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1 “Os orixás não são lentos, eles são caprichosos”: o projeto de criação do “Espaço Sagrado da Curva do S” (Parque Nacional da Tijuca/Rio de Janeiro) Roberta Machado Boniolo 1 Resumo: A partir da etnografia dos eventos e reuniões dos integrantes do Elos da Diversidade/Secretaria do Estado do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro busco demonstrar como estes atores traçavam estratégias para implementarem o Espaço Sagrado da Curva do S, visando dar visibilidade à relação das deidades afro-brasileiras com os elementos da natureza. O Espaço Sagrado foi pensando como um meio de diminuir os conflitos entre funcionários do Parque Nacional da Tijuca (Rio de Janeiro) e religiosos de matriz afro-brasileira motivados pelas práticas rituais com alimentos e bebidas, conhecidas como oferendas dentro do Parque. Tomo como objeto demonstrar que magia-técnica, numa inversão ao desencantamento do mundo proposto por Weber, interagia e atuava de forma complementar e relacional na consolidação do “Espaço Sagrado da Curva do S” por meio de diferentes actantes. Palavras-chaves: conflito, espaço sagrado, produção de visibilidade O Elos da Diversidade foi criado pela Secretaria do Estado de Ambiente/ Superintendência de Educação Ambiental com o objetivo de regulamentar uma área limítrofe ao Parque Nacional da Tijuca (PNT), conhecida como Curva do S, usada pelos religiosos de matriz afro-brasileira para a prática de rituais com alimentos e bebidas, conhecidas como oferendas. Os religiosos de matriz afro-brasileira utilizavam os espaços do Parque para a realização de oferendas, mas eram impedidos, muitas vezes de forma “truculenta”, pelos funcionários do PNT, que consideravam as oferendas impactantes àquele ambiente. Por outro lado, os religiosos sentiam-se discriminados, já que o Parque abrigava outras religiões e atividades de lazer, considerando um cerceamento ao direito à 1 Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional da Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP).

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“Os orixás não são lentos, eles são caprichosos”: o projeto de criação do “Espaço

Sagrado da Curva do S” (Parque Nacional da Tijuca/Rio de Janeiro)

Roberta Machado Boniolo1

Resumo:

A partir da etnografia dos eventos e reuniões dos integrantes do Elos da

Diversidade/Secretaria do Estado do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro busco

demonstrar como estes atores traçavam estratégias para implementarem o Espaço

Sagrado da Curva do S, visando dar visibilidade à relação das deidades afro-brasileiras

com os elementos da natureza. O Espaço Sagrado foi pensando como um meio de

diminuir os conflitos entre funcionários do Parque Nacional da Tijuca (Rio de Janeiro) e

religiosos de matriz afro-brasileira motivados pelas práticas rituais com alimentos e

bebidas, conhecidas como oferendas dentro do Parque. Tomo como objeto demonstrar

que magia-técnica, numa inversão ao desencantamento do mundo proposto por Weber,

interagia e atuava de forma complementar e relacional na consolidação do “Espaço

Sagrado da Curva do S” por meio de diferentes actantes.

Palavras-chaves: conflito, espaço sagrado, produção de visibilidade

O Elos da Diversidade foi criado pela Secretaria do Estado de Ambiente/

Superintendência de Educação Ambiental com o objetivo de regulamentar uma área

limítrofe ao Parque Nacional da Tijuca (PNT), conhecida como Curva do S, usada pelos

religiosos de matriz afro-brasileira para a prática de rituais com alimentos e bebidas,

conhecidas como oferendas. Os religiosos de matriz afro-brasileira utilizavam os espaços

do Parque para a realização de oferendas, mas eram impedidos, muitas vezes de forma

“truculenta”, pelos funcionários do PNT, que consideravam as oferendas impactantes

àquele ambiente. Por outro lado, os religiosos sentiam-se discriminados, já que o Parque

abrigava outras religiões e atividades de lazer, considerando um cerceamento ao direito à

1 Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal

Fluminense (PPGA/UFF). Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração

Institucional da Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP).

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liberdade religiosa, na medida em que o contato com a natureza é considerado

fundamental à expressão de suas crenças.

O Elos foi considerado, por seus integrantes, o resultado de uma “conjunção de

pessoas” que participaram das discussões sobre as oferendas no Parque, iniciadas no final

da década de 90. Busco analisar, a partir das reuniões e eventos promovidos pelos Elos,

como os atores traçavam estratégias para implementarem o Espaço Sagrado da Curva do

S, reivindicando o direito de religiosos de matriz afro-brasileira realizarem suas práticas

religiosas na natureza, visando dar visibilidade à relação das deidades com os elementos

da natureza.

Neste artigo, proponho demonstrar como essas estratégias eram pautadas em dois

atributos que perpassavam e justificavam as ações dos atores responsáveis pela sua

implementação: o conhecimento religioso/religiosidade e o conhecimento prático-

metodológico. O primeiro, eu chamei de magia, numa inversão à perspectiva do

desencantamento do mundo proposta por Weber (2004); o segundo de técnica, pensando

nas características de um modelo de administração racionalizada do Estado (Weber,

2010). Nesse sentido, tomo como objeto demonstrar como magia-técnica interagia e

atuava de forma complementar na consolidação do “Espaço Sagrado da Curva do S” por

meio de diferentes atores e actantes (Latour, 1994;1997).

Se a construção de uma política pública supõe a racionalização com vistas à

promoção de uma maior eficiência das instituições, bem como a subordinação dos

indivíduos à “realidade”, a constante referência às deidades revelaria o encantamento do

mundo ao incorporar ao discurso racional os elementos rituais religiosos. Se a

racionalização produzida pelo Estado deveria produzir esferas separadas na vida social,

o encantamento produziria o efeito contrário. Embora esse processo possa ser considerado

contraditório por aqueles que tomam como referência o modelo burocrático-racional

como algo que deveria modelar as práticas dos agentes públicos, há de se considerar que

toda burocratização pressupõe aspectos formais, mas também valores, o que significa que

a presença de discursos religiosos na formulação de políticas públicas não seria algo

desprovido de sentido, na medida em que a relação entre religião e política possa ser de

interação e complementaridade, como analisa Weber (2004).

Apesar de Weber estar interpretando e analisando o processo de secularização na

Alemanha, é comum quando se trata de política pública utilizar o autor para pensar a

secularização (e/ou laicização) em outros contextos, sem questionar como essas noções

foram historicamente desenvolvidas em cada lugar (Montero, 2009). Dessa forma, a

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separação é tomada como modelo de democracia moderna ocidental (Miranda, 2010). Por

isso, eu parto dessa concepção para mostrar que, na cidade do Rio de Janeiro, a relação

entre religião e política ganha outros contornos, buscando demonstrar como magia e

técnica se faziam presente no plano prático e teórico das ações dos membros do Elos da

Diversidade, atuando conjuntamente.

A relação entre magia e técnica já foi explorada por outros autores na

Antropologia. Malinowski (1978 [1922]), por exemplo, demonstrou como era impossível

pensar a separação da técnica e da magia na construção de canoas, nas ilhas Trobriand.

Havia a necessidade da técnica para que as canoas fossem construídas e da magia para

garantir que as mesmas fossem colocadas no mar, para que as vidas dos homens que

saíssem nas expedições fossem preservadas e que obtivessem sucesso nos seus

empreendimentos comerciais marítimos. Mauss (2008[1904]) observou que a magia não

só acompanhava a técnica auxiliando nas atividades pesqueiras, agrícolas e de caça, como

também era um elemento dominante em outras ações. Na medicina, o autor destacou que

a prática médica permaneceu durante muitos anos envolvida e dependente da magia,

cercada pelos encantamentos, precauções, preces, passes e dietas mágicas. Desse modo,

Mauss enfatizava que a relação entre esses domínios não deveria ser pensada

isoladamente, mas em conjunto.

Nessa direção, não busquei traçar os limites entre magia e técnica, mas

compreender a partir de uma perspectiva antropológica como os atores as incorporavam

na legitimação da construção da política pública, tanto para os favoráveis como para os

contrários à implementação do Espaço Sagrado. A análise antropológica, nesse sentido,

possibilitou pensar a construção desta política por meio da etnografia, favorecendo o

entendimento e o questionamento das práticas dos atores que são responsáveis pela

elaboração, implementação e execução da mesma, levando em consideração as dimensões

subjetivas e objetivas das ações (Miranda, Paes e Oliveira, 2007) e dos discursos.

A fim de evitar levar a discussão para um plano jurídico ou religioso – e também

como veremos no decorrer do texto, ambiental – tomei como referência os trabalhos de

Bruno Latour (1994) para pensar que as grandes divisões nas quais acostumamos a pensar

o mundo já não dariam conta de explicar fenômenos que não pertenceriam somente às

ciências naturais ou às ciências sociais, nem à natureza nem à cultura, mas estariam

contidas nesses domínios, isto é, seriam híbridos, o que levaria ao questionamento dessas

separações. Nesse sentido, ao invés de pensar quais seriam os domínios da magia e da

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técnica na construção do Espaço Sagrado da Curva do S, foquei como magia-técnica

atuava de forma complementar e relacional nos entendimentos e nas ações dos atores.

Todos os dados apresentados foram construídos no decorrer de 17 meses de

trabalho de campo para a escrita da minha dissertação (Boniolo, 2014), entre os anos de

2012 e 2014, acompanhando principalmente os eventos e as reuniões do Elos. Além da

observação dessas atividades, analisei o material produzido pelos atores que participaram

das discussões da temática das oferendas dentro do Parque Nacional da Tijuca.

Espaço Sagrado da Curva do S

Para ficar claro o que é/foi o Espaço Sagrado da Curva do S, proponho pensá-lo a

partir de três pontos inter-relacionados: como um projeto, como um lugar e como uma

política pública. Baseada na teoria ator-rede (Latour, 1994; 1997), descrevo brevemente

como os múltiplos actantes que participaram do processo foram se associando para

mostrar as estratégias de reivindicações de direitos pelo uso do Parque pelos integrantes

do Elos da Diversidade.

O Elos fazia parte de um dos componentes do Programa Ambiente em Ação da

SEAM/SEA, em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por

meio de uma ação de extensão. O Programa tinha por finalidade “apoiar a construção da

sustentabilidade ambiental através da articulação, fortalecimento e implementação de

políticas públicas voltadas para questões sociais, culturais e ambientais”2, sendo

constituído por três componentes: “Elos da Diversidade”, “Ambiente saudável é ambiente

sem homofobia” e “Eixo Campanhas”. O foco, porém, do Programa sempre foi o Elos da

Diversidade, como afirmou um dos seus membros, já que os demais seriam apoio a outras

Secretarias.

O projeto de construção de um espaço destinado aos religiosos de matriz afro-

brasileira surgiu devido aos impedimentos por parte dos funcionários do Parque do uso

das florestas e cachoeiras feita pelos religiosos. Diante das restrições de acesso dos

espaços PNT, representantes de ONGs, professores acadêmicos, religiosos de matriz afro-

brasileira e funcionários do Parque passaram a discutir a temática da oferenda com o

objetivo de encontrar maneiras de garantir que os direitos constitucionais dos religiosos

fossem assegurados, e que, ao mesmo tempo, os direitos de proteção do Parque fossem

2 Relatório de Atividades do Elos da Diversidade (2011).

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mantidos3. Após as mobilizações iniciais para garantir acesso dos religiosos ao Parque,

foi criado pelas coordenações de educação ambiental e de cultura do PNT, o projeto Meio

Ambiente e Espaço Sagrado4.

Em um primeiro momento, as coordenadoras buscaram compreender como as

diversas religiões que usavam o Parque se relacionavam com o meio ambiente. Em

seguida, foram realizados seminários para debater o tema das oferendas. No primeiro

seminário foi idealizado a criação de um espaço, fora do Parque, destinado a realização

das oferendas. A construção desse espaço foi vista como uma possibilidade de diminuir

os conflitos motivados pelas oferendas (Nascimento, 2006).

A Curva do S não foi a primeira opção dos atores dessas discussões, mas acabou

sendo escolhido por abrigar os elementos naturais indispensáveis aos rituais religiosos,

como pedra, água, árvores e, principalmente, pela privacidade. Ainda que às margens de

uma avenida, o lugar fica protegido do olhar de quem passa pela estrada. Assim, a Curva

do S foi escolhida para sediar o primeiro espaço sagrado público da cidade do Rio de

Janeiro. O lugar, já frequentado pelos religiosos, ganharia uma infraestrutura que

permitiria aos frequentadores mais “conforto” e “dignidade”. De um local cogerido pelo

Parque, a Curva do S passou a ser um dos pontos centrais do projeto de criação do espaço

sagrado.

O projeto consistia/consiste em reformular o interior da Curva do S para melhorar

as condições das práticas rituais. Desde o primeiro croqui até a maquete apresentada pelo

Elos, em 2013, foram planejados banheiros, telefone público, composteira5, vestiários,

bancos, construção de rampas para facilitar o acesso de deficientes físicos e idosos, coleta

regular de lixo e um espaço em que pudesse ser realizado cerimônias, eventos e até

oficinais de reformulação das oferendas.

Paralelamente às tentativas de criação da infraestrutura, os atores que participaram

desse processo buscavam incentivar o uso de materiais biodegradáveis nas oferendas,

quando fosse possível. Para isso percorriam casas e terreiros buscando conversar com os

religiosos e com as entidades sobre as possibilidades de alteração dos “procedimentos”

adotados nas oferendas. Nessas ocasiões eram distribuídos os materiais produzidos pelas

3 Para o conhecimento de todas as instituições e pessoas que participaram desse processo, ver Nascimento

(2006). 4 Para um aprofundamento desse processo, ver Nascimento (2006) e Costa (2008). 5 A composteira seria usada para transformar os elementos que poderiam ser reaproveitados das oferendas

em adubo.

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pessoas e instituições que faziam parte dos grupos de discussões sobre as oferendas no

Parque, como a cartilha “OKU ABO - Decálogo das Oferendas”.

O Decálogo foi escrito por integrantes da ONG Defensores da Terra e o templo

Ilê Omi Oju Arô, com apoio da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da ALERJ. O

Décalago pontua os cuidados que devem ser tomados na escolha do local para a realização

da oferenda, os “5 R’s das oferendas: reduzir, reaproveitar, reciclar, responsabilizar e

recolher”, o uso de materiais biodegradáveis nas oferendas, e ainda pontos polêmicos

entre os próprios religiosos como o uso, ou não, de velas e o tempo mínimo que a oferenda

precisa ficar na natureza. Desse modo, seus criadores focaram a necessidade de se discutir

as práticas adotadas nos rituais, levando em conta a importância de se admitir novas

atitudes que “dialoguem entre os saberes trazidos pelos religiosos e a proteção dos

recursos naturais”, ressaltando que a “destruição da natureza” seria resultado desse

desconhecimento e não da religião em si.

Nessa direção, os integrantes dos grupos de discussões dos seminários construíam

vínculos entre os conhecimentos dos religiosos “mais velhos” – na busca de elementos

que pudessem reformular as práticas das oferendas, entendidas como uma “volta às

origens” – a partir dos conhecimentos técnico-científicos dos ambientalistas. Além disso,

argumentava-se o uso da floresta dentro de um discurso ressignificado sobre a relação

dos ancestrais dos religiosos com a própria formação do Parque6, bem como a

diferenciação dos “religiosos” dos “simpatizantes”, demarcando aqueles a quem

deveriam ser atribuídos os “impactos” da natureza daqueles que desejavam a sua

proteção. Por outro lado, aqueles contrários à presença dos religiosos dentro do PNT

discutiam os danos que as práticas religiosas causavam àquele ambiente, em defesa da

proteção da floresta.

Quando um dos atores, que sempre participou ativamente desse processo, foi

escolhido para um cargo na Superintendência de Educação Ambiental da Secretaria de

Estado do Ambiente (SEAM/SEA), as pessoas favoráveis à criação do espaço sagrado

ficaram mais otimistas, passando a ver o momento como o mais favorável para a

concretização dos planejamentos arquitetônicos da Curva do S, já que o projeto havia

tornado uma pauta do próprio governo. Nesse momento foi criado o Elos da Diversidade.

6 Devido às crises de abastecimento de água na cidade do Rio de Janeiro, durante o período imperial, a área

atualmente pertencente ao Parque passou por um processo de reflorestamento. O projeto foi elaborado pela

administração da cidade, mas executado por escravos.

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O Elos da Diversidade pode ser entendido como uma política pública que tinha

três metas: a construção da infraestrutura do Espaço Sagrado, a regulamentação do seu

uso por meio de regras construídas em conjunto com os religiosos e atividades de

educação ambiental, que consistiam em oficinas com a finalidade de discutir a

reformulação das práticas religiosas e incentivar o uso de elementos biodegradáveis,

situando os grupos religiosos dentro de um contexto mais amplo dos discursos

ambientalistas de preservação da natureza. Além do mais, podia ser entendido como um

grupo formado por religiosos de matriz afro-brasileira (umbanda e candomblé), por

professores acadêmicos, por uma equipe de apoio administrativa e de eventos e, ainda,

por funcionários da SEAM/SEA7. Um conjunto de dez religiosos “mais velhos” –

considerados pelos membros do Elos, os mais tradicionais da cidade, tanto do candomblé

como da umbanda, chamados de Guardiões do Sagrado e da Natureza – finalizava a lista

dos integrantes. Embora, a participação dos “mais velhos” ficassem restritas aos eventos,

a influência deles era a garantia de credibilidade perante os religiosos de fora do projeto,

como veremos a seguir.

A magia-técnica na implementação do Espaço Sagrado da Curva do S

Uma das formas de entender a especificidade da política pública “Espaço Sagrado

da Curva do S” é a partir da relação entre os membros do projeto e as deidades afro-

brasileiras, ou melhor, a partir das características pessoais dos componentes do Elos com

as características dos guias e orixás. De certa forma, essa relação com as divindades

auxilia na compreensão de como os próprios integrantes do Elos viam o papel de cada um

dentro do grupo e como eram construídas as respectivas relações.

As qualidades e os defeitos, bem como as funções que as pessoas desempenhavam

dentro da própria religião, eram acentuadas por meio de relações jocosas (Radcliffe-

Brown, 1974), isto é, relações obrigatórias de brincadeira que podiam ser percebidas

como uma forma de interação entre pessoas de um mesmo grupo em que algumas destas

7 Os integrantes do Programa Ambiente em Ação – Elos da Diversidade dividem-se de acordo com os

seguintes cargos: 1)Secretário de Estado do Ambiente; 2) superintendente de educação ambiental e

coordenadora geral do Programa Ambiente em Ação; 3)coordenadora acadêmica do Programa Ambiente

em Ação; 4) coordenador do componente Elos da Diversidade; 5) coordenadora adjunta do componente

Elos da Diversidade; 6) coordenadora administrativa; 7) coordenador de logística; 8) coordenador do plano

integrado de comunicação; 9) moderadora; 10) articuladores e consultores de comunidades e povos de

terreiros; 11) assessor técnico religioso; 12) secretária e 13) equipe de produção. Para ver a função de cada

cargo, ver Boniolo (2014).

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estariam autorizadas a fazer brincadeiras e zombarias, sem que a outra parte se sentisse

ofendida, nem que gerasse hostilidade. A análise empreendida por Radcliffe-Brown,

sobre as relações de parentesco, mostrou que esse tipo de brincadeira não podia ser

pensada isoladamente. Quando acontecia uma relação caracterizada pela jocosidade,

ocorria ainda uma relação de evitação (Radcliffe-Brown, 1974).

Desse modo, as brincadeiras marcavam as interações dentro desse grupo, mas ao

mesmo tempo em que aproximavam as pessoas, produzia uma distância ao explicitar que

existiam outras hierarquias em disputa naquele ambiente. Em uma religião como o

candomblé, por exemplo, que é marcada pelos ritos de iniciação, esse tipo de relação é

importante para compreender não somente o lugar de cada um dentro do grupo, mas

também a maneira como eram construídas as relações, pautadas nos “atributos místicos

de suas divindades” (Silva, 2006, p.90).

A constituição dos membros do projeto privilegiou as pessoas que já participavam

das discussões sobre as oferendas desde o início, no PNT. Quando a incorporação de

outras pessoas era feita ao projeto, estas tendiam a ser indicadas pelos próprios membros.

Embora esse tipo de indicação possa conflitar com os princípios da burocracia-racional,

nas religiões de matriz afro-brasileira, os relacionamentos são efetivados por laços sociais

e de sangue, por isso, não seria contraditório que os nomes sugeridos fossem de pessoas

conhecidas.

Mesmo o projeto seguindo uma estrutura hierárquica e a função de cada um dentro

do grupo estivesse definida previamente, a seleção de pessoas para ocuparem os cargos

ia além de suas qualificações técnicas, era compreendida igualmente em relação às

designações das deidades. Se num primeiro momento essa indicação fugia a uma

racionalidade burocrática, por outro lado, garantia um diálogo mais próximo com os

membros dos cultos afro-brasileiros e as especificidades destas religiões. Não significava

dizer, no entanto, que as relações não fossem conflituosas entre os próprios membros do

Elos e destes com outros religiosos.

A articulação entre a Secretaria do Ambiente do Estado e a Universidade (UERJ)

atribuía um tom técnico ao programa, tornando para um dos membros do Elos um “fator

positivo” para que estes mobilizassem outros religiosos, de fora do projeto. Assim, a

universidade, formuladora de um conhecimento científico, garantiria uma visão de

seriedade junto aos religiosos. Isso aconteceria do mesmo modo com os funcionários do

Parque que compartilhavam com a academia o valor pelo conhecimento científico.

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Os membros do Elos procuravam articular o saber religioso ao saber científico,

valorizando-o dentro de um discurso vinculado aos discursos sobre a preservação

ambiental. Dessa forma, o conhecimento técnico e o conhecimento religioso se faziam

presentes o tempo todo nas reuniões e eventos do projeto. Como explicou um dos

membros:

“O discurso não é tão cartesiano, não é tão objetivo; tem as coisas

objetivas das organizações dos eventos e do conhecimento; mas ao

mesmo tempo tem uma ligação direta com o sagrado: ‘isso é coisa de

exu’, ‘o orixá quer’(...)” (Membro do Elos da Diversidade durante uma

reunião semanal).

Se a universidade e a trajetória profissional dos seus membros garantiam um

caráter técnico-científico ao discurso, por outro lado, o pertencimento às religiões afro-

brasileira pelos mesmos, sem dúvida, fazia muita diferença nos esforços de concretização

do projeto ao longo dos anos, tanto por parte dos membros do Elos como dos funcionários

do PNT.

A forma como o grupo desenvolvia suas ações tentando conciliar diferentes

discursos (religiosos e científicos) possibilita pensarmos o conflito entre o modelo

racional da burocracia e a forma como as políticas públicas são implementadas. Embora

houvesse um movimento por parte dos membros do Elos de valorizar o conhecimento dos

religiosos para a reformulação das práticas religiosas, as mudanças tomariam por base os

saberes técnicos das ciências da natureza: primeiro porque esta é a linguagem

característica da política pública; e segundo porque precisavam se posicionar diante dos

possíveis impedimentos dos funcionários do Parque usando as próprias categorias “da

conservação”. Além disso, era a linguagem que os coordenadores do Elos também

dominavam.

A ressignificação das práticas a partir de um discurso ecológico incidia em um

dos pontos principais da criação do “Espaço Sagrado da Curva do S”: a construção de

normas para o uso religiosos do espaço. Como política pública objetiva-se padronizar o

acesso e o uso do espaço a todos que procurarem o lugar para realizar seus ritos religiosos.

Se alguns membros do Elos diziam que era fundamental estabelecer regras de uso, uma

vez que trata de uma área que integra uma unidade de conservação, outros diziam que, ao

criá-las, o “Estado” estaria interferindo nas práticas dos cultos.

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A controvérsia (Latour, 2000) em torno das regras era pautada em duas ideias que

os membros do Elos tentavam articular: a ideia do que seria tradição – representando os

valores dos religiosos – e da modernidade – representando as mudanças das práticas

orientadas pelo saber científico sobre a natureza. Ora estes dois termos se articulavam e

se faziam presentes na interação entre os religiosos e as divindades, ora havia uma

tentativa em demarcar e separar os limites entre ambos.

De acordo com um dos membros, a mudança nas práticas era necessária porque

ao colocar uma oferenda em uma área de unidade de conservação, o religioso cometeria

um crime, podendo ser punido. No entanto, as mudanças não deveriam ser impostas de

forma arbitrária, mas feitas conjuntamente pelos religiosos e outros atores, como afirmou

um dos membros do Elos. Por isso, a presença dos guardiões, mesmo que apenas nos

eventos, ia além da legitimação das ações dos seus membros, mas também na tentativa,

por meio de suas experiências e de seus conhecimentos, de considerar os valores presentes

nessas religiões na construção das regras de uso do Espaço Sagrado.

A mudança “sem perder o fundamento” aparecia na análise feita por Mariana Silva

(2012) sobre a articulação dos religiosos de cultos afro-brasileiros, conhecidos como

batuqueiros, na região de Porto Alegre (RS), diante dos “ataques” de grupos

neopentecostais e de polêmicas sobre o uso de animais em rituais pela associação dos

defensores dos direitos dos animais, ressaltando a relação de suas divindades com a

natureza. No trabalho, Silva demonstrou como ocorria a depreciação destes religiosos na

sociedade, principalmente, pelo uso de sangue de animais nas oferendas que eram muitas

vezes associados às “práticas macabras” e de “magia negra”, e como os batuqueiros

buscavam dar soluções práticas para os elementos usados nos rituais dentro de um

discurso ambiental a partir da ideia de “oferenda ecológica” e da “sacralização dos

animais”.

Para Silva, “as religiões e suas tradições estão sempre se reinventando, se

repensando, dialogando com outros valores éticos e morais de acordo com a mudança na

sociedade brasileira” (2012, p.125). Dessa forma, os batuqueiros e umbandistas da cidade

de Porto Alegre reinterpretavam a religião como ecológica. E ser ecológico, segundo a

autora, “não é apenas um novo modo de fazer seus rituais, mas também é compreendido

como voltar às origens, à prática antiga do batuque, no tempo em que os ebós possuíam

até mais força mágica, quando eram feitos em cima da folha de bananeira” (2012, p.126-

127).

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As tentativas de adaptação a um contexto local e como os religiosos encontravam

soluções para essas dificuldades impostas fizeram parte da etnografia escrita por Halloy

sobre a instalação e fixação de um terreiro na cidade de Carnières – Bélgica. O autor

demonstrou as dificuldades que o chefe do culto encontrava na tentativa de adaptar o culto

aos “recursos humanos” e aos materiais disponíveis para a realização dos rituais. No

primeiro caso, a dificuldade estava relacionada em encontrar tocadores para acompanhar

os “rituais de saída do santo”, seja por estes não acreditarem na legitimidade de um culto

conduzido por um belga e branco; seja pelos percussionistas desconhecerem os “toques

específicos” das cerimônias, o que atrapalhava a condução do culto, pelo consumo de

bebidas ou drogas antes das cerimônias pelos músicos, e ainda, de encontrar as plantas

que pudessem ser trocadas para a realização dos rituais.

Pensando a construção do Espaço Sagrado como uma política pública, o primeiro

desafio que os membros do Elos precisaram lidar foi com o “tempo”. O tempo da política

pública era marcado por cronogramas de atividades e cumprimento da programação

dentro dos prazos estipulados. Assim, era preciso que todos aqueles que estavam

empenhados em sua implementação trabalhassem conjuntamente e realizassem dentro do

tempo determinado o que cada um ficou incumbido de executar. Constantemente eram

verificadas as datas finais de cada etapa do projeto nas reuniões. Quando estas estavam

próximas, os coordenadores cobravam as ações de seus responsáveis. Essa temporalidade

definida por meio de um calendário precisava lidar com outra temporalidade: o tempo

dos orixás e das entidades, que era apreendido pelos religiosos a partir das narrativas dos

“mais velhos”. Nesse sentido, os encontros com os pais e mães de santo tradicionais da

cidade era uma forma de os membros do Elos compreenderem os valores da religião

apresentados em formas de mitos e lembranças de tempo pretéritos a fim de serem

traduzidos (Latour, 2000) em uma linguagem do direito. Desse modo, os membros do

Elos atuariam como porta-vozes das deidades na consolidação do “Espaço Sagrado da

Curva do S” a partir dos saberes técnico-científicos da conservação.

A aparente falta de objetividade dos encontros para uma pessoa de fora da religião

demonstrava claramente como o conhecimento é transmitido nas religiões afro-

brasileiras. Em muitas ocasiões tive dificuldade para entender o objetivo desses encontros

que eram marcados pela narração de histórias. Segundo Vagner Silva, o conhecimento no

candomblé é “apresentado em forma de parábolas, de mitos, de casos aparentemente sem

sentido imediato (...). Um conhecimento que o ouvinte só lentamente vai juntando para

constituir sua compreensão da religião” (2006, p.45). Dessa maneira, nos encontros com

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os guardiões, ao incentivar que estes contassem como deveria ser o comportamento dos

filhos no terreiro, a ex-superintendente – que também era do candomblé – pretendia que,

a partir das histórias contadas, “os valores centrais” da religião aparecessem para nortear

as regras do Espaço Sagrado da Curva do S. Tal forma é diferente do que se espera num

documento “técnico” oficial.

Construir política públicas em conjunto com os “povos de santo” demandava,

portanto, uma preocupação em entender esse tempo não linear, esse tempo que é

experimentado na vivência do terreiro e nas falas dos “mais velhos”. Assim, se a

veiculação dos membros do Elos com as religiões afro-brasileiras era vista com

desconfiança para quem estava de fora do projeto e desqualificado por fugir à lógica da

burocracia racional, permitia aos membros avançar em determinadas discussões por

conhecerem os “valores” da religião.

Os “valores” que marcavam a tradição apareciam nas narrativas de forma

saudosista e iam além de um tempo passado, consolidando-se nos aspectos que os “mais

velhos” consideravam centrais na prática religiosa, como a oralidade e a hierarquia,

ambas refletidas na ação de ouvir atentamente os ensinamentos dos mais velhos. Se

considerarmos que o sucesso do projeto dependia, com ou sem a sua implementação, de

que os religiosos e frequentadores da Curva do S se sensibilizassem sobre a reformulação

de suas práticas, não bastava que alguns elementos fossem trocados durante o ritual por

outros, era preciso focar nas diferenças e necessidades presentes dentro de cada culto, por

isso os encontros com os guardiões.

Em relação ao projeto “Espaço Sagrado da Curva do S”, a questão principal

quando se pensa a reformulação das práticas rituais, mais do que articular os “saberes da

conservação com os saberes da tradição”, ou uma “volta às origens”, é saber se os actantes

estão de acordo com as mudanças. Como explicaram dois religiosos “mais velhos”, na

umbanda quem determina os elementos que serão utilizados são as entidades. Logo, as

mudanças nas práticas passariam pelos mesmos. Nesse caso, a agência dos não humanos

se sobressaía a dos humanos. Já no candomblé, as mães e os pais de santo além de serem

sensibilizados, precisavam de meios para que estas mudanças se concretizassem durante

o ritual e para que possam negociá-las com as entidades. Apesar de ser uma religião

fundamentada na natureza, a maior parte dos terreiros se localizam no espaço urbano.

Dessa maneira, não bastaria trocar, por exemplo, o alguidar por uma determinada folha,

uma vez que não tendo acesso a esta ou o alto custo de alguns materiais, comprados em

locais específicos, tornaria o ritual inviável de ser concretizado.

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Assim, era preciso envolver os não humanos na formulação da política pública,

tendo em vista que nenhuma mudança ou reformulação seria possível se os mesmos não

estiverem de acordo. Embora não fossem explicitados nas reuniões, os não humanos

participaram ativamente do projeto, já que eram consultados para saber os rumos a serem

tomados, através dos trabalhos individuais que seus membros faziam e nas consultas8 nos

dias de festa. Por isso, o pertencimento dos membros do Elos às religiões afro-brasileiras

não deve ser visto como um empecilho à construção da política pública, mas sim como

uma forma possível de direcionar as ações de forma específica devido ao

compartilhamento das mesmas cosmologias.

Ao pensarmos o projeto “Espaço Sagrado da Curva do S” o sagrado perpassava

todas as ações de seus integrantes. Entretanto, a objetividade, caracterizada pela técnica,

também estava presente entre os membros do Elos. Podia ser vista na forma como o texto

do projeto foi escrito; nas ações a serem executadas, descritas por meio do uso de verbos

no infinitivo, marcando a impessoalidade dos sujeitos a quem a mesma era destinada; na

padronização das ofertas e serviços aos religiosos de matriz afro-brasileira; na

participação dos especialistas; na construção de um relatório de atividades; na prestação

de contas e nas demais ações. Magia e técnica, portanto, compunham um conjunto, muitas

vezes não harmônico, em que uma se sobrepunha à outra de acordo com o contexto em

que seus usos precisavam ser acionados. Assim sendo, o desencantamento do mundo que

abriu portas para a “técnica” e para a “ciência”, como vimos, não excluía a “magia” da

política, nem das ações dos atores envolvidos na implementação das políticas públicas

Cabe sublinhar que essa relação não é uma característica apenas dos religiosos de

matriz afro-brasileira. De acordo com Vital da Cunha e Lopes, quando os pentecostais se

organizaram com o “temor” de que a Igreja Católica ampliasse seus privilégios na

formulação da Constituição de 1988, consideravam como justificativa para ocupar o

campo político a defesa dos valores da família, por isso “(...) precisavam se organizar

para atuar contra ativistas homossexuais e feministas, bem como contra os defensores da

umbanda e do candomblé”. Como consequência, os católicos que atuavam até a

Constituinte “por meio de lobby e de acesso privilegiado de religiosos do CNBB ao

governo e aos políticos” (VITAL DA CUNHA e LOPES, 2012, p. 41), posteriormente,

passaram a se organizar em frentes parlamentares.

8 Consulta é o momento do rito de umbanda no qual o médium, incorporando seus guias espirituais, fornece

conselhos, orientações em relação a um problema ou dificuldade que o consulente esteja passando.

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Na implementação da política pública “Espaço Sagrado da Curva do S”, técnica e

magia se faziam presentes em todos os domínios e em todas as ações dos integrantes do

Elos da Diversidade. Não pretendi classificar as ações do Elos enquadrando-as como

fundamentadas na magia ou na técnica, mas mostrar que estes termos fazem parte de um

conjunto, e que, portanto, não podem ser pensados isoladamente, mas de forma relacional

e dinâmica (Dumont, 2008). Eram essas duas ideias, acionadas em contextos diferentes,

que legitimavam as ações do Elos para os demais religiosos e para os representantes do

Estado, funcionários do PNT e aqueles contrários à presença dos religiosos nas áreas do

Parque.

Considerações Finais

Ao dizer que a técnica e a magia estavam presentes nas ações dos integrantes do

Elos da Diversidade, atuando conjuntamente e de forma relacional, pretendi demonstrar

que esses dois termos não são contraditórios quando se pensa a implementação de

políticas públicas, mas complementares e que, portanto, não podem ser isolados na

análise. A todo o momento eram feitas referências às divindades para justificar a

construção da política pública, de cujo sucesso dependia de que as práticas reformuladas

fossem aprovadas por elas. A presença constante dos não humanos nos discursos era uma

forma de legitimar as ações dos membros do Elos perante os religiosos, dentro e fora do

projeto. Às deidades também eram atribuídos os “encontros” que marcavam as

associações nas redes tecidas pelos atores durante o longo processo de criação do projeto

de construção do Espaço Sagrado. Da mesma forma que a elas se dirigiam os pedidos

para que o projeto de criação do Espaço Sagrado fosse concretizado. Por outro lado, havia

a necessidade de construir as ações pautadas em argumentos técnico-científicos para

justificar e legitimar a própria política pública para aqueles de fora da religião ou

contrários à criação do Espaço Sagrado. As duas ações, no entanto, aconteciam de forma

conjunta: ao mesmo tempo em que era discutida a planilha de gastos dos materiais que

seriam usados nos eventos, pedia-se à divindade que não chovesse no dia marcado.

Assim, ao mapear como as redes foram tecidas pelos atores até chegarem ao Elos

da Diversidade busquei demonstrar, mesmo que brevemente, as estratégias

argumentativas e práticas que foram utilizadas para a criação de um espaço visto – pelos

atores que participam das discussões sobre as práticas religiosas dentro do PNT – como

uma solução para o conflito entre os rituais com oferendas e as leis de proteção ambiental

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dentro de uma unidade de conservação. A criação deste espaço para os membros do Elos,

no entanto, não estava ligada apenas às garantias das práticas rituais das oferendas, mas,

principalmente, a um ato de “respeito” às religiões que durante muitos anos foram

perseguidas e criminalizadas pelos agentes do Estado.

A argumentação para defender os interesses dos membros do Elos, na busca por

acesso ao espaço público e no reconhecimento dos direitos dos religiosos pelos agentes

do Estado fazia com que a técnica e a magia, agindo conjuntamente, perpassassem outras

áreas do conhecimento, ou ainda, que acionassem novas redes. Em vista disso, mesmo

que o tempo da política pública fosse ditado pelas eleições e o Elos tenha chegado ao fim

sem ter conseguido executar a implementação da infraestrutura e das regras de uso do

Espaço Sagrado, o projeto continuava. O projeto iniciado em 1996/1997 está longe de ser

concretizado, mas isso não desanimava aqueles que participaram/participam desse

processo: “os orixás não são lentos, eles são caprichosos”, afirmou um dos membros do

Elos. Em um tom confiante, outro respondeu: “o que são 17 anos para eles? Nada!”. A

dúvida e a incerteza dos novos rumos são constantes, a única certeza é de que para seguir

em frente com a “luta” é preciso articular e restabelecer alianças e/ou traçar novas

estratégias.

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