de Martins Pena como cronista de sua poca, atento ao uni-verso social que o cercava, podemos pensar que a realidade, que encontramosnas fontes locais, correspondia a situaes que vinham se generalizando me-dida que a justia se incorporava ao cotidiano das pessoas.

    A anlise da documentao judiciria parece confirmar essa impresso.Sobretudo quanto aos usos da justia, pelas camadas populares e sua crescen-te presena nas cortes. Nelas, se materializava a face da ordem capaz de atraira participao e a anuncia daqueles, para os quais as demais instituies doEstado eram abstraes distantes e excludentes. Isso se dava em funo da ca-pacidade do aparato de justia de tornar-se, progressivamente, acessvel s ca-madas subalternas, o que por sua vez representou uma presso no sentido defaz-lo operar em nveis razoveis de atendimento lgica jurdica. Isso nosignifica que ela tenha prevalecido sobre as demais presses que intervinhame agiam sobre a produo dos resultados. claro que fatores extralegais e es-tranhos ao andamento jurdico poderiam intervir na produo de decises contrrias ou favorveis em se tratando de determinados grupos e pes-soas cujas posies e ligaes sociais fossem por diversos motivos privilegia-das. Mas, uma vez ingressando na instncia judiciria, o resultado no pode-ria ser inteiramente antecipado ainda que calculado uma vez que osnveis de embate se sobrepunham e podiam se anular, produzindo respostasas mais diversas nessa combinatr ia. A luta, uma vez na justia, se tornavauma luta pela justia atravs da justia. De qualquer modo, a justia repre-sentava o campo possvel de luta pela efetivao de direitos e, como afirmacom preciso Sidney Chalhoub,

    lutar dentro de um campo de possibilidades delimitado historicamente por con-dies especficas de explorao econmica e controle social , afinal de contas,

    a experincia da maioria dos trabalhadores em qualquer tempo e sociedade. Ra-ramente possvel, ou mesmo desejvel, escapar para forade um certo sistemade explorao e de uma determinada poltica de domnio.48

    A justia, certamente, ao mesmo tempo que representou um espao deefetivao de certos aspectos da cidadania e apresentou-se como a face visvele tangvel do Estado para os no dominantes, desempenhou papel importan-te na ampliao e consolidao da base social de sustentao do Estado Im-

    perial, mais larga do que se supe, quando se toma o conjunto da populaocomo alheio ao que se passava na esfera pblica; ela foi uma das engrenagens

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    na montagem do campo de legitimao do poder imperial e, ao Imprio e aosseus homens de Estado, em suas ambies monopolizadoras, no passou de-sapercebida a sua funo nem seu potencial de seduo para o campo da or-dem. A face da justia foi sedutora, na medida em que permitia incorporar osindivduos s regras do jogo,oferecendo-lhes possibilidades de us-las comogarantias de seus direitos.

    O interesse em manter a ordem afirmava-se como precondio para oexerccio sistemtico do poder. Para construir sua legitimidade, afirmar-sefrente aos poderes privados e incorporar a populao sua esfera de ao, ajustia teria de ter algo mais a oferecer do que uma cena brechtiana na qualpersonagens estereotipados representassem uma farsa.Para o conjunto da po-pulao, alguns mais, alguns menos, o acesso justia significava a possibili-dade de ativao de direitos, e a percepo e a vivncia dos mecanismos insti-tucionais passavam a constituir um dos elementos de clculo, semprerealizados em um quadro de incertezas e expectativas difusas, na busca de es-tabilidade de suas posies sociais e segurana e previsibilidade cotidianas.Havia, portanto, nveis de confluncia entre os interesses de ambas as partesna construo de uma ordem. Isso teria assegurado as bases de legitimaoda lei e o acatamento dos preceitos reguladores das relaes sociais, na medi-da em que a atuao dos juzes, promotores e advogados construiu as possi-bilidades de sua implementao e avalizou as expectativas sociais quanto ordem legal.

    As sedues da ordem se consti tuam no fato de que essa ordem, razoa-velmente alicerada no poder judicirio, oferecia um campo de possibilida-des, e, portanto,de previsibilidade, de ativao de direitos fundamentais, atra-vs do manejo de regras que se foram positivando. E qualquer regra melhordo que jogar o destino ao arbtrio e ao capricho da sorte.

    NOTAS

    1 Este trabalho parte da tese de doutorado intituladaAs sedues da ordem: violncia, cri-minalidade e administrao da justia Minas Gerais sculo XIX, desenvolvida no pro-grama de doutoramento do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro.

    2 MOORE JR., B. Injustia: as bases sociais da obedincia e da revolta. So Paulo: Brasilien-se, 1987, p.39.

    3 Para uma discusso e reviso da historiografia a respeito da escravido no perodo ver,entre outros, REIS, J. J. & SILVA, E.Negociao e confli to. So Paulo: Companhia das Le-

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    tras, 1989; LARA, S. H. Campos da violncia. escravos e senhores na capitania do Rio de Ja-neiro (1750 -1808). So Paulo: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, S.Vises da l iberdade:umahistria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo: Companhia das Letras,1990; MATTOS, H. M. As cores do si lncio: significados da liberdade no sudeste escravista

    Brasil sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, e GRINBERG,K.Liberata a lei da ambigidade: as aes de liberdade na Corte de Apelao do Rio de Janeiro, s-culo XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994.

    4 A mudana de espao mental que est lgica e praticamente associada mudana de es-pao social garante o domnio da situao aos detentores da competncia jurdica, os ni-cos capazes de adotar a postura que permite constituir esta situao em conformidade coma lei fundamental do campo. O campo jurdico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar ne-le, renunciam tacitamente a gerir eles prprios o seu conflito ... ao estado de clientes dos

    profissionais; ele constitui os interesses pr-jurdicos dos agentes em causas judiciais etransforma em capital a competncia que garante o domnio dos meios e recursos jurdi-cos exigidos pela lgica do campo. BOURDIEU, P.O poder simblico. Lisboa: Difel, 1989,p.233.Para uma discusso da especificidade do direito e das leis na intermediao dos con-fl itos sociais ver THOMPSON, E. P.Senhores e caadores: a origem da lei negra.Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1987, e GENOVESE, E. D.A terra prometida: o mundo que os escravoscriaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

    5 PRADO JR., C. Formao do Brasi l contemporneo. So Paulo: Brasiliense/Publifolha,2000, p.340.

    6 CUNHA, M. C. da. Sobre os Silncios da Lei: lei costumeira e positiva nas alforr ias deescravos no Brasil do sculo XIX. In: Ant ropologia do Brasi l: mito, histria e etnicidade.So Paulo: Brasiliense, 1987.

    7 URICOECHEA, F.O minotauro imperi al: a burocratizao do estado patrimonial brasi-leiro no sculo XIX. Rio de Janeiro: Difel, 1978, p.269.

    8 FRANCO, M. S. de C.Homens livres na ordem escravocrata. So Paulo: Unesp, 1997.

    9 ADORNO,S.Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na pol tica brasileira. Rio de

    Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.73-4.10 KOERNER, A. Judicirio e cidadania na consti tuio da repblica brasi lei ra. So Paulo:Hucitec/USP, 1998, p.56.

    11 AUFDERHEIDE, P.A. Order and violence: social deviance and social control in Brazil,1780-1840. Ph.D.Dissertation, University of Minnesota, 1976.

    12 AUFDERHEIDE, P.A.,op.cit., p.256.

    13 LARA,S. H., op. cit., cap. XIII .

    14 CHALHOUB, S.,op., cit., p.173.15 MATTOS, H. M., op. cit., sobretudo a discusso que a autora desenvolve no captulo IX;

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    GRIMBERG, K., op. cit. Dessa mesma autora ver tambm O fiador dos brasi leiros: cida-dania, escravido e direito civil no tempo de Antnio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2003.16 ZENHA,C.As prticas da justia no cotidiano da pobreza: um estudo sobre o amor, o tra-balho e a riqueza atravs dos processos penais.Departamento de Histria, Ni teri, UFF,1984 (dissertao de mestrado), p.6.17 Uma discusso inteiramente pertinente nesse sentido feita por Keila Grimberg, quesustenta a inadequao dos modelos formais de evoluo da cidadania, centralmente T.H.Marshall e seu roteiro evolutivo dos direitos civis, polticos e sociais, para a anlise de si-tuaes histricas concretas que realizaram trajetos diferenciados na sua construo, afir-mando que a cidadania era um conceito em movimento no sculo XIX se que algumdia deixou de s-lo e portanto, no pode ser considerado resultado de uma expanso

    linear. GRIMBERG,K.O fiador dos brasileiros...,op. cit.,p.23.18A historiografia tradicional tende a caracterizar a economia mineira oitocentista comoestando em constante crise de retrao ou, pelo menos, como secularmente estagnada ...Sem dvida,havia uma crise econmica que se foi prolongando at o segundo quartel dosculo. No obstante, houve uma lenta e firme acomodao s crises atravs do crescimen-to do setor agrcola,marcada pelo tempero de certos ensaios industriais. LIBBY, D. Trans-formao e trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no sculo XIX. So Paulo:Brasiliense, 1988, p.96.19

    A comarca de Vila Rica, nas quatro dcadas seguintes ao censo de 1776,apresentou umdeclnio demogrfico.Rio das Mortes, entretanto, no mesmo perodo quase tr iplicou suapopulao: de 82.781, em 1776,para 213.617,em 1821. MAXWELL, K.A devassa da de-vassa A Inconfidncia M ineira: Brasil e Portugal 1750-1808.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, p.110.20 SOUZA, L. de M e. Os desclassi fi cados do ouro: a pobreza mineira no sculo XVIII. Riode Janeiro: Graal, 1985, p.66.21Ver a respeito DIAS,M.O.da S.A interiorizao da metrpole.In: MOTTA,C.G.(Org.)

    1822 Dimenses.So Paulo: Perspectiva,1986.A obra decisiva sobre o tema a de Alcir Le-

    nharo. O problema pode ser apresentado do seguinte modo: por que as estradas do Co-mrcio e da Polcia,os projetos mais ambiciosos desta etapa administrativa, dirigiam-separa a comarca mineira do Rio das Mortes, e qual a importncia estratgica para a Corte,uma vez seu pr incipal ncleo abastecedor?. LENHARO, A. As tropas da moderao. SoPaulo: Smbolo,1979, p.63.22 No deixa de ser sugestivo observar o nome das duas estradas projetadas para ligar a re-gio Corte: estrada do comrcio e estrada da polcia, ainda que esta lt ima tenha sidobatizada em funo de suas obras terem sido postas a cargo da ento Intendncia de Pol-

    cia da Corte.23Os mapas de populao so conclusivos: boa parte do contingente desclassificado havia

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    se acomodado s realidades econmicas das Gerais ps-febre aurfera e se fizera parcela davasta camada de pequenos produtores mineiros. LIBBY, D. Transformao e trabalho emuma economia escravista...,op. cit.,p.92.24 LIBBY, D., op. cit ., p.361. Seus dados apontam que, entre 1831 e 1840, a parcela de assa-lariados entre os homens livres era de apenas 7,8 por cento (p.91).25 LIBBY, D., op. cit., p.82.

    26 LIBBY, D., op. cit., p.97.

    27Durante todo o perodo colonial (e durante todo o Imprio tambm) Minas Gerais con-tou no s com o maior plantel mancpio, mas, ainda, com a maior populao forra dacolnia. PAIVA, E. F.Escravos e libertos nas Minas Gerais do sculo XVIII: estratgias de re-sistncia atravs dos testamentos. So Paulo: Annablume, 1995, p.106.

    28 FLORY, Th.El Juez de Paz y el Jurado en el Brasi l Imperial, 1808-1871. Mxico: Fondo deCultura Econmica, 1986, p.50.

    29 LARA, S. H. (Org.) Ordenaes Filipinas Livro V. So Paulo: Companhia das Letras,1999.30 Arquivo do Museu Regional de So Joo del Rei AMRSJDR,Livro 2,p.10,1799.31 AMRSJDR,Livro 9,p.30,1830.32 AMRSJDR,Livro 2,p.36,1804.

    33

    AMRSJDR, Livro 2,p.64 e verso, 1808.34 AMRSJDR, Livro 1,p.30 e verso, 1782.35 AMRSJDR,Livro 3,p.135, 1812.

    36Aqui est um outro meio de garantir a ordem social: permiti r que quase todo mundo sesinta superior a algum. As distines matizadas de classificao social coibiam a ameaaque os homens livres talvez pudessem, de outra maneira, representar, e isso explica emparte por que se encorajava a alforria dos escravos: os negros livres inseriam-se facilmentenum dos nichos sociais possveis. GRAHAM, R.Clientelismo e poltica no Brasil no sculo

    XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.49.37AMRSJDR,Proc.crime, cx. 4,1834.38AMRSJDR,Livro 4,p.59,1821.

    39 Salientando a funo da justia no contexto europeu do incio da era moderna,Weisserafi rma que o sistema de justia, na forma como operava no nvel local, era um perfeitomtodo para espalhar not cias atravs de toda a comunidade do lugarejo. Em vrios as-pectos esse era o mais significativo trao do procedimento pelo qual o queixoso poderiapublicizar suas queixas e reaver algum senso da honra e prestgio perdidos. WEISSER,M.R. Crime and puni shment in early modern Europe. New Jersey: Humanities Press, 1979,p.60.

    Os predicados da ordem: os usos sociais da justia nas Minas Gerais 1780-1840

    199Dezembro de 2005

  • 7/24/2019 Os Predicados Da Ordem: Os Usos Sociais Da Justia Nas Minas Gerais

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    40 AUFDERHEIDE, P. A.,op.cit., p.72.41 Ver Cdigo do Processo Criminal do Imprio do Brasil.42 AMRSJDR,Proc.crime, cx. 4,1834.

    43 AMRSJDR,Proc.crime, cx. 4,1838.44 AMRSJDR,Proc.crime, cx. 3,1831.45 Em sua estada em So Joo del Rei, John Luccock observa que tanto os padres como osadvogados parecem existir em grande nmero aqui, tal como se d para outras localida-des sujeitas Coroa portuguesa, muito alm mesmo do que o poderiam exigir os legt i-mos reclamos da Justia e da Religio.LUCCOCK, J.Notas sobre o Rio de Janeiro e partesmeridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo: Edusp,1975, p.305.46 AMRSJDR,Proc.Crime, cx. 6,1845.47 AMRSJDR,Proc. Crime, cx.12, 1857.48 CHALHOUB, Sidney.Vises da liberdade..., op. cit., p.252.

    Ivan de Andrade Vellasco