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OrganizadoresMalcolm Coulthard

Virgínia Colares

Rui Sousa-Silva

Linguagem e Direito:os eixos temáticos

Recife, 2015.

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Créditos

Editora: Associação de Linguagem e Direito

Organização: Malcolm Coulthard,Virgínia Colares, Rui Sousa-Silva

Design da capa: Java Araújo

Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz

L755 Linguagem & Direito : os eixos temáticos [e-book] / organizadores Malcolm Coulthard, Virgínia Colares, Rui Sousa-Silva. -- Recife : ALIDI, 2015. 437 p. : il.

ISBN 978-85-69409-00-7 (E-Book)

1. Direito - Linguagem. 2. Linguagem e línguas. I. Coulthard, Malcolm. II. Colares, Virgínia. III. Sousa- Silva, Rui.

CDU 34:800.866

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Diretoria Biênio 2014-2016

Virgínia Colares (UNICAP)Presidente

Malcolm Coulthard (UFSC)Vice-Presidente

Vinicius de Negreiros Calado (UNICAP)1º Secretário

Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)2ª Secretária

José Antônio Albuquerque Filho (FACIPE)Tesoureiro

Carmen Rosa Caldas-Coulthard (UFSC)Diretora de Fomento à Pesquisa

Rui Sousa-Silva (Univ. do Porto)Diretor de Relações Internacionais

Lucia Gonçalves de Freitas (UEG)Diretora de Cultura

Conselho Fiscal

Valda de Oliveira Fagundes (EDAF)

João Pedro Chaves Valladares Pádua (UFF-RJ)

André Luiz de Oliveira Almeida (UFPR)

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Conselho Editorial

Alexandre Freire Pimentel (UNICAP/ UFPE)

Ana Cláudia Pinho (UFPA)

Anabela Leão (Universidade do Porto)

Belinda Maia (Universidade do Porto)

Carmen Rosa Caldas-Coulthard (UFSC)

Claudio Regis de Figueiredo e Silva (ESMESC)

Conceição Carapinha (Universidade de Coimbra)

Érica Babini Lapa do Amaral Machado (UNICAP)

Fernanda Frizzo Bragato (UNISINOS)

Jayme Benvenuto de Lima Jr. (UNILA)

João Pedro Chaves Valladares Pádua (UFF-RJ)

Lucia Gonçalves de Freitas (UEG)

Luiz Henrique Urquhart Cademartori (UFSC)

Malcolm Coulthard (UFSC)

Marcelo Pereira de Mello (UFF-RJ)

Marcus Alan Melo Gomes (UFPA)

Marília Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP/ UFPE)

Patrícia Jerónimo (Universidade do Minho)

Paulo Cortes Gago (UFRJ)

Rui Sousa-Silva (Universidade do Porto)

Virginia Colares (UNICAP)

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Sobre os autores

ANA VIRGÍNIA CARTAXO ALVES é professora da Associação Pa-raibana de Ensino Renovado - ASPER, onde é leciona disciplinas na área de Direito Civil e Direito Constitucional do curso de Graduação em Direito. Possui Pós-graduação lato sensu em Direito Processual Civil. É aluna do curso de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. É pesquisadora cadastrada no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, atua em dois grupos de pesquisa junto à Universidade Católica de Pernam-buco: no grupo de pesquisa Linguagem e Direito, liderado pelos Professores Doutores Virgínia Colares e Malcolm Coulthard, e no grupo de pesquisa Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direi-tos, liderado pelo Professor Doutor João Paulo Allain Teixeira. É advogada, sócia fundadora do escritório Cartaxo, Paulino & Loureiro Advocacia, se-diado na cidade de João Pessoa, Paraíba. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8759454660341204

ARTUR STAMFORD DA SILVA é professor da Faculdade de Di-reito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Pesquisador 1D do CNPq. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPE e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE. É membro do Grupo de Pesquisa Moinho Jurídico, membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito e membro do Instituto de Estudos da América Latina da UFPE. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4797637E3

BRUNA BATISTA ABREU é bolsista do CNPq. É Bacharel e Licen-ciada em Letras com habilitação em Letras Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem da mesma Universidade. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: http://buscatextu-al.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4265547D3

BRUNO LEMOS HINRICHSEN é mestrando em Filosofia pela Uni-versidade Federal de Pernambuco (UFPE), Bacharel em direito pela Uni-versidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e bacharelando em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com período sanduí-che na Eberhard Karls Universität Tübingen. Exerce Iniciação Científica/

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UFPE, e exerceu PIBIC/UNICAP. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4439013D8

CAROLINA SALAZAR L. Q. DE MEDEIROS é mestre em Direi-to pela UNICAP. Professora de Direito Penal da UNINASSAU. Pesquisado-ra do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2537565388560704

CAROLINE ALVES MONTENEGRO Possui graduação em direito pelo Centro Universitario de João Pessoa (2002), especialização em pro-cesso civil (2004) e especialização em ciências criminais (2006) no mes-mo centro universitário. Mestrado em Direito na Universidade Católica de Pernambuco/ UNICAP (2014). Tem interesse e pesquisa nas áreas de Di-reito Constitucional; Direitos Humanos, Sistema Interamericano; Direito Internacional; Direito Civil e Ciências Criminais. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2648205966403652

CAROLINE DE ARAÚJO PUPO HAGEMEYER é professora na Fa-culdade Guairacá e na rede Estadual de Ensino do Paraná. É licenciada em Letras Português-Inglês pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Da mesma instituição, também é Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Lingua-gem. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?i-d=K4718651U6

CRISTHOVÃO FONSECA GONÇALVES é mestrando pelo Progra-ma de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambu-co. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal, atuando no tema de Política Criminal de Drogas. Membro da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA)CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6248204744575873

DANIELA NEGRAES PINHEIRO ANDRADE é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), tendo realizado doutorado sanduíche na University of California Los Angeles (UCLA). É membra participante do grupo Fala-Em-Interação, coordenado pela Profa. Dra. Ana Cristina Oster-mann e membra participante da International Gender and Language Asso-ciation (IGALA). Trabalha com ensino de inglês como língua estrangeira. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplica-da, atuando nos seguintes temas: identidade discursiva, fala em interação,

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análise da conversa, polícia civil, tribunal, hospital. CV Lattes: http://lat-tes.cnpq.br/7495899332518368

DANIELE NUNES DE ALENCAR é graduada em Direito pela UNI-CAP. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1560097776121934

DÉBORA DE LIMA FERREIRA é mestranda em Direito pela Uni-versidade Católica de Pernambuco - bolsista CAPES/PROSUP. Pesquisado-ra do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3179784078932714

DEYVID BRAGA FERREIRA é Mestre em Educação, pelo Progra-ma de Pós Graduação em Educação da UFAL (PPGE/ CEDU/UFAL). Inte-gra o grupo de pesquisas Políticas Públicas: História e Discurso, na linha de pesquisa História e Política da Educação. Possui Especialização em Direito Processual pela ESMAL (2006), cursando atualmente especialização em Mídias na Educação pela Coordenadoria Institucional de Educação a Dis-tância da UFAL (2014). É formado em Ciências Jurídicas e Sociais pelo CESMAC/ AL (2005). Ingressou nos quadros da Polícia Civil do Estado de Alagoas em 2003, onde permanece até a presente data. É Docente nas se-guintes instituições: Policia Militar de Alagoas (Academia de Polícia Militar - APM e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças - CFAP), Polícia Civil de Alagoas (Academia de Polícia) e da Faculdade Raimundo Marinho, onde integra não só o corpo Docente, mas de professores do Nú-cleo Docente Estruturante (NDE/ Colegiado do Curso de Direito). Atua, também, como tutor da Rede de Educação a Distância da Secretaria Nacio-nal de Segurança Pública (EAD/ SENASP/ MJ). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em: Direitos e Garantias Fundamentais, Direito Cons-titucional, Direito Civil, Ciências Políticas e Economia Política. Atua princi-palmente nos seguintes temas: Segurança Pública Multifaceada, Docência no Ensino Superior, Utilização das TIC’s nos cursos de capacitação onli-ne, Políticas Educacionais (com ênfase em Segurança Pública), Educação Brasileira (com ênfase em Segurança Pública), Análise de Discurso (linha francesa de Pêcheux), Tecnologias Bélicas Leves e Direitos Humanos. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6397177270230965

DIEGO JOSÉ SOUSA LEMOS é mestrando em Direito pela UFPE. Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: http://lat-tes.cnpq.br/7420817694410409

ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO é doutora em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da UNICAP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7784333143703014

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FERNANDO JOSÉ DE SOUZA FILHO é mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Realizou curso na Universitá di Pisa, Alta Formazione in Giustizia Constituzionale (2013). Delegado de Polícia Civil de Pernambuco. Professor de Direito Penal da Faculdade Boa Viagem. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7314354278678980

IDALINA CECÍLIA FONSECA DA CUNHA é pós-graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental (PUC-MG) e Bacharel em Direito pela Uni-versidade Católica de Pernambuco (UNICAP) com período sanduíche na Universidad de Salamanca (USAL). Advoga na área de Direito Público com ênfase em Direito Tributário e Administrativo. Ensina Direito Tributário no Pejuris Cursos Jurídicos. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/busca-textual/visualizacv.do?id=K4367887U9

JOÃO PAULO FERNANDES DE SOUZA ALLAIN TEIXEIRA é Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mes-tre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho pela Universidad Internacional de Andalu-cía, Espanha (2000), Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Coordenador do Pro-grama de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernam-buco. Avaliador “ad hoc” do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-cacionais Anísio Teixeira do Ministério de Educação (MEC/INEP). Membro da Comissão de Qualificação de Eventos da CAPES, área Direito. Líder do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional Democracia e Constituciona-lização de Direitos” na Plataforma Lattes. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3719496592232660

JOSÉ ANTÔNIO DE ALBUQUERQUE FILHO tem especialização na área de Processo Civil e Civil pela Escola Superior de Magistratura de Pernambuco e Mestrado de Direito pela Universidade Católica de Pernam-buco. Atualmente é Professor da Faculdade São Francisco da Paraíba - FASP, da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central - FACHUSC e inte-grante da Associação de Linguagem e Direito - ALIDI. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5074903985611257

JULIA RODRIGUES TABOSA é graduada em Direito pela Universi-dade Federal de Pernambuco. Exerce o cargo de Analista Judiciário do Tribu-nal de Justiça de Pernambuco, atuando como assessora jurídica da 2ª Vara da Fazenda Pública. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6089172285385154

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JULIANA DE BRITO GIOVANETTI PONTES é advogada. Mestra em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2013), na qualidade de bolsista da CAPES. Possui graduação em Direito pela Universidade Ca-tólica de Pernambuco (2011). Atua no Grupo de Pesquisa Jurisdição Cons-titucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos - UNICAP. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4994802161065885

KÁTIA ELIANE MUCK é Bacharel em Letras e Licenciada com habilitação em Letras Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Da mesma instituição, também é Mestre em Letras/Inglês e Doutoranda do Programa de Pós-Gra-duação em Inglês na área de Estudos da Linguagem. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6203189529242782

LÍVYA RAMOS SALES MENDES DE BARROS é advogada, mes-tre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS da Universidade Federal de Alagoas UFAL. Bacharel em Direito pela Faculdade de Alagoas – FAL. Especialista em Direito e Processo Penal pelo Centro de Estudos Su-periores de Maceió – CESMAC. Atualmente, é professora de Direito Penal I, Direito Penitenciário e Execução Penal, Criminologia e Sociologia Jurídica no Curso de Direito da Fundação Educacional do Baixo São Francisco Dr. Raimundo Marinho – FRM Maceió e professora de Direito Penal III e Direito Penal IV no Curso de Direito da Fundação Educacional do Baixo São Fran-cisco Dr. Raimundo Marinho – FRM – Penedo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Condição Feminina (ICS/UFAL) e membro dos Grupos de Pesquisa “Gênero e Emancipação Humana” e “Trabalho e Capi-talismo Contemporâneo” (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-co e Tecnológico CNPq). Trabalhou realizando pesquisa no Centro de Apoio às Vítimas de Crime de Alagoas (CAVCRIME). É advogada do Centro de Re-ferência em Cidadania e Direitos Humanos de Alagoas CRCDH/AL vincula-do a Secretaria de Estado da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos – SEMCDH.CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7066126299302801

LÚCIA GONÇALVES DE FREITAS é doutorada em Lingüística pela Universidade de Brasília (UnB). Foi bolsista do Programa de Estágio de Doutorado no Exterior (PDEE), pela CAPEs, tendo sido pesquisadora visi-tante no Center for Advanced Research in English, na Universidade de Bir-mingham, Inglaterra. É professora do Mestrado Interdisciplinar Educação, Linguagem e Tecnologia da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Atua como colaboradora no Grupo de Pesquisa Observatório da Justiça Brasileira da UFRJ e no Grupo de Estudos de Narrativa da PUC-Rio.

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LUCIANE FRÖHLICH é Doutora em Estudos da Tradução pela UFSC, com tese direcionada às particularidades da linguagem de textos jurídicos brasileiros. Trabalha como linguista forense e perita ad hoc em in-terpretações e traduções jurídicas na área de alemão. É membro da ALIDI e do grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. Integra o corpo do-cente do IPEBJ e o corpo editorial da revista Language and Law/ Linguagem e Direito. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4500511891405124.

LUIS CLÁUDIO AGUIAR GONÇALVES é doutorado do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, participando do projeto de pesqui-sa “Mídia, memória discursiva, efeitos de sentidos e corrupção política no Brasil”, vinculado à linha de pesquisa “Memória, Discursos e Narrativas”. Foi bolsista de Iniciação Científica durante a graduação, atuando no PRO-GRAMA DE BOLSAS DE ESTUDO NO PAÍS - FAPESB/UESB. Membro da Associação Brasileira de Linguística - ABRALIN e do Laboratório de Análise de Discurso - LAPADis, Departamento de Estudos Linguísticos e Literários - DELL, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, “Cam-pus” de Vitória da Conquista - BA. É pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso - GPADis, cadastrado no CNPq e autoriza-do pela UESB, com experiência na área de Linguística, ênfase em Análise de Discurso de Linha Francesa, atuando principalmente nos seguintes te-mas: memória discursiva e interpretação, posição-sujeito e efeitos de senti-do, discurso político e discurso jurídico, corrupção política e Lei da “Ficha Limpa”, filosofia e hermenêutica jurídica. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3008779335656628

MALCOLM COULTHARD é professor visitante no Programa de Pós--Graduação em Inglês da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor emérito da universidade de Aston, Inglaterra. É co-autor do An In-troduction to Forensic Linguistics, co-organizador do Handbook of Forensic Linguistics e co-editor da revista Language and Law – Linguagem e Direito. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC e líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito na Plataforma Lattes do CNPq .CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?i-d=K4377556T5

MARCELA DE ANDRADE NUNES é graduada em Direito pela UNICAP. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1564191068761009

MÁRCIA CRISTIANE NUNES SCARDUELI é Agente de Polícia Civil em Santa Catarina, Professora da ACADEPOL/SC, Mestre em Ciên-cias da Linguagem e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ci-

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ências da Linguagem da Universidade da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), onde também é professora. É colaboradora do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC e tem interesse por pesquisas em Análise do Discurso, gênero, violência doméstica e Lei Maria da Penha. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4127297H4

MARIA DA CONCEIÇÃO FONSECA-SILVA é bolsista de produ-tividade em pesquisa do CNPQ - nível 2 - CA LL - Letras e Linguística. Pós-Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2006/2007). Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Cam-pinas (2003). Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campi-nas (1998). Pesquisadora nível 2 do CNPq. Atualmente é professora Titular/Pleno do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, da Universida-de Estadual do Sudoeste da Bahia, onde atua como professora pesquisadora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PP-GLin-Uesb) e do do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMEMORIALS-Uesb). Atuou na Co-ordenação do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e So-ciedade (PPGMEMORIALS-Uesb), desde a implantação do curso de mes-trado em 2008 ate fevereiro de 2013, início do segundo ano da implantação do curso de doutorado. É co-editora do periódico Estudos da Língua(gem). É líder do “Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso” (GPADis/Uesb/CNPq) e do “Grupo de Pesquisa em Estudos da Língua(gem)” (GPEL/Uesb/CNPq). Tem experiência na área de disciplinar de Linguística e na área multidis-ciplinar de Memória, com ênfase em Análise de Discurso, atuando prin-cipalmente nos seguintes temas: efeitos-sujeito e efeitos-sentido, memória discursiva, discurso político e discurso jurídico, corrupção política, mídia, sujeito mulher. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5506513991215666

MARIA EMÍLIA MIRANDA DE OLIVEIRA QUEIROZ é coorde-nadora de Operações Acadêmicas do curso de Direito, da Faculdade Boa Viagem/De Vry. Professora da UNIFAVIP DeVry. Mestre em Direito pela UNICAP, onde foi bolsista CAPES. Durante o mestrado, fez intercãmbio aca-dêmico na Universidade Federal de Santa Catarina (PROCAD - 2 trimes-tres). Especialista pela Esmape/FMN. Graduada em Direito pela UNICAP, onde foi monitora e pesquisadora de Iniciação Científica (PIBIC/ CNPq). Membro do grupo Direito e Linguagem. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6617577681727619

MARÍLIA MONTENEGRO PESSOA DE MELLO é doutora em Direito pela UFSC. Professora de Direito Penal e Criminologia da UNICAP e da UFPE. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6805740308488856

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MARINA PIOVESAN GONÇALVES é bolsista CNPq. É licenciada em Letras Português/Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinen-se - UNESC. É Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na área de Estudos da Linguagem e Tradução. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4447821H6

MAURILO SOBRAL é mestrando em Direito pela UNICAP, Educa-dor Social pelo IASC, integrante do grupo Asa Branca de Criminologia, advogado. CV Lattes:http://lattes.cnpq.br/7462478304351633

MIQUÉIAS RODRIGUES é professor na Universidad Mayor, Santia-go. Ele é licenciado em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É mestre e doutor em Letras/Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9650373387755170

NAIRA CELI PEREIRA VINHAS é graduada em Direito pela UNI-CAP. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7341667028217587

PEDRO SPÍNDOLA BEZERRA ALVES é mestre em direito pela UFPE, bacharel em direito pela UNICAP, professor de direito constitucional e processo civil da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central e Advogado na área cível. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/busca-textual/visualizacv.do?id=K4416755P6

RUI SOUSA-SILVA é investigador do Centro de Linguística da Uni-versidade do Porto (CLUP), onde estuda linguística forense aplicada ao con-texto português e à língua portuguesa. É pós-doutorando em kinguística forense, nomeadamente em cibercrime, em colaboração com o Ministério Público de Portugual. Desenvolve, paralelamente, trabalhos de consulto-ria em linguística forense. Possui doutoramento em Linguística Aplicada, na vertente de Linguística Forense, pela Aston University, de Birmingham (Reino Unido), onde apresentou e defendeu com máximo êxito a tese: “De-tecting Plagiarism in the Forensic Linguistics Turn”. É autor e coautor de vários artigos dedicados à análise de autoria e coeditor, juntamente com o Professor Malcolm Coulthard, da revista Language and Law / Linguagem e Direito. É membro da ALIDI - Associação de Linguagem e Direito dos países de Língua Portu guesa, da APL - Associação Portuguesa de Linguística e da IFL - International Associatio of Forensic Linguists, e do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. Interessa-se pela investigação em linguís-tica forense, em geral, e por deteção de plágio e análise de autoria aplicada

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a contextos de investigação policial, em particular. CV Lattes http://lattes.cnpq.br/0407778486256721

SABRINA SILVEIRA DE SOUZA JORGE é bacharel e licenciada em Letras com habilitação em Língua Inglesa e Literaturas Corresponden-tes pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem o título de Mestre pela UFSC e agora é doutoranda, bolsista da CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem da mesma Universidade. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visuali-zacv.do?id=K4731884D6

VINICIUS DE NEGREIROS CALADO é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especializa-ção em Direito Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática Jurídica na UNI-CAP (desde 2011). Atuou na Universidade Salgado de Oliveira - UNIVER-SO (2004-2014), já tendo sido coordenador do Curso de Direito daquela instituição entre 2005 e 2007. Sócio fundador (2010) e vice-presidente da FEPODI - Federal Nacional dos Pós-graduandos em Direito (2011-2013). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pós-graduandos em Direito (2010-2012). É ainda advogado do Sindicato dos Médicos de Pernambuco, além de sócio do escritório Calado & Souza Advogados Associados. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PE (2013-2015). Apresentou 6 trabalhos no CONPEDI. Publicou 4 artigos em periódicos especializados e 5 capítulos de livro. Possui 3 livros pu-blicados. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Civil/Relações de Consumo. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na contextu-alização da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: Relação de Consumo, Responsabilidade Civil, Direito Médico e Planos de Saúde. CV Lattes http://lattes.cnpq.br/2328562382853560

VIRGÍNIA COLARES é doutora (1999) em Linguística pela Uni-versidade Federal e Pernambuco (UFPE). Realizou estágio pós-doutoral em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) Integra o Grupo de Pes-quisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes) e a International Language and Law Association (ILLA). Atualmente está como presidente da Asso-ciação de Linguagem & Direito – ALIDI. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7462069887119361

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Apresentação

INTERFACES: terceira margem do rio 1

“Margem da palavraEntre as escuras duas

Margens da palavraClareira, luz madura

Rosa da palavraPuro silêncio, nosso pai”

Caetano Veloso/ Milton Nascimento

Este livro “Linguagem & Direito: os eixos temáticos”, organizado por Mal-colm Coulthard, Virgínia Colares e Rui Sousa-Silva, patrocinado pela Asso-ciação de Linguagem & Direito (ALIDI), foi construído a partir do diálogo entre esses dois domínios de saber, reúne quarenta pesquisadores desde os sêniores aos iniciantes com o propósito de estreitar o diálogo e estabelecer eixos temáticos nessa interface.

A ideia da terceira margem do rio remete a uma espécie de entrelugar que a transdisciplinaridade evoca. O art. 3 da Carta da Transdisciplinaridade 2afirma:

A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.

Assim, com esse propósito, realizamos o primeiro congresso “Lingua-gem & Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Di-

1. Agradeço a José Lindomar Albuquerque (UNIFESP) de quem ouvi o uso dessa alegoria numa remissão “A terceira margem do rio”, uma das narrativas que compõem o volume Primeiras estórias, do mineiro João Guimarães Rosa, publicado originalmente em 1962. A epígrafe traz uma estrofe da letra de Caetano Veloso e Milton Nascimento para a melodia com o mesmo título “A Terceira Margem do Rio”.

2. Adotada no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado no Convento de Arrábida, Portugal, 2 - 6 novembro, 1994; cujo comitê de redação foi constituído por Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu.

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reito” para construir coletivamente procedimentos teórico-metodológicos que subsidiem as reflexões acadêmicas sobre o discurso jurídico e judicial e sobre os papéis institucionais desempenhados pelo Poder Judiciário no Bra-sil, cujos atos processuais são mediados pela linguagem e têm a linguagem como suporte.

A Linguística Forense é uma disciplina acadêmica oriunda dos países de língua Inglesa. O pesquisador britânico Malcolm Coulthard, um dos or-ganizadores deste livro, atuou oficialmente como perito em mais de duzen-tos casos perante tribunais na Inglaterra, Alemanha, Hong Kong, Irlanda do Norte e Escócia. Na Grã-Bretanha, em 1993, fundou com outros investiga-dores a Associação Internacional de Linguistas Forenses (International As-sociation of Forensic Linguists, IAFL). Hoje, Malcolm Coulthard é docente permanente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e profes-sor emérito de Linguística Forense da Universidade de Aston, Birmingham, Grã-Bretanha.

No momento, o Brasil vive uma efervescência nesta interface dos es-tudos da Linguagem e do Direito pela demanda emergente de conhecimen-to da natureza da linguagem em uso no âmbito jurídico. Um dos fatores mo-bilizadores é a Lei n° 13.105/15, o Novo Código de Processo Civil brasileiro que exige dos juristas (juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público) maior conhecimento da interação interpessoal, pois são estimulados a ouvir e promover a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos.

A linha de pesquisa Linguagem & Direito consiste nessa criativa cons-trução de metodologias pela aplicação de princípios e teorias aos dados au-tênticos coletados no âmbito jurídico. A Associação Internacional de Lin-guistas Forenses (IAFL) (http://www.iafl.org/forensic.php) assegura que em seu sentido mais amplo, “a linguística forense” abrange todas as áreas onde o direito e a linguagem se entrecruzam e se encontram.

Em 03 setembro de 2012, na Universidade Católica de Pernambu-co, no Recife-PE, foi criada a Associação de Linguagem & Direito (ALIDI) (http://www.alidi.com.br/) com pesquisadores de todo o Brasil e dos demais países da comunidade de língua portuguesa interessados nos diversos e plu-rais estudos da Linguagem em suas interfaces com o Direito. A ALIDI tem como propósito promover, desenvolver e divulgar a Linguística Forense, os estudos do Discurso Jurídico, as situações de Interação em contextos legais e o diálogo entre as Teorias do Direito e do Processo Judicial e as Teorias da Linguagem.

Este livro está organizado em cinco partes, a seguir:

Parte I: LINGUÍSTICA FORENSE - que trata do estudo da linguagem como evidência, como nos casos de direitos autorais e plágio, identificação de locutor e comparação de vozes, questões de publicidade, marcas, ad-vertências de produtos de consumo, disputas contratuais e demais gêneros

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textuais envolvidos numa lide ante o judiciário. Nesses casos os linguistas atuam como peritos na justiça.

Parte II: DISCURSO JURÍDICO - volta-se para as relações de poder que se materializam nos gêneros textuais legais e questões interculturais e de mediação em contextos jurídicos como os casos dos direitos das minorias linguísticas. Esta linha também realiza a análise e interpretação dos textos legais nos mais diversos contextos.

Parte III: PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM - concentra-se na análise e interpretação dos textos legais em uso nos eventos comunicativos. Estabelece o diálogo entre as Teorias do Processo e a Análise Crítica do Dis-curso Jurídico (ACDJ).

Parte IV: INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS - volta-se para a análise de interrogatórios na delegacia e no tribunal, problemas de testemu-nhas vulneráveis, uso de intérpretes, etc.

Parte V: CRIMINOLOGIA CRÍTICA - afasta-se de conceitos naturali-zados sobre o crime e criminoso, próprios do senso comum, para proble-matizá-los à luz do interacionismo simbólico, segundo o qual é a partir das interações sociais, por meio da linguagem, que se constroem as relações e as identidades. Assim como estuda o processo de criminalização (primária e secundária), desde o controle social informal até o exercício oficial das agências de poder.

Assim, esses eixos temáticos nessa interface Linguagem & Direito, tecem a terceira margem do rio, essa espécie de entrelugar no qual pode-remos estudar/ compreender a linguagem em uso nessa instância social de estabelecimento do direito.

Recife, 20 de junho de 2015

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Sumário

Sobre os autores 6

ApresentaçãoINTERFACES: terceira margem do rio 15

Parte ILINGUÍSTICA FORENSE

1. A adequação das advertências de cigarro no BrasilCaroline de Araújo Pupo Hagemeyer 23

2. Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense?Rui Sousa-Silva 38

3. Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenosBruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck e Miquéias Rodrigues 64

4. Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de períciaLuciane Fröhlich e Marina Piovesan Gonçalves 85

Parte IIDISCURSO JURÍDICO

5. Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da PenhaMaurilo Sobral, Vinicius de Negreiros Calado e Virgínia Colares 112

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6. Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciadoVinicius de Negreiros Calado 142

7. Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da PenhaLúcia Freitas 161

8. Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Luis Cláudio Aguiar Gonçalves e Maria da Conceição Fonseca-Silva 178

Parte IIIPROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM

9. A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistasAna Virgínia Cartaxo Alves, Caroline Alves Montenegro e Juliana de Brito Giovanetti Pontes 203

10. Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas.Artur Stamford da Silva e Julia Rodrigues Tabosa 223

11. Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STFDeyvid Braga Ferreira e Lívya Ramos Sales Mendes de Barros 241

12. Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídicaBruno Lemos Hinrichsen, Idalina Cecília Fonseca da Cunha, João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e Pedro Spíndola Bezerra Alves 257

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Parte IVINTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS

13. Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminaisSabrina Silveira de Souza Jorge 281

14. Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da MulherMárcia Cristiane Nunes Scardueli 299

15. “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interaçãoDaniela Negraes Pinheiro Andrade 319

16. Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagemFernando José de Souza Filho 342

Parte VCRIMINOLOGIA CRÍTICA

17. Uma análise do discurso das decisões denegatórias e concessivas de habeas corpus de tráfico de drogas no estado de pernambuco: entre a (in)segurança pública e um direito penal do inimigoCristhovão Fonseca Gonçalves e Marilia Montenegro Pessoa de Mello e Virgínia Colares 354

18. A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o Direito numa Perspectiva InterdisciplinarJosé Antonio de Albuquerque Filho, Maria Emília Miranda de Oliveira Queiroz 366

19. A Análise da Neutralização da Vítima no Crime de Estupro De VulnerávelNaira Celi Pereira Vinhas e Érica Babini Lapa do Amaral Machado 378

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20. Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa criminológica:as principais críticas ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem criminodogmáticaDiego José Sousa Lemos 401

21. Lei Maria da Penha: uma análise crítica da sua aplicação na cidade do Recife entre os anos de 2007 e 2010Carolina Salazar L. Q. de Medeiros, Daniele Nunes de Alencar, Débora de Lima Ferreira, Marcela de Andrade Nunes, Érica Babini Lapa do Amaral Machado e Marília Montenegro Pessoa de Mello 417

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Parte ILINGUÍSTICA FORENSE

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A adequação das advertências de cigarro no Brasil

Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer

Universidade Federal de Santa Catarina

1. Introdução

As ações relacionadas ao controle do Tabaco alcançam grandes proporções tanto no Brasil quanto em vários países ao redor do mundo. Tanto que a Organização Mundial de Saúde (WHO - World Health Organization) rea-lizou um tratado internacional, FCTC (1Framework Convention of Tobacco Control), na tentativa de deter o aumento desenfreado do uso do cigarro. Segundo FCTC, o tabaco tornou-se uma epidemia mundial com graves con-sequências para a saúde pública e, por este motivo, esta organização tem como meta principal divulgar as “consequências para a saúde, a natureza viciante e a ameaça mortal que o consumo do tabaco e/ou a exposição a fumaça geram” (webpage).

Entre as ações preconizadas pelo FCTC e adotadas pelo governo bra-sileiro está o uso de advertências que combinam informações visuais e ver-bais. O principal objetivo das advertências é aumentar o conhecimento da população acerca dos riscos associados ao fumo, que pode, por sua vez, es-timular os fumantes a pararem de fumar, e os não fumantes, especialmente adolescentes, a não começarem. As advertências podem ser vistas pelo me-nos 7.000 vezes por ano, caso o consumidor fume um maço de cigarros por dia e por esta razão, as advertências devem ser meticulosamente elaboradas (Brasil, 2008).

Este estudo objetiva analisar a eficácia de tais advertências levando em conta tanto o ponto de vista linguístico quanto jurídico. A próxima se-

1. Estrutura da Convenção de Controle de Tabaco

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ção apresenta algumas considerações que servirão de base para a análise. Em seguida, serão discutidas algumas características dos pacote de cigarro bem como das advertências de cigarro veiculadas no Brasil. Posteriormente, será apresentada a metodologia utilizada para a análise que é seguida pela análise das advertências. Finalmente será apresentada a conclusão desta análise que apresentará algumas sugestões para melhorar a eficácia das ad-vertências.

2. Definição de advertência

Diversas áreas de conhecimento voltam-se para o estudo das advertências, como a Linguística, a Ergonomia e o Design. Estudos na área de ergonomia apontam que as advertências são “comunicações de segurança usadas para informar as pessoas sobre os riscos para que as consequências indesejá-veis sejam evitadas ou minimizadas” (Wogalter, 2006: 03). Neste sentido, elas objetivam não somente informar o consumidor/a sobre o perigo, mas também persuadi-lo/a a usar o produto de uma forma segura, ou ainda, no caso do cigarro, a parar de fumar. Nesta área de estudos, as advertências visam modificar o comportamento das pessoas em nome da segurança. Mas, para que esta mudança aconteça, é necessário que a advertência chame a atenção do consumidor/a, para que ele/a se sinta motivado/a a mudar o comportamento, principalmente se o produto é usado de forma insegura por repetidas vezes sem ter sofrido nenhum dano.

Na área da linguística forense, as advertências “deveriam identificar e descrever a natureza e o perigo do risco. Depois elas deveriam dizer ao leitor como evita-los. Finalmente elas deveriam comunicar estas informações em uma linguagem clara e inteligível” (Shuy, 2008, p. 72). Nesta definição, é visível a preocupação a respeito de como o destinatário irá receber a mensa-gem, isto é, se ele será capaz de lê-la e entendê-la. Faz-se necessário apontar que o destinatário é uma pessoa comum, que pode possuir pouco conheci-mento sobre o assunto e ainda ter algumas limitações na competência em leitura.

Estudos na área apontam as características que deixam as advertên-cias mais claras e inteligíveis. Dumas (1992) conduziu uma investigação empírica sobre advertências de cigarro e concluiu que as advertências hipo-téticas e o uso de palavras fortes, como veneno, podem fortalecer uma ad-vertência, ao passo que, o uso de terminologia técnica pode enfraquece-las, visto que muitos consumidores podem ter certa dificuldade em interpretá--las. Dumas ainda aponta que o uso de verbos modais devem ser evitados, pois transmitem incerteza.

Dumas (2010) afirma que as advertências podem ser diretas ou indi-retas, literais e não-literais. Além disso, algumas delas dependem do con-texto e precisam de um certo grau de inferência do leitor para que haja

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compreensão. Nestes casos, a probabilidade de o leitor fazer uma inferência errada aumenta, principalmente, quando há falta de informação.

Tiersma (2002) observa que as advertências categóricas tem a fun-ção de informar, isto é, aconselhar que o produto pode oferecer algum tipo de risco, sugerindo indiretamente que ele deve ser evitado, por exemplo: “fumar causa câncer de pulmão”. Por outro lado, as advertências hipotéti-cas tendem a ser imperativas e são mais claras em relação a prevenção do perigo, por exemplo: “Não fume”. Tiersma ainda reforça que uma advertên-cia eficiente deveria ser tanto informativa (categórica) quanto imperativa (hipotética), por exemplo: “não fume cigarros, pois fumar pode matar você” (p. 64). No entanto, o autor aponta que o elemento imperativo tende a ser evitado devido ao interesse das taxas provenientes do comércio do cigarro.

A quantidade de informações transmitidas em uma advertência é ou-tra característica que pode influenciar o sucesso das mesmas. É comum encontrar advertências que fornecem informações sobre como evitar uma situação perigosa, mas que falham por não informar o risco. Ao mesmo tempo, muitas advertências informam o risco, sem dar as direções sobre como ele deve ser evitado. Alguns linguístas forenses, como Tiersma e Shuy, apoiam-se no princípio de cooperação de Grice (1967) para mostrar a fra-gilidade destas comunicações. Uma vez que a máxima de quantidade “faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerida” (Guima-rães, 2002, p. 32) é violada, o leitor poderá ter dificuldades em reconhecer a intenção da advertência.

Segundo Tiersma (2002) informar mais do que necessário é tão pre-judicial quanto informar menos do que é necessário para que a mensagem seja compreendida, e também viola a máxima de quantidade “Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido” (Guimarães, 2002, p.= 32). Neste exemplo de uma advertência de cigarro, ‘fumar causa mau háli-to, perda dos dentes e câncer de boca’, o risco mais grave está diluído entre os riscos menos graves, enfraquecendo a advertência.

Embora cada área tenha sua própria definição, elas possuem a mesma posição no que concerne o objetivo principal, que é informar o destinatário sobre os riscos que um produto oferece. É exatamente neste ponto que sur-ge a principal dificuldade de uma advertência, como transmitir esta infor-mação eficientemente, isto é, de forma visível, clara e que chame a atenção do consumidor.

3. Pacote de cigarro

As indústrias de tabaco sempre investiram maciçamente em propagandas para conquistar o consumidor, que são em sua maioria jovens adultos e mulheres. Entretanto, as propagandas tem sido banidas em muitos países, como no Brasil. Logo, o pacote de cigarro, que já era visto como um im-portante componente na disseminação do cigarro, ganhou agora, o papel

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principal. Eles são estrategicamente criados para apelar o novo usuário. Wakefield et al. (2002) observam que “diferentemente de outros produtos, onde o pacote é descartado depois de aberto, os fumantes retém o pacote até o último cigarro ser usado” (p. 73). Assim, o pacote é conhecido como “badged product” devido à associação entre o usuário e a imagem da marca (Wakfield et al., 2002). Por esta razão, o pacote é estrategicamente elabora-do para atrair novos consumidores. Portanto, o uso de advertências eficazes é fundamental para desconstruir a imagem transmitida pelo pacote.

4. Advertências de cigarro no Brasil

As advertências de cigarro no Brasil foram introduzidas em 1988 com a inserção da frase: “O Ministério da saúde adverte: fumar faz mal a saúde”. Em 1995, houve um acordo entre o governo e as industrias de tabaco que substituíram a primeira advertência por mensagens específicas sobre os ris-cos provenientes do cigarro, como: “o Ministério da saúde adverte: fumar pode causar câncer de pulmão”. Foi considerado um passo importante na propagação dos danos causados pelo fumo, visto que muitos deles eram desconhecidos por uma grande parcela da população, especialmente, pelas classes mais baixas (Brasil, 2008). As advertências foram reguladas pela lei federal 9.294 em 1996, mas devido ao fato das cores e proporções de tama-nho não serem definidas, as empresas de tabaco adotaram estratégias para dificultar a visualização das advertências, como combinação de cores que não destacam a advertência e dificultam a leitura, como branco e dourado. Finalmente, em 2001, as imagens foram incluídas, tomando 100% do verso do pacote de cigarro (veja imagem abaixo). O Brasil foi o segundo país do mundo a adotar o uso de imagens nas advertências. Além da imagem e das frases de efeito, o pacote ainda incluía informações sobre como conseguir ajuda para parar de fumar, por meio de uma linha telefônica exclusiva de ajuda. Além disso, a lateral do pacote veiculava informações sobre o al-catrão, a nicotina e o monóxido de carbono e também a mensagem “não

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existem níveis seguros para o consumo destas substancias” (veja imagem 2 abaixo).

Como pode ser visto nas imagens acima, a combinação de cores, em bran-co e preto, aumenta a visualização e chama a atenção para a mensagem. Vale ressaltar que o uso destas cores segue uma determinação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão responsável pela regula-mentação, controle e supervisão das advertências de cigarro. Na tentativa de dificultar a visualização das advertências e chamar a atenção para seus produtos, as empresas de tabaco adotaram o uso de cores diferenciadas para transmitir a imagem de um cigarro mais fraco, além do uso das palavras “soft” e “light”. No entanto, o uso de tais palavras foi proibido, assim como o uso de decalques que acompanhavam o pacote de cigarro, para serem colados em cima das advertências.

Em 2003, um segundo grupo de 10 advertências foi lançado com men-sagens e imagens mais fortes. Foram ainda incluídas as mensagens: “Venda proibida para menores de 18 anos – Leis 8.069/1990 e 10.702/2003” e “este produto contém mais de 4.700 substâncias tóxicas e nicotina que causam dependência física e psíquica. Não há níveis seguros para o consumo destas substâncias”.

Um terceiro grupo de advertências substituiu aquelas inseridas em 2003 com o objetivo de aumentar a disseminação das informações sobre as doen-ças relacionadas ao uso do tabaco. Além disso, acredita-se que devido a lon-ga exposição, seu impacto pode ser enfraquecido (Brasil, 2008). As adver-tências foram construídas com base em uma pesquisa extensiva envolvendo INCA, ANVISA e algumas universidades do Rio de Janeiro (UFRJ, UFF e PUC-RJ). A apresentação da advertência também sofreu algumas mudan-ças como, por exemplo, a inclusão de uma palavra ou frase de efeito que

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traduz a imagem. Neste grupo de advertências, o número do “disque ajuda”, escrito em branco, foi destacado com um fundo preto (veja imagem abaixo).

Em uma fase da pesquisa mencionada acima, foi investigada a rea-ção emocional dos sujeitos em relação ao impacto das advertências usadas na primeira e segunda fase. Os dados revelaram que as imagens mais im-pactantes eram aquelas que mostravam um bebê prematuro no hospital e uma mulher com câncer de pulmão no leito de um hospital entubada, ao passo que, as menos impactantes foram aquelas que ilustravam um homem com mau hálito, falta de ar e dando mau exemplo para as crianças (Brasil, 2008).

As pesquisas desenvolvidas no Brasil relacionadas às advertências tendem a focalizar as imagens e a reação emocional desencadeadas por elas. De acor-do com uma pesquisa conduzida pelo Data Folha (2002, apud Brasil, 2008), 76% dos entrevistados aprovaram o uso das advertências, sendo que 54% responderam que as advertências teriam mudado a opinião deles em rela-ção às consequências do cigarro. Entretanto, tais pesquisas não parecem levar em consideração a analise linguística do texto escrito. Sendo assim, este estudo pretende preencher esta lacuna.

5. Metodologia

Os dados deste estudo consistem nas advertência de cigarro adotadas no Brasil nas três fases, sendo: nove na primeira fase (2001-2003); dez na segunda fase (2004-2008) e dez na terceira fase (2009-agora). Primeira-mente, será realizada uma análise do design, que engloba localização, fonte e cor. Depois, tendo como suporte as pesquisas conduzidas por linguístas forenses, Dumas (1992, 2010), Tiersma (2002) e Shuy (1990 e 2008), será

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feita a análise da eficácia das advertências, e verificado se as mudanças so-fridas em 2004 e 2008 foram capazes de fortalecer tais advertências.

6. Análise e discussão

As advertências de cigarro no Brasil sofreram algumas mudanças em di-ferentes aspectos, como design, imagens, informações verbais e conteúdo das consequências relacionadas ao fumo. Devido a limitações de espaço, a análise das imagens não será abordada, embora acredita-se que as imagens sejam de suma importância, principalmente pelo fato de chamarem a aten-ção do consumidor de forma instantânea.

As advertências cobrem 100% do verso do pacote tanto na primeira fase (2001), quanto na segunda (2004) e na terceira (2008), espaço maior que o preconizado pelo WHO, que sugere que seja de 30% a 50%. Em todas as fases a advertência é enquadrada por uma borda preta com o objetivo de destacar a mensagem que está escrita em branco. Esta determinação em relação ao uso de cores veio com o intuito de desarmar a tentativa das em-presas de tabaco, que tentaram distrair a atenção dos leitores com a com-binação de cores. Nas primeira e segunda fase, a mensagem está localizada acima da figura com o telefone do “disque-ajuda” abaixo. Na terceira fase, é possível verificar algumas mudanças, como a inclusão de uma palavra ou frase de impacto acima da imagem (veja imagem 5). A mensagem foi posi-cionada abaixo da imagem e o “disque-ajuda”, que tinha pouca visualização, foi transferido para a parte inferior da advertência, com a mensagem “pare de fumar” acima do número. A nova disposição dos componentes da adver-tência contribuem para uma melhor visualização dos mesmos.

O conteúdo é de extrema relevância para a eficácia das advertências. Dumas (2010) aponta que um fator determinante para a ineficiência das advertên-cias é a “superexposição, (...), falta de novidades (...) e falta de relevância

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pessoal da advertência” (p. 370). Sendo assim, uma advertência deve ter seu conteúdo renovado frequentemente e ser relevante para o público alvo. A tabela 1 abaixo, resume o conteúdo das advertências nas três fases.

Tabela 1: Conteúdo das advertências nas três fases

TEMAS 1 FASE 2 FASE 3 FASE

Câncer de boca X X

Câncer de pulmão

X X X

Infarto X X

Impotência sexual

X X X

Perda do fôlego X

Câncer de laringe

X X

Gravidez X X X

Mau exemplo para as crianças

X

Cigarro é uma droga

X X X

Gangrene X X

Sofrimento X

Derrame X

Fumaça tóxica X X

Amputação X

Aborto X

Envelhecimento X

Como pode ser visto na tabela acima, dos nove temas abordados na primeira fase, três não são repetidos na segunda fase, infarto, perda do fôlego e mau exemplo para as crianças. Além disso, quatro temas foram acrescentados

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a esta fase: gangrena, amputação, aborto e doenças causadas pela fumaça tóxica. Em relação a terceira fase, temas relacionado a idade, derrame, so-frimento causado pela dependência e infarto foram introduzidos. Portanto, há evidências de que a mudança dos temas contribuem para a eficácia das advertências, uma vez que novas informações foram inseridas, promovendo a disseminação do conhecimento a respeito das consequências do cigar-ro. Na terceira fase, as advertências foram selecionadas com base um uma pesquisa que levou em conta a reação emocional dos participantes. Dessa forma, as advertências tidas como fracas ou menos chamativas foram subs-tituídas (Brasil, 2008).

O uso de muitas informações na mesma mensagem é um fator que deve ser levado em conta, pois pode enfraquecer uma advertência. A men-sagem “fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca”, mis-tura riscos menos sérios, como mau hálito, com riscos mais sérios, como câncer de boca. Além disso, a imagem ilustra a ideia de mau hálito que é o risco menos serio de fumar cigarro. A esse respeito, Tiersma (2002) observa que misturar muitas informações tem o efeito de “diluir ou banalizar adver-tências mais importantes” (p. 51). Sendo assim, é possível concluir que a advertência acima é ineficiente.

A análise revela que a terminologia técnica pode interferir na compreensão da advertência. Exemplos: (1) “nicotina” é uma droga e pode causar depen-dência”, (2) “ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar a amputação”, (3) “ao fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas”, (4) “o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue”, (5) “o uso deste produto leva a morte por câncer de pulmão e enfisema”. No primeiro exemplo, o leitor pre-cisa inferir que a nicotina é um componente do cigarro. Os verbos “obstrui” e “inala” no terceiro e quarto exemplos não são adequados, uma vez que o leitor pode desconhecer o seu significado. Palavras usadas no cotidiano são

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preferíveis, principalmente no caso de advertências, pois muitas vezes o leitor possui pouco conhecimento.

Em relação aos tipos de advertências, a análise revelou que todas elas são categóricas/ informacionais. Isto é, elas informam o risco de fumar ci-garro e o leitor precisa inferir que ele deve parar de fumar. Tiersma (2002) alega que este tipo de advertência “é geralmente mais específica em relação a natureza do risco, mas deixa para o destinatário imaginar como evitá-lo” (p. 63). O autor sugere que a combinação de informacional (declarativo) e imperativo seria o ideal, como “Não fume cigarros: fumar pode matar você” (p. 64). Nota-se que esta advertência é bastante clara e direta, apontando não somente o risco, mas também como evitá-lo. A linguagem adotada é simples e ao mesmo tempo chama a atenção, pois o uso da palavra ‘matar’ fortalece a advertência. Entretanto, apesar de ser uma advertência de ci-garros, gostaria de ressaltar que a advertência acima restringe-se somente ao cigarro, e que alguns consumidores podem inferir que somente o cigarro pode matar. Sendo assim, proponho deletar a palavra ‘cigarro’ como em: “Não fume, fumar pode matar você”.

Como já mencionado, as advertências da terceira edição sofreram al-gumas mudanças. Primeiramente, uma palavra ou frase de efeito foi inclu-ída acima da imagem, e a mensagem principal alocada abaixo da imagem. Finalmente, o número do telefone de ajuda para parar de fumar foi trans-ferido para a parte inferior da advertência, com a frase “pare de fumar”. Entretanto, esta frase faz a função de título para o telefone de ajuda, e não de uma advertência. Em nenhum momento, há informação de como o risco deve ser evitado, deixando a cargo do leitor fazer tal inferência com base nos riscos do cigarro. Percebe-se que o foco está somente nos riscos e doenças desencadeadas pelo fumo.

Além das mudanças apontadas acima, as advertências da última fase tam-bém sofreram mudanças no que tange a estrutura das frases, mais especifi-

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camente em relação aos sujeitos e verbos. A estrutura mais utilizada no que tange as advertências de cigarro, que é inclusive empregada em diversos países, é (1) “fumar causa câncer de pulmão”. Esta estrutura foi usada qua-tro vezes na primeira fase e sete vezes na segunda. Por outro lado, ela não foi usada na terceira fase. Como é possível visualizar nos exemplos abaixo, a estrutura “fumar causa” foi substituída pela estrutura “este produto + verbo” ou “ o uso deste produto + verbo”.

(2) “o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do san-gue”.

(3) “este produto intoxica a mãe e o bebê, causando parto prematuro e morte”.

A estrutura usada na primeira e segunda fase, “fumar causa” transmite a ideia da ação, isto é, alguém fumando, o que não parece ocorrer com a estrutura da terceira fase. Portanto, há evidências de que as usadas nas primeiras fases sejam mais fortes. Além disso, a estrutura empregada nas primeiras fases possui forte conexão com o gênero e é familiar aos consu-midores. Por outro lado, os verbos usados na última fase parecem fortalecer a advertência, pois “obstruir e intoxicar” sugerem uma ação acontecendo, principalmente pelo fato de se tratarem de processos (verbos) materiais, que de acordo com Halliday (1994: 110) “expressam a noção de que uma entidade ‘faz’ algo”2. Portanto, a ideia de que algo ruim vai acontecer é reforçada. Além disso, os processo são palavras fortes, que carregam con-sequências negativas. Por outro lado, é possível que alguns consumidores tenham dificuldades em entender a advertência (2) “o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue”, uma vez que o pro-cesso ‘obstrui’ não é comumente usado pela população.

Entretanto, tanto em “fumar causa câncer de pulmão” quanto em “o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue”, não há referência explícita ao sujeito, como vemos em “não fume, fumar pode matar você”, onde o sujeito é marcado duas vezes. Acredita-se que quando há referência ao sujeito, o/a consumidor/a sente que a mensagem é ende-reçada pra ele/a, o que pode aumentar as chances de adesão à advertência.

7. Conclusão

Com base na análise apresentada na seção anterior, pode-se concluir que as advertências da última fase tendem a ser mais adequadas. Primeiro, porque a distribuição das informações levam a uma melhor visualização. Segundo, a adição de palavras fortes ou de uma palavra ou frase de efeito chama a atenção do consumidor. Terceiro, a renovação em relação ao tema não so-mente aumenta o conhecimento da população mas também exclui as adver-tências tidas como fracas. Quarto, houve um ganho com a redução das in-

2. According to Halliday (1994: 110) “express the notion that an entity ‘does’ something”

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formações, isto e, riscos menos sérios foram removidos, aumentado o apelo das mesmas. Finalmente, os verbos empregados na última fase transmitem a ideia de ‘fazer’, que fortalece a advertência. Portanto, as mudanças ocor-ridas aumentaram a eficiência, pois parecem que chamam mais a atenção.

Entretanto, apesar da evolução, há alguns pontos que podem influen-ciar para a não adesão dos/as consumidores/as, como por exemplo, a falta da informação de como o risco pode ser evitado. Além domais, o/a con-sumidor/a não é endereçado/a, e pode acreditar que a advertência não é endereçada à ele/a. Finalmente, ainda é possível verificar o uso de palavras técnicas ou incomuns, que podem dificultar o entendimento da mensagem.

Referências

BRASIL: Advertências Sanitárias nos Produtos de Tabaco 2009. Instituto Nacional de Câncer. Rio de Janeiro: INCA, 2008.

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_____________ An Analysis of the Adequacy of Federally Mandated Cigarette Package Warnings. Chapter 11 of Language in the Judicial Process, ed. J. N. Levi and A. G. Walker. NY: Plenum Press Corp., 309–352. Reprinted in the Tennessee Law Review 59.2 (1992), 261–304, and Advertising Law Anthology XVI Part I (Jan.–June 1992).

GRICE, H. P. Meaning. In: Harnish, R. M. (ed.) Basic Topics in the Philosophy of Language. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1967.

GUIMARÃES, E. Os Limites do Sentido: Um Estudo Histórico e Enunciativo da Linguagem. Campinas, SP: Ed. Pontes, 2002 (37-43).

HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold, 1994.

HAMMOND, D; FONG, G.T.; BORLAND, R.; CUMMINGS, M. K., MCNEILL, A. & DRIEZEN, P. Text and graphic warnings on cigarette packages. Finding

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THRASHER, J. F. ET AL. Evaluating tobacco control policy in Latin American countries during the era of the Framework Convention on Tobacco Control. Disponível em: http://roswelltturc.org/research/a16-2-thrasher_evaltobcnt.pdf.

TIERSMA, P. M. The Language and Law of Product Warnings. Language in the Legal Process. ed. Janet Cotterill. Houndmills, Basingstoke, Hampshire and New York: Palgrave Macmillan, 2002. (54-71).

SHUY, R. W. Fighting over words. Oxford: OUP, 2008 (75-119).

WAKEFIELD, M.; MORLEY, C.; HORAN, J. K.; & CUMMINGS, K.M. (2002). The cigarette pack as image: new evidence from tobacco industry documents. Disponível em: http://tobaccocontrol.bmj.com/content/11/suppl_1/i73.full.html#related-urls.

WHO. Disponível em: http://www.who.int/entity/fctc/about/en/index.html

WOGALTER, M. S. Purposes and Scope of Warning. Handbook of Warnings. ed. Michael Wogalter. Lawrence Erlbaum Associates, 2006.

Anexos

Advertências Sanitárias

1ª fase (2001-2003)

O ministério da saúde adverte:

1. Fumar causa mau hálito, perda de dentes e câncer de boca.

2. Fumar causa câncer de pulmão.

3. Fumar causa infarto do coração.

4. Quem fuma não tem fôlego para nada.

5. Fumar na gravidez prejudica o bebê.

6. Em gestantes, o cigarro provoca parto prematuro, nascimento de crianças com peso abaixo do normal e facilidade de contrair asma.

7. Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando.

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8. A nicotina é droga e causa dependência.

9. Fumar causa impotência sexual.

2ª fase (2004-2008)

O ministério da saúde adverte

1. Esta necrose foi causada pelo consumo do tabaco.

2. Fumar causa impotência sexual.

3. Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e alergia.

4. Ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar a amputação.

5. Fumar causa aborto espontâneo.

6. Ao fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas.

7. Fumar causa câncer de laringe.

8. Fumar causa câncer de boca e perda dos dentes.

9. Fumar causa câncer de pulmão.

10. Em gestantes, fumar provoca partos prematuros e o nascimento de crianças com peso abaixo do normal.

3ª fase (2009- atual)

O ministério da saúde adverte:

GANGRENA – O uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue.

VÍTIMA DESTE PRODUTO – Este produto intoxica mãe e o bebê, causando parto prematuro e morte.

MORTE – O uso deste produto leva à morte por câncer de pulmão e enfisema.

INFARTO – O uso deste produto causa morte por doenças do coração.

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HORROR – Este produto causa envelhecimento precoce da pele.

FUMAÇA TÓXICA – Respirar a fumaça deste produto causa pneumonia e bronquite.

SOFRIMENTO – A dependência da nicotina causa tristeza, dor e morte.

DERRAME CEREBRAL – O risco de derrame cerebral é maior com o uso deste produto.

IMPOTÊNCIA – O uso deste produto diminui, dificulta ou impede a ereção.

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Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense?1

Rui Sousa-Silva

CLUP – Centro de Linguística da Universidade do Porto

1. Plágio jornalístico

O plágio jornalístico constitui um dos temas de investigação sobre plágio mais desafiantes. Ao contrário do plágio de estudantes, a reutilização textual por jornalistas sem indicação (ou com uma indicação muito limitada) das fontes originais não é, frequentemente, considerada plágio (COULTHARD & JOHNSON, 2007), nem mesmo nos casos em que essa reutilização é substancial, conforme assinala Angèlil-Carter (2000). Uma vez que as fron-teiras que identificam um texto como plagiador dependem tanto da defini-ção de plágio aplicável e da intenção do autor, como do género de texto, a utilização, por jornalistas, de grandes volumes de texto sem atribuição ade-quada da autoria tende a ser minimizada ou, inclusivamente, desvalorizada. Esta tendência de desvalorização ou minimização resulta do pressuposto de que as peças noticiosas relatam, supostamente, factos e eventos do “mundo real”. E uma vez que estes factos e eventos não podem (ou, por questões inerentemente éticas, não devem) ser relatados com prejuízo da fidelidade jornalística, quanto mais fiel for a descrição dos factos, menor é a liberdade de escrita criativa do jornalista e, em teoria, mais elevado será o grau per-missível de sobreposição textual. Neste contexto, sobreposição textual pode ser, assim, facilmente associada a profissionalismo, o que dificulta a consi-deração de qualquer texto jornalístico como plágio.

Um fator adicional que contribui para esta aparente complacência com a usurpação de material noticioso é a prática corrente de subscrição de serviços noticiosos pagos, cujos conteúdos os media estão autorizados a reutilizar. Paralelamente, quando confrontados com a necessidade de cita-

1 . Este capítulo é uma versão traduzida e reformulada do capítulo publicado originalmente em Sousa-Silva (2015).

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rem as suas fontes, os jornalistas parecerem reger-se por “dois pesos e duas medidas”. Por um lado, com o objetivo de assegurarem a veracidade da peça noticiosa, não hesitam em citar inequivocamente as suas fontes de infor-mação primárias. Em casos extremos, levam até às últimas consequências a proteção dessas fontes, o que implica manter o seu anonimato e confi-dencialidade e, inclusivamente, resistir a pressões internas e externas para identificarem e nomearem essas fontes. Por outro lado, reutilizam, frequen-temente, o texto de outras fontes de texto (secundárias) para redigirem os seus próprios artigos, nem sempre citando essas fontes, como é o caso de reutilização de notícias publicadas por outros media ou, inclusivamente, escritas por agências noticiosas.

Apesar destas condicionantes, que dificultam a análise de potenciais casos de plágio, não são raros os exemplos de jornalistas acusados e punidos por plagiarem. Em fevereiro de 2015, Jared Keller, diretor de informação do site de notícias Mic, foi demitido depois de se descobrir que tinha retirado e reproduzido, literalmente ou com pequenas alterações, trechos de texto de outras fontes noticiosas sem citar devidamente as fontes. Nesse mesmo mês, o jornal The Australian demitiu o cronista Tanveer Ahmed depois um blogger o ter acusado de plagiar um website político americano. Dois anos antes, o então autor do New Yorker Jonah Lehrer foi despedido por reciclar publicações no blog da revista, para além de cometer outros atos transgres-sivos. Um dos casos mais paradigmáticos, contudo, é indubitavelmente o caso de Jayson Blair, o jornalista do The New York Times que apresentou a sua demissão, em 2003, depois de ter sido acusado de praticar diversos atos fraudulentos na sua carreira como jornalista, incluindo plágio. Blair foi acusado, em particular, de ter utilizado indevidamente material de agências noticiosas e de outros jornais, tais como o Washington Post e o The San An-tonio Express-News.

No universo da língua portuguesa, casos de plágio como estes também não são inéditos. Em 2007, um leitor do jornal português de referência Pú-blico descobriu que Clara Barata, uma das jornalistas, tinha copiado textos de outras fontes, incluindo da Wikipedia. O caso desta jornalista é ainda mais complexo do que os descritos anteriormente, uma vez que a peça noti-ciosa não reutilizava o texto de um original na mesma língua, mas sim origi-nais escritos noutra língua, nomeadamente em inglês. Um caso idêntico foi o de um repórter do jornal Telegraph-Journal, no Canadá, que foi demitido em 2009 por ter reutilizado indevidamente texto do L’Acadie Nouvelle.

Neste contexto, este capítulo discute de que modo uma análise lin-guística de natureza forense poderá auxiliar a deteção e/ou o fornecimento de elementos de prova em casos de plágio jornalístico, defendendo que é es-sencial desenvolver um método que permita recorrer a elementos linguísti-cos para identificar determinado texto como constituindo um potencial caso de plágio, não só com o objetivo de levantar suspeitas relativamente à sua originalidade, mas também com o intuito de contribuir para o desenvolvi-

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mento de técnicas de deteção de plágio translingue (SOUSA-SILVA, 2014). Uma proposta deste método é apresentada de seguida.

2. Notícias, plágio e usurpação

Apesar da proliferação da investigação sobre plágio ao longo das últimas décadas (ANDERSON, 1998; ANGÈLIL-CARTER, 2000; CARROLL, 2001; CARROLL E APPLETON 2001; JAMESON, 1993; LINDEY, 1952; PECORARI, 2008; ROBILLARD, 2008; ROIG, 2001; SCOLLON, 1995; HOWARD1995), a maioria dos estudos realizados focou sobretudo o plágio académico, em detrimento de outras ocorrências de reutilização textual. O facto de o plágio académico ser comummente visto como um problema de formação educativa dos estudantes, que necessita de ser identificado (e, consequentemente, resolvido) no decorrer do seu percurso académi-co (CARROLL, 2001; CARROLL E APPLETON 2001), nomeadamente mostrando aos estudantes como adotar uma conduta académica adequada (HOWARD, 1995), faz com que o plágio académico ocupe um lugar central na investigação sobre plágio em geral. Pelo contrário, o volume de investi-gação sobre reutilização (indevida) de textos jornalísticos tem sido objeto de um volume de investigação comparativamente menor. Exemplo disso são as opiniões firmes, normalmente coincidentes com o argumento de jornalistas infratores, de que a redação de notícias diverge da escrita académica e que, em defesa da boa leitura de um artigo, não é prático citar todas as fontes secundárias.

Paradoxalmente, as inúmeras convenções e regulamentações aplicá-veis à utilização de material das agências noticiosas não são universais, mas são muito claras a esse respeito. Normalmente, as agências noticiosas exi-gem a atribuição da(s) fonte(s), proibindo a utilização de artigos assinados (isto é, artigos de autoria de jornalistas individuais, por oposição a peças da agência noticiosa, em geral) sem a devida citação.

O Manual de Jornalismo da Reuters (REUTERS, 2008), por exemplo, descreve o ato de plágio como um “pecado mortal”, apesar de realçar que, enquanto os princípios orientadores de ética contribuem para um jornalis-mo melhor, as “regras rígidas” restringem e limitam a capacidade de tra-balhar. O Guia de Estilo da Reuters2 afirma, ainda, que, em conformidade com o seu Código de Conduta, é sempre exigida aos seus jornalistas a pro-cura e o relato da verdade, inexoravelmente, com honestidade e sinceridade (REUTERS, 2008: 1). Para além de considerar que o plágio é um “pecado mortal”, este guia de estilo considera a falsificação e o plágio dois dos “10 valores inquestionáveis do jornalismo para a Reuters”, exigindo aos seus jornalistas uma “atribuição adequada às fontes respetivas de material que não seja” seu, e realçando o princípio de que “é insuficiente identificar um vídeo ou uma fotografia como ‘nota à imprensa’”; pelo contrário, é impera-

2. Disponível em inglês em http://www.reuterslink.org/docs/reutershandbook.pdf

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tivo identificar claramente a fonte. Este guia de estilo afirma ainda que “é essencial, por uma questão de transparência, que o material que não seja recolhido por nós próprios seja claramente atribuído, nas peças noticiosas e nas reportagens, à respetiva fonte, incluindo nos casos em que a fonte seja uma organização concorrente”, concluindo que “o incumprimento desta norma poderá sujeitar-nos a acusações de plágio” (REUTERS, 2008: 5).

De modo idêntico, a International Federation of Journalists (IFJ –http://www.ifj.org/en) e, em Portugal, o Sindicato dos Jornalistas (http://www.jornalistas.online.pt/) consideram o plágio “uma infração profissional grave”. Também o guia de estilo de um dos principais jornais de referência portugueses, o Público3 proíbe terminantemente o recurso ao plágio, acres-centando que todas as informações relevantes recolhidas junto de outras organizações de comunicação social ou de agências noticiosas devem ser atribuídas. No caso de notícias baseadas em material de diferentes agências noticiosas, os contributos de cada uma destas agências devem ser citados no texto pela ordem com que mais contribuíram para a redação da peça. Sem-pre que o material das agências noticiosas for utilizado como fonte e o artigo for escrito sobretudo pelos seus jornalistas, as agências devem ser citadas no corpo da peça noticiosa. Porém, se o artigo se basear sobretudo em serviços noticiosos, então deverá ser incluída uma referência aos mesmos e, no caso de textos traduzidos de outras línguas, deverá ser claramente assinalado como tradução e indicar o nome dos tradutores.

Tendo em conta a política editorial do jornal Público, não é, por isso, surpreendente que o jornal tenha publicado um pedido de desculpas aos lei-tores, em 2006, depois de uma das suas jornalistas, Clara Barata, ter publi-cado um artigo que constituía sobretudo uma tradução de material da New Scientist e da Wikipedia. As suspeitas foram levantadas por um leitor que reparou, após a leitura da peça noticiosa, que o texto lhe parecia familiar, tendo de seguida identificado as fontes originais. O jornal instaurou um pro-cesso de investigação e detetou, posteriormente, que a jornalista tinha pla-giado 13 excertos relevantes recorrendo à tradução. O caso foi comparado ao do famoso jornalista do New York Times, Jayson Blair, que, em 2003, foi demitido depois de o jornal sofrer acusações de plágio e ser alvo de proces-sos legais instaurados por outras organizações noticiosas. Não obstante, há vários anos que são reportados casos de plágio jornalístico, o que revela que não se trata de um problema recente. Em 1996, por exemplo, a agência no-ticiosa portuguesa Lusa apresentou uma queixa ao Sindicato dos Jornalistas contra vários organismos de comunicação social portugueses, que estavam a plagiar textos assinados pelos seus jornalistas. Em sua defesa, os media plagiadores argumentaram que eram subscritores dos serviços noticiosos da agência, estando, por isso, autorizados a reproduzir esses textos. Porém, os textos assinados não se encontram incluídos nos serviços de subscrição e, como quaisquer outros materiais sujeitos a direitos de autor, não podem

3. Disponível em http://static.publico.clix.pt/nos/livro_estilo/16p-palavras.html

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ser reproduzidos sem autorização explícita, e muito menos sem atribuição às fontes.

Tendo em consideração a posição adotada por estas organizações, os casos de plágio jornalístico têm sido tratados mais frequentemente com re-curso à autorregulação, códigos de ética e deontológicos, do que recorrendo aos mecanismos legais, o que não surpreende. Por outro lado, este posicio-namento tradicional que perspetiva o jornalismo como não estando sujeito a acusações de plágio tem sido questionado, não só pela prática jornalísti-ca, mas também à luz dos casos descritos anteriormente. Assim, é eviden-te que, apesar de reportarem factos, as notícias estão sujeitas aos mesmos princípios de originalidade que outros géneros de texto, incluindo trabalhos académicos, o que nos permite concluir, então, que o plágio noticioso não merece um tratamento muito diferente daquele que é utilizado em situa-ções de plágio académico. De facto, tal como o plágio académico, o plágio jornalístico não só está sujeito a regras e normas internas, como também tem tendência para ser resolvido internamente pelas respetivas organiza-ções.

Contudo, definir um enquadramento e princípios orientadores para resolução de casos de plágio jornalístico não é o único desafio; um outro desafio inerente ao tratamento da reutilização de texto jornalístico é a de-teção. Neste sentido, Coulthard & Johnson (2007) defendem que as tec-nologias que facilitam o plágio também tornam mais fácil a sua deteção, e, consequentemente, a punição dos plagiadores. É um facto que os desenvol-vimentos tecnológicos das últimas décadas passaram a facilitar o processo de deteção. Porém, embora a sensação de déjà-vu seja menos provável em casos de plágio jornalístico do que em casos de plágio académico, não são raras as vezes em que os casos de usurpação de texto, no plágio jornalístico, são detetados através da intuição dos leitores, que, muitas vezes, ao senti-rem que já leram o texto noutra ocasião, iniciam um processo de denúncia. O caso de Clara Barata descrito acima é disso um bom exemplo.

A reutilização de texto a partir de um original na mesma língua pode ser facilmente detetada utilizando técnicas e ferramentas de comparação de texto mais simples ou mais complexas; neste caso, uma comparação di-reta é suficiente para identificar os trechos que texto que não são originais, como demonstrei anteriormente (SOUSA-SILVA, 2014). Pelo contrário, a deteção de reutilização de texto disponível originalmente noutra língua é significativamente mais complexa. Uma vez que o texto plagiado (o texto original objeto de plágio) e o texto plagiador (o texto derivado do original) estão redigidos em duas línguas diferentes, a tradução funciona como uma técnica de ofuscação, que impede a comparação textual direta. Decorrente da diferente língua dos textos, nestes casos não é possível, em primeiro lu-gar, utilizar sistematicamente a deteção automática ou a deteção assistida por computador para efeitos de comparação textual. Em segundo lugar, a pesquisa manual utilizando trechos de texto julgados particularmente sus-

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peitos, como é o caso das pesquisas realizadas normalmente pelos docentes, não devolve resultados conclusivos, uma vez que o texto suspeito e o texto original não são textualmente idênticos.

3. Deteção de plágio: um caso de linguística forense

Ao longo dos últimos anos, muitos foram os especialistas de diversas áreas, desde críticos literários até advogados especializados em direito de autor, passando por professores e linguistas forenses, que demonstraram um inte-resse crescente na investigação e deteção de plágio, ainda que por diferen-tes motivos, conforme explicam Coulthard & Johnson (2007). Enquanto o crítico literário poderá estar mais interessado em avaliar a qualidade literá-ria de uma obra, o professor estará mais interessado na formação dos seus estudantes, e, por conseguinte, mais preocupado com os valores morais do próprio plágio do que com as implicações financeiras da violação; o advoga-do, pelo contrário, tem tendência para se interessar mais pelas implicações financeiras do plágio, procurando os respetivos mecanismos de compensa-ção (HOWARD, 1995; HOWARD & ROBBILARD, 2008; SCOLLON, 1994; SCOLLON, 1995).

Tradicionalmente, o plágio tem sido considerado um ato imoral, mais do que um ato ilegal (GARNER, 2009), pelo que poderia ser tratado de for-ma mais adequada enquanto um problema ético do que uma infração legal (GOLDSTEIN, 2003). Sobretudo tendo em conta que os trabalhos sujeitos a proteção são de natureza imaterial e ubíqua, podendo ser, consequente-mente, utilizados por diferentes pessoas em simultâneo, o que compromete a capacidade do autor original para controlar a utilização do seu trabalho (PEREIRA, 2003: 20).

Porém, estudos anteriores demonstraram que, na realidade, o plágio é, quer imoral, quer ilegal (FINNIS, 1991; EIRAS & FORTES, 2010), o que o torna um ilícito punível legalmente (PEREIRA, 2003). Por conseguinte, não será exagerado afirmar-se que, idealmente, o plágio deverá ser tratado, não só como uma questão moral e ética, mas também como uma questão legal. Como defendi anteriormente, o plágio comporta, na vertente moral, impli-cações sociais, tendo capacidade para arruinar a reputação do plagiador, enquanto, na vertente legal, tem subjacente a infração de direitos morais e, muitas vezes, de direitos financeiros, ambos puníveis por lei (SOUSA--SILVA, 2013: 61). De facto, uma vez que esses direitos financeiros são mais fáceis de quantificar do que os respetivos direitos morais, não constitui surpresa que sejam os primeiros a serem resolvidos mais prontamente pelos tribunais. Ainda assim, não é raro que as instâncias de plágio comportem sé-rias implicações legais, do mesmo modo que não é raro que os casos levados a tribunal se limitem, frequentemente, àqueles que possuem implicações financeiras. Como ilustram diversos casos conhecidos trazidos a público nos últimos anos, não só o plágio é visto como uma violação de códigos de ética,

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como também é punido. E o plágio jornalístico não é exceção, como ilus-tram os casos apresentados acima.

Estas circunstâncias tornam o plágio particularmente adequado a uma abordagem da Linguística Forense, tendo em conta que os linguistas forenses tomam como objeto da sua investigação, não só o aspeto legal, mas também o aspeto moral do ato de plagiar, podendo tecer, além disso, consi-derações acerca do(s) resultado(s) desse ato. Em casos de natureza jurídica, os linguistas forenses desempenham um papel investigativo e/ou um papel probatório. Do ponto de vista investigativo, contribuem para o processo de investigação, participando em comissões e conselhos de ética, ou elaboran-do pareceres relativos à natureza e dimensão da reutilização textual para consideração pelos decisores respetivos. Do ponto de vista probatório, os for-necem elementos de prova suficientemente fundamentados para sustentar a tese de que dois ou mais textos foram produzidos de forma independente, ou, pelo contrário, foram produzidos com base num terceiro texto, cuja cro-nologia prova ter sido produzido anteriormente.

A linguística forense, enquanto ramo da linguística aplicada que con-siste na “análise da linguagem em todos os tipos de interação no contexto jurídico” (CALDAS-COULTHARD, 2014: 2), foca os aspetos da interação entre a Linguagem e o Direito. Contudo, os linguistas que operam em con-textos forenses contribuíram significativamente para casos que vão além da natureza puramente legal. Na área do plágio, em particular, as análises linguísticas evoluíram nos últimos anos, quer no que diz respeito à deteção de plágio em textos escritos na mesma língua que o original, quer no que diz respeito à deteção de plágio translingue. Decorreram quase 20 anos desde que Johnson (1997) comparou um conjunto de textos académicos, desenvolvendo um método que consistia em comparar apenas itens lexicais, em vez de utilizar técnicas de comparação de texto, para concluir que esses textos não eram originais. Com base neste método, a autora conseguiu de-monstrar tratar-se do resultado de colusão, isto é uma espécie de “plágio de grupo”. Embora a redação dos textos tenha sido alterada de modo a produzir versões ligeiramente diferentes, uma comparação dos itens lexicais mostrou que esses textos não tinham sido produzidos independentemente.

A análise linguística de Johnson não envolveu os tribunais, mas foi suficiente para demonstrar a reutilização textual entre estudantes; porém, mais importante ainda, os seus métodos de análise foram posteriormente aplicados em casos de judiciais. É o caso do trabalho de Turell (2004) que, baseando-se no trabalho de Johnson (1997), procurou verificar se aque-le tipo de análise linguística, comprovada em casos de plágio académico, também poderia ser utilizada para determinar com êxito a ocorrência de plágio em traduções de textos literários publicadas. Para o efeito, a autora comparou quatro traduções da obra Júlio César, de William Shakespeare, para espanhol, mostrando como uma análise linguística forense é suficien-temente robusta para provar que uma determinada tradução é uma deri-

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vação de outra tradução do mesmo original, e não uma tradução produzida independentemente. A autora mostrou claramente, ainda, de que modo esta análise forense poderá ser utilizada como prova da reutilização textual. A comparação das quatro traduções realizada por Turell incluiu a análise de sobreposição de vocabulário, partilha de palavras e expressões utilizadas uma única vez e vocabulário singular. O desempenho robusto deste método baseia-se no simples princípio de que, uma vez que todos estes elementos são relativamente independentes da ordem de palavras, têm tendência para apresentar um desempenho melhor do que os métodos de comparação de texto.

O caso estudado por Turell é um exemplo típico dos casos de plágio frequentemente levados a tribunal, na medida em que estas traduções são, elas próprias, obras literárias originais, e, por conseguinte, estão protegidas por legislação em matéria de direito de autor. Assim, este tipo de violação do direito de autor possui, por isso, implicações financeiras, para além de implicações morais, decorrentes do facto de o tradutor e/ou a editora res-ponsável pela publicação da obra serem detentores dos direitos de proprie-dade intelectual da obra traduzida, de modo idêntico aos direitos detidos pelo autor e/ou pela editora da obra original. Numa perspetiva da linguística forense, esta tarefa é particularmente desafiante: uma vez que qualquer tradução é, de certa forma, inevitavelmente condicionada pela forma e pelo conteúdo do original, quanto mais literal for a tradução, mais difícil será demonstrar a sua originalidade. Apesar deste obstáculo, a análise realizada por Turell revelou claramente que a tradução suspeita tinha plagiado uma outra obra traduzida publicada anteriormente.

Embora estes e outros estudos na área da linguística forense tenham sido fundamentais para a investigação sobre plágio, a investigação realizada centrou-se sobretudo no “plágio infralíngua”, isto é, na análise da reutiliza-ção indevida de textos produzidos na mesma língua. Pelo contrário, tem sido escassa a investigação dedicada ao estudo do “plágio translingue” (SOUSA--SILVA, 2013) – isto é, de casos de plágio com recurso à tradução, em que um texto reutiliza um texto ou parte dele, literalmente ou com algumas alterações, escrito noutra língua, sem uma atribuição clara, adequada e ine-quívoca. Duas razões potenciais contribuem para este facto. Em primeiro lugar, a investigação na área do plágio tem-se debruçado sobretudo sobre a língua inglesa. De facto, para além de a maioria da investigação sobre inte-gridade académica, políticas educativas e honestidade académica decorrer no contexto anglo-americano, também a amplitude do objeto de investiga-ção não deixa muita margem para analisar textos originais escritos noutras línguas. Decorrente deste facto, também na vertente da deteção foi criado software destinado a satisfazer as necessidades deste contexto específico.

Além disso, tomando como exemplo a Internet em geral, a maioria dos textos disponíveis em todo o mundo encontra-se atualmente escrita em

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inglês4, sendo a procura de textos redigidos noutras línguas consideravel-mente inferior. Em segundo lugar, apesar da necessidade urgente de detetar a reutilização textual de textos escritos noutras línguas, nomeadamente em resultado do elevado volume de produção científica em inglês, a deteção deste tipo de plágio exige um esforço muito significativo. Por imposição des-tas restrições, não existem atualmente, tanto quanto se conhece, formas fidedignas de verificar sistematicamente a existência de plágio translingue nos textos, a exemplo do que acontece com a deteção de plágio em textos escritos na mesma língua. Por esse motivo, estes casos de plágio só podem ser detetados quase exclusivamente por intuição, sem qualquer apoio com-putorizado.

Na sua maioria, o plágio translingue é constituído por textos traduzi-dos livre e “informalmente” de outra língua, sem citação do autor original. Ao contrário das obras literárias, cuja tradução é, normalmente, realiza-da por tradutores profissionais, a tradução de outros géneros de texto (tais como notícias e publicações em blogs, sem esquecer os textos de natureza académica) sem atribuição às fontes pode passar facilmente despercebida. Isto porque, ao contrário do problema analisado por Turell, o texto plagiado não é outra tradução na mesma língua, mas sim o original produzido noutra língua. Acresce, ainda, o facto de as traduções não literais dificultarem o processo de deteção.

Neste contexto, uma análise linguística de natureza forense é cru-cial, não só para fundamentar o processo de deteção, mas também para demonstrar a amplitude da reutilização, bem como determinar se um texto constitui um caso de plágio ou, pelo contrário, se essa reutilização textual é aceitável. Mais importante ainda, esta análise permite recolher provas de que determinado texto (ou grupo de textos) não foi produzido independen-temente. Este é o tema abordado na próxima secção.

4. Da suspeição à deteção

Este capítulo começa por investigar a deteção de reutilização literal do tex-to de artigos noticiosos. De seguida, propõe-se um método para levantar suspeitas relativamente ao plágio de determinado texto. Em terceiro lugar, este capítulo mostra como recolher provas de plágio em determinado texto, comparativamente a um ou mais textos noutra língua. Esta análise assenta num corpus de notícias publicadas em órgãos de comunicação social que, supostamente, foram produzidas independentemente de outras notícias do mesmo tipo, apesar de versarem sobre temas idênticos.

4 Segundo o website Internet World Stats, em 2013 a língua inglesa era, de longe, a língua mais utilizada na Internet – ver http://www.internetworldstats.com/stats7.htm

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Plágio literal

A deteção de plágio literal, nos casos em que determinado texto derivado reutiliza (quase) literalmente o texto original na mesma língua, sem altera-ções, é relativamente simples e fácil; desde que o original seja conhecido e esteja identificado, uma simples comparação do texto original e dos textos suspeitos (manualmente ou utilizando ferramentas informáticas comuns) é suficiente para identificar o volume de sobreposição, bem como a dimensão da reutilização. Com o objetivo de ilustrar este ponto, selecionei aleatoria-mente um texto fornecido pela agência noticiosa portuguesa Lusa entre um corpus de 28 notícias escritas e assinadas por jornalistas internos da agência. Uma simples pesquisa na Internet de algumas expressões do texto permitiu identificar dois casos individuais de reutilização textual sem atri-buição às fontes, que, consequentemente, constituem plágio: o primeiro foi publicado pelo jornal de referência português, Jornal de Notícias (JN); o segundo foi publicado online pela estação televisiva TVI. Estes textos são reproduzidos nos dois excertos seguintes. O texto plagiado literalmente é apresentado em tipo de letra itálico nos dois casos; o texto sublinhado indi-ca ligeiras alterações do texto original (e que, contudo, não interferem com o sentido do texto).

Excerto 1: Jornal de Notícias

Os microscópicos grãos de pólen das plantas poderão vir a derrubar a ideia de que ainda há crimes perfeitos, ao dar pistas seguras para deslindar casos que desafiam os limites da investigação criminal. A PJ já recorreu a este tipo de análise para resolução de pelo menos três crimes. O que parece fazer parte dos domínios da fábu-la ou da ficção científica é uma realidade já em prática por meia dezena de investigadores forenses no mundo [, e]. Portugal faz parte dessa vanguarda através de Ma-falda Faria, que [desenvolve o seu trabalho] trabalha na Universidade de Coimbra e no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). [A metodologia, fruto também do engenho e arte de quem a vem desbravando, não é mais do que a] A análise do pólen e de esporos de plantas que ficam agarrados ao corpo de pessoas e de objectos [vão] vai ajudar a reconstituir o percurso e locais de acção de criminosos e vítimas. Em homicídios, violações, roubos, contrafacção de medicamentos, tráfico, contrabando e até no combate ao terrorismo a Palinologia, ciência oriunda da Botânica, tem vindo a ajudar as ciências forenses a investigar e a explicar crimes. A Inglaterra e a Nova Zelândia fazem da Palinologia uma prática corrente para casos mais complexos, e é aceite como prova pericial em

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tribunal. Nos EUA, Austrália e Portugal tem dado uma ajuda à investigação criminal.

PJ já recorreu a análises do polén

O contributo dos estudos de Mafalda Faria, nos dois úl-timos anos, foi solicitado pela Polícia Judiciária para ajudar a reconstituir crimes como os do jovem universi-tário que em Coimbra assassinou a ex-namorada, no homi-cídio de um homem numa quinta de Viseu ou em casos de tráfico de droga. “Para certas situações, a Palinologia é a única que pode resolver. Se, por exemplo, se en-contra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele local, mas da sua proveniência”, explica a investigadora à agência Lusa, preconizando o seu alargamento a várias áreas da investigação criminal. “Depende do tipo de crime. Se for tráfico, contrafacção ou contrabando, são os próprios produtos analisados. No homicídio tem de se ir ao local recolher amostras das plantas e solo para analisar. Na vítima são amostras no cabelo, nas cavidades nasais e no vestuário, se tiver”, explica a investigadora.

Potencial singular para investigação criminal

Os grãos de pólen apresentam características que lhe conferem um potencial singular para a investigação cri-minal. Pode ser encontrado agarrado em praticamente qualquer objecto ou pessoa, e é altamente resistente à degradação mecânica, biológica e química. “Os agressores podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen, porque não os vêem, por serem microscópicos”, afirma Mafalda Faria, frisando que mesmo após lavagens das roupas será possível encontrá-los nelas. Por outro lado, esses mi-croscópicos grãos têm “uma grande capacidade de transfe-rência, das plantas para as pessoas e entre pessoas e, ao mesmo tempo, são bastante aderentes”. A Palinologia Forense é uma investigação pós-doutoramento que Mafalda Faria, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Univer-sidade de Coimbra (FCTUC), irá concluir no final do cor-rente ano, sob orientação do neozelandês Dallas Milde-nhall e do português Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). É financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Ela é o resul-tado do “bichinho” pelas ciências forenses que a levou a concorrer, sem sucesso, a lugares na Polícia Judiciária e no INML. Queria trabalhar em investigação forense em

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vestígios não biológicos, para dar sequência à sua for-mação em ecologia.

Excerto 2: TVI

O fim dos crimes perfeitos?

A palinologia, que analisa grãos de pólen, desafia dogmas e quer ajudar a investigação criminal

Por: Redacção /PP

Os microscópicos grãos de pólen das plantas poderão vir a derrubar a ideia de que ainda há crimes perfeitos, ao dar pistas seguras para deslindar casos que desafiam os limites da investigação criminal, escreve a Lusa. O que parece fazer parte dos domínios da fábula ou da ficção científica é uma realidade já em prática por meia deze-na de investigadores forenses no mundo, e Portugal faz parte dessa vanguarda através de Mafalda Faria, que de-senvolve o seu trabalho na Universidade de Coimbra e no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).

A metodologia, fruto também do engenho e arte de quem a vem desbravando, não é mais do que a análise do pó-len e de esporos de plantas que ficam agarrados ao corpo de pessoas e de objectos e vão ajudar a reconstituir o percurso e locais de acção de criminosos e vítimas. Em homicídios, violações, roubos, contrafacção de medica-mentos, tráfico, contrabando e até no combate ao terro-rismo a Palinologia, esta ciência oriunda da Botânica, tem vindo a ajudar as ciências forenses a investigar e a explicar crimes. A Inglaterra e a Nova Zelândia fazem da Palinologia uma prática corrente para casos mais comple-xos, e é aceite como prova pericial em tribunal. Nos EUA, Austrália e Portugal tem dado uma ajuda à investigação criminal. O contributo dos estudos de Mafalda Faria, nos dois últimos anos, foi solicitado pela Polícia Judici-ária para ajudar a reconstituir crimes como os do jovem universitário que em Coimbra assassinou a ex-namorada, no homicídio de um homem numa quinta de Viseu ou em casos de tráfico de droga.

A única resposta

“Para certas situações, a Palinologia é a única que pode resolver. Se, por exemplo, se encontra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele

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local, mas da sua proveniência”, explica a investigadora à agência Lusa, preconizando o seu alargamento a várias áreas da investigação criminal.

“Depende do tipo de crime. Se for tráfico, contrafacção ou contrabando, são os próprios produtos analisados. No homicídio tem de se ir ao local recolher amostras das plantas e solo para analisar. Na vítima são amostras no cabelo, nas cavidades nasais e no vestuário, se tiver”, explica a investigadora. Os grãos de pólen apresentam características que lhe conferem um potencial singular para a investigação criminal. Pode ser encontrado agar-rado em praticamente qualquer objecto ou pessoa, e é altamente resistente à degradação mecânica, biológica e química.

“Podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen”

“Os agressores podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen, porque não os vêem, por serem microscópicos”, afirma Mafalda Faria, frisando que mesmo após lavagens das roupas será possível encontrá-los nelas. Por outro lado, esses microscópicos grãos têm “uma grande capaci-dade de transferência, das plantas para as pessoas e en-tre pessoas e, ao mesmo tempo, são bastante aderentes.”

A Palinologia Forense é uma investigação pós-doutoramento que Mafalda Faria, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), irá concluir no final do corrente ano, sob orientação do neozelandês Dallas Mildenhall e do português Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). É finan-ciada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Ela é o resultado do “bichinho” pelas ciências forenses que a levou a concorrer, sem sucesso, a lugares na Polícia Judiciária e no INML. Queria trabalhar em investigação forense em vestígios não biológicos, para dar sequência à sua formação em ecologia.

A notícia publicada pelo JN (Excerto 1) possui uma sobreposição textual de 96%, correspondente a 527 em 554 palavras (a notícia original publicada pela Lusa possui 550 palavras), resultante das ligeiras alterações ao artigo noticioso publicado no jornal. Note-se que a Lusa é referida indiretamente, uma vez que as citações diretas utilizadas no texto são atribuídas à agência noticiosa. Porém, a autoria original da notícia não é atribuída no artigo do jornal. O texto publicado pela TVI (Excerto 2) apresenta uma sobreposição

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textual de 100%: a notícia publicada online reutilizou as 550 palavras da notícia publicada pela Lusa, apesar de ter acrescentado algumas palavras (o texto publicado pela TVI possui 566 palavras).

A notícia publicada pela TVI também inclui uma referência indireta à Lusa, atribuindo as citações diretas à agência noticiosa, mas vai além do JN, na medida em que atribui a autoria ao seu próprio repórter e à redação da estação televisiva (“Redacção/PP”). As alterações efetuadas ao texto da TVI são mínimas, mesmo comparativamente às alterações efetuadas pelo JN. Curiosamente, falta uma palavra no artigo original que levanta algumas questões de agramaticalidade: “Se, por exemplo, se encontra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele local, mas da sua proveniência”. Para que a frase seja gramatical, é necessário incluir pelo menos um pronome após “digitais” e antes de “poderá”, como, por exemplo, “ela” ou “esta”. Contudo, nem o JN, nem a TVI pareceram ter detetado esta falha, reproduzindo o erro, o que constitui uma prova inequívoca da reutili-zação textual. Além disso, os aspetos cronológicos mostram a direcionalida-de da reutilização, ou seja, que o JN e a TVI reutilizaram o texto da Lusa (ou copiaram-se mutuamente), mas o inverso não acontece.

5. A tradução como ferramenta de investigação

Conforme ilustrado na secção anterior, a deteção de plágio jornalístico (so-bretudo tratando-se se textos na mesma língua) é relativamente simples e fácil, sobretudo tendo em conta que os media se encontram cada vez mais disponíveis online. Porém, são necessárias técnicas mais sofisticadas para levantar suspeitas de plágio no caso de textos traduzidos de outras línguas livremente pelos jornalistas (recorrendo, muitas vezes, a motores de tra-dução automática gratuitos, como o Google Translate), normalmente para a sua língua materna. Nestes casos, o resultado da tradução automática é, normalmente, imperfeito, exigindo uma revisão mais ou menos profunda, não só para tornar o texto legível, mas também – e sobretudo – publicável. Para levantar suspeitas de que um texto deriva de um original noutra língua e, consequentemente, detetar ocorrências deste tipo de plágio (como é o caso do jornal Público referido acima), é frequente ter de partir da intuição (isto é, da sensação de déjà-vu), ou proceder a uma análise linguística. Esta análise também é necessária para fornecer provas da usurpação do texto, uma vez que a intuição, neste caso, não é suficiente.

Uma análise sintática, especificamente, quando integrada nesta abor-dagem linguística possui um elevado potencial para levantar suspeitas de que determinado texto constitui uma ocorrência de plágio, desde que as duas línguas envolvidas possuam uma sintaxe distinta. Esta hipótese assen-ta no pressuposto muito simples de que um texto escrito a partir de fontes noutra língua retém tendencialmente elementos sintáticos da língua origi-nal, ao contrário do que acontece com os textos escritos de raiz na mesma língua. Os excertos que se seguem ilustram este ponto:

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Excerto 3:

The renewal of the Toural square in the center of Guima-rães, will move to the end of the year, but the design is totally different from the planned study presented two years ago. The project challenged by vimaranenses resolve the tunnel road and underground parking. The car traffic will be maintained throughout the area, but there will be news. It is planned to create a street in the far east of Alameda de S. Damasus, within what is now the garden, and to distribute the traffic from the city center. The remaining garden is enhanced with more plant species, and have a new design, giving an idea of urban forest.

The project, coordinated by Maria Manuel Oliveira, the department of architecture at the University of Minho, provides the return of the fountain of Toural, public source of the sixteenth century passed, about one hun-dred years, the garden of Caramel. One of the central ideas expressed by the architects is the reuse of exis-ting elements, such as furniture. The assistance is ex-tended to the Republic of Brazil and off street of Santo António, changing the configuration of public transport. The taxi stand will be reduced and parking of buses transferred to the field of Kitchen. In the tower of the old wall with the inscription Here Born Portugal plans to establish a viewpoint that is an ideal place to ob-serve the new floor of the square, designed by the plastic artist Ana Jotta, based on the same rocks of quartz and basalt now available .

The assistance will be financed by EU funds after being approved an application to the program of urban regene-ration of the NSRF in the value of 9.9 million.

Authority takes possession of convent

Well near the Toural, the former Convent of Dominica, in the seventeenth century, will be incorporated in the project of Capital of Culture. The municipality appro-ved yesterday by the declaration of ownership of the property where usucapião are installed several cultural associations. In the building, now dilapidated, will be installed in the residence artists. The camera will have to find an alternative site for the installation of the seats of Tertulia Nicolina and Child Center of Popular

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Culture, although not yet officially have contacted the associations. The building for the House of Memory is also flagged. This is an old industrial plastics, the Count of Margaride avenue, into the city. This partially empty factory has an area free in the back so that the building is created from scratch.

Excerto 4:

Iran rallies planned amid clampdown

Anti-government protesters in Iran have announced they are to hold another rally in the capital to dispute the veracity of a presidential election. Supporters of candidate Mir Hossein Mousavi called on Wednesday for a rally to go ahead at 5pm local time (13:30 GMT), despi-te the authorities imposing a ban on the opposition ga-therings. Mahmoud Ahmadinejad, the incumbent president, was officially declared winner of Friday’s election by a margin of two-to-one over Mir Hossein Mousavi. Hos-sein, a reformist candidate who was the nearest rival to Ahmadinejad, a conservative, has accused the authorities of rigging the vote. But Ahmadinejad has said that the result proved he has popular support. “The election re-sult confirmed the work of the ninth government which was based on honesty and service to the people,” he said on Wednesday in a statement to Iran’s ISNA news agency.

Violence on tape

Despite the restrictions placed by the government on the media, violent scenes of police beating Mousavi supporters taken on mobile phones have been broadcast on news bulletins across the world. The Revolutionary Guard has warned the country’s online media it will face legal action if it “creates tension”. Within the cou-ntry, mobile phone text services have been down since the election. There is no access to Facebook, Twitter, or YouTube. The interior ministry has ordered an inves-tigation into an attack on university students in which it is claimed four people were killed. Anoushaka Maras-lian, a Middle East analyst in London, told Al Jazeera: “University cities in Iran have always been very active in political dissent. That’s the concern of the elders; that’s the concern of the Guardian Council, and that’s why they’re making conessions, because they realise that young Iranians are leading the protests... with paral-

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lels to [the revolution in] 1979.” At least seven people have been killed in recent clashes between the authori-ties and the opposition movement, according to state me-dia reports, while hundreds more are thought to have been injured. For its part, the foreign ministry summoned the Swiss ambassador, who represents US interests in Tehran, on Wednesday to protest at “interventionist” US state-ments on Iran’s election. Obama told CNBC there appeared to be little difference in policy between Ahmadinejad and Mousavi. “Either way we are going to be dealing with an Iranian regime that has historically been hostile to the United States,” he said. Mousavi has called on his supporters to hold peaceful demonstrations or gather in mosques on Thursday in solidarity with people killed or hurt in the post-election unrest. “In the course of the past days and as a consequence of illegal and violent encounters with [people protesting] against the outcome of the presidential election, a number of our countrymen were wounded or martyred,” Mousavi said on his website. “I ask the people to express their solidarity with the families... by coming together in mosques or taking part in peaceful demonstrations.”

Embora seja claro para qualquer falante de inglês que nenhum dos textos reproduzidos nos excertos 3 e 4 foi originalmente escrito em inglês, a quali-dade linguística dos dois textos varia; o Excerto 3 apresenta uma qualidade muito fraca, sendo, por vezes, praticamente impercetível, enquanto o Ex-certo 4, apesar de não estar totalmente correto, é bastante claro e inteligível. Um falante de inglês, sem quaisquer conhecimentos de português, conse-guirá compreender melhor a tradução do artigo apresentada no Excerto 4 do que a tradução do artigo apresentada no Excerto 3. O que é surpreen-dente é que os dois artigos foram publicados no mesmo jornal, o jornal de referência português Público, tendo em consideração que, de modo a evitar possíveis enviesamentos decorrentes de diferenças de política editorial en-tre órgãos de comunicação social distintos, tomou-se a decisão (aleatória, mas intencional) de selecionar os artigos de duas secções diferentes do mes-mo jornal. O Excerto 3 foi publicado na secção “Local”, enquanto o Excerto 4 foi publicado na secção “Mundo”. Os dois artigos foram, depois, traduzi-dos para inglês utilizando o Google Translate (http://translate.google.com), tendo como resultado as versões em inglês dos textos transcritos acima.

A estranheza muitas vezes encontrada em textos traduzidos (normal-mente de menor qualidade) é um bom marcador em casos de plágio, que, quando complementado por tradução automática, permite procurar e, sub-sequentemente, fazer uma comparação lado a lado do texto suspeito com o suposto original. De facto, conforme explicado anteriormente (SOUSA-

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-SILVA, 2014), a tradução automática de textos suspeitos (neste caso, textos escritos em português) para inglês oferece ao linguista forense uma pista de que o texto poderá ser reutilizado de outra fonte – o que, confirmando-se as suspeitas, indica tratar-se de plágio. Os Excertos 5 e 6 ilustram este método.

O Excerto 5 reproduz o artigo publicado originalmente em português no Público. A notícia não atribui o texto a qualquer agência noticiosa em particular, antes pelo contrário: o texto só faz uma referência genérica a “Agências” no início. Depois de traduzir este texto para inglês, selecionei algumas frases para fazer uma pesquisa na Internet utilizando itens lexicais como palavras-chave, dispensando as palavras funcionais. Estes itens lexi-cais foram, assim, utilizados como n-gramas filtrados (MAIA et al., 2008). A pesquisa baseada nestes parâmetros devolveu dois artigos relevantes: um foi publicado pelo jornal The Australian5 e o outro foi publicado no website da Channel News Asia6.

À exceção de diferenças mínimas em detalhes relacionados com as datas (por exemplo, “Sunday” ou “weekend”, e um parágrafo utilizado pela Channel News Asia que não foi reproduzido pelo The Australian), os dois artigos são praticamente idênticos. A autoria foi atribuída à mesma fonte, Agence France Presse (AFP), nos dois casos e, no caso da Channel News Asia, também a “ls/yb”.

O Excerto 6 apresenta uma transcrição do texto publicado original-mente pelo The Australian. Uma vez que os dois textos são reproduzidos nos Excertos 5 e 6 na língua em que foram inicialmente publicados pelos respetivos órgãos de comunicação social, a comparação baseou-se na iden-tificação das expressões com similaridade semântica, mas não textual. O texto apresentado em negrita indica as expressões com ideias sobrepostas, enquanto os números apresentados no início da expressões em destaque indicam as expressões correspondentes no outro texto.

Excerto 5: Notícia do jornal Público

Encontro com Abbas em Washington

Obama defende um Estado palestiniano e o fim da expansão dos colonatos

2009-05-28 23:25:00 PÚBLICO, Agências

O Presidente Barack Obama defendeu hoje a criação de um Estado palestiniano. [01]No fim do seu primeiro encontro com o presidente da Autoridade Palestiniana, o líder norte-americano repetiu uma vez mais o seu [02]apelo a

5 http://www.theaustralian.news.com.au/story/0,25197,25555182-5018557,00.html

6 http://www.channelnewsasia.com/stories/afp_world/view/432503/1/.html

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Israel [02]para que ponha fim à construção nos colonatos erguidos dos Territórios Palestinianos e honre os com-promissos que assumiu. As duas partes, afirmou Obama na Casa Branca, têm [05]“obrigações face ao roteiro” – o plano internacional de 2003 para a resolução do confli-to israelo-palestiniano. Nestas inclui-se “parar com a colonização”. [04]Durante a discussão com o novo pri-meiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a semana passada, “fui muito claro quanto à necessidade de travar a colonização”, esclareceu ainda Obama. Os palestinia-nos devem por seu turno fazer progressos na melhoria das suas forças de segurança e na redução do “incitamento” anti-Israel, defendeu. “Sou um grande crente da solução de dois estados”, disse ainda Obama, afirmando-se “con-fiante” na possibilidade de progressos em direcção à paz entre israelitas e palestinianos. Nas curtas declara-ções à imprensa que tiveram lugar depois do encontro de Washington, Mahmoud Abbas sublinhou, por seu turno, a urgência de tais progressos, declarando que [03]“o tem-po [é] um factor essencial” no processo. O apelo ao fim da colonização na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental já tinha sido feito na véspera pela secretária de Es-tado, Hillary Clinton: [06]“Nenhuns colonatos, nenhumas excepções de crescimento natural”. E já hoje, antes do encontro entre Abbas e Obama, Israel reagira pela voz do porta-voz do Governo, que explicou que o futuro dos colonatos só será decidido através das negociações com os palestinianos. [07]“Entretanto, temos de permitir que a vida continue normalmente nestas comunidades”, disse Mark Regev. O que isso significa é que mesmo que não sejam construídos novos colonatos, a expansão dos já existen-tes poderá prosseguir.

Excerto 6: Notícia do jornal The Australian

Obama presses Israel on settlements but rules out peace timetable

May 29, 2009

US President Barack Obama has renewed pressure on Is-rael over settlements but rejected a timetable for his peace drive, noting domestic pressures heaped on Isra-eli Prime Minister Benjamin Netanyahu. [01]As Mr Obama met Palestinian leader Mahmud Abbas for the first time as president, he [02]called for a halt to settlement buil-ding on the occupied West Bank, as his administration

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sparred with Israel over the sensitive issue. Mr Obama vowed an “aggressive” mediation effort, ahead of his vi-sit to Saudi Arabia and Egypt next week, while Mr Abbas pledged to live up to all previous peace agreements and warned [03]“time is of the essence” for a two-state so-lution. [04]The US president recalled that last week he had been “very clear” with Mr Netanyahu about the need to “stop settlements” and again stated his desire to see a two-state solution to the Israeli-Palestinian conflict. Asked if he would strong-arm Israel if it did not back down in its refusal to support a Palestinian state, Mr Obama said: “I think it’s important not to assume the worst, but to assume the best”. He rejected an opportu-nity to set a date for the establishment of a “viable, potential” Palestinian state. “I want to see progress made, and we will work very aggressively to achieve it. I don’t want to put an artificial timetable,” he said. “I am confident that we can move this forward if all parties are ready to meet their obligations.” On Wednesday, Se-cretary of State Hillary Clinton had significantly har-dened the US position on settlements, prompting a blunt dismissal from Israel. But Mr Obama appeared to give Ne-tanyahu some leeway, noting the fierce pressures imposed on the Israeli leader by his hawkish right-wing coali-tion. “I think that we don’t have a moment to lose, but I also don’t make decisions based on just a conversation that we had last week,” Mr Obama said. “Because obviou-sly Prime Minister Netanyahu has to work through these issues in his own government, in his own coalition.” The US president also called on Mr Abbas to offer security improvements to Israel and to quell anti-Israel incite-ment in Palestinian mosques and schools. Mr Abbas warned that all parties should work to alleviate the plight of the Palestinians and move towards statehood. “I would like to take this opportunity to affirm to you that we are fully committed to all of our [05]obligations under the roadmap, from the ‘A’ to the ‘Z’,” he said. Mr Abbas added that he had shared ideas with Mr Obama based on the roadmap and the 2002 Saudi peace plan backed by the Arab league. The US-backed roadmap calls for a halt to Jewish settlement activity in Palestinian territories and an end to Palestinian attacks against Israel but has made little progress since it was drafted in 2003. Ms Clinton said Mr Obama “wants to see a stop to settle-ments. [06]Not some settlements, not outposts, not natu-ral growth exceptions.” But Israel dismissed the blunt

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US call. [07]“Normal life” will be allowed in settle-ments in the occupied West Bank, government spokesman Mark Regev said, using a euphemism for continuing cons-truction to accommodate population growth. He added the fate of settlements “will be determined in final status negotiations between Israel and the Palestinians and in the interim, normal life must be allowed to continue in those communities.” The Palestinian Authority has ruled out restarting peace talks with Israel unless it removes all roadblocks and freezes settlement activity. Mr Ne-tanyahu told Mr Obama last week at their first White House meeting that he was willing to “immediately” relaunch the peace talks but failed to publicly back the creation of a Palestinian state or to freeze settlement activi-ty. The Israeli prime minister told his cabinet at the weekend he did not intend to build new settlements but that “it makes no sense to ask us not to answer to the needs of natural growth and to stop all construction,” aides said. The Abbas meeting represented Mr Obama’s latest attempt to revive the stalled Middle East peace process, which have included talks with Jordan’s King Abdullah II, Mr Netanyahu and in London with Saudi King Abdullah. Next week, Mr Obama will meet the Saudi King in Riyadh and deliver a long-awaited address to the Mus-lim world in Cairo. But he said he would not lay out his long-awaited peace plan in the speech, which he said was designed to lay out a path for a “better” US relationship with the Islamic world.

AFP

A análise linguística superficial apresentada acima mostra que algumas ora-ções ou frases com afinidade semântica são constituídas por citações, pelo que têm tendência para serem utilizadas adequadamente no texto. Ao cita-rem o discurso direto de outras pessoas, estas expressões constituem o tipo de factos que não podem estar sujeitos a plágio. A análise também revela que a ordem das ideias diverge nos dois textos, pelo que as expressões idên-ticas são utilizadas em secções diferentes do artigo noticioso, o que poderia sugerir que o texto foi produzido de forma independente. Adicionalmente, o artigo em português foi publicado no dia 28 de maio, enquanto os artigos publicados pelo The Australian e pela Channel News Asia foram publicados no dia 29 de maio. Embora o critério da cronologia de publicação dos artigos possa ser um forte indicador de autoria original, tal não significa que o artigo em português não possa ter-se baseado na peça da agência noticiosa AFP, sobretudo tendo em consideração que os dois artigos da secção “Mundo” (que atribuem a autoria original à agência noticiosa internacional, a AFP)

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apresentam uma elevada sobreposição textual. Não obstante o facto de a no-tícia original da AFP ser de acesso restrito, a comparação com os dois artigos em inglês publicados no dia 29 de maio sugere que o artigo em português também deriva, pelo menos em parte, da mesma fonte. A comparação mos-tra, também, que diversas cadeias de palavras do artigo que, supostamente, foi produzido de modo independente são idênticas às expressões do texto cuja autoria é atribuída à AFP. Curiosamente, a frase “Ms Clinton said Mr Obama ‘wants to see a stop to settlements. Not some settlements, not ou-tposts, not natural growth exceptions’” é atribuída a Hilary Clinton no texto em português, apesar de a AFP descrever esta frase como discurso indireto de Obama, na voz de Clinton.

6. A relevância da estranheza

Os resultados da análise evidenciam que o plágio jornalístico (que, além de ser proibido, é seriamente punido pelos órgãos mediáticos) não só exis-te, como é passível de deteção, mesmo em texto que reportam factos. Os casos discutidos revelam que, embora os jornais de referência sejam mais cuidadosos na citação das suas fontes (normalmente, conhecidas agências noticiosas internacionais), a atribuição às fontes originais encontra-se mui-tas vezes incompleta, é inadequada ou vaga. Nos casos apresentados neste capítulo, por exemplo, o JN não fez qualquer atribuição às fontes, o Público atribuiu a autoria às “Agências” sem referir quaisquer agências específicas, e a TVI reutiliza o texto original na íntegra, assumindo a autoria como sendo de um dos seus repórteres. Estes atos representam, normalmente, uma vio-lação das normas e das políticas de ética estabelecidas, quando vigentes. Por exemplo, o facto de o Público possuir uma política de ética e instruções cla-ras sobre quando e como citar as fontes não impediu que o jornal publicasse um artigo atribuindo a autoria, de forma vaga, a “Agências”. Neste sentido, o plágio jornalístico não é muito diferente do plágio académico, excetuando talvez o facto de este último ser praticado por falantes em fase de formação em escrita, enquanto o primeiro é praticado por escritores profissionais.

A análise dos textos também mostra que as ferramentas (gratuitas) de tradução automática constituem um bom recurso para testar casos sus-peitos de plágio translingue. No caso analisado, o resultado da tradução au-tomática de um artigo insuspeito permitiu selecionar algumas frases, que foram utilizadas de seguida para fazer uma pesquisa na Internet. Depois de descartar as palavras funcionais, focando os itens lexicais, foram encontra-dos dois artigos publicados em dois órgãos de comunicação social diferentes, com uma probabilidade elevada de decorrerem da mesma fonte. Embora seja possível alegar que a análise contrastiva do texto (suspeito) escrito em língua portuguesa com o texto cuja autoria é atribuída à AFP não é suficien-te para sustentar as acusações de plágio, essa análise mostra claramente que a versão portuguesa não foi produzida de forma independente, apesar de não existir uma correspondência exata entre o artigo em português e os

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dois artigos em inglês, nem em termos da linguagem utilizada, nem relati-vamente à ordem de descrição dos factos. Tal sugere que a notícia publicada no jornal português pode ter sido redigida com base em diferentes notícias de media e websites internacionais.

7. Conclusão

O trabalho apresentado neste capítulo, apesar de se basear numa análi-se linguística superficial, defende a conceção de uma nova abordagem à deteção de plágio translingue, cujo potencial foi previamente demonstrado (SOUSA-SILVA, 2014). Este estudo contribuiu para um já extenso volume de investigação realizada ao longo das últimas décadas que demonstra que a linguística forense possui potencial investigativo e probatório em casos de plágio, bem como em casos de violação de direito de autor. De um ponto de vista investigativo, uma análise linguística forense contribui para o desenvol-vimento de métodos, ferramentas e procedimentos utilizados na revelação e deteção de casos de plágio. De um ponto de vista probatório, análises lin-guísticas forenses permitem fornecer provas de que determinada reutiliza-ção textual constitui um caso de plágio ou, pelo contrário, que as suspeitas e/ou acusações de plágio são improcedentes. Esta última possibilidade, em particular, é uma área que exige uma análise linguística mais aprofundada, e que se encontra fora do âmbito deste artigo.

A natureza forense do plágio foi questionada com frequência sob o pre-texto de que inúmeros casos de plágio (como é o plágio académico) não en-volverem as instâncias legais – ou, pelo menos, não diretamente. De facto, os casos de plágio académico são, maioritariamente, geridos pela academia, do mesmo modo que os casos de plágio jornalístico são tendencialmente geridos pelas organizações de comunicação social envolvidas. Por conse-guinte, normalmente (ainda que nem sempre) estes casos são avaliados como uma questão moral, mais do que uma questão legal, e resolvidos fora dos tribunais; porém, o envolvimento dos tribunais em casos de plágio (in-cluindo académico) não é inédito, sobretudo como recurso de anulação de graus académicos. Contudo, tendo em consideração que as acusações de plágio podem ter sérias implicações na vida do suspeito plagiador, provar ou refutar um caso como plágio pode ser inquestionavelmente relevante, quer nos tribunais, quer fora deles.

Assim, o futuro da investigação sobre plágio é prometedor, revelando nitidamente uma ótima oportunidade para investigação interdisciplinar, com potencial de colaboração entre linguistas forenses e juristas, sem esquecer linguistas computacionais e especialistas em ciências da computação. Mui-to embora se tenham desenvolvido métodos bem fundamentados de inves-tigação linguística sobre plágio, existirá sempre margem para aprofundar essa investigação, não só concebendo novos métodos de análise, mas tam-bém adaptando métodos existentes (cuja relevância tem sido demonstrada ao longo do tempo) a novos desafios. A linguística forense computacional

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constitui, definitivamente, uma das áreas que pode contribuir significati-vamente para a deteção de plágio. Embora os sistemas que utilizam infor-mações de natureza linguística apresentem um bom desempenho, o sof-tware de deteção de sobreposição textual produz, muitas vezes, resultados dececionantes. Neste sentido, tal como Maia et al. (2008: 83) defenderam que a colaboração entre linguistas e engenheiros (informáticos) é essencial para a linguística computacional, também aqui se defende que a linguística forense, pela seu caráter, se encontra na posição ideal para promover essa investigação interdisciplinar.

Agradecimentos

Este capítulo é baseado na investigação realizada no âmbito do meu dou-toramento (SOUSA-SILVA, 2013), investigação essa que foi parcialmente apresentada na 9th International Conference of the IAFL, em Amesterdão, em 2009, e no Congresso da IAMCR, que decorreu em Braga em 2010.

Este trabalho foi parcialmente apoiado pela bolsa de investigação SFRH/BD/47890/2008 FCT-Portugal, cofinanciada pelo POPH/FSE.

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Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos

Bruna Batista Abreu e Kátia Eliane Muck

Universidade Federal de Santa Catarina

Miquéias Rodrigues

Universidad Mayor, Santiago, Chile

1. Introdução

Existe no meio acadêmico o objetivo de produzir e compartilhar conheci-mentos. O labor da pesquisa tem por finalidade alcançar descobertas que proporcionem contribuições para a área de estudo em que cada um atue e divulgá-las. Entretanto, tem-se observado cada vez mais a ocorrência da prática de plágio nesse contexto, o que tem ocasionado discussões e maior preocupação dentro da comunidade acadêmica a respeito de como se lidar com tais situações. Desse modo, é importante salientar que há diferentes contextos em que essas incidências ocorrem, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Além disso, pode-se encontrar plágio em publicações de periódicos, em teses, dissertações, monografias e, também, em trabalhos de disciplinas. As causas que levam o estudante ou o pesquisador a cometer plágio variam enormemente, motivo pelo qual torna-se necessário tratar cada caso de acordo com a abordagem mais apropriada – como discutido na seção seguinte.

O fato é que diariamente nos deparamos com notícias sobre plágio acadêmico, seja na mídia ou nos corredores das universidades. De um lado estão os alunos, que geralmente são desinformados sobre o assunto, en-quanto que do outro lado estão os professores, que somam às suas ativi-dades corriqueiras a nova tarefa de detectar plágio. Também é fato que o avanço da tecnologia tem possibilitado o desenvolvimento e aperfeiçoamen-to de programas de computador que facilitaram a identificação de indícios

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de existência de plágio. Sob tal ponto de vista, identificar plágio tem ficado cada dia mais fácil, mas plagiar também – muitas vezes bastando apenas o uso das opções “copiar e colar”. A produção intelectual mundial está a um clique de distância de qualquer um com acesso à internet. Isso tem muda-do nossa maneira de produzir, consumir e distribuir conhecimento. Conse-quentemente, essa nova prática social exige uma adequação das práticas pedagógicas.

Considerando a importância de tal assunto, a presente investigação tem por objetivo documentar e revelar de que forma duas instituições de ensino superior, uma no Brasil e outra no Chile, lidam com o plágio aca-dêmico, e qual o nível de conhecimento dos alunos e professores acerca da existência das regras sobre plágio ou da falta delas. Este estudo inclui e parte de um outro estudo desenvolvido por Abreu & Coulthard (2014) apenas investigando as percepções dos alunos de pós-graduação da mesma instituição brasileira ora investigada. Abreu & Coulthard (2014) basearam sua investigação numa sugestão de Coulthard & Johnson (2007, p. 197)1.

Este capítulo está organizado em quatro seções, além desta introdutó-ria. A primeira seção, revisão de literatura, apresenta uma breve exposição de alguns dos aspectos do tema, indicando algumas complexidades ineren-tes ao assunto. A segunda seção, aspectos metodológicos, descreve os par-ticipantes, os materiais e os procedimentos utilizados para coleta e análise dos dados. A terceira seção, resultados e discussão, relata os resultados dessa investigação e contrasta as respostas dos participantes nas duas instituições. Finalmente, a conclusão apresenta algumas considerações finais advindas da pesquisa juntamente com sugestões e reflexões para o desenvolvimento de novas práticas pedagógicas.

2. Revisão de Literatura

Nesta seção apresentamos um breve panorama do tema, destacando alguns aspectos que se mostram mais relevantes para o presente trabalho. Sabe-se que um dos requisitos dentro do gênero acadêmico é o de embasar-se teo-ricamente em outros autores para o desenvolvimento do próprio trabalho. Nesse contexto, plágio pode ser definido como “o roubo, ou uso não admitido de um texto criado por outro”2(COULTHARD & JOHNSON, 2007, p. 187). Sendo assim, é legítimo utilizar o texto de outro dentro do próprio, desde que devidamente citado, utilizando-se marcadores convencionados por nor-mas pré-estabelecidas. No Brasil, por exemplo, costuma-se adotar as regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Entretanto, algumas

1. Gostaríamos de expressar nossa gratidão aos professores Coulthard e Figueiredo, que ministraram uma disciplina sobre linguagem e direito da qual as duas autoras participaram como alunas, pelas valiosas contribuições oferecidas para o questionário originalmente utilizado na pesquisa de Abreu e Coulthard (2014).

2. Nossa tradução para: “the theft, or unacknowledged use, of text created by another.”

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instituições adotam outras, como as da American Psychological Association (APA) ou da Modern Language Association (MLA). Independentemente do modelo escolhido pela instituição ou pela revista, o objetivo da utilização das normas é padronizar as citações e referências por meio de convenções, ou seja, procedimentos que sejam de comum entendimento entre todos, estan-do acessíveis para consulta.

Por estar diretamente ligado à produção científica, o meio acadêmico difere, por exemplo, de textos jornalísticos, especialmente por lidar com co-nhecimentos de natureza mais duradoura e advinda de um intenso labor de pesquisa. Conforme mencionado por Coulthard (2007, p. 185),

as convenções nos ramos do conhecimento divergem no modo de olhar o problema, pois algumas desaprovam o plágio mais do que outras – jornalistas aparentemente se sentem na condição de tomar emprestados pedaços inteiros de textos sem atribuição alguma de autoria, enquanto que acadêmicos se sentem muito ansiosos em ter todas as fontes devidamente citadas3.

Por haver uma construção conjunta do conhecimento em determinada área dentro da academia, deve-se partir do que já tem sido realizado de modo a acrescentar as próprias contribuições, destacando e valorizando todos os trabalhos. Além disso, os interesses que permeiam produções textuais acadêmicas não se restringem a objetivos financeiros. Como destacado por Krokoscz (2014, p. 94),

autores acadêmicos são caracterizados não pelo interesse financeiro ou obtenção de vantagens materiais, mas pela conservação de sua reputação, credibilidade e reconhecimento atribuído pelos pares devido à contribuição dada à edificação do conhecimento.

Portanto, a inclusão de outras vozes no próprio texto não desmerece o pró-prio trabalho – ao contrário, garante maior credibilidade a este. Conside-rando isso, apesar de em diversos casos tratar-se de uma conduta antiética, plágio pode indicar principalmente falta de maturidade acadêmica e desco-nhecimento acerca da importância da presença de outros textos no próprio para se obter suporte e o ponto de partida para novos avanços.

‘3. Nossa tradução para: “The conventions of individual disciplines cross-cut the problem, because some frown on plagiarism more than others – journalists apparently feel able to borrow large chunks of text with no attribution at all, whereas academics are ever more anxious to have every source acknowledged.”

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Entretanto, as causas que na maior parte dos casos podem levar um aluno a incorrer em plágio vão além de questões éticas. Pelo contrário, por conta da falta de conhecimento sobre as normas de citação e de maior habi-lidade em escrita acadêmica, muitos acabam plagiando de forma não inten-cional. Conforme ressaltado por Howard (1995, p. 797),

o aspecto moral não é necessariamente um componente do plágio, e desconhecimento em citação não é a única alternativa fora disso. Uma terceira possibilidade, raramente reconhecida, é que os alunos podem ter motivos louváveis (ênfase do autor) para se envolverem em patchwriting4, uma estratégia textual comumente classificada como plágio.5

É importante que ocorrências de plágio dentro do contexto educacional se-jam observadas mais detidamente e que seja levado em conta o histórico do aluno bem como seu estágio dentro do processo de aprendizagem em escrita acadêmica.

Considerando a necessidade de prevenir plágio entre seus alunos, al-gumas instituições disponibilizam guias de escrita acadêmica bem como as normas de citação e referência adotadas pelo programa de ensino. Além disso, universidades no Reino Unido, por exemplo, contam com uma ampla estrutura institucional para lidar com plágio. Entretanto, tem-se investigado de que forma tais abordagens são feitas bem como a eficácia das medidas adotadas6.

Por outro lado, as instituições pesquisadas no Brasil e no Chile nem sequer possuem documentos ou guias de orientações para evitar o plágio até o momento. As ações preventivas são realizadas em sala de aula pelos próprios professores, especialmente nas disciplinas de escrita acadêmica. Nessas oportunidades os alunos são orientados acerca de como usar as nor-mas para citação e referências em seus textos e conscientizá-los acerca da importância de se respeitar tais procedimentos. Apesar disso, tem-se en-contrado nos dois programas de ensino investigados alunos incorrendo em plágio em trabalhos de aula (especialmente na graduação, onde este tipo de

4. Patchwriting é um termo cunhado por Howard, que descreve a prática escrita utilizada por alunos em processo de aprendizagem em escrita acadêmica. De modo geral, trata-se de montar um texto valendo-se de diversos fragmentos de outras fontes.

5. Nossa tradução para: “Since paraphrasing consists largely of the student’s own words, that writing is considered to ‘belong’ to them and thus is presented within the student text absent any citation.”

6.Com este objetivo, a pesquisa de doutoramento da primeira autora deste trabalho tem sido desenvolvida.

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atividade é mais recorrente), artigos finais de disciplinas e até mesmo em trabalhos de conclusão de curso, teses e dissertações.

Além da importância fundamental de medidas preventivas, tem-se ob-servado também a necessidade de a instituição possuir as próprias regras e até mesmo uma legislação específica para tratar casos de plágio – o que não ocorre nas instituições pesquisadas no presente estudo. Isso acontece porque apesar de sua relação com as leis de direitos autorais, existem outros fatores no plágio acadêmico que o diferenciam da violação de tais direitos de forma geral. Apesar de em alguns casos a interferência de tais leis se fazer necessária (como plágio em teses e em publicações de periódicos), incidên-cias dentro da instituição de ensino devem ser abordadas sem se perder de vista o objetivo principal que deve reger os ambientes educacionais: a formação educacional do indivíduo, a qual inclui o desenvolvimento das habilidades em escrita acadêmica.

Finalmente, um último aspecto importante que mencionamos sobre o tema diz respeito às famigeradas ferramentas de detecção. Como já aponta-do por Sousa-Silva (2014, p. 40), tais recursos, embora possam auxiliar na identificação de similaridades textuais, apresentam limitações na detecção de outros tipos de cópia. Desse modo, o software por si só não é capaz de avaliar se há plágio no texto, pois paráfrases, traduções, entre outras estra-tégias comumente utilizadas, não são detectadas, o que requer o olhar de um profissional qualificado. Nas palavras de Sousa-Silva (2014),

[a]s análises e relatórios advindos dos sistemas de detecção podem ser interpretados com a assistência da análise da linguística forense, para que, por um lado, falsas suspeitas sejam descartadas e, ao mesmo tempo, sejam descobertas instâncias ocultas, não encontradas por tais sistemas.7 (p. 40)

Além disso, tais programas detectam quaisquer similaridades textuais, o que inclui trechos que são devidamente citados e que, portanto, não configu-ram plágio. Sendo assim, é importante aliar o uso do sistema de detecção à análise feita por um ser humano, que pode ser o próprio educador ou, especialmente em casos mais complexos, com o suporte de um especialista em linguística forense.

Após a exposição deste breve panorama sobre plágio, a seção seguinte apresentará a descrição dos aspectos metodológicos que guiaram este estu-do.

7 . Nossa tradução para: “the analyses and the reports provided by detection systems can be interpreted with the assistance of a forensic linguistic analysis, so as to discard false positives, on the one hand, while at the same time unveiling hidden true positives that may have been missed by the detection systems.”

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3. Aspectos metodológicos

Para cumprir o objetivo dessa investigação, que é revelar o conhecimento de alunos e professores acerca das definições de plágio bem como das regras relacionadas a tal prática em suas instituições, estabelecemos os seguintes aspectos metodológicos descritos neste seguimento: os participantes da in-vestigação, e os materiais e os procedimentos utilizados para coleta e análise de dados.

2.1 Participantes

Os participantes são alunos e professores de um curso de pós-graduação de uma universidade pública brasileira e alunos de graduação e seus pro-fessores de outra instituição de ensino superior chilena. No que se refere aos participantes da universidade brasileira, eles são professores, alunos e ex-alunos de curso de mestrado e doutorado de um programa de pós-gra-duação voltado às áreas de língua e literatura inglesas. Responderam ao questionário 2 professores e 21 alunos e ex-alunos. Importa ressaltar que os dados dos participantes alunos e ex-alunos foram extraídos de Abreu & Coulthard (2014). No tocante aos participantes da instituição chilena, eles são alunos e professores do curso de graduação em pedagogia em inglês. No total, responderam ao questionário, 4 professores e 16 alunos.

A escolha dessas duas instituições ocorreu em decorrência do acesso dos pesquisadores aos programas dessas universidades, e devido à disponi-bilidade dos mesmos em encaminhar o convite de participação aos alunos e professores.

A participação de todos ocorreu de forma confidencial, anônima, vo-luntária e consentida para uso dos dados de maneira específica na apresen-tação em uma conferência de Linguística Forense no Brasil e na publicação resultante desta conferência.

2.2 Materiais

Os materiais empregados para a presente investigação foram o estudo de-senvolvido por Abreu & Coulthard (2014) e dois tipos de questionários em língua inglesa, um aplicado aos alunos da instituição chilena (Anexo 1), e outro aos professores de ambas instituições (Anexo 2). O trabalho desenvol-vido por Abreu & Coulthard (ibid) investigou o conhecimento de alunos de um curso de pós-graduação acerca do plágio. Alguns dos participantes ha-viam recentemente deixado o programa, e outros ainda estavam cursando. Observou-se da parte deles desconhecimento acerca das normas do pro-grama para se lidar com casos de plágio, o que de fato decorre da ausência

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de tais normas bem como de maiores informações por parte do programa a respeito da abordagem do assunto plágio.

O questionário aplicado aos alunos da instituição de ensino superior chilena (Anexo 1) seguiu o modelo utilizado por Abreu & Coulthard (2014), com mínimas adaptações. Uma delas foi a inclusão de uma pergunta es-pecífica para revelar a fase do curso em que o aluno se encontra. Outra adaptação ocorreu na forma de coletar os dados. Enquanto Abreu & Coul-thard (2014) enviaram os questionários por e-mail, obtendo, também, as respostas por e-mail, optamos por elaborar o questionário online utilizando a ferramenta Form do Google Drive (https://drive.google.com). Esse aspecto metodológico garantiu tanto a confidencialidade dos participantes, como já garantida por Abreu & Coulthard (2014), quanto a anonimidade dos mes-mos. Em outras palavras, enquanto os pesquisadores acima citados conhe-ciam a identidade dos respondentes, nós desconhecemos a identidade dos respondentes dos questionários online, fato que pode fazer com que au-mente o número de respondentes em pesquisas.

Sendo assim, esse questionário é composto pela questão do perfil e por mais seis questões que respondem essa pesquisa. A questão referente ao perfil é de múltipla escolha, onde os alunos deveriam indicar qual a fase do curso que estavam cursando. Dentre as outras seis questões, que buscam investigar o que os alunos sabem tanto sobre plágio quanto sobre como a instituição onde estudam lida com o assunto, cinco são abertas e uma é de múltipla escolha. Dependendo da resposta a essa questão de múltipla esco-lha, os alunos poderiam responder mais quatro questões abertas.

O questionário aplicado aos professores de ambas as instituições (Ane-xo 2) também foi baseado no questionário desenvolvido por Abreu & Coul-thard (2014), contando com quatro questões: duas abertas e duas de múlti-pla escolha, sendo que uma destas últimas foi subdividida em mais questões abertas, que deveriam ser respondidas dependendo da resposta à questão de múltipla escolha. Esse questionário também foi elaborado num espaço online, da mesma forma descrita acima sobre o questionário aplicado aos alunos.

Ambos questionários foram desenvolvidos na língua inglesa por duas razões. Primeiramente, tínhamos o intuito de manter o questionário o mais próximo possível do empregado por Abreu & Coulthard (2014), visto que contrastar os resultados é parte integrante do objetivo da nossa pesquisa. O outro motivo é que os resultados, inicialmente, seriam divulgados em língua inglesa e poderíamos apresentar as respostas originais dos partici-pantes, sem traduções. Todavia, o melhor meio de divulgação mostrou-se ser em língua portuguesa e as traduções fizeram-se necessárias. Importa mencionar que, mesmo que os questionários tenham sido distribuídos em língua inglesa, não havia nenhuma exigência de que eles devessem ser res-pondidos nessa língua. Todos os participantes conheciam ao menos um dos

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pesquisadores e sabiam da proficiência dos mesmos nas línguas portuguesa, espanhola e inglesa. Além disso, todos os participantes eram proficientes em inglês, pois era uma exigência para pertencer aos programas.

2.3 Procedimentos para coleta e análise dos dados

Foram utilizados dois procedimentos para coleta dos dados nesta investi-gação: os resultados do trabalho de Abreu & Coulthard (2014) para fins de comparação; e a coleta de dados por meio de dois questionários online, um para os alunos da instituição chilena, e outro para os professores de ambas as instituições. Os pesquisadores enviaram e-mails aos grupos de e-mail específicos de cada instituição e de cada grupo de participantes (professores e alunos) convidando-os a participar desta pesquisa. O e-mail identificava os pesquisadores, fornecia seus contatos, ressaltava a importância da parti-cipação e fornecia o link de acesso ao questionário apropriado.

Apesar de os questionários terem preservado a confidencialidade e anonimidade dos participantes, conforme mencionado anteriormente, obti-vemos uma participação modesta, principalmente em relação à quantidade de professores das duas universidades. Além disso, estamos cientes de que buscamos dados de um curso de graduação em uma instituição e dados de um curso de pós-graduação em outra instituição. Essa foi uma escolha me-todológica que objetivava revelar um cenário mais amplo sobre a abordagem do plágio, já que estávamos impossibilitados de pesquisar ambos universos em ambas universidades. Todavia, não consideramos tais fatos como limita-ções deste estudo, uma vez que o objetivo é revelar a necessidade de inves-tigar e documentar a percepção e a prática em relação ao plágio acadêmico.

No que se refere aos procedimentos para análise de dados, a presente pesquisa é de enfoque qualitativo. As análises, portanto, foram feitas a partir das respostas oferecidas nos questionários. Ryan (2006) diz que devemos analisar os dados em vez de apenas deixar que eles falem por eles mesmos. A autora explica que os dados brutos, que aqui seriam as respostas de cada participante, não nos dizem nada. É necessário, segundo ela, que os dados brutos passem pelo processo de análise para que eles façam algum sentido, constituindo o que chamamos de resultados de pesquisa (RYAN, 2006, p. 92).

Posto isso, para que os dados brutos passassem a revelar algum sig-nificado, eles foram primeiramente classificados nas seguintes categorias pré-estabelecidas por Abreu & Coulthard (2014): definição de plágio; co-nhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio; conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio; conhecimen-to de casos envolvendo plágio na instituição; e opiniões e sugestões sobre punições por plágio. Em seguida, dentro de cada uma dessas categorias, as respostas foram organizadas por afinidade originando subcategorias que

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surgiram dos dados. Por fim, os resultados foram contrastados a fim de re-velar o retrato do universo pesquisado.

Ainda, na fase de escritura deste capítulo, os excertos escolhidos para exemplificar os resultados apresentados na próxima seção foram traduzidos para o português.

4. Resultados e discussão

Para apresentar os resultados de maneira organizada, esta seção os abor-dará seguindo a categorização de Abreu & Coulthard (2014), na seguinte sequência: (3.1) definição de plágio; (3.2) conhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio; (3.3) conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio; (3.4) conhecimento de casos envolvendo plágio na instituição; e (3.5) opiniões e sugestões sobre punições por plágio. Além disso, cada subseção apresenta instâncias textuais dos dados advindos das respostas dos participantes.

3.1 Definição de plágio

Em suas respostas, os alunos da instituição chilena demonstraram conhe-cer a definição de plágio, como nos exemplos abaixo. Eles advertem saber como utilizar-se de textos de livros, ideias, fotografias, trabalhos, entre ou-tros, de outras pessoas, o que corrobora os resultados de Abreu & Coulthard (2014)8:

Plágio é quando você usa mesmas ideias, frases, pensamentos, fotografias, etc. como se eles fossem seus, mas eles pertencem a outra pessoa.

Plágio é a cópia da ideia de outra pessoa, ele pode ser relacionado com seu trabalho, dever de casa, artigo, entre outros.

Eu definiria como a ação de tomar a ideia de outra pessoa usando-a como se fosse originalmente nossa

O roubo de ideias

Dizer que eu inventei algo que foi inventado por outra pessoa.

8. Todas as evidências textuais foram traduzidas do original respondido pelos participantes, em inglês.

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Tomar as ideias de outros usando-as como se elas fossem nossas próprias ideias, tanto em discursos escritos quanto orais.

Diferentemente de Abreu & Coulthard (ibid), muitos alunos evidenciaram, em suas definições de plágio, como se tratando de uma apropriação em que não se referencia a autoria, como se pode observar nos seguintes excertos:

Eu definiria plágio como o ato de copiar exatamente o mesmo que eu li num artigo ou livro, e não escrever a fonte ou autores desses textos. É importante enfatizar que se eu copio alguma informação de um livro e não escrevo o autor, o documento será meu, e isso é plágio; pelo fato de eu estar roubando as ideias de outras pessoas.

Como o ato de usar material criado por outro autor, sem o citar de forma apropriada de modo a mostrar que o material usado foi criado por aquele autor, e não por nós.

Quando você usa as ideias de alguém sem mencionar o autor.

Entretanto, mais uma vez corroborando os resultados de Abreu & Coulthard (ibid), nenhum aluno mencionou como sendo plágio a apropriação de ideias e textos de autoria própria em trabalhos anteriores. Pode-se dizer que para estes participantes plágio é visto apenas como tal quando ocorre a apropria-ção de algo cuja autoria é de outra pessoa.

Em relação aos professores da instituição chilena, dois participantes responderam que plágio envolve o fornecimento de informação sem refe-renciá-la propriamente. Outro participante definiu plágio como o processo de “copiar e colar”, e o quarto respondeu que plágio significa a obtenção de lucro intelectual de outro trabalho, sem autorização. Em relação a universi-dade brasileira, ambos os professores respondentes definiram plágio como o uso de ideias de outros sem referenciar.

3.2 Conhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio

Com exceção de um aluno, que disse não saber das regras sobre plágio por-que não havia informações sobre isso nem mesmo na página da internet da universidade, todos os demais disseram conhecer as regras sobre plágio existentes na instituição chilena, como mostram alguns excertos, que se-guem:

Se um professor de qualquer disciplina descobre que você cometeu plágio em um

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documento, ele ou ela pode te dar a nota mínima (1.0). Por outro lado, se ele considera importante, ele ou ela pode deixar a cargo dos superiores da faculdade ou da universidade e eles podem adotar punições mais fortes.

Se um aluno é pego fazendo plágio ele ou ela vai ter a nota mínima numa média final de disciplina.

Se um aluno plagiou algo, os professores são autorizados a colocar a nota mínima.

Na universidade casos de plágio são penalizados pela nota mínima, então isso é proibido.

Na instituição brasileira, de acordo com Abreu & Coulthard (2014), os da-dos mostraram que os alunos parecem não dominar as regras do programa sobre plágio ou não ter certeza quanto às sanções. Entretanto, assim como observado na instituição chilena, um dos motivos é a ausência de uma di-vulgação mais ampla dessas informações e até mesmo de uma legislação específica para o estabelecimento formal de tais regras.

Quando perguntados se foram explicitamente informados sobre as normas da universidade sobre plágio, as respostas parecem discordar umas das outras, conforme apresentado na Tabela 1. Possivelmente tal contra-dição advém da incerteza de tais regras, visto que inexiste uma legislação oficial dentro da instituição, restringindo tais informações ao que os profes-sores orientam a respeito.

Tabela 1: Recebimento de informação sobre regras da universidade acerca de plágio (alu-nos chilenos).

Recebimento de informa-ção

# alunos Percentual

Sim 9 56,25Não 5 31,25

De alguma forma 1 6,25Não respondeu 1 6,25

TOTAL 16 100

Como demonstrado, 56,25% dos alunos afirmam terem sido informados das regras da universidade sobre plágio, enquanto que 31,25% afirmam que não receberam nenhum tipo de informação. O participante que disse que recebeu informação de alguma forma afirma que fizeram um módulo sobre

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regras de APA, mas que ninguém ofereceu exemplo sobre algo com plágio, conforme excerto abaixo:

Existe um módulo na nossa disciplina principal em que somos ensinados sobre as normas do APA; entretanto, ninguém nos disse que tipo de artigo seria plágio para que tivéssemos um exemplo.

Todos os professores respondentes da universidade do Chile conhecem as regras sobre plágio do seu departamento, segundo suas respostas. Além dis-so, eles informaram que as regras não são institucionais, mas que são deci-didas dentro do departamento ou pelos próprios professores, que estabele-cem tais regras para as disciplinas que lecionam.

Da mesma forma, os professores da universidade brasileira também afirmaram conhecer as regras sobre plágio. Um dos participantes respon-deu que são as mesmas regras utilizadas em qualquer outro contexto, sem especificar que regras seriam essas. O outro participante respondeu que as regras seguidas são as estabelecidas pelas normas técnicas de padronização de citações e referências.

Nesse sentido, observa-se um descompasso entre o conhecimento de alunos e professores sobre as regras. Enquanto estes afirmam conhecê-las, os alunos não se mostram certos a respeito. Pode-se constatar que o motivo pelo qual os professores sabem das regras é o fato de que aparentemente são eles quem as ditam. Os alunos, por outro lado, além de não poderem par-ticipar de tais decisões, não possuem acesso formal a tais regras que, pelo observado, não parecem ser oficiais.

3.3 Conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio

Quando indagados se a violação das regras estabelecidas pelo curso levam a uma punição, os alunos da universidade do Chile, em sua maioria (15 den-tre os 16 participantes) responderam afirmativamente. Houve apenas um participante que admitiu não saber sobre isso.

Contudo, em seguida, quando perguntados se conheciam quais eram as penalidades, as respostas foram confusas. Muitos alunos afirmaram sa-ber que a punição para quem pratica plágio é a nota mínima que é, no caso dessa instituição, 1 (um). Seguem alguns exemplos:

Como eu disse antes, nós somos punidos com a nota mínima, sem chance de reclamar disso.

Você tira 1.

A nota mínima (1.0).

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Geralmente você tira a nota mínima, 1.0.

Outros alunos apenas informaram que recebem a nota mínima, mas não disseram explicitamente conhecer quanto ela vale:

A nota mínima na media final da disciplina.

Se alguém é pego fazendo plágio de um material escrito, esta pessoa recebe a nota mais baixa possível.

Além disso, mostra-se relevante observar a informação nova abordada pelo aluno: a nota mínima é na média final. Parece que essa notícia não é com-partilhada pelos outros alunos, já que ninguém mais comentou sobre esse detalhe.

Ainda, alguns alunos listaram outras sanções, como a expulsão do cur-so, atribuição de notas menores, cancelamento de matrícula e atribuição de nota zero, com risco de prisão. Todavia, tais informações não foram confir-madas pela universidade como procedimentos adotados:

A expulsão do curso

Eu acho que a penalidades na universidade é a atribuição uma nota ruim para a pesquisa

Alunos tiram notas baixas.

Num caso extremo, você, como aluno, sua matrícula pode ser cancelada e, se isso acontece, você não pode entrar novamente na universidade em qualquer curso.

Ser avaliado com zero, eu entendo agora que no Chile você pode ir a prisão por plágio.

Quando os alunos foram perguntados se existem níveis de plágio, 6 res-ponderam que não, 6 responderam que não sabiam dessa informação e 3 responderam que sim, embora estes últimos não soubessem qual seria esse nível, como expresso abaixo:

Sim, eu acho que depende do tipo de documento que você está plagiando, porque é diferente plagiar um documento de três páginas de um seminário valendo nota.

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Eu acho que a sanção depende do grau, mas eu não sei como isso é medido.

Os mesmos resultados de informações confusas e desencontradas entre os alunos foi observado também no estudo de Abreu & Coulthard (2014). Há algumas possíveis explicações para tais divergências, sendo que uma delas, conforme já ressaltado, deve-se à ausência de divulgação formal por parte da instituição e até mesmo de políticas específicas para lidar com plágio. Entretanto, os participantes parecem se sentir intimidados de declarar que desconhecem tais regras – resposta esta que seria legítima, considerando que elas não existem oficialmente. Como eles são cientes de que plágio é tratado como um erro grave e muitas vezes até como um crime dentro da academia, deduziram que há punição e, assim, confiaram em suas próprias opiniões acerca dos procedimentos, que nem sempre coincidiram com o que é em realidade adotado.

No que respeita aos professores, três dos professores da universidade chilena responderam que a violação às regras de plágio levam a penalidades, enquanto um respondeu que não. Quando indagados sobre quais eram as penalidades, todos os 3 que responderam afirmativamente relataram que era a atribuição de nota 1. Além disso, um deles citou o uso do programa de computador chamado Viper, que é utilizado para averiguar se os trabalhos contém plágio, sendo que o percentual de cópia acima de 20% é considera-da plágio, segundo este participante.

Por outro lado, tais penalidades parecem não estar bem definidas, pois quando foram questionados se a penalidade é atribuída de acordo com o nível de plágio, suas respostas diferiram um pouco entre si e entre as ofe-recidas anteriormente. Enquanto um deles disse que se há detecção acima de 20%, dá-se nota 1, o outro assinalou 10% como suficiente para o aluno receber essa nota. O terceiro respondente disse que qualquer plágio é puni-do, sem especificar.

Em relação aos professores da universidade brasileira, todos respon-deram que a violação às regras de plágio levam a penalidades, como can-celamento do diploma, segundo um respondente, e, segundo o outro, tais medidas são decididas por professores e autoridades, pois não há regras ou legislação específica para esse assunto. Diferentemente dos professores da universidade do Chile, os brasileiros afirmam que não sabem ou acreditam não existir níveis de plágio.

3.4 Conhecimento sobre casos envolvendo plágio na instituição

Sobre conhecimento de casos envolvendo plágio na instituição, o resultado geral das respostas dos alunos da universidade do Chile foi parecido com o resultado encontrado por Abreu & Coulthard (2014). Parte dos alunos

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chilenos mostrou não ter conhecimento de casos de plágio no seu curso, a saber 7 respondentes, e 6 alunos responderam que conhecem casos de plágio, como excertos abaixo demonstram:

Sim. Eu soube de alguns colegas que tiraram a nota mínima em importantes trabalhos escritos, e que a medida envolveu se dar mal nas disciplinas.

Eu ouvi de alguém sendo pego por ter feito uso do trabalho de outra pessoa. Essa pessoa recebeu a nota mais baixa possível.

Fui informada de uma situação. Meu professor de linguística nos contou que ele havia punido um grupo de alunos porque eles tinham feito plágio em seus ensaios. Ele disse que havia diminuído as notas deles, mas eu acho que ele foi um pouco simpático.

Em relação aos professores, todos os respondentes de ambas universidades disseram conhecer casos de plágio na universidade em que trabalham. En-tretanto, não foi relatado a forma como foram tratados.

3.5 Opiniões e sugestões sobre punições por plágio

Os respondentes alunos da universidade do Chile, quando convidados a oferecer opiniões e sugestões sobre punições por plágio, deram respostas diversificadas. Três deles responderam que não mudariam nada nas puni-ções que são aplicadas atualmente. Um respondente disse não ter opinião formada sobre o assunto. Os demais tiveram as mais variadas respostas, dentre elas a sugestão de que esse assunto já seja abordado na escola, antes de entrar para a faculdade e assim que ingressassem na universidade, como evidenciado em algumas das respostas abaixo:

Acho que é algo que tem que ser enfrentado durante os tempos de escola. Alunos tem que ser ensinados desde quando estão na escola que plágio é ruim, como roubar ou colar numa prova.

Eu acho que é importante estabelecer as regras desde o começo, assim que os alunos chegam na universidade.

Eu acho que muitos alunos não são totalmente familiarizados com plágio, eles não sabem o que é, nem até que ponto é errado. Eu acho que os alunos deveriam ser ensinados sobre

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o que é plágio e também como citar de forma correta. Isso deveria ser resolvido durantes os anos de ensino médio.

Em relação às mudanças que fariam, os professores da universidade do Chi-le responderam que ensinariam os alunos, desde cedo, como parafrasear e citar de maneira correta. Além disso, estabeleceriam regras claras em cará-ter institucional como maneira de evitar problemas, já que pensam que em muitos dos casos os alunos não sabem que estão cometendo plágio.

Na instituição brasileira, um dos professores sugeriu que a coordena-ção do curso alerte os alunos para a seriedade do assunto e informe sobre a facilidade de como o plágio pode ser detectado. O outro professor participan-te sugeriu que uma legislação clara seja estabelecida em nível institucional.

Tais sugestões, tanto de alunos quanto de professores, parecem aten-der a uma necessidade de abordar o assunto de plágio com mais precisão e de informar regras precisas aos alunos assim que ingressarem nos cursos.

5. Conclusão

Os resultados encontrados na pesquisa com alunos chilenos apresentam muitos aspectos em comum com os advindos da realizada com alunos bra-sileiros. Os níveis de escolaridade dos participantes alunos (no Chile, um curso de graduação, e, no Brasil, um curso de pós-graduação) não motivou divergências significativas em relação ao entendimento dos participantes so-bre o que é plágio e a incerteza quanto a falar a respeito das sanções dentro da instituição para infrações.

Tais evidências podem demonstrar certa semelhança entre as institui-ções brasileira e chilena, visto que foi possível observar em ambas a ausên-cia de políticas para prevenção e procedimentos oficiais para abordar casos de plágio. Foi identificado, ao invés disso, a existência de algumas medidas estabelecidas pelo corpo docente, como a atribuição da nota 1 e utilização de um software para auxiliar na detecção de similaridade textual no Chile, e expulsão ou perda de título no Brasil. Em decorrência disso, exceto nos casos em que os professores alertam em suas aulas, não há divulgação de informações a respeito nem um guia para fornecer orientações sobre como evitar o plágio. Apesar de estarem lidando com níveis diferentes, ambas as instituições carecem de políticas antiplágio e de recursos pedagógicos que viabilizem os meios com os quais os alunos possam obter informações mais precisas acerca do tema e de como evitar plágio em suas produções intelec-tuais.

Os conhecimentos dos professores das duas instituições divergem dos conhecimentos de seus alunos no que se refere ao entendimento das regras de plágio de seus departamentos. Tal fato revela a necessidade de estabele-cer um canal comunicativo entre professores e alunos, possivelmente, no

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sentido de definir regras tanto para evitar o plágio quanto para a punição aos que o cometem, uma vez que ambas instituições não possuem direcio-namentos oficiais acerca do assunto.

Como sugerido por um participante aluno, o ensino médio parece ser um momento adequado para expor o aluno à definição de plágio. Segundo Buckley (2015), a transição desta etapa escolar para a universidade é um momento “marcado por uma série desafios para o aluno novo” (p. 352)9 e o peso do plágio acaba aumentando a carga das novas tarefas nessa nova fase. Atualmente, o ensino médio tem sido um contexto onde a prática vigente de certa forma induz o desenvolvimento de atividades em que os alunos ficam mais propensos a cometer plágio, como no caso das famigeradas pesquisas que os alunos precisam fazer sobre determinado assunto e apresentar ou entregar na próxima aula. O aluno conduz uma procura sobre o assunto na internet, copia e cola vários trechos que julga interessante, entrega o traba-lho e ainda recebe uma avaliação alta. Esse mesmo aluno, de um momento para o outro, muda de contexto, saindo do ensino médio e entrando na universidade. Contudo, ele continua atuando como aluno do ensino médio no que concerne produção escrita, pois essa é a única prática social que ele conhece. Ou seja, esse aluno desenvolverá trabalhos da mesma maneira que vinha desenvolvendo, com a diferença de que em vez de receber uma avaliação positiva, agora alguém o avisará que ele está cometendo um crime.

Buckley (2015) sintetizou muito bem o que acontece com os alunos nesta fase de transição quando eles parafraseiam:

Como a paráfrase consiste em grande parte de palavras próprias do aluno, tal escrita [a paráfrase] é considerada ‘pertencer’ a eles e, portanto, é apresentada no texto do aluno ausente de qualquer citação. Todavia, onde o tutor vê plágio, o aluno vê ‘suas’ palavras, uma parte legítima da escrita acadêmica.10

Portanto, seja no ensino médio ou no primeiro ano de graduação, faz-se necessária a inclusão formal da abordagem do tema plágio no currículo. Entendemos, também, que tal abordagem deve evitar o discurso ameaçador em torno do tema e focar no desenvolvimento de habilidades de escrita para que o aluno possa estar devidamente informado e tenha, inclusive, capa-cidade de escolher entre assumir uma postura ética ou cometer um crime (de plágio). Afinal de contas, como afirma Pithan & Vidal (2013, p. 78), “o plágio trata-se de uma questão ética, antes do que jurídica. É de grande

9 . Nossa tradução para: “marked by a series of challenges for the new student”.

10 . Nossa tradução para: “Since paraphrasing consists largely of the student’s own words, that writing is considered to ‘belong’ to them and thus is presented within the student text absent any citation.”

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importância a função educativa da universidade para o desenvolvimento de pesquisas científicas com integridade ética”.

Finalmente, este trabalho objetivou trazer à tona o conhecimento de alunos e professores a respeito de plágio e das sanções que tal prática acar-reta nas instituições em que pertencem. Espera-se, com este estudo, trazer contribuições para futuros trabalhos que investiguem questões de plágio bem como aspectos relacionados com o meio educacional e contraste de culturas entre países.

6. Referências

ABREU, B. B. & COULTHARD, R.M.: Plagiarism in the academic context: an investigation of PPGI students’ awareness of the problem. Echoes: Reflections on Language and Literature. Organizadores: Celso Henrique Soufen Tumulo, Magali Sperling Beck e Malcolm Coulthard. Programa de Pós-Graduação em Inglês UFSC: Florianópolis, 2014. Disponível em http://ppgi.posgrad.ufsc.br/files/2014/09/echoes-reflections-on-language-and-literature.pdf Acesso em 19 de novembro de 2014.

BUCKLEY, C. Conceptualizing plagiarism: using Lego to constructo students’understanding of authorship and citation. Teaching in Higher Education, Vol. 20, No. 3, março, 2015, p. 352-358.

COULTHARD, M. & JOHNSON, A. An Introduction to Forensic Linguistics: Language in Evidence. London: Routledge, 2007.

HOWARD, R. M. Plagiarisms, Authorships, and the Academic Death Penalty. College English, Vol. 57, No. 7, novembro, 1995, p. 788-806.

KROKOSCZ, M. Em outras palavras: análise dos conceitos de autoria e plágio na produção textual científica no contexto pós-moderno. Tese de doutorado. USP: São Paulo, 2014.

PITHAN. L.H; VIDAL, T.R.A. O plágio acadêmico como um problema ético, jurídico e pedagógico. Direito & Justiça. Vol. 39, No 1, jan/jun 2013, p. 77-82. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fadir/article/viewFile/13676/9066 Acesso em 16 de março de 2015.

RYAN, A.B. ‘Methodology: Analysing Qualitative Data and Writing Up Your Findings’. In: Antonesa, M., Fallon, H., Ryan, A.B., Ryan, A., Walsh, T. and L. Borys (eds.) Researching and Writing your Thesis: a guide for postgraduate students, MACE: Maynooth, 2006. Disponível em http://eprints.maynoothuniversity.ie/871/1/methodology.pdf Acesso em 16 de março de 2015.

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82 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos

SOUSA-SILVA, R. Investigating academic plagiarism: a forensic linguistics approach to plagiarism detection. International Journal for Educational Integrity. Vol. 10, No 1, junho, 2014, p. 31-41 Disponível em http://www.ojs.unisa.edu.au/journals/index.php/IJEI/ Acesso em 19 de novembro de 2014.

Anexo 1 – Questionário aplicado aos alunos da instituição chilena

Dear Students!Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm Coulthard, has designed a questionnaire on the subject of plagiarism that was applied to the students of a Graduate English Program at a university in Brazil. With a view to broadening the scope of her research and to offer-ing your own viewpoints on the subject, we have decided to apply the same questionnaire (with only minor modifications) to students at the ___(inser-imos aqui o nome da universidade chilena)___ Undergraduate English Pro-gram. Therefore, for the purposes of unveiling possible contrasting views on the subject, we kindly invite you to participate in this research by answering the questionnaire provided in what follows. The results of this research will be presented and published in a Forensic Linguistics Conference to be held in Brazil. You and your institution will remain anonymous. You will receive a copy of the final work.IMPORTANT: When answering the questionnaire and submitting your an-swers, you will be consenting to the use of your data to the research ends specified above.We thank you for your collaboration!Researchers: Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck, Miquéias Rodrigues* Required1. Please tick below the Semester you are currently in: * Mark only one oval.

1 3 5 7 9 2 4 6 8 10

2. How would you define plagiarism? *

3. What are the rules about plagiarism in your university? *

4. When you entered the university, were you informed about these rules? If so, how, when and by whom?

5. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one oval.Yes No I don’t know

5.1 What are the penalties?

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Bruna Batista Abreu | 83

5.2 Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this measured?

5.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too heavy or about right?

5.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do you have any views on the level of their punishment?

6. What changes, if any, would you make to the way this problem is current-ly treated? *

7. As an exercise, identify whether there is plagiarism in either the following texts and explain your conclusion. (A note: only the first poem was pub-lished). Poem 1: In Case of Fire – Roger McGough In case of FIRE break glass In case of GLASS fill with water In case of WATER wear heavy boots (“In case of...” 12 more times) In case of FIRE break glass (At the end of the poem, the author noted:) “This poem was inspired by Jenny Lewis, one of my students at Lumb Bank” [a creative writing course centre] Poem 2: In Case of Fire – Jenny Lewis In case of fire, break glass In case of water, lift glass In case of wine, lift several glasses (“In case of...” 12 more times) In case of fire, break glass (This poem was not published before or alongside the first one)

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Anexo 2 – Questionário aplicado aos professores das instituições chilena e brasileira

Dear Professors!Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm Coulthard, has prepared a questionnaire on the subject of plagiarism that was applied to the students at a Graduate English Program at a university in Brazil. With a view to broadening the scope of her research and to offering professors’ viewpoints on the subject, we have decided to apply the same questionnaire (with only minor modifications) to professors at that same Graduate English Program. Additionally, for the purposes of unveiling possible contrasting views on the subject, we kind-ly invite the professors of the English Undergraduate Program at ______(neste espaço foi inserido o nome da instituição chilena, quando enviado os professores da mesma) _____to participate in this research by answering the questionnaire provided in what follows.The results of this research will be presented and published in a Forensic Linguis-tics Conference to be held in Brazil. You and your institution will remain anony-mous. You will receive a copy of the final work.

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84 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos

IMPORTANT: When answering the questionnaire and submitting your answers, you will be consenting to the use of your data to the research ends specified above.We thank you for your collaboration!Researchers:Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck, Miquéias Rodrigues* Required

1. How would you define plagiarism? *

2. Do you know what are the rules about plagiarism in your university? * Mark only one oval.Yes No

2.1 If so, what are they?

3. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one oval.Yes No I don’t know

3.1 What are the penalties?

3.2 Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this mea-sured?

3.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too heavy or about right?

3.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do you have any views on the level of their punishment?

4. What changes, if any, would you make to the way this problem is currently treated?

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4

Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia1

Luciane Fröhlich e Marina Piovesan Gonçalves

Universidade Federal de Santa Catarina

1. Introdução

Quando analisamos a literatura ofertada na área de Linguística Forense no Brasil, principalmente no que tange aos estudos da tradução forense, temos um grande desapontamento. Não apenas pela falta de material disponível em bibliotecas ou em outras instituições mas, principalmente, pelo pequeno número de pesquisas diretamente ligadas a essa área dentro do Brasil.

Os Estudos da Tradução Forense, ramificação da Linguística Forense, é um campo de pesquisa interdisciplinar relativamente novo, em franca expansão, que está inserido entre o universo das Letras e o do Direito. E é justamente desta característica interdisciplinar que resulta a carência de estudos mais direcionados à área, já que se faz necessária uma aliança entre pesquisas destas duas vertentes.

Dentro dessa abordagem, o presente trabalho pretende colaborar na expansão das pesquisas na área no Brasil, fornecendo uma investigação que une e discute informações relevantes ao Direito e à Linguística, aplicadas aos estudos tradutológicos.

2. Contexto investigativo

De fato, considerando sua natureza interdisciplinar, esta pesquisa insere-se na interface entre os Estudos da Tradução e a Linguística Forense e investi-ga os desafios e as competências intrínsecas ao ofício do tradutor jurídico no Brasil, apresentando-o como perito, tanto no universo da linguagem, quanto no do Direito. É de se observar, outrossim, que a tradução jurídica quase

1. Contém parte dos estudos da tese da primeira autora, Luciane Fröhlich, defendida na PGET/UFSC em 2014.

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sempre é realizada por um tradutor público, uma vez que os documentos jurídicos precisam de juramentação para se tornarem válidos no exterior. Desta forma, a responsabilidade civil e criminal, pela tradução de qualquer texto com juramentação, eleva consideravelmente a responsabilidade do tradutor, principalmente em se tratando de documentos jurídicos, como é o caso da carta rogatória (CR), exemplo que será aqui abordado, cujo gênero, por natureza, interliga dois sistemas linguísticos (o do Juízo Rogante e o do Juízo Rogado).

Deste modo, é apresentado um levantamento do processo envolvido na tradução2 da CR, desde a intimação do tradutor até o protocolo de en-trega da tradução juramentada, com foco, no entanto, no papel do tradutor dentro desse processo jurídico, sua formação especializada e seus desafios perante a hermenêutica jurídica.

2.1 Definindo tradução forense

Deborah Cao, Professora de Tradução e Linguagem Jurídica da Griffith Uni-versity/Austrália, define o termo ‘tradução jurídica’ como segue:

Legal translation is a type of specialist or technical translation, a kind of translational activity that involves special language use, that is, language for special purpose (LSP) in the context of law, or language for legal purpose (LLP) (CAO, 2010).

Assim, conforme Cao, tradução jurídica seria “um tipo de tradução espe-cializada ou técnica, uma espécie de atividade translacional que envolve uso especial da linguagem, ou seja, a linguagem com um propósito especial (LSP), no contexto do Direito, ou a linguagem com fins legais (LLP)”3.

Note que Cao utiliza o adjetivo ‘legal’ ao invés de ‘forense’. Esta é a escolha mais comum. Em praticamente todos os textos da área, o termo ‘tradução forense’, ainda é pouco explorado. Normalmente opta-se pelos termos sinônimos ‘tradução jurídica’, ‘tradução judicial’ ou mesmo ‘tradu-ção legal’.

Neste trabalho usa-se, preferencialmente, a palavra ‘forense’ para ten-tar abarcar todo o espectro de significados ligados ao universo do Direito e também para fazer uma espécie de diferenciação, em contraposição aos adjetivos ‘legal’, ‘jurídico’ ou ‘judicial’, uma vez que estes “parecem” possuir

2. Nesse caso particular de estudo, a primeira autora fez parte de todo processo, atuando diretamente como tradutora pública, previamente intimada como perita ad hoc pela Justiça Federal do Estado de Santa Catarina. Esse trabalho in loco lhe permitiu visualizar de perto todas as etapas e percalços envolvidos nas situações de pesquisa.

3.Tradução nossa.

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o mesmo significado. Algumas definições sobre a temática, conforme FER-REIRA (1986):

Forense = “[Do lat. forense]. Adj. 2 g. 1. Respeitante ao foro judicial. 2. Judicial.”

Judicial = “[Do lat. judiciale]. Adj. 2 g. 1. Que tem origem no poder judiciário ou perante ele se realiza. 2. Respeitante ao juiz, a tribunais ou à justiça; forense. [Sin. Ger.: judiciário].”

Judiciário = “[Do lat. judiciariu]. Adj. 1. Relativo ao direito processual ou à organização da justiça; judicial.”

Legal = “[Do lat. legale]. Adj. 2 g. 1. Conforme ou relativo à lei. [...]”. (FERREIRA, 1986)

Como se observa acima, os adjetivos ‘forense’, ‘judicial’ e ‘judiciário’ traba-lham em sintonia, no entanto o adjetivo ‘legal’, difere-se, possuindo carga semântica diferente, abarcando o universo dos códigos, das leis.

Acquaviva (2006), em seu dicionário jurídico brasileiro, apresenta um texto extenso, que ocupa três colunas de sua obra, em que procura definir historicamente a origem da palavra ‘lei’.

Abaixo um pequeno extrato, em que explica que ‘lei’ teria uma:

Etimologia incerta. A mais aceita atualmente faz derivar o termo do sânscrito laugh, que originou o verbo grego légein e a conhecida expressão latina lex, sugerindo, por outro lado, a ideia de estabelecer, tornar estável, permanente. Todavia, em Cícero (De legibus, I, 6, 19), lex deriva do verbo legere ou deligere, eleger, porque a lei indicaria o melhor caminho a ser trilhado pelo cidadão. O próprio Cícero, contudo, insinua que lex poderia derivar, também, de legere, ler (lex a legendo4), pelo fato de as leis serem escritas e dadas ao povo para leitura e conhecimento. [...] (ACQUAVIVA, 2006, p. 520)

Da explicação de Acquaviva (2006) chegamos ao seguinte esquema:

4. Leitura da lei.

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Assim, o termo ‘lei’ poderia ser definido resumidamente como algo escrito, estável, que está codificado, que advém de instância superior e serve para a informação, e, mais ainda, normatização da sociedade.

Já o termo ‘jurídico’, definido por Ferreira (1986 p. 995): “[Do lat. juridicu]. Adj. 1. Relativo ou pertencente ao direito. [...], parece ser mais extenso, no qual o termo ‘judicial’, como apresentado anteriormente, figura como seu sinônimo.”

Também aqui Acquaviva (2006) se esmera para qualificar a etimo-logia da palavra ‘direito’, ocupando cinco colunas e meia de seu dicionário jurídico. Abaixo seguem alguns excertos de seu texto:

A palavra direito é plurívoco-analógica, isto é, apresenta uma pluralidade de sentidos análogos […]. Provém do latim directu, que suplantou a expressão jus, do latim clássico, por ser mais expressiva. Em Roma havia o jus e o fas. O jus é o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas a dar ordem à vida em sociedade; fas é o conjunto de normas de origem divina, religiosa, que regeriam as relações entre os homens e as divindades. Nos primórdios da história de Roma o fas imperava, sua aplicação cabia aos pontífices, ministros supremos da religião […]. A palavra direito penetrou no vocábulo das nações por via latina, originando-se de um primitivo radical indo-europeu (rj) em substituição ao latino clássico jus, como vimos. [...]

A palavra direito significaria remotamente, portanto, guiar, conduzir. Entretanto, se a etimologia da palavra parece ser a que foi exposta, as acepções da palavra direito variam grandemente, embora sejam análogas.

Figura 1: Definindo o sentido da palavra ‘lei’

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O direito só pode ser definido à luz de cada uma das acepções do vocábulo [...].”

Eis algumas significações da palavra direito:

1. Direito objetivo: o direito brasileiro pune o duelo.

2. Direito subjetivo: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5, II da CF).

3. Direito no sentido do justo: o operário tem direito de participar nos lucros da empresa.

4. Direito no sentido da ciência: cabe ao Direito o estudo da posse e da propriedade.

Portanto, as definições a seguir referem-se ao direito objetivo: “Sistema de normas de conduta que coordenam e regulam as relações de convivência de uma comunidade humana, e que se caracterizam por um poder de obrigatoriedade igualmente extensivo ao grupo e aos indivíduos que o formam” (Joaquim Pimenta). […] (ACQUAVIVA, 2006, p. 300)

Direcionando os significados da palavra ‘direito’, extraídos dos fragmentos acima, com a esfera objetiva alinhada à subjetiva, poderíamos resumir o termo com a figura abaixo:

Figura 2: Definindo o sentido da palavra ‘direito’

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Em síntese, a palavra ‘direito’ poderia ser definida resumidamente como um conjunto de normas jurídicas que disciplinam a sociedade, fazendo alu-são ao aspecto objetivo do Direito, com a norma agendi, ou seja, a lei escrita.

Neste contexto, segundo Costa (s.d.), é possível definir Direito como “a ordenação da convivência humana segundo a justiça, atribuindo-se a cada um aquilo que é seu, sendo a ordem jurídica o resultado dessa ordenação.”

Não obstante, retomando a discussão entre ‘legal’ e ‘jurídico’, e consi-derando as definições sobre lei e direito explanadas durante este capítulo, podemos concluir que o adjetivo ‘legal’ está apoiado na lei (lex) e ‘jurídi-co’, com significado mais abrangente, refere-se à lei (escrita) e também ao direito, que pode ser definido como um conjunto de normas de conduta que regulam a convivência humana em sociedade (com normas ou não, como moral e ética).

Texto legal, no entanto, pode ser considerado como sendo relativo à lei; e texto jurídico relativo à lei e ao Direito. Sendo assim, usar o adjetivo ‘legal’ para qualificar tradução remeteria a um sentido limitado ao universo legal, ou seja, das leis, não alcançando, portanto, todas as áreas do Direito. Deste modo, considerando as nuances de sentido envolvidas entre ‘forense’, ‘legal’, ‘jurídico’ ou ‘judicial’, optou-se aqui por priorizar o termo ‘forense’ por este envolver, com mais plenitude, os significados envolvidos na interfa-ce entre tradução, linguagem e Direito.

E dessa diversidade definiu-se o termo ‘tradução forense’ como uma “tradução especializada, da esfera do Direito, com abordagem de textos le-gais e jurídicos com carga social, de alta complexidade técnica, que envolve responsabilidade civil e criminal” (FROHLICH, 2012).

3. Trabalhando o texto jurídico

De fato, documentos jurídicos são dotados de textos com características es-peciais e objetivos distintos (com a finalidade discursiva de instruir, julgar, normatizar), situações nas quais diferentes gêneros (gênero “livro”, gênero “sentença”, gênero “lei”, etc.) conferem identidade à linguagem do Direito. Não obstante, sob a perspectiva da textualidade jurídica como manifestação semiótica, Eduardo Bittar, em sua obra “Linguagem jurídica” (BITTAR, 2010), vai além dessa caracterização do discurso jurídico. Ele contribui com a matéria classificando os discursos jurídicos em quatro categorias (nor-mativo, decisório, burocrático e científico). Nesse sentido, ele acrescenta o discurso burocrático à classificação de Torres e Almeida (2013). Essa cate-gorização é sustentada pela semiótica jurídica, que por sua vez se debruça sobre as práticas jurídico-textuais. Sendo assim, segundo Bittar (ibidem), o discurso normativo tem como pressuposto de pesquisa a discussão das perspectivas que abrem o conceito de norma, sendo o legislador o agente investido de competência e poder para realização de uma tarefa social, a da regulamentação de condutas. Já o discurso decisório é a prática textual

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jurídica exercida por órgãos coletivos ou individuais que, investidos de po-der e dever de julgar, expõem os fatos da causa e o estado do procedimento, seguindo um ritual no qual sua estrutura se fundamenta. A sentença tem a função de uma regra que, por sua vez, cita outra regra, a legislação que lhe deu respaldo. Já o discurso burocrático remete à linguagem utilizada nas relações jurídicas, fundada na prática institucional e tendo o Estado como protagonista, tendo características neutras, sem interferências ideológicas. O discurso científico, por sua vez, é o discurso da teoria do Direito, sendo doutrina é científico, dizendo respeito à ciência do Direito, ao conhecimento aprofundado da matéria (BITTAR, 2010).

Com base nesse cenário, é apresentado abaixo um tipo de documento jurídico peculiar, que apresenta um conjunto de textos (discursos) distintos, nomeado de “Carta Rogatória” (CR), que colabora para o levantamento das particularidades da linguagem jurídica brasileira.

3.1 Carta rogatória

Cartas rogatórias, por possuirem características muito especiais (documen-to de um juízo rogante nacional a um juízo rogado internacional), fazem parte de um seleto grupo de documentação jurídica. Essa particularidade se dá por várias razões, dentre elas, por ser um instrumento jurídico que exige, por essência, tradução. Ademais, o gênero CR é composto por um conjunto de outros gêneros (sendo as petições, sentenças, despachos e procurações os mais frequentes), que são parte integrante da mesma, variando de acordo com a sua finalidade e particularidade, conferindo-lhe assim perfil próprio.

Sob esta perspectiva, cartas rogatórias podem ser consideradas como um hipergênero (um gênero que abriga outros gêneros), que “preenche quesitos como propósitos comunicativos próprios, organização textual ca-racterística [...] e produtores e receptores definido” (BONINI, 2001).

De acordo com o Código de Processo Civil (CPC)5, lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, ‘Carta Rogatória’ é:

Art. 2010. É a requisição feita à Justiça de outro país para a prática de uma diligência judicial. A carta rogatória obedecerá, quanto à sua admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao disposto na convenção internacional; à falta desta, será remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via diplomática, depois de traduzida para a língua do país em que há de praticar-se o ato.

5 .Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm. Acesso: 05.07.2012.

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Desta forma, cartas rogatórias diferem-se dos demais atos processuais por serem dirigidas à autoridade judiciária estrangeira. Conforme as Disposi-ções Gerais sobre as Comunicações dos Atos (CPC, Cap. IV, Seção I):

Art. 201. Expedir-se-á carta de ordem se o juiz for subordinado ao tribunal de que ela emanar; carta rogatória, quando dirigida à autoridade judiciária estrangeira; e carta precatória nos demais casos. (Grifo nosso).

É possível observar, nas figuras 3 e 4 uma Carta Rogatória (anverso e verso) autêntica, pertencente à Ação Ordinária (Procedimento Comum Ordinário) nº 500[...]6, em que fazem parte o Autor (G.K.) e seu respectivo Advogado (O.C.G.); Réu1, neste caso um espólio (de R.S.) e seu respectivo Advogado (A.A.S.); e Réu2, a própria União (Advocacia Geral da União).

A CR, apresentada no quadro acima, foi emitida pela Justiça Federal bra-sileira (Juízo Rogante) para o Juízo competente da Alemanha (Juízo Roga-do), com prazo de 90 (noventa) dias para seu cumprimento. Neste caso foi concedida ao requerente o benefício da justiça gratuita, nos termos da Lei nº1.060, de 5 de fevereiro de 1950.

6 .Todos os dados particulares foram omitidos para não expor as partes e por se tratar de sigilo judicial.

Figura 3: anverso da Carta Rogató-ria brasileira

Figura 4: verso da Carta Rogató-ria brasileira

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3.1.1 Percalços da tradução

Quando se trata de tradução forense, logo de partida o tradutor se depara com as dificuldade inerentes à área jurídica brasileira, resumidas como “ju-ridiquês” (termos obscuros, estruturas textuais e orais complexas, por vezes desconexas e sem coesão, etc).

No caso da Carta Rogatória, o primeiro desafio aflora com a tradução, ou melhor, entendimento do termo (termo que nomeia o documento pre-sente no alinhamento 3 do quadro 1 apresentado abaixo). Considerando que seja um pedido de ajuda jurídica entre dois países, previsto nos acordos internacionais de reciprocidade, é preciso achar o termo correspondente na língua estrangeira. No caso da língua alemã, tem-se o termo Rechtshil-feersuchen, palavra do gênero neutro que na sua forma literal (lendo-se da direita para a esquerda) se auto-explica: “pedido de auxílio jurídico”.

Na sequência, enfrentamos o desafio de traduzir ‘Ação Ordinária (Pro-cedimento Comum Ordinário)’, presente no alinhamento 1 do quadro 1. A palavra ‘ação’, no geral, pode ser traduzida por Klage, Verfahren ou Gerichts-verfahren. Neste caso, escolheu-se a última opção, por esta se encaixar com o adjetivo ‘ordinário’ (ordentlich), no sentido de um processo comum/ordi-nário e além de ser mais específica. Desta forma chegamos à expressão Or-dentliches Gerichtsverfahren. No entanto, a explicação que segue atrelada à ação ‘(Procedimento Comum Ordinário)’ tornou-se redundante em alemão. ‘Procedimento’ pode ser traduzido por Verfahren, Prozedur, Vorgehen, todos com sentido semelhante. E os adjetivos ‘comum’ e ‘ordinário’ possuem, da mesma forma, carga semântica semelhante ao termo ‘ordinário’, podendo ser traduzido por ordentlich. Neste caso, optou-se por simplesmente omitir essa duplicidade de sentido.

Segundo Acquaviva (2006):

Sob a epígrafe ‘ação ordinária’ inclui-se a maioria das ações cíveis, cuja tramitação deve observar o ‘procedimento ordinário’, previsto nos Arts. 282 e ss. do CPC7. O procedimento ordinário é adotado, portanto, como regra. Desde que a causa não seja pertinente ao rito sumário ou ao especial, aplica-se o rito ordinário, em que pese o disposto no art. 273. [...]. (ACQUAVIVA, 2006, p. 61)

7. A Lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, institui o Código de Processo Civil (CPC) e pode ser conferida na íntegra no site http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm. (Acesso em 05.07.2012).

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94 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia

Com a delimitação de sentido do rito como ordinário/comum, fechou-se o enquadramento da primeira parte. Assim, ‘Ação Ordinária (Procedimento Comum Ordinário)’ foi traduzido por Ordentliches Gerichtsverfahren.

O próximo item na ordem da CR (alinhamento 2 do quadro 1) foi a indicação das partes envolvidas no processo: Autor, Advogado e Réu. Sua tradução é menos complexa, pois são termos muito usados na área: Kläger, Anwalt e Angeklagter, no entanto é necessário dominar a terminologia fo-rense para legitimar à tradução do termo.

A etapa seguinte (alinhamento 4 do quadro 1) é exclusiva do mode-lo ‘CR’, uma vez que usa termos diretamente relacionados ao seu gênero, quais sejam: ‘Juízo Rogante’ e ‘Juízo Rogado’, cuja tradução para o alemão seria Ersuchendes Gericht e Ersuchtes Gericht, respectivamente.

Abaixo segue um quadro8 com sugestão de tradução parcial9 da Carta Rogatória em questão, dividida pelas etapas de tradução, que abarca:

8. O quadro apresenta somente a tradução dos termos principais da CR, contemplando assim as primeiras partes da CR.

9. Não foi abordada toda a tradução da carta no presente trabalho por falta de espaço. Para maiores detalhes sobre tradução de cartas rogatórias, conferir FRÖHLICH (2014).

Quadro 1: Sugestão de tradução parcial - Carta Rogatória

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Embora não se tenha observado presença marcante de juridiquês, na apre-sentação da CR apresentada no quadro 1, por ser um documento curto e pontual, justifica-se apontar o problema, uma vez que este é um percalço recorrente na tradução de textos forenses brasileiros (como petições, sen-tenças, procurações, etc.), inclusive nos documentos que foram anexados a essa CR.

A procura por uma linguagem rebuscada e perfeita, no sentido da pre-cisão de sentido, acaba levando o Jurista à formação de sentenças trunca-das, evasivas, que por vezes pode levar à falsa interpretação. Neste caso, forma-se um abismo linguístico, em que de um lado se encontra o profissio-nal forense10 e do outro a população em geral. A linguagem permanece no centro, obscura e imperfeita aos olhos da coerência. Esses hábitos linguísti-cos podem ser enquadrados como juridiquês, cujo sentido pode ser definido como segue:

[...] uso da linguagem jurídica de forma extrema e complexa, que se propõe, mesmo que inconscientemente, a persuadir e desorientar o leitor, com o uso de recursos linguísticos altamente terminológicos (como o uso de jargão profissional), muitas vezes arcaicos (como o uso extremo de latinismos), e de construções impessoais (como o uso de passivas), que despersonalizam o autor da fala, mas que, no entanto, não raras as vezes, são vistos como necessários para validar o gênero do documento. (FROHLICH, 2014, p. 185).

Essa definição de juridiquês, representa o ponto de vista de muitos pesqui-sadores que têm se esmerado para contribuir com pesquisas mais aprofun-dadas sobre o assunto. Valdeciliana da Silva Ramos Andrade11, por exemplo, em seu artigo “O Juridiquês e a Linguagem Jurídica: O Certo e o Errado no Discurso” (ANDRADE, 2009) , também discute sobre o uso de juridiquês na produção textual:

Há que se acrescentar que juridiquês não é só o uso de arcaísmos, palavras rebuscadas,

10. Também chamado de Jurista é considerado aqui qualquer profissional bacharelado e atuante na área do Direito.

11. Professora de Linguagem Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória/ FDV.

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neologismos, latinismos e o uso inadequado da língua portuguesa, mas também contribui para a existência do juridiquês a produção textual truncada, extensa […]. (ANDRADE, 2009)

Desta forma, o uso do juridiquês põe em xeque o ofício do Jurista, na medida em que este falha na exposição clara de seus textos, contrariando sua es-sência romana de interpretar, para os cidadãos comuns, as normas escritas a eles até então não reveladas.

Como exemplo de juridiquês, Andrade (2009, p.03) cita em seu arti-go alguns sinônimos para o termo ‘petição inicial’ (peça que se inicia uma ação – petição = pedir), como é previsto pelo art. 282 do Código de Processo Civil. Abaixo seguem 12 das 33 ocorrências levantadas por ela:

1. peça atrial

2. peça autoral

3. peça de arranque

4. peça de ingresso

5. peça de intróito

6. peça dilucular

7. peça prodrômica

8. peça inaugural

9. peça incoativa

10. peça introdutória

11. peça ovo

12. peça preambular

Estes exemplos são neologismos que afrontam a língua portuguesa, pois saem da esfera de meros sinônimos, utilizados para formar um texto coeso e coerente. A linguagem jurídica precisa ser clara. Além disso, há um termo clássico para designar o sentido que se deseja alcançar, qual seja: ‘petição inicial’. Andrade (2009) vai além e apresenta outros exemplos de juridiquês, tais como:

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1. Alvazir de piso = o juiz de primeira instância

2. Aresto doméstico = alguma jurisprudência do tribunal local

3. Autarquia ancilar = Instituto Nacional de Previdência Social (INSS)

4. Caderno indiciário = inquérito policial

5. Cártula chéquica = folha de cheque

6. Consorte virago = esposa

7. Digesto obreiro = Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)

8. Ergástulo público = cadeia

9. Exordial increpatória = denúncia (peça inicial do processo criminal)

10. Repositório adjetivo = Código de Processo, seja Civil ou Penal

De fato, pode-se julgar que tais exemplos são neologismos que desafiam a língua portuguesa, pois saem da esfera de meros sinônimos e entram na esfera prolixa do discurso escrito. Não obstante, é consenso entre os pesqui-sadores da área, que a linguagem jurídica precisa ser clara. Há um termo clássico para designar o sentido que se deseja alcançar, qual seja: “petição inicial”, que já faz parte do repertório terminológico jurídico.

Com efeito, Andrade (ibidem) menciona que um texto jurídico bem escrito deve conter “apenas o essencial, falar o que deve ser dito, argumen-tar com coerência e precisão, averiguar o veículo adequado da comunicação e vislumbrar o destinatário, sabendo que, muitas vezes, este nem sempre coincide com interpretante real. O desafio está posto” (ANDRADE, 2009).

Desta forma, no caso da tradução de tais termos, uma das soluções se-ria os tradutores assumirem esse desafio, ponderando todas as faces do pro-blema, “transformando” o texto original pouco coerente/coeso em um texto traduzido limpo e o mais informativo possível, com o uso de apenas um termo (de preferência o mais conhecido, como é o caso de “petição inicial”).

Tais desafios da hermenêutica jurídica exigem, portanto, atenção re-dobrada por parte do tradutor/intérprete, bem como conhecimento profun-do e especializado nas línguas envolvidas. E relembrando, ao caso da Carta

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Rogatória, exemplo aqui explorado, soma-se a responsabilidade civil e crimi-nal às quais o tradutor jurídico é exposto, elevando exponencialmente sua responsabilidade tradutológica.

4. Tradução juramentada e interpretação comercial no Brasil

No Brasil, é bastante comum que as traduções jurídicas e as interpretações em juízo sejam realizadas por tradutores públicos, juramentados. No caso do recebimento de uma Carta Rogatória estrangeira, por exemplo, sua tra-dução oficial é obrigatória, sendo um dos requisitos indispensáveis para a homologação de uma sentença estrangeira no Brasil. Desta forma, neste ato, faz-se necessário o trabalho de um tradutor público juramentado.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), os requisitos indis-pensáveis são: i) haver sido proferida por autoridade competente; ii) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; iii) ter transitado em julgado; e iv) estar autenticada pelo Cônsul brasileiro e acom-panhada de tradução por tradutor oficial ou juramentado no Brasil.

A partir desta requisição, imposta pela legislação, que o trabalho do tradutor forense público torna-se necessário.

A tradução pública, legalmente conhecida como tradução juramenta-da, é realizada no Brasil por um tradutor concursado, ou, na falta deste, por um ad hoc nomeado para cada ato, pela Junta Comercial de cada Estado ou diretamente pela Justiça Federal.

De acordo com Aubert12, o termo tradução juramentada pode ser as-sim definida:

Por tradução juramentada entende-se a tradução de textos – de qualquer espécie – que resulte em um texto traduzido legalmente reconhecido como uma reprodução fiel do original (com fé pública). Esta característica de fidelidade, por sua vez, significa que, por meio de tal tradução, o texto original, expresso em um idioma estrangeiro, torna-se capaz de produzir efeitos legais no país da língua de chegada e, ainda, que tal tradução é correta, precisa, exaustiva e semanticamente invariante em relação ao original […]. (AUBERT, 1998, p.14)

A também tradutora pública e pesquisadora, Lúcia de Almeida e Silva Nas-cimento (2006, p.11-17) descreve em sua tese de doutorado, intitulada “In-vestigating Norms in the Brazilian Official Translation of Semiotic Items,

12.Tradutor juramentado do Estado de São Paulo.

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Culture-Bound Items, and Translator’s Paratextual Interventions”, as parti-cularidades do ofício de um tradutor público no Brasil, com ênfase naqueles que trabalham no Estado de Santa Catarina13, onde foi sua sede por mais de 20 anos, assim como detalhes da entrada e tomada da função pública de tradutor e interprete comercial.

Paralelamente, Nascimento (2006) apresenta uma investigação sobre algumas estratégias de tradução utilizadas por tradutores juramentados no Brasil, com o par linguístico português-inglês, relacionando alguns poucos pesquisadores que dedicaram parte de suas pesquisas às particularidades da tradução juramentada no Brasil. Entre eles, cita Silveira (1996), que in-vestiga o treinamento profissional de tradutores oficiais; Coelho (1998), que apresenta um estudo aplicado a três traduções oficiais baseado em Vinay e Darbelnet (1958); assim como Aubert (1998) e Campbell (1983), ambos tradutores juramentados com grande experiência e pesquisas na área.

O estudo de Nascimento (2006) é de relevância acadêmica, pois além de descrever o ofício da tradução juramentada e da interpretação comercial no Brasil lida com um tema pouco explorado na academia, abrangendo três aspectos específicos da tradução juramentada no Brasil, quais sejam: a) a tradução de itens semióticos; b) a tradução de marcadores culturais; c) e a inclusão de intervenções paratextuais.

Com relação à legislação brasileira, que rege o ofício e afins da tra-dução juramentada, assim como da interpretação comercial, levantou-se a seguinte listagem14:

• DECRETO Nº 1.800 - Regulamenta a Lei nº 8.934, de 18 de Novembro de 1994, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências

• DECRETO Nº 13.609 - Estabelece novo Regulamento para ofício de tradutor público e intérprete comercial no território da República

• DECRETO-LEI Nº 3.689 - Código de Processo Penal

• DECRETO-LEI Nº 5.452 - Consolidação das Leis do Trabalho

13. Atualmente, no entanto, Lúcia Nascimento está lotada em Brasília, Distrito Federal.

14. Lista parcialmente extraída do site da Associação dos Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais do Rio de Janeiro http://www.atprio.com.br/pages/legislacao.html. (Acessado em 03.07.2012).

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• INSTRUÇÃO NORMATIVA DNRC N° 51, de 06/03/1996 - Carteira de Exercício Profissional

• INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 77, de 29 de janeiro de 2008 – Determinação do Ministério do Trabalho e Emprego e do Conselho Nacional de Imigração que dispõe sobre a União Estável, no artigo 5° consta prescrita a obrigatoriedade da tradução juramentada para documentos estrangeiros

• INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 84 - Dispõe sobre a habilitação, nomeação e matrícula e seu cancelamento de Tradutor Público e Intérprete Comercial e dá outras providências

• INSTRUÇÃO NORMATIVA DREI Nº 17, de 5 de dezembro 2013

• INSTRUÇÃO NORMATIVA DNRC N° 107, de 23/05/2008 - Livro Digital para Tradutores e Intérpretes

• LEI Nº 5.869 - Código de Processo Civil15

• LEI Nº 8.934 - Dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências

• LEI Nº 9707 – Arbitragem (Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras)

• LEI Nº 10406 - Institui o Código Civil

Conforme análise prévia, desenvolvida por Fröhlich (2014), embora conso-lidem a profissão do tradutor público, que assume com maior frequência o papel de tradutor forense, as leis vigentes mostram-se defasadas e incom-pletas. De fato, tanto no CPC, Lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, quan-to no Decreto Federal Nº 13.609, na Instrução Normativa DREI Nº 17, bem como no Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina (CGJ/SC), não há uma seção clara que designe e/ou oriente

15. Em fase de alteração.

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o tradutor forense, bem como conduza os serventuários da justiça a nomear e/ou fiscalizar de maneira eficiente os profissionais especializados.

Ademais, só há menção e nomeação específica ao perito (artigos 145, 128, 146 e 147 da Lei Nº 5.869) e, de forma mais superficial, ao intérprete (artigo 151 da lei Nº 5.869), embora o tradutor forense seja considerado um auxiliar da justiça pela legislação brasileira (seção II da lei no 5.869, bem como no artigo 236 do CPC, de 1941). Esta constatação fortalece a hipótese da existência de uma lacuna na legislação brasileira (principalmente no que tange à lei Nº 5.869), com relação às particularidades do ofício do tradutor forense.

Não obstante, é exigido do tradutor forense, além do necessário do-mínio da linguagem jurídica da língua fonte (L1) e da língua alvo (L2), co-nhecimento das particularidades das esferas civil e criminal envolvidas em sua profissão, principalmente no que tange às suas responsabilidades civis e criminais. Esta exigência reforça a necessidade de uma formação espe-cializada do tradutor forense, com interação direta com a justiça, através da qual se projeta uma menor incidência de erros e consequentes penalidades, conforme previsto no Decreto Federal Nº 13.609, por meio dos artigos 21 e 22, que abordam a questão da impugnação das traduções, bem como sua punição, mesmo a tradutores não concursados.

4.1 Dinâmica do ofício

Em síntese, há duas maneiras de se atuar como tradutor juramentado e intérprete Comercial no Brasil:

1. Via concurso público estadual, com validade em todo o território nacio-nal

2. Via nomeação ad hoc

No primeiro caso, é necessário prestar o concurso no Estado onde o tradutor reside há mais de um ano, não sendo obrigatória a comprovação de nenhum conhecimento acadêmico e/ou profissional (como diploma de graduação ou especialização), basta ser um cidadão idôneo.

No segundo caso, via nomeação ad hoc, no entanto, é exigido vasta experiência, diplomação e notório saber na área. A nomeação é realizada normalmente de duas maneiras: a primeira através da Junta Comercial de cada Estado, após análise do pedido, que é feito em formulário próprio, para cada ato, anexando-se uma cópia dos documentos a serem traduzidos e pagando-se uma taxa, fixada por cada Estado. No caso do Estado de Santa Catarina o formulário está atualmente qualificado sob nome ‘Atos e Even-tos’, de número 403 – Nomeação ad hoc de tradutor e intérprete comercial.

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Já a taxa de nomeação JUCESC16 enquadra-se dentro de ‘Atos integrantes da tabela de preços dos serviços do registro público de empresas mercantis e atividades afins’, relacionada à ‘Ordem 10.5’ - Nomeação ad hoc de tradutor e intérprete comercial17. Já a segunda maneira concretiza-se por meio de intimação judicial, realizada a pedido de um Juiz, normalmente relacionada a ações com trâmite internacional, como em traduções de cartas rogatórias. Após sua nomeação ad hoc, o tradutor investe-se do poder público de jura-mentação, podendo exercer a tradução pública para a qual foi previamente qualificado, dando fé ao documento.

No caso da tradução forense pública de cartas rogatórias em Santa Catarina, os principais estágios, que envolvem o tradutor, são os seguintes:

1. Intimação do tradutor (concursado ou não) por parte da Vara responsá-vel

2. Aceitação por parte do tradutor

3. Definição dos honorários

4. Estipulação do prazo de entrega

5. Tradução efetiva

6. Protocolo de entrega junto ao órgão competente que fez a intimação

Tão logo o juiz responsável pelo processo tenha expedido o despacho, a in-timação/nomeação segue por escrito e é efetivada normalmente de duas formas:

(1) Via impressa, através de um oficial de justiça, que entregará pessoal-mente o documento a ser traduzido:

a) Neste caso, o prazo estipulado pelo juiz começará a contar a partir da data da entrega da intimação, com assinatura do tradutor.

(2) Pela internet, via e-mail (processo eletrônico):

a) Neste caso, o prazo estipulado pelo juiz começará a contar a partir da data de recebimento do e-mail.

Em seguida o tradutor, por escrito, aceita o encargo ou o recusa, com justi-ficativa bem elaborada, visto que se trata de uma intimação de prestação de serviço ao Poder Público.

Juntamente com o aceite, são definidos os honorários do tradutor, que podem variar, de acordo com a concessão ou não da gratuidade de justiça.

16. Para maiores detalhes, conferir site da JUCESC: http://www.jucesc.sc.gov.br/index.pfm?codpagina=00026. (Acesso em 03.07.2012).

17. http://www.jucesc.sc.gov.br//tabeladeprecos2012.pdf (Acessado em 03.07.2012).

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Em se tratando de ação, em que é concedida à parte requerente o be-nefício da “Justiça Gratuita”, nos termos da Lei Nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, os honorários são pagos pelo Estado competente. No caso da Justi-ça Federal em Santa Catarina, os honorários são pagos pela Seção Judiciária do Estado, nos termos da Resolução Nº 558, de 22/05/2007, da Presidência do Conselho da Justiça Federal18 (após a prestação do serviço)19.

Em face da complexidade das traduções jurídicas, os honorários são normalmente fixados com o triplo do valor estabelecido pela Tabela III20, na forma que autoriza o art. 4o, parágrafo único, da Resolução vigente Nº 558.

Já no caso de não concessão de “Justiça Gratuita”, os honorários são pagos pela parte requerente. No Estado de Santa Catarina, usa-se então a tabela estipulada pela JUCESC21 (Resolução 02/13, vigente a partir de 18/04/2013)22 e nessas circunstâncias os honorários devem ser aprovados antes do início do trabalho de tradução, através da aceitação das partes envolvidas e posterior despacho de pagamento pelo juiz competente. O pa-gamento, nesse caso, assim como no primeiro caso, é feito após a prestação do serviço.

Além disso, existe uma diferenciação interna na tabela vigente da JU-CESC23 que subdivide os gêneros textuais dos documentos em três catego-rias:

(A) Textos comuns

(B) Textos jurídicos, técnicos, científicos, comerciais, etc.

(C) Documentos de alta complexidade técnica ou dificuldade de leitura

No primeiro caso (A), na categoria dos textos comuns, são enquadrados do-cumentos como passaporte, certidões dos registros civis, carteiras de iden-tidade, de habilitação profissional, documentos similares, inclusive cartas pessoais que não envolvam textos jurídicos, técnicos ou científicos.

Já no segundo caso (B), os documentos envolvidos são texto jurídicos, técnicos, científicos, comerciais, inclusive bancários e contábeis, marítimos, certificados e diplomas escolares.

18. http://www.jfes.jus.br. Último acesso em março de 2014.

19. Conforme o número de laudas do documento original. Neste caso, uma lauda corresponde a 2.450 caracteres (35 linhas x 70 toques).

20. Parágrafo único. Os valores fixados na Tabela III do Anexo I poderão ser ultrapassados em até 3 (três) vezes, observadas as cautelas previstas no §1º do art. 3º desta Resolução.

21. No entanto, uma lauda corresponde a 1.250 caracteres (25 linhas x 50 toques), calculada com base no texto traduzido e não no texto original.

22 . Cf. http://www.jucesc.sc.gov.br. Último acesso em outubro de 2013.

23. Cf. tabela na íntegra em: http://www.jucesc.sc.gov.br. Último acesso em março de 2014.

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No último tipo (C), são delimitados documentos de alta complexidade técnica, ou dificuldade de leitura, em que o original é de difícil compreen-são, devido à gramática ou ortografia deficientes, ou lacunas etimológicas, original em dialeto, disposições jurídicas que se diferenciam consideravel-mente no idioma de origem e no de destino, texto que trata de mais de uma área técnica especializada, quando for necessária a decodificação de inúmeras abreviaturas, texto de difícil compreensão devido a estilo anti-quado ou informações codificadas, cópia parcialmente ilegível e caligrafia parcialmente ilegível24.

Desta forma, há alteração de preço conforme a categoria e origem de cada documento. No caso de uma tradução (texto em língua estrangeira para o vernáculo), o preço é menor do que no caso de uma versão (texto em língua portuguesa para uma língua estrangeira). Também há diferencia-ção de preço no caso de tradução entre dois idiomas estrangeiros, havendo acréscimo de 50% aos respectivos emolumentos25.

Após a definição dos honorários, o tradutor forense (ad hoc ou não) inicia sua jornada tradutológica, em grande parte sozinho, sem contar com a figura de um revisor, cujo papel é de extrema importância, uma vez que teria como função auxiliar na legitimação da tradução.

4.2 Qualidade e relevância

Uma das barreiras relacionadas à qualidade da oferta do serviço de tradução e interpretação no Brasil diz respeito à formação profissional e acadêmica do tradutor/intérprete. De fato, como não é uma profissão regulamentada no país, à princípio, qualquer pessoa pode exercê-la, com ou sem titulação ou conhecimento comprovado.

Uma tentativa positiva, com intuito de organizar tal ofício no país, foi a criação de um Sindicato da categoria. O SINTRA, Sindicato Nacional dos Tradutores, foi criado em 30 de Novembro de 1988, no Rio de Janeiro, e desde sua inscrição no Ministério do Trabalho e Previdência Social, repre-senta os tradutores e intérpretes em todo o território nacional, agindo como um defensor da categoria. Uma de suas conquistas foi a descrição da profis-são, que a partir de 2000 passou a constar no Catálogo Geral das Profissões do Ministério do Trabalho.

24. Neste caso, na prática, quem decide enquadrar o texto neste gênero textual é o próprio tradutor, ao analisar o documento. A demarcação da categoria usada é mencionada na apresentação dos emolumentos, com a letra “C”, sendo o preço calculado de acordo com a tabela da Junta Comercial competente (no caso de Santa Catarina, a JUCESC). Cf. orientações ACTP 2014, disponíveis em www.jucesc.sc.gov.br, último acesso em julho de 2014.

25. Conferir artigo 5 da respectiva tabela.

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A ABRATES, Associação Brasileira de Tradutores, foi fundada a partir do SINTRA e membros natos, em 3 de dezembro de 1999. A Associação funciona atualmente de forma totalmente independente do Sindicato, sen-do responsável pelos exames de credenciamento de tradutores em todo o Brasil, assim como assuntos de interesse geral da categoria.

Com relação à formação acadêmica desses profissionais, temos ainda muito a aprender com nossos colegas europeus. A oferta de cursos especí-ficos de tradução é mínima. Além da pouca oferta de cursos especializados em tradução, de um modo geral, o que se vê nas instituições de ensino supe-rior em Estudos da Tradução no Brasil é a priorização de pesquisas voltadas à área literária, com pouca ênfase na área técnica, especializada. E essa falta de estudo mais direcionado não condiz com as exigências do mercado, que está cada vez mais especializado e em franca expansão.

De fato, há alguns anos, a demanda por tradução de textos jurídicos tem crescido significativamente por conta do aumento do trânsito interna-cional de pessoas, bens e serviços. De acordo com a reportagem do jornal online G1, de 31/01/201426 , no ano de 2003, por exemplo, foram emitidas 3.094 carteiras de trabalho. Cinco anos depois (em 2008) esse número já havia duplicado, chegando a 6.220. No ano de 2013, no entanto, o aumen-to do número de emissões foi ainda maior, alcançando a marca de 41.462 carteiras emitidas. Apenas entre os dias 1º e 27 de janeiro de 2014, 1.229 haitianos entraram no Brasil pelo estado do Acre. A procura por melhores condições de vida e a facilidade em se obter visto de residência, bem como carteira de trabalho, tem provocado uma emigração em massa daquele país.

Os haitianos, no entanto, não são os únicos a eleger o Brasil como destino de trabalho. De acordo com a referida reportagem, há muitos boli-vianos, argentinos, portugueses, espanhóis, italianos, alemães e mais outros tantos estrangeiros que tiraram carteira de trabalho no Brasil em 2013.

Esses dados apontam para uma tendência de expansão linguística no país e, infelizmente, não refletem o número total de imigrantes27. Francês, espanhol, italiano, alemão, dentre outros idiomas, começarão a despontar não só em novos lares, mas também nas ruas, comércio e, por consequên-cia, em contratos, em processos judiciais, em cartórios, em delegacias, em empresas, etc.

Uma amostra aplicada dessa expansão pode ser observada no número crescente de empresas estrangeiras no Brasil, que não apenas empregam brasileiros, como também trazem consigo muitos trabalhadores temporários

26. De acordo com a reportagem do jornal online G1, de 31/01/2014 (htttp://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/01/emissao-de-carteiras/-de-trabalho-para-estrangeiros-aumenta-53-em-2013.html). Último acesso em fevereiro de 2014.

27. O censo de 2010 registrou que 455.333 pessoas imigraram para o Brasil nos últimos dez anos (www.ibge.gov.br).

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de seu país de origem. Por exemplo, o Brasil possui cerca de 1.400 empre-sas alemãs, ou de origem alemã, empregando mais de 250.000 pessoas. De outro lado, há cerca de 50 empresas brasileiras ativas na Alemanha, que empregam em torno de 2.100 pessoas28. Circunstâncias como essas geram documentação jurídica bilíngue29. Entre 2010 e 2011, quase 600 mil pes-soas vieram morar no Brasil. Nunca houve tantos imigrantes desde 1890.

Desta forma, torna-se visível a necessidade cada vez maior de tra-dutores e intérpretes forenses à disposição não só da justiça direta, como também de bancos, escritórios de advocacia, empresas bi- e multinacionais, órgãos públicos (como no Ministério do Trabalho), etc.30

Outro dado, retirado do jornal Gazeta do Povo do Paraná, de 15/02/201331, mostra que em um ano, o número de presos estrangeiros no país cresceu 6,3% (totalizando 3.392 em junho de 2012). Segundo a maté-ria, o aumento foi semelhante ao da população carcerária total, que chegou a 6,9% no mesmo período.

Com efeito, essa tendência de crescimento na demanda por traduto-res e intérpretes forenses não é perceptível somente no Brasil. É fato que a necessidade de traduções forenses, em nível global, tem aumentado consi-deravelmente por conta da globalização. As leis europeias, por exemplo, são traduzidas simultaneamente para quase todas as línguas da comunidade. Em jurisdições bilíngues ou multilíngues, como é o caso do Canadá e da Suíça, há demanda constante por redação e tradução bi- e multilíngue. A China é outro exemplo, a maioria das firmas estrangeiras empregam con-tinuamente tradutores forenses para traduzirem seus contratos e demais textos jurídicos.

Não obstante, será que as traduções forenses estão sendo executa-das de maneira apropriada, ou seja, será que as traduções dos documentos jurídicos estão atingido legitimidade tradutória, bem como estão tendo o alcance legal esperado?

Deborah Cao comenta, em seu livro “Translating Law” (CAO, 2007), que quando a China estava em ascensão à OMC (Organização Mundial do

28 . De acordo com http://www.haufe.de. Último acesso em junho de 2014.

29 . Um exemplo é o acordo bilateral, assinado entre Brasil e Alemanha, que define detalhes sobre a previdência social desses trabalhadores. Essa documentação está disponível em alemão e português em: www.deutscherentenversicherung.de. Último acesso em junho de 2014.

30 . Eventos desportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, são exemplos de outros fatores que elevam exponencialmente a circulação de estrangeiros no país e, por consequência, a necessidade por interpretação e tradução de textos jurídicos, decorrentes de procedimentos de toda a ordem (em delegacias, aeroportos, bancos, empresas, etc.).

31 .Cf. http://www.gazetadopovo.com.br. Último acesso em fevereiro de 2014.

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Comércio), o governo chinês teve que declarar como inaceitáveis algumas das traduções da OMC, devido a erros graves de tradução. Desde então, o governo tem publicado oficialmente traduções chinesas sancionadas, no en-tanto, somente os textos jurídicos da OMC em suas línguas oficiais (inglês, francês e espanhol) têm força legal, as traduções chinesas não.

Com efeito, tribunais nacionais e instituições internacionais europeias têm igualmente relatado grande dificuldade em encontrar tradutores e in-térpretes especializados em tradução forense32.

Para trabalhar essa questão, em nível nacional, parece prudente que se estimule a formação especializada do tradutor forense, também nas Uni-versidades, em parceria com os operadores do Direito, rumo a um reconhe-cimento textual e legal de sua tradução.

Aplicando o pensamento de Sandra Hale (2008), que foca na compe-tência de intérpretes jurídicos no universo da tradução jurídica na Austrália, nos deparamos no Brasil com os mesmos problemas, tanto no que tange à perícia dos tradutores quanto dos intérprete jurídicos. Resumidamente, temos:

• O tradutor/intérprete necessita de alto nível de competência (linguísti-ca, cultural, discursiva..., etc);

• o tradutor/intérprete precisa de suporte para ter uma performance ade-quada;

• o tradutor/intérprete deve ser incentivado a treinamentos especializados em linguagem forense;

• os profissionais jurídicos precisam trabalhar em conjunto com traduto-res/intérpretes para que o objetivo final seja alcançado;

• os tradutores/intérprete jurídicos precisam ser reconhecidos como “pe-ritos” e não apenas como “máquinas de tradução”.

Infelizmente, a situação atual brasileira ainda não garante tais habilidades em sua plenitude. No entanto, o profissional da área tem a chance de so-zinho aprimorar suas competências, entrando em contato com outros tra-dutores da área, discutindo suas dificuldades, fazendo cursos de aprimora-mento e atuando constantemente na busca de um cenário melhor.

5. Conclusões preliminares

Observou-se essencialmente que a tradução forense quase sempre é rea-lizada por um tradutor juramentado, é regida por leis incompletas e não se restringe somente à terminologia jurídica, incluindo aqui as armadilhas do juridiquês, mas também abrange convenções linguísticas e legais, algo

32. Cf. http://www.redit.uma.es. Último acesso em maio de 2014.

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108 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia

raramente transmitido nos cursos acadêmicos de formação de tradutor/in-térprete no Brasil (FROHLICH, 2014).

Também constatou-se que os textos jurídicos (a exemplo da Carta Ro-gatória analisada) apresentam estruturas textuais e orais complexas, exigin-do atenção redobrada por parte do tradutor/intérprete, bem como conheci-mento profundo e especializado nas línguas envolvidas.

De um modo geral, é necessário que haja operações intelectuais para ler e compreender um determinado texto, no entanto, o autor de textos jurídicos normalmente não fornece estrutura textual satisfatória para seu entendimento (como a utilização de elementos coesos e coerentes, lingua-gem clara, etc.), deixando esse trabalho ao leitor e, por consequência, ao tradutor.

Considerando o conjunto dessas reflexões, conclui-se que, de fato, a linguagem jurídica brasileira é complexa e merece muita atenção, tanto por parte do tradutor, que traduz os documentos jurídicos, quanto por parte dos operadores do Direito, que os elaboram.

Dentro desse contexto, parece prudente pensar em uma moderniza-ção das leis vigentes, bem como em uma simplificação da linguagem jurídi-ca, que se oriente à diminuição de barreiras linguísticas dentro das esferas comunicativas (entre os agentes de diálogo: operadores do Direito e público leigo) o que contribuiria para um melhor desempenho dos tradutores. Não obstante, a competência do tradutor é tão importante quanto uma possível simplificação da linguagem jurídica a ser trabalhada por ele. Desta forma, o que se constata é que haverá maior chance de se atingir legitimidade tradu-tória quando houver compreensão real do que se traduz, o que, por sua vez, só existirá quando o tradutor tiver formação e orientação adequadas.

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Parte IIDISCURSO JURÍDICO

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Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso

enquadrado na Lei Maria da Penha1

Maurilo Sobral, Vinicius de Negreiros Calado e Virgínia Colares

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

Este capítulo analisa o Acórdão nº 472.338 (Apelação Criminal nº 20100110702027APR) da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Dis-trito Federal e dos Territórios (TJDFT), cujo processo é oriundo do 3° Juiza-do de Violência Domestica e Familiar Contra a Mulher de Brasília (Ação Pe-nal IP 698/10). O estreitamento teórico entre a Análise Crítica do Discurso (ACD) e a Ciência Social Crítica abre o diálogo para abordagens nas quais a prática discursiva estabelece a mediação entre o texto e a prática social. A ADC, portanto, tem como fulcro a abordagem das relações (internas e recí-procas) entre os textos, as práticas discursivas e as práticas sociais.

Os textos produzidos socialmente em eventos autênticos, como a pro-latação do Acórdão nº 472.338, sob análise, são resultantes da estruturação social da linguagem que os consome e os faz circular. Por outro lado, esses mesmos textos são também potencialmente transformadores dessa estru-turação social da linguagem, assim como os eventos sociais são tanto resul-tado quanto substrato dessas estruturas sociais. O aporte legal - Lei Maria da Penha – para a decisão judicial em apreço traz em sua tessitura textual a reprodução e legitimação de valores e crenças machistas/ feministas que

1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada individualmente em CALADO, Vinicius de Negreiros. Análise crítica do discurso jurídico em caso de absolvição de acusado em fato enquadrado na Lei Maria da Penha: desvelamento do fundamento implícito reformador do julgado e suas consequências. In: Regina Lucia Teixeira Mendes; Fernando Antonio de Carvalho Dantas; Leonel Severo Rocha. (Org.). Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas. 1ed.Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p. 51-67.

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circulam nessa sociedade que promulgou tal lei, assim como a utilização desse diploma legal reflete modos de operação da ideologia (THOMPSON, 1995) do sistema penal e processual penal.

A lacuna ou insuficiência, nas ciências sociais, de teorizações do pa-pel da linguagem na vida social e as ferramentas apropriadas para a aná-lise empírica desses materiais verbais, constatada por Chouliaraki (2005), o fez caminhar para as práticas sociais. Já para Fairclough (2001, p.167), a análise das práticas sociais constitui um foco “teoricamente coerente e metodologicamente efetivo”. Por essa razão, eleger a agenda da ACD para tratamento dos dados verbais produzidos na instância jurídica vem sendo tão profícua. Desde a criação, por Virgínia Colares, do Grupo de Pesquisa “Linguagem e Direito” na Plataforma Lattes do CNPq, no ano 2000, esses estudos transdisciplinares têm sido nomeados de Análise Crítica do Discur-so Jurídico (ACDJ)2.

O propósito dessa agenda de pesquisa é estudar a linguagem na ins-tância jurídica como prática social e, para tal, considerar o papel crucial do contexto social. Esse tipo de análise se interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder - relações de dominação, discriminação e controle, na forma como elas se manifestam através da linguagem (WODAK, 2003). Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação e de força social, servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmen-te. A ACD rompe com a análise de discurso (AD) na medida em evita o pos-tulado de uma simples relação determinista entre os textos e as estruturas sociais, ou seja, a “/.../ ACD permite analisar as pressões provenientes de cima e as possibilidades de resistência às relações desiguais de poder que aparecem em forma de convenções sociais (WODAK, 2003, p.19-20).

A ACD não pode ser considerada um método único, porém uma agenda que tem consistência em vários planos, pois faz ancoragem em: (a) a tradição da análise textual e linguística; (b) a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais ; e (c) a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como al-guma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados. (FAIRCLOUGH, 1989, 2001)

A ACD nunca se propôs a ser um corpo teórico homogêneo, assim, daquele grupo fundador, cada um dos pesquisadores constrói uma hetero-geneidade de abordagens identificadas pelo mesmo guarda-chuva de prin-cípios da ACD e diferenciadas pelo ecletismo teórico. Norman Fairclough e outros da escola de Lancaster realizam a articulação entre Linguística Sistêmica Funcional (LSF) e Sociologia (FAIRCLOUGH, 2003, 2006); Theo van Leeuwen amplia o conceito de texto e trabalha as questões de multi-

2 . “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é o título do relatório de pesquisa individual de Virgínia Colares, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.

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modalidade e hibridização, tornando-se um expoente da Semiótica Social (VAN LEEUWEN, 2007); Teun van Dijk retoma diálogo entre Linguística Textual e cognição social de onde iniciou (VAN DIJK, 1989, 1993, 2001); Ruth Wodak articula a Sociolinguística e a História (WODAK, 1996), para mencionar algumas nuances do projeto inicial da agenda da ACD.

Parece que a aparente heterogeneidade guarda princípios da agenda inicial para atender ao modelo tridimensional (texto, prática discursiva, prá-tica social). Norman Fairclough afirma que deverão ser consideradas três perspectivas analíticas, (1) a multidimensional com a tarefa de avaliar as relações entre mudança discursiva e social, relacionando as propriedades particularizadas dos textos às propriedades sociais dos eventos discursivos nos quais se realizam; (2) multifuncional, para averiguar as mudanças nas práticas discursivas que contribuem para mudar as crenças e os conhe-cimentos, as relações e identidades sociais e (3) a histórica, para discutir a “estruturação ou os processos ‘articulatórios’ na construção de textos e na constituição, em longo prazo, de ‘ordens de discurso’” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 27)

Em todas essas abordagens do discurso, textualmente orientadas, buscam-se caracterizar processos sociocognitivos em perspectivas históri-cas; identificar políticas e ideologias na prática cotidiana dos sujeitos sociais; verificar os resultados e os efeitos dos discursos sobre as estruturas sociais, pois “através do contato com textos marcados por desigualdade de poder, os sujeitos linguísticos/ sociais são treinados a assumir certas posições de poder nos textos que produzem e consomem.” (KRESS 1989, p. 449)

A transdisciplinaridade consiste num pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas em colaboração. Em 2014, Virgínia Cola-res denomina de hermenêutica endoprocessual a interpretação que consiste em dar conta da produção de sentidos no funcionamento da linguagem em uso durante a atividade social de prolatar decisões judiciais. Como a Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ) constitui perspectiva teórica e meto-dológica aberta ao tratamento das diversas práticas que compõem a vida social, o desafio dessa hermenêutica endoprocessual é dar conta de teorias e métodos interpretativos dos dois domínios de conhecimento em contato, Direito e Linguagem, de um modo transdisciplinar.

Neste estudo aborda-se a linguagem na justiça, uma vez que o objeto de estudo (corpus) é um dado autêntico coletado de repositório de jurispru-dência oficial de Tribunal Pátrio (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT) e escolhido por sua repercussão no cenário jurídico nacional.

O acórdão fora dividido em fragmentos, tendo suas linhas numeradas e seu inteiro teor transcrito, sendo a ele aplicadas as categorias de análise a partir do referencial teórico abordado.

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Antes, porém, de adentar na análise do acórdão buscar-se-á na re-visão da literatura especializada sustentação teórica para a legitimação da violência que emerge do texto.

2. Quando a legitimação da violência torna a vítima culpada por ter sido violentada

O crescimento da violência (ADORNO, 2015, p.267) nas relações interso-ciais não é só perceptível e sentido no âmbito interno da sociedade, mas atinge diretamente sua relação com o estado, no sentido de cobrar políti-cas públicas que visam: prevenir, controlar e reduzir focos de violência. O aumento da violência em suas múltiplas facetas se tornou um dos grandes problemas sociais e pontos críticos das políticas públicas atuais, resultando no enrijecimento das legislações criminais e a utilização prioritária do siste-ma penal como instrumento de controle, não sendo diferente nos casos de violência doméstica.

A sociedade brasileira se mostra, ao longo de séculos como uma socie-dade claramente patriarcal (BUSTAMENTE; MOURA, 2009, p.159), estru-turada sob uma perspectiva machista, onde a figura do homem, através de uma análise de gênero, direciona a reprodução, em suas inúmeras formas, de atos diretos e indiretos de violência contra a mulher.

Ressalta-se, entretanto, que o próprio estado mantém legítima a repro-dução da violência em inúmeros âmbitos, principalmente através de dispo-sitivos legais, seja através da atuação de suas instituições como o Judiciário, e a polícia, seja por meio de medidas que direta ou indiretamente reprodu-zem e permitem inúmeras violações contra corpos individuais, ou grupos específicos, conforme assegura Sérgio Adorno (2002, p. 274):

Do mesmo modo que outros agrupamentos políticos, o Estado é uma empresa de dominação de uns sobre outros por meio do recurso à violência ou à ameaça do seu emprego. No entanto, trata-se de uma violência legítima, porque autorizada pelo direito. É isto que faz com que lhe seja possível diferenciar força coatora do estado do puro e simples recurso à violência para impor a vontade uns sobre outros. (grifos nossos)

O estado como agente reprodutor de interesses de dominação, se utiliza de instrumentos institucionalizados que legitimam tais perspectivas. Sendo assim, o que se classifica como “força coatora” em momento algum deixa de ser uma manifestação de violência, mesmo que institucionalizada. Nes-se sentido, as legislações e seus respectivos dispositivos legais assumem a posição de um poderoso instrumento de disciplina, justificativas e controle, através da reprodução de interesses e perspectivas culturais dominantes.

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Ademais, em um cenário onde a mídia e demais agentes políticos as-sumem um posicionamento estratégico no sentido de tornar superficial o debate e o impacto da violência e a própria mobilização da população, in-crustada por um alarde midiático estereotipado, aceleram a aprovação de políticas inócuas que produzem consequências extremamente desastrosas, principalmente nos meios de controle de violência que carregam estruturas históricas e culturais permeadas nas relações sociais vigentes.

Nesse sentido, não foi diferente com a legislação instituída para coi-bir a violência doméstica contra a mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) onde o estado no lugar de dar voz aquela mulher violentada, acaba exercendo meios de silencia-la, conforme segue:

A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que praticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da ação penal. As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportá-los são as circunstâncias relatadas que fazem o fato subsumir à norma. Os documentos oficiais assemelham-se a formulários com uma narrativa monótona, impessoal e sem variações que leva a completa redução da complexidade dos conflitos. (grifos nossos) (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 495)

Percebe-se que a referida legislação se apoia em um modus operandi que não permite uma visão ampla do problema, de modo que não consegue abarcar a complexidade e as construções sociais existentes. Sendo assim, em que pese a intenção de empoderamento da mulher, a respectiva lei a silencia, e o interesse do estado na condenação ou absolvição do réu se tor-na prioridade em detrimento de qualquer anseio e contexto de violência ao qual ela está inserida, passando a mulher a assumir um papel secundário no processo (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 492).

O estado, ao assumir o papel de protagonista na ação, exerce inúmeras vezes uma posição que não contempla os interesses da vítima da violência. Inclusive, vindo a provocar uma atuação do Judiciário que venha legitimar a violência sofrida pela mulher, por reproduzir um discurso marcado pelo machismo da sociedade atual, como no caso analisado no presente trabalho.

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Ademais, o sistema carcerário como reposta preventiva e repressiva à violência no âmbito doméstico, além de não satisfazer aos anseios pleitea-dos ao longo de décadas de luta e militância pelas mulheres, assume uma perspectiva falha de segurança jurídica e de instrumento eficaz de diminui-ção da violência contra a mulher, nesse sentido expõe Marília Montenegro (2010, p.940):

Segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica.

Além dos instrumentos legais, conforme expõe Foucault ”existe uma sé-rie de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia, e toda uma rede de instituições de vigilância e correção” (2003, p. 11). Segundo o autor, esse complexo de redes institucionais assume a função de corrigir indivíduos em potência e subordina esse indivíduo à construções advindas das relações de poder.

Em torno dessa rede reprodutora de controle e disciplina, o judiciário e suas práticas se situam como ferramentas indispensáveis da sociedade para a solução de conflitos dentro das estruturas sociais vigentes. Dessa forma, reproduzem direta e indiretamente construções sociais que manifes-tam uma carga cultural histórica e de solidificação de interesses, conforme preconiza Foucault (2003, p.11):

As práticas judiciárias – maneia pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história- me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.

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Nesse sentido, conforme expõe Bourdieu, as estruturas de dominação são produtos de construções solidificadas ao longo de processos históricos, onde carregam o “trabalho incessante de reprodução” (BOURDIEU, 2012, p.46) da violência física e simbólica, através do homem e demais agentes especí-ficos, como instituições, famílias, igreja, escola, estado.

Ora, no caso analisado, é perceptível violência simbólica contida do discurso do Judiciário, inclusive, como justificativa para a absolvição do réu, ao entender que o soco dirigido pelo réu e que veio a causar lesões no rosto da vítima não se caracterizava como uma conduta violenta, por ter a vítima, inicialmente, direcionado um tapa contra o réu, dando causa à briga, con-forme exposto em trecho do julgado abaixo:

[...] Mas isso não significa que o homem, quando agredido fisicamente pela mulher, deva apanhar sem reagir. No caso, se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara, certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora. O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão. E a meu ver, não houve a desproporcionalidade sustentada pela douta Procuradoria de Justiça em seu ilustrado parecer. O réu levou um tapa, reagiu com um soco, evidentemente mais forte. Se tivesse reagido com outro “tapa”, com a mesma força ou mais leve do que o recebido, a agressão não cessaria, e ambos continuariam trocando “tapas” até que um dos dois, em determinado momento, desferisse golpe mais violento. [...] (Apelação Criminal nº 20100110702027APR, Dezembro 2010.)

Sob uma perspectiva da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2013, p. 132) fica explícito nas entrelinhas do discurso do relator que a vítima se torna culpada da sua própria violência sofrida, por ter direcionado um tapa con-tra seu agressor. Entende-se que de acordo com o exposto o tapa desferido pela vítima seria considerada uma atitude que não correspondesse com sua condição de mulher dentro das estruturas sociais atuais. Uma atitude que a coloca fora das expectativas sociais impostas a ela como vítima, na condição de submissa.

Nesse sentido, a partir de uma perspectiva Foucaultiana, o que se ob-serva é um direcionamento do controle não mais sobre os corpos direta-mente, mas exercer um poder coercitivo constantemente intenso sobre os movimentos e posturas, classificado por Foucault (2013), de “corpo ativo”, conforme segue:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que

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realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. [...] Diferentes da escravidão, pois não se fundamenta numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos e utilidade pelo menos igualmente grandes. (p.133)

Dessa forma, fica claro o exercício da disciplina como produção das relações de poder (FOUCAULT, 2013, p. 165). Relações legitimadas e institucio-nalizadas através da atuação do Judiciário, que dotado de uma rede de dis-positivos reproduzem meios de coerção incisivos sobre o individuo. Ou seja, mecanismos disciplinares assumem um papel de atuação efetiva sobre os corpos, mesmo que sem precisar toca-los, impondo sobre as consequências de um processo de dominação.

A força simbólica escamoteada pelo discurso do relator no julgado analisado reproduz um sistema de violência direcionado à vítima, especi-ficamente à sua representação como mulher ao ponto de coloca-la como merecedora da agressão. Tal coação, no entendimento de Bourdieu só é pos-sível a partir do exercício direto da força simbólica contra aquele individuo, onde tais mecanismos só assumem uma postura eficaz porque se apoiam em predisposições que funcionam como “molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos” (BOURDIEU, 2012, p. 50). Ou seja, a eficácia dessa violência simbólica contra a mulher, só é possível porque já se encontra incorporada nas estruturas sociais vigentes, até porque a “ forma como as mulheres percebem o fenômeno da violência de gênero e dos crimes sexu-ais, por exemplo, tem um impacto direto em seu comportamento social.” (FIGUEIREDO, 2014, p. 148)

Ademais, o Judiciário legitima como necessário para a solução da bri-ga, o ato violento direcionado à vítima que resultou em lesões em seu rosto. O voto do relator, o qual foi acompanhado pelos demais julgadores (todas mulheres!), enfatiza a agressão desferida pelo réu como atitude necessária e ponderada contra quem havia dado início as agressões físicas, nesse sen-tido:

[...] Um único soco, portanto, foi a medida certa para fazer cessar a agressão, não havendo que se falar em excesso. Este só ocorreria se o réu continuasse a desferir outros golpes, o que efetivamente não aconteceu, pois a briga terminou ali. E na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado.

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(Apelação Criminal nº 20100110702027APR, Dezembro 2010)

Observa-se que tal análise gera interpretações extremamente perigosas, principalmente a título de precedentes para demais casos de violência do-méstica. O judiciário reproduz, de forma extremamente hostil, uma postura de legitimação da violência contra a mulher. Nesse sentido expõe Bourdieu:

Ao tomar “simbólico” em um de seus sentidos mais correntes, supõe-se, por vezes, que enfatizar a violência simbólica é minimizar o papel da violência física e (fazer) esquecer que há mulheres espancadas, violentadas, exploradas, ou, o que é ainda pior, tentar desculpar os homens por essa forma de violência. (2012, p. 46)

O soco desferido pelo homem contra mulher carrega o peso de uma carga androcêntrica (BOURDIEU, 2012, p. 69) solidificada ao longo do processo histórico e legitimado e reproduzido pelo judiciário. Observa-se que o julga-dor não considera, sequer a possibilidade da vítima ter reagido a um proces-so de violência ao qual possivelmente estava submetida, mesmo ela tendo afirmado que havia dado início a agressão física.

A carga do simbolismo hostil atribuída pelo judiciário se junta ao peso do golpe desferido pelo agressor, onde o relator justificou tal agressão como elemento necessário para a solução do conflito. Tal justificativa atribui aque-le soco desferido pelo réu contra sua companheira, o peso da honra, onde não só se encontra a “honra” do agressor, mas de todo machismo presente nas relações e estruturas sociais da sociedade, conforme segue:

Este investimento primordial nos jogos sociais (illusio), que torna o homem verdadeiramente homem — senso de honra, virilidade, manliness, ou, como dizem os cabilas, “cabilidade” {thakbaylith) —, é o princípio indiscutido de todos os deveres para consigo mesmo, o motor ou móvel de tudo que ele se deve, isto é, que deve cumprir para estar agindo corretamente consigo mesmo, para permanecer digno, a seus próprios olhos, de uma certa idéia de homem. É, de fato, na relação entre um habitus construído segundo a divisão fundamental do reto e do curvo, do aprumado e do deitado, do forte e do fraco, em suma, do masculino e do feminino, e um espaço social organizado segundo essa divisão, que se engendram, como igualmente urgentes, coisas a serem feitas,

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os investimentos em que se empenham os homens e as virtudes, todas de abstenção e abstinência, das mulheres. (grifos nossos) (BOURDIEU, 2012, p. 61-62)

A prática de atos de violência, segundo Bourdieu (2012, p.61-62) sustenta um processo de justificativa e de identidade do agressor, tanto sob uma pers-pectiva individual, quanto como um processo de autoafirmação, quanto a partir da influência de uma perspectiva coletiva, regida pela ideia de habitus como forma de legitimar sua posição de homem no espaço social.

Dessa forma, é perceptível como a atuação das instituições estatais, precisamente o Judiciário, reproduz mecanismos de legitimação da violên-cia disciplinar presente nas estruturas sociais. A violência direcionada con-tra a mulher de forma física e direta, assim como a reprodução do controle de simbolismos violentos se tornam meios coercitivos de produção de danos extremamente intensos no âmbito da violência doméstica. Sendo assim, as consequências de tal legitimação é a inserção da mulher em um processo constante de exclusão e submissão.

Impede-se ressaltar que foge ao interesse do presente trabalho ques-tionar a absolvição ou condenação do réu. Ademais, já foram expostas as consequências e a ineficácia da instrumentalização do sistema carcerário, assim como a aproximação do sistema penal como forma de redução e con-trole da violência contra mulher. Outrossim, diante do caráter míope da execução da ação, onde é negligenciado o poder de voz da mulher, a colo-cando como mera participante no processo, quando na verdade deveria assumir uma posição protagonista onde deveria ser levado em consideração seus anseios e necessidades (MEDEIROS;MELLO, 2014, p.490).

Entretanto, se questionam os argumentos e as vias utilizadas pelo rela-tor para justificar a absolvição do réu. Ora, em que pese ter feito referência na decisão a situação de reconciliação vivida pela vítima e o réu, tal fato em momento algum foi usado como um dos fatores que viesse justificar a absolvição, o que mostra o descaso da atuação do julgador com os anseios e interesse da vítima, ressaltando apenas o interesse do estado em decidir so-bre quem deve ou não responder pela violência, e consequentemente sobre quem deve ou não assumir a postura de vítima.

Ademais, as justificativas utilizadas reproduzem um processo histórico de submissão imposto contra a mulher, inclusive legitimando atos de violên-cia como respostas efetivas para a solução de conflitos no âmbito doméstico, conforme exposto acima. Além de colocar a vítima como causadora da sua própria violência, por ter desferido um tapa contra o réu. Dessa forma, por meio da produção de uma violência simbólica o estado direciona uma rede de mecanismos de controle e disciplina que carrega as estruturas de submissão, inclusive aceito, muitas vezes, por outras mulheres, como no

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presente caso em que as demais desembargadoras que acompanharam o voto do relator.

Carmem Caldas-Coulthard (2007, p. 232) destaca o uso da linguagem como arma a serviço dos detentores do poder para a perpetuação da sub-missão da mulher:

A questão da linguagem e suas implicações políticas têm influenciado escritoras, filósofas e teóricas sociais através da história intelectual da civilização ocidental. Algumas analistas de discurso postulam que a linguagem é uma arma usada pelos poderosos para oprimir suas e seus subordinadas/os.

Nesse sentido, se faz cada vez mais necessário a desconstrução de estru-turas e instrumentos que tratem de forma banal danos de ordem física e estrutural extremamente violentos à mulher.

3. Do resumo do caso segundo o acórdão

No relatório do acórdão, fragmento 01 adiante transcrito, segundo o méto-do aplicado, tem-se retratado um caso em que um homem agrediu fisica-mente sua companheira, na residência do casal, causando-lhe lesões que foram consubstanciadas em laudo.

A defesa fundamenta seu recurso em dois argumentos (linhas 08 e 09), o primeiro de que o autor do fato teria agido em legítima defesa e o segundo que o casal teria se reconciliado.

Tanto o Ministério Público quanto a Procuradoria de Justiça pugnaram pelo desprovimento do recurso de apelação, com a consequente manuten-ção da sentença que condenou o autor do fato nas penas previstas no artigo 129, § 9º, do Código Penal, e ainda no artigo 5º, inciso I e artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº. 11.340/06, a uma pena de 03 (três) meses de deten-ção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto (linhas 02 e 03).

1. R E L A T Ó R I O 1. E. A. R. apela da sentença que o condenou como incurso nas penas do artigo 129, § 9º, do Código2. Penal, c/c artigo 5º, inciso I e artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº. 11.340/06, a uma pena de 033. (três) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto. 4. Consta da denúncia que, no dia 27 de março de 2010, por volta das 02h00, em sua residência, o5. denunciado de forma livre e consciente, mediante emprego de força física, agrediu sua6. companheira S. R. V., causando-lhe as lesões descritas no laudo acostado às fls. 15/16. 7. A Defesa pleiteia a absolvição, aos argumentos de que agiu acobertado pela excludente da legítima8. defesa e de que, após os fatos, reconciliou-se com a vítima (fls. 88/97). 9. O Ministério Público, em contrarrazões, pugna pelo não provimento do recurso (fl. 109/111). 10. A douta Procuradoria de Justiça oficia pelo conhecimento do recurso e o seu desprovimento (fl.11. 122/125).

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1. Este o relatório. Fragmento 01

Realizando a análise dos dispositivos legais contidos no fragmento, verifica--se que o art. 129 do Código Penal brasileiro versa sobre lesão corporal, cuja pena máxima é aumentada (em relação ao caput) em virtude da circuns-tância de ter sido praticada em âmbito doméstico conforme seu parágrafo nono. Já o artigo 5º, inciso I e o artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), versam sobre a violência doméstica e con-tra a mulher, todos adiante transcritos:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004)

§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

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I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

Feitas essas considerações, de modo que se tenha em mente o fato ocorrido e subsunção normativa consoante os elementos do processo, passa-se a aná-lise a partir do referencial teórico adotado.

4. Análise do julgado segundo o “Arcabouço Analítico”

No presente estudo o julgado é analisado segundo o modelo “Arcabouço Analítico” proposto por Chouliaraki e Fairclough (Apud OTTONI, 2007), no qual se inicia a análise situando-se o problema.

Para os autores, o problema é algo que se situa numa reflexão sobre a prática social, no caso, a reforma pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) (Fragmento 02) de uma sentença que havia conde-nado um homem por agressão física à sua companheira, sob os seguintes fundamentos: o primeiro que um homem agredido tem direito de reagir (linha 27); o segundo que o homem teria agido em legítima defesa (linha 30) ao socar a mulher em reação a um tapa que lhe fora desferido na cara (linha 28), vez que esta reação teria sido imediata e proporcional (linha 23).

14. Órgão 1ª Turma Criminal 15. Processo N. Apelação Criminal 20100110702027APR 16. Apelante(s) E. A. R. 17. Apelado(s) M. P. D. F. E T. 18. Relator Desembargador JESUÍNO RISSATO 19. Acórdão Nº 472.338 20. 21. E M E N T A22. PENAL E PROCESSUAL PENAL. LEI MARIA DA PENHA. LESÕES CORPORAIS. AGRESSÕES23. FÍSICAS RECÍPROCAS. INICIATIVA DA VÍTIMA. RETORSÃO IMEDIATA E PROPORCIONAL.24. LEGÍTIMA DEFESA CONFIGURADA. SENTENÇA REFORMADA. 1. A Lei Maria da Penha, que25. veio em boa hora, foi um grande avanço no sentido de conferir proteção às mulheres, vítimas de

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26. violência por parte dos homens com que mantêm convivência em ambiente doméstico e familiar.27. Isso não significa que o homem, quando agredido pela mulher, não possa reagir. 2. Comprovado,28. nos autos, ter sido a varoa quem dera início à contenda, desferindo uma bofetada na cara do réu,29. tendo este retorquido com um único soco, o suficiente para fazer cessar a agressão, resta30. configurada a legítima defesa, de molde a excluir a ilicitude da conduta. 3. Recurso provido, para31. absolver o acusado.

Fragmento 02

O discurso que emerge da superfície textual da ementa do julgado constrói uma realidade, cuja compreensão plena do contexto fático apenas se verifi-cará com a análise completa do acórdão (voto), quando na linha 62 o relator fecha o raciocínio afirmando que “na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado”.

Neste sentido, é possível indagar acerca do fundamento implícito, pois seria crível que de posse de prova cabal da agressão, conforme o laudo (li-nha 07, Fragmento 01) e estando o casal “em pé de guerra” quando da audi-ência em juízo, iria o relator construir seu voto no sentido de absolver o réu?

Noutra ótica, não se estaria aceitando a violência contra a mulher como algo natural, vez que o casal se reconciliou e um soco (de um homem) contra um tapa (de uma mulher) é tido pelo acórdão como algo “proporcio-nal”? Nas palavras de Débora Figueiredo (2004, p.63):

Entretanto, é importante não esquecer que a construção destes casos como tragédias isoladas elimina suas implicações sociais e culturais, isto é, o fato de que tais casos refletem e reforçam um sistema social e jurídico que aceita e naturaliza a violência contra as mulheres.

Esta forma de produção do direito, na verdade, nada mais é do que uma estratégia discursiva, como ensina Virgínia Colares (2003, p.45):

Assim, a produção de discursos implica, necessariamente, a produção de sentidos que decorrem de procedimentos estratégicos na interação, pois a compreensão é uma operação-no-mundo, e não um estado mental ou uma experiência específica.

Assim, a decisão judicial serve a um propósito, seja ele consciente ou in-consciente do prolator da decisão (magistrado/desembargador), qual seja, a atribuição de um sentido específico para o caso concreto levado à julgamen-to pela Corte.

A Corte produz uma fala autorizada, a qual, por sua vez, não é conside-rada arbitrária, pois ela é conforme o direito posto, válido e vigente, reflexo de um processo democrático natural, assim:

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[...] ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas, <<naturais>>. (2010, p. 114)

Desta feita, se o direito constrói (e realiza mudanças) (n)a realidade so-cial através do controle da produção e do consumo do discurso jurídico, designando as falas autorizadas, em verdade ele é instrumento a serviço do poder. É um instrumento a serviço da ideologia na visão de Thompson, significando as:

[...] maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (1995, p.79)

Assim, o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita dada através deste processo de reificação, na estratégia típica de construção simbólica de naturalização (THOMPSON, 1995, p.81), afirmando Edgar Morin que “basta, portanto, que os homens sejam considerados coisas para que se tornem manipuláveis à mercê, submetidos à ditadura racio-nalizada moderna que encontra seu apogeu no campo de concentração” (2008, p.163 – grifos no original).

A reificação é um dos cinco modos gerais, não exaustivos, de operação da ideologia segundo Thompson, são elas: legitimação, dissimulação, unifi-cação, fragmentação e reificação (1995, p.81). Para o presente estudo tem aplicação a legitimação e a reificação, tendo em vista a campo de aplicação do mesmo, qual seja, decisões judiciais.

A legitimação tem aplicação porque as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas como le-gítimas e é utilizada como forma de persuasão de um determinado público. Esse modo é operado estrategicamente através da típica de construção sim-bólica racionalização, onde há o apelo à legalidade das regras dadas onde as relações de dominação são apontadas como legítimas. Já a reificação, ope-rada através da nominalização/passivização, possui aplicação porque há a concentração da atenção em certos temas em prejuízo de outros, com apa-gamento de atores e ações, além da naturalização, onde o normal, o natural,

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o regular nada mais é do que a aceitação tácita de uma construção simbólica operada através desse processo discursivo (RAMALHO; REZENDE, 2011, p.. 26-27; THOMPSON, 1995, p. 81).

O desvelamento do ocorrido dá-se de modo nítido quando se analisa a conjuntura, outra fase do método arcabouço analítico, composta pelos se-guintes elementos (extraídos das linhas 43-48 do Fragmento 03):

1. Casal ingere bebida alcoólica;2. Ao voltar para casa, discutem no caminho;3. Mulher agredida verbalmente por derrubar suas chaves;4. Mulher desfere tapa no rosto homem;5. Homem reage com um soco no rosto da mulher, lesionando-a.

Analisando os obstáculos na superação do problema temos os seguintes sujeitos: Juiz(a), Promotor(a), Homem, Mulher, Desembargador Relator, Procurador(a) de Justiça, demais desembargadores(as), advogados(as), a sociedade.

Contudo, apenas um deles tem o poder, naquele momento da sessão de julgamento do recurso de apelo, de realizar uma estratégia discursiva poderosa: o desembargador relator. É ele quem produzirá o relatório do fei-to e emitirá sua opinião (voto), enfatizando ou não dados do processo, ou até mesmo, omitindo-os. Neste sentido é possível comprovar a hipótese de Thompson:

As pessoas situadas dentro de contextos socialmente estruturados têm, em virtude de sua localização, diferentes quantidades e diferentes graus de acesso a recursos disponíveis. A localização social das pessoas e as qualificações associadas a essas posições, num campo social ou numa instituição, fornecem a esses indivíduos diferentes graus de “poder”, entendido este nível como uma capacidade conferida a eles socialmente ou institucionalmente, que dá poder a alguns indivíduos para tomar decisões, conseguir objetivos e realizar seus interesses (1995. p. 79-80).

Ao exercer o seu poder, segue o desembargador relator um procedi-mento peculiar, que Foucault chama de ritual, acrescentando que esse de-fine “todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso” que “não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos” (2009. p. 39).

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Através da análise crítica do discurso é possível identificar as opera-ções realizadas, através das pistas deixadas na superfície do texto, indo além do ritual e do próprio texto.

Analisando a pragmática (análise da prática da qual o discurso é um momento) encontramos: o ponto de vista do Desembargador Relator que é seguido unanimemente por seus pares (linhas 86-89 do Fragmento 04), onde o mesmo, logo após considerar que deve o recurso ser apreciado (linha 34 do Fragmento 03), conclui pela absolvição do homem (linha 35 do Frag-mento 03), passando a fundamentar a sua decisão na “confissão” da vítima, supostamente contida em seu depoimento (linhas 43-48 do Fragmento 03).

Destaque-se, por oportuno, que da tomada de depoimento exsurge um texto retextualizado e que sofrera fortíssima influência do juiz(a) que con-duziu a audiência, como já constado pela professora Virgínia Colares em sua dissertação de mestrado (1992), bem como por outros estudos específicos no Direito Penal, realizado por Ashikawa “A análise do confronto entre os textos transcritos e os textos orais aponta para a confirmação da existência da manipulação no discurso jurídico penal, obtida principalmente, pela re-textualização.” (ASHIKAWA, 2011).

Já nas linhas 49-51 do Fragmento 03, utiliza o Desembargador Re-lator a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento), ao iniciar a enunciação com elogios a Lei Maria da Penha. Mas, quando se imagina que sua conclusão é pela aplicação da Lei que acabara de elogiar, o raciocínio é direcionado para o caminho inverso, asseverando nas linhas 51-52 que não é por causa da Lei que o homem deve “apanhar sem reagir”. Ora, a contra-dição é clara, se a Lei é “boa” e incide na espécie, vez que a conduta é típica (agressão doméstica), seria caso de aplicação da mesma e não de absolvição, a não ser que estivessem presentes os elementos legais.

A construção e o encadeamento da argumentação que segue nas li-nhas 52-62 do Fragmento 03 é meramente hipotética (exercício retórico) e não tem base nos fatos, sendo feito em cima de suposições (os negritos não constam do original): “se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara” (linha 52); “certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora” (linha 53).

Ora, e se o réu segurasse a mão da vítima? E se não tivesse desferido o soco e ido embora? E se pedisse desculpas pelos xingamentos recentemente proferidos?

Outrossim, usa os modalizadores necessário e injusta (linha 54) para num primeiro momento valorizar positivamente a ação do agressor (soco que parou a briga) e num segundo momento denegrir a ação da vítima (tapa que iniciou a agressão).

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Da leitura do voto percebe-se que estas palavras são carregadas de sentido advindo do senso comum e são fundamentais para a construção da decisão. Neste sentido, buscou-se encontrar o significado das mesmas em estado de dicionário e confrontá-las como a acepção contextual.

justamente (justo): exatamente; no momento preciso; na devida quantidade ou proporção. (HOUAISS, 2001, p. 1696).

necessário: absolutamente preciso; que tem que ser; essencial, indispensável; que não se pode evitar; imprescindível, inevitável, forçoso; que deve ser cumprido; obrigatório, do ponto de vista moral. (HOUAISS, 2001, p. 2002).

É plausível que um soco é absolutamente preciso ou indispensável para encerrar uma discussão?

Como exercício retórico vamos reconstruir a frase contida na linha 54: “O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão.”, al-terando as expressões pelos atos praticados e os adjetivos por sinônimos. Eis a alteração proposta, quanto às expressões e atos: onde está grafado “o meio utilizado pelo réu”, substitui-se pelo ato por ele praticado “soco no rosto”. Já o adjetivo necessário será substituído por indispensável, e injusta agressão por desproporcional tapa. Assim ficaria reconstruída a frase: “o soco na cara foi indispensável para repelir o desproporcional tapa.”

Outros vocábulos e expressões poderiam ainda ser analisados, mas para o fim proposto ao presente estudo acredita-se que seja suficiente, o exercício feito acima.

Parte-se agora para as linhas 62-64, onde, imagina-se, está a chave que abre a porta para o desvelamento do fundamento implícito da decisão.

Na linha 62 o enunciador afirma que “a briga terminou ali” e que “o casal já estava reconciliado”, e linha seguinte que a ação do apelante foi “abraçada” pela excludente penal.

Nada mais bonito que uma briga finda, um casal reconciliado e um ponto final na demanda.

Se não é o que parece é porque estes pesquisadores talvez não tenham lido direito: uma narrativa conducente a um final feliz que não poderia ter-minar com uma condenação, mas sim com uma absolvição.

Para o fim a que se propõe a narrativa é perfeita: pois a analise foi feita devidamente (linha 35), concluindo-se que o apelante tem razão (linha 35), pois a vítima confessou que iniciou a agressão física (linha 41). A Lei Maria da Penha foi um grande avanço (linha 49), mas o homem não deve apanhar

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sem reagir (linha 52), logo, se reage a um tapa na cara com um único soco (linha 60), age em legítima defesa (linha 63).

Porque atentar para os detalhes e dar ênfase ao laudo (linha 07 do Fragmento 01) no seu voto? Talvez a briga tenha “parado por aí” para o apelante que “foi embora”, mas a vítima foi à delegacia de polícia, registrou a ocorrência e foi submetida a exame de corpo delito, afinal existe nos autos um laudo descritivo das lesões.

Responde-se: porque a briga terminou e o casal já estava reconciliado (linha 62). Eis o real fundamento da decisão.

A manutenção da condenação do apelante iria, em verdade, trazer uma consequência socialmente indesejada, pois a vítima perdoou o ofensor e reconciliou-se com ele. A questão social fora maior que a jurídica, mas o desembargador não poderia externar tal fundamento porque as questões de política criminal não competem ao desembargador, mas sim a aplicação de Lei, a justiça criminal no caso concreto.

Nas linhas 65-68 externa o desembargador relator fundamento explí-cito acerca de sua decisão, asseverando que houve, no caso, agressões recí-procas (linha 65), utilizando nas linhas 69-82 do argumento de autoridade de um precedente anterior.

Contudo, cai por terra o argumento de autoridade por falta de coerên-cia ou similitude fática, ao constar no precedente a ausência de prova segu-ra (linha 72), condição fática que no caso em análise se observou, através do laudo (linha 07 do Fragmento 01).

Desta feita, o que prevaleceu foi o aspecto arbitrário da decisão, no sentido de poder. Nas palavras de Dinamarco (2005, p. 100), ao tratar do tema jurisdição e poder:

A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, constitui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o processo de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado.

[...] Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de produzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (2005, p.101-102) - itálicos no original.

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Assim, em que pese estar a decisão revestida do manto da formalidade e da imparcialidade, já que a neutralidade inexiste no agir humano, a fixação do sentido da lei foi feita arbitrariamente pelo magistrado, num caso típico de ativismo judicial, “isso porque, sobretudo, mas não apenas, no que diz res-peito aos tribunais superiores, e num sentido bem literal, é o juiz quem deci-de o que a lei significa.” (ADEODATO, 2009, p. 138 - negrito no original).

Ilustrando este poder dizer e a força dos textos produzidos pelo aparato estatal, Malcolm Coulthard (2014) afirma com base em sua própria expe-riência que já fora instado a comparecer como perito para que o judiciário pudesse rever “[...] condenações errôneas baseado em uma análise detalha-da de traços lexicais e gramaticais nos textos” . Ou seja, a análise textual é instrumento consistente para desvelar conteúdos que não aparecem na superfície do texto, notadamente quando realizado por peritos.

O fragmento 03 contém o voto do desembargador relator, adiante transcrito:

32. V O T O S 33. O Senhor Desembargador JESUÍNO RISSATO - Relator 34. Conheço do recurso, eis que satisfeitos os seus requisitos de admissibilidade. 35. No mérito, após analisar devidamente a questão, a conclusão é de que assiste razão ao apelante. 36. Segundo consta dos autos, na noite do fato réu e vitima tinham ido a um bar, no Edifício Rádio37. Center, e no regresso para casa, por volta das 2h, iniciaram uma discussão, com troca de38. acusações e agressões verbais. Já na porta da residência, a discussão evoluiu para a agressão39. física, por iniciativa da vítima, que desferiu um “tapa” na cara do réu, e este retorquiu de imediato,40. desferindo um soco na cara da vítima. E a briga parou por aí. 41. A própria vítima confessa, em juízo, que partiu dela a primeira bofetada (fls. 61), verbis: 42. 43. “Que o casal bebeu no dia dos fatos e nós discutimos no caminho para casa, tanto no carro como44. no elevador; que na porta da residência minha chave caiu no chão e o acusado me xingou de45. vários nomes, com eu também já tinha xingado ele naquela discussão; aí eu virei um tapa no réu,46. acho que o acertei no rosto. Que o réu reagiu e já entrou no soco em meu rosto, causando lesões;47. que eu também machuquei o pé, mas não como, acho que foi no sofá; que o acusado saiu em48. seguida (...)”. 49. A Lei Maria da Penha, que veio em boa hora, representou um grande avanço na proteção às50. mulheres, vítimas de agressões por parte de homens com quem convivem em ambiente de51. relações domésticas. Mas isso não significa que o homem, quando agredido fisicamente pela52. mulher, deva apanhar sem reagir. No caso, se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara,53. certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora. 54. O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão. E a meu ver, não houve a55. desproporcionalidade sustentada pela douta Procuradoria de Justiça em seu ilustrado parecer. O56. réu levou um tapa, reagiu com um soco, evidentemente mais forte. Se tivesse reagido com outro57. “tapa”, com a mesma força ou mais leve do que o recebido, a agressão não cessaria, e ambos58. continuariam trocando “tapas” até que um dos dois, em determinado momento, desferisse golpe59. mais violento. 60. Um único soco, portanto, foi a medida certa para fazer cessar a agressão, não havendo que se

falar61. em excesso. Este só ocorreria se o réu continuasse a desferir outros golpes, o que efetivamente62. não aconteceu, pois a briga terminou ali. E na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado. 63. Dessa forma, assiste razão ao apelante, visto que sua ação foi abraçada pela excludente de64. ilicitude. 65. Registre-se que, em casos de agressões físicas recíprocas, quando há dúvidas sobre quem teria

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66. dado inicio à contenda, a jurisprudência é no sentido de que se deve absolver. Com muito mais67. razão, então, nas hipóteses como a dos autos, onde não resta qualquer dúvida de que foi a68. suposta vítima quem deu início às agressões. 69. Confira-se, sobre o tema, a seguinte decisão, in verbis: 70. “APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA.71. COMPANHEIRO QUE AGRIDE A ESPOSA DURANTE UMA DISCUSSÃO. PEDIDO DE

ABSOLVIÇÃO72. POR LEGÍTIMA DEFESA. AGRESSÕES RECÍPROCAS. CONTRADIÇÃO NAS73. VERSÕES DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE PROVA SEGURA. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA74. ACOLHIDA. ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPROVIMENTO. 1. Em75. crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, a palavra da vítima assume especial relevância

e76. autoriza a condenação, mas se vier corroborada por outros indícios idôneos e não padeça de77. contradição e dúvida. 2. Se a versão prestada pela vítima na delegacia encontra-se em

contradição78. com a que declarou em juízo, quando admitiu a ocorrência de agressões recíprocas, gerando79. dúvida sobre quem teria iniciado as agressões, é de rigor acolher a dirimente da legítima defesa e80. absolver o réu, com base no benefício da dúvida. 3. Recurso conhecido e não provido, mantida a81. sentença que absolveu o apelado dos crimes previstos nos artigos 147, caput, e 129, § 9º, do82. Código Penal.(20070111560724APR, Relator ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma83. Criminal, julgado em 18/06/2010, DJ 02/07/2010 p. 150). 84. Em face do exposto, DOU PROVIMENTO ao apelo, para ABSOLVER o apelante da imputação que85. lhe é feita, fazendo-o com fulcro no art. 386, inciso VI, do CPP. 86. É como voto.

Fragmento 03

Neste último fragmento da decisão (Fragmento 04), adiante transcrito, consta-se apenas que os demais desembargadores, sem maiores digressões, concordam plenamente com o desembargador relator, sendo a decisão unâ-nime, com a peculiaridade de que os outros dois componentes da turma são mulheres (linhas 86 e 88).

87. A Senhora Desembargadora LEILA ARLANCH - Vogal 88. Com o Relator. 89. A Senhora Desembargadora SANDRA DE SANTIS - Vogal 90. Com o Relator. 91. D E C I S Ã O 92. PROVER. UNÂNIME.

Fragmento 04

Complementando o raciocínio anteriormente exposto no tocante a política criminal, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS, na Apelação Crime, Quarta Câmara Criminal, Nº 70038800611, Des. Marcelo Bandeira Pereira, Comarca de Triunfo, Ministério Público como Apelante, Patrícia Rodrigues de Freitas como Apelado, julgado em 25 de novembro de 2010, por força de visão legalista da justiça criminal, de víti-ma uma mulher agredida passou a ser ré, tendo em vista que no curso do processo negou a existência do fato originariamente declarado a autoridade policial. Eis trecho do perspicaz voto condutor que manteve a absolvição, mas por razões diversas, adentrando no fato social:

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No primeiro momento, a apelada sustentou a acusação contra ex-companheiro. Depois, em juízo, renunciou ao direito de representar, no termo próprio tendo constado que ela disse que as agressões que noticiaram não tinham acontecido.

Nestes autos, interrogada, reafirmou as acusações iniciais.

Então, se tem razão o Ministério Público quando afirma que as palavras da denunciada não merecem crédito, não vejo como, na espécie, com os elementos de que se dispõe, estabelecer que mentiu quando ao ex-marido atribuiu as agressões. Por que, de fato, não poderia ter mentido quando – e isso é muito comum em relações da espécie – buscou eximi-lo, em juízo, pelo reatamento das relações? Em sentido diverso, saliento, existe apenas o depoimento, naturalmente suspeito, do ex-companheiro, de quem, por óbvio, não se poderia esperar a admissão da prática dos crimes.

Diante desses comemorativos, tenho que a absolvição se sustenta pela dúvida, daí por que mantenho a solução sentencial, apenas que com alteração do fundamento absolutório. (grifos nossos)

Nesta esteira de pensamento, não há como deixar de concordar com a pro-fessora Marília Montenegro (2010, p. 157) quando esta assevera:

O direito penal ignora por completo a violência estrutural e as suas causas, pois o seu discurso é simplesmente punitivo, procurando apenas atribuir culpa a alguém, seja ao homem que bateu na boa mãe de família, ou a própria mulher, que por não ter sido tão boa assim mereceu apanhar. Termina, portanto, estigmatizando os sujeitos envolvidos, oferecendo falsas soluções, e não satisfazendo a vítima, que, muita vezes, pode deixar a Justiça com o rótulo de que “gosta de apanhar”.

Dessa decisão do TJRS infere-se que o promotor de justiça, no afã de cum-prir o seu mister, como senhor da ação penal, dirigiu seus olhos para uma

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mulher que acionou a máquina estatal, o aparato policial e o Poder Judici-ário e mentiu, cometendo uma denunciação caluniosa. Foi, assim, incapaz de enxergar a mulher que ama o marido e que não queria (ou não podia) vê-lo cumprindo pena. O promotor queria “pegar o culpado”. O inimigo que violou a norma penal. Para aquele ator social que não está cônscio de seu papel, aquela é apenas “mais uma mulher que gosta de apanhar”.

Contudo, voltando à análise do julgado do TJDFT alguns comentários finais são relevantes no tocante a fundamentação implícita que julga-se ter desvelado e suas consequências para a conformação da jurisprudência em casos análogos e legitimação da violência simbólica.

Este julgado, partindo de um respeitado Tribunal, tem a possibilidade de influenciar outros, no sentido em que poderá ser usado como argumento de autoridade para a perpetuação de uma prática que deveria a Lei Maria da Penha coibir.

O que se observou foi que o Tribunal absolveu um agressor externan-do na ementa que existiram agressões recíprocas e que a resposta imediata (de um soco lesionador à um tapa), fora capaz de gerar uma excludente (legítima defesa), construção esta, no mínimo, perigosa para a atribuição de sentido que se espera daquilo que constitui o núcleo deôntico da Lei.

Esta construção é atributiva de sentido da norma do caso concreto, onde numa turma composta por maioria de mulheres (duas mulheres e um homem), operou-se a legitimação de uma violência contra a mulher-vítima. Vale lembrar que “o sentido é o produto de um jogo de forças que subjazem à determinada atividade humana” (COLARES, 2010, p.329), no caso a ati-vidade judicial, ao conhecer um recurso de apelação e dar-lhe provimento atribuindo sentido a norma sem explicitar o motivo “real” do convencimen-to.

Ao omitir o “verdadeiro” motivo de seu convencimento (reconciliação do casal, fundamento metajurídico), ao invés de contribuir com a justiça social e demonstrar que a política criminal não é a saída para os problemas sociais, o acórdão acabou criando uma excludente para um fato corriqueiro, qual seja, agressões mútuas no âmbito doméstico, onde o homem agride a mulher com mais violência, dada as suas características físicas, que a ques-tão de gênero, justamente, tenta dar um tratamento diferenciado.

Neste sentido, é esclarecedora a lição de Marília Montenegro (2010,p.148):

A violência doméstica contra a mulher trata-se de um conflito de gênero, portanto não se pode deixar de analisar esse conflito como uma relação de poder, entre o gênero masculino, representado socialmente como forte, e o

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gênero feminino, representado socialmente como o fraco.

Assim, não atribuir este sentido à norma, contextualizando o fato social, e ainda, com a prática social corriqueira (infelizmente) de nossa sociedade, é ferir de morte a própria norma, legitimando a violência.

Por fim, transcreve-se, e coteja-se, a ementa de julgado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso – TJMT, onde é repudiado o fundamento de absolvi-ção criminal pelo fato de ter o casal conciliado:

TJMT - SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL - APELAÇÃO Nº 116195/2008 - CLASSE CNJ - 417 - COMARCA DE ALTO GARÇAS - APELANTE: JOSÉ CARLOS DE ALMEIDA - APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO - Número do Protocolo: 116195/2008 - Data de Julgamento: 28-01-2009 - Relator DES. MANOEL ORNELLAS DE ALMEIDA

Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL - LESÃO CORPORAL - LEI MARIA DA PENHA - RECONCILIAÇÃO DO CASAL - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - CONJUNTO PROBATÓRIO SEGURO - REDUÇÃO DA PENA-BASE - PRETENSÃO INSUSTENTÁVEL - CIRCUNSTÂNCIAS DESFAVORÁVEIS - EXACERBAÇÃO DAS HORAS FIXADAS - RECURSO EM PARTE PROVIDO. É impossível a absolvição por crime de lesão corporal praticado pelo cônjuge contra o outro (Lei Maria da Penha) somente pelo fato de ter havido reconciliação posterior do casal. É escorreita a pena aplicada com valorização das circunstâncias judiciais, desfavoráveis ao agente; no entanto a conversão para prestar serviço à comunidade não pode romper os limites da sanção substituída.

Como se vê, em caso análogo, considerou outro Tribunal Pátrio “impossível” a absolvição em face da reconciliação do casal. Neste aspecto, infere-se ter sido possível que não externasse em seu voto condutor o desembargador relator este fundamento justamente por não encontrar ressonância na ju-risprudência pátria, buscando o critério da proporcionalidade da reação do agressor em face da atitude da vítima, construindo a absolvição por legítima defesa e agressão recíproca após iniciativa da vítima.

6. À guisa de conclusão

A primeira ilação que pode ser feita é a de que existe forte possibilidade da decisão objeto do presente estudo ser usada como argumento de autoridade

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para a perpetuação de uma prática que deveria a Lei Maria da Penha coibir, influenciando outras decisões.

Constatou-se que o Tribunal em questão absolveu um agressor exter-nando na ementa que existiram agressões recíprocas e que a resposta ime-diata (de um soco lesionador a um tapa), fora capaz de gerar uma excluden-te (legítima defesa), construção esta, no mínimo, perigosa para a atribuição de sentido que se espera daquilo que constitui o núcleo deôntico da Lei.

Constata-se que houve omissão do “verdadeiro” motivo, qual seja, a reconciliação do casal – um fundamento metajurídico – e, ao omiti-lo, ao invés de contribuir com a justiça social e demonstrar que a política crimi-nal não é a saída para os problemas sociais, o acórdão acabou criando uma excludente para um fato corriqueiro, qual seja, agressões mútuas no âmbito doméstico, onde o homem agride a mulher com mais violência, dada as suas características físicas, que a questão de gênero, justamente, tenta dar um tratamento diferenciado.

Não atribuir este sentido à norma, com a devida contextualização do fato social, e ainda, com a prática social corriqueira (infelizmente) de nossa sociedade, tem como consequência ferir-se de morte a própria norma, legi-timando-se a violência.

A aprovação e aplicação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) no caso concreto é resultado de uma política pública que restou inócua, produ-zindo consequência desastrosa, pois apesar da legislação ter sido instituída para coibir a violência doméstica contra a mulher, a voz daquela mulher violentada no caso concreto foi silenciada.

Assim, diante da complexidade do caso (do ponto de vista sócio jurí-dico) os desembargadores não conseguiram atingir a intenção legal de em-poderamento da mulher, silenciando-a, posto que o interesse do estado res-tringe-se a condenação ou absolvição do réu. No caso, ocorreu a absolvição do réu em face do fundamento implícito contido na reconciliação do casal.

Ademais, o Judiciário ao assim agir assume o seu papel de protagonista na ação numa posição que não contempla os interesses vítima da violência, legitimando a violência sofrida pela mulher, tendo em vista que apesar ter feito referência na decisão a situação de reconciliação vivida pela vítima e o réu, tal fato em momento algum foi usado como razão jurídica decisória para a absolvição.

Constata-se que o próprio estado-juiz manteve e legitimou a violência sofrida pela vítima, por meio da produção de uma violência simbólica dire-cionada numa rede de mecanismos de controle e disciplina que carrega as estruturas de submissão, inclusive aceito, muitas vezes, por outras mulhe-res, como no presente caso em que as demais desembargadoras que acom-panharam o voto do relator.

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Nesse sentido, se faz cada vez mais necessário a desconstrução de es-truturas e instrumentos que tratem de forma banal danos de ordem física e estrutural extremamente violentos à mulher.

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Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado1

Vinicius de Negreiros Calado

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

A ACD possui “um leque amplo de categorias descritivas e metodológicas” (PEDRO, 1997, p.33) pelo que se elegeu como base e marco teórico cen-tral Norman Fairclough para quem discurso é linguagem falada ou escrita, compreendendo-o como um modo de ação sobre o mundo e sobre os outros, uma prática e não apenas uma representação do mundo que se encontra numa relação dialética entre a prática social e a estrutura social e que é moldado e socialmente constituído. Dito de um modo mais simples: dis-curso é linguagem como prática social (FAIRCLOUGH, 2008, p.91). Para Fairclough a concepção tridimensional do discurso:

É uma tentativa de reunir três tradições analíticas, cada uma das quais é indispensável na análise de discurso. Essas são a tradição de análise textual e linguística detalhada na Linguística, a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados. (2008, p.100)

1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada em CALADO, Vinicius de Negreiros. Recurso não conhecido e apreciação de mérito: uma análise crítica do discurso de acórdão do Superior Tribunal de Justiça STJ. In: Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas II.1 ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v.1, p. 90-106.

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Nesse sentido, para o autor análise textual e linguística perfaz uma descri-ção e a análise da prática discursiva e da prática social uma interpretação (2008, p.101), sendo certo que na prática discursiva importa analisar os processos de produção, distribuição e consumo textual, pois no tocante a produção nem sempre é fácil identificar o produtor textual porque na com-plexidade do mundo contemporâneo, por vezes, aquele que figura como autor não o único responsável pelo texto. Já o consumo pode ser individual ou coletivo, dependendo significativamente dos contextos sociais onde são consumidos, dos modos de interpretação disponíveis e do processamento dos textos (2008, p. 106-108).

A dimensão sociocognitiva para Fairclough tem nítida relevância na interiorização do processamento pelos consumidores do texto, posto que os processos de produção e interpretação são restringidos pelos recursos disponíveis aos membros e pela natureza da prática social, asseverando Fair-clough que devem ser fortemente exploradas as restrições, principalmente a natureza das práticas sociais (2008, p. 109).

A força de um texto ou de parte dele vem de seu componente acional, que é a ação que se realiza (atos de fala), como por exemplo, “julgo proce-dente”, “declaro nula a cláusula contratual” (2008, p.111). Nesse sentido, o contexto funciona como um fator importante na redução de ambivalências textuais, sendo a posição sequencial no texto uma forma de preditor de força, ajudando a explicar a carga e o peso daquela determinada palavra naquela situação, posto que fora daquele contexto, possivelmente, a inter-pretação não seria aquela (2008, p.112).

A intertextualidade é uma das maiores preocupações de Norman Fair-clough na obra multireferida, considerando ele que esta é “a propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos”, cuja pers-pectiva intertextual denota a historicidade dos textos, classificando a inter-textualidade em manifesta e constitutiva (também chamada de interdis-cursividade), concebendo-a como um foco principal na análise do discurso, (2008, p. 114 e 135) inclusive deste trabalho, dada a marcante característi-ca intertextual do acórdão analisado.

O presente trabalho aborda algumas das categorias de análise propos-tas por Norman Fairclough, entrelaçando sua metodologia com a análise dos modos de operação da ideologia proposta por Thompson, de modo a analisar criticamente os julgados do Superior Tribunal de Justiça - STJ que compõem o corpus da pesquisa.

Para a exata compreensão da teoria social crítica de Thompson é pre-ciso apresentar o seu conceito de ideologia, vez que essa palavra é polissêmi-ca e passou por inúmeras modificações ao longo do tempo (1995, p. 43-80):

[...] proponho conceitualizar ideologia em termos das maneiras como o sentido,

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mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas (1995, p.78-79).

Fixado o conceito, Thompson propõe cinco modos gerais, não exaustivos, de operação da ideologia, quais sejam, legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. Para o presente estudo tem aplicação a legitima-ção e a reificação, tendo em vista a campo de aplicação do mesmo, qual seja, decisões judiciais.

A legitimação tem aplicação porque as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas como le-gítimas e é utilizada como forma de persuasão de um determinado público. Esse modo é operado estrategicamente através da típica de construção sim-bólica racionalização, onde há o apelo à legalidade das regras dadas onde as relações de dominação são apontadas como legítimas. Já a reificação, ope-rada através da nominalização/passivização, possui aplicação porque há a concentração da atenção em certos temas em prejuízo de outros, com apa-gamento de atores e ações, além da naturalização, onde o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita de uma construção simbólica operada através desse processo discursivo (RAMALHO; REZENDE, 2011, p. 26-27; THOMPSON, 1995, p. 81).

Essas estratégias de legitimação e naturalização operadas pela ideo-logia dominante do próprio Direito não passaram incólumes à dogmática jurídica, afirmando Paulo Lôbo com sustentação no pensamento de Luiz Alberto Warat:

Pode-se ainda assinalar que a dogmática jurídica exerce, ela própria, uma função ideológica, já que cumpre importantes tarefas de socialização (homogeniza valores sociais e jurídicos), de silenciamento do papel social e histórico do direito, de proteção (cria uma cosmo-visão do mundo social e do direito) e de legitimação axiológica, ao apresentar, como ética e socialmente necessários, os deveres jurídicos. (LÔBO, 1983, p. 28)

Assim, o presente estudo parte desse mesmo pressuposto, qual seja, de que a dogmática jurídica é ideologicamente estruturada para criar, insti-

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tuir, manter e reproduzir relações de dominação, através de um processo contínuo que se realiza discursivamente no cotidiano, como algo legítimo e natural. O estudo de caso em questão busca demonstrar como se opera esse exercício de poder.

Assim, no presente estudo, partir de Norman Fairclough aborda-se as seguintes categorias: intertextualidade e interdiscursividade. E segundo os modos de operação da ideologia em Thompson, aborda-se a legitimação e a reificação.

Análises discursivas contextualizadas com saberes específicos reque-rem pesquisadores capazes de apoderar-se do arcabouço analítico-metodo-lógico da ACD e aplicá-lo em seu campo, sendo certa a influência de sua formação discursiva, inexistindo, pois neutralidade, haja vista que cada pes-quisador analisa a partir do seu ponto de vista particular. Teun A. van Dijk afirma que

A Análise Crítica do Discurso é (ACD) um tipo de investigação analítica discursiva que estudava principalmente o modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político (DIJK, 2008, p.113 e 131).

Para o autor a ACD é uma pesquisa multidisciplinar cujos detalhes ainda estão em construção e, nesse sentido, menciona a importância da integra-ção de várias abordagens para que se atinja esse desiderato, no que Virgínia Colares já havia percebido esse fato ao asseverar:

Como se vê, linguistas e profissionais do direito constróem seus objetos de estudo sob perspectivas teóricas e assunções diversas. As condições de uso da linguagem abrangem múltiplos aspectos, simultâneos e sucessivos, no contexto institucional da justiça, criando um ‘novo objeto’, devendo extrapolar a mera análise linguística para construir um objeto de estudo de natureza interdisciplinar: os usos da linguagem regidos pelos princípios jurídicos. (ALVES, 2003, p. 89)

2. Análise crítica do discurso aplicada à decisões judiciais

A importância de se realizar um maior desenvolvimento da ACD em domí-nios e instituições específicas, como é o caso da Análise Crítica do Discurso Jurídico – ACDJ é reconhecida por linguistas e juristas. Aliás, Ricardo Lo-renzetti (1998, p. 81-82) assinala que o “Direito como linguagem é sus-

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cetível de uma análise sintática (conexão dos signos entre si), semântica (conexão do signo com o sentido) ou pragmática (que examina o contexto situacional em que o signo é utilizado)”, afirmando que a relação texto-con-texto é perceptível no “movimento de estudos críticos”.

Ao tratar do caráter problemático do significado das palavras e das pro-posições linguísticas Pietro Perlingieri assevera que “as palavras assumem no tempo significados mesmo qualitativamente diversos, segundo a cultura e a sensibilidade do destinatário” (2002, p. 73), concluindo que “[...] a sua leitura será sempre influenciada pelo conhecimento do universo normati-vo” (2002, p. 74).

Nesse sentido o texto, o contexto e o conhecimento jurídico do intér-prete não podem ser olvidados numa análise crítica de uma decisão judicial, sob pena de extrema redução de sua complexidade.

O texto jurídico situado no contexto de uma decisão judicial exerce um “poder dizer” e conta com uma força própria dos textos produzidos pelo aparato estatal. Este tipo de texto faz parte do objeto de pesquisa do pro-fessor Malcolm Coulthard (2014), o qual afirma com base em sua própria experiência que já fora instado a comparecer como perito para que o judi-ciário pudesse rever “[...] condenações errôneas baseado em uma análise detalhada de traços lexicais e gramaticais nos textos” .

No presente estudo aborda-se o texto, o contexto, e a prática social desenvolvida pelo STJ que fixa seu entendimento em sede de Recurso Es-pecial cujo mérito não fora efetivamente enfrentado no acórdão.

A ACDJ parte do arcabouço teórico metodológico linguístico-discursi-vo, mas a ele não se limita, visando construir um aparato próprio interdis-ciplinar jurídico-discursivo, minimizando desse modo as lacunas apontadas por Teun A. van Dijk (2008, p.131).

Assim, trabalhar com ACDJ exige, antes de mais nada, a contextuali-zação do evento autêntico a ser abordado, a partir da formação jurídica da comunidade de intérpretes.

Foucault assinala que o discurso é poder que se quer apoderar e não simplesmente o local onde as lutas são travadas, pelo que quando um in-divíduo se apropria de um discurso através de uma formação discursiva, na verdade ele está se apropriando do próprio poder. Assim, o advogado ao conhecer as regras e o funcionamento da corte tem efetivamente um poder, pois não se permite que qualquer pessoa tenha acesso, sendo ele ao mesmo tempo submetido ao poder e às regras/condições de funcionamento da corte (2009. p. 10 e 36).

O que Bourdieu chama de encenação paradigmática da luta simbólica denomina Foucault de ritual, acrescentando que este define “todo o con-junto de signos que devem acompanhar o discurso” que “não podem ser

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dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos” (2009. p. 39).

O discurso jurídico, como discurso legítimo, transforma em coisa exis-tente aquilo que diz (aquilo que a fala autorizada enuncia). Ou seja, de fato, opera-se a reificação através de um ato performático, v.g. cria-se uma lei que define uma data como feriado: está criado o feriado; decide-se judicial-mente que João é pai de Carla: ele o é mesmo que não seja de fato (como ocorria no passado antes do DNA ou nos casos que há a negativa do forneci-mento do material genético), entre outros. Nas palavras de Bourdieu:

[...] em suma, o princípio de di-visão legítima do mundo social. Este acto de direito que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um acto de conhecimento, o qual, por estar firmado, como todo o poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que enuncia (a auctoritas, como lembra Benveniste, é a capacidade de produzir que cabe em partilha ao auctor). (2010, p.114)

A fala autorizada não é considerada arbitrária, pois ela é conforme o direito posto, válido e vigente, reflexo de um processo democrático natural, assim:

[...] ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas, <<naturais>>. (2010, p. 114)

Desta feita, se o direito constrói (e realiza mudanças) (n)a realidade so-cial através do controle da produção e do consumo do discurso jurídico, designando as falas autorizadas, em verdade ele é instrumento a serviço do poder. É um instrumento a serviço da ideologia na visão de Thompson, significando as:

[...] maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de

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um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (1995, p.79)

Assim, o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita dada através deste processo de reificação, na estratégia típica de constru-ção simbólica de naturalização (THOMSON, 1995, p.81), afirmando Edgar Morin que “basta, portanto, que os homens sejam considerados coisas para que se tornem manipuláveis à mercê, submetidos à ditadura racio-nalizada moderna que encontra seu apogeu no campo de concentração” (2008, p.163).

Esse processo de construção do discurso jurídico pelas instâncias ju-diciais superiores é aceito naturalmente, como fala autorizada, buscando o presente estudo demonstrar adiante que nem sempre a produção do conte-údo do discurso jurídico que será consumido pela comunidade de intérpre-tes tem correlação direita com o objeto que deveria estar efetivamente apre-ciado no julgado. E, no particular, esta construção é atributiva de sentido da norma do caso concreto, pois “o sentido é o produto de um jogo de forças que subjazem à determinada atividade humana” (COLARES, 2010, p.329), no caso a atividade judicial, ao não conhecer um recurso e externar, ao mesmo tempo, um posicionamento da Corte, como se demonstrará adiante.

3. O caso objeto de estudo e sua análise segundo o aparato da ACD

O presente estudo de versa sobre um recurso especial apreciado pela 3ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ, em decisão unânime, que não foi conhecido e está assim ementado:

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - CIRURGIA DE VASECTOMIA - SUPOSTO ERRO MÉDICO - RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA - OBRIGAÇÃO DE MEIO - PRECEDENTES - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE IMPRUDÊNCIA NA CONDUTA DO PROFISSIONAL - CUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO - ENTENDIMENTO OBTIDO DA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO - REEXAME DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - ÓBICE DO ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ - RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

I - A relação entre médico e paciente é contratual, e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio, e não de resultado.

II - Em razão disso, no caso da ineficácia porventura decorrente da ação do médico, imprescindível se apresenta a demonstração de culpa do profissional, sendo descabida

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presumi-la à guisa de responsabilidade objetiva;

III - Estando comprovado perante as instâncias ordinárias o cumprimento do dever de informação ao paciente e a ausência de negligência na conduta do profissional, a revisão de tal entendimento implicaria reexame do material fático-probatório, providência inadmissível nesta instância extraordinária (Enunciado n. 7/STJ);

IV - Recurso especial não conhecido.

(REsp 1051674/RS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/02/2009, DJe 24/04/2009)

Antes de adentrar na análise é preciso esclarecer o que quer dizer “Recurso Especial não conhecido”. Segundo Alexandre Câmara:

O julgamento dos recursos divide-se em duas fases, denominadas juízo de admissibilidade e juízo de mérito. Na primeira delas, preliminar (no sentido estrito do termo, significando que a decisão aqui proferida pode impedir que se passe ao juízo de mérito), verifica-se a presença dos requisitos de admissibilidade do recurso. Sendo positivo este juízo, ou seja, admitido o recurso, passa-se, de imediato, ao juízo de mérito, fase do julgamento em que se vai examinar a procedência ou não da pretensão manifestada no recurso. (2013, p. 66)

Aplicando o raciocínio anteriormente exposto, pode-se afirmar que o re-curso especial não fora conhecido, logo a decisão é impeditiva do exame do mérito, o qual se caracteriza como a fase seguinte, sucedânea do juízo de admissibilidade.

O julgado objeto do Recurso Especial não foi conhecido (não passou pelo juízo de admissibilidade), segundo o relator, por demandar reexame fático-probatório e, segundo a revisora, porque houve incompatibilidade dos dissídios apontados, tendo sido este o único fundamento do recurso. Apesar da divergência (que não consta da ementa) o REsp não foi conhecido por unanimidade. Chama atenção o fato de a ementa estabelecer três posicio-namentos, mesmo não tendo o recurso sido conhecido, fato esse que funda-menta primordialmente o estudo.

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Quanto aos fatos originários que ensejaram a interposição do REsp, verifica-se que a ação foi ajuizada por um paciente contra um médico ale-gando erro médico em decorrência de cirurgia de vasectomia, pelo fato do mesmo ter sido pai após dez anos da data da cirurgia. Na primeira instân-cia a ação foi julgada improcedente e mantida a decisão em segundo grau. Como o REsp não foi conhecido, a decisão foi mantida. Ou seja, prevaleceu a decisão originária do magistrado singular.

Uma peculiaridade fática é que o acórdão de origem, mantido pelo STJ, admitiu a prova testemunhal e indireta do dever de informar do médico, nos seguintes termos: “com base na confiança depositada no réu decorrente de ser médico da família e com base nas declarações de outros pacientes que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade civil, pois não houve inobser-vância do dever de informar”.

Passe-se adiante a análise do acórdão segundo o marco teórico, uti-lizando-se o modelo criado por Colares (2008) onde as linhas são todas nu-meradas da primeira a última lauda e fragmentadas as passagens de modo a possibilitar a referência e análise.

50. RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.674 -RS (2008/0087259-0)

51.

52. RELATOR : MINISTRO MASSAMI UYEDA

53. RECORRENTE : JOAO CARLOS PICOLO

54. ADVOGADO : ALTAIR RECH RAMOS E OUTRO(S)

55. RECORRIDO : LENIO CARLOS DAGNOLUZZO TREGNAGO

56. ADVOGADO : MÁRIO MIGUEL DA ROSA MURARO E OUTRO(S)

57.

58. RELATÓRIO

59.

60. O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator):

61.

62. Cuida-se de recurso especial interposto por JOÃO CARLOS

63. PICOLO com fundamento no art. 105, III, “c”, da Constituição Federal de 1988, em

64. que se alega a existência de dissídio jurisprudencial.

65.

66. Os elementos dos autos dão conta de que o ora recorrente JOÃO

67. CARLOS PICOLO ajuizou ação de indenização por danos

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morais e materiais em

68. face do recorrido LÊNIO CARLOS DAGNOLUZZO TREGNAGO, por conta de

69. suposto erro médico decorrente de cirurgia ineficaz de vasectomia, alegando que,

70. embora tivesse sido informado pelo médico de que o procedimento seria irreversível

71. e definitivo -o que fez com que o recorrente e sua esposa deixassem de utilizar-se

72. de métodos contraceptivos -, ele tornou-se pai após aproximadamente 10 (dez)

73. anos da realização da cirurgia. Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente

74. (fls. 276/284).

75.

76. Interposto recurso de apelação, o e. Tribunal de Justiça do Estado

77. do Rio Grande do Sul negou-lhe provimento, conforme assim ementado:

78.

79. “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE

80. INDENIZAÇÃO. CIRURGIA DE VASECTOMIA. GRAVIDEZ

81. POSTERIOR NÃO PLANEJADA. IMPERÍCIA MÉDICA NÃO

82. COMPROVADA. Não estando comprovada nos autos a imperícia do

83. réu quando da realização da cirurgia de vasectomia no autor,

84. inviável a sua responsabilização pela não planejada gravidez da

85. esposa do recorrente, mormente por que a falha no resultado de tal

86. procedimento é uma possibilidade admitida pela doutrina médica,

87. em razão da recanalização espontânea dos ductos deferentes, até

88. mesmo anos depois do método cirúrgico, conforme esclarecido no

89. laudo pericial. Dever de informar devidamente observado pelo réu.

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90. Erro na conduta médica do recorrido não demonstrado, ônus que

91. competia ao autor. Pressupostos da responsabilidade civil subjetiva

92. ausentes. Sentença de improcedência mantida por seus próprios e

93. jurídicos fundamentos. APELAÇÃO IMPROVIDA” (fl. 331).

Fragmento 02

No fragmento 02 do Caso encontramos intertextualidade manifesta nas li-nhas 79-93, tendo em vista que o ministro relator invoca e transcreve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS. Já entre as li-nhas 62-77 encontramos a intertextualidade constitutiva quando o ministro explicita o ocorrido, segundo informações contidas nos autos.

Destaque-se que na linha 89 o TJRS explicita que fora o “dever de informar devidamente observado pelo réu”.

94. Busca o recorrente a reforma do r. decisum , sustentando, em

95. síntese, a existência de dissídio na jurisprudência acerca da qualificação do

96. procedimento de cirurgia de vasectomia como obrigação de meio ou de resultado.

97. Aduz, que, tratando-se de obrigação de resultado, o erro médico resultante da

98. ineficácia do procedimento da vasectomia prova-se pela simples capacidade

99. generandi , estando esta incontroversa nos autos (fls. 347/356).

100.

101. É o relatório.

Fragmento 03

No fragmento 03 do Caso constata-se a existência da intertextualidade constitutiva entre as linhas 94-99, quando o ministro explicita o conteúdo do Recurso Especial - REsp.

A eventual existência de contrarrazões nos autos não é sequer consi-derada pelo ministro relator, já a revisora assinala sua existência sem men-cionar o conteúdo (linha 299 do fragmento 12).

154. “Ainda sobre a questão, a prova testemunhal indicada

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pelo réu

155. comprova que para os demais pacientes foram prestadas as

156. devidas informações ao procedimento da vasectomia, o que implica

157. considerar que em relação ao autor não se justifica acreditar em

158. ressalvas ou exceções.

159.

160. (...)

161.

162. Assim, com base na confiança depositada no réu decorrente de ser

163. médico da família e com base nas declarações de outros pacientes

164. que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se

165. que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade civil, pois não

166. houve inobservância do dever de informar.

167.

168. Por fim, a responsabilidade do réu também inexiste porque não

169. demonstrado por meio de provas seguras de que sua conduta, ao

170. realizar a cirurgia, foi culposa. A alegada imperícia sustentada pelo

171. autor não foi comprovada (...) enfim, não restou demonstrado nos

172. autos que o proceder do médico réu foi em desacordo com as

173. técnicas conhecidas na literatura médica.

174.

175. Não apontada especificamente e não comprovada de forma segura

176. uma conduta culposa por parte do réu, não há que se falar em

177. responsabilidade civil, mormente porque salientado em diversas

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178. passagens da fundamentação que a falha no resultado do

179. procedimento é uma possibilidade admitida pela doutrina médica.

180.

181. (...)

182.

183. A par desta compreensão, ante a ausência de erro na conduta

184. médica do réu, inviável atribuir-lhe a responsabilidade pela gravidez

185. não planejada do autor, ocorrida muitos anos depois do

186. procedimento, e, por conseguinte, o reconhecimento da obrigação

187. de indenizar” (fls. 341/342).

Fragmento 06

No fragmento 06 o relator realiza intertextualidade manifesta, transcreven-do passagens do acórdão recorrido, destacando-se que nas linhas 154-158 e 162-166, o TJRS admitiu a prova testemunhal e indireta do dever de in-formar do médico, nos seguintes termos: “a prova testemunhal indicada pelo réu comprova que para os demais pacientes foram prestadas as devidas informações ao procedimento da vasectomia, o que implica considerar que em relação ao autor não se justifica acreditar em ressalvas ou exceções” e “com base na confiança depositada no réu decorrente de ser médico da família e com base nas declarações de outros pacientes que também reali-zaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se que não pode ser impu-tado ao réu a responsabilidade civil, pois não houve inobservância do dever de informar”.

188. Bem de ver, na espécie, que o entendimento assim esposado pelo

189. Tribunal de origem baseou-se na análise do conjunto probatório carreado aos autos.

190. Rever tal entendimento, obviamente, demandaria revolvimento dessas provas, o

191. que é inviável em sede de recurso especial, a teor do disposto no Enunciado n. 07

192. da Súmula/STJ.

193.

194. Assim sendo, não se conhece do recurso especial.

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195.

196. É o voto.

197.

198. MINISTRO MASSAMI UYEDA

199.

200. Relator

Fragmento 07

A conclusão a que se infere da análise textual é que o relator concorda com a tese da responsabilidade subjetiva (“Bem de ver” – linha 188), adotando-a como razão de decidir, reconhecendo de modo explícito (conforme consta da ementa) a inexistência de responsabilidade do médico ao realizar a cirur-gia e cumprindo seu dever de informar ao paciente.

Outrossim, ao realizar tal ato e ainda assim não conhecer o recurso proposto, na verdade, o relator fez questão de externar o seu posicionamen-to no caso concreto, ainda que do ponto de vista prático o recurso não tenha passado pelos pressupostos de admissibilidade para o seu conhecimento, por ser necessário o reexame fático-probatório, segundo o entendimento do ministro relator.

Destaque-se que foram consignados três posicionamentos na ementa do acórdão: a relação contratual entre médico e paciente, encerrando obri-gação de meio, em regra necessidade de prova da culpa médica nos autos se o procedimento cirúrgico for ineficaz; ausência de negligência do médico que cumpriu seu dever de informar.

296. Recurso especial: interposto com fulcro na alínea “c” do permissivo

297. constitucional (fls. 347/356) alegando divergência da jurisprudência de outros Tribunais.

298.

299. Prévio juízo de admissibilidade: após a apresentação de contra-razões, o

300. Tribunal de origem admitiu o recurso especial (fls. 428/428vº), por considerar

301. preenchidos os requisitos genéricos e específicos.

302.

303. Voto do relator: não conhece do recurso, sob o argumento de que o

304. acolhimento da tese do recorrente exigiria o revolvimento do substrato fático-probatório

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305. dos autos, inviável em sede de especial, a teor do disposto na Súmula nº 07 do STJ.

306.

307. Revisados os fatos, decido.

Fragmento 12

Neste acórdão há um voto vista, sendo o fragmento 12 um recorte do voto vista da Ministra Nancy Andrighi, cuja análise é feita conjuntamente com o fragmento 17, transcrito abaixo.

372. Com relação aos acórdãos alçados a paradigma pelo recorrente, cumpre

373. notar que a hipótese fática neles delineada não se subsume perfeitamente ao particular,

374. tendo em vista que, em ambos os julgados, o procedimento cirúrgico foi inexitoso desde

375. o início.

376.

377. Aliás, a incompatibilidade dos dissídios evidencia justamente a distinção

378. estabelecida linhas acima, entre o êxito da cirurgia e o resultado final almejado pelo

379. paciente.

380.

381. Realmente, no acórdão do TJ/MG consta que “o autor não se tornou infértil

382. após o procedimento médico-cirúrgico ” (fls. 397), enquanto o acórdão do TJ/RJ ressalta

383. que “a cirurgia com o fito de tornar o primeiro Autor estéril (...) foi tentada duas vezes

384. sem sucesso ” (fls. 406). Na espécie, ao contrário, concluiu-se que “o procedimento

385. realizado foi bem sucedido por um longo tempo, e que a gravidez somente ocorreu em

386. razão da falha decorrente da recanalização tardia ” (fls. 281).

387.

388. Deve-se, portanto, afastar a admissibilidade do recurso especial com base

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389. na alínea “c” do permissivo constitucional.

390.

391. Forte em tais razões, acompanho na íntegra o voto do i. Min. Relator, e não

392. conheço do recurso especial.

Fragmento 17

A ministra revisora explicita nas linhas 372-375 e 388-389 (fragmento 17) que afasta a admissibilidade do recurso com base na alínea “c”, justamente porque fundamentou o recorrente a sua peça na existência de dissídio juris-prudencial, não tendo colacionado paradigmas pertinentes.

Ou seja, o único fundamento invocado pelo recorrente fora a “diver-gência da jurisprudência de outros Tribunais” (linha 297, fragmento 12), tendo a relatora afastado a admissibilidade recursal porque não teria sido comprovada a divergência, já que fora caracterizada a falta de similitude en-tre os fatos contidos nos autos e os fatos contidos nos acórdãos divergentes (chamados de paradigma).

Contudo, quando a ministra revisora efetivamente decide (ato de fala – “acompanho”) nas linhas 391-392 (fragmento 17) afirma acompanhar na íntegra o voto do relator, quando na realidade não conhece do Recurso Especial por fundamento diverso, posto que o relator não o conheceu por considerar que seria necessário o reexame fático-probatório (que esbarraria na súmula 7) enquanto a revisora não conheceu do recurso por incompati-bilidade dos dissídios (linha 377 do fragmento 17), chegando a afirmar que o fazia “Forte em tais razões” (linha 391 do fragmento 17).

É de se destacar ainda que o entendimento da revisora não constou da ementa.

4. Conclusões

A análise crítica do discurso – ACD tendo como marco teórico Norman Fair-clough, apoiada ainda nas construções de John B. Thompson pode ser apli-cada a discursos jurídicos.

O estudo de caso de acórdão do Superior Tribunal de Justiça - STJ foi realizado com o levantamento de seus elementos textuais e contextuais.

Buscou-se demonstrar a existência de uma prática discursiva em que o exercício de poder pelo tribunal superior exorbita o caso concreto, tendo em vista a existência de fixação de três posicionamentos na ementa do acór-dão que aprecia o Recurso Especial - REsp objeto do estudo.

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Constatou-se que mérito do recurso não fora apreciado formalmente pelo tribunal, pois do ponto de vista técnico o recurso não passou requisitos de admissibilidade para o seu conhecimento.

Contudo, ao ser a ementa construída pelo STJ pouco relevância foi dada a sua principal característica, qual seja, o não conhecimento e os mo-tivos que levaram ao não conhecimento, sendo destacada na ementa a po-sição do tribunal sobre a matéria (mérito recursal) com a fixação de três posicionamentos de mérito sobre a questão.

Outrossim, o recurso especial não passou pelo juízo de admissibilida-de, segundo o relator, por demandar reexame fático-probatório e, segundo a revisora, porque houve incompatibilidade dos dissídios apontados, tendo sido este último o único fundamento do recurso. No entanto, esta divergên-cia de relevo do ponto de vista jurídico-processual não consta da ementa, tendo ao final sido a decisão unânime.

Conclui-se que o STJ, por sua Terceira Turma, ao apreciar o caso con-creto, verificando a existência de uma oportunidade para externar a comu-nidade jurídica a sua interpretação do direito acerca dos fatos ali delineados (mérito) assim o fez, mesmo diante de uma situação em que, do ponto de vista formal, o seu posicionamento não tenha qualquer efeito prático, tendo em vista que a decisão de origem (questionada no julgado) fora mantida em todos os seus termos porque o Recurso Especial não fora sequer conhecido.

Noutras palavras, utilizou-se de seu espaço de poder-dizer o direito no caso concreto para externar o seu entendimento e, desse modo, exercer a sua influência nas instâncias inferiores e na comunidade jurídica em geral.

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Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha

Lúcia Freitas

Universidade Estadual de Goiás

1. Introdução

Meu objetivo, aqui, será explorar, por uma análise crítica aplicada a textos próprios do sistema penal, de que maneira um problema social como a vio-lência nas relações de gênero é tratado no sistema judiciário. Esse objetivo é acessado a partir de um corpus1 formado por 25 processos penais de ameaça e lesão corporal, enquadrados na Lei Maria da Penha, nos quais vítimas e agressores tinham relações de parentesco, sendo a maioria casais. Esses processos representam uma parte do montante total de 68 demandas de violência doméstica contra a mulher, registradas entre os anos de 2007 e 2008 no Cartório do Crime da cidade de Jaraguá, interior de Goiás.

Essa cidade é tomada como campo específico da pesquisa em virtude de minha atuação como professora e pesquisadora na Universidade Esta-dual de Goiás, Unidade de Jaraguá, onde o projeto original foi proposto. Paralelamente, essa escolha visa preencher uma lacuna no que se refere às cidades do interior em geral, uma vez que a maioria das pesquisas so-bre violência de gênero realizadas no Brasil nas últimas décadas (Almeida, 2001; Azevedo, 1985; Fausto, 1984; Gregori, 1993; Grossi e Werba, 2001) retratam o universo de grandes centros e capitais, tendo sido as pequenas cidades e suas respectivas instituições pouco contempladas. Nessa direção, a cidade de Jaraguá, especificamente, é tomada como ponto referencial de outras localidades semelhantes, espalhadas pelo interior do país, cuja herança cultural, a exemplo desta, guarda marcas da atuação recente de

1. O presente artigo é resultado parcial da pesquisa coordenada pela autora intitulada “Violência contra a mulher em uma cidade do interior de Goiás: silêncio e invisibilidade?”, financiada pelo Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº. 57/2008 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

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grupos oligárquicos extremamente autoritários que promoveram, de forma prolongada, o favorecimento de vários tipos de violência.

As análises que serão aqui apresentadas incidem sobre os processos de continuidade ou ruptura com valores tradicionais que permeiam as concep-ções sobre gênero e violência dentro do judiciário. O foco, portanto, recai no discurso desse sistema responsável pelo exercício de poder regulador sobre as práticas de violência em geral. Antes, porém, de apresentar a seção de análise, elaboro duas seções preliminares: na primeira, apresento o recorte teórico, dentro dos estudos linguísticos, pelas vias da Análise de Discurso Crítica, que apoia análises discursivas textualmente orientadas; na segun-da, abordo como a categoria de gênero tem sido elaborada dentro do Direito e na Lei Maria da Penha.

2. O viés teórico para uma análise crítica da linguagem jurídica

A investida de linguistas sobre o campo social tornou-se possível a partir de uma concepção de linguagem que, ao invés de priorizar categorias formais, busca um deslocamento para o uso efetivo da língua em sociedade e das exigências reais e imediatas de seus usuários. Nessa perspectiva, o discurso é considerado o pólo capaz de integrar conhecimento lingüístico, cognitivo e social, junto com as condições nas quais seus falantes interagem. Compre-ende-se que no âmbito do discurso é operável tanto o nível lingüístico quan-to o extralingüístico, pois nele encontra-se o liame que liga as significações de um texto às suas condições sócio-históricas (Brandão, 1991). A proposta, aqui expressa, de estudar a violência nas relações conjugais através de uma abordagem linguística aplicada a registros do sistema penal viabiliza-se, por-tanto, pelo viés discursivo.

Não obstante, como os estudos de discurso formam um campo muito amplo, a forte relação entre a linguagem jurídica e poder demanda uma abordagem específica que possa captar uma visão crítica do discurso legal. Nesse sentido, o referencial teórico-metodógico desta pesquisa sustenta-se na Análise de Discurso Crítica, doravante ADC (Fairclough, 2003; Van Le-euwen, 2008). Essa forma de pesquisa social crítica propõe-se a estudar a linguagem como prática social, observando o papel do contexto e as relações entre linguagem, poder, dominação, discriminação e controle. Tal proposta permite unir a análise textual à tradição macrossociológica de análise da prática social, que se refere às estruturas sociais, assim como à tradição mi-crossociológica, interpretativa, concebendo a prática social como atividade em que as pessoas se engajam. A vertente proposta por Fairclough (2003) envolve basicamente um enfoque da gramática na disposição do texto, as-sociando-a ao sentido sócio-histórico desse texto e a uma abordagem crítica das práticas sociais em que ele se insere. O estudo concomitante desses três eixos procura lançar luz sobre as razões prováveis de certas escolhas na es-trutura lingüística (vocabulário, gramática, estruturas textuais), bem como desvendar a que interesses essas formas linguísticas servem.

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Nesse sentido, a aplicação de uma abordagem analítica como a ADC sobre textos legais é oportuna à tentativa de revelar possíveis parcialidades escondidas sob a alegada objetividade do discurso jurídico. Tendo em vista a importância do sistema jurídico na vida das cidadãs e cidadãos, devido ao seu poder de decidir sobre questões patrimoniais e até sobre a liberdade das pessoas, é bastante relevante realizar uma análise mais detida das práticas sociais desempenhadas por meio da linguagem jurídica. Conforme alerta Fi-gueiredo (2004), no discurso legal, como em outros discursos que ilustram um sistema social calcado na assimetria entre os gêneros, a noção de que a lei sempre promove direitos individuais e sociais é uma questão complexa. Uma vez que o sistema jurídico e as decisões judiciais tendem a refletir e construir relações assimétricas de poder entre seus operadores e membros de grupos com menos status social, é temerária uma visão desse sistema como veículo imparcial do bem social. Considerando que os agentes sociais não são agentes livres, são socialmente constrangidos, seus textos acabam expondo relações ideológicas que os permeiam. É justamente a essas rela-ções que as seções analíticas se dedicam mais a diante.

3. O paradigma de gênero no Direito e a Lei Maria da Penha

A expressão “violência de gênero” tem-se sobreposto ao termo tradicional “violência contra a mulher”. Tal mudança ocorre, fundamentalmente, com a introdução da categoria de gênero (Scott, 1986) no campo de investiga-ções, consolidando uma abordagem focada na participação de homens e mulheres nas relações violentas, considerando os papeis que ambos assu-mem na sua produção e legitimação. Tal conceito tem sido utilizado nas ciências sociais em função de propor uma visão mais aprofundada das rela-ções entre os sexos, captando a criação inteiramente social das ideias sobre os papeis próprios dos homens, das mulheres e de outras identidades sexu-ais. Nesse sentido, a noção de gênero rejeita explicações biológicas, como as que encontram um denominador comum para várias formas de subordina-ção no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior (Santos e Izumino, 2005). Assim, importa que se estude sob esse conceito, como a construção social tanto da feminilidade quanto da masculinidade se conecta ao fenômeno da violência.

Essa categoria tem fundamentado debates internacionais e nacionais sobre questões humanitárias, de modo que a violência contra a mulher é situada nas discussões sobre Direitos Humanos e não apenas como um pro-blema doméstico e familiar. Na Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mu-lher, adotada pela OEA em 1994), por exemplo, ficou definido que a vio-lência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. A pressão dos movimentos inter-nacionais fez com que tanto o paradigma de gênero quando o dos Direitos

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Humanos fosse incorporado no Brasil, implicando mudanças que resultam na promulgação de novas leis, como é o caso da Lei 11.340 de 2006, conhe-cida como2 Lei Maria da Penha.

Embora essa lei se articule diretamente em torno de questões de gê-nero, Monteiro (2003) observa que o tema é recente dentro no Direito, que historicamente o tratou no âmbito das relações de família, com base em uma radical diferença de funções entre o homem e a mulher que, antes mesmo de serem normatizadas, já se encontravam, de longa data, codifi-cadas na cultura luso-brasileira. O autor ainda denuncia que esses papeis foram direcionados pelo modelo burguês de família, ao qual os codificadores e doutrinadores concedem sanção legal em detrimento da extrema varie-dade de práticas sociais relativamente à família no Brasil. Nesse sentido, o Direito, ao repartir estatutos e sancionar papéis, reproduz o jogo das es-tratificações sociais e, embora o faça em constante referência ao princípio da igualdade, recusa-se a reconhecer as reais desigualdades entre os sexos. Assim, o discurso jurídico esconde uma ideologia sexista que, em última instância, acaba por redobrar juridicamente a força normativa sociológica dos fenômenos sociais.

O estudo de Campos (2004) destaca que a não incorporação do “para-digma de gênero” no trato à violência contra a mulher no judiciário resulta na sua banalização, que por sua vez se reflete no arquivamento massivo das demandas, reprivatizando o conflito, com a devolução do poder ao agressor. A autora se baseia no tratamento dado a essa violência antes da promulga-ção da Lei Maria da Penha, quando as lesões corporais e ameaças, que são os tipos de manifestação mais comuns do problema (Teixeira, Pinto e Mora-es, 2011), eram reguladas pela Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. A mesma tratava casos de violência contra a mulher de forma igual a qualquer briga, como as de bar, entre homens ou entre vizinhos. Em substituição à pena era muito comum a aplicação de medidas despenalizadoras previstas pela lei, como a suspensão condicional do processo e o pagamento de multa, como cesta básica e outras formas de prestação pecuniária.

Tais procedimentos visavam a uma maior agilização e facilitação do acesso à justiça a certos casos de ameaça e lesão corporal, procurando evi-tar o início de processos penais que poderiam culminar com a imposição de

2. Essa lei é assim denominada em homenagem à biofarmacêutica cearense, Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima dos tiros que lhe dera o marido pelas costas, simulando um assalto, e anos depois, tentou eletrocutá-la. Na época da primeira agressão, tinha 38 anos, três filhas e ficou paraplégica. Após muita luta pela punição do agressor e enfrentando enorme resistência da justiça brasileira, com a ajuda de organizações internacionais, Maria da Penha conseguiu denunciar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pela negligência do Estado Brasileiro ao tratar casos de violência doméstica. Tornou-se figura emblemática da causa de mulheres vítimas de violência de seus parceiros e deu nome à Lei, que enfatiza a gravidade do problema e procura dar mais rigor jurídico ao seu tratamento.

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uma sanção ao agente de um crime tido como de “menor potencial ofensi-vo”.

Segundo Campos (2004), o que determina esse potencial é a centra-lidade da pessoa na proteção jurídico-penal, assim, as lesões corporais, por exemplo,são consideradas menos ofensivas ao bem jurídico “vida” que o homicídio,devendo, portanto, ser tratadas com menos rigor que este e de forma mais simplificada. Na interpretação da Lei n. 9.099/95, lesão corporal e ameaça eram crimes de importância diminuída.

Opondo-se a essa minimização da gravidade de ações em que um agressor põe em risco a saúde de sua família, protegido pela privacidade do “lar”, o art. 41 da Lei Maria da Penha (11.340/06) determinou o afastamen-to da Lei anterior, a fim de tratar com mais rigor delitos praticados em situ-ação de violência contra a mulher. Dentro desse novo contexto, insta saber em que medida as decisões da Justiça satisfazem os paradigmas de gênero e de Direitos Humanos que a lei prioriza. Nas seções analíticas, vou tratar essas questões de forma mais detida.

4. Valores tradicionais sobre conjugalidade: conservadorismo

Ao me debruçar sobre os autos que compõem o corpus da pesquisa pude perceber como a violência na conjugalidade se liga a um contexto ainda muito impregnado pelos valores da cultura patriarcal, em que discursos genderizados de direitos e de deveres determinam, conforme definiu Neves (2007), condições “menorizantes” às mulheres. Os valores de conjugalidade acionados nos gêneros boletim de ocorrência, denúncia, termos de repre-sentação etc., são depreendidos direta ou indiretamente em diversos cam-pos destes, pois a maioria deles dedica um espaço do documento ao registro, ainda que sucinto, da condição de conjugalidade dos casais, como pode ser visto nos recortes seguintes:

1. Segundo relato da vítima XXXX, a mesma mantém um re-lacionamento com XXXXX há cerca de mais de seis anos e que desse relacionamento amoroso, tiveram duas filhas. XXXXXX, de 05 anos de idade e XXXXXXX, de 02 anos e meio. (Trechos retirados do Boletim de ocorrência do processo 2008.032.974.70).

2. Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são casados, e dessa relação frutificou um filho. (...) Ressoa, ainda dos autos, que por diversas vezes a ví-tima foi ameaçada e agredida pelo denunciado, além de ter dito que era uma “vagabunda, piranha, puta, ordiná-ria, sem vergonha”, tudo porque não aceitava a separação do casal. (Trechos retirados da Denúncia do processo 2007.036.850.28)

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3. Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são unidos estavelmente há aproximadamente 15 (quinze) anos e dessa relação frutificaram dois filhos. (...) Res-soa, ainda dos autos, que por diversas vezes durante a vida em comum, a vítima foi ameaçada pelo denunciado, pois este afirmou que se ela o deixasse, a mataria, tudo isso motivado pelo ciúme exagerado que sentia. (Trechos retirados da Denúncia do processo 2007.043.462.51)

4. Apurou-se que a vítima é casada com o denunciado há aproximadamente vinte e um anos e, dessa união, nasceram três filhos. Ocorre, porém, que, há aproximadamente dez anos, o denunciado começou a modificar seu comportamen-to, passando a ficar agressivo com a vítima e seus filhos, proferindo ameaças contra eles frequentemente. (Trechos retirados da Denúncia do processo 2008.013.451.67)

5. Ressoa dos autos, que o denunciado e a vítima são unidos estavelmente há um ano, tendo frutificado dessa relação um filho. (...) É certo, ainda, que o denunciado é acostumado intentar agressões verbais contra a vítima, ofendendo-lhe a dignidade, bem como a de sua família. (Trechos retirados da Denúncia do processo 2007. 049. 963.70)

6. Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são casados há aproximadamente 03 (três) anos e dessa relação frutificou um filho. (...) Ressoa ainda dos autos, que o relacionamento do casal já não estava agradável, situação que culminou com várias discussões, separações e reconciliações. Na última reconciliação, o denuncia-do, afirmou que iria matar a vítima se fosse deixado por ela mais uma vez dizendo ainda que ela estaria se insi-nuando para outros homens, tudo isso em razão do ciúme exagerado que sentia. (Trechos retirados da Denúncia do processo 2007.049.966.55)

Observa-se nesses extratos, todos relativos às condições conjugais entre vítimas e agressores, uma representação embasada na união de um casal heterossexual, em uma dimensão afetiva associada ao amor, principalmen-te no contexto familiar. Toda essa representação discursiva é feita através de estruturas textuais típicas do Direito, expressas em um léxico próprio dos discursos conservadores (“dessa relação frutificou”) e em sequências formais (“segundo fonte em evidência”, “ressoa dos autos”), cujo efeito é um distanciamento do operador do direito da realidade que ele tece. Esses recursos evidenciam que a razão jurídica é conservadora e distanciada das práticas sociais.

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Ao longo das últimas décadas, profundas alterações ocorreram nos modelos de família. Se, até meados do século XX, predominavam famílias cujo chefe era o marido e pai, cresce a cada dia famílias chefiadas por mu-lheres ou compostas por casais do mesmo sexo, com diferentes arranjos, o que aponta para as mudanças que dizem respeito, principalmente, aos va-lores antes hegemônicos que caracterizavam essa instituição. O casamento formal, a virgindade, a não aceitação do divórcio integravam um conjunto de valores que, até recentemente, acreditava-se deveriam ser respeitados por todos. O rompimento com esses valores causava, na maioria das vezes, ações desencadeadas pela própria sociedade que visavam segregar os indi-víduos que ousavam desafiar as normas. Para isso, um meio muito utilizado eram os rótulos com termos carregados de preconceitos, como “teúda e “manteúda”, “amasiada”, etc. Curiosamente, um desses rótulos é muito co-mum na linguagem jurídica e aparece em alguns autos, como nos recortes a seguir:

7. Consoante se infere da denúncia, no dia 15 de setem-bro de 2007, por volta das 22h, o denunciando, na Rua 07 próximo ao bar da XXXXXX, na Vila Colombo, nesta cidade, teria ofendido a integridade física de sua ex amásia, XXXXXXX. (Trechos retirados da Defesa prévia do acusado no processo: 2007.043.487.42)

8. QUE é amasiado e tem um filho e sua amásia está espe-rando o segundo, que tem o segundo ano primário, que nun-ca esteve internado para tratamento de doenças mentais, que ingere bebidas alcóolicas, não utilizando substân-cias entorpecentes; QUE o interrogando afirma a esta au-toridade policial que na sexta-feira ele e sua amásia separaram-se, tendo sua amásia pedido que o mesmo saís-se de casa, pois não estavam mais vivendo em harmonia (Trechos retirados do Termo de Declarações do acusado em Auto de prisão em flagrante do processo: 2007.051.532.10)

Contradizendo a própria lei, que reconhece a união estável como uma for-ma de casamento, o termo amásia permanece na linguagem dos processos e continua a rotular as mulheres insubmissas que não seguiram o velho modelo de organização familiar. Por ser empregado predominantemente no feminino, uma vez que não encontrei nenhum registro no masculino, o termo ainda demonstra a maior carga de preconceito sobre a mulher que burla as normas tradicionais do casamento.

Para Campos (2003), o que move a lógica jurídica é um ideal impreg-nado de valores tradicionais sobre o matrimônio e a família, que se orientam para a preservação do casamento. Segundo o autor, essa lógica permanece inalterada há muito tempo e, até o advento da Lei Maria da Penha, era operada pelo arquivamento massivo dos processos provocado pela renúncia

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das vítimas. Argumenta-se que, ao adotarem essa postura, alguns magistra-dos promovem uma aplicação assimétrica do direito às mulheres, ocultando modos desiguais de distribuição social de poder. Algumas evidências sobre a presença do ideal conservador em relação ao casamento e sobre o modo assimétrico de aplicação de poder são identificadas neste “Termo de retra-tação”, em que foram subtraídos apenas o cabeçalho e os dados da qualifi-cação, estando os campos principais expostos a seguir:

8. Vem a presença de Vossa Excelência, na presente Ação Penal de nº 200704346596, dizer que RENUNCIO ao direito de queixa em desfavor de XXXXXXXXXX, vez que, somente fui à Delegacia de Polícia porque estava nervosa e cansada de ver o esposo chegando em casa bêbado e sem trabalhar.

Contudo, atualmente, o mesmo passou por um tratamento de dependência química e alcoólica, passando a conviver comigo e com nossa família de uma maneira harmônica, sem desentendimentos, sendo que, inclusive, livrou-se das bebidas e das drogas.

Dessa forma, não tenho qualquer interesse na continuação do feito.

Por ser verdadeiras as declarações acima mencionadas e por estar de acordo em RETRATAR-ME é que firmo o presen-te. (Trecho retirado do Termo de Retratação do processo: 2007.043.465.96)

Neste texto, o discurso da preservação do casamento e da família é arti-culado de forma bastante artificial, por uma estratégia de legitimação que Thompson (1995, p. 89) classifica de narrativização. Essa operação linguís-tico-ideológica cria a sensação de que no presente algo é eterno e aceitável a partir de um acontecimento passado. Ela pode ser recuperada na sequ-ência textual do segundo parágrafo, iniciado pela conjunção adversativa, “contudo”, aí alocada para contrapor a cena do passado em que a mulher “estava nervosa e cansada de ver o esposo chegando em casa bêbado e sem trabalhar”. Em seguida, vem o advérbio de tempo, “atualmente”, realçando o tempo presente e anulando o passado nefasto que se quer esquecer. A anulação é engendrada pela narrativa da reabilitação do marido com um tratamento de dependência química e alcoólica, história inverossímil no contexto jaraguense, onde não há serviços de saúde dessa natureza. No final, a exemplo dos contos literários tradicionais, em que o bem vence o mal, o marido livra-se das “bebidas e das drogas”, possibilitando, “inclusive”, o desfecho feliz, com a convivência conjugal e familiar “harmônica”, “sem desentendimentos”.

Na Justiça, retratações são exigidas em casos de difamação e calúnia. Nesse sentido, o “Termo de retratação”, funcionalmente, opera uma confis-

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são de culpa das mulheres, que assumem agir sob descontrole emocional ou irresponsavelmente. É o que se observa no exemplo dado: a vítima confessa que fez uma acusação errônea ou falsa e vem a público para se desculpar e anular a declaração anterior. Em síntese, o que o gênero faz concretamente é registrar o arrependimento das vítimas, seu perdão aos agressores e, mais indiretamente, seu próprio pedido de perdão pelos constrangimentos re-sultantes da abertura dos processos. Executadas nesses moldes, as retrata-ções atendem tanto aos critérios burocráticos próprios do sistema judiciário, quanto a ideais conservadores da cultura patriarcal. Tudo orquestrado por arranjos linguisticos que operam uma duvidosa distribuição de poder.

5. Os papéis de gênero no discurso do judiciário: cultura patriarcal e a distribuição desigual de poder

Segundo Monteiro (2003), o Direito reproduz e reforça o jogo das estra-tificações sociais já estabelecidas. No caso das hierarquias de gênero, por exemplo, o autor afirma que antes mesmo de serem normatizadas no Direi-to, já se encontravam, de longa data, codificadas na cultura luso-brasileira, de nítidos contornos patriarcais. Ao enfatizar a família na representação de conjugalidade como uma espécie de pilar da sociedade, o discurso jurí-dico revela os papéis de “pai”, “marido”, “mãe”, “esposa”, “filho” e “filha” que essa instituição adota, bem como os comportamentos e expectativas so-cialmente impostas e a eles subjacentes. Especificamente sobre a figura do “pai”, Monteiro (2003) comenta que, após a derrota deste sujeito como pólo governante da instituição familiar tradicional hegemônica, os homens vão se erigir em um novo arranjo, baseado em uma relação constitutiva entre masculinidade, autoridade e violência, na qual impõem seu domínio sobre as mulheres, “mostrando” a elas o seu respectivo “lugar” na sociedade.

Vê-se nos trechos inicialmente destacados (1 a 6) como os elementos masculinidade, autoridade e violência, citados Monteiro (2003), combinam--se para exprimir os papéis masculinos na conjugalidade aí representada. Ressalta, naqueles textos, o poder dominador do homem sobre sua companheira e filhos, cujo exercício permite tanto o abuso dos meios verbais (ameaças, gritos, ofensas, desmoralizações e xingamentos), como a brutalidade física por chutes, tapas, murros e outras violências, quando as primeiras não são suficientes. São atos de quem toma para si o papel de comando da relação e assume também como de seu direito o controle e a coerção irrestrita sobre seus subordinados.

Conforme analisa Bourdieu (1999, p. 20), embora a estrutura patriar-cal/falocêntrica seja extremamente arbitrária e injusta, “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão an-drocêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Ainda completa o autor: “o simbo-lismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e ‘motivado’ e assim percebido como quase natural” (Ibid.). O próximo recorte, retirado

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de um Pedido de Reconsideração em que um Promotor apela ao Juiz para não conceder suspensão do processo ao réu e fazer valer os princípios da Lei Maria da Penha, demonstra que mesmo quando dirigido à defesa de interesses da mulher, o discurso jurídico deixa transparecer as marcas de seu conservadorismo:

9. Em segundo lugar, insta aduzir que a disposição contida no art. 41 da Lei n. 11.340/06 é resultado de uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar. É cediço que a história da mulher é caracterizada pela dominação patriarcal, sendo que a dominação exercida no espaço doméstico sempre foi uma das modalidades mais incisivas de exercício de poder sobre o sexo frágil, de modo que somente quem não quer, não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros, nada tendo, deste modo, de inconstitucional. Outras tantas ações afirmativas têm sido resultado de políticas públicas contemporâneas e, em que pesem algumas delas envoltas em polêmicas, não recebem a pecha de inconstitucionalidade. Citem-se as quotas para negros e estudantes pobres nas universidades, as quotas para deficientes em concursos públicos, as quotas para mulheres nas eleições etc. (Trecho retirado do gênero Pedido de Reconsideração do processo: 2007.049.963.70)

Aqui, fica exposto o tradicionalismo no termo sexo frágil, mostrando que mesmo quando a autoridade pretende seguir um viés menos conservador, como neste caso em que o promotor quer fazer valer a Lei Maria da Penha, seu apego aos valores tradicionais fica latente. O termo mostra que ele pró-prio não assumiu em profundidade as concepções que consideram a mulher como “sujeito de sua história” e acaba se contrapondo ao próprio discurso feminista ao qual tenta inicialmente aliar-se. Do ponto de vista dos valores é possível perceber como persiste por parte das instituições em geral e do judiciário em particular representações acerca da mulher como ser “frágil e doce”, concepções que se contrapõem aos dados empíricos, os quais mos-tram mulheres também violentas3.

O próximo recorte, que traz um trecho da Defesa Prévia de um caso em que o homem agrediu sua mulher após esta tê-lo ameaçado com um pedaço de pau, mostra que, mesmo quando a mulher age com violência, a

3. Nesse sentido, pesquisas (Almeida, 2001; Soihet, 1997) têm exibido a insubmissão das mulheres das camadas populares sob diferentes formas, desde o final do século XIX até os tempos atuais. O movimento do cangaço, por exemplo, realizado no sertão nordestino durante as décadas de 1920 e 1930, rompeu com uma cultura secular, posto que, com a entrada da mulher para o cangaço, tornou-se emblemático seu envolvimento no mundo da violência.

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ênfase não recai propriamente nesse perfil. No caso em questão foi realçado o fato de a mulher ter traído o acusado, conforme se observa no recorte:

10. Excelência, cumpre esclarecer que o acusado, jamais agrediu a vitima. O que realmente ocorreu foi que, depois do denunciado ter tomado conhecimento de que fora traído pela vitima, o casal se separou, sendo que aquele, ao tentar a reconciliação, já buscada por esta, foi humilhado, em dado momento da conversa, com palavras, sendo que ambos começaram a se agredir, ocasião em que a vitima pegou um pedaço de pau para bater no acusado e este, com o intuito de se defender, a empurrou. A vítima, descontrolada, voltou a agredir o acusado com o pedaço de madeira, momento em que o mesmo colocou sua bicicleta entre eles, empurrando-a contra a vitima para mais uma vez se defender.

Ora, não se pode chamar de lesões o resultado provocado pelo desentendimento entre os acusados, sendo ainda importante observar que, com relação à vitima, seu próprio descontrole causou-lhe tais resultados, que diga-se de passagem, são insignificantes. Desta feita, requer a desclassificação do delito para a contravenção de vias de fato.

Assim, mesmo que, apenas para feito de discussão, se admita o resultado de lesões corporais, não há que se falar em crime, vez que resta claro que o acusado agiu em legitima defesa não só de sua honra, mas também de sua própria integridade física, atuando, pois ao abrigo de uma excludente de antijuridicidade.

Ademais, em se tratando de lesões mínimas como ocorre no presente caso, o reconhecimento do principio da insignificância, com exclusão da tipicidade, é medida que se impõe.

Ante todo exposto, é a presente para rebater todos os termos da denúncia e, consequentemente, requer a desclassificação do delito para contravenção de vias de fato.

Caso Vossa Excelência entenda de forma diversa, desde já requer seja reconhecido o principio da insignificância, já que foram levíssimas as lesões provocadas, ou, em ultima hipótese que seja o acusado absolvido com base na excludente prevista no artigo 23, II do Código Penal.

Para comprovação de suas alegações arrola as testemunhas cujo rol segue abaixo. (Trecho retirado da Defesa Prévia do processo: 2007.043.487.42)

Essa versão dos acontecimentos deixa clara a herança machista que, no Brasil, ultrapassa os muros das casas de famílias e invade instituições como

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o sistema judiciário. A hegemonia dessa concepção pode ser observada no decorrer de todo o texto. O advogado refere-se à honra do homem, que supostamente teria sido atingida pelo comportamento da mulher, o que po-deria, então, explicar ou até mesmo justificar atitudes violentas. O autor do texto recorre ao argumento da legítima defesa da honra, algo que já foi amplamente discutido, questionado e praticamente condenado por anacro-nismo, mas que ainda continua vivo e, surpreendentemente, mantém-se em pleno funcionamento, conforme se revela neste exemplo e é detalhado no estudo de Pimentel, Belloque e Pandjiarjian (2006).

Segundo o trabalho dessas pesquisadoras, a doutrina jurídica, de for-ma consensual, entende que todo e qualquer bem jurídico pode ser defen-dido legitimamente, incluindo-se a honra. Embora não haja consenso em relação ao uso desta figura nos casos em que o homicídio ou a agressão são praticados para defender suposta honra por parte do cônjuge traído. Como são raros os casos em que a mulher faz uso de tal alegação, a figura da “legí-tima defesa da honra” funciona como tese jurídica que visa tornar impune a prática de maridos, irmãos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres e namoradas. Entretanto, frisam as autoras, no entender de grande parte da doutrina e jurisprudência, não há honra conjugal ou da família a ser protegida, na me-dida em que a honra é atributo próprio e personalíssimo, referente a um indivíduo e não a dois ou mais indivíduos.

A pesquisa das autoras colheu dados significativos sobre o tema em todas as regiões do país, constatando que, ainda hoje, não é pacífica a juris-prudência sobre o tema, de modo que a tese da “legítima defesa da honra” continua a ser invocada, havendo inclusive acórdãos que, embora em me-nor número, admitem-na com sucesso. Conclui-se, portanto, que legítima defesa da honra não é um anacronismo, ao contrário, é uma tese ainda constantemente acionada como recurso de legitimação para a defesa da violência masculina contra suas mulheres, mostrando que em pleno século XXI permanecem atuantes no plano do discurso jurídico valores que domi-naram a sociedade nos séculos passados.

Certos valores conservadores nem sempre são declarados de forma aberta, pois na atualidade ferem as noções do “politicamente correto” e podem comprometer a imagem de quem os profere. Mas eles estão presen-tes, ainda que muitas vezes de forma sutil, nos autos que movem o sistema processual. A sentença de um “Termo de audiência”, que dispomos a seguir, flagra uma concepção do masculino em moldes bem discutíveis:

11. O juíz proferiu a seguinte decisão: O fato narrado na denúncia, em tese, configura crime, preenchendo a acusatória os requisitos legais. Recebo a denúncia.

Em seguida, o representante do Ministério Público verificou que o denunciado preenche os requisitos para obtenção do

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beneficio da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 da Lei nº 9.009/95. Desta forma foi formulada a proposta de suspensão condicional do processo ao acusado pelo prazo de 02 (dois) anos, mediante as seguintes condições: I – Não ausentar da Comarca, sem previa autorização desde Juízo por mais de 15 dias; II – Apresentar-se a esse juízo, mensalmente, para justificar e informar suas atividades. III – Não frequentar bares, boates, prostíbulos e casas de jogos. IV – Informar novo endereço, antecipadamente a este juízo, em caso de mudança. Como condição especifica: Não se aproximar da ofendida.

O denunciado e seu advogado aceitaram as condições da proposta.

DESPACHO: aguarde-se o cumprimento. Certifique. NADA MAIS, E, para constar, lavrei este termo que vai devidamente assinado. (Termo de audiência do processo: 2008.026.821.67)

Observa-se que, neste auto, a Justiça faz uma proibição explícita ao réu de frequentar bares, prostíbulos e casas de jogos. Como bem argumenta Fair-clough (2001), o que é dito em um texto é sempre dito em contraposição ao que não é dito, mas tido como garantido, apontando para o consensual, para as normalizações e aceitação. Nesse sentido, há implícito nessa sentença uma pressuposição de que essas práticas proibidas são atividades próprias do universo masculino. Todas elas apelam para a liberdade de comporta-mento e para o papel sexual ativo do homem, que neste caso está sendo cerceado, enquanto perdurarem os efeitos da suspensão do processo sobre o qual o réu responde pela agressão contra a ex-mulher. Essas proibições que cerceiam a liberdade masculina, especialmente a sexual, parecem fun-cionar como uma espécie de punição ao acusado para compensar o fato de a Justiça ter-lhe concedido o benefício de suspensão do processo.

Ficam, portanto, muito evidentes nas análises os valores e prerrogati-vas culturais que definem os tradicionais papéis do gênero dentro da polari-dade masculino e feminino, que reservam os atributos de liberdade, poder, dominação, força, violência e superioridade, em relação aos primeiros, e submissão, passividade, fraqueza e inferioridade, em relação aos últimos. A ofensa concreta ao ideal igualitário se expressa tanto nos enredos das histó-rias reconstituídas na pesquisa, em que é nítida uma imensa desproporção de forças entre homens e mulheres, com o prejuízo destas, vítimas reais de toda sorte de imposições, arbitrariedades e agressões de seus parceiros, quanto na atitude condescendente do judiciário, a essas mesmas despro-porções.

6. Considerações finais

O que se sobressai nas análises dos diferentes autos processuais do corpus é a evidência de que o viés dos estudos de gênero e os ideais dos Direitos

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Humanos estão longe de amparar as decisões judiciais, norteadas por um apego aos trâmites processuais já estabelecidos e ritualizados. Como diria Bourdieu (2006), o habitus jurídico privilegia o formalismo do direito em detrimento da justiça social, de modo que as categorias de pensamento dos juristas acabam funcionando como instrumento de manutenção e distribui-ção desigual de poder social. A efetivação plena da Lei Maria da Penha, por conseguinte, é impedida tanto pela burocracia do habitus jurídico como por ideias conservadores da cultura patriarcal que o constituem. Entre essas ideias, depreende-se uma dimensão machista, ainda que de forma velada, que só não adquire contornos mais declarados em vista da patrulha do “po-liticamente correto”.

O aumento do número de mulheres que recorrem à justiça contra a violência dos companheiros e parentes sinaliza uma proporcional conscien-tização destas sobre sua igualdade de direitos com os homens. Contudo, no plano jurídico, a mesma dimensão conservadora e distanciada que se vê nos gêneros penais se reflete nas respostas que o sistema dá às mulheres nas ações por elas movidas. Eximindo os acusados de qualquer punição, ou im-putando-lhes proibições de frequentar bares, bordeis e casa de jogos, como nas sentenças de suspensão, o Judiciário reforça a manutenção dos papéis tradicionais de gênero, baseados na cultura patriarcal e machista, atribuin-do-lhes força normativa.

Essa forma de agir acaba desqualificando as mulheres, submetendo-as a retratações humilhantes, que as convertem em verdadeiras rés dos crimes nos quais são vítimas. Nesse quadro, o discurso jurídico alinha-se de várias formas ao domínio tradicional patriarcal, redobrando juridicamente a força normativa deste, com vínculos bastante imprecisos com o ideal igualitário que, supostamente, deveria garantir. Sem propor qualquer pena alternativa efetiva, com vistas à reeducação dos agressores, conforme declarou a ativis-ta do direito das mulheres, a promotora Luiza Eluf, em entrevista à revista Isto é, “o Judiciário, fica numa posição de lavar as mãos para ver o que vai acontecer”.

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Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica

Luis Cláudio Aguiar Gonçalves

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia

Maria da Conceição Fonseca-Silva

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

1. Introdução

Este trabalho é parte do resultado da pesquisa, inserida no âmbito dos estu-dos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso – GPADis, cadastrado no CNPq e autorizado pela UESB, e que originou a dissertação intitulada “Memória e Interpretação: Constitucionalidade e Eficácia da Lei da ‘Ficha Limpa’ no STF”, vinculada ao projeto temático do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Es-tadual do Sudoeste da Bahia – Uesb, intitulado “Mídia, Memória Discursiva, Efeitos de Sentidos e Corrupção Política no Brasil”, que objetiva investigar, de um lado, o funcionamento discursivo e os efeitos de sentido dos escân-dalos espetacularizados que geraram tensões, disputas e acirramento das relações entre o campo da política e o campo da comunicação; e, de outro lado, o funcionamento de cenas validadas, ou seja, instaladas na memória discursiva e mobilizadas na espetacularização da corrupção política no Bra-sil em revistas de informação.

Neste trabalho, partimos da hipótese de que a jurisprudência dos tri-bunais se constitui como um espaço de memória e de que os precedentes jurisprudenciais funcionam como lugares de memória discursiva para dis-cutirmos o papel que a memória e a língua exercem nos processos her-

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menêuticos de compreensão de normas e teses jurídicas. Para alcançar tal objetivo, analisamos construções interpretativas que, ligadas ao controle da constitucionalidade da Lei da “Ficha Limpa” e ao exame de sua eficácia para as Eleições 2010, foram desenvolvidas e propostas pelos intérpretes do Supremo Tribunal Federal (STF), durante a apreciação dos recursos ex-traordinários interpostos por Joaquim Roriz (RE 630.147), Jader Barbalho (RE 631.102) e Leonídio Bouças (RE 633.703), contra decisões da Justiça Eleitoral, que indeferiram seus pedidos de registro de candidatura, sob a alegação de que incidiria na espécie algumas das novas causas de inelegi-bilidade introduzida pela LC nº 135/2010, a Lei da “Ficha Limpa”, à LC nº 64/1990, denominada Lei das Inelegibilidades.

Contra as sentenças e/ou acórdãos que davam ou negavam provimen-to às ações de impugnação aos pedidos de registro de candidatura, foram interpostos recursos perante o próprio órgão prolator das decisões e/ou em tribunal hierarquicamente superior – juízes de primeira instância e/ou Tri-bunais Regionais Eleitorais (TRT’s) – e, posteriormente, junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), quando foram interpostos recursos ordinários ou especiais. Nos três casos selecionados para análise, como visto, as ações de impugnação chegaram até o Supremo Tribunal Federal, por meio de re-cursos extraordinários. No Pretório Excelso, que possui função de Tribunal Constitucional, a hermenêutica desenvolvida pelos ministros centrou-se, basicamente, em torno da compreensão das normas veiculadas pelo art. 14, § 9º, e pelo art. 16, da Constituição Federal de 1988.

Selecionamos os recursos extraordinários interpostos por Joaquim Do-mingos Roriz, então candidato ao cargo de Governador do Distrito Federal, por Jader Fontenelle Barbalho, candidato ao cargo de Senador da República pelo Estado do Pará, e por Leonídio Henrique Correa Bouças, candidato ao cargo de Deputado Estadual de Minas Gerais, em virtude de terem sido os únicos recursos apreciados e julgados pelo Plenário do Supremo. No pri-meiro caso, o de Joaquim Roriz, entendeu por bem a Corte suspender o julgamento, devido ao adiantado da hora. Já, no segundo, tendo em vista o empate advindo na votação, em decorrência da vacância surgida na com-posição plenária do Supremo com a aposentadoria do Ministro Eros Grau, aplicou-se, analogicamente, o art. 205, parágrafo único, inciso II, do Regi-mento Interno do STF, mantendo-se hígido o acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, que indeferiu o registro da candidatura de Jader Barbalho.

Foi somente como a apreciação e julgamento do recurso interposto por Leonídio Henrique Correa Bouças, já com a presença do Ministro Luiz Fux, nomeado pela Presidente Dilma Rousseff, que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei da “Ficha Limpa” não seria aplicada às Eleições 2010, em respeito ao Princípio da Anualidade Eleitoral, previsto no art. 16, da Constituição Federal de 1988. A partir do julgamento desse recurso, ficaram autorizados os ministros relatores dos recursos extra-ordinários sobrestados a decidirem de forma monocrática, dispensando-se a

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apreciação do Plenário da Corte. Vistos sobre esse prisma, os três recursos extraordinários selecionados para análise constituem o itinerário percorrido pelo Supremo Tribunal Federal para a definição da ineficácia da Lei da “Fi-cha Limpa” para as Eleições 2010.

2. Sobre a Lei da “Ficha Limpa”

No dia 04 de junho de 2010, foi editado o diploma normativo que ficou co-nhecido como Lei da “Ficha Limpa”, a LC nº 135/2010. Publicado no dia 07 do mesmo mês e ano, o referido diploma originou-se de um projeto de lei de inciativa popular, que contou com o auxílio de diversos entes da sociedade civil organizada, tal como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – movimento que estimulou e defendeu, no Congresso Nacional, a aprovação do projeto de lei que deu origem à norma – bem como com a participação de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Em sua ementa, a LC nº 135/2010 indica a natureza jurídica de suas normas, dispondo:

Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

A Lei da “Ficha Limpa” foi editada, desse modo, com o objetivo de inovar a ordenamento jurídico, complementando o sistema infraconstitucional de inelegibilidades, que, inaugurado com a publicação da LC nº 64/1990, tinha sido requestado pelo § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, cita-do in verbis:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e dos prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

A LC nº 135/2010, atendendo assim ao comando da norma do § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, veio criar novas hipóteses de inelegibi-lidade que, visando “proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandado” (CF/88, art. 14, § 9º), considerassem a vida pregres-

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sa do candidato. Para tanto, a LC nº 135/2010 alterou a redação das alíneas “c” a “h”, do inciso I, do artigo 1º, da LC nº 64/1990, incluindo, ao mesmo tempo, as alíneas “j”, “k”, “l”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” – as novas hipóteses de inelegibilidade – e os parágrafos 4º e 5º. Alterou, ainda, a redação do artigo 15, incluindo um parágrafo único, e o art. 22, dando nova redação ao seu in-ciso XIV, revogando o XV e incluindo o inciso XVI. Por fim, incluiu os artigos 26-A, 26-B e 26-C no corpo normativo da mesma LC nº 64/1990.

Após a publicação do diploma inovador, e sua posterior vigência, pas-sou-se a se discutir, nos mundos político e jurídico, se as novas causas de inelegibilidade, introduzidas na LC nº 64/1990, seriam aplicáveis já às elei-ções de 2010, tendo em vista o Princípio da Anualidade, insculpido no art. 16, da Magna Carta, que diz in verbis: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Em síntese, a discussão que se instaurou a esse respeito poderia ser reduzida a duas questões básicas: i) a de saber se as novas causas de inelegibilidade, trazidas pela Lei da “Ficha Limpa”, teriam o condão de alterar o processo eleitoral; e ii) sendo afir-mativa a resposta a esse primeiro ponto, se seria juridicamente admissível aplicá-la de imediato às candidaturas das Eleições 2010.

Nesse cenário, duas teses se firmaram: a do Tribunal Superior Elei-toral, primeiro órgão judicial a se manifestar sobre o tema, por meio da resposta dada às Consultas nº 114.709 e nº 112.026, entendendo que a LC nº 135/2010, diploma modificador da LC nº 64/1990, não estaria abrangida pela redação do art. 16, da Constituição Federal de 1988; e a outra, que aca-bou por prevalecer no Supremo Tribunal Federal, quando, no julgamento do recurso extraordinário interposto por Leonídio Henrique Correa Bouças, fi-cou assentado o entendimento de que a Lei da “Ficha Limpa”, ao modificar as condições de elegibilidade, interferiu no processo eleitoral e, por isso, não poderia ser aplicada às eleições de 2010.

Antes de os ministros do Supremo decidirem que não teria a debatida lei eficácia para as Eleições 2010, muito se discutiu, contudo, no Plenário da Corte, onde surgiram várias construções interpretativas – como as que tinham como objeto o conteúdo semântico da expressão “processo eleito-ral” (art. 16, da CF/1988) ou a definição de “vida pregressa” (art. 14, § 9º, da CF/1988) – e onde tantas outras teses jurídicas foram erigidas, ora em defesa do que foi chamado pelo Ministro Gilmar Mendes de segurança ju-rídica do cidadão-candidato, tema retomado pelo Ministro Luis Fux como Princípio da Confiança Legítima; ora em amparo à proteção da moralidade na administração pública, reiteradamente proclamada pelo Ministro Ayres Britto. Os dois primeiros ministros defenderam a não aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às eleições de 2010 e segundo foi defensor da tese contrária.

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3. As noções de “memória discursiva”, “posição-sujeito” e “lugar de memória discursiva” e o caráter opaco da língua

Para a compreensão do objeto, mobilizamos pressupostos teóricos da Análi-se de Discurso de Linha Francesa (AD)1, notadamente as noções de “posi-ção-sujeito” e “memória discursiva”, trabalhadas por Pêcheux ([1975] 2009, [1983a] 1999), respectivamente, em Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio e em O Papel da Memória, e as discussões que o referido autor realiza em torno da opacidade da língua e da equivocida-de dos enunciados, em Discurso: Estrutura ou Acontecimento (PÊCHEUX, [1983b] 1997). Do mesmo modo, adotamos a noção de “lugar de memória discursiva”, que foi cunhada por Fonseca-Silva (2007), em Mídia e Lugares de Memória Discursiva.

A noção de “memória discursiva” foi cunhada por Courtine (1981), autor que opera um deslocamento do conceito foucaultiano de “domínio de memória” (Foucault [1969] 1997). Esse conceito operacional, no sentido do teórico da Análise de Discurso, diz respeito, nas palavras de Fonseca-Silva (2007, p. 23),

à existência histórica do enunciado, ou seja, supõe o enunciado inscrito na história. Os enunciados, em cuja formação se constitui o saber próprio de uma formação discursiva, são tomados no tempo longo de uma memória, e as formulações, no tempo curto da atualidade de uma enunciação. Nessa perspectiva, a memória irrompe na atualidade do acontecimento. E o efeito de uma memória discursiva na atualidade de um acontecimento se dá na relação entre interdiscurso e intradiscurso.

Pêcheux ([1983a] 1997, [1983b] 1999), por sua vez, retoma a noção de memória discursiva para fazê-la funcionar no âmbito dos trabalhos e discussões teóricas da Análise de Discurso. Nesse sentido, o filósofo fran-cês propôs discutir, no texto O discurso, estrutura ou acontecimento (PÊ-CHEUX, [1983a] 1997), a partir da descrição do acontecimento discursivo “a eleição de François Mitterrand à Presidência da França” – fato ocorrido às 20 horas do dia 10 de maio de 1981 –, “o acontecimento, no ponto de

1. Escola fundada pelo filósofo francês Michel Pêcheux, no final dos anos sessenta, caracterizada por Orlandi (1996) como uma disciplina de entremeio, uma vez que coloca em relação pressupostos teóricos da Psicanálise Freudiana relida por Lacan (o sujeito do inconsciente), do Materialismo Histórico Marxista relido por Althusser (o sujeito da ideologia) e da Linguística Saussuriana relida pelo próprio Pêcheux (o sujeito do discurso), e que tem sido chamada de Escola Francesa de Análise de Discurso ou Pêcheuxtiana (doravante denominada AD).

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encontro de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 17).

Segundo o autor, logo após as primeiras notícias televisivas que anun-ciaram François Mitterrand como “vencedor”, as primeiras reações dos responsáveis políticos dos dois campos começaram a ser anunciadas, as-sim como os comentários dos “especialistas de politicologia”. Uns e outros começaram “a ‘fazer trabalhar’ o acontecimento (o fato novo, as cifras, as primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de me-mória que ele convoca e que já começa a reorganizar” (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 19). O autor vai inserindo, desse modo, aos poucos na discussão, ao analisar essa (re)construção da memória evocada e as montagens e ar-ranjos léxico-discursivos produzidos pelos comentadores do acontecimento discursivo, a questão da língua e de sua opacidade nos deslizes de sentido.

De acordo com Pêcheux ([1983a] 1997, p.50), o objeto da Análise de Discurso é, precisamente, explicitar e descrever relações associativas im-plícitas: “montagens, arranjos sócio-históricos de constelações de enuncia-dos”. Mas, para isso, conforme o filósofo,

a primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nessa perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar. Essa concepção da descrição supõe ao contrário o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua [...]. (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 50).

Para realizar tal reconhecimento, segundo autor, é necessário por em causa o primado da proposição lógica e os limites impostos à análise como análise de sentença ou de frase, isto é, deslocar, desse modo, a pesquisa linguística da “obsessão da ambiguidade (entendida como lógica do “ou... ou”) para abordar o próprio da língua através do papel do equívoco, da elipse, da falta, etc...” (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51). O que “obriga a pesquisa linguís-tica a se construir procedimentos [...] capazes de abordar explicitamente o fato linguístico do equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico” (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51).

Para Pêcheux ([1983a] 1997, p. 53), toda descrição “– quer se trate da descrição de objetos ou de acontecimentos ou de um arranjo discursivo--textual [...] – está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua”. Isso é, “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferen-te de si mesmo, de deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”. É nesse espaço, onde “todo enunciado, toda sequência de

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enunciados é [...] linguisticamente descritível como uma série (léxico-sin-taticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação”, que a Análise de Discurso se propõe a trabalhar.

Os objetos discursivos, por seu turno, tomados sempre em redes de memória, são, para Pêcheux ([1983a] 1997, p. 55), “objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de ‘saber do que se fala’”. Isso porque, não sendo produtos de uma aprendizagem por interação/comunicação, es-ses objetos implicam sempre atos de interpretação. Nesse sentido, conforme Pêcheux [1983a] (1997, p. 57), a posição de trabalho evocada em referência à Análise de Discurso supõe que, por meio de “descrições regulares de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados”.

Em Papel da memória, a memória aparece como estruturação de ma-terialidade discursiva complexa, estendida, como afirma Pêcheux [1983b] (1999, p. 51), em uma dialética da repetição e da regularização:

a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’, (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível [...].

Ainda no que se refere ao papel da memória – questão central em tor-no da qual Pêcheux ([1983b] 1999, p. 56) constrói o seu texto – a certeza que fica, segundo o autor,

é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.

Podemos dizer, assim, que a memória discursiva é algo que já está lá: uma estruturação de fatos de discurso que se apresentam enquanto inscri-ções materiais dessa mesma memória. Ela é um já-dito que permite que um dado objeto de discurso seja movimentado novamente, isto é, que esse objeto seja redito, contraditado, (re)significado pelos enunciadores das po-sições-sujeito que nela estão inseridas... um espaço do dizível e do indizível, onde o ato de enunciar pressupõe o de interpretar.

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Também em Análise de Discurso, quando se fala em sujeito, o mesmo é tomado como posição. Daí a definição de sujeito como posição-sujeito: afe-tado, em seu funcionamento social, pela língua e pela ideologia (a relação com a História), o sujeito é também descentrado, em seu funcionamento psíquico, pelo inconsciente (a relação com o dizer do outro). Tem-se assim um sujeito que, não sendo o da ordem do empírico (o sujeito pragmático), é definido pela AD como um modo de subjetivação, um lugar de assujei-tamento, de modos de pensar e de falar sobre determinado(s) objeto(s), que pressupõe atos de interpretação e que pode ser ocupado por qualquer indivíduo que com ele se identifique. Neste sentido, a ideologia é pensada como a relação do sujeito (sujeito ideológico/sujeito do inconsciente/sujeito do discurso) com a língua e com a própria história na produção de sentidos (ORLANDI, 2009).

Em Por uma análise automática do discurso e em Semântica e discur-so: uma crítica à afirmação do óbvio, Pêcheux ([1969] 2010, [1975] 2009) relaciona o sujeito à ideologia, reconhecendo o caráter ideológico de que ele é revestido. Com essa perspectiva, cunha a noção de “forma-sujeito” (PÊCHEUX, [1975] 2009), que, sendo historicamente determinada, orga-niza e regula, segundo o autor, o que pode e o que deve ser dito a partir das diferentes posições-sujeito que formam uma formação discursiva (FD). É por meio da forma-sujeito que o sujeito do discurso se inscreve em uma de-terminada FD, e uma posição-sujeito é uma maneira específica de o sujeito da enunciação se relacionar com o sujeito do saber (a forma-sujeito).

Fonseca-Silva (2007), por seu turno, opera, em Mídia e Lugares de Memória Discursiva¸ deslocamentos dos conceitos de “lugar de memória” (HALBWACHS, 1925, [1950] 2006; NORA, [1984] 1993), “domínios de memória” (FOUCAULT, [1969] 1997) e “memória discursiva” (COURTI-NE, 1981), para pensar as mídias como “lugares de memória discursiva” na sociedade contemporânea. Seguindo os postulados da autora, propomos discutir, no primeiro tópico de nossas análises, precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva. Para tanto, analisamos os precedentes que foram citados, no Plenário e na Tribuna do Supremo Tribunal Federal, durante os julgamentos dos recursos extraordinários selecionados.

Os precedentes jurisprudenciais, tais como os anúncios publicitários, como lugares de memória discursiva, funcionam também como espaços de interpretação. “E no gesto de interpretação e, portanto, de construção/re-construção de memória discursiva, ocorre estabilização/desestabilização de sentido(s) [...]” (FONSECA-SILVA, 2007, p. 25). Nessa perspectiva, a memória sendo um efeito na atualidade dos precedentes jurisprudenciais – ao fazer com que os sentidos neles presentes circulem, repitam-se, per-maneçam, sejam esquecidos, transformados ou atualizados –, tem como implicação o de fato de que esses textos, quando citados, momento em que são novamente afetados pela memória, provocam a emergência de certos conflitos, polêmicas, contra-discursos etc.

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4. Análise e discussão do “corpus”

O corpus da pesquisa é constituído de excertos retirados de construções interpretativas que, propostas em votos de ministros da Corte, em susten-tações orais de advogados de recorrentes e de recorridos e em pareceres emitidos pelo Procurador-Geral da República, abordavam os possíveis vícios de inconstitucionalidade que estariam a invalidar a Lei da “Ficha Limpa” e a aplicação ou não do referido diploma às Eleições 2010. Para o exame dessas materialidades, adotamos como método de análise o paradigma indi-ciário, modelo epistemológico surgido no final do século XIX, no âmbito das ciências humanas, e que foi explicitado por Ginzburg ([1986] 1991, p. 177), para quem,

a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la.

São precisamente esses sinais, esses indícios da realidade material da lín-gua, no caso deste trabalho, da não transparência e da equivocidade lin-guísticas – as quais permitem que os intérpretes jurídicos reorganizem os precedentes jurisprudenciais, reestruturando os espaços de memória que seus enunciados evocam – que nos possibilitam observar o funcionamento discursivo das exegeses desenvolvidas na Tribuna e no Plenário do STF.

5. Os precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva

Não raro nos depararmos com casos sub judice em que um mesmo prece-dente jurisprudencial é utilizado para fundamentar teses jurídicas que se opõem diametralmente. O que é possível graças ao jogo interpretativo, por meio do qual são reforçados certos aspectos do julgado, enquanto outros são apagados. Ou seja, os precedentes jurisprudenciais, ao serem utilizados como critérios hermenêuticos para a compreensão de normas ou questões jurídicas, eles próprios passam por processos de interpretação, a partir dos quais se seleciona o que deverá ser citado, bem como a própria inteligência que deverá ser dada às partes ou elementos citados. Na maioria das vezes, essa construção de um novo sentido para o julgado que se cita como pre-cedente ocorre de tal forma que se consegue até mesmo fundamentar te-ses jurídicas totalmente contrárias àquelas adotadas quando do julgamento apontado.

Esse processo pode ainda ser mais complexo: os julgados, antes mes-mo de se tornarem precedentes, isto é, quando ainda estão sendo aprecia-dos e discutidos, formam-se sempre a partir de exegeses, que, sendo jul-

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gadas como as mais corretas ou acertadas, implicam a negação de outras igualmente defensáveis, mas que foram consideradas como sendo viciadas ou equivocadas. Posteriormente, quando passam a figurar como preceden-tes jurisprudenciais, esses julgados tornam-se novamente objeto de inter-pretação por parte do exegeta, que pode inclusive, como foi dito, modificar o sentido que lhes foi dado originalmente. Nos julgamentos dos recursos extraordinários de Joaquim Roriz, Jader Barbalho e Leonídio Bouças, fora justamente esse processo que observamos funcionando nas exegeses leva-das a efeito pelos intérpretes, na Tribuna e no Plenário do Supremo.

No julgamento do recurso extraordinário de Joaquim Roriz, por exem-plo, após a apresentação do relatório do processo pelo Ministro Ayres Britto, fora aberta pelo Ministro Presidente do Tribunal, Cezar Peluso, oportunida-de para que os patronos das partes envolvidas pudessem oferecer as suas sustentações orais. O primeiro a falar foi Pedro Gordilho, advogado do então recorrente. Em sua exposição, o causídico trouxe, como fundamentação para a tese de que novas causas de inelegibilidade interferem no processo eleitoral e que, portanto, estão submetidas à limitação imposta pelo Princí-pio da Anterioridade, dois precedentes: o RE 129.392, em que se discutiu, à luz do art. 16, da Constituição, a imediata aplicação da LC 64/90 às eleições de 1990; e a ADI 3.685 - ação direta que versou sobre a eficácia da EC nº 52/2006, também, em face do art. 16, da Constituição.

Com relação ao RE 129.392, o advogado Pedro Gordilho defendeu, ao interpretar passagem do acórdão prolatado por ocasião daquele julgamen-to – in verbis: “cuidando-se de diploma, exigido pelo art. 14, § 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16” -, e apoiando na frase intercalada em sublinhado, que o Princípio da Anualidade Eleitoral só não teria sido aplicado, naquela oportunidade, para suspender a eficácia da LC nº 64/90, porque seria essa uma lei complementar requerida e autorizada pela própria Constituição. A Lei da “Ficha Limpa”, ao contrário, sendo pro-veniente apenas da vontade do legislador complementar, estaria alcançada pela incidência do art. 16, da Constituição Federal de 1988.

Verifica-se, portanto, que o trabalho desempenhado pelo intérprete, ao utilizar o julgado constituído no RE 129.392 como precedente jurispru-dencial e, consequentemente, como critério interpretativo, envolveu não só a citação do acórdão, tendo sido necessário ainda, para que o intérprete garantisse o atingimento do resultado esperado, que era o de convencer os ministros do Supremo quanto à correição do entendimento por ele espo-sado, que fosse feita uma releitura do precedente citado, de modo que ele confirmasse o que o intérprete havia proposto como solução para o caso presente. Esse gesto de interpretação pelo qual o exegeta reconstrói o lugar de memória discursiva “precedente”, produzindo deslizamentos de sentido no conteúdo da decisão pretérita, é possível graças à equivocidade própria à ordem linguística.

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Já no caso da utilização do julgamento da ADI 3.685 como precedente jurisprudencial, o advogado contentou-se apenas em narrar o resultado a que chegaram os ministros do Supremo naquela ocasião, não mencionou assim as matérias jurídicas discutidas e/ou os fundamentos da decisão. Ve-jamos trecho de sua sustentação oral:

Excerto nº 01

No julgamento da ADI 3685, o Egrégio Tribunal voltou, esse Egrégio Plenário voltou a enfrentar o tema e decide que a inovação trazida no art. 1º, da EC 52/2006, somente seja aplicada após decorrido um ano da data da sua vigência. Aí está, Eminentes Ministros, Eminentes Ministras, na visão impecável deste Egrégio Tribunal, deste Egrégio Plenário, o art. 16 veda a aplicação imediata de casos novos de inelegibilidade, até mesmo através de emenda constitucional, e aqui estamos diante de apenas uma lei complementar.

O fato é que o art. 1º, da EC nº 52/2006, que deu nova redação ao art. 17, da Constituição Federal de 1988, não cuida de novos casos de inelegibilidade, tal como fez parecer, em sua exposição, o patrono de Joaquim Roriz. Na rea-lidade, a EC nº 52/2006 cuidou da chamada verticalização das coligações, nada tendo a ver com matéria de elegibilidade. O intérprete, no entanto, reconfigura o julgado de tal forma que o faz parecer, de fato, um precedente aplicável ao caso ora em apreço.

Por seu turno, o causídico Eládio Barbosa Carneio, patrono da re-corrente Coligação Esperança Renovada, também citou, em sua sustenta-ção oral, a ADI 3.685 como sendo um precedente jurisprudencial aplicável ao julgamento do recurso de Joaquim Roriz. Além disso, suscitou violação por parte do acórdão recorrido a outro julgado do Supremo, constituído na ADPF 144, em que a Associação dos Magistrados Brasileiros buscava a auto aplicabilidade do § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988. Todavia, da mesma forma que a ADI 3.685, esse julgado também não discutiu maté-rias de inelegibilidade. Por meio dele, o Supremo decidiu, interpretando o sentido da expressão “vida pregressa”, contida na norma do § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, que essa seria uma norma de eficácia li-mitada e que, portanto, somente a edição da lei complementar mencionada em seu texto poderia aperfeiçoar a sua eficácia.

André Henriques Maimoni, por sua vez, terceiro advogado a falar da Tribuna do Supremo, como patrono das partes recorridas, adotou o mes-mo itinerário hermenêutico seguido por seus antecessores, utilizando, mais uma vez, como precedente jurisprudencial o RE 129.392. Só que, nesse caso, o julgado se prestou, exatamente, para solidificar a tese contrária, qual seja, a de que inelegibilidade não constitui matéria de processo eleitoral, não estando, portanto, inserida no âmbito de incidência do Princípio da Anuali-dade. Perlustremos, a seguir, trecho da sustentação oral do advogado:

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Excerto nº 02

A LC 135 não padece de problemas de constitucionalidade e de aplicabilidade imediata. Isso porque, primeiro, ela não trata de processo eleitoral. Ela trata de questão de direito material eleitoral, que é a inelegibilidade. O STF resolveu, na ADI 3542 e também no RE 129.392, que foram citados aqui... diferentemente do que foi dito, o motivo determinante dessas ações e recursos foi de que a inelegibilidade não é matéria de processo eleitoral, mas possui índole material constitucional.

No excerto, o patrono dos recorridos, assumindo também a função de rein-terpretar o julgado constituído no RE 129.392, busca demonstrar a inexa-tidão das interpretações e alegações feitas pelos dois intérpretes anteriores, ao mesmo tempo em que reestrutura o precedente jurisprudencial a partir de suas próprias proposições e defesas, procurando mostrar assim a confor-midade que existe entre aquele e estas. É justamente, nesta perspectiva, de um espaço simbólico de significação que se oferece sempre ao rearranjo de seus elementos linguísticos e à reconfiguração de seus sentidos e sig-nificados, que tomamos os precedentes jurisprudenciais como “lugares de memória discursiva”.

Em outra passagem de sua sustentação oral, o patrono dos recorridos passa a confrontar cada um dos julgados trazidos à colação pelos recorren-tes, buscando demonstrar a impossibilidade de considerá-los como prece-dentes jurisprudenciais aplicáveis ao caso ora em julgamento. Segundo o exegeta:

Excerto nº 03

Todos os excertos de julgados anotados pelo recorrente, todos eles são imprestáveis ao caso. As ações e julgados colecionados possuem entendimento ou motivo determinante diverso da tese defendida aqui. O entendimento dos tribunais pátrios, inclusive, do STF, sempre foi o de que matéria de inelegibilidade não é de processo eleitoral. Daí, não se aplicando o art. 16, da Constituição. O STF - agora, eu vou citar os casos que foram mencionados, aqui, pela defesa - o STF, ao julgar a ADI 3685, trazida pelo recorrente como paradigma, decidiu acerca do fim da verticalização e não acerca de inelegibilidade. Teve como objeto essa ADI o art. 2º, da EC 52, que trata do regime de coligações do art. 17, da Constituição Federal. Portanto, matéria de processo eleitoral. O RE 129.392 e a ADI 3741, citadas aqui, tratavam da propaganda, financiamento e prestação de contas das despesas de campanhas eleitorais. Também, o STF, nesses casos, resolveu que a matéria de elegibilidade não deve observar o disposto no art. 16, da Constituição Federal. No RE supramencionado, se rejeitou a arguição de inconstitucionalidade do art. 27, da LC 64, e não conheceu do

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recurso. E, na ADI, negou provimento à ação. A ADI 4307, também tratada aqui, tratava da EC 58, que alterou a composição das câmaras municipais brasileiras, quando já tinham sido eleitos os vereadores. Matéria absolutamente diversa e não aplicável como paradigma ao caso. Quanto ao julgamento da ADPF 144, os critérios avaliados, naquela oportunidade, foram subjetivos, de interpretação do § 9º, do art. 14, da Constituição. No caso presente, existe a lei complementar e ela traz critérios objetivos. O que faz do presente caso totalmente diverso da ADPF 144.

Esse processo de significação e ressignificação dos precedentes levado a efeito pelos aplicadores do direito – até aqui, pelos advogados das partes -, mostra que, tal como afirmado por Fonseca-Silva (2007), os lugares de memória discursiva são, outrossim, lugares/espaços de interpretação, onde, pelo gesto de construção/reconstrução da memória discursiva, sentidos são repetidos, contraditados, esquecidos, mantidos, transformados etc.

De seu assento, o Procurador-Geral da República Roberto Gurgel, opinando pelo desprovimento do recurso extraordinário, bem como defen-dendo a imediata aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às Eleições 2010, tam-bém lançou mão, em seu parecer, de precedentes jurisprudenciais como método de exegese e como forma corroborar suas teses interpretativas. Ve-jamos o excerto nº 04, no qual é possível verificar a ocorrência de tal gesto hermenêutico:

Excerto nº 04

Destaca-se que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, bem como no Recurso Extraordinário 129.392, a Corte examinou o tema, assentando a inaplicabilidade deste princípio, a vigência, eficácia imediata da Lei das Inelegibilidades, rejeitando a arguição de inconstitucionalidade daquela LC 64/90. Naquela oportunidade, o Ministro Neri da Silveira observa, em trecho do seu voto: “na linha do que já referi anteriormente, penso que a matéria relativa à inelegibilidade não se compreende no âmbito do art. 16, da Constituição”. E mais adiante: “compreendo, pois, que a matéria nunca perdeu a natureza constitucional. E, por isso mesmo, quando se cuida de inelegibilidade, o assunto é de índole constitucional e não se comporta, a meu ver, no simples âmbito do processo eleitoral, enquanto este se compõe de procedimentos que visam à realização das diferentes fases do pleito eleitoral”.

No parecer do órgão ministerial, tal como ocorreu nas falas dos exegetas advogados, o julgado constituído no RE 129.392 é, novamente, apresentado como um precedente jurisprudencial capaz de demonstrar o entendimento que o Supremo Tribunal Federal vinha esboçando acerca da matéria e as-

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sim de apresentar uma solução válida para a questão da eficácia da Lei da “Ficha Limpa”, nas Eleições 2010. O que chama a atenção é que, nas duas primeiras interpretações do julgado, segundo os exegetas, o Supremo teria decidido que matéria de elegibilidade se submeteria ao comando do art. 16, da Constituição, e pelas duas últimas, a Corte teria firmado, justamente, o entendimento contrário.

Destarte, as análises demonstram que, circulando pelas sustentações orais feitas pelos advogados na Tribuna e figurando do parecer dado pela Procuradoria-Geral da República, o referido precedente, o RE 129.392, tomado como objeto de discurso e sendo interpretado a partir diferentes posições-sujeito, assumiu sentidos que ora se conformavam com o que de-fendia a defesa dos recorrentes, ora com as teses exegéticas propostas pelo patrono dos recorridos. Esse gesto de interpretação, por meio do qual os exegetas produzem esse efeito de deslizamento de sentidos, é possível gra-ças ao fato de que os julgados, ao se tornarem precedentes jurisprudenciais, constituem-se como lugares de memória discursiva, isto é, como espaços de circulação, repetição e atualização de sentidos.

No espaço de memória discursiva assim evocado, é possível identifi-car ainda certos imaginários que, construídos a partir da apropriação de um real fragmentado e disperso, estão no âmago do que é dito e pensado pelos intérpretes dos casos Joaquim Roriz, Jader Barbalho e Leonídio Bouças. São precisamente esses imaginários, dispersos nas falas dos exegetas da Tribuna e do Plenário do STF e constituintes do espaço de memória discursiva que é evocado/reorganizado, que vemos ganhar corpo nos enunciados interpreta-tivos: i) o papel do Poder Judiciário no combate à corrupção na administra-ção pública; ii) a valorização dos políticos e a importância fundamental, no Estado Democrático de Direito, da atividade política; iii) segurança jurídica e confiança legítima do cidadão-candidato como princípios norteadores do exercício do poder legisferante do Estado etc.

6. Moralidade Administrativa versus Segurança Jurídica

A análise dos excertos selecionados indica ainda que, dispersos nas várias formulações/teses interpretativas propostas, discutidas e/ou contestadas, encontram postos dois valores jurídicos que são, a todo o momento, retoma-dos, esquecidos, reforçados ou enfraquecidos: moralidade administrativa e segurança jurídica. Na memória discursiva, em que se situam esses ditos e não ditos, identificamos, outrossim, funcionando um imaginário político-ju-rídico constituído a partir da interpretação não só de textos da Lei, como também de fatos, acontecimentos e condutas humanas, que se referem à situação vivenciada, nos últimos tempos, pela política pátria. É precisamen-te nesse imaginário que ganha corpo uma das maiores preocupações atuais do Estado brasileiro: combater a corrupção política.

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Moralidade Administrativa não foi, contudo, o primeiro valor jurídico a ser ressaltado na Tribuna do Supremo Tribunal Federal. Isso porque, nos julgamentos dos recursos extraordinários, as sustentações orais são inicia-das pelos advogados dos recorrentes e, nos casos “Joaquim Roriz”, “Jader Barbalho” e “Leonídio Bouças”, o que se pleiteava era justamente a não aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às Eleições 2010. Desse modo, o tema inaugural do pronunciamento do advogado Eládio Barbosa Carneiro, patro-no da Coligação Esperança Renovada, não poderia ser outro que o discutido no excerto a seguir:

Excerto nº 05

Estamos, aqui, para fazer a defesa da candidatura de Joaquim Domingo Roriz, mas, muito além disso, estamos, aqui, defendendo a soberania do voto. Estamos defendendo o Estado Democrático de Direito, que tem como pilar básica, mestra, a segurança jurídica (CARNEIRO, Eládio Barbosa) (grifo nosso).

No espaço de memória discursiva, em que se insere a formulação acima e o qual ela evoca, identificamos um imaginário em que segurança jurídica se confunde com o próprio Estado Democrático de Direito. Consequente-mente, defender a segurança jurídica é defender o Estado Democrático de Direito, o que equivale a dizer que o Brasil estará sendo defendido, já que ele adota como regime político a democracia. Na formulação, verifica-se assim que o efeito de memória provocado pela emergência desse imaginário na atualidade do acontecimento discursivo (enunciado) fortalece os argu-mentos levantados pela defesa do recorrente, haja vista que “soberania” e “democracia” são valores consagrados constitucionalmente pelo ordena-mento jurídico brasileiro, funcionando a intercalada “muito além disso”, na passagem sublinhada, como intensificador para o que se afirma no excerto.

Os axiomas “probidade administrativa” e “moralidade para o exercício do mandato” (art. 14, § 9º, da CF/1988) surgiram, por seu turno, nas fa-las do advogado André Henriques Maimoni, patrono do recorrido PSOL, e no parecer do Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. Os excertos abaixo foram retirados dos referidos pronunciamentos:

Excerto nº 06

O PSOL entende que o país, o Brasil, tem buscado a moralização das eleições desde o início da República. Nesse longo e penoso processo, dois entes têm tido particular significação nessa implementação das melhorias da democracia: o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. O [rompimento] institucional com práticas nefastas e que não legitimam os pleitos sempre foi a razão propulsora da melhoria das eleições e do processo civilizatório, de cidadania, que o Brasil tem passado. [...] o Poder Judiciário foi protagonista sempre da implementação,

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da proteção à probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato, considerando-se sempre a vida pregressa dos candidatos e normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou do abuso de poder no exercício de função, cargo ou emprego na administração pública. A LC 135 e a sua imediata aplicação representam a justa intervenção do Estado de fazer imediatamente prevalecer os interesses públicos e amplamente coletivos da moralidade, probidade, impessoalidade, moralidade nas eleições, assim, melhorando a representação coletiva no país (MAIMONI, André Henrique) (grifo nosso).

Excerto nº 07

A LC 135, principalmente, para a hipótese da alínea ‘k’, é totalmente conforme o art. 14, § 9º, da Constituição. Na verdade, ele dá eficácia a esse § 9º e aplicabilidade a ele. Nesse aspecto, o STF já tem pacificado, em seus julgados, que se deve preferir, dentre a gama de interpretações, a norma constitucional que confira maior efetividade à Constituição Federal. A LC 135, além de absoluta regularidade quanto aos aspectos formais do processo legislativo que a construiu, ela não é casuística, também, porque não deturpa os interesses e princípios que norteiam a matéria de inelegibilidades. A lei, na verdade, implementa e prospecta a proteção da moralidade e a probidade. Ela faz, exatamente, como ordena o art. 14, § 9º, da Constituição. Ela respeita o interesse público e considera a vida pregressa do candidato, como um dos requisitos para participar do pleito. (MAIMONI, André Henrique) (sublinhamos e negritamos).

Excerto nº 08

Dizia e repetia, reiteradamente, Afonso Arinos, que a descrença, o descrédito da sociedade no político, o menosprezo da atividade política, qualquer que fosse a causa, ainda que aparentemente razoável a justificativa, constituía sempre grande risco à democracia e à República. E, por isso mesmo, era imprescindível tudo fazer para evitar tal desvalorização, tal menosprezo. Nas últimas décadas, como é notório, a frequência tristemente enorme de um variado festival de improbidades e de outras mazelas envolvendo o chamado mundo político fez com que a sociedade, em grande parte, se desencantasse dos políticos e da própria política. A valorização dos políticos e a óbvia importância fundamental, no Estado Democrático de Direito, da atividade política constituem precisamente o pano de fundo do feito, agora, submetido à apreciação dessa Corte Suprema. (GURGEL, Roberto) (grifo nosso).

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No acontecimento discursivo dos excetos 06, 07 e 08, apesar da dispersão temática das formulações, encontramos marcada uma única posição-sujeito em que a Lei da “Ficha Limpa” aparece sempre associada à necessidade de moralização do Poder Público e da própria política. No espaço de memória discursiva, identificamos ainda a existência de um imaginário, a partir do qual a Lei e o Poder Judiciário aparecem como os mais eficazes combaten-tes à corrupção no Poder Público. A primeira, selecionando previamente os políticos mais probos, os candidatos mais honestos, com a previsão das condições de elegibilidade, das causas de inelegibilidade, e o segundo, ga-rantindo que essa triagem prévia seja observada.

Nos excertos 06 e 07, a constitucionalidade da Lei da “Ficha Limpa” e a sua imediata aplicação são defendidas pelo enunciador como formas de se conferir maior efetividade à própria Constituição. Assim, as novas hipóteses de inelegibilidade previstas pela LC nº 135/2010, por considerarem a vida pregressa do candidato, tal como ordenado pelo § 9º, do art. 14, da CF/1988, prospectariam os interesses difusos e “amplamente coletivos” da probidade e da moralidade administrativas. No excerto 07, por exemplo, o emprego da palavra “absoluta” para qualificar a regularidade da Lei da “Ficha Limpa” quanto “aos aspectos formais do processo legislativo”, tem como efeito re-forçar as alegadas constitucionalidade e legitimidade da lei complementar em questão.

Já nas últimas quatro linhas sublinhadas no excerto 08, não é mais com a proteção da segurança jurídica, tal como afirmado no excerto 05, que se defende o Estado Democrático de Direito. Nesse regime político, confor-me a formulação do representante do Ministério Público Eleitoral, expressa no excerto 08, o mais importante é combater a corrupção e a improbidade administrativa, valorizando-se, dessa forma, a política e os próprios políti-cos. Questão que aparece, também, como a principal preocupação do Mi-nistro Ayres Britto, relator do RE 630.147 de Joaquim Roriz, a cujo julga-mento se refere o parecer emitido pelo Procurador-Geral da República, do qual foi extraído o excerto nº 08. Abaixo, nos excertos nº 09 e nº 10, vemos esboçada essa inquietação do ministro relator no que respeita à valorização da política:

Excerto nº 09

Política é a mais imprescindível das atividades humanas. Urgindo, no entanto, criar instituições e institutos, como o da inelegibilidade, que tornem os políticos dignos da política, ou que salvem a política dos políticos, dos políticos avessos aos princípios da probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato e da não incidência do abuso do poder político ou econômico (BRITTO, Ayres) (grifo nosso).

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Excerto nº 10

Valores como o da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato, uma vez concretizado por lei de expressa requisição constitucional, não comportam procrastinação ou quarentena. Como é que se pode exigir que uma lei, protetora da probidade, só entre em vigor, no ano subsequente, daqui a cinco meses, a dez meses, a doze meses? Sabido que a probidade administrativa é o principal conteúdo do princípio da moralidade administrativa de que trata o art. 37, da Constituição. Kelsen dizia, Ministro Lewandowski, Kelsen dizia que há um modo fácil de se aferir a validade ou da valiosidade de uma norma jurídica, basta saber como é que o Direito reage a violação dessa norma. Pois bem, como é que a Constituição reage a violação da probidade administrativa? Dizendo que os atos de improbidade administrativa importarão a perda do cargo, a inabilitação para ;a função pública, o ressarcimento ao erário, a indisponibilidade dos bens, sem prejuízo da ação penal cabível. Então, como é que se pode exigir que uma lei explícita, de caráter complementar, de expressa requisição constitucional, só entre em vigor a partir de tal data? A probidade pode esperar? O cumprimento da probidade, o cumprimento da moralidade pode esperar um dia que seja? Pode ser de prejuízo irreparável para o ordenamento jurídico e para a coletividade por inteiro. Por definição, aplicam-se desde logo ao cotidiano das instituições e da cidadania – esses valores -, porque a transigência com eles, condescender com eles, interpretá-los de modo frouxo, leniente, para não dizer cúmplice, é de molde a acarretar os mais graves e irreparáveis prejuízos à saúde republicana do país e até mesmo à auto estima de toda uma coletividade, aqui e alhures. Daí a fala constitucional para que se considere a vida pregressa do candidato como elemento de sua própria condição de elegibilidade (BRITTO, Ayres) (grifo nosso).

Do espaço de memória discursiva evocado pelos enunciados do hermeneu-ta – o qual ele (re)organiza, pois o (re)interpreta – surge, sendo retomada por esses mesmos enunciados, a problemática do combate a corrupção. No excerto n º 09, por exemplo, em que a política é identificada como “a mais imprescindível das atividades humanas”, trata o intérprete da necessidade de se criar institutos que a protegessem, adjetivando-os, através de orações substantivas adjetivas restritivas, como aqueles que tornariam “os políticos dignos da política” ou que salvariam “a política dos políticos” (linhas 2 e 3). O exegeta aponta ainda os políticos dos quais a política deveria ser salva: os “políticos avessos aos princípios da probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato e da não incidência do abuso do poder político ou econômico” (linhas 3 a 6), isto é, os políticos corruptos.

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No excerto nº 10, além da voz autorizada do jusfilósofo Hans Kelsen e da citação da Constituição Federal de 1988, que funcionam legitimando os enunciados a que elas se referem, surte também efeito de sustentação, em relação ao que é dito pelo intérprete, a intercalada “protetora da probida-de”, formulação que adjetiva a LC nº 135/2010 (linha 4). O mesmo efeito é produzido pelas frases interrogativas das linhas 14 a 18, com as quais o in-térprete procura demonstrar a urgência de moralização do espaço público, e pela frase explicativa das linhas 21 a 25, na qual “saúde republicana do país” e “autoestima de toda uma coletividade” aparecem como paráfrases dos valores “probidade e moralidade administrativas”.

Já no julgamento do RE 633.703 de Leonídio Bouças, o seu relator, o Ministro Gilmar Mendes, centrando o seu voto na análise do conteúdo normativo do art. 16, da Constituição Federal de 1988, e, portanto, ado-tando itinerário hermenêutico diverso do desenvolvido pelos relatores dos outros dois recursos extraordinários, os Ministros Ayres Britto (RE 630.147) e Joaquim Barbosa (RE 631.102), que focaram suas discussões na defesa da probidade e da moralidade administrativas, fazendo a exegese da norma do § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, o Ministro Gilmar Mendes defendeu a proteção do processo eleitoral e a garantia da igualdade de par-ticipação entre os candidatos, consectários, de acordo com o intérprete, da Segurança Jurídica. O excerto a seguir foi extraído de seu voto:

Excerto nº 11

De fato, não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações, no sistema eleitoral, que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. O princípio da igualdade entre os partidos políticos é fundamental para a adequada atuação dessas instituições no complexo processo democrático. Impõe-se, por isso, uma neutralidade do Estado em face das instituições partidárias, exigência essa que se revela tão importante quanto difícil de ser implementada. A importância do princípio da igualdade está em que, sem a sua observância, não haverá possibilidade de estabelecer-se uma concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, o que acabará por comprometer a essência do próprio processo democrático. [...] o princípio da “igualdade de chances” entre os partidos políticos abrange todo o processo de concorrência entre os partidos, não estando, por isso, adstrito a um segmento específico. É fundamental, portanto, que a legislação que disciplina o sistema eleitoral, a atividade dos partidos políticos e dos candidatos, o seu

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financiamento, o acesso aos meios de comunicação, o uso de propaganda governamental, dentre outras, não negligencie a ideia de igualdade de chances, sob pena de a concorrência entre agremiações se tornar algo ficcional, com grave comprometimento do próprio processo democrático. Portanto, a cláusula do art. 16, que é uma expressão específica, especial de segurança jurídica, aqui, funciona, também, como um instrumento básico da igualdade de chances, evitando, exatamente, essas mudanças calculadas, esse jogo probabilístico que se faz na relação entre maioria e minoria. (MENDES, Gilmar) (grifos nossos).

O espaço de memória discursiva invocado, agora, é outro. Neste, temos uma posição-sujeito para a qual não são os princípios da probidade e da morali-dade administrativas que constituem o cerne do modelo democrático, mas os princípios da “igualdade de chances” e da proteção do processo eleitoral, consubstanciados no art. 16, da Constituição Federal de 1988 (linhas 6 a 8 e 22 a 23). Nesse sentido, identificamos, no excerto nº 11, alguns elemen-tos linguísticos que funcionam dando sustentação e/ou legitimidade ao que é dito pelo intérprete do Plenário do Supremo. Em primeiro lugar, temos “concorrência livre e equilibrada” (oração subordinada substantiva objetiva direta, sublinhada nas linhas 12 e 13), que funciona como paráfrase para “processo eleitoral”; e, depois, “expressão específica, especial de segurança jurídica” (linha 24) e “instrumento básico da igualdade de chances” (linha 25), parafraseando ambos o Princípio da Anualidade Eleitoral.

As análises e discussões realizadas neste tópico nos permitem afirmar que, associada a essa disputa teórico-conceitual ocorrida entre os defenso-res da imediata aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às Eleições 2010, apon-tada como instrumento moralizador da política e dos próprios políticos, e entre aqueles que postularam em favor do Princípio da Anualidade Eleitoral (art. 16, da CF/1988), como corolário do valor “segurança jurídica”, teve lu-gar um jogo de construção/reconstrução de espaços de memória discursiva, em que se inserem posições-sujeito que retomam como objeto de discurso a definição do próprio Estado Democrático de Direito e as bases que o fun-damentariam.

Quanto aos argumentos que embasaram as posições adotadas pelos exegetas – de um lado, o “Princípio da Probidade e da Moralidade Adminis-trativas” e, do outro, o “Princípio da Segurança Jurídica” – podemos dizer que não houve a negação de nenhum desses princípios por parte dos intérpre-tes. Em suas exegeses, o que observamos foi que os ministros centravam-se em uma ou outra norma da Constituição Federal de 1988 – no § 9º, do art. 14, ou no art. 16 – ou em um ou outro princípio, que, segundo entendiam, sustentavam as suas respectivas posições a respeito da questão da aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às Eleições 2010. Sopesados, dessa forma, nas exegeses então realizadas, nenhum desses princípios teve a sua importância menosprezada, o que ocorreu foi que, ao defenderem a segurança jurídica

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ou a moralidade administrativa, os intérpretes do Supremo enunciaram a partir de posições-sujeito diferentes.

7. Considerações finais

As análises demonstraram que a jurisprudência da Corte exerce função pre-ponderante em todas exegeses que são desenvolvidas pelos membros do Supremo Tribunal Federal ou por aqueles que sustentam teses jurídicas em sua Tribuna. Raramente, encontra-se uma interpretação normativa ou a análise de alguma questão jurídica que não aponte sequer um precedente jurisprudencial como paradigma aplicável à norma ou ao caso em apreço.

Nesse sentido, tal como discutimos no tópico “Os precedentes juris-prudenciais como lugares de memória discursiva”, os julgados pretéritos da Corte funcionam como espaço de memória sobre os quais são exercidos ges-tos de interpretação que acabam por reorganizá-los. Como afirma Pêcheux [1983a] (1997), os espaços de memória, como lugares de interpretação, ao serem invocados por enunciados discursivos, além de retomados, são tam-bém reestruturados/(re)interpretados no exato momento de sua evocação.

Verificamos, igualmente, que, nos espaços de memória evocados pelos enunciados discursivos, funcionam posições-sujeito que retomam, como ob-jeto de discurso, questões políticas, jurídicas e sociais, tais como a necessida-de de se recuperar a dignidade da política e dos próprios políticos; a urgente moralização do Poder Público; a obrigatoriedade de se conferir segurança aos cidadãos-candidatos; os valores fundantes do Estado Democrático de Direito e seu próprio conceito. Neste último ponto em particular, pudemos identificar duas posições-sujeito: para uma, embasariam, fundamentalmen-te, o nosso ordenamento jurídico constitucional e o Estado Democrático de Direito os valores da probidade e moralidade administrativa; para a outra, os valores de maior envergadura, em uma nação jurídico-democrática, seriam as garantidas da segurança jurídica e da proteção da confiança, que impedi-riam comportamentos inesperados por parte do Estado.

É possível afirmar assim, conforme o referencial teórico-metodológico adotado, que a opacidade da língua e a memória exercem papel preponderante nos gestos de leitura, interpretação e ressignificação dos precedentes jurisprudenciais e das exegeses normativas, uma vez que a memória é “a condição do legível em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, [1983b] 1999, p. 51), e o real da língua aponta para o “papel do equívoco, da elipse, da falta, etc...” (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51), na produção/circulação de sentidos.

Referências

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Parte IIIPROCESSO JUDICIAL &

LINGUAGEM

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A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e

pluralistas

Ana Virgínia Cartaxo Alves, Caroline Alves Montenegro e Juliana de Brito Giovanetti Pontes

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

O conceito de sociedade vem se transmudando ao longo do tempo, e, a par-tir da Modernidade, os centros tradicionais de orientação da conduta huma-na deixaram de ser as únicas possibilidades de referência, fazendo com que cada homem passasse a ser seu próprio elemento norteador. Esse processo de descentramento culminou com o individualismo e a racionalidade, já que cada indivíduo se orienta conforme sua própria vontade, pautado uni-camente em sua razão.

Tudo isso fez com que a conotação de sociedade não se coadunasse como a união de pessoas com projetos comuns, mesmas crenças, culturas e valores. Ao contrário, o tecido social passou a apresentar duas característi-cas primordiais: a complexidade e o pluralismo.

Esses novos elementos caracterizadores da sociedade representaram uma mudança drástica na forma com que as pessoas se relacionam entre si, pois a complexidade representa a existência de uma miríade de possibi-lidades e uma enorme contingência e, por conseguinte, a insegurança; já o pluralismo, importa na coabitação de infinitos projetos de vida distintos em um mesmo espaço social e político.

Com essas novas características, a vida em sociedade não pode mais restar ligada por um centro referencial comum, em que todos os indivíduos são conduzidos por meio do consenso. Na verdade, o estado marcado pelo pluralismo e pela complexidade corre um grande risco de se fragmentar, em

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202 | A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas

virtude de intolerância com a diferença, ou de das constantes tentativas de grupo subjugar os demais, privilegiando seus interesses.

Nessa conjuntura, percebe-se que a democracia fundada na regra ma-joritária perdeu seu sentido, já que a sociedade contemporânea, complexa e pluralista, não permite um governo da maioria que ignore os pleitos dos de-mais grupos. Em outras palavras, essa virada social exige uma democracia que prime pela participação de todos e cada um dos membros da sociedade, por mais minoritária que seja sua posição.

Assim, a legitimidade dos atos estatais encontra um novo lugar na pos-sibilidade de efetiva participação igualitária de todos os grupos no processo de tomada de decisões públicas, de modo que nenhum elemento social seja descartado, e que se busque uma solução racional, pautada sempre no diá-logo entre os distintos interesses.

Noutro aspecto, é importante destacar que o Poder Judiciário passou a apresentar um novo papel: o de garantidor dos direitos fundamentais, protegendo, principalmente, as minorias. Noutros termos, o Judiciário, para assegurar a legitimidade democrática dos atos públicos, deve fixar o limite de atuação dos outros poderes, para que suas decisões sejam fruto da cons-trução do povo somada à autoridade pública.

Assim, as próprias decisões do Judiciário, para serem consideradas legítimas, devem se embasar nesse modelo participativo, que prime pelo diálogo entre todos os valores distintos como forma de edificar uma decisão racional.

No entanto, não obstante essas novas exigências de um Estado Demo-crático de Direito, percebe-se que o Poder Judiciário, mormente o Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade das leis, pode estar ignorando tais demandas. É que a referida corte tende a adotar uma postura de guardiã dos valores da sociedade, na medida em que algumas de suas decisões são tomadas com base em certos valores dados como prioritá-rios, numa espécie de consenso artificial.

Ademais, verifica-se que, talvez, a Corte Maior brasileira esteja agindo contrariamente às exigências de uma democracia mais participativa, ao pas-so que privilegia o uso do controle abstrato de constitucionalidade, que não permite a participação direta dos litigantes na tomada das decisões.

Dessa forma, o presente trabalho busca realizar uma breve análise dessa conjuntura, perquirindo se jurisdição constitucional brasileira, em especial o controle de constitucionalidade das leis realizado pelo Supremo Tribunal Federal, está atendendo aos novos anseios democráticos de uma sociedade complexa e pluralista.

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Ana Virgínia Cartaxo Alves | 203

2. Pluralismo e complexidade das sociedades contemporâneas

O advento da modernidade importou num processo de dissolução progres-siva dos centros de referência para a atuação do homem. É que o homem moderno, pouco a pouco, foi superando seus núcleos de orientação, em um movimento centrífugo.

Verificou-se, então, que cada novo movimento marcante da idade mo-derna impulsionou o redimensionamento dos centros de orientação tradi-cionais dos grupos de indivíduos, como por exemplo, a Revolução Científica e a Reforma Protestante. Neste diapasão, como os centros de orientação tradicionais deixaram de existir, a solução encontrada pela modernidade foi “converter cada indivíduo em centro orientador da sua própria condu-ta” (GALUPPO, 2001, p. 343). Observou-se que o indivíduo assumiu papel central na modernidade, consistindo o referencial último para si mesmo, e, com isso, dar-se o nascimento de uma multiplicidade de centros de refe-rência, já que cada indivíduo passa a ser considerado seu próprio centro de orientação.

Esse movimento centrífugo dos centros orientalizantes, que culminou emergência do indivíduo como próprio referencial de conduta, coincidiu com o processo de racionalização. É que essas mudanças nos centros tra-dicionais de orientação terminaram por ocasionar grandes incertezas à so-ciedade moderna, pois as “verdades” até então disseminadas pelos grandes referenciais passaram a ser questionadas, à medida que o processo de des-centralização se expandia.

Todo esse processo implicou um novo medo no homem moderno: a insegurança. Como não havia mais uma orientação uniforme e uma única verdade a ser seguida, o indivíduo, convertido no seu próprio modelo, ficou perdido sem uma bússola que o orientasse, já que habitava num mundo permeado por dúvidas. Na busca de uma solução para enfrentar esse medo, dando cabo a tantas incertezas, o ser humano encontra uma resposta: a racionalidade.

O pensamento racional, introduzido por Descartes, propõe-se a acabar definitivamente com o medo do incerto, dando origem a um ideal de ciência pautado na certeza e segurança matemáticas. A razão, destarte, passou a ser entendida como solução absoluta para se encontrar a verdade única da ciência, estabilizando os medos do homem cartesiano.

Então, nesses moldes, pode-se perceber que, na modernidade, viveu--se uma transição vertiginosa que estabeleceu a guinada do indivíduo como centro de referência para sua atuação, essa, por sua vez, deveria ser mar-cada por uma concepção racional dos elementos a sua volta. Assim, surge o entendimento que apenas a razão contida em cada ser humano seria capaz de decidir o que seria bom e devido para sua vida e, com isso, consolida-se um modelo social em que não se pode mais determinar o que é melhor para

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o outro a partir de uma visão puramente externa, mas somente o indivíduo, senhor do seu próprio destino, detém a capacidade – e legitimidade – de ter a última palavra a respeito de sua própria vida.

Nessa esteira, pode-se afirmar que o conceito atual de sociedade não mais se enquadraria numa concepção de um todo homogêneo orientado por um único centro de referência, ao contrário, após todo o processo de descentramento dos antigos núcleos de referência e com o apogeu do indivi-dualismo racional vividos na modernidade, as características fundamentais das sociedades democráticas contemporâneas passaram a ser a complexi-dade e o pluralismo.

Num primeiro momento, será trabalhado o que se entende por socie-dade complexa. Com efeito, a adjetivação da sociedade contemporânea em complexa implica, numa concepção da teoria dos sistemas luhmanniana, na ideia de multiplicidade de escolhas, ou seja, nessa acepção, a complexidade se refere a uma “presença permanente de mais possibilidades (alternativas) do que as suscetíveis de ser atualizadas” (LUHMANN, 1987, apud, NEVES, 2001, p. 332).

Seguindo tal entendimento, Marcelo Neves (2001, p. 332) explica que a sociedade moderna seria supercomplexa na medida em que “as alternati-vas possíveis de condutas, comunicações, relações e fatos sociais são muito maiores do que aquelas que se podem realizar efetivamente em uma situa-ção concreta”.

Para Luhmann, o conceito sistêmico de complexidade pressupõe um entendimento básico, válido para todos os sistemas, o da diferenciação entre meio e sistema a partir da complexidade. É que o meio do sistema sempre seria mais complexo do que o próprio sistema e, destarte, aquele “oferece mais possibilidades do que o sistema pode aceitar, processar ou legitimar” (LUHMANN, 2009, p. 184).

Na visão sistêmica, complexidade implica em contingência, ou seja, em razão dessas múltiplas possibilidades, é impossível prever todos os fa-tores que podem ou não ser operacionalizados. Nesse raciocínio, sempre haverá elementos incalculáveis, de modo que as pessoas devem estar pre-paradas para as consequências de um elemento surpresa se concretizar (LUHMANN, 2009).

Noutro aspecto, essa complexidade e a contingência dela derivada im-portam na necessidade de seleção. É que, em virtude das múltiplas relações capazes de serem formadas pelos elementos integrantes do sistema, este deve ser capaz de selecionar a forma como deve relacionar tais elementos. A “complexidade é, portanto, a necessidade de manter uma relação apenas seletiva entre os elementos” (LUHMANN, 2009, p. 185).

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É importante consignar o alerta de Marcelo Neves, ao aduzir que essa necessária seletividade exige que os mecanismos de seleção que não exclu-am nenhuma das possibilidades. Além disso, afirma que esses mecanismos seletivos têm a finalidade de “transformar complexidade desestruturada em complexidade estruturada, sem desconhecer, portanto, a heterogeneidade de valores, interesses e discursos, assim como a pluralidade de sistemas existentes na sociedade” (NEVES, 2001, p. 332 e 333).

Assim sendo, a teoria dos sistemas propõe não o fim dessa complexida-de, mas a estruturação da mesma com respeito às concepções individuais, que tendem a ser sempre diferentes e, talvez, nunca possam ser compatibi-lizadas por meio de um consenso.

Desta forma, transpondo a teoria dos sistemas para o sistema social, percebe-se que a sociedade contemporânea é supercomplexa na medida em que existem cada vez mais possibilidades de escolhas e de maneiras pelas quais as relações sociais podem ser estabelecidas, nos moldes de uma ver-dadeira análise combinatória.

Então, pode-se afirmar que, no momento em que homem se tornou o núcleo referencial de sua própria conduta, ele começou a se deparar com uma miríade de possibilidades e, como consequência, as relações sociais se tornaram cada vez mais complexas e imprevisíveis, obrigando o indivíduo a estar preparado para lidar com fatores surpresas que eventualmente podem ocorrer e as prováveis frustrações que tais riscos podem ensejar.

Outro traço fundamental das sociedades contemporâneas é o que se convencionou denominar “pluralismo”. Como a própria nomenclatura su-gere, o pluralismo pode ser compreendido como a coexistência de uma va-riedade de elementos diferentes em um mesmo espaço. Contudo, para o presente trabalho, compreende-se o pluralismo numa concepção político--social, aqui conceituado como uma multiplicidade de valores, interesses, crenças religiosas, grupos étnicos, compromissos morais, formas culturais e concepções sobre a vida digna compartilhando um mesmo espaço social e político.

É interessante notar que o pluralismo é marcado pela heterogeneida-de, vez que, desde a dissolução dos centros tradicionais de orientação, o ser humano assumiu o papel do próprio referencial de conduta e, por conse-guinte, numa sociedade complexa de múltiplas possibilidades, não pode se falar em uma igualdade de concepções individuais; o que ocorre, no máxi-mo, é a congregação de pessoas em grupos que comportem valores, carac-terísticas ou objetivos semelhantes.

De acordo com Bobbio (1995), a concepção de uma sociedade plura-lista (e também complexa) engloba três características: a sua formação por meio de esferas particulares relativamente autônomas, a opção de organizar essas sociedades através de um sistema político que viabilize que os vários

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grupos e camadas sociais participem, seja de forma direta ou indireta, na formação da vontade coletiva e, por fim, que esse modelo social seria uma antítese de toda e qualquer forma de despotismo.

A partir dessas características, percebe-se que o pluralismo representa dois riscos extremos para a convivência em sociedade. O primeiro perigo é justamente o excesso de descentramento gerar um processo de desagrega-ção social irreversível. A desagregação radical e irreversível da sociedade representa um risco real advindo do pluralismo, posto que uma sociedade excessivamente individualista – já que cada indivíduo ou cada grupo per-seguiria o seu próprio ideal de vida – poderia perder totalmente sua coesão e, por conseguinte, a vida em sociedade correria um grande perigo de se desintegrar por completo.

Outro grande risco que o pluralismo representa para a sociedade con-temporânea é a possibilidade de um núcleo descentralizado de poder tor-nar-se hegemônico, impondo seu projeto de vida aos demais grupos.

O perigo de um determinado grupo despontar como poder autoritário surge a partir do momento em que a convivência da heterogeneidade num espaço político cada vez mais descentralizado enseje na possibilidade da propagação de orgulhos étnicos e na manifestação da supremacia de uma raça, cultura ou ideologia, nascidos da falta de tolerância ou do não reco-nhecimento pacífico do outro (TEIXEIRA, 2006).

Esse risco de um dissenso extremo, acarretando numa fragmentação radical que impossibilite a compatibilização de projetos coletivos ou no peri-go da instalação de um poder despótico totalmente intolerante e insensível às diferenças, representa um dos grandes problemas a serem enfrentados por uma sociedade cada vez mais plural e complexa. Cumpre frisar que tais problemas podem se tornar ainda mais agudos num momento de crise, como o que se atravessa, quando há uma tendência à fragilização da sociedade, ante a ampliação das dificuldades econômicas e sociais, com propensão a tornar os grupos mais intolerantes, em razão do medo e da insegurança.

É oportuno ressaltar que o dissenso é a marca do pluralismo, pois é o traço fundamental da diversidade de valores, pensamentos e interesses que permeiam os núcleos descentralizados da sociedade. Por conseguinte, num pretenso Estado Democrático de Direito, só há o que se falar numa socieda-de pluralista, como prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, se houver verdadeiramente um espaço para as diferenças e o dissenso entre os cidadãos.

Nessa esteira, a despeito das diferenças marcantes que cada vez mais se exasperam na medida em que aumentam as possibilidades e a conse-quente complexidade social, verifica-se que não se pode reproduzir um modelo de consenso absoluto ou, até mesmo, artificial, imposto por único centro de poder.

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No entanto, não se pode abrigar um modelo estatal pautado na mera coabitação de projetos de vida distintos em um mesmo espaço político-so-cial, mas, talvez, a resposta para esses problemas esteja na possibilidade do reconhecimento de igual importância de todas as aspirações, inclusi-ve dos grupos minoritários. E, além disso, da criação de mecanismos que permitam uma posição dialógica entre as mais distintas visões de mundo, com a finalidade de estabelecer condições básicas para que todos os grupos possam participar da vida política e concretizar, de alguma forma, os seus interesses.

3. Os novos contornos da democracia

Conceituar democracia não é uma tarefa fácil, ademais, não faz parte do cerne do presente trabalho delongar-se nessa esfera da Ciência Política. No entanto, não se pode se eximir de delimitar o que se compreende, aqui, por democracia para, então, tentar-se discutir acerca da pretensa legitimidade democrática Judiciário brasileiro em sede de controle jurisdicional de cons-titucionalidade das leis.

Tradicionalmente, atribui-se à democracia a insígnia de governo do povo, conforme a origem grega do vocábulo. Entretanto, não se pode afirmar que a concepção atual de democracia é a mesma da Grécia Antiga, cujas características principais eram a unidade, solidariedade e participação; não podendo esquecer que a cidadania, à época, era um conceito altamente restritivo, porque poucos participavam da vida pública, excluindo-se mulhe-res, escravos e estrangeiros (HELD, 1987). De lá para cá a noção de estado mudou de maneira radical e, hoje, como já aduzido, vive-se em um tecido social permeado pelos problemas da complexidade e do pluralismo.

Como já afirmado, a sociedade contemporânea é marcada por uma miríade de possibilidade e pela convivência dos mais diversos projetos de vida, aspirações e crenças, dando lugar a variados grupos separados de modo virtual, o que implica dizer que a noção de um poder emanado de um povo não mais se agrega a acepções de unicidade ou de um governo exercido de maneira totalmente direta pelos cidadãos.

Dessa maneira, a atual configuração da democracia não pode des-considerar as referidas características que marcam grande parte dos es-tados hodiernos, inclusive a sociedade brasileira; logo, deve-se encontrar maneiras de compatibilizar os atos estatais com as atuais exigência demo-cráticas.

Nesse sentido, o conceito majoritário de democracia não é mais su-ficiente para atender todas as exigências dessa nova configuração estatal, pois, em sociedades pluralistas, a fragmentação social não mais permite a necessária flexibilidade exigida pela regra majoritária, na medida em que os grupos minoritários poderiam quedar-se preteridos das decisões políticas.

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Assim, a prevalência do princípio majoritário poderia tornar-se não apenas antidemocrática, como algo pernicioso. É que, ao serem reiterada-mente repelidas do poder, as minorias, por não terem seus argumentos ou-vidos e seus anseios concretizados, tendem a se sentir discriminadas, dei-xando de prestar lealdade ao regime, o que, por sua vez, pode culminar com uma ruptura do Estado (LIJPHART, 1989).

Destarte, a democracia, no atual contexto, deve apresentar possibili-dades reais de participação de todos, sob pena das minorias serem descarta-das da vida pública.

No entanto, é salutar esclarecer que o que se entende aqui por con-senso não se coaduna com a ideia de consenso impositivo, em que não seja ofertada possibilidade de desacordo. Busca-se, de modo inverso, a possibili-dade de dissenso, de pluralidade, estimulando o diálogo entre os mais diver-sos grupos, com visões e crenças e desejos distintos, para que, a partir da co-municação e respeito recíproco, encontrem-se soluções para compatibilizar as diferenças. E, só assim, pode-se falar em democracia, compreendendo-se que o todo é o que importa, a soma da maioria e da minoria, e não apenas o que pensa a parte majoritária.

Ademais, é importante destacar que, no seio de uma sociedade plu-ralista e complexa, não se pode mais falar em homogeneidade de culturas; na verdade, cresce exponencialmente a multiplicidade de formas culturais, grupos étnicos, crenças religiosas e concepções de vida.

Nas palavras de Schnapper (apud TEIXEIRA, 2006, p. 330), “toda nação democrática é, por definição, multicultural”. É que, afirma o referi-do autor, as nações foram edificadas a partir de várias etnias preexistentes e, mesmo que a nação transcenda as etnias, estas permanecem existindo, fazendo com que uma multiplicidade de identidades culturais, histórias, ideológicas e religiosas convivam num mesmo espaço político.

Para Habermas (2002), as sociedades multiculturais somente pode-rão manter sua coesão através de uma cultura política que assegure a co-existência pacífica de cidadãos provenientes de vários ambientes culturais, mas não apenas isso. No seu entendimento, a cultura política inclusivista deve, além de garantir os direitos liberais e os direitos políticos à participa-ção, também permitir que os cidadãos possam ter seus direitos eficazmente valorizados sob a forma de segurança nacional e do reconhecimento recí-proco de formas culturais distintas.

Além disso, Habermas (2002) aponta para um grave problema que pode surgir nas sociedades pluralistas, e com o grau mais elevado, nas so-ciedades multiculturais: a questão do que denomina “minorias inatas”. Isso ocorre quando, mesmo em estados democráticos, uma cultura majoritária detém o poder político de decisão e forçadamente impõe às minorias sua

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cultura e acepções de vida, de modo da impossibilitar a efetiva igualdade de direito aos cidadãos de origem cultural distinta.

Essa situação denota verdadeiro risco para as sociedades contem-porâneas, eis que, como as normas jurídicas são permeadas por valorações éticas, isso faz com que os textos legais, de conteúdo universal, sejam inter-pretados de modo distinto a cada caso, com base na cultura historicamente predominante. Desta forma, os valores da cultura majoritária que exerce o poder político são os que vão prevalecer na interpretação jurídica; logo, o discurso ético-político varia conforme se alterne a maioria que ocupe o cargo decisório, como destaca Habermas (2002, p. 166), “nem sempre há novos argumentos, mas sim, novas maiorias”.

Isto representa um verdadeiro risco para a democracia contemporâ-nea, haja visto que a maioria dominante tende a subjugar a minoria, impon-do-lhe seus valores. Assim, um estado que não esteja fundado numa política de participação igualitária e no diálogo entre os participantes do jogo polí-tico, torna-se um espaço antidemocrático, em que os grupos minoritários ficam a mercê das regras da maioria.

É importante ressaltar que aqui não se defende o que Marcelo Neves (2001, p. 341) denomina de “multiculturalismo extremo”, ou seja, exagero na proteção da diversidade dos valores e etnias, fazendo com que qualquer limite à identidade de um grupo étnico ou cultural seja prontamente recha-çado, mesmo que esse excesso de proteção implique num risco para forma-ção estatal.

Na verdade, busca-se um modelo de estado que promova espaço para efetiva participação de todos os grupos culturais e, mesmo que estejam to-dos virtualmente separados, possam encontrar denominadores comuns que possibilitem uma convivência harmônica, com sensibilidade para as dife-rentes opiniões. Há, portanto, necessidade de se viabilizar um método de comunicação entre os diferentes.

Nesse sentido, verifica-se que não se pode falar em manutenção de uma sociedade multicultural “sem o recurso a um princípio universalista que permita a comunicação entre os indivíduos e os grupos social e cultu-ralmente diferentes” (TOURAINE, 1997apud NEVES, 2001, p. 341).

Um dos mecanismos que podem ser utilizados para garantir um di-álogo entre as diferenças, assegurando-se, em contrapartida, um respeito pelos traços distintivos, é a cidadania. É que a cidadania tem o potencial de permitir a convivência entre as diferenças, vez que possibilita a separação entre o âmbito público, em que os indivíduos são iguais enquanto cidadãos, e o âmbito privado, em que cada pessoa pode expressar seu modo único de conceber o mundo (TEIXEIRA, 2006, p. 329).

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Assim, para evitar a desagregação de uma sociedade mais pluralista e complexa, deve-se buscar mecanismos, como a cidadania, que, apesar de permitir a individualidade e a liberdade das concepções isoladas sobre vida boa, possibilitem esta concentração de poder nas mãos do estado, para que esse possa congregar os diversos grupos em prol dos seus interesses comuns.

Desta forma, nas sociedades pluralistas e complexas, o discurso que pregar um governo de maioria, do consenso absoluto, deve ser prontamente descartado, pois o consenso total não é mais possível, se é que foi um dia. Noutros termos, ouvir somente as partes majoritárias não condiz com o con-ceito hodierno de democracia, ao contrário, é uma compreensão perniciosa.

4. Legitimidade democrática do judiciário no controle de constitucionalidade de leis dob uma perspectiva procedimentalista

A partir da análise dos novos contornos da democracia em um estado mar-cado pelo pluralismo e a complexidade, como o Brasil, percebe-se há uma crise de legitimidade do modelo ainda pautado na regra majoritária e, por conseguinte, o declínio de uma democracia puramente representativa.

É que o modelo de representação política hoje não atende aos anseios da sociedade brasileira, tendo em vista que os políticos, não raramente, são eleitos para representar interesses específicos de determinados grupos, o que favorece uma subordinação do Estado em face da Economia. Essa con-juntura é uma realidade no Brasil, vide os esquemas fraudulentos envolven-do representantes públicos que diuturnamente são descobertos.

Outrossim, não se pode deixar de mencionar a crise partidária em que o Brasil está imerso, eis que a variedade cada vez maior de partidos políticos não permite que o cidadão consiga diferenciar suas ideologias e projetos po-líticos, o que reproduz aos eleitores um sentimento de homogeneidade dos programas partidários (SOUZA CRUZ, 2004).

A crise de representatividade do Poder Legislativo não é um aconteci-mento recente. A mitigação de suas atividades restou evidenciada através lentidão de suas competências e a perda de sua prioridade na elaboração das normas. A necessidade de adequação das normas às exigências das so-ciedades, cada vez mais complexas, à globalização e à variedade de fontes jurídicas foram elementos que favoreceram a referida crise. O direito po-sitivado passou a não mais satisfazer as demandas sociais que se tornaram constantes; como resultado, a produção normativa do Poder Legislativo de-caiu, fazendo com que o direito legislado apresentasse reduzida utilização e passasse a ser fundamentado em uma pluralidade de fontes.

Em relação aos efeitos da crise da pós-modernidade no Estado De-mocrático de Direito, duas motivações podem ser elencadas: a primeira diz respeito às economias capitalistas, que criaram grande complexidade social, conduzindo às crises de interesses entre os grupos sociais; a partir desse

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fato, o Estado passou a implementar políticas públicas visando satisfazer de forma específica as expectativas do povo.

A segunda motivação refere-se à inflação legislativa. É que, para adap-tar o sistema jurídico à evolução da sociedade, novos instrumentos são pro-duzidos para se adequarem aos fatos sem que sejam contraditórios com as mais variadas esferas sociais.

Nessa esteira, observa-se um aumento constante do distanciamento entre os anseios do povo e seus representantes, principalmente porque a heterogeneidade dos projetos individuais não permite um tipo de democra-cia que despreze a opinião da minoria, o que implica repensar esse modelo atual, priorizando o debate e a participação de todos os grupos na tomada de decisões políticas através de uma democracia participativa.

É relevante frisar que priorizar a democracia participativa não significa um retorno à ágora grega, pois, como já visto, a complexidade e o pluralismo das relações sociais impedem uma participação totalmente direita do povo. Na verdade, o que se verifica é a necessidade de uma participação mais ati-va dos cidadãos, que pode ser dar através de mecanismos já albergados no ordenamento jurídico brasileiro, como o referendo e o plebiscito, mas que os mesmos sejam mais frequentes e que se fomente um real debate.

Cumpre destacar, ainda, que a consulta direta, por si mesma, não é a solução para todos os problemas, não obstante possa parecer o meio mais democraticamente legítimo. É que o resultado pode ser diverso do esperado, na medida em que os meios de comunicação e a interferência do poderio financeiro podem, não só na atuação do representante, como também no exercício direito de participação, manipular a decisão pública, desvirtuando o instituto da democracia (SANTOS, 2011).

Deste modo, deve-se buscar um método intermediário de exercício da democracia, que conjugue esses dois modelos de forma mais equinânime e que, consequentemente, permita uma melhor operalização do debate e efetiva participação de todos os grupos, para que, então, possa se falar de uma legitimação democrática.

Em um pretenso Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário cumpre um papel essencial, na medida em que cabe a ele assegurar o cum-primento dos direitos fundamentais políticos aos cidadãos e, com isso, ga-rantir a participação igualitária de todos no processo de debate e de tomada de decisões políticas, conforme se exige a nova dimensão da democracia.

Seguindo esse raciocínio, para que o Judiciário atue legitimamente em favor da democracia, ele deve garantir a proteção dos direitos fundamentais individuais, limitando, portanto, a atuação dos poderes públicos com o obje-tivo de assegurar a soberania popular.

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Para atingir essa meta, o Judiciário deve pautar suas decisões num método racional, que permita ao cidadão e, principalmente às partes, a de-liberação e o exame da fundamentação de todas e cada uma das decisões judiciais. Tal intuito parte do pressuposto que todo ato estatal, não somente as tomadas de decisão do Judiciário, deve restar fundamentado racional-mente, sob pena de ferir a formação do Estado Democrático de Direito, como exigido de modo expresso pelo texto constitucional, em seu art. 93, IX (SOUZA CRUZ, 2004).

Nesse aspecto, os novos contornos da democracia demandam, como já explanado, uma atuação mais direta e igualitária de todos os setores sociais, e, em sede de prestação jurisdicional, seja constitucional ou infraconstitu-cional, essa exigência não é diferente. Logo, o processo decisional por parte do Judiciário não pode ser concebido como um momento individual do ma-gistrado, mas uma construção racional, formada do debate e das argumen-tações de cada litigante, somando-se à deliberação do Poder Público.

Para que isso seja possível, é indispensável uma postura mais ativa dos cidadãos nesse processo de edificação do direito. E é justamente daí de onde advém a legitimidade democrática, vez que somente quando os indivíduos efetivamente participam dessa construção, como “povo ativo” (MÜLLER, 1998), e não somente como destinatário do ato público, é que a decisão pode ser considerada democrática.

Corroborando esse pensamento, Gisele Cittadino aduz que:

Uma cidadania ativa não pode, portanto, supor a ausência de uma vinculação normativa entre Estado de Direito e democracia. Ao contrário, quando os cidadãos vêem a si próprios não apenas como os destinatários, mas também como os autores do seu direito, ele se reconhecem como membros livres e iguais de uma comunidade jurídica. Daí a estreita conexão entre a plena autonomia do cidadão, tanto pública quanto privada, e a legitimidade do direito (CITTADINO, 2004, p. 109)

Deste modo, a legitimidade do Poder Judiciário apenas pode ser alcançada através da garantia de uma abertura ao diálogo, com vistas a construir uma racionalidade a partir da argumentação e contra-argumentação das partes, integrantes dos mais diversos grupos que habitam o tecido social, e, com isso, construir uma decisão conjunta entre litigantes e o juiz, na condição de representante do Estado.

Faz-se mister ressaltar que a questão da legitimidade do Judiciário bra-sileiro torna-se ainda mais delicada no que se refere ao controle jurisdicio-nal de constitucionalidade das leis. É que o controle de constitucionalidade

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é voltado para a proteção dos direitos fundamentais, mediante a defesa de um procedimento democraticamente legítimo, fundado na participação ra-cional de todo o povo na formação do ato público; e, com isso, compatibili-zar os interesses conflitantes dos variados grupos que compõe a sociedade, sem excluir qualquer componente social, por mais minoritária que seja sua posição.

Assim, constata-se que, em sede de controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário vai desempenhar uma função essencialmente contramajo-ritária, já que impõe limites às maiorias parlamentares e ao Executivo como forma de se garantir a vontade do Poder Constituinte originário, protegendo a aplicabilidade e efetividade dos direitos fundamentais. Logo, é indispen-sável o exame de como vem se concretizando o controle jurisdicional de constitucionalidade para se avaliar se há ou não efetiva legitimação dos atos judiciais e, por conseguinte, aferir se estão sendo atendidas as exigências de uma democracia mais participativa (SOUZA CRUZ, 2004).

Esta avaliação sobre a legitimidade democrática do Judiciário, princi-palmente no controle de constitucionalidade das leis, vem ganhando relevo nos últimos tempos, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal está trilhando um caminho mais ativo, muitas vezes se voltando para a concre-tização de um projeto social, pautado em um modelo que tenta reproduzira “Jurisprudência de Valores” do Direito Alemão.

No entanto, essa tendência do Supremo Tribunal Federal em adotar uma postura mais criativa, a partir da escolha de valores preferenciais, e de um processo de verticalização na tomada de decisões – afastando-se de procedimentos que permitam uma postura dialogal entre o Poder Público e as partes – vai de encontro às atuais exigências democráticas.

É que, na medida em que se adota uma hermenêutica constitucional pautada em valores, abre-se um grande espaço para que a decisão consti-tucional seja ilegítima, pois os valores escolhidos como prioritários vão se alternando, na medida em que se alterne a maioria que ocupa os cargos públicos; sem mencionar que a complexidade e o pluralismo que cada vez mais se agudizam no seio social, impedem que haja uma homogeneidade de preceitos teleológicos aceitos como válidos por todos os grupos da sociedade.

Nessa esteira, a própria função do controle de constitucionalidade de proteção dos direitos fundamentais, especialmente, de tutela dos interesses minoritários, perde seu sentido. É que, como a atuação do magistrado será orientada por um rol de valores preferenciais, ignorando-se a força vincu-lante dos direitos constitucionalmente assegurados pelo constituinte origi-nário, a minoria será preterida, pois não terá participação no debate e, com isso, seus valores poderão ser prontamente rechaçados, em prol do valores adotados pelo juiz no momento da prolação de decisão.

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Tal posicionamento se coaduna com o que defende Marcelo Cattoni de Oliveira, que defende:

Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. E tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Judiciário definir o que poder ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria democracia, desse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham de um modo comunitarista os mesmos supostos axiológicos, os mesmos interesses, uma mesma concepção de vida e de mundo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005, p. 3).

Assim sendo, não se pode permitir que o Judiciário seja considerado o guar-dião de valores da sociedade, pois como é que se pode determinar um esca-lonamento de valores em uma sociedade pluralista, formada por indivíduos com crenças, anseios e culturas distintas?

Ao contrário, o modelo social atual, com toda a complexidade e dife-rença possíveis, não abriga, como demonstrado, uma reunião dos grupos em prol de um consenso sobre os valores que deveriam reger seus direitos. Noutros termos, o caminho a ser trilhado em busca da legitimidade demo-crática não está num consenso imposto, seja pelo Chefe de Executivo, seja pelas maiorias parlamentárias, os conchaves econômicos ou pelo juiz.

Assim, a legitimidade dos atos públicos encontra seu lugar no dissenso, na pluralidade, na possibilidade de divergir. Em outras palavras, somente por meio do diálogo entre todos os valores heterogêneos é que se pode obter uma solução pautada na racionalidade.

Nesse sentido, o Judiciário brasileiro, em sede de controle de constitu-cionalidade das leis, não pode continuar nesse processo de distanciamento vertical da opinião dos particulares, com o uso recorrente de mecanismos que priorizam o controle concentrado de constitucionalidade das leis, por parte do Supremo Tribunal Federal, em detrimento do controle difuso.

O controle difuso de constitucionalidade das leis, de acordo com a vertente procedimentalista, seria a via que melhor asseguraria as exigências de uma democracia mais participativa (SOUZA CRUZ, 2004, p. 22), já que possibilitaria a maior participação das partes na tomada de decisões, dife-rentemente do que ocorre em sede da via concentrada, em que as decisões são orientadas por um processo objetivo, fechado ao diálogo e concentrado

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nas mãos do Supremo Tribunal Federal, que vem se comportando como se fosse o supremo guardião dos valores da sociedade brasileira.

Desta maneira, a posição defendida pela corrente procedimentalista, como forma de conferir legitimidade às decisões do Judiciário em sede de controle de constitucionalidade das leis, é a adoção de uma hermenêutica constitucional fundada na Teoria Discursiva do Direito.

É que, para essa teoria, uma das formas de se alcançar a efetividade ju-rídica em uma sociedade democrática consiste em possibilitar um ambiente profícuo para um maior envolvimento da população em assuntos políticos.

Para Habermas, idealizador da Teoria Discursiva do Direito, uma crescente participação da população em assuntos políticos em um Estado democrático era indispensável, por isso, ele defende a representação através de associações de classes, sindicatos, organizações de determinadas pessoas em prol de determinados assuntos específicos, como formas representativas da democracia participativa/ ativa da população.(Habermas, 2002)

Habermas, que é considerado um construtivista, acredita na possibi-lidade do consenso, formado por seres pensantes capazes de cumprir um acordo formado racionalmente. Ele propõe sua teoria da racionalidade ar-gumentativa no contexto europeu, justificado pelo fato das pessoas não acei-tarem o retorno ao estado das coisas antes da II Guerra Mundial do século passado. (Saavedra, 2006).

Deste modo, Habermas, a partir de sua teoria comunicativa, preten-de provocar um diálogo, com o escopo de se afastar da teoria realista, que não acreditava nas possibilidades de mudanças, mas sim em um estado de desconfiança de Hobbes, em que “o homem é o lobo do próprio homem”. A teoria habermasiana é considerada participativa e busca uma ampla intera-ção entre as pessoas.(Saavedra, 2006).

A teoria da interpretação construtivista, por sua vez, confere prima-zia ao discurso, que pode ser absorvido através da linguagem. A linguagem é reconhecida como uma construção, portanto, refere-se aquela que cada povo dar de si próprio para compor os seus valores, a sua história. Por isso, o lema do construtivismo é considerar que o mundo é construído de uma determinada maneira, mas pode ser alterado, assim, há a possibilidade de um novo mundo. (Menelick et al, 2011)

Nessa esteira, a Teoria Discursiva do Direito, desenvolvida por Jürgen Habermas, adota a concepção de que o sentido da norma somente poderá ser delimitado mediante um discurso de aplicação em que seja ofertada a possibilidade das partes, através de uma deliberação acerca das pretensões de validade concretamente envolvidas no caso concreto, perceberem-se não apenas como as destinatárias da norma, mas também as autoras da mesma

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e, nesta condição, podem concordar racionalmente com a aplicação de san-ções, inclusive contra elas mesmo (GALUPPO, 2001).

Neste diapasão, percebe-se que o julgador não pode decidir isolada-mente, mas deve considerar todos os argumentos utilizados pelas partes de maneira igualitária, de modo que os litigantes sejam tidos como coauto-res da norma originada da sentença. Assim, somente quando advinda desta construção conjunta e racional é que a decisão será considerada legítima.

Por isso que os seguidores brasileiros dessa corrente procedimentalis-ta, fundada na comunicação racional, posicionam-se de modo contrário ao controle concentrado de constitucionalidade das leis, vez que esse processo objetivo não possibilita a participação dos litigantes na formação do juízo do magistrado, que decidirá com base em seus próprios valores, ignorando a pluralidade de valores que permeia a sociedade atual.

Neste sentido, é elucidativo o argumento de Menelick Carvalho Netto, que defende que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, a legi-timidade das decisões judiciais devem restar pautadas numa racionalidade discursiva conforme as novas demandas da democracia, que somente será alcançada a partir da participação efetiva dos litigantes. Assim, a tomada de decisão deve ser edificada tanto com base nas normas positivas, quanto da análise fatos concretos, conforme passagem abaixo:

(...) das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nível de racionalidade discursiva compatível com o atual conceito processual de cidadania, com o conceito de Härbele da comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Ou para dizer em outros termos, ao nosso Poder Judiciário, em geral, e ao Supremo Tribunal Federal, em particular, compete assumir a guarda da Constituição de modo adensificar o princípio da moralidade constitucionalmente acolhido que, no âmbito da prestação jurisdicional, encontra tradução na satisfação da exigência segundo a qual a decisão tomada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do direito vigente quando dos fatos específicos do caso concreto em questão, de modo a assegurar a um só tempo a certeza do direito e a correção, a justiça, da decisão tomada (CARVALHO NETTO, 1998, p. 250).

Destarte, pode-se concluir que legitimidade democrática do Judiciário, numa sociedade marcada pelo pluralismo e a complexidade, resta fundada na racionalidade discursiva das decisões judiciais, apenas obtida quando

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os cidadãos têm seus direitos fundamentais políticos assegurados e podem participar equinanemente de todo o processo de tomada de decisão, não somente como receptores da norma, mas como efetivos criadores da mesma em perfeita união com a autoridade pública, na condição de Estado-juiz.

5. Conclusões

Com base em todas as considerações realizadas no presente trabalho, pode--se chegar a algumas conclusões.

Primeiramente, verificou-se que a sociedade brasileira contempo-rânea se encontra marcada por duas características que podem acarretar diversos problemas: a complexidade e o pluralismo. O excesso de possibili-dades e a contingência, oriundos da complexidade, somado a heterogenei-dade de concepções, crenças e valores, advinda do pluralismo, fez com que a concepção de estado se modificasse radicalmente, não possibilitando a reunião uniforme de todos os projetos de vida dos cidadãos.

A partir da análise dessa nova dimensão de sociedade, observou-se que a regra de ouro da democracia grega, o governo da maioria, não mais se coaduna com o pluralismo e a complexidade, demandando, portanto, um novo modelo de democracia.

Então, constatou-se que o modelo pautado na representatividade en-trou em declínio, ante o alargamento do fosso entre os anseios dos eleitores e de seus representantes. Com isso, percebeu-se que essa nova sociedade demandava um projeto de democracia mais participativo, que assegure pro-cedimentos que permitam uma maior participação do cidadão e que garan-ta também a proteção da minoria, para que essa expresse seus interesses e valores de maneira igualitária.

Portanto, a legitimidade democrática não mais se encontra no desejo da maioria, mas na possibilidade de participação de todos e cada um no pro-cesso de tomada de decisões públicas.

Esse redimensionamento da democracia afetou diretamente o Poder Judiciário, em especial, no tocante ao controle de constitucionalidade das leis, já que cumpre a ele a tutela dos direitos fundamentais, principalmente, os da minoria. Com isso, cabe ao Judiciário limitar a atuação dos Poderes Públicos, de forma a garantir uma participação equilibrada de todo o povo, com as suas mais variadas concepções, no processo de tomada de decisões políticas.

Nesta medida, o ponto chave da pesquisa realizada foi delimitar se o Judiciário brasileiro, precipuamente, em sede de controle de constitucio-nalidade de leis, está atuando de modo legítimo, em que pese as constan-tes investidas do Supremo Tribunal Federal em aproximar-se do modelo de ponderação de valores alemão.

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É que, não obstante as atuais exigências de uma democracia mais participativa, o Supremo Tribunal Federal insiste em priorizar um controle abstrato de constitucionalidade, impedindo a participação dos litigantes no processo de construção da decisão judicial, e decidindo com base em deter-minados valores por eles elencados, em manifesto desrespeito aos demais valores que permeiam uma sociedade composta por todos os credos, cultu-ras, valores e interesses.

Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal se atribuiu o papel de guardião dos valores da sociedade brasileira, como se pudesse escolher, dentre tantos outros preceitos valorativos, quais são os que devem guiar suas decisões, criando-se em laboratório um consenso artificial.

Deste modo, defendeu-se que essa forma de tomada de decisões em-pregada pela Corte Suprema não atende aos novos contornos da democra-cia e da sociedade. Assim, fora proposto outro modelo baseado na Teoria Discursiva do Direito, idealizada por Habermas, que defende que a legitimi-dade do Judiciário na possibilidade de construção conjunta e racional das decisões jurídicas, a partir do diálogo entre as partes, somada à atuação do Estado.

Destarte, conclui-se que há uma verdadeira crise de legitimidade do Judiciário brasileiro em sede de controle jurisdicional da constitucionali-dade das leis, que somente poderá ser revertida quando forem adotados mecanismos que favoreçam uma maior participação de todas as esferas do povo na tomada de decisões, rechaçando-se esse modelo que busca cercear a divergência advinda do pluralismo, em prol de um conceito superado de consensualidade em torno de certos valores.

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Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio

da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas.

Artur Stamford da Silva e Julia Rodrigues Tabosa

Universidade Federal de Pernambuco

1. Introdução

Em uma era em que o conhecimento tornou-se um dos bens mais almejados pela sociedade, a proteção à propriedade intelectual é assunto da maior importância. Quando se fala em invenção, essa tão almejada proteção é alcançada através de um instituto adotado quase que mundialmente: a patente. Esta pode ser definida como o direito de exclusividade outorgado pelos Estados à pessoa, seja ela física ou jurídica, sobre a exploração de uma inovação tecnológica por um período determinado de tempo. No Brasil, as patentes de invenção desfrutam de um prazo de 20 anos de exclusividade.

A patente representa a possibilidade de levar uma invenção ao conhe-cimento da sociedade, sem que seu inventor esteja completamente despro-tegido em relação a imitações não autorizadas. Ao mesmo tempo em que a patente representa uma recompensa aos esforços do inventor e aos altos custos que, geralmente, envolvem o processo criativo, também incentiva o desenvolvimento de novas invenções.

Quando se trata de fármacos, essa fórmula parece se encaixar perfei-tamente. A sociedade desfruta de remédios que a auxiliam no aumento da qualidade de vida e os inventores, ou melhor, os laboratórios farmacêuticos, são recompensados pelos alegados altos investimentos no desenvolvimento de novas drogas. Pelo menos é isso o que os grandes laboratórios farmacêu-ticos tentam passar para o público consumidor.

Entretanto, essa conclusão não parece de todo correta quando se abor-da um tema bastante polêmico nas comunidades médica e farmacêutica: os

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medicamentos me too. Eles também são conhecidos por remédios me better, follow on, copycats, dentre outras expressões. No Brasil, eles podem ser chamados de medicamentos de imitação.

Em uma definição introdutória, esses medicamentos constituem, basi-camente, versões similares – para não falar praticamente idênticas - a outros medicamentos que lhes precederam e, geralmente, são lançados quando as patentes destes últimos estão prestes a expirar – coincidentemente ou não.

Então, ao invés de recompensar os laboratórios farmacêuticos por colocarem no mercado verdadeiras inovações que contribuam para o de-senvolvimento da saúde, o público consumidor recompensa esse segmento da indústria pagando altos valores por remédios que possuem efeitos tera-pêuticos idênticos ou praticamente idênticos a remédios que já estavam no mercado!

Pergunta-se: será que esse tipo de medicamento mereceria a pro-teção patentearia? Seriam os medicamentos me too apenas uma forma de perpetuar o monopólio dos laboratórios farmacêuticos sobre a exploração de medicamentos cujas patentes já expiraram? A concessão de patentes a esse tipo de remédios não seria, ao arrepio da finalidade do próprio instituto da patente, um desincentivo ao desenvolvimento de novos - no sentido real da palavra - remédios?

Essas e outras questões serão analisadas no presente artigo, com um estudo dos medicamentos me too à luz das disposições de Direito relativas à propriedade industrial.

Para tanto, tomaremos como exemplo principal um medicamen-to bastante conhecido da população e, ao mesmo tempo, um dos maiores exemplos quando se fala em medicamentos de imitação: o Nexium, suces-sor do antigo Prilosec, ou, como é conhecido popularmente, a “pílula roxa”.

Antes, entretanto, faz-se necessária uma explanação acerca dos re-quisitos essenciais para a concessão de uma patente em geral, bem como das peculiaridades quando se trata de patentes farmacêuticas.

2. Patentes farmacêuticas

Apesar da grande importância do setor farmacêutico para a sociedade atual, cada vez mais desenvolvida quando o assunto é o prolongamento da vida humana através de intervenções externas tais como o uso de drogas tera-pêuticas, até algum tempo, não havia uniformidade no trato da proteção à propriedade intelectual nessa área.

Em 1988, a organização World Intellectual Property – WIPO fez um levantamento dos países que, à época, não reconheciam proteção patentea-ria a fármacos. Segundo o levantamento, cerca de quarenta e oito países, em sua maioria aqueles em desenvolvimento, não forneciam esse tipo de

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proteção. Em razão da conivência em relação a cópias de remédios já exis-tentes, esses países em desenvolvimento passaram a ser conhecidos como “piratas”, expressão difundida pelas companhias internacionais (NOGUÉS, 2002, p. 13-14).

Com o desenvolvimento cada vez maior e mais qualificado dos fár-macos, tamanha divergência de tratamento em cada Estado foi se verifican-do prejudicial aos interesses dos países desenvolvidos, principais responsá-veis pelas inovações disponibilizadas no mercado nesse setor. Estando em jogo investimentos e, principalmente, lucros de alta monta das indústrias farmacêuticas, a ausência de uma proteção internacional mais forte era severamente criticada.

Com o advento do Acordo TRIPS (sigla do inglês: Agreement on Tra-de-Related Aspects of Intellectual Property Rights) de 1994, do qual o Brasil faz parte, as patentes deste país e de tantos outros signatários passaram a ser concedidas a toda e qualquer invenção desde que estas contemplem os requisitos novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Dessa forma, restaram incluídos como objeto de patentes os produtos e processos farma-cêuticos. É o que dispõe o art. 27 do referido acordo:

Matéria Patenteável

1. Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 4 do Artigo 65, no parágrafo 8 do Artigo 70 e no parágrafo 3 deste Artigo, as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto a seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente. (grifou-se)

5 Para os fins deste Artigo, os termos “passo inventivo” e “passível de aplicação industrial” podem ser caracterizados por um Membro como sinônimos aos termos “não-óbvio” e “utilizável”.

O acordo foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro através do Decre-to nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Posteriormente, em 1996, essa proteção consolidou-se no Brasil com a aprovação da Lei nº 9.279/96, que regulamentou os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial e,

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além de estabelecer como sendo “patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial”, fez ex-pressa menção, em mais de um artigo, à proteção patentearia aos fármacos.

Todavia, antes de ser concedida a carta patente a um medicamento no Brasil, além dos três requisitos já previstos no Acordo TRIPS e na Lei nº 9.279/96, faz-se necessário também que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, dê sua anuência prévia à concessão. Essa exigência foi introduzida pela Lei nº 10.196/2001. Ei-la:

Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA.

Portanto, para que uma patente seja concedida a um produto ou proces-so farmacêutico faz-se indispensável que a ANVISA dê sua anuência. Essa função assumida pela agência reguladora brasileira assemelha-se à de um famoso órgão norte-americano: o Food and Drugs Administration – FDA, com a ressalva de que, nos Estados Unidos, a atuação da FDA é posterior à própria concessão da patente.

Nesse país, em primeiro lugar, o medicamento deve conseguir oficial-mente a patente, para, posteriormente, com a realização de estudos clínicos sobre ele, que comprovem a eficácia da droga e a ausência de riscos à so-ciedade, obter a aprovação da FDA para que o medicamento seja comercia-lizado.

Pois bem. O depósito de um pedido de patente é feito em cada Estado em que se pretende ver reconhecida essa proteção. Em virtude de acordos e tratados internacionais celebrados entre os Estados, a amplitude do depósi-to de um pedido de patente pode ultrapassar o limite nacional. É o exemplo do Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes – PCT, de 1970, segundo o qual um cidadão de país signatário desse tratado pode depositar o pedido a nível internacional ao invés de em cada um dos países em que pretende ver reconhecida patente.

No Brasil, o órgão que avalia se esses pedidos de concessão enqua-dram-se nos parâmetros da patenteabilidade é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI.

Como já mencionado, para que uma invenção seja considerada mere-cedora de uma patente devem estar configuradas a novidade e a atividade inventiva, bem como a possibilidade de sua aplicação industrial.

A novidade. Uma invenção é considerada nova quando o público ainda não tomou conhecimento de sua existência, não sendo aquela divulgada de qualquer forma, seja escrita ou falada. Em outras palavras, a novidade está presente se a invenção examinada não possui precedentes, se “experts

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não são capazes, pelos conhecimentos que possuem, de descrever o funcio-namento de um objeto, o primeiro a fazê-lo será considerado o seu inventor” (ULHOA, 2009, p. 150).

A Lei nº 9.279/96, ao tratar da definição desse requisito, lançou mão do conceito de estado da técnica. Para aquela, uma invenção é considerada nova quando não está presente no estado da técnica ou conjunto de infor-mações disponíveis ao público em data anterior à do depósito do pedido de uma patente. In verbis:

Art. 11. A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica.

§ 1º O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17.

O Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes – PCT de 1970 dispõe sobre a novidade e o estado da técnica de maneira semelhante:

Artigo 33

Exame preliminar internacional

2) Para os fins do exame preliminar internacional, a invenção cuja protecção é solicitada é considerada como nova desde que não exista anterioridade no estado da técnica tal como é definido no Regulamento de Execução.

Existem exceções à regra, contidas no art. 12, da Lei nº 9.279/96, segundo as quais um invento não entra para o estado da técnica mesmo tendo sido divulgado. Dentre elas, pode-se mencionar a situação de um inventor que divulga seu próprio invento em, por exemplo, congressos, artigos, etc.. Nes-se caso, o inventor dispõe de um período de graça de doze meses para fazer o pedido de concessão de patente perante o INPI.

A atividade inventiva. Para ser patenteável, uma invenção não pode decorrer de forma óbvia, evidente, para um técnico ou especialista na maté-ria – não necessariamente um expert ou alguém com conhecimentos acima do normal no assunto. Ou seja, não possui atividade inventiva aquela cria-ção que poderia ter sido deduzida por quaisquer outros técnicos ou especia-

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listas no assunto, uma criação que não exigiu grandes esforços intelectuais de seus responsáveis.

Sobre o requisito, a Lei n 9.279/96 assim dispõe:

Art. 13. A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica.

Por exemplo, não é passível de ser patenteada uma invenção decorrente de mera justaposição, montagem de processos e produtos já conhecidos ou de simples mudança de forma, dimensões. A não ser que, quando examinada pelo seu todo, obtenha-se um efeito técnico diferencial, não previsível.

Seguindo esse entendimento, quando dois objetos possuem disposições diferentes, mas apresentam as mesmas condições de aplicação ou o mesmo uso prático, pode-se dizer que o objeto mais recente não possui ato inventivo. Isso, pelo fato de ter sido realizado de forma óbvia, em relação ao primeiro (BLASI, 2010, p. 204).

A aplicação industrial. Uma invenção tem aplicabilidade industrial quando é suscetível de fabricação ou uso industrial, independentemente do tipo de indústria a que se refere. Estão excluídas desse conceito, as invenções inúteis ou aquelas que, em decorrência da ausência de conhecimentos su-ficientes no estado da técnica para materializá-la, não seja passível de apli-cação.

Concluindo pela configuração dos requisitos supramencionados, o INPI deferirá o pedido de concessão de patente, publicando-o na Revista da Propriedade Industrial – RPI. A partir daí, o INPI aguardará por 60 dias pelo pagamento e comprovação da retribuição devida, correspondente à expedi-ção da Carta-Patente.

No tocante aos produtos e processos farmacêuticos, entretanto, a Lei nº 9.279/96 impõe outra exigência, que será tratada no próximo tópico: a prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA.

3. Art. 229 – C: a prévia anuência da ANVISA

Desde a inclusão, pela Lei nº 10.196/2001, do art. 229-C à Lei de Pro-priedade Industrial, que dispõe sobre a necessidade de prévia anuência da ANVISA para a concessão de patente a um produto ou processo farmacêu-tico, muito se discutiu sobre a constitucionalidade e a abrangência dessa disposição.

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Dentre os argumentos contrários à nova exigência, está o de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária estaria assumindo funções que fo-ram legadas ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, em uma espé-cie de segundo exame dos requisitos legais da novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, quando deveria limitar-se a sua competência legal, ou seja, examinar se os fármacos representam riscos à saúde pública.

Contrário à atuação da ANVISA, foi proposto o Projeto de Lei nº 3.709/2008, que visa restringir a anuência da ANVISA às chamadas pa-tentes pipeline. Em 16 de maio de 2012, foi determinado que a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio – CDEIC realizasse Audiência Pública para discutir o projeto, a qual, em meados de agosto de 2012, ainda não ocorreu.

Em 16 de outubro de 2009, através do Parecer nº 210/PGF/AE/2009, a Procuradoria-Geral Federal concluiu não ser atribuição da ANVISA, em sua análise de anuência prévia, analisar também os critérios novidade, ativi-dade inventiva e aplicação industrial. Para a PGF, essa seria uma atribuição seria própria do INPI. Desse modo, em sua anuência prévia, a ANVISA deve atuar nos limites de sua competência, ou seja, com o escopo de impedir a produção e a comercialização de produtos e serviços potencialmente noci-vos à saúde humana.

Não conformada com o teor do parecer, a ANVISA aviou pedido de reconsideração. O Advogado-Geral da União, ministro Luís Inácio Lucena Adams, então, aprovou parecer que reforçou o Parecer nº 210/PGF/AE/2009, confirmando as competências da ANVISA e do INPI, cabendo ao instituto a análise do cumprimento dos requisitos legais de patenteabilidade e, à agên-cia reguladora, a avaliação da segurança e eficácia do medicamento.

Mais recentemente, através da Portaria do MS/MDIC/AGU nº 2.584/2011, foi instituído um Grupo de Trabalho Interministerial com o fim de analisar e sugerir o estabelecimento de critérios, mecanismos, procedi-mentos e obrigações para articulação entre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial no tocante ao cumprimento do disposto no art. 229-C, além de sugerir os possíveis instru-mentos formais para a sua execução.

O GTI foi composto por representantes do Ministério da Saúde (MS), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), da Advocacia-Geral da União (AGU), da Agência Nacional de Vigilância Sa-nitária (ANVISA), e do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), e coordenado pelo Ministério da Saúde.

Em 19 de janeiro de 2012, foi publicado o Relatório de análise e su-gestão de critérios, mecanismos, procedimentos, obrigações e possíveis ins-trumentos formais para articulação entre a ANVISA e o INPI, segundo o qual caberia àquela, de acordo com sua capacitação técnico-científica e com

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base em critérios pertinentes e relevantes à anuência prévia, avaliar o im-pacto do produto ou processo farmacêutico à luz da saúde pública e com foco nos princípios que norteiam a organização do Sistema Único de Saúde no Brasil.

Com o escopo de evitar, mais uma vez, a ocorrência de conflitos quan-do da não anuência prévia de um medicamento pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Grupo de Trabalho Interministerial elaborou esclare-cedor fluxograma da análise dos pedidos de patente, na qual restaram bem ordenadas as atuações das duas autarquias. Ei-lo:

Figura 1: Fluxo de Análise para Pedidos de Patentes, envolvendo Anuência Prévia, de Pro-dutos e Processos Farmacêuticos.

4. O que são os medicamentos me too?

Essa denominação pode ser desconhecida para os leigos, mas, para os pro-fissionais e pesquisadores envolvidos com a saúde, ela é bastante difundida e envolve uma ferrenha polêmica entre aqueles a favor e contra esse tipo de remédios.

Medicamentos me too, ou, medicamentos de imitação1, são aqueles que possuem qualidades terapêuticas idênticas ou semelhantes às

1. Os me too não devem ser confundidos com os genéricos ou os similares. Ainda que estes possam ser considerados cópias, eles apenas são comercializados após a decadência da patente do medicamento de referência. Nem medicamentos genéricos nem similares dispõem, como os me too, de uma nova proteção patentearia. Segundo a Lei nº 9.787/99: “XX – Medicamento Similar – aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado

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de algum outro que já está no mercado, ou seja, a um medicamento que já foi beneficiado por uma patente. Observe-se que, apesar de possuírem os mesmos efeitos, para que esse medicamento consiga uma nova patente, é preciso que a molécula seja diferente da do remédio que lhe precedeu.

Partindo dessa ideia, pode haver dois caminhos para se chegar a um medicamento me too: a modificação de uma molécula que compõe um re-médio já existente ou a criação de uma molécula totalmente nova. Ambos os caminhos, entretanto, devem incorrer em medicamentos com qualidades terapêuticas idênticas ou semelhantes às de medicamentos passados.

Nas palavras de Vikash Kumar e Balvinder Singh, do Shri Baba Mast-nath Institute of Pharmaceutical Sciences & Research:

Uma droga que seja estruturalmente muito similar a drogas já conhecidas, apenas com diferenças mínimas, é chamada de Me-too drugs. Vários exemplos podem ilustrar esse fenômeno: propranolol foi seguido do atenolol, do metoprolol, do esmolol, do labetalol, do timolol, do carvedilol, etc; o cimetidine foi seguido do fmotidine, do nizatidine e outros; sumatriptan foi seguido do narratriptan, do almotriptan, do rizatriptan, do zolmitriptan,etc; losartan foi seguido do candesartan, do valsartan, do telmisartan, etc. 2

Se, normalmente, discute-se bastante que níveis de inovação e de ganhos em qualidades terapêuticas envolvem esses medicamentos, uma coisa é certa: os medicamentos me too já dominam o setor farmacêutico em relação aos medicamentos breakthrough, ou, medicamentos de referência, aqueles que são os primeiros de sua linha.

no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca; XXI – Medicamento Genérico – medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI; XXII – Medicamento de Referência – produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto ao órgão federal competente, por ocasião do registro”.

2 . KUMAR, Vikash. SINGH, Balvinder. “Me-too drugs” – A Tiny Revolutionize. Disponível em: <http://www.pharmainfo.net/reviews/me-too-drugs-tiny-revolutionize>. Acesso em: 9 junho, 2008.

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Para se ter uma ideia, entre 1975 e 1985, 508 drogas foram lançadas no mercado mundial. Dessas, estima-se que 398 não representariam verda-deiras inovações e apenas 35 estavam dotadas de nova estrutura e de maior eficiência terapêutica (BARRAL, apud BARROS, 2004, p. 29.).

Tomando como base a aprovação de medicamentos da Food and Drug Administration entre 1998 e 2002, das 415 “novas” drogas aprovadas, so-mente 14% consistiam, realmente, em inovação. Nove por cento delas, por sua vez, eram drogas antigas que, modificadas de alguma forma, para a FDA, consistiram em aperfeiçoamento significativo. Os outros 77% não pas-saram de medicamentos de imitação, classificados como de mesmo nível de medicamentos já disponíveis no mercado para o tratamento de idêntica condição (ANGELL, 2010, p. 92).

Com o passar dos anos, a criação de medicamentos completamente inovadores está cada vez mais rara, fato este que se agrava quando somado ao término eminente da exclusividade na exploração de medicamentos mais antigos. Nesse contexto, a indústria farmacêutica encontrou nas drogas me too um meio de estenderem o seu monopólio de exploração.

Mas os me too não são apenas uma forma de prorrogar indiretamente as patentes de laboratórios que já detinham essa exclusividade. Esses medi-camentos também fazem parte de prática bastante difundida pelos laborató-rios concorrentes ao laboratório responsável pelo medicamento de referên-cia, especialmente quando este se trata de uma droga campeã de vendas.

Normalmente, algum tempo depois do lançamento de um remédio de referência, uma onda de medicamentos de imitação entra no mercado. Eles só precisam ser suficientemente diferentes em sua composição, e não em seus efeitos terapêuticos, para gerar o direito a uma patente.

Nesses casos, há quase que um “ciclo de vida” que se repete após o início da comercialização de um medicamento de referência. Num primeiro momento, o laboratório que lançou este desfruta de um completo mono-pólio, uma vez que não existem outras drogas que se assemelhem àquele. Esse período finda quando são patenteadas versões “adicionais” da droga, os medicamentos me too. Quando, finalmente, a patente do remédio de referência se extingue e a fórmula deste pode ser reproduzida livremente, entram em cena os medicamentos genéricos3.

Em 2004, a ANVISA, autarquia a qual cabe avaliar os pedidos de pa-tente no tocante à segurança e à eficácia, expôs seu posicionamento em relação aos remédios considerados me too, nos seguintes termos:

3. CHADHA, ALKA. BLOMQVIST, AKE. Patent races, “me-too” drugs and generics:

a developing-world perspective. Disponível em: <http://www.fas.nus.edu.sg/ecs/pub/wp/

wp0513.pdf>. Acesso em: 14 agosto, 2012.

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Para esclarecer ao setor regulado, a membros da academia e a seus próprios consultores ad hoc sobre os seus critérios de avaliação para registro de medicamentos novos considerados como me-toos, a Anvisa, por meio da Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos (GEPEC), divulga o seguinte posicionamento, o qual se respalda, em parte, em parecer da Câmara Técnica de Medicamentos (CATEME), seu órgão consultivo:

Não há consenso sobre o que seja um medicamento me-too, muito embora esta denominação seja de uso comum na literatura internacional, e diversos artigos sobre o tema possam ser encontrados utilizando-se este termo como palavra-chave em pesquisas em bancos de dados como o Medline. Neste contexto, entende-se como me-too um medicamento que embora seja apresentado como inovador não acrescenta nenhum benefício claro, no que diz respeito aos seus perfis de eficácia e segurança, em relação a outros medicamentos já registrados. Por esta definição não são, portanto, considerados como me-toos os medicamentos genéricos ou similares.

Existem correntes que defendem que medicamentos classificáveis como me-toos não devam ser registrados, tendo em vista que nada acrescentariam ao que já é disponível no mercado e teriam a desvantagem de não possuir o mesmo acúmulo de evidência de sua segurança. Por esse raciocínio, esses produtos apenas contribuiriam para um inchaço desnecessário do mercado.

A Anvisa, porém, diverge desta visão, por considerar difícil, ou mesmo impossível, classificar um medicamento como me-too no momento de seu registro, já que alguns atributos que permitiriam que se fizesse essa qualificação só podem ser verificados depois da comercialização e utilização em larga escala do produto. Entre esses atributos podem ser citados a ocorrência ou não de eventos adversos raros, a identificação de subgrupos de indivíduos que potencialmente se beneficiariam do novo medicamento de forma diferenciada e a descoberta de novas

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indicações terapêuticas para esse medicamento em particular.

Para a Agência, a dificuldade de se classificar um produto como me-too no momento de seu registro impossibilita o estabelecimento de regras que regulem o registro de medicamentos sob tal ótica. Além disso, a legislação brasileira vigente não subsidia o indeferimento de pedidos de registro de medicamentos por este argumento. Por esses motivos, a Anvisa não faz restrição a analisar pedidos de registro de medicamentos que, preliminarmente, pareçam ser me-toos e nem respalda o indeferimento de tais pedidos por este motivo.

Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos4

Não é tão simples. Para que um medicamento passe a ser comercializa-do, faz-se necessário o registro perante a ANVISA. E, para tanto, exige-se que sejam feitos testes tanto de qualidade quanto eficácia, bem como sejam apontados os principais riscos para a saúde por meio dos efeitos colaterais nocivos inerentes às drogas.

O registro de um medicamento envolve diversas fases de testes. Pri-meiramente, após o teste de uma nova molécula in vitro, há a fase pré-clí-nica, na qual as novas – em princípio – moléculas são testadas em animais. Posteriormente, inicia-se a fase clínica, procedendo-se aos testes em seres humanos, o que engloba cerca de três subfases que devem acontecer de forma sucessiva.

Na primeira, a molécula é testada em até 100 pessoas, com o fim de estabelecer uma evolução preliminar da segurança e do perfil farmacociné-tico daquela. Na segunda, os testes são realizados em até 200 pessoas, tendo como um dos seus objetivos avaliar a eficácia terapêutica e a confirmação da segurança do novo medicamento. Já na terceira, a molécula deve ser testa-da em, no mínimo, 800 pessoas e tem como objetivo determinar o resultado do risco/benefício a curto e longo prazos das formulações do princípio ativo e, de maneira geral, o valor terapêutico relativo.

4. ANVISA. Posicionamento da Anvisa quanto ao registro de medicamentos novos considerados como me-toos. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/Inicio/Medicamentos/Assunto+de+Interesse/Medicamentos+novos/Posicionamento+da+Anvisa+quanto+ao+registro+de+medicamentos+novos+considerados+como+me-toos>. Acesso em: 13 agosto, 2012.

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O que acontece é que, nesses testes clínicos, muitas vezes determi-na-se a eficácia dos futuros medicamentos em comparação unicamente a placebos e não a remédios já existentes no mercado, o que, de fato, impede que se tenha dados comparativos de qualidade para analisar estes últimos em relação os me too.

Tais considerações levam, inevitavelmente, a uma questão: se os me too não envolvem padrões de inovação ou benefícios terapêuticos superiores aos produtos em que se basearam por que eles são receitados?

Um dos motivos para o sucesso desses remédios pode ser resumida num simples ditado popular: a propaganda é a alma do negócio. Somen-te em 2003, estima-se que a indústria farmacêutica tenha gasto cerca de U$25.3 bilhões em propaganda de remédios5. Esse número pode parecer grande, mas é um preço quase que ínfimo a se pagar quando comparado ao faturamento de U$503 bilhões do mercado farmacêutico em 20036.

Para impulsionar as vendas dos medicamentos me too, os laboratórios farmacêuticos investem pesadamente nos setores de marketing e propagan-da. Esses remédios são, em sua maioria, patenteados e vendidos ao grande público como uma conquista revolucionária para a medicina e o setor far-macêutico.

Divulgados como grandes inovações, os remédios me too acabam por conquistar o mercado consumidor, ignorante da existência de outros remé-dios que produzem, basicamente, os mesmos efeitos que os me too e, ao mesmo tempo, menos onerosos que estes.

5. Do Prilosec ao Nexium

O Nexium é um medicamento da propriedade do laboratório farmacêutico inglês, o AztraZeneca. Coincidentemente ou não, o Nexium foi lançado em 2001 nos EUA, quando a patente do Prilosec, a famosa pílula roxa, também pertencente ao AztraZeneca, estava próxima de expirar (em abril de 2001).

O que mais, além do laboratório farmacêutico, esses dois possuem em comum? Ambos são medicamentos do tipo inibidor de bombas de prótons destinados a combater a azia gastrintestinal e possuem praticamente os mesmos efeitos terapêuticos. Ambos possuem em sua fórmula a forma ativa

5. SPECTOR, Rosanne. Me-too drugs. Sometimes they’re just the same old, same old. Disponível em: <http://stanmed.stanford.edu/2005summer/drugs-metoo.html>. Acesso em: 15 maio, 2012.

6 . IMS HEALTH. Total unaudited and audited global pharmaceutical market, 2003 – 2011. Disponível em: <http://www.imshealth.com/ims/Global/Content/Corporate/Press%20Room/Top-Line%20Market%20Data%20&%20Trends/2011%20Top-line%20Market%20Data/Global_Pharma _Market_ by_Spending_2003-2011.pdf>. Acesso em: 14 agosto, 2012.

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da molécula do omeprazol. Em outras palavras, o Nexium é o medicamento me too que sucedeu o Prilosec, perpetuando para o AstraZeneca o imenso faturamento alcançado deste último – cerca de 6,1 bilhão de dólares tanto em 2000 quanto 2001 (OHLY, 2008, p. 6)7.

Anos antes de a patente do Prilosec expirar, o AstraZeneca deu início a estudos com o intuito de encontrar uma saída para esse acontecimento inevitável. Mas essa saída não seria criar um remédio inovador. Com o mer-cado consumidor tão grande e de lucros certos como era o do Prilosec, o que o AstraZeneca queria era um novo medicamento para assumir a posição da pílula roxa como um dos seus produtos mais vendidos. E essa solução foi encontrada no Nexium, ou melhor, no meio-Prilosec.

Para explicar como se deu esse estratagema do AstraZeneca, antes faz-se necessário deter-se em aspectos mais específicos da Química. Algu-mas moléculas são chamadas de enantiômero por constituírem a imagem no espelho de outra molécula. Idênticas em suas fórmulas estruturais – os mesmos átomos, na mesma ordem, submetidos às mesmas ligações quími-cas - mas que não se sobrepõem uma à outra. A mistura dessas moléculas é denominada de mistura racêmica.

Pois bem. O Prilosec é composto da mistura racêmica da substância chamada omeprazol, sendo que um desses enantiômeros possui uma forma ativa e, o outro, inativa, inerte. Já o Nexium é composto apenas do enantiô-mero de forma ativa do Prilosec, chamado de esomeprazol (ANGELL, 2004, p. 94).

Ou seja, o que o AstraZeneca fez foi, simplesmente, separar a mis-tura racêmica. Inexiste nesse remédio a novidade ou mesmo a atividade in-ventiva, exigidas no Acordo TRIPs – e na legislação brasileira. Entretanto, ao invés de ser indeferido o pedido em razão da ausência de inovação, a “modi-ficação” na molécula do Prilosec foi considerada suficientemente diferente pelo FDA para que o Nexium obtivesse uma patente – e pelo INPI, visto que ambos os medicamentos aqui mencionados são comercializados no Brasil. Tudo isso em evidente dissonância com os requisitos estabelecidos em lei para a concessão de uma patente de inovação.

Mas, mesmo conseguindo a patente, o AstraZeneca precisaria ainda conseguir a aprovação da FDA para a comercialização do Nexium como um medicamento, precisando esse laboratório demonstrar um aumento, ainda que mínimo, dessa droga em relação a sua antecessora.

Nesse sentido, foram realizados cerca de quatro estudos, promovidos financeiramente pelo próprio AstraZeneca. Neles foram comparadas as do-

7. OHLY, Christopher. Omeprazole is over - or nearly so. Disponível em: <www.schiffhardin.com>. Acesso em: 8 agosto, 2012.

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sagens de 20mg de Prilosec contra 40 mg do futuro Nexium8 - disparidade essa que pode ter viciado esses testes. Dois desses estudos demonstraram que 40 mg de Nexium apresentavam uma taxa de cura melhor que 20 mg de Prilosec. Mas, surpreendentemente, mesmo com dosagens mais eleva-das, nos outros dois estudos, o Nexium não se provou melhor! Coincidente-mente, apenas os dois estudos a favor do Nexium foram publicados9.

Num outro estudo, porém, esses dois medicamentos foram compara-dos em dosagens iguais. Nas primeiras quatro semanas, não foi encontrada qualquer diferença, mas, após oito semanas, o Nexium apresentou uma taxa de cura de 90% contra 87% do Prilosec. Isso mesmo, a superioridade de apenas 3% foi suficiente para que o Nexium passasse a ser comercializado10.

Com uma “superioridade” pequena como essa, o que levariam médi-cos a receitar o Nexium em detrimento do Prilosec – sendo este mais barato para o paciente e com taxas de cura semelhantes às daquele?

O investimento pesado na campanha publicitária do Nexium - envol-vendo uma avalanche de anúncios, distribuição de amostras grátis a médi-cos, descontos para administradoras de planos de tratamento e hospitais e, principalmente, preço inicial do Nexium estrategicamente inferior ao do Prilosec - é uma das razões (ANGELL, 2010, p. 94). Segundo o IMS Heal-th, estima-se que o AstraZeneca gastou cerca de 478 milhões de dólares na promoção do Nexium no ano de seu lançamento, em 200111.

Fato é que, em pouco tempo, o Prilosec pareceu cair no esquecimento ao mesmo tempo em que o Nexium ascendia às suas custas como – alega-damente - um medicamento completamente inovador, quando, na verdade, é apenas um desdobramento daquele outro.

Mas o Nexium é só mais um dos medicamentos representantes da estratégia da indústria farmacêutica para conseguir mais alguns anos de proteção patentearia de um mesmo medicamento, estratégia essa difundida entre os laboratórios farmacêuticos num geral, não só o AstraZeneca.

8. A disparidade nas dosagens se deu em razão de o AstraZeneca pretender aprovar o Nexium para combater a esofagite erosiva, condição para a qual o Prilosec tinha uma dosagem de 20 mg.

9. HARRIS, Gardiner. Prilosec’s Maker Switches Users To Nexium, Thwarting Generics.Disponível em: <http://online.wsj.com/article/SB1023326369679910840.djm.html>. Acessado em: 8 agosto, 2012.

10. Idem.

11. SWIDEY, Neil. The Costly Case of the Purple Pill. Disponível em: <http://home.

comcast.net/~neilswidey/pill.htm>. Acessado em: 9 agosto, 2012.

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Assim como o Nexium, existem muitos outros medicamentos me too. Alguns exemplos são o Clarinex, da Schering-Plough, medicamento an-tialérgico que substituiu o Claritin quando a patente deste expirou em 2002; as estatinas, destinadas a combater o aumento do colesterol, que possuem no mercado o Mevacor, da Merck, o Lipitor, da Pfizer, o Pravacol, da Bris-tol-Myers Squibb, o Lescol, da Novartis e, mais recentemente, o Crestor, da AstraZeneca; o Prozac, da Eli Lilly, inibidor seletivo de receptação de sero-tonina - ISRS (antidepressivos), que possui como competidores me too o Paxil, da GlaxoSmithKline, o Zoloft, da Pfizer, o Celexa e o Lexapro, ambos da Forest Laboratories; entre outros.

Os medicamentos me too passaram a inundar o mercado nas últimas décadas. E por que seria diferente? Afinal, se os laboratórios farmacêuticos podem assegurar seus altíssimos lucros, em um mercado consumidor já consolidado e seguro, operando apenas a transferência dos pacientes de um medicamente para outro quase idêntico, por que optariam pelo caminho mais difícil e dispendioso – o desenvolvimento de drogas realmente inova-doras?

Poder-se-ia alegar, em benefício dos medicamentos me too repre-sentam a possibilidade de ampliação do conhecimento das mais variadas qualidades terapêuticas de determinada molécula. Mas, da forma como os laboratórios farmacêuticos vêm lidando com os medicamentos me too, per-cebe-se que há uma nítida tendência dessas grandes empresas de investi-rem nesse setor com a finalidade única de perpetuar seus lucros através da proteção patentearia de medicamentos-desdobramento de outros, esque-cendo o objetivo maior desse setor: a saúde.

Referências

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Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula

vinculante nº 11 do STF

Deyvid Braga Ferreira e Lívya Ramos Sales Mendes de Barros

Faculdade Raimundo Marinho

1. Introdução

O direito é a ciência da palavra. Palavra essa, que no decorrer da história atenderá aos anseios de um grupo seleto, detentor do poder político, e que necessita/precisa de regramentos para que possa não só desenvolver-se eco-nomicamente, mas socialmente.

Essa forma de controle normativo nasce da necessidade da classe po-liticamente dominante de planificar, de definir, de pautar as formas de con-duta que seriam socialmente aceitáveis em determinado momento históri-co, refletindo e refratando a sua forma de dominação.

Esse cenário de criação normativa, falando especificamente no Bra-sil, será expresso de forma singular pela nossa carta política fundamental (constituição). A eleição dessa norma, segue a teoria da “hierarquização normativa”, que determina que a constituição será a lei maior da nação, sendo todas as outras leis dela decorrente. Com isso, cria-se um maior pres-tígio para o que está contido nessa lei (constituição), do que nas outras, de modo que todo ordenamento jurídico seja balizado por tal norma, onde o seleto grupo dominante que patrocina “os representantes da nação” terá um maior controle sobre o que é interessante ou não para manutenção de seu projeto de sociabilidade.

Isso, essa forma de controle, irá perpassar todos os momentos cons-titucionais brasileiros, cada qual sendo subserviente a classe politicamente dominante e detentora do “comando estatal”. Nesses momentos, eleger-se--á a valoração que cada direito ofertado aos brasileiros terá.

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Entretanto, é necessário que tal “lex mater” tenha um guardião, de preferência um colegiado de guardiões, que visem protegê-la de quaisquer intempéries capazes de abalar não só sua estrutura, mas a credibilidade que lhe dá sustentação. Esse guardião será o STF, nosso tribunal constitucional.

Como fora dito alhures, diante das relações sociais de interação en-tre os seres humanos, as pautas de condutas sociais serão paulatinamente postas a prova não só a seus destinatários mediatos (a sociedade de uma forma geral), mas a quem essa legislação atende diretamente (classes mais abastadas). Para isso, questionam-se os órgãos integrantes do poder judiciá-rio, como se a subir por uma escada, até o cume de sua elevação, desaguar de forma peticionária no STF. Lá, ao ser apreciada, os fatos da vida, foram transformados em um conjunto de palavras (petição), que serão submetidas a adequação ou não de seu Guardião Supremo (STF).

Buscando desvelar como os julgados significam, é essencial possuir-mos uma metodologia que compreenda a língua além de um fenômeno es-tanque, homogeneizado. É por isso que a Análise do Discurso é um cami-nho para a compreensão desta questão. Ela (a AD) não elege a língua, a gramática, ou qualquer enunciação monológica isolada ou quaisquer atos psicofisiológico de reprodução. Ela elege o discurso.

E o discurso, nada mais é que uma pratica da linguagem, onde a pa-lavra está em movimento, fazendo sentido, filiando-se e fazendo filiar-se a outros discursos e buscando inserir o homem no contexto sócio histórico de produção e reprodução de sua própria vida, como sujeito ativo e/ ou passivo de/ em uma comunidade. Mas para que conseguisse tal intento, a AD preci-sou romper com pesquisas, trilhas teóricas e a própria epistemologia vigentes até então. Vejamos nossa delimitação, com os pontos de sincronia.

2. A Súmula Vinculante nº11 do STF

2.1 A análise do discurso de vertente francesa

A Análise do Discurso, fundada por M. Pêcheux apoia-se na perspectiva marxista, adotando como conceitos centrais sujeito, historia e ideologia. É sua filiação ao materialismo histórico e dialético que oferecerá uma possi-bilidade de ruptura epistemológica com o atual quadro vigente das análises da língua, tributárias de Saussure. Essa teoria científica (o materialismo histórico) advoga que a evolução do ser humano não pode ser entendida desvinculando-se da economia da história. Ou seja, o estudo das sociedades, em cada momento histórico (escravismo, feudalismo e capitalismo), deve ser atrelado ao estudo da situação econômica dada.

Para nós, o discurso é a língua posta em funcionamento por sujeitos inscritos em uma sociedade estratificada por classes sociais, onde este se utiliza de um conjunto de signos e significações que estão a sua disposição, para mantença e reprodução de sua vida em sociedade. É nesse sentido,

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que conforme fora demonstrado em Pêcheux, haverá uma tridimensiona-lidade epistemológica nas regiões de confluência: o sujeito, a historia e a ideologia (Língua, História e Ideologia).

O discurso será efetivado pela historia na qual se produziu, que se uti-lizou da linguagem para ser externado, onde a ideologia é o caminho de sua constituição/ materialização, que “possui o poder de (re) significar o já dito é instituir uma nova memória discursiva”, uma vez que não é concebível sua neutralidade ou pureza1”.

É nesse sentido que não existe um novo (o discurso “inédito”). Todo discurso é constituído sob a base de outros já existentes, sendo atravessado por outros que já existiram ou que virão a ser externados.

Para que possamos adentrar em nosso objeto de análise, a Súmula Vinculante nº 11, precisaremos desenvolver uma das categorias da Análise de Discurso, que será a ideologia e as formações ideológicas.

2.2 Ideologia e formações ideológicas

Iremos agora, delimitar nosso campo teórico-metodológico quanto ao con-ceito de Ideologia e Formações Ideológicas. Para Bakhtin (2006), em cada época, e, por ventura em cada grupo social constituído, ali existirão em seu repertório discursivo formas de comunicação que terão fundamentos não só sociais, mas, ideológicos.

Assumimos a tese de que o discurso é tridimensional, compreendendo em suas regiões: o sujeito, a história e a ideologia. Agora, para entendermos como essas categorias se relacionam no discurso, é interessante compreen-dermos dentro da perspectiva teórica da AD, o que é ideologia e o que são formações ideológicas, com base nos estudos de seu fundador, M. Pêcheux.

É assente que desde o seu nascimento, a significação de Ideologia tem passado por diferentes prismas teóricos, passíveis de variadas formas interpretativas2, que tanto podem remeter o leitor a uma perspectiva gno-siológica (Althusser), quanto a uma perspectiva ontológica (Marx e Lukács).

A questão do conhecimento tem recebido diferentes formas de recep-ção e preocupações ao longo do tempo. Somente com os empiristas e ra-cionalistas é que haverá relevância nas pesquisas de cunho filosófico. Por conhecimento, deve ser entendida a ação compreendida quando um ser (sujeito que busca conhecer) domina um objeto (o objeto do conhecimen-

1. Pureza aqui é sinônimo de inocência. Pois a partir do momento que o discurso é externado,

seu autor o faz de um lugar social para os ouvintes de outro lugar social, com base em suas

próprias ideologias e convicções, fazendo censuras a sua externalização (ponderar sob o

que pode ser dito e o que não pode ser dito).

2. Para maior aprofundamento, ver: Abbagnano, 2007

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to). É assente a indissociabilidade ente o sujeito e o objeto, sendo que seus papeis podem ser díspares, conforme a posição filosófica que se adote. Por isso é importante demarcarmos nossa filiação teórica acerca desta temática.

Ao falarmos de Gnosiologia e Ontologia, precisamos demarcar nosso entendimento acerca desses conceitos. A perspectiva teórica da gnosiologia (do grego gnosis, conhecimento, e logos, teoria, ciência), nos mostra que a validade de qualquer conhecimento, está intrinsecamente relacionada em razão do sujeito que o recebe (o conhecimento).

Já a perspectiva teórica da ontologia (do grego onto, ser, e logos, teoria, ciência) nos mostra que é a forma como este conhecimento é assimilado pelo ser, o seu destino e o implicamento de toda historicização deste conhe-cimento e como tal conhecimento é passado no curso da existência huma-na, que se mostra importante.

O termo Ideologia teve como criador “Destut de Tracy”, com sua obra “Elements de Idéologie3”, datada de 1801. Seu conceito foi proposto para designar “a análise das sensações e das ideias”, com isto, buscou-se analisar a faculdade de pensar, subsistindo tal instituto como fundamento de todas as ciências. Elabora-se uma ciência voltada a gênese das ideias, tratando-as como fenômenos naturais capazes de exprimir o relacionamento do meio em que se vive com o corpo humano. Embora considere importante conhe-cer todas as diferentes acepções do termo, não nos ocuparemos disso nesse trabalho.

Iniciaremos com a perspectiva assumida por Pêcheux, em seus diver-sos ensaios frente à tentativa de “materializar” um conceito de ideologia que lhe desse suporte para a cisão com a linguística e propiciasse instrumentos científicos para a criação de uma ciência autônoma, a Análise do Discurso. Apropria-se inicialmente, dos conhecimentos de seu iniciador no Laborató-rio de Pesquisas da Universidade de Paris VIII – Louis Althusser.

Althusser4, na sua obra Aparelhos ideológicos de Estado, no capítulo onde fala da “reprodução da força de trabalho5”, busca traçar um perfil de como se concebe a sua produção e a reprodução (da força de trabalho).

Ela (a força de trabalho) será reproduzida através da contraprestação fornecida pelo empregador ao empregado, pela venda/ exploração de sua força de trabalho (salário), que será seu meio material de reprodução. É bem verdade que o salário é uma parcela “ínfima” paga a “força de trabalho” pelos seus gastos, para que este se reconstitua consumindo (educação, capacita-ção, alimentos, roupas, moradia...). Entretanto, afirma Althusser, (2003)

3. Elementos de Ideologia.

4. Em seus estudos intitulados: Aparelhos Ideológicos de Estado.

5. Para um maior aprofundamento, sugiro: NETTO, José Paulo& BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo, Editora Cortez.

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Não basta assegurar à força de trabalho as condições materiais de sua reprodução para que se reproduza como força de trabalho. Dissemos que a força de trabalho disponível deve ser competente, isto é, apta a ser utilizada no sistema complexo de produção. O desenvolvimento das forças produtivas num dado momento determina que a força de trabalho deva ser (diversamente) qualificada e, então, reproduzida como tal. Diversamente, conforme as exigências da divisão social-técnica do trabalho, nos seus diferentes ‘cargos’ e ‘empregos’ (p. 57).

Essa qualificação dar-se-á de forma diferente ao quadro dos idos mais anti-gos. Antes se aprendia os ofícios e suas qualificações no próprio “lócus” de exploração. Hoje em dia, aprende-se na escola, as regras “que assegurem a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua prática”, de modo que os “agentes da divisão do trabalho” saibam exatamente seu local de trabalho (de comando ou de comandado) e de como se expressar e ser entendido. Isto se deve ao fato de que, segundo o referido autor,

A reprodução da força de trabalho não exige somente uma reprodução de sua qualificação, mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua submissão às normas vigentes, isto é, uma reprodução da submissão dos operários a ideologia dominante por parte dos operários e uma reprodução da capacidade de perfeito domínio da ideologia dominante por parte dos agentes da exploração e repressão, de modo a que eles assegurem também, pela palavra, o predomínio da classe dominante (p. 58).

É neste sentido que se deve atrelar a reprodução da força de trabalho, não só ao conceito de Estado entendido por Althusser. O Estado, conforme tra-tado pela “teoria marxista” 6, será uma engenho repressivo, capaz de manu-tenir a classe dominante no poder (grandes senhores de terra do século XIX e a burguesia), submetendo a classe dominada a exploração capitalista, com o fito de obter lucros cada vez maiores.

É preciso, para que tal objetivo seja colimado, que o Estado disponha de mecanismos, de aparelhos para que seu “curral exploratório” mantenha-se sob o seu “cabresto”. Tais mecanismos são o Aparelho Repressivo do Estado

6. Opus citat, p. 62.

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(ARE7) e o Aparelho Ideológico do Estado (AIE8). Assim, a distinção que ficaria mais evidente é que o ARE tem seu papel nodal no uso da coação, enquanto que o AIE tem seu funcionamento vinculado à ideologia.

Diz Althusser (2003),

O aparelho (repressivo) do estado funciona predominantemente através da repressão (inclusive física) e secundariamente através da ideologia. (Não existe aparelho unicamente repressivo). Exemplos: o Exército e a polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os valores por eles propostos. Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia e secundariamente através da repressão, seja ela bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica. (Não existe aparelho puramente ideológico). Desta forma, a escola, as igrejas moldam por métodos próprios [...] não apenas seus funcionários, mas suas ovelhas (p.70)

Dito isto, poderemos perceber que os ARE’s possuem a função precípua de garantir através da coação9 (física ou ideológica) a manutenção da ordem exploratória vigente, garantindo a continuidade política da força dominante onde o proletário subserve aos ditames da classe política elitizada vigente.

Com os AIE será diferente, pois enquanto os ARE detêm uma organi-zação centralizada, dirigido pelos representantes das classes dominantes, os AIE possuem uma organização múltipla, distinta, autônoma, que expressam os antagonismos entre a burguesia e o proletariado e forma mais gritante, com o escopo de reproduzir e legitimar as relações de subserviência entre exploradores e explorados, submetendo os indivíduos a ideologia predomi-nante no Estado.

7. São exemplos de Aparelhos Repressivos de Estado: o Governo, a Administração, o Exercito, a Polícia, os Tribunais, as Prisões...

8. São exemplos de Aparelhos Ideológicos do Estado: Religião (diferentes igrejas), Escola, Família, Jurídico, Político, Sindical, de Informação (imprensa), Cultural...

9. Por coação, entenda-se a possibilidade ou não do uso da coerção, da força. Esta (a força) pode ser de forma velada (ideológica – a simples presença da força policial ou do Exército já iria inibir qualquer atuação contrária ao regime) ou não (uso propriamente dito da força física, da repressão...).

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Para entendermos de que forma a ideologia atua no projeto de manu-tenção das classes dominantes e dominadas, devemos compreender, a partir das duas teses de Althusser formuladas sob o funcionamento e a estrutura da ideologia, como tais relações se efetivam. Em sua primeira tese, afirma que: “A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência10”.É nesse sentido, (Idem) que se observa

Não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os homens se apresentam na ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais nada, a sua relação com as condições reais de existência. É esta relação que está no centro de todas as representações ideológicas, e portanto imaginárias do mundo real. É nesta relação que está à causa que deve dar conta da imaginária da representação ideológica do mundo real (Althusser, 2003, p. 87).

Importante assinalar que quando o referido autor fala em “imaginá-rias”, não se quer com isto buscar algo abstrato, díspar da realidade, mas a forma pela qual o ser humano se faz representar em suas relações com a realidade visível, por meio de imagens. Essas imagens são as que o indivíduo produz de si mesmo frente às condições existências postas. Por exemplo: o certo e o errado, o bem e o mal...

Em sua segunda tese, afirma que: “A ideologia tem uma existência material11”. O palco onde essa existência atuará, será nos Aparelhos Ideoló-gicos do Estado (AIE).

Imaginemos um cristão. Mas não uma simples pessoa que apregoa o nome de Deus. Imagine uma pessoa professe “aos quatro cantos” seu amor pelo Deus descrito no Pentateuco hebraico. Sua crença provem da repre-sentação ideológica que a ideologia perfaz dos fatos ligados à existência es-piritual, bem como suas ideias enquanto sujeito possuidor de consciência, onde suas crenças manifestam-se como as ideias da ideologia com a qual se identifica, definindo seu comportamento materialmente visível.

O indivíduo em questão se conduz de tal ou qual maneira, adota tal ou qual comportamento prático, e, o que é mais, participa de certas práticas regulamentadas que são as do aparelho ideológico do qual depende as ideias que ele livremente escolheu, com plena consciência, enquanto sujeito. Se ele crê em Deus, , ele vai a Igreja assistir a

10. Opus citat, p. 85.

11. Opus citat, p. 88.

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missa, ele se ajoelha, reza, faz penitencia, se confessa... (Althusser, 2003, p. 90).

Após tais explanações, Althusser formula a sua tese central sobre a estru-tura e o funcionamento da ideologia: “A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos12”.

A categoria sujeito é constitutiva de toda a ideologia, mas ao mesmo tempo, e imediatamente, acrescentamos que a categoria de sujeito não é constitutiva de toda ideologia, uma vez que toda ideologia tem por função (é o que a define) constituir indivíduos concretos em sujeitos. É nesse jogo de dupla constituição que se localiza o funcionamento de toda a ideologia, não sendo a ideologia mais do que o seu funcionamento nas formas materiais de existência deste mesmo funcionamento (Althusser, 2003, p. 93).

É com base nesta teoria, que Althusser afirma ser possível, por intermédio do mecanismo da interpelação, a ideologia transformar os indivíduos em sujeitos, conduzindo-os a sua auto – sujeição,

A ideologia age ou funciona de tal forma que ela recruta sujeitos dentre os indivíduos (ela recruta a todos) ou transforma os indivíduos em sujeito (ela transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos de interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação [...] cotidiana (2003, p. 96).

Como vimos, para Althusser todas as ações do sujeito são determinadas pelo seu assujeitamento, que é total. Para nos, a questão do assujeitamento total defendido por Althusser deve-se ao fato de que ele comunga de uma visão gnosiológica do ser, “própria do neopositivismo e do irracionalismo pós-mo-derno, que hiperdimensiona o sujeito mesmo quando busca negá-lo” (Costa & Vasconcelos, 2011, p. 01).

Mas como se sustentar um assujeitamento total, em uma sociedade estratificada por classes sociais, onde a dicotomia burguesia x proletariado, reina? Em nosso entendimento, o assujeitamento é um fator parcial e nun-ca total. Encontramos respaldo para nossa posição em Lukács que analisa o fenômeno da ideologia sob o fundamento ontológico-prático. Segundo Vais-man (1989)

12 . Opus citat, p. 93.

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Falar de ideologia em termos ontológico-práticos, significa analisar esse fenômeno essencialmente pela função social que desempenha, ou seja, enquanto veículo de conscientização e prévia- ideação da prática social dos homens (p. 19)

Essa concepção de ideologia, segundo Cavalcante (2007, p. 40), “apoia-se na noção de homem como um ser que reage às demandas postas pela rea-lidade objetiva, um ser que dá respostas a necessidades determinadas”. É Lukács (1978, p. 5) quem afirma:

O homem torna-se um ser que dá respostas, precisamente na medida em que – paralelamente ao desenvolvimento social em pro porção crescente – ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los.

O indivíduo faz sim, escolhas, mediante as possibilidades que lhe são postas. Numa hipótese mais simples, podemos compreender que sempre diante das condições postas o indivíduo, sempre poderá optar por “sim” ou “não”, frente às diferentes formas específicas de ideologia que lhe são veladas. Es-sas formas ideológicas específicas são denominadas de Formações Ideoló-gicas (FI). Segundo Haroche (1971, p. 102, apud Cavalcante 2007, p. 42)

As formações ideológicas são, pois, expressão da estrutura ideológica de uma formação social que põem em jogo práticas associadas às relações e classe. Trata-se de realidades contraditórias, na medida em que em uma conjuntura dada, as relações antagônicas de classe possibilitam o confronto de posições políticas e ideológicas que não são atos individuais, mas que se organizam em formações conservando entre elas as relações antagônicas de aliança e de dominação.

É por esse motivo, que, numa dada formação ideológica, pode-se encontrar o confronto de ideias, posições, alianças ou, simplesmente, a subserviência de uma ideologia a outra dentro da FI, demonstrando uma sujeição/ do-minação. É nessa perspectiva, que diferentes FI, mesmo que demonstrem antagonismo entre si, podem falar de questões como cidadania, patriotismo, segurança pública, atribuindo-lhes sentidos diferentes.

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe em si mesmo, (...) mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no

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processo sócio histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir, essa tese, dizendo: as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que a empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referencia (...) as formações ideológicas (...) nas quais estas posições se inscrevem (Pêcheux, 1995, p. 160).

Cada Formação Ideológica contém, como um de seus componentes, uma ou várias Formações Discursivas.

3. Análise da materialidade sígnica

Assim como todas as profissões possuem seus instrumentos peculiares, os agentes de segurança pública terão os seus, que a saber são: algema, arma de fogo e colete de proteção balística.

Uma algema é uma forma de contenção contra possíveis agressões, a si própria ou a terceiros, a que a polícia recorre toda vez que precisa con-duzir alguém sob sua guarda. Enquanto se conduziam as classes menos abastadas, não havia problema algum, até que as algemas foram usadas para conduzir pessoas importantes, da classe dominante - um ex-governador de um estado influente em nossa economia, um banqueiro e um grande inves-tidor. Imediatamente após esse fato, em 13/ 08/ 2008,o Supremo Tribunal Federal edita a Súmula Vinculante nº 11.

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Uma Súmula Vinculante é uma decisão que vem sendo tomada de forma reiterada pelo tribunal, ao ponto de que todos os julgados que forem sími-les, devem ser enquadrados em tal “documento normativo”, que terá força “erga omnes” vinculando a decisão dos outros tribunais, magistrados e ad-ministração pública.

É obrigação de qualquer policial (Civil, Militar ou Federal), diante do caso concreto, “posicionar-se de maneira crítica, ética, responsável e cons-trutiva nas diferentes situações sociais”.

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O que se depreende dessa súmula, é um total tolhimento do juízo dis-cricionário na utilização ou não das algemas na condução dos suspeitos, pois há expressa determinação de quando e de que forma se pode utilizar tais instrumentos, ameaçando-o de punição: “justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere”.

Por que essa súmula foi publicada somente após policiais, no exercício de suas funções, terem algemado pessoas influentes? Com esse ato, fica implícito que a atitude dos policiais não foi “ética” nem “responsável”. Está implícito também que na sua posição “crítica, ética e responsável” ele deve “entender” que os índices avaliativos “responsável e construtiva delimitam as condições em que o posicionamento “crítico” deverá ocorrer. O que seria, pois, “posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva? Segundo Cavalcante (2007,p. 127),

Depende da posição política e social do sujeito que age e de quem julga esse agir. Na perspectiva da Formação Ideológica capitalista, colocar-se contrário ao ideário político do mercado é ser irresponsável, e, consequentemente, não construtor da ‘ordem e do progresso do país.

Assim, as classes abastadas não devem ser tratadas da mesma forma que as pessoas desprovidas de recursos.

Entendemos ser pertinente, aqui, o que dizem Marx & Engels ( 2006, p. 46).

A moderna sociedade burguesa, surgida das ruinas da sociedade feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de lutas em lugar das antigas.

É assente que lhe resta, apenas o diálogo como forma principal de “media-ção de conflito e tomada de decisões”, pois “conhece e valoriza a diversidade social brasileira”. Complementando as orientações de ação do agente de segurança, indica-se o instrumento que o sujeito deverá usar em situações de conflito. Ora, como diz Cavalcante (2007, p. 127),

O diálogo caracteriza-se por troca, alternância de opiniões entre interlocutores, enquanto a ação de mediar, significa intermediar, encontrar um meio termo, fazer

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acordo, buscar soluções na base do diálogo e nunca do confronto.

Isso corrobora os trabalhos de Marx e de Engels, que mesmo sendo deli-neados a mais de um século, nunca foram tão atuais. Nessa mesma linha de raciocínio, poderemos citar uma Portaria Interministerial do Ministério da Justiça, datada de 31/12/2010, que sob a égide de estabelecer diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, assim se posiciona:

Diretriz de nº 08. Todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo (grifo nosso).

A violência em nosso país é crônica, sendo uma das missões dos agentes pú-blicos da segurança seu combate. Mas existem peculiaridades que somente no trabalho policial são encontradas. Imagine um policial num confronto armado, dentro de um complexo de favelas tais como as do Rio de Janeiro, onde o confronto bélico possui armas de uso exclusivo/ proibido/ privativo das Forças Armadas13 e que as polícias não possuem. Um exemplo são as armas de calibre .50 (12,7 x 99) mm em poder de integrantes de organiza-ções criminosas. Para que o leitor possa ter uma noção deste poderio bélico, imagine que um disparo de arma neste calibre, atravessa um carro forte das empresas de transporte de valores, com a mesma facilidade que você rasgaria uma folha de papel.

É nesse sentido que podemos afirmar cada vez mais, os conflitos inerentes à luta de classes e os antagonismos sociais que hoje se apresentam no Brasil. De um lado as elites historicamente postas no comando da máquina pública, servindo-se, não só dos AIE, mas principalmente dos agentes de segurança inscritos no interior dos ARE para implementar seu projeto de sociabilidade. É importante constatar a atualidade das reflexões de Marx & Engels (2006, p.46) quando assim se expressam,

A nossa época, [...], caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade inteira vai dividindo-se em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas entre si: burguesia e proletariado.

13. De acordo com o decreto federal nº 3665 de 2000, mais conhecido como R – 105.

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Com isso, resta claro que as formações ideológica contidas na Súmula pos-suem o objetivo de dissimular os conflitos de classe próprios do capitalismo, pois apesar de aparente “cristalinos” em concepção, tal sequencia mostra--se atravessada pela formação ideológicas do capital.

4. Conclusão

Nossa sociedade, desde a sua colonização pelos portugueses, apresentou basicamente a miscigenação de três raças: o índio, o negro e o europeu. No norte e nordeste houve a prevalência de colonização dos negros e indígenas, enquanto que no sul e sudeste houve a prevalência dos europeus.

Desde o final da ditadura militar e inicio da democracia em nosso país, por volta do começo da década de oitenta do século passado, com a liberda-de de imprensa, tomamos conhecimento, de forma mais nítida, dos graves contrastes e disparidades de emprego e renda que assolam o nosso povo, sem contar com a exacerbada concentração de renda nas mãos de poucos, e na disparidade dos baixos rendimentos que são ofertados para tantos. Mais uma vez, valemo-nos de Marx &Engels (2007, p.80)

Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a da classe que até então dominava, mas, por outro lado, a contraposição entre a nova classe dominante e a não-dominante se agrava e se aprofunda cada vez mais.

Todo este quadro, que perdura de nosso descobrimento e vai até os dias atuais (ou seja, mais de cinco séculos), contribuiu para cada dia, aprofun-dar as relações de desigualdades sociais, provocando exponencialmente o aumento no número de miseráveis que, sem opção, lançavam-se a práticas de crimes, como única forma de se manter.

Tudo isto regado à ideologia neoliberal, que galopantemente aparecia na mídia para informar a população brasileira que o setor público inchado, sucateado, deteriorado... seria o responsável direto por este quadro. A so-lução era propor um “enxugamento da máquina estatal”, de forma que ela fosse ágil como a iniciativa privada. Passados quase 30 anos da implemen-tação de tais políticas, o povo ainda espera pelo milagre, vendido de forma financiada pela iniciativa privada aos contribuintes, mas ainda não quitado, colocando-se aí, conforme Marx & Engelsz (2007, p.48)

no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração [de forma] aberta, despudorada, direta e árida. A burguesia rasgou o véu do comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias

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Entretanto, eis que agora vem a lume uma nova esperança.

Com a sumula vinculante nº 11 do STF, fica desprotegida não só a so-ciedade, mas os próprios policiais que temem “tentar cumprir seu dever”, e para isso, terem de algemar o infrator.

Ou seja, a força policial, que não é detentora dos meios de produção, não possui qualquer gerência dos recursos públicos, não pode fomentar po-líticas de distribuição da riqueza gerada no país, deverá “perceber-se como transformador da realidade social e histórica”, tendo o poder de “contri-buir para a melhoria da qualidade de vida social, institucional e individual”. Diante desse novo quadro, fica implícito que se a criminalidade não dimi-nui, é responsabilidade dos agentes policiais; não do Estado. Retira-se com isso toda responsabilidade do poder estatal e silencia-se que ele, o Estado neoliberal é o grande responsável pelo aumento da criminalidade, pelas ra-zões já expostas.

Para Marx & Angels (2007), será a linguagem a forma de se obter o relacionamento entre os homens, na busca pela necessidade (incompleta) de intercâmbio entre os de sua espécie, sendo, portanto, um produto social.

A responsabilidade de mudança é deslocada totalmente de seu ator principal, que é o governo, para um ator secundário, a força policial, que é mais visível é possível de ser encontrada pela sociedade. É mais fácil falar com um policial, do que com um chefe do executivo (municipal, estadual ou federal).

Por deter o monopólio das mudanças, será o Estado – e não o policial, pois não possui ingerência de mando alguma sobre a aplicação das verbas e dos programas de fomento sociais –, o detentor legítimo do monopólio de ator das mudanças sociais em nosso País. Isso ocorre porque toda e qual-quer mudança atitudinal em escala nacional, vê-se diretamente subordina-da à política e seu relacionamento com o Estado.

Nisso, fica assente os desígnios de Marx & Engels (2006), quando falam que o objetivo da classe dominante será o de garantir que o poder permaneça com a classe politicamente dominante, a fim de perpetuar seu projeto de sociabilidade.

Cremos que demostramos os comprometimento ideológicos da Súmu-la, ao tempo em que concluímos com a seguinte questão: que sociedade, qual projeto de sociabilidade saiu vencedor com essa decisão?

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Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática

jurídica

Bruno Lemos Hinrichsen, Idalina Cecília Fonseca da Cunha, João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e Pedro Spíndola

Bezerra Alves

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução: a crença na dogmática enquanto produto da atividade científica racional

A dogmática é construída de premissas ordenadas que pretendem delimitar determinada ciência à amplitude de seus conteúdos. Ao estudá-la, logo se busca os elementos primaciais, os dogmas que guiarão quaisquer observa-ções ou questionamentos – estes, por seu turno, devem sempre observar os dogmas.

Para que determinada ciência consolide as premissas fundamentais que regerão o seu sistema, deve haver um processo de justificação destes pilares dogmáticos. No caso específico da ciência jurídica, a validade de suas premissas advém da noção da legitimidade legal-racional (FARIA, 1978), que estabelece a relação de dominação-sujeição com base na crença de que os postulados jurídicos (leis e jurisprudência) são formulados racionalmen-te por métodos científicos precisos e imparciais.

Os dogmas tornam-se pontos de partida inquestionáveis (pois já deve sempre haver o consenso de que são legítimos e verdadeiros; supõem-se axiomáticos) para que o sistema possa funcionar. Dogmática, portanto, é a crença na veracidade das premissas da ciência: sustenta a petição de princí-pio de um discurso, e, por isto, é difícil, inclusive, a sua retaliação temporal.

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A dogmática é vista habitualmente como simples produto da1 ativida-de científica racional, ou seja, [produto] de premissas escolhidas por uma metodologia que buscaria a racionalidade como critério desta escolha. O problema que aqui se coloca é que a noção de racionalidade, para o direito, está extremamente relacionada, atualmente, à ideia de argumentação, do uso da linguagem, do discurso.

Isto implica considerar que as premissas escolhidas não são as únicas possíveis, sendo a dogmática, portanto, produto de uma2 atividade científica que se pretende a mais racional. Nesta senda, outros problemas se apresen-tam: como fruto de premissas escolhidas por critérios considerados argu-mentativamente mais lógicos, seria a dogmática (a) resultado da busca pela razão na ciência do direito ou seria (b) instrumento que se vale da ideia de racionalidade para impor escolhas? Neste segundo caso, quem ou o que se utilizaria da dogmática para tal fim e de que modo?

A crença na dogmática como produto de uma atividade científica ra-cional que teria por escopo apenas delimitar a ciência do direito não parece, porém, confirmar-se nas vicissitudes da práxis, pois a produção legiferante e jurisprudencial por vezes tornam evidente que a motivação por traz da decisão escolhida não foi guiada por fundamentos científicos racionais.

2. Formação da ciência dogmática jurídica atual e a reviravolta linguística

A civilização ocidental, no que concerne ao direito, herdou em demasia as bases do direito romano, o qual possuía leis escritas, sendo o senado romano uma referência histórica bastante comum na literatura. Lá já havia a no-ção de um direito ideal, natural, que limitaria o direito posto (PERELMAN, 2004); bem como a [noção] de verdades autoevidentes, a guiar a todas as pessoas em um mesmo sentido – devido ao senso inato de justiça por ela apresentado.

No período do absolutismo, por exemplo, o discurso era a legitimidade régia concedida pelo divino: a ideia do direito natural era utilizada para le-gitimar a autoridade do soberano, que editaria leis e teria ingerência em sua aplicação. Houve uma mudança paradigmática, cujo estopim (aparente) fora a Revolução Francesa de 1789, na qual o abandono do modelo do Pater est potentia, se dá pelo desenvolvimento da crença no scientia est potentia3, fazendo da lei um símbolo da justiça – por meio da impessoalidade do saber. A função do judiciário era subsumir a lei ao caso concreto, evitando o arbí-trio e a insegurança.

1. Notar o artigo definido como referência ao universal.

2. Observe-se, assim como na nota anterior, o uso do artigo: indefinido para o relativo.

3. Do latim, “o pai é poder” e “saber é poder”.

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O juiz, assim, deveria motivar suas decisões lógica e matematicamen-te (PERELMAN, 2004), com base na lei, sem a total discricionariedade do antigo regime. Aí estão as bases da Escola da Exegese: o início do novo im-pério da força de lei (DERRIDA, 2010, p. 21). No entanto, o formalismo da lei, deflagrando-a insuficiente, não resolvia casos mais difíceis – atualmente chamados hard cases (LYONS, 1993, p. 119-124) nos países da Common Law4. Na França, a título exemplificatório, foi criado o Tribunal de Cassação Francês (Cour de Cassation), para julgar estes casos (PERELMAN, 2004).

Em 1880 surge, também, no cenário a Escola Funcional e Sociológica – não obstante o ideal racionalista ainda seja mantido. Nesta escola a inter-pretação do meio social era imprescindível para a aplicação da lei ao caso concreto, vez que a letra fria da lei não podia ser imediatamente aplicada (tome-se como exemplo os hard cases). Arranjou-se um pretexto para uma reavaliação de todos os pressupostos jurídicos, ao fim da Segunda Guerra Mundial; fazendo das velhas tensões ornamentos indesejados. É importante frisar que o positivismo enquanto sistema destituído de valorações foi re-chaçado.

Já neste momento, a teoria da norma hipotética fundamental (Grund-norm), cuja função é atribuir legitimidade ao sistema jurídico – através da confirmação formal de um pressuposto lógico, um axioma de validade (KELSEN, 1986) –, seria utilizada pelos constitucionalistas modernos (em uma evidente desvirtuação, vez que a norma fundamental não se identifica com a constituição jurídica na teoria kelseniana). Segundo eles, é a par-tir da Carta Magna que acontece a hierarquização; e ela, como arcabouço valorativo, determinaria a escolha por um paradigma predominantemente principiológico no direito.

Mas, no fim das contas, o que todo este empenho da formação da dog-mática pretendeu foi, como dissera Hegel (2005, p. 39) ter no direito uma manifestação do absoluto como um modelo representativo perfeito:

O direito não pode ser considerado de outra forma, senão como a ideia. Todas as ciências filosóficas fazem parte de um todo maior. A filosofia tem por objeto o universal, o absoluto. O direito é uma parte da manifestação desse absoluto, da ideia divina.5

4. De acordo com David (2002), duas são as grandes famílias jurídicas atuais: a Common Law e a Romano-Germânica. Esta compreende os países de tradição civilista, ao passo que aquela os países da antiga Commonwealth, isto é, os de origem anglo-saxônica e suas colônias.

5. No original: “Das Recht kann nicht anders aufgefaßt werden als die Idee. Alle philosophischen Wissenschaften sind Teile eines großen Ganzen. Die Philosophie hat zu ihrem Gegenstand das Universale, das Absolute. Das Recht ist eine Seite der Manifestation dieses Absoluten, der göttlichen Idee.”

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A chamada reviravolta linguística6 teve início ainda no século XIX e simbolizou a quebra da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem. A primeira colocaria a linguagem como instrumento precário para retratar a verdade. Enquanto na segunda a linguagem representaria o único recurso que se possui para construir o mundo.

Na reviravolta lingüística, ou giro linguístico, passou-se a entender a linguagem não como instrumento precário, mas sim como tudo que o ser humano possui. Não há o que se dizer além da linguagem, a questão é se a linguagem diz ou não o mundo, isto é, opera-se um modelo do duplo e do espelho ou, ao contrário, do uso e dos jogos de linguagem – os alicerces teo-lógico-metafísicos são então descartados.

Esta mudança de paradigma na filosofia estendeu-se para as demais áreas do conhecimento e experimentou dois momentos, em geral identifi-cados com as teorias de Wittgenstein (2008), cujas obras “Tractatus logico--philosophicus” e “Investigações filosóficas” foram, respectivamente, mar-cos definidores dos momentos experimentados pelo novo paradigma.

No primeiro momento, identificado como neopositivismo (STRECK, 2011), o Círculo de Viena, baseando-se na teoria desenvolvida no Tractatus, acreditava que a linguagem poderia dizer o mundo e que pela racionalidade haveria como chegar a conceitos unívocos, contribuindo à exatidão das ci-ências. Cada palavra conteria apenas um sentido.

Apresentavam-se teorias da semiologia de F. C. von Savigny, com a escola histórica do direito, e da semiótica de Peirce, que representaram um grande avanço na ideia de sistema de signos linguísticos e suas relações com o sujeito e os objetos (PEIRCE, 2003).

Wittgenstein (2008), nas Investigações filosóficas, desenvolveu a teo-ria dos jogos de linguagem, vendo tudo como dependente do contexto. Nesta fase, ele abandona o ideal de universalização de conceitos unívocos, condi-ções ideais de fala que eliminariam a equivocidade da linguagem na ciên-cia. A questão é: a linguagem cria o mundo a partir do contexto particular das situações de fala. Não existe mundo além da linguagem (KAUFMANN, 2009).

O próprio Wittgenstein (2008, p. 272) pode dar testemunho de sua teoria: “E o essencial é vermos que, ao ouvirmos a palavra, nos pode ocorrer o mesmo objecto e, no entanto, a sua aplicação ser uma outra. E tem então o mesmo sentido em ambas as vezes? Julgo que diremos que não.” O mais interessante é que o que se chama de “o segundo Wittgenstein” veio em auxílio, correção, ao “primeiro”.

Todas as teorias atuais do direito estão inseridas neste novo paradigma da filosofia, onde o sujeito não conheceria o objeto diretamente, mas apenas

6. Para maior aprofundamento conferir Manfredo Araújo de Oliveira (2006).

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através de um signo que o representaria e seria determinado em seu sentido apenas a partir de um dado contexto, uma dada circunstância7.

3. Os esforços para preservação da racionalidade na ciência jurídica e a crítica dos céticos

Hodiernamente, os ordenamentos jurídicos – já constituídos pelo ideal prin-cipiológico do neoconstitucionalismo, como dito anteriormente – buscam não apenas fundamentos sólidos do ponto de vista técnico-procedimental, mas também teorias que consolidem a crença de que o conteúdo das deci-sões é escolhido por meio de critérios imparciais e, sobretudo, lógico-racio-nais.

Neste sentido, surge a teoria da argumentação jurídica de Robert Ale-xy (1978) – fruto da filosofia da linguagem, após a reviravolta linguística – a qual propõe, em síntese, que decisões racionais podem ser alcançadas por meio de regras dirigidas à argumentação jurídica. Com isto, a argumentação utilizada para o direito (em sua criação e aplicação) será a mais racional possível, eliminando-se qualquer elemento motivacional, salvo o de alcan-çar a razão pelas regras postas.

Esta teoria decorre da necessidade do Estado buscar consolidar de-mocraticamente suas decisões (políticas e jurídicas). Isto implica que deve haver consenso democrático – e, frise-se, racional. Para isto, o discurso deve ser justificado através de regras de uma teoria da argumentação propria-mente jurídica, para que haja a validação das premissas adotadas (ALEXY, 1978).

Distingue-se, a este ponto, dois aspectos complementares do discurso jurídico racional, quais sejam, o formal (procedimental) e o material (conte-údo). Daí a importância da ressalva de que esta teoria considera o ponto de vista formal, isto é, a partir da ótica procedimental do discurso; da argumen-tação desenvolvida observando-se as regras procedimentais do discurso.

O ponto de vista material diz respeito ao conteúdo ético das decisões escolhidas, servindo inclusive de premissa para o procedimento. Ignorar este conteúdo material é voltar ao ideal positivista, ao tempo que deixá-lo na completa abstração é voltar ao jusnaturalismo. Portanto, na ótica analisada os valores (conteúdo ético-moral) devem ser objetivados através também de regras racionais (ALEXY, 2011).

Corrobora-se, na verdade, com o esforço de validar racionalmente as decisões sob os aspectos material e formal (que devem ser complementa-res). A finalidade, então, é legitimar a escolha de um discurso x ou y quan-do, e apenas quando, este seguir as regras da razão. Admite-se que vários

7. Wittgenstein (2008, p. 283) escreve: “[…] mas aquilo que nos dá o direito de, num caso destes, dizer que ele compreende, que ele sabe continuar a sucessão, são as circunstâncias debaixo das quais ele teve uma tal vivência.”

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são os resultados possíveis seguindo-se estas regras, todavia, quanto mais se utiliza esta lógica, mais próxima de uma racionalidade universal (determi-nativa do consenso) fica a decisão.

A principal crítica a este modelo é que o discurso pretende fundamen-tar argumentos, no entanto, ele próprio encontra sua possibilidade funda-mentada pelos argumentos que propõe validar – esta circularidade acaba com o seu arcabouço lógico. Além disso, cada discurso abre um leque dialé-tico de possibilidades argumentativas, sendo impossível alcançar o ideal da racionalidade universal.

A postura cética, acompanhada por correntes como o realismo, prag-matismo, nova retórica, procura deixar de lado o ideal de uma razão uni-versal, válida para todos em todos os lugares. O postulado central é: não é possível alcançar a univocidade (a verdade, o resultado correto), já que tudo depende do contexto e dos argumentos escolhidos; inclusive, e por trás dis-so, dos interesses e da persuasão, como se demonstrará mais a frente.

Para Richard Posner (2009), da escola economic analysis of Law (aná-lise econômica do direito), a melhor forma de entender os fatos, a vivência social, é analisar dados econômicos da sociedade. Estes dados correspon-dem não apenas à seara financeira, mas ao nível de satisfação dos indiví-duos pelas decisões escolhidas e suas repercussões. Tem-se uma filosofia utilitarista. De qualquer maneira, assim como as demais correntes céticas, critica-se a ideia de verdade universal e racionalmente alcançável.

4. Teoria hermenêutica do direito: uma proposta que vai além da técnica interpretativa

Após o giro linguístico, as propostas de superar os problemas da criação e aplicação do direito muito o associaram com a hermenêutica filosófica8, para a criação de uma hermenêutica jurídica. Esta foi de certo modo banali-zada, utilizada como técnica de interpretação apenas, com vistas a alcançar a “vontade da norma” (STRECK, 2011).

No entanto, hermenêutica não se resume à interpretação, não é mera técnica, mas sim uma verdadeira teoria do direito. A hermenêutica deve ser enxergada como a observação de todo o fenômeno jurídico, isto implica em atribuir a ela a tarefa de compreendê-lo antes de interpretá-lo. Existe, pois, na teoria hermenêutica do direito, a noção da pré-compreensão, pois há uma interpretação prévia que gera uma compreensão primeira a ser nova-mente interpretada (LACOMBE, 2003).

Esta interpretação prévia dá-se muito também pela historicidade dos sujeitos envolvidos no processo interpretativo. E é à dialeticidade deste pro-cesso – de interpretar a parte pelo todo tendo o todo previamente sido inter-

8 . É interessante conferir Hans-Georg Gadamer (2007) e Martin Heidegger (2009).

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pretado pela parte – que se chama círculo hermenêutico. Este todo pressu-posto e condicionador do direito, nesta teoria, seria a ordem. O direito seria um composto de ordem e hermenêutica (SALDANHA, 2003).

Então, hermenêutica não é mera técnica de interpretação e aplicação do direito. É uma forma de olhar o direito. A hermenêutica é conceito que não existe se não houver o de ordem, ao tempo em que é também condição (pressuposto) para esta. Do ponto de vista da lógica formal isto é um pa-radoxo. No entanto, tal oximoro9 (ὀξύμωρον) pode ser desmistificado pela teoria de Saldanha, o qual considera que ser e pensar se confundem no existir, então a hermenêutica pressupõe a ordem ao tempo em que também a constitui.

Para entender a ordem (e o direito) seria preciso ter antes uma pré--compreensão dela, ainda que seja uma noção gerada para promover a ideia de uma estabilidade estatal. Mas esta ideia, determinada principalmente pela historicidade, para ser útil na prática, deve ser somada à própria her-menêutica, que a pressupõe. Entender a ordem sem a hermenêutica – e o direito sem este conjunto – é dizer que o ser (ordem) é sem o pensar (hermenêutica). No entanto, o ser e o pensar, como dito alhures, estariam amalgamados no existir.

5. A dogmática como limite outorgado pela vontade de verdade e o dirscurso tomado por verdadeiro

A dogmática vem sendo entendida como um sistema e todos os elementos deste são regidos pelos seus dogmas. Mas algumas circunstâncias fáticas ou teóricas que o sistema deve encarar exigem respostas que os seus elementos não resolvem, surgiriam antinomias produzidas no seio do próprio sistema.

O papel da filosofia do direito, assim – sendo matéria da filosofia, cujo objeto é analisar questões atinentes ao direito, busca razão em seus métodos e não nos jurídicos –, seria transcender o sistema (dogmática) e seus ele-mentos, procurando externamente as soluções para circunstâncias surgidas diante da dogmática (onde esta não é capaz de, satisfatoriamente, enqua-drar seus dogmas) (KAUFMANN, 2002).

A filosofia buscaria entender o todo, mas o filósofo precisa de um pon-to de partida particular, no caso, um problema da ciência do direito. En-tretanto, quando os filósofos do direito propõem entender o todo através do ponto particular (determinado elemento do sistema) da dogmática, eles permanecem fatalmente nos dogmas do sistema, propondo uma alteração que modulará os argumentos e abrangerá novas hipóteses, mas que sempre estarão dentro da vontade de verdade (FOUCAULT, 2010). O objetivo é, en-tão, apenas corrigir o sistema e não sair dele. E será que é possível restaurar

9. ‘Oximoro’ também é conhecido pelo termo ‘paradoxo’.

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um objeto apenas através dele próprio? Só se fosse um sistema vivo, o que não é bem o caso (BETALANFFY, 2009).

Essa atitude é esperada, uma vez que a dogmática é responsável pela integridade e credibilidade de uma ciência. E é possível que uma ciência que altera seu paradigma constantemente indique problemas epistemoló-gicos grave10. No entanto, crises de paradigma, embora não sejam recor-rentes, também não são raras na ciência. Para Boaventura de Souza Santos (1989), existem dois tipos de crises epistemológicas nas ciências: as crises de crescimento e as de degenerescência.

O primeiro tipo de crise corresponde a questões que surgem para a ciência e exigem que esta aprofunde seus postulados, inclua elementos no sistema, torne-o ainda mais complexo, podendo gerar, inclusive, uma nova ciência autônoma que terá por objeto resolver a crise de crescimento. Isto é positivo, pois demonstra que existem alternativas e que a ciência ainda é válida e útil.

Entretanto, existem também crises de degenerescência, de corrup-ção, de falência da essência dos dogmas de determinada ciência. Quando esta crise ocorre, o paradigma deve ser alterado, pois não há mais como sustentar o atual. Isto demonstra a relatividade e os ciclos por que passa o conhecimento científico, sempre evoluindo e reconstruindo as bases de suas dogmáticas.

Então, os dogmas da ciência jurídica são da forma que são em virtude de convenções humanas, discursos bem sucedidos e políticas implementa-das. O método utilizado fora escolhido por convenção e continuará sendo até que outra coisa se convencione, em virtude de uma crise.

Assim, sem pretender adentrar com profundidade nas discussões que cercam a epistemologia, o que se pretende dizer, em certa medida, é que, porquanto seja desejada a ordem (isto é, o direito como ele se configura), deve haver uma metodologia, uma dogmática. Deve-se guardar, inobstante, que a dogmática não é uma e única, mas é sempre e cada vez, escolhida para difundir o discurso de verdade; este que tolhe e exclui outros discur-sos, em função de uma preservação sistêmica de seus paradigmas, cujos dogmas impedirão o surgimento de outras verdades, até que uma crise se configure e faça necessária a reestruturação do próprio discurso, isto é, da verdade que ele carrega.

10. De acordo com Kuhn (1996, p. 10), o paradigma nas ciências não quer dizer uniformidade, mas normatização (ciência normal). Ademais, um paradigma já comporta no seu seio o seu próprio fim, pois se fosse “explicação total do mundo” ao invés de paradigma, não seria necessária qualquer ciência. A mudança nas estruturas do método ou do paradigma, entretanto, é contingente. Já para Popper (2008, p. 41), a ciência deve tentar falsear a sua teoria a todo o momento, pois toda ela [a teoria] é provisória. Quanto mais a teoria resistir, mas ela valerá. O que ocorre na dogmática, e mesmo nas ciências naturais, não é jamais a proposta de Popper, mas a de Kuhn; tenta-se confirmar o paradigma.

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6. Poder e sistema

A modernidade guarda, ainda hoje, um resquício de cartesianismo em sua compreensão geral de si própria. Não há modernidade sem o cogito ergo sum11 de Descartes (2009, p. 64), assim como não há direito sem ordem. Mas por que falar aqui nos princípios cartesianos do ser? Simples: preten-de-se demonstrar como o paradigma da res cogitans (coisa pensante) ainda é tomado em primazia em relação à res extensa (coisa extensa) – isto inclu-sive no direito e de duas formas.

Hesíodo (2007, p. 109-111) afirma que mesmo do caos (χάος) pode vir a harmonia, a ordem (κόσμος); e que é impossível haver direito sem ordem isto já foi passado e repassado, entretanto ainda não se explicou o porquê disto. Pois bem, o motivo essencial diz respeito ao fato de a palavra grega κόσμος designar tanto ordem quanto harmonia, ou melhor, sistema harmonioso. Daí, se o direito diz-se um sistema, logo ele pressupõe a ideia de ordem. E sim, o direito reforça, a todo o momento, o seu caráter sistêmi-co. Acontece que, não fossem as leis escritas, os livros de doutrina, as deci-sões judiciais, dentre outras tantas funções e ferramentas judiciais, o direito seria tão só conceito. Nesta medida, é linguagem – e poder-se-ia dizê-lo quer através do modelo da representação quer do uso e dos jogos de linguagem como todas as demais coisas (WITTGENSTEIN, 2008).

Como sistema e linguagem que é, ele não pode deixar de criar um (seu) mundo jurídico; mundo ficto e convencionado. Assim, volta-se à ques-tão da primazia da res cogitans. São duas as formas: (a) o modelo de abstra-ção o faz ser uma coisa pensada por um sujeito pensante, cujas expectativas são de formar um sistema de pensamento racional em torno dela e, assim, poder conjecturar sobre suas raízes ontológico-metafísicas e sua relação com a verdade e o universal; (b) o modelo do uso histórico-contextual da linguagem faz com que seja necessário criar um modelo abstrato/abstraível no qual seja possível fomentar a perpetuação de um comportamento x de-sejado.

O primeiro modelo é facilmente enquadrado dentro da tradição car-tesiana da representação. É somente necessária a identidade no conceito e a diferença específica para poder organizar todas as coisas em grupos e subgrupos de coisas pensadas e existentes na medida em que se as pensa.

11. Tradicionalmente traduzido como “penso, logo existo”, o cogito ergo sum, quer dizer, na realidade “penso, logo sou”, como se nota da edição em francês (suis) e, mesmo, da palavra latina ‘sum’, cujo sentido inicial e primordial é “ser”. Observe-se (DESCARTES, 2009, p. 64): “Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis, était si ferme et si assurée, que toutes les plus extravagantes suppositions des sceptiques n’étaient pas capables de l’ébranler, je jugeai que je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le premier principe de la philosophie, que je cherchais”. Em tradução livre: “E notando que esta verdade: eu penso, logo eu sou, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava”.

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O segundo, por outro lado, volta-se como uma simulação. Não mais existe o real, donde as coisas podem ser representadas em pensamento, mas um hiper-real, ou virtual (BAUDRILLARD, 1991). Este virtual, porém, é ainda uma res cogitans – e nada mais pode ser.12

Assim, o sistema jurídico simula, isto é, pretende ter o que não tem, quer dizer, realidade (BAUDRILLARD, 1991, p. 13): “seriam estas as fases sucessivas da imagem: [...] ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro.” A relação é simples, o sistema não é real, ele pretende-se como tal, mas nessa empreitada, ele assume o lugar do que simula e torna-se o modelo por excelência. Não há mais vida, por exemplo, mas regulação jurídica e tão somente “morta” de seres corpóreos e sociais. Isto é uma questão de discurso. O discurso toma o palco do acontecimento aleatório e faz-se em primazia, faz-se continuado (FOUCAULT, 2010, p. 8).

Mas afinal, o que é esse sistema? De acordo com a teoria de Bertalan-ffy (2009, p. 240), o sistema é uma acepção de “mundo como organização” – quer dizer, o sistema, ao passo em que é um mundo organizacional, é, em consequência, ordem. Por isso que o direito é um sistema. Mas, pressupon-do que haja diferenças profundas entre os sistemas das ciências naturais e o da ciência social, Bertalanffy define (2009, p. 251): “a ciência social tem de tratar com seres humanos no universo da cultura criado por eles. O uni-verso cultural é essencialmente um universo simbólico.”

Luhmann (1984) aprofunda esta noção em suas obras, principalmen-te ao afirmar continuamente que os sistemas sociais são sistemas de comu-nicação13. Observe-se: dizer que um universo é simbólico é afirmá-lo como referenciado por sinais, os quais, por sua vez, se reportam à compreensão e interpretação daquilo que simbolizam e isto, para Heidegger (2009, p. 209-215) é o ser-aí como poder-ser que já é.

Ainda em Luhmann (1984, p. 191), o problema da comunicação está ligado ao da complexidade do sistema. Ao limitar sua linguagem, o sistema faz com que haja uma redução da complexidade em relação ao ambiente14.

12. Afirma Baudrillard (1991, p. 8): “É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real. [...] Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o outro, que constituía o encanto da abstração. [...] O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizs e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí. [...] É apenas operacional. Na verdade, já não é o real, pois já não está envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.”

13. Para aprofundar a noção da teoria dos sistemas, ver, também, Luhmann em das Recht der Gesellshaft (1993) e Luhmann em die Gesellschaft der Gesellschaft (1997).

14. Afirma Luhmann (1991, p. 191): “Geht man von der Möglichkeit einer Theorie selbstreferentieller Systeme und von Komplexitätsproblemen aus, spricht viel dafür, das Einschränkungsverhältnis einfach umzukehren. Sozialität ist kein besonderer Fall von Handlung, sondern Handlung wird in sozialen Systemen über Kommunikation

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E isto ocorre no sentido de que deve haver vários sistemas e subsistemas. Sempre em prol da hiper-especialização dos sistemas. Aumenta-se a com-plexidade, na medida em que se especializa e se cria um novo grupamento, mas, ao mesmo tempo, diminui-se a complexidade linguística interna.

A isto se dá o nome de autopoiese – que significa, por sua vez, produ-ção de si próprio. O sistema produz e reproduz a si próprio, em algo muito semelhante à ideia de Baudrillard (1991), logo acima comentada. Ele faz com que a sua patologia seja provocada por elementos psicossomáticos – não permite que haja nada, embora haja alguma coisa, e este algo exista como virtualidade.

Isso permite a criação de um sistema burocraticamente organizado, já que todos os campos devem ser reduzidos a sistemas limitados por sua linguagem específica em dado momento histórico. E a burocracia apare-ce justamente para dividir e subdividir tarefas, para alocar e ordenar em operações menores, para agrupar e hierarquizar, para, enfim, aumentar e diminuir a complexidade em algo que parece um paradoxo.

Kafka (2010) retrata com uma perfeição absurda as idas e vindas do modelo burocrático: cada um exerce sua função como se nada mais hou-vesse que não ela. Isto dá unidade ao discurso. Isto o permite forte para perdurar no tempo, sem modificação do paradigma; é o desejo do eterno. A burocracia, como maquinaria discursiva do sistema permite a formação de corpos dóceis: de militantes do sistema. Algo como a figura dos Agentes em Matrix (1999): sujeitos manipuláveis.

Sobre isto, afirma Foucault (2009, p. 132):

“O Homem-máquina”15 de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.

Além disto, para completar o conceito de corpo-dócil, ao qual estão atrelados disciplina e dominação-sujeição, é interessante observar o que fala Foucault

und Attribution konstituiert als eine Reduktion der Komplexität, als unerläßliche Selbstsimplifikation des Systems.” Em tradução livre: “Se se assume a possibilidade de uma teoria dos sistemas autorreferenciais e dos problemas da complexidade, há uma forte evidência de que a razão de restrição simplesmente inverta. Sociabilidade não é um caso especial de ação, mas a ação é constituída em sistemas sociais de comunicação e atribuição como uma redução de complexidade, como uma indispensável auto-simplificação do sistema.”

15. O Homem-Máquina é um livro escrito por Julien Offray de la Mettrie.

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(2009, p. 133): “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’”. No fim das contas, ele está indicando um problema que a maior parte (senão, toda ela) nunca comenta: há, no direito, um discurso que perpassa e permite a docilidade dos corpos; discurso que se faz através das disciplinas, do poder disciplinar, cuja técnica é a dominação.

Pode-se, agora, passar adiante; à análise das relações entre poder e linguagem propriamente ditas, no que se chama vontade de verdade e pro-dução do discurso. Nisto, exatamente, que Foucault aborda constantemente em sua obra.

7. Poder e linguagem

O quadro geral já foi traçado: há um sistema jurídico, o qual exerce seu po-der por uma base discursiva, fazendo valer como “real” as suas membranas hiper-reais, quer dizer, o virtual (como res cogitans subvertido pela carência do real, que não mais necessita de máscara e consolo). Isto implica dizer, assim como se fez – e pretende-se aprofundar –, que o sistema passa a valer como vida, vez que esta não mais existe propriamente. Acontece algo pare-cido nas redes sociais, a vida passa a ser a do avatar, não mais a de quem lhe empresta forma – que, por mais estranho que pareça, passa a não mais ser. Este é o deserto do real anunciado por Baudrillard (1991).

De acordo com Freud (1996, p. 384):

Os sonhos se valem desse simbolismo para a representação disfarçada de seus pensamentos latentes. Aliás, muitos dos símbolos são, habitualmente ou quase habitualmente, empregados para expressar a mesma coisa. Não obstante, a plasticidade peculiar do material psíquico [nos sonhos] nunca deva ser esquecida.16

E é aí que fica patente, não mais latente, que a sociedade é constituída de sonhos, ela é o próprio sonho da ordem. Mas, como sonho, não é real, é simulada: pretende ser o que não é! Simula uma simulação. Por quê? Observe-se com cautela: a partir do momento em que se predica a palavra “direito” de “Estado” (formando “Estado de Direito”) e tem-se que este é constituído por um povo (sociedade) dentro de um território, nada mais se está fazendo do que alicerçando o mapa e os peões ante o real.

O Estado é uma simulação porque o direito é uma simulação! O or-denamento jurídico é apenas um aparato discursivo – ele é, sempre, lin-guagem. Mas, neste seu sentido primordial como discurso de poder (FOU-

16. O Homem-Máquina é um livro escrito por Julien Offray de la Mettrie.

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CAULT, 1999, p. 28), ele opera o enfraquecimento linguístico na rigidez de seus fundamentos, dos arquétipos, de toda esta dogmática. Se o homem é sempre linguagem, isto é, esta é uma sua configuração ontológica (HEI-DEGGER, 2010, p. 07), logo não é possível que o homem não seja poder, certo? Daí, também não é possível que ele não seja direito, correto? Mas há um “porém” fundamental, nisto: o direito, enquanto regramento pode até ser uma categoria ontológica (não há como escapar), mas é notável que não passa de um símbolo, a tornar latente algo por trás de tudo o mais, ou seja, a vontade de verdade, enquanto vontade de poder (FOUCAULT, 2010). E, na dogmática jurídica, o procedimento é muito simples: ocorre um laço de comentários de comentários de textos inaugurais (por sua vez, já e desde um momento incompreensível, também comentários) que já não mais são conhecidos.

Foucault (2010, p. 27) explica a condição dos comentários:

[...] o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há, talvez, nada além do que já havia em seu ponto de partida, a simples recitação.17

O importante é notar que o comentário é aquele que faz repetir com tom de novo e redescoberto o idêntico e o mesmo, nas caras simuladas da repre-sentação. Ele passa a ser o principal e, ao mesmo tempo, reforça a vontade de verdade sempre presente, do discurso continuado. Agora, entretanto, deve-se falar um pouco mais acerca da continuação do discurso e de sua relação com o poder.

Durante a aula de 14 de janeiro de 1976 ministrada no Collège de France, Foucault aborda o que ele chama de a analítica do poder. Ali, logo no começo da aula, ele elabora uma inversão da “verdade” filosófica, quan-

17. [...] le commentaire n’a pour rôle, quelles que soient les techniques mises em oeuvre, que de dire enfin ce qui était articule silencieusement là-bas. Il doit, selon um paradoxe qu’il déplace toujours mais auquel Il n’échappe jamais, dire pour la première fois ce qui cependant avait été déjà dit et répéter inlassablement ce qui pourtant n’avait jamais été dit. Le moutonnement indéfini des commentaires est travaillé de l’intérieur par le rêve d’une répétition masquée: à son horizon, Il n’y a peut-être rien d’autre que ce qui était à son point de départ, la simple récitation.

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do diz que na fundamentação do Estado Soberano Moderno, não há uma limitação de direito do poder pelo discurso de verdade, senão há uma produ-ção do discurso de verdade pelo poder através das normas de direito. Coloca Foucault (1999, p. 28): “quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade?”

Ora, o que ele faz neste momento é estabelecer uma tríade entre (a) poder, (b) direito e (c) verdade. Mas, ao contrário dos discursos de índole racionalista, ele propõe que tudo é uma questão de poder, e, sendo assim, de interesse. Afirma também – isto se deve frisar desde já – que o poder não tem um lugar (τόπος) estático e por excelência, como pressupõe a teoria clássica da soberania (cujo fundamento está no modelo ideal da limitação), mas ele [o poder] funciona, se exerce, circula e faz circular discurso – isto ocorre na medida em que um discurso se sobressai ou não, se concentra ou não, toma aspecto de verdade ou não e, assim, passa a ter força (FOU-CAULT, 1999, p. 35).

Atente-se: o direito, como sistema social e, portanto, comunicativo, é exercido por pessoas que vinculam e continuam um dado discurso na his-tória. O ideal é que não haja muitas revoluções paradigmáticas e assim se estabeleça a ordem, fortalecendo a dogmática a partir dos comentários (de outros tantos comentários). Não obstante, o próprio Luhmann (1993), reco-nhece que podem surgir anomalias no sistema e este necessite evoluir. Evo-lução, todavia, não significa um avançar para o melhor, mas superar uma contingência (uma diferença) através de uma mudança x ou y. às vezes, contudo, a mudança supera as bases linguísticas do sistema e obrigam-no a diminuir sua complexidade – isto é feito com a diferenciação funcional, cujo propósito é, também, instituir novo sistema (ou subsistema).

Não é raro, portanto, que surja uma situação contingente cujo sistema deve absorver para continuar hegemônico. Assim, as diferenças são englo-badas (quando possível) pela linguagem do sistema x ou y. Fica evidente que é de um modelo discursivo que se está falando.

A dominação (e decorrente sujeição dos súditos, ou melhor, dos cor-pos) é realizada por uma continuação irrefletida dos discursos, que de tão espalhados e repetidos na rede da sociedade – onde circula o poder –, são dificilmente contrapostos por um modelo forte e indissolúvel. Entretanto, quando um “perigo” surge à continuação do discurso de verdade eleito, este deve, para prosseguir firme e sem que se lhe altere a substância, incluí-lo de forma fragmentada pelo (e no) antigo regime.

Vez que o sistema autopoiético não se permite trabalhar com outra lin-guagem que não a sua própria, nada do que é introduzido é, verdadeiramen-te, diferente. Desta maneira, se se imagina um sistema A hipotético e uma contingência B, também hipotética, não é possível que B seja introduzido por A da forma como se lhe apresenta, pois a interação entre sistema e am-biente não ocorre através dos signos de B (ambiente), senão de A (sistema),

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fazendo com que outra coisa seja incluída, uma terceira coisa. O “papel” do poder, neste caso, é manter-se de pé e o seu aparato é o discurso. Neste sentido, utiliza-se, a exemplo de Foucault (1999), das ferramentas jurídicas para produzir e reproduzir a verdade, fazendo com que o discurso continue um e o mesmo.

O direito, dessa maneira, se caracteriza como o lugar de reprodução do impessoal – na lei, na jurisprudência ou na doutrina. A intenção é per-petuação sistêmica, cuja possibilidade não há se não for mantido o discurso do ninguém (do todo mundo indefinido). Explica Heidegger (2009, p. 185): “Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é ninguém, a quem o ser-aí já se entre-gou na convivência de um com o outro.”

Fica então esclarecida a característica primordial da dogmática como a de um causador (e ela própria em si mesma, também) do impessoal. Ob-viamente, enquanto se quiser falar em direito, em Estado de Direito e em segurança jurídica, ela será necessária, pois sem ela não há ordem: a dog-mática é a própria ordem; ela é quem ordena o discurso.

8. Análise discursiva nas leis da educação no Brasil

As leis da educação, para Montesquieu (1949, p. 33-34), têm primazia na recepção pelas pessoas (ainda na juventude), e preparam o indivíduo para ser um cidadão. Ela dá o delineamento da cultura de um povo, permite sua formação educacional (παιδεία). Montesquieu declara, então, que a educa-ção se altera a depender do tipo de governo adotado por um país ou outro, tendo como princípio: (a) a honra, nas monarquias, (b) a virtude, nas repú-blicas e (c) o temor, no despotismo.

O trabalho aqui ganhará um novo rumo. Neste espaço, muito embora algumas teorias sejam trazidas à tona, o principal enfoque será uma análise foucaultiana dos recursos discursivos explícitos ou implícitos nas três Leis de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (1961, 1971 e 1996). É de no-tar, ademais, que a Constituição da República traz em seu bojo, como um princípio norteador que (BRASIL, 1988):

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Pois bem, em acordo com a tese de Montesquieu, a Lei Maior apresenta características de uma república – e, de fato, é esta a definição de governo do Brasil: uma res publica (coisa pública), como indicara Cícero (1999). Ora, mas então, o que se questionar ainda neste trabalho? Pois é, de acordo

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com as teorias apresentadas, em particular nas seções seis e sete, tentou-se evidenciar que há uma máscara para o discurso, o qual passa a todos os momentos, como o impessoal.

E sim, há algo por trás, já de início, não só na Constituição, mas, ou-trossim, nas três leis aqui abordadas. O primeiro ponto diz respeito à ideia de regulamentação e disciplinamento dos corpos explorada por Foucault (2009). Na medida em que o art. 208 impõe a educação como um “dever do Estado” e chama isto de “garantia”, ele está, na realidade, simulando: não há uma garantia, pois a prática é a da dominação, ou seja, a de transformar em dóceis os corpos dos súditos nesta malha do poder através do discurso; tornar maleável e forte ao mesmo tempo este sujeito cujo corpo lhe é disci-plinado.

A ideia por trás é a de que se deve regular o ensino, se deve distribuir as disciplinas por interesses e, através disso, incluir a criança na linguagem. ‘Garantir’ é, antes de tudo, regular e disciplinar; é tornar impessoal – e para que o conceito fique claro e distinto, a dominação não é de um sujeito no topo de uma pirâmide em detrimento da alteridade sujeitada; longe disto! A dominação é um modelo que se dá na malha íntima, entre amigos, vizinhos, conviveres, nas prisões, nos hospitais, no escritório, nas escolas. E todos estes seguem esta voz do impessoal, a voz do ninguém: este, por sua vez, é a instituição, a própria base jurídica (FOUCAULT, 2010, p. 9).

Afirma Coulanges (1937, p. 365):

O govêrno denominou-se alternativamente monarquia, aristocracia, democracia; mas nenhuma dessas revoluções deu aos homens a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, poder ser arconte, eis o que se chamava liberdade; mas o homem estava subordinadíssimo ao Estado.

Neste sentido, vez que nada disso mudou radicalmente nas sociedades mo-dernas (a não ser a tendência econômica ao ter em substituição ao ser) o Es-tado, para manter-se como centro, não cedendo completamente às grandes corporações capitalistas, necessita ordenar o discurso em função do capital ou de termos mais genéricos e abstratos, como o ‘bem comum’ – que nada mais quer dizer que o Estado ele mesmo (MIAILLE, 2005, p. 124-125). Isto, entretanto, não faz com que a sociedade dos desejos seja menos subordina-da ou mais livre que outras quaisquer de outrora: os desejos são impostos como realidade e clausura pelo Estado soberano, por um poder que não é só seu, mas é em si concentrado por acaso, por costume, hábito político: o poder da palavra; o ritual da palavra sagrada do direito.

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Para se observar como o disciplinamento, a docilidade e a inserção no mesmo, são importantes para o sistema, independentemente de qual seja ele, demonstra-se o caráter da obrigatoriedade do ensino em ambiente escolar. Pois bem, em todas as leis a palavra ‘obrigação’ está presente quer naturalmente quer por uma parônima.

Na Lei de 61 (BRASIL, 1961), a palavra obrigação e suas parônimas aparecem 23 vezes ao todo. Por exemplo: (a) obrigatoriedade do ensino pri-mário, o art. 27; (b) ao incentivo (no grau primário), no art. 28, b, e à obri-gação (no grau médio) da frequência em sala de aula, no art. 38, VI:

“Art. 27. O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional. Para os que o iniciarem depois dessa idade poderão ser formadas classes especiais ou cursos supletivos correspondentes ao seu nível de desenvolvimento.”

Art. 28. A administração do ensino nos Estados, Distrito Federal e Territórios promoverá:

b) o incentivo e a fiscalização da freqüência às aulas.

Art. 38. Na organização do ensino de grau médio serão observadas as seguintes normas:

VI - freqüência obrigatória, só podendo prestar exame final, em primeira época, o aluno que houver comparecido, no mínimo, a 75% das aulas dadas.

Já na Lei de 71 (BRASIL, 1971), repete-se 15 vezes. Por exemplo: (a) in-clusão da disciplina “educação moral e cívica”, enaltecendo o caráter nacio-nalista, o art. 7º; (b) aconselhamento vocacional e orientação educacional, o art. 10, contribuindo ao tecnicismo que se construirá daí em diante no cenário nacional; (c) ao grau primário, art. 20:

Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lº e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969.

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Art. 10. Será instituída obrigatòriamente a Orientação Educacional, incluindo aconselhamento vocacional, em cooperação com os professôres, a família e a comunidade.

Art. 20. O ensino de 1º grau será obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo aos Municípios promover, anualmente, o levantamento da população que alcance a idade escolar e proceder à sua chamada para matrícula.

Por fim, na Lei de 96 (BRASIL, 1996), são 32 vezes que a palavra e seus parônimos aparecem. Por exemplo: (a) ensino fundamental, art. 4, I; ensi-no de recuperação, art. 24, V, e; inclusão de filosofia e sociologia no ensino médio, art. 36, IV.

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:

V - a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios:

e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos;

Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes:

IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio.

Fica patente, que a educação não é uma escolha; a criança não está ali por sua vontade. Tudo gira em torno da perpetuação do discurso, do prolonga-mento do paradigma. E não há melhor ambiente para operar a anátomo--política (entenda-se, disciplina) do que no ambiente escolar, na criança,

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na própria formação – agora, do homem-máquina. Mas um ponto surge destoante: a filosofia e a sociologia não só foram introduzidas (isto porque em 1961 elas eram de ensino facultativo, em 1971 elas foram proibidas, tornadas facultativas novamente em 1996, vetada a proposta de lei cujo teor compunha a obrigação delas em 2001 e feitas disciplinas obrigatórias em 2008), como se tornaram matérias obrigatórias.

Bem, isto não é muito difícil de explicar. Houve uma evolução sistê-mica: surgiu uma contingência e ela foi introduzida dentro dos modelos da teoria de Luhmann (1984). Além do mais, este procedimento é uma ótima forma de dominação – por apaziguamento, mas ainda assim dominação. As palavras são utilizadas com ambigüidade (Heidegger, 2009, p. 237-240), isto é, sem que se lhes defina completamente o sentido – provocando, des-ta maneira, algo como o duplo-pensar (doublethink) em 1984 de Orwell (2009). Da mesma forma, uma vez que o sistema (o direito em si mesmo) procura o impessoal e a mesmidade no discurso de verdade continuado por laços de comentários, operando uma redução da complexidade (inclusive comunicativa), é possível falar na escola como local não da expansão de co-nhecimentos, senão da novilíngua (newspeak), também conceito de Orwell (2009) e que tem a ver exatamente com a redução do léxico, operada por jogos de linguagens.

9. Conclusão

As ciências dogmáticas jurídicas adquirem seu estatuto da ordem, isto é, da ideia de sistema harmonioso, o que significa direito. Portanto, o que elas operam, sempre e cada vez mais, é uma observação limitada do aconteci-mento (e mesmo do acontecimento jurídico), já que tenta trabalhar os seus problemas a partir de casos concretos dados pelo próprio ordenamento.

As tentativas dogmáticas, a maior parte das vezes ligadas à atividade fi-losófica – ao menos de forma referencial –, foram insuficientes, justamente devido à sua função de limitação da abertura de mundo, em função das prá-ticas discursivas em prol da impessoalidade e da dominação (institucional).

Diante deste quadro, obteve-se ainda como resultado, a ideia de que mesmo a produção legislativa (na qual se iguala à jurisprudencial – vez que ambas são atividades de decisão) ocorre uma confluência entre redução de uso linguístico e atividade meio. Os momentos de decisão (lei e jurisprudên-cia) são, justamente, os espaços para se operar propriamente a dogmática, ou seja, fazer imperar interesses discursivos de um poder incomunicável.

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Parte IVINTERAÇÃO EM

CONTEXTOS LEGAIS

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Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais

Sabrina Silveira de Souza Jorge

Universidade Federal de Santa Catarina

1. Introdução

Uma discussão sobre coerência textual envolve a abordagem de termos como ‘coerência local’(coesão) e ‘coerência global’. A coesão e/ou coerência local em um texto diz respeito a “inter-relação entre segmentos discursi-vos adjacentes”1 (LOUWERSE & GRAESSER, 2005, p.2). Por outro lado, a coesão e/ou coerência global é compreendida como a “inter-relação de grandes trechos de um discurso”2 (ibid., p.2). Pesquisas nesta área mos-tram que problemas na coerência local e global de um texto podem levar à interpretação errônea do mesmo (MURRAY,1995). De acordo com o autor, a coerência local de um texto pode ser facilitada por marcadores discursivos como marcadores sequenciais, indicadores de relevância e conectores que indicam lógica como e, mas e porém. Em relação aos conectores, Goldman & Murray (1992 apud MURRAY, ibid.) corroboram outras pesquisas que afirmam que a presença de conectores é essencial para a adequada com-preensão de um texto, uma vez que o torna mais claro. Da mesma forma, Al-Surmi (2011) afirma que:

Embora vários estudos tenham investigado o papel dos marcadores discursivos no intuito de estabelecer uma representação discursiva coerente, ainda não houve um consenso à respeito de que estes marcadores facilitem a compreensão de um texto ou não (p. 1673)3.

1. Minha tradução para: “the interrelatedness between adjacent discourse segments”.

2. Minha tradução para: “the interrelatedness of larger spans of discourse”.

3. Minha tradução para: “although several studies have investigated the role of discourse markers in establishing a coherent discourse representation, there is still no consensus on

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De acordo com o autor, estudos realizados por Chung (2000) investigaram a contribuição de marcadores discursivos e frases iniciais em parágrafos a ní-veis de compreensão micro e macro de um texto. Em diferentes versões de um mesmo texto com e sem marcadores discursivos enviadas a participan-tes de uma pesquisa, Chung (ibid.) observa que “marcadores discursivos ajudaram na compreensão total das informações fornecidas em um texto, por exemplo, em relação à uma leitura no nível da macro estrutura do mes-mo. Porém, não foi observado um grande efeito a nível de micro estrutura entre os segmentos dos textos”4(Al-SURMI, ibid.).

Este estudo tem como objetivo a analise de textos elaborados por ofi-ciais da policia militar responsáveis por registros de ocorrências criminais com foco no aspecto de coerência local e global destes textos. Os registros dessas ocorrências podem ser realizados em duas situações diferentes. Uma é quando vítimas, suspeitos e/ou testemunhas prestam depoimento a um policial em uma delegacia de polícia (polícia civil). A outra é quando o po-licial (polícia militar) registra uma ocorrência criminal na qual ele esteve presente, como testemunha de um caso o qual ele foi solicitado a prestar auxílio. A escolha de uma pesquisa sobre a análise deste tipo de gênero tex-tual dá-se por sua significância como prova dos fatos ocorridos, uma vez que traz informações sobre um acontecimento. Sendo assim, pode-se entender que, um texto que relata uma ocorrência criminal que apresente problemas de coesão e coerência podem levar os leitores a restrições de compreensão do mesmo, e que isto, consequentemente, pode afetar o rumo das investi-gações de um crime já na etapa preliminar, que é a da investigação policial.

De acordo com o que foi discutido acima, este estudo compromete-se a testar a hipótese de que problemas de compreensão de um texto que re-lata uma ocorrência criminal podem afetar a percepção do leitor a respeito dos fatos ocorridos, devido a falhas de elementos de coesão que favoreçam a coerência textual. Ao longo deste capítulo, as seguintes perguntas serão res-pondidas: a) Como os aspectos de coerência local e global em um texto in-teragem na busca do significado do mesmo? b) Até que ponto problemas de coerência local e global em um texto privam o leitor de sua compreensão? c) Quais são as supostas implicações decorrentes de problemas de coerência local e global presentes em textos de relatos de ocorrências criminais?

A fim de responder tais perguntas, o presente capitulo está organizado da seguinte maneira: Inicialmente, serão apresentados conceitos de coerên-cia local e global bem como uma discussão de como elementos de coesão textual interagem na busca por coerência em um texto. Em seguida, serão fornecidas informações sobre estudos a respeito da analise linguística de

whether discourse markers facilitate reading comprehension or not”.

4. Minha tradução para: “discourse markers enhance the understanding of the overall representation of the information in a given text, i.e. at macrostructure level of reading, but having no effect at the microstructure level between the segments of reading texts”.

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relatos de ocorrências criminais por policias, estudos estes que destacam a relevância de pesquisas sobre o assunto. Na sequência, haverá a descrição e comentários sobre os resultados dessa pesquisa objetivando verificar a hi-pótese mencionada. Por fim, com base nos resultados obtidos na pesquisa, a conclusão da mesma discutirá sobre a importância de relatos policiais de ocorrências criminais apresentarem uma estrutura textual coerente para beneficiar as investigações criminais que serão realizadas utilizando infor-mações fornecidas nos mesmos.

1.1 Coerência local e global em textos

Com o intuito de investigar a precisão do relato dos fatos de um crime em registros de ocorrências criminais, este estudo tem por objetivo observar como coerência local (coesão) e coerência global são estabelecidas nesse gênero textual. Em uma discussão a respeito de coerência e coesão tex-tual, Louwerse & Graesser (2005) falam sobre diferentes abordagens na tentativa de conceitualizar esses termos. Como mencionado anteriormente, enquanto a coesão textual acontece quando pequenas unidades de um tex-to fornecem continuidade na estrutura das palavras e frases do mesmo, a coerência textual diz respeito à inter-relação encontrada em um texto que fornece continuidade em sentido e contexto do mesmo. De acordo com os autores:

Coerência pode ser observada por sua relação conceitual, relação esta que os leitores estabelecem a fim de construir uma representação mental coerente do que encontra-se presente em um discurso. Por outro lado, coesão limita-se aos marcadores linguísticos que dão pistas ao leitor de como ele pode construir estas representações de coerência. Em outras palavras, a coesão enfatiza o discurso-como-produto e a coerência enfatiza discurso-como-processo (2005, p.2)5

É mediante essa visão que os termos coerência local (coesão) e global são discutidos neste estudo. O primeiro se refere à coesão textual advinda da inter-relação entre sequências de textos enquanto a última diz respeito a grandes extratos do discurso que podem ser exemplificadas como “sequ-ências de ações demarcadas e estruturas retóricas da narrativa (tais como cenário + conflito + enredo + resolução), de textos expositores (como rei-

5. Minha tradução para: “Coherence can be reserved for the conceptual relationships that comprehenders use to construct a coherent mental representation accommodated by what is said in the discourse. Cohesion is limited to the linguistic markers that cue the comprehender on how to build such coherent representations. Cohesion emphasizes discourse-as-product, and coherence emphasizes discourse-as-process”.

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vindicação + evidencia, problema + solução), e de outros gêneros discursi-vos”6 (Louwerse & Graesser, 2005, p.2).

Sendo assim, diante do que foi abordado acima, relatos policiais de ocorrências criminais devem seguir a estrutura de uma narrativa, uma vez que têm a intenção de descrever a ocorrência dos fatos. No entanto, se eles apresentarem falhas em termos de coerência (local e global), os leitores do texto poderão ter problemas para compreendê-lo, e, consequentemente, irão interpretar os fatos ocorridos (ou relatados por uma testemunha, vitima ou suspeito, se for o caso) de forma errônea.

1.2 A relevância de estudos de relatos de depoimentos na fase policial

Inquéritos policiais são instaurados com o objetivo de realizar uma investi-gação criminal e assim obter provas sobre um crime. Além das provas ma-teriais de um crime, como por exemplo, aquelas obtidas através do exame de corpo delito em um caso de violência, existem também as provas verbais, que dizem respeito aos relatos dos depoimentos registrados por um oficial de polícia. Conforme exposto anteriormente, esses relatos podem tanto ser provenientes das coletas de depoimentos realizadas em uma delegacia poli-cial (polícia civil), ou podem ser registros do próprio policial (polícia militar) no papel de testemunha de uma ocorrência. Nos casos dos depoimentos coletados nos departamentos de polícia, em alguns países, como Inglaterra e Estados Unidos, eles são gravados por áudio e vídeo e mais tarde uma transcrição destes registros é lida no tribunal. Porém, no Brasil, a maioria desses registros ainda é realizada por escrito por um oficial de policia. A importância da precisão no registro do que é relatado pelo depoente é enfa-tizado por Holt (2010), que afirma que:

Registrar, contrastar, formular e repetir é crucial no processo de formular os fatos de uma ocorrência. Tais práticas permitem momentos de elaboração dos fatos que revelem uma versão da realidade, atuando como parte importante em um caso judicial (p. 35).7

No entanto, há estudos a respeito da precisão e confiabilidade do registro de depoimentos coletados por um oficial de polícia (ALDRIDGE; BEN-NEWORTH; HAWORTH; MACLEOD, 2010). Pesquisas indicam que “re-gistros de depoimentos de suspeitos que são apresentados como evidências

6. Minha tradução para: “scripted action sequences and the rhetorical structures of narrative (such as setting + conflict +plot + resolution), expository (such as claim + evidence, problem + solution), and other discourse genres”.

7. Minha tradução para: “reporting, contrasting, formulating and repeating are at the heart of the process of formulating the facts of the legal story. Their use produces important fact- making moments that distil and encode a version of reality, which play an important part in the legal case”.

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criminais não são representações precisas e fieis às palavras dos depoentes”8 (HAWORTH, 2010, p.180). Mais especificamente, os depoimentos coleta-dos sobre uma ocorrência criminal em uma investigação policial podem so-frer alterações que resultam em inconsistências apresentadas no registro policial. Acredita-se que tais inconsistências podem ocorrer devido ao pro-cesso de recontextualização de um texto. Vista como ‘um ato de controle’ (BAUMAN & BRIGGS,1990 apud ROCK, 2010, p.128), “a recontextuali-zação envolve a troca de um elemento linguístico em um texto, discurso, gênero ou estilo encaixando-o em um outro texto, discurso, gênero ou estilo e, crucialmente, alterando o seu uso e ambiente e assim, criando novos significados”9 (LINELL,1998 apud ROCK, 2010, p.128). Fairclough (1995) afirma que as escolhas linguísticas pelas qual os eventos são representados e transformados dependem “dos objetivos, dos valores e prioridades da co-municação na qual eles estão recontextualizados”10 (FAIRCLOUGH, 1995 apud ROCK, ibid,).

Estudos sobre a hibridade de textos que constituem evidencias crimi-nais trazem informações relevantes sobre esse assunto. Por exemplo, Rock (ibid) faz comentários significativos a respeito da construção de textos escri-tos obtidos de depoimentos de vítimas, testemunhas e/ou acusados em uma investigação policial. A autora relata também como esta ‘segunda versão’ (texto escrito) pode comprometer a busca por evidências concretas de uma ocorrência criminal. Rock (ibid) afirma que os textos decorrentes da coleta de depoimentos sofrem uma permanente recontextualização uma vez que o policial e o depoente aparecem engajados em uma conversa a respeito dos fatos ocorridos no qual a versão dada pelo depoente parece estar constante-mente em mudanças (JOHNSON, 2008b apud ROCK, 2010).

Por outro lado, há os registros de ocorrências realizadas pelo próprio policial que atua como testemunha de um caso no qual ele estava respon-sável por intervir no mesmo. Este trabalho é geralmente feito pela policia militar que registra os fatos e coleta depoimentos de envolvidos no local da ocorrência. Porém, esses registros também serão analisados como prova documental de uma investigação criminal, e por esta razão, também devem apresentar um grau de coerência que permita clareza dos fatos ocorridos. Um estudo realizado a respeito da utilização de dêixis em textos de relatos de ocorrências criminais por oficiais da polícia militar revelou a presença de complicações na estrutura dos textos que não contribuíam para o necessá-rio grau de esclarecimento dos relatos ali encontrados. A conclusão deste

8. Minha tradução para: “police–suspect interviews as presented as evidence are still not accurate and faithful representations of the interviewee’s words”.

9. Minha tradução para: “recontextualisation involves both shifting and changing something in one text, discourse, genre or style by slotting it into another text, discourse, genre or style and, crucially, altering its use and environment and creating new meanings”.

10. Minha tradução para: “on the goals, values and priorities of the communication in which they are recontextualised”.

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trabalho despertou o interesse em realizar um estudo de caso onde alguns dos dados analisados pelo autor fossem colocados à disposição de partici-pantes a fim de conferir o entendimento dos mesmos sobre eles, baseado na forma que ocorrências criminais são relatadas e descritas.

Com base no exposto, este capítulo busca enfatizar a importância de análises linguísticas de textos de registros de ocorrências criminais realiza-dos por oficiais de polícia, sendo eles da policia civil ou militar, com o intuito de apontar problemas na construção dos textos que possam levar a uma errônea interpretação dos fatos ocorridos.

2. Método

Objetivando averiguar a compreensão de relatos de ocorrências criminais registrados por policiais, este subcapítulo apresenta os participantes, o ma-terial e os procedimentos adotados nesta investigação.

2.1 Participantes

Os participantes da pesquisa foram quatro brasileiros, falantes nativos da língua portuguesa com terceiro grau completo, os quais serão citados como P1, P2, P3 e P4. A escolha do perfil dos participantes quanto ao nível edu-cacional foi baseada na expectativa dessas pessoas terem maior probabili-dade de serem leitores com proficiência, e consequentemente, terem uma melhor compreensão dos textos. Além disso, como leitores proficientes, eles teriam mais chances de se aproximarem dos leitores reais deste tipo de tex-to, que supostamente compartilham do mesmo nível educacional, e assim, com as mesmas possibilidades de compreensão textual. Por leitores reais, subentendem-se delegados de polícia e juízes responsáveis pela análise de documentos para a instauração de um inquérito policial e pela decisão de condenação de um acusado de um crime, respectivamente.

2.2 Material

Os dados para análise usada neste estudo são três textos de registros po-liciais de ocorrências criminais realizadas por oficiais da policia militar de Minas Gerais (apêndice A).

Por razões éticas, e como já mencionado, é importante ressaltar que o material usado neste estudo é parte dos dados usados em uma dissertação de Mestrado (Tristão, 2007) que utilizou os textos como objeto de análise. Os textos usados aqui foram escolhidos de um total de 20 registros policiais disponíveis na dissertação. Estes registros foram elaborados por policiais no local das ocorrências na tentativa de relatar os fatos ocorridos. Os textos uti-lizados para este estudo foram escolhidos por esta pesquisadora de acordo com seus aparentes níveis de compreensão textual, sendo o Texto 1 consi-derado o mais claro de todos e o Texto 3, o mais problemático em termos de descrição dos fatos. De acordo com Tristão (ibid.), todas as informações

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pessoais sobre os sujeitos envolvidos nas ocorrências criminais foram mo-dificadas a fim de preservar as suas confidencialidades. Sendo assim, os nomes dos sujeitos envolvidos nas histórias dos Textos 1, 2 e 3 são ficcionais.

2.3 Procedimentos

Três textos contendo relatos de ocorrências criminais realizados por policiais militares foram enviados por correio eletrônico aos quatro participantes da pesquisa juntamente com instruções a serem seguidas para a realização de uma atividade com o intuito de verificar a compreensão dos mesmos dos textos (apêndice B). Para a realização dessa atividade, eles deveriam ler os três textos (Textos 1,2 e 3) quantas vezes fossem necessárias. Logo após as leituras, os participantes foram orientados a responder perguntas gerais e específicas sobre os relatos presentes nos textos.

Para o Texto 1, haviam 8 perguntas, para o Texto 2, 6 perguntas e para o Texto 3, 8 perguntas. A atividade foi desenvolvida a fim de verificar a compreensão dos participantes a respeito dos textos em níveis de coerência local e global. Algumas perguntas foram feitas para investigar a compreen-são dos participantes à respeito de marcadores de coesão a fim de testar a eficácia destes marcadores (ou da falta deles) no estabelecimento de uma coerência textual que promovesse a compreensão dos textos. Mais especifi-camente, de observar se elementos de coesão utilizados (ou não) na cons-trução das narrativas que descrevem uma ocorrência criminal, a sequência das ações e a estrutura retórica da narrativa afetavam o processo de coerên-cia global, atrapalhando a compreensão dos textos.

3. Resultados

Os resultados da pesquisa fornecidos abaixo tem relação com as respostas das atividades realizadas pelos participantes da mesma (apêndice B).

3.1 Texto 1

A narrativa do Texto 1 é a de um roubo de uma camiseta de um torcedor de um time de futebol. Quando perguntados sobre qual era o evento (questão 1), todos os quatro participantes forneceram respostas que mostraram a compreensão dos mesmos desse fato. Mais especificamente, P1, P2 e P4 reconheceram que o furto era o de uma camisa de um time de futebol. Quando perguntados sobre quem vossa presença se referia no texto (linha 10/11), todos os participantes concordaram que tal forma de tratamento fazia menção ao Delegado de Polícia. Além do mais, todos os participantes compartilharam a ideia de que quem foi levado ao Delegado foi o agressor. Porém, quando perguntados sobre quem eles acreditavam que havia relata-do os fatos, (questão 2-c), P1 e P4 afirmaram que havia sido o oficial de poli-cia. No entanto, P3 e P4 afirmaram que foi o agressor. O mau entendimento deste segmento do texto pode estar relacionado ao uso da voz passiva que

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omite o sujeito da ação conforme podemos perceber nas linhas 7, 8, 9 e 10. Quando perguntados sobre o local da ocorrência, P1, P2 e P3 responderam que a mesma ocorreu em um bar chamado bar 30. Porém, P4 demonstrou dúvida e respondeu que foi ‘nas imediações’ do bar 30. Na verdade, esta afirmação não está clara no texto, como podemos ver na linha 3, quando o policial relata que: quando ao nos aproximarmos do Bar 30, deparamos com uma briga generalizada.

No que diz respeito à coerência local, ou seja, os elementos de coe-são que fazem as relações entre as ideias do texto, o pronome obliquo lo, na linha 6, parece fazer menção ao agressor. Porém, esta referência não é feita com clareza, uma vez que não especifica se lo remete ao agressor ou a vitima, mencionados na frase anterior. Neste caso, o leitor pode inferir que lo se trata do agressor somente porque, provavelmente, seria o agressor que tentaria fugir do local, como demonstrado em o mesmo tentou se evadir do local (linhas 6 e 7). Além do mais, o uso da referência anafórica o mesmo (linhas 6 e 12) não deixa claro a quem esta se refere, ou seja, se ao agressor ou à vitima. De qualquer forma, todos os participantes tiveram a mesma compreensão sobre esta questão, ou seja, de que se referia ao agressor. Ou-tras referências feitas a elementos do texto como o produto do furto (linha 9) referindo-se a camiseta roubada e o autor da resistência (linha 10) refe-rindo-se ao agressor, também pareceram confundir os leitores na tentativa de compreender o desenrolar da história.

No entanto, embora elementos de coesão, tais como os elementos ana-fóricos citados acima, não estejam sendo utilizados de forma apropriada no texto, os leitores puderam chegar às mesmas conclusões por dedução, baseadas em seus conhecimentos de construção textual. Vale ressaltar que, inferências textuais comuns no processo de compreensão de um texto são foco de algumas pesquisas (por exemplo, BARETTA et. all, 2009; GRAES-SER & KREUZ, 1993, dentre outros) e seu estudo deve ser considerado re-levante em um estudo mais aprofundado da compreensão dos textos de re-latos de ocorrências criminais feitos por policiais. Apesar de os participantes demonstrarem apresentar algum grau de dificuldades de compreensão dos fatos, eles foram capazes de fornecer respostas que demonstraram o enten-dimento do que se tratava a ocorrência. Entretanto, quando indagados se concordavam com a existência de elementos no texto que colaboravam com a má interpretação do mesmo (questão 4), P1 e P4 forneceram respostas similares que suscitaram a ideia de que o texto, por apresentar desordem no relato dos fatos, parecia confuso. P2 e P3 também relataram ter encontrado dúvidas sobre partes da história que diziam respeito sobre onde o evento ocorreu bem como as identidades dos sujeitos envolvidos na ocorrência.

3.2 Texto 2

O Texto 2 fala de uma pessoa que foi encontrada com uma substância química similar à maconha. De acordo com o que o policial registrou na

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ocorrência, ele e outros policias decidiram ir à residência desta pessoa, em-bora não esteja claro se o suspeito estava junto com eles ou não. No local, o policial conversou com uma mulher que parece ser a esposa do suspeito. Quando os participantes da pesquisa foram indagados a respeito do que se tratava o caso (questão 1), todos os quatro participantes compreenderam que tratava-se de uma pessoa que foi encontrada com posse de drogas. Al-guns puderam até mesmo identificar o nome da substância, conforme suge-rida no texto. Os participantes também compreenderam que o policial foi à residência de alguém procurar por mais drogas. No entanto, nenhum deles soube dizer de quem era esta residência. P3 mencionou que o policial foi ao lugar indicado pelo suspeito e P4 afirmou que os policiais foram à residência de uma pessoa chamada Guilherme, afirmando não estar ciente de quem se tratava. Na verdade, da forma pela qual Guilherme é mencionado no texto não fica claro se ele era o que vendeu a droga ao acusado ou se era o filho do mesmo. Por outro lado, P2 compreendeu que Guilherme era o trafican-te. No registro do policial, Guilherme foi citado como sendo o filho da Sra Rosa Inês, como podemos ver na linha 8 do texto: mãe do Guilherme. No entanto, o uso de do, como referência anafórica, sugere que Guilherme já foi mencionado na história, embora isto não tenha acontecido. Este pode ser apontado como o mau uso de um elemento de referência que contribui para problemas de coesão textual, sendo o que provavelmente causou duvida em P4 a respeito da participação de Guilherme no ocorrido.

Nenhum dos participantes apresentou problemas em compreender o local onde os fatos ocorreram. Porém, quando indagados a respeito do re-lacionamento da Sra. Rosa e do acusado (questão 2-b), P1 respondeu que ambos moravam juntos, P2 respondeu que eles não tinham nenhuma re-lação e P3 ficou em dúvida se eles poderiam ser casados ou simplesmente mãe e filho, mas que definitivamente moravam na mesma casa. P1 e P3 provavelmente deduziram que ambos moravam juntos pelo uso no texto do pronome demonstrativo sua em sua residência, que aparece duas vezes no texto (linhas 7 e 8), como referência a casa de José João (linha 7) e logo após, a casa da Sra. Rosa (linha 8). Os pontos mais obscuros do texto foram apontados pelos participantes P2 e P4 que demonstraram não ter certeza de quem era o consumidor, e quem era o traficante da droga.

Finalmente, quando indagados sobre o que os levou a tais possíveis más interpretações dos fatos (ou de partes deles), os participantes relataram que era a forma confusa pela qual a ocorrência foi relatada.

3.3 Texto 3

O Texto 3 foi definitivamente aquele que mais apresentou problemas de co-esão textual, e assim, de coerência, o que desfavorece a sua compreensão. A história relatada neste texto é a de uma pessoa que tentou invadir a residên-cia que costumava morar com sua ex- esposa para levar a filha para passear. Esta pessoa foi acusada pelo policial de ter usado documentação falsa que

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permitisse que ele pegasse a sua filha. Quando os participantes foram inda-gados sobre o que achavam que tinha acontecido (questão 1), todos mostra-ram dificuldades de compreensão. P1, P2 e P3 fizeram o uso de expressões tais como, eu acho, me parece e eu não tenho certeza, respectivamente. Por outro lado, P2 usou um ponto de interrogação no meio de sua resposta que também mostrou a sua dúvida em relação ao que foi relatado na ocorrência.

Quando indagados sobre a que a expressão fatos ocorridos (linhas 19 e 20) se referia, eles afirmaram compreender que dizia respeito à invasão do homem na sua ex-residência. Porém, P4 afirmou não ter compreendido, relatando que o texto se apresentava confuso. Na tentativa de conferir como a coerência local é estabelecida no texto, os participantes foram solicitados a responder a respeito da identidade dos sujeitos envolvidos na ocorrência (questão 2). Com respeito a Jose Aritmeia, todos os participantes responde-ram que ele era o pai da garota. Porém, P1 afirmou que não estava certo se ele era mesmo o proprietário do apartamento, devido a informação que não parece clara no texto, descrita nas linhas 4 e 5. No entanto, todos os parti-cipantes identificaram facilmente os outros sujeitos envolvidos no ocorrido, como a ex-esposa e a empregada. Assim como nas atividades dos Textos 1 e 2, quando questionadas sobre o que poderia levar o Texto 3 a parecer con-fuso, P1, P2 e P3 mencionaram a falta de pontuação como a causa principal para que isso ocorresse. Mais especificamente, P1 mencionou que o texto possuía frases sem sentido e P3 relatou que elas eram muito longas.

4. Discussão

Resultados finais mostraram que todos os participantes da pesquisa encon-traram nos textos 1, 2 e 3 problemas que afetaram suas compreensões dos mesmos, em diferentes níveis, como pode se observar nas discussões acima. Embora os textos tenham apresentado problemas no estabelecimento de re-ferências anafóricas como elementos que prevalecem a coesão e a coerência textual, a compreensão das partes significantes da história, as identidades dos sujeitos envolvidos na ocorrência bem como a relação estabelecida entre eles foram parcialmente compreendidas. Este fato pode ser justificado com base na afirmação de que “somente elementos de coesão não são suficientes para a interpretação de um discurso. Os leitores criam inferências baseadas em seu conhecimentos prévios e em obstáculos para a compreensão de um discurso”11 (LOUWERSE & GRAESSER, 2005, p. 2). Porém, de acordo com os autores, “embora elementos de coesão sozinhos não devam ser res-ponsáveis pela coerência textual, a área da psicolinguística tem mostrado que a presença destes elementos facilitam a coerência textual”12 (ibid, p. 2).

11. Minha tradução para: “cohesion alone is not sufficient for the interpretation of the discourse. Comprehenders generate inferences on the basis of background knowledge and discourse constraints”.

12. Minha tradução para: “although cohesion alone cannot fully account for coherence in discourse, the psycholinguistic literature has shown that cohesion facilitates coherence”.

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Esta afirmação é corroborada pelos resultados deste estudo que mostram que os participantes da pesquisa obtiveram, em níveis diferenciados, dificul-dades de compreensão dos fatos ocorridos e relatados pelos policiais. Assim, como conclusão, pode-se dizer que a hipótese deste estudo foi confirmada. Mais especificamente, que os leitores dos textos 1, 2 e 3 sofreram problemas ao tentar compreendê-los devido a falhas no uso de elementos que permi-tem a coerência local e global. Como consequência, isto pôde afetar as suas percepções dos fatos presentes nas ocorrências criminais através da forma pela qual eles foram relatados e descritos pelos policiais. Apesar de se tratar de um estudo de caso, vale ressaltar que, se os responsáveis por avaliar os registros das ocorrências criminais analisados nesta pesquisa compartilha-rem do mesmo grau de compreensão dos participantes, a falha na descrição de detalhes importantes sobre os casos nos registros policiais, tais como, quem eram os suspeitos dos crimes, consequentemente, poderiam causar prejuízos a pessoas acusadas de um crime dos quais não são responsáveis.

5. Considerações finais

A análise linguística de textos com registros de ocorrências realizadas por policias, sendo eles provenientes da polícia civil ou militar, pode trazer rele-vantes considerações sobre como a forma a qual o relato de um crime é des-crito pode influenciar na decisão legal de um caso. O estudo realizado mos-trou algumas considerações que demonstram problemas de interpretação dos relatos das ocorrências criminais realizadas por um oficial de policia. Diante disso, essa investigação tem por objetivo contribuir para a consciên-cia da necessidade da melhoria na elaboração desse tipo de texto, como um documento importante que costuma servir de base para uma investigação criminal. As limitações deste estudo podem ser atribuídas ao fato de que os participantes do estudo não compartilhem do mesmo conhecimento de um delegado de policia ou de um juiz, por exemplo, que estão acostumados com a leitura deste tipo de documento. No entanto, isto não exatamente garante que eles possam compreender os relatos de um texto que apresente falhas em aspectos de coesão e coerência textual.

Finalmente, um estudo deste tipo pode não somente despertar a ne-cessidade para outros estudos na área de coerência local (coesão) e global em textos, mas também pode sugerir outros tipos de análises linguísticas do mesmo tipo de texto que venham abordar outros aspectos relevantes a respeito da elaboração destes textos.

Referências

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Apêndice A

TEXTO 1

1 Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Durante o evento

2 Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento preventivo nas

3 imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar 30, depara-mos com uma

4 briga generalizada entre torcedores da torcida do Atlético; ao intervir-mos,

5 constatamos que o senhor João José, furtou a camisa do clube Atlético Mineiro, de

6 uma das vítimas que estava caído ao solo. Ao abordá-lo, o mesmo tentou se evadir

7 do local com o produto, através de solavancos e safanões. Nesse momen-to foi lhe

8 dado voz de prisão por resistência. A vítima do furto, devido a enorme confusão da

9 briga generalizada, não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi apreendido

10 com o autor da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi condu-zido a vossa

11 presença, ficando a disposição para providências futuras. No momento da

12 imobilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo sido

13 encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico.

TEXTO 2

1 Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da Boa

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2 Esperança, próximo ao número 20 (vinte), deparamos com o cidadão infrator citado

3 no campo 01, onde o João José foi abordado e encontrado em seu poder um tablete,

4 dois cigarros e uma pequena porção de uma substância esverdeada se-melhante a

5 maconha. O mesmo nos relatou que comprou a referida substância no valor de trinta

6 e cinco reais, na rua Monsenhor Paulo Brasil, no bairro Cabana. Diante dos fatos os

7 militares deslocaram até a sua residência onde a senhora Rosa Inês Pereira da Silva,

8 mãe do Guilherme autorizou a entrada dos militares em sua residência para ser

9 realizada uma busca com o objetivo de certificar se não havia nenhuma outra

10 substância semelhante que fora encontrada em poder do João José. Diante do

11 exposto foi garantido seus direitos constitucionais bem como mantido a sua

12 integridade física, ficado a disposição

TEXTO 3

1 No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das 20:30hs

2 compareceu o seu ex-marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele soli-citar o

3 comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conhecimento por parte de José

4 Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam Rafael até o (807) apartamento

5 este de propriedade de José Arimatéia, porém em nome de outro. Na portaria José

6 Arimatéia deu conhecimento ao porteiro Renato Rocha que, ele estava de posse de

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7 um “Mandato Judicial” e que iria subir até o apartamento e usando de má fé

8 mostrando um “termo de audiência” (no. 024.03.028.949-0) não dei-xando que o

9 porteiro e o zelador Júlio César verificasse o teor da documentação e contando uma

10 história que não condiz com a verdade para os policiais militares que acompanharam

11 até o citado apartamento, vindo a empregada doméstica abriu a porta do

12 apartamento 807 para atender José Arimatéia, quando ele adentrou e colocou sua

13 filha no colo (Larissa) quando a empregada Andréia deu conhecimento a Solange

14 que a criança estava com o pai (José Arimatéia) vindo Solange conversar com o Sgt.

15 Ferreira e pedi-lo para que orientasse a José de Arimatéia que deixasse a criança

16 Larissa descer pelo elevador com ela Andréia, fato este que aconteceu. Solange

17 relata que estava aguardando José Arimatéia para buscar a criança des-de cedo,

18 conforme acordo policial. Quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael

19 Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos

20 ocorridos; quando José Arimatéia estava no lado externo (rua) vindo Solange

21 despedir da sua filha e aguardando retorno dos militares que estavam na rua no

22 interior da viatura e logo após eles deslocando para suas atividades. Vin-do Solange

23 ligar 190 para relatar sua versão neste.

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Apêndice B

Caro (a) participante,

Você irá realizar 3 atividades similares que correspondem a interpretação de textos de ocorrências policiais. Por favor, siga as instruções abaixo correta-mente até o final desta pesquisa.

Muito obrigada!

ATIVIDADE I

Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:

TEXTO 1

Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Duran-te o evento Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento preventivo nas imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar 30, deparamos com uma briga generalizada entre torcedores da torcida do Atlético; ao intervirmos, constatamos que o senhor João José, furtou a ca-misa do clube Atlético Mineiro, de uma das vítimas que estava caído ao solo. Ao abordá-lo, o mesmo tentou se evadir do local com o produto, através de solavancos e safanões. Nesse momento foi lhe dado voz de prisão por resis-tência. A vítima do furto, devido a enorme confusão da briga generalizada, não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi apreendido com o autor da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi conduzido a vossa pre-sença, ficando a disposição para providências futuras. No momento da imo-bilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo sido encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico.

De que trata o fato ocorrido?

Em relação às pessoas envolvidas no fato ocorrido:

a) A quem se refere a expressão ‘vossa presença’?

b) Quem foi conduzido ‘a vossa presença?

c) Quando é dito: ‘Após os dados relatados’, quem você acha que relatou os fatos?

d) A quem se refere a expressão ‘o mesmo’, no texto?

Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim hou-ver)

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Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compre-ensão do mesmo?

ATIVIDADE II

Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:

TEXTO 2

Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da Boa Esperança, próximo ao número 20 (vinte), deparamos com o cidadão infra-tor citado no

campo 01, onde o João José foi abordado e encontrado em seu poder um tablete, dois cigarros e uma pequena porção de uma substância esverdeada semelhante a maconha. O mesmo nos relatou que comprou a referida subs-tância no valor de trinta e cinco reais, na rua Monsenhor Paulo Brasil, no bairro Cabana. Diante dos fatos os militares deslocaram até a sua residência onde a senhora Rosa Inês Pereira da Silva, mãe do Guilherme autorizou a entrada dos militares em sua residência para ser realizada uma busca com o objetivo de certificar se não havia nenhuma outra substância semelhante que fora encontrada em poder do João José. Diante do exposto foi garantido seus direitos constitucionais bem como mantido a sua integridade física, fi-cado a disposição desta seccional para as providência que julgardes cabíveis. Obs.: adianto-vos que na residência nada foi encontrado.

a) De que trata o fato ocorrido?

Em relação às pessoas envolvidas no ocorrido:

a) Quem é João José?

b) Qual a relação de Rosa Inês Pereira da Silva com João Jose?

Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim hou-ver).

Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compre-ensão do mesmo?

ATIVIDADE III

Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:

TEXTO 3

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No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das 20:30hs compareceu o seu ex:marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele solicitar o comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conheci-mento por parte de José Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam Rafael até o (807) apartamento este de propriedade de José Arimatéia, po-rém em nome de outro. Na portaria José Arimatéia deu conhecimento ao porteiro Renato Rocha que, ele estava de posse de um “Mandato Judicial” e que iria subir até o apartamento e usando de má fé mostrando um “ter-mo de audiência” (no. 024.03.028.949-0) não deixando que o porteiro e o zelador Júlio César verificasse o teor da documentação e contando uma história que não condiz com a verdade para os policiais militares que acom-panharam até o citado apartamento, vindo a empregada doméstica abriu a porta do apartamento 807 para atender José Arimatéia, quando ele aden-trou e colocou sua filha no colo (Larissa) quando a empregada Andréia deu conhecimento a Solange que a criança estava com o pai (José Arimatéia) vindo Solange conversar com o Sgt Ferreira e pedi-lo para que orientasse a José de Arimatéia que deixasse a criança Larissa descer pelo elevador com ela Andréia, fato este que aconteceu. Solange relata que estava aguardando José Arimatéia para buscar a criança desde cedo, conforme acordo policial. Quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos ocorridos; quando José Arimatéia estava no lado externo (rua) vindo Solange despedir da sua filha e aguardando retorno dos militares que estavam na rua no interior da viatura e logo após eles deslocando para suas atividades. Vindo Solange ligar 190 para relatar sua versão neste.

a) De que trata o fato ocorrido?

b) Em relação ao texto ‘quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos ocorridos’. Neste caso, o que você entende como ‘fatos ocorridos’?

Em relação às pessoas envolvidas no ocorrido:

a) Quem é Jose Aritmeia?

b) Quem é Solange

c) Quem é Andreia

Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim hou-ver)

Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compre-ensão do mesmo?

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Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da

Mulher

Márcia Cristiane Nunes Scardueli

Universidade do Sul de Santa Catarina e Academia da Polícia Civil de Santa Catarina

1. Introdução

Neste capítulo proponho-me a realizar análise discursiva do texto policial, em especial da peça denominada Relatório de Inquérito, que tem por fina-lidade encerrar os trabalhos policiais de investigação de uma situação deli-tuosa. De forma pontual, os relatórios aqui analisados referem-se apenas às investigações policiais referentes a crimes cometidos contra mulheres que tenham sido vítimas de violência doméstica, praticada por seus parceiros íntimos, do sexo masculino1, ou seja, maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados, uma vez que eles são apon-tados pelas estatísticas da violência contra a mulher como o grupo de maior incidência.

Geralmente, a violência praticada pelos parceiros íntimos é parte de um padrão repetitivo de tentativa de controle e dominação da mulher, que pode se caracterizar por agressões físicas na forma de tapas, socos, chutes, tentativas de estrangulamento, queimaduras, além de destruição de objetos pessoais e ameaças de agressão física a ela, aos filhos e a outros membros da família; abusos psicológicos como humilhação, menosprezo e intimidação;

1. Esse corpus selecionado compõe o corpus da pesquisa de Doutorado da autora, situada na linha de pesquisa Texto e Discurso, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (campus Tubarão), que tem por objeto de pesquisa os efeitos de sentidos que se estabelecem a partir da aplicação da Lei Maria da Penha, tanto na fase policial, quanto na fase judicial, em casos de violência contra a mulher praticada por parceiros íntimos do sexo masculino, investigados na cidade de Araranguá/SC, sob a perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, no período de 2006 a 2013.

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comportamento de controle como vigilância de suas ações, restrição da li-berdade de ir e vir, isolamento da família e amigos; e ainda, coerção sexual.

No que tange à efetivação da análise discursiva, busquei encontrar nos relatórios policiais materialidades linguísticas que me permitissem discutir os efeitos de sentido que são produzidos a partir do discurso policial que investiga a violência doméstica praticada contra as mulheres. Minha expec-tativa foi poder verificar como delegados de polícia percebem o universo da violência doméstica, em especial daquela cometida contra as mulheres e como concepções pessoais podem ou não influenciar suas decisões, a partir da aplicação da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. 2

Nesse sentido, dos vinte relatórios policiais selecionados3, produzidos nos anos de 2012 (16 documentos) e 2013 (quatro relatórios), na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Araranguá, no Esta-do de Santa Catarina, recortei sequências discursivas que referem o sujeito vítima e o sujeito autor da violência doméstica, a fim de verificar a presença e/ou ausência de memória discursiva sobre as relações de gênero no cenário da violência, identificando os pontos que explicitam o caráter socialmente construído dessas relações. De acordo com Orlandi (2010), as unidades discursivas nas quais o corpus discursivo é recortado constituem fragmen-tos de um discurso que, submetidos à análise, são capazes de revelar uma determinada situação discursiva.

1.1 Do Jurídico ao Linguístico

Considerando-se que o Estado tem por missão básica a promoção do bem--estar geral e para isso estabelece normas que garantam a liberdade indivi-dual e possibilitem o equilíbrio da existência coletiva e que, nesse mister, ele se impõe, altera a realidade e age segundo a vontade geral expressada atra-vés da Lei, o poder de polícia surge como um mecanismo inibidor do arbítrio que restabelece a vontade geral da coletividade. Com o objetivo de propor-cionar a segurança pública, a tranquilidade e a ordem social, o Estado, por intermédio das instituições policiais, em especial da Polícia Civil, também

2. A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 20 de setembro de 2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar e refere-se aos direitos das mulheres, determinando que o poder público desenvolva políticas que garantam a promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2006).

3. O corpus amplo da pesquisa de Doutoramento da autora foi delineado de forma a ser composto pelos relatórios de inquérito policial e sentenças judiciais referentes aos processos desses mesmos inquéritos, que já estivessem conclusos e disponíveis para consulta no fórum da Comarca da cidade de Araranguá (extremo sul de Santa Catarina), do período de 2006, quando a Lei Maria da Penha foi promulgada, até setembro de 2013, quando o projeto de pesquisa foi qualificado.

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chamada de Polícia Judiciária, investiga as infrações penais cometidas, a fim de que os seus autores sejam penalizados, de acordo com as leis vigentes.

No que concerne à violência praticada contra as mulheres, em Santa Catarina, a Polícia Judiciária dispõe de unidades policiais consideradas pela corporação como ‘especializadas’4 – as Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI)5. Uma vez que a primeira demanda dessas delegacias veio das mulheres e, possivelmente, esse ainda seja o gru-po que recebe o maior número de atendimentos, essa unidade policial tem sido chamada apenas de Delegacia da Mulher.

A violência doméstica praticada contra a mulher pode ser configurada como agressões físicas ou ameaças de agressão, humilhações, xingamentos, etc. Pesquisa realizada por Farias (2011) sobre os inquéritos policiais instau-rados na Delegacia da Mulher de Araranguá em 2010 constatou que a maior concentração dos crimes apurados naquele ano era de ameaça (50%), se-guida de lesão corporal, com 34% dos casos e o restante do percentual reu-nia outros tipos de crime. Os dados de Farias encontram respaldo na pes-quisa de Nizer (2010), que verificou a incidência criminal contra a mulher na Delegacia da Mulher de Florianópolis, no ano de 2006. Os resultados foram os mesmos no que diz respeito aos tipos de crimes, ou seja, também em Florianópolis, o maior índice de registros foi do crime de ameaça (48%), seguido de violência física (21%) dos crimes analisados.

No corpus documental selecionado para a presente pesquisa, também esses dados se repetiram. Dos vinte processos selecionados, quatorze apu-raram crimes de ameaça, cinco de lesão corporal e cinco de injúria, con-siderando que alguns processos apuravam mais de um crime. Importante observar que é muito comum que a violência doméstica que se efetiva via ameaça e/ou lesão corporal venha acompanhada de agressões verbais (injú-ria e difamação).

O Código Penal Brasileiro define o crime de ameaça no artigo 147, como sendo conduta de “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. O crime de lesão corporal é tipificado no artigo 129: “ofender a integridade corpo-

4. Pesquisa realizada em 2006, referente à representação da Delegacia da Mulher por policiais civis, apontou que, ainda que o termo ‘especializada’ fosse usado para fazer referência a unidades policiais “especiais”, não houve esclarecimentos acerca do que consistia o termo. Isso indicou que sua utilização pelos policiais era apenas formal e não conceitual, ou seja, eles tinham conhecimento de que existem, no quadro da Polícia Civil, algumas delegacias especializadas, mas seu conhecimento sobre o tipo de trabalho específico nelas desenvolvido limita-se ao nome de cada uma dessas unidades policiais (SCARDUELI, 2006).

5. Essa é a nomenclatura utilizada no Estado de Santa Catarina; em outras unidades da federação outras nomenclaturas e siglas são atribuídas a essa unidade policial especializada, como Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e Delegacia da Mulher (DM).

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ral ou a saúde de outrem”. Por injúria entende-se a ofensa à dignidade ou ao decoro, definido como crime no artigo 140 do Código Penal (BRASIL, 2000). A Lei Maria da Penha classificou os tipos de violência contra a mu-lher em cinco eixos: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral (BRASIL, 2006). O crime de amea-ça se enquadra na violência psicológica, o de lesão na violência física e o de injúria na violência moral.

A denúncia da ocorrência de crimes se dá, geralmente, pela comuni-cação à Autoridade Policial dos fatos ocorridos transcrita num documento denominado Boletim de Ocorrência. Esse, via de regra, é o início da ação policial no processo de investigação do ocorrido, que vai culminar com a produção de um relatório sobre a situação apurada. O relatório é, então, a peça final produzida pela Polícia Civil, no processo de investigação e é de competência da autoridade policial6 que não poderá manifestar sua opinião, limitando-se a declinar as providências realizadas e seus resultados, o resu-mo dos depoimentos prestados, bem como tipificar o delito e esclarecer sua autoria e materialidade (AVENA, 2009).

Segundo Avena (2009), o conjunto de diligências realizadas pela au-toridade policial visando à obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade dos crimes investigados (oitiva das partes en-volvidas, realização de exames periciais, etc) é o que constitui o Inquérito Policial, cuja finalidade é, portanto, reunir elementos necessários para a instauração da ação penal, pelo Poder Judiciário, em fase posterior.

Nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa (AD), valorizam-se as condições de produção das formações discursivas, referidas por Orlandi (2010, p. 43), como “aquilo que numa formação ide-ológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”. Segundo Pê-cheux (2008), as condições de produção são definidas pelos lugares ocupa-dos pelo emissor e receptor na formação social. E, em face disso, o estudo da linguagem não pode estar desvinculado de suas condições de produção, exatamente o enfoque dado pela Análise do Discurso (BRANDÃO, 2004).

1.2 No Fio Discursivo dos Relatórios de Inquérito

Para início da discussão sobre o material coletado na fase policial, abordarei a peça que compõe o inquérito policial denominada relatório e que é pro-

6. De acordo com o Art. 4º do Código de Processo Penal, a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria (BRASIL, 2012). Nesse sentido, o cargo de delegado de polícia é aquele a quem se atribui a autoridade de polícia judiciária, em âmbito administrativo.

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duzida pelo delegado de polícia7, a Autoridade de Polícia Judiciária, posição que atribui a esse sujeito a condição de apresentar descritivamente os fatos apurados numa investigação criminal, a fim de que possam ser julgados numa instância posterior, a judicial.

A posição sujeito-delegado operando como o enunciador no texto dos relatórios é bem marcada, especialmente pela interação com o sujeito-juiz, a quem o relatório é endereçado, já desde o início do texto, pelo emprego dos vocativos8 “meritíssimo juiz ou excelentíssimo juiz” que iniciam a enun-ciação da peça relatório. O emprego desses vocativos anuncia a formação discursiva na qual eles estão inseridos – a do discurso jurídico – e faz refletir sobre as condições de produção desse discurso e as possibilidades de efeitos de sentido por ele produzidos. Os interlocutores ocupam lugares determi-nados na estrutura de uma formação social, lugares esses que estão repre-sentados por uma série de formações imaginárias, conforme o que Pêcheux (1997) chamou de o jogo de imagens: a) a imagem que o falante tem de si, do lugar que ocupa e do que é enunciado; b) a imagem que o sujeito, ao enunciar, tem do seu ouvinte, do lugar ocupado por ele, e do discurso que é enunciado.

No cenário da justiça-criminal (polícia civil e poder judiciário) as con-dições de produção de discursos são comuns às duas instituições (polícia e judiciário). Assim, o discurso que se estabelece num relatório acontece em um cenário que lhe é próprio e lhe dá especificidade, visto que faz parte de um gênero específico (relatório), que dialoga com alguém (juiz/promotor) sobre algo já estabelecido historicamente (conflito familiar/social), temática também já tratada anteriormente por outros sujeitos (advogados, juízes, pro-motores), e que já é predeterminada por uma ordem social, face ao caráter histórico-social da violência. Conforme Scardueli (2006), embora nem to-das as práticas discursivas de policiais possam ser tomadas como exemplos de discurso jurídico, elas são fortemente influenciadas pelo discurso jurídico que esses sujeitos utilizam em suas práticas discursivas diárias nas delega-cias de polícia, por eventualmente circularem em uma mesma formação discursiva em que são produzidos outros tipos de documentos oficiais como registros de ocorrências, portarias, ofícios, etc.

A produção textual do relatório de um inquérito policial se organiza dentro de uma ritualidade habitual do discurso jurídico e, segundo Thomé (1997, p. 123), para uma melhor compreensão, o relatório deve ser dividido em três partes: preâmbulo, histórico da investigação e conclusão (ainda que nem sempre essas seções estejam claramente divididas). Nas peças ana-

7. Dos vinte relatórios de inquérito analisados nesta pesquisa, dezenove foram produzidos por um sujeito-delegado e um por outro, possivelmente que estivesse atuando na DPCAMI durante o período de férias do primeiro, que é o titular da unidade policial.

8. O vocativo meritíssimo juiz foi empregado onze vezes, excelentíssimo cinco vezes e quatro relatório foram produzidos sem emprego de vocativos.

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lisadas, a menção à Lei Maria da Penha se faz apenas na parte inicial (no preâmbulo), em que a Autoridade Policial contextualiza os fatos ocorridos que geraram a instauração daquele procedimento policial.

Nos relatórios analisados, o instrumento motivador da ação jurídica de instauração dos procedimentos policiais – a Lei Maria da Penha – foi assim mencionada:

Instaurou-se o presente Inquérito Policial para apurar o crime de ameaça, este abrangido pela Lei 11.340/06, fato ocorrido em 04 de março de 2013 na Rua Doutor Virgulino de Queiróz, Centro, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e como investigado [nome] [R18].

Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei 11.340/06 (...)[R9)

Trata o presente inquérito do crime de ameaça, abrangido pela lei 11.340/06 (...)[R19]

A formatação dos textos produzidos no meio jurídico segue uma modelagem pré-definida, que se repete como um padrão. Essa “modelagem” emprega-da nos textos jurídicos pode sugerir a generalização das situações tratadas naqueles textos, em que as particularidades de cada caso investigado e os sujeitos nele envolvidos parecem ser pouco observados.

Nos casos de violência contra a mulher, em destaque neste estudo, a padronização dos textos pode silenciar enredos e histórias de vida, que se transformam em indicativos numéricos; deixando à deriva a questão das singularidades envolvidas em cada situação, promovendo assim, a desubje-tivação dos textos.

A Lei 11.340/06 é o dispositivo jurídico para o início da atividade poli-cial investigativa que tratou dos crimes narrados pelas vítimas. Essa lei foi promulgada para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulhe-res, histórica e culturalmente submetidas à violência por parte de sujeitos do sexo masculino. A menção ao número da lei para justificar a instauração do procedimento policial silencia o cenário doméstico da violência ocorrida e que fez surgir a Lei 11340/06. Os crimes descritos nos relatórios analisa-dos são referidos como “abrangidos” pela lei, sem que a questão da violên-cia doméstica, que é a temática específica tratada pela lei seja mencionada. Esse silenciamento, então, pode ser entendido como constitutivo, definido por Orlandi (2007) como aquele que se diz, não dizendo, ou seja, a violência doméstica contra a mulher se revela apenas pela menção da Lei, pois se é

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essa lei que está sendo aplicada, então fica implícito que a violência sofrida era no meio doméstico. Essa compreensão é possível porque a Lei Maria da Penha se inseriu historicamente na formação discursiva dos sujeitos que enunciam a violência. Essa questão remete, ainda, à presença de um inter-discurso.

Azevedo (2007), referindo-se ao interdiscurso, diz que as escolhas lin-guísticas e discursivas que compõem um texto de determinado discurso não são aleatórias, mas marcadas por interlocutores (sujeitos) que enunciam a partir de posições inscritas numa formação social. Por isso, as condições de produção passam a ser compreendidas através da representação do imagi-nário histórico-social, porque os sujeitos que produzem linguagem o fazem de lugares ideologicamente marcados.

Outra observação que se faz logo no início dos relatórios é a descrição do cenário em que os crimes aconteceram, em que o emprego do termo ‘figurando’ desperta a atenção também para essa questão do silenciamento. Em treze dos vinte relatórios analisados o verbo figurar é empregado para apresentar a posição ocupada pelos sujeitos vítima e agressor, conforme o excerto a seguir:

Instaurou-se o presente inquérito policial objetivando apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei 11.340/06, ocorrido em 13 de fevereiro de 2012, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e investigado [nome] [R6].

O emprego do verbo figurar em relatórios de inquérito parece ser prática comum, em função do número de ocorrências. Observa-se que quando o termo não é empregado, outra expressão aparece: em tese, como no exem-plo a seguir:

Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela lei 11.340/06, ocorrido em data não especificada, provavelmente no mês de maio de 2012, nesta cidade, em tese praticado por [nome] contra [nome] [R13].

Em ambos os casos, fica implícita uma suspeita sobre a ocorrência dos cri-mes e/ou a autoria deles; ou seja, o emprego desses termos produz sentido de dúvida. No dicionário, o verbo figurar significa “representar, simbolizar, fingir, imaginar, supor” (XIMENES, 2000, p. 436). A expressão em tese, por sua vez, significa “teoricamente, supostamente”. O emprego dessas ex-pressões nos relatórios policiais indica a falta de condição para se chegar à verdade real, buscada pela polícia durante a apuração de crime, posto que essa verdade de fato não existe, e o que fica, a materialidade do crime com a qual a polícia trabalha, é, pois, apenas simbólica.

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Ainda que essas expressões - figurar e em tese - pertençam à prática discursiva diária da polícia, em especial para a produção de relatórios, e que o seu emprego assim se justifique, é possível pensar nessas expressões como significando algo mais. Nos textos analisados, ainda que as expressões tenham sido usadas, todos os agressores foram considerados culpados pela autoridade policial que sugeriu ao juiz, no final dos relatórios, o indiciamen-to9 deles por práticas de violência doméstica contra mulheres. Parece então que o emprego das expressões no início do texto não coaduna com o fim dele, em que há a menção da prática delitiva, conforme os excertos a seguir.

Isso posto, indicie-se [nome] pela prática do crime previsto no artigo 147 do Código Penal [R6].

Isso posto, considerando a data das mensagens telefônicas, indicie-se [nome] [R13].

Fica a dúvida, por que o uso de “figurar e em tese” no texto final do trabalho policial, se é nesse momento que a autoridade vai declarar se está convicta de que o crime aconteceu e que fora determinada pessoa que o cometeu? Ou não estaria convicta?

A contradição apontada acima indica a não homogeneidade da lingua-gem e do sujeito, o que pode também ser especulado em face do emprego do verbo “apurar”, na sequência discursiva apresentada anteriormente: Trata--se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça [R13].

O enunciador, ao referir-se a apurar o crime de ameaça, afirma a ocor-rência do crime, ou seja, o inquérito trataria, então, de “apurar” a ocorrên-cia, no sentido genérico do meio policial, buscando responder as perguntas investigativas: quem cometeu, onde foi cometido, como e por que foi come-tido. Assim, parte-se da premissa de que o crime ocorreu, o que novamente não explica o emprego de “figurar e em tese”. Essas expressões poderiam significar a dúvida sobre a ocorrência ou não do crime se ao invés de “apu-rar o crime de ameaça”, tivesse sido empregado “apurar a denúncia de cri-me de ameaça”, pois a investigação partiria então da suspeita da ocorrência criminosa. Pode-se, aqui, fazer referência a Pêcheux e a sua teorização so-bre a incompletude da língua, da falha, do furo a que todo dizer está sujeito (2008).

A produção do texto técnico prima (teoricamente) pela observância da objetividade e da imparcialidade, fazendo uso da função referencial da lin-guagem, uniformizando as estruturas linguísticas empregadas, que buscam

9. O termo indiciamento é empregado no meio policial, para designar o ato de atribuir formalmente a autoria de um crime a um suspeito. O indiciamento não significa culpa ou condenação, mas que os indícios colhidos durante a investigação, permitem atribuir a autoria do crime a alguém.

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informar, visando à neutralidade do enunciador – ainda que se saiba dessa impossibilidade, conforme apontado acima. O emprego da voz passiva é um exemplo disso. Nos excertos de relatórios previamente apresentados, a voz passiva com o uso do pronome se apassivador denota a tentativa de neutrali-dade e distanciamento dos fatos tal qual aconteceram para o que foi apura-do pela polícia. Esse suposto lugar da neutralidade do discurso jurídico que tenta aparentar imparcialidade no tratamento das questões, porém, é ques-tionável, em função de que ela se dá a partir de sentidos construídos dentro de uma formação discursiva que definiu como essa neutralidade deveria ser marcada. Assim, observa-se que essa tentativa de neutralidade acaba sem-pre por ocultar algum outro sentido, o da indiferença, por exemplo.

1.3 Marcas de Gênero

A construção linguística dos textos dos relatórios permite-nos identificar os lugares sociais ocupados também por vítimas e agressores, na concepção do enunciador, reforçados no texto, pela escolha lexical que atribuem a eles (os agressores) o papel de dominação e a elas (as vítimas), o papel de subordina-das nessa relação de poder que se estabelece entre eles. Dentre as imagens que vão sendo construídas, no discurso ali apresentado, é possível perceber um cenário de dominação masculina sobre o indivíduo do sexo feminino, conforme os excertos a seguir dispostos, que foram grifados por mim:

Relatou que a partir da separação passou a ser ameaçada de morte por ele, inclusive via telefone [R1].

Relatou sofrer com ameaças de morte e agressões verbais do tipo “puta, vagabunda e alcoólatra”, proferidas pelo investigado [R2].

Relatou que vem sofrendo injúrias e ameaças de [nome] [R3].

Em razão da ingestão frequente de bebidas alcoólicas ele lhe agride verbalmente, chamando-a de “puta e vagabunda” e ainda faz ameaças de morte [R4].

Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha [R8].

Disse que [nome] sempre a agredia e ameaçava de morte. Afirma que após a última agressão física saiu de casa, mas [nome] continuou a

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fazer ameaças. Em relação às lesões sofridas não fez registro anterior por medo [R10].

Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras “puta e vagabunda”[R11].

Após pedir a separação passou a ser ameaçada de morte e injuriada por ele[R12].

Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] “iria para o inferno, assim como ele”, colocando uma faca em seu pescoço [R15].

Relatou que foi agredida por ele, o que acabou deixando lesões em seu rosto [R17].

Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los”. Informou que [nome] tentou manter relações sexuais à força, sem seu consentimento, e que gritou, acordando seus filhos, quando o acusado não persistiu no ato [R18].

Os excertos acima denotam situações em que as vítimas são submetidas a ações por parte de seus agressores que as colocam em situação inferior, de submissão, de vulnerabilidade diante deles. Observa-se, ainda, que as ações descritas como sendo dos agressores têm conotação de atos da fala em que as ações são praticadas especialmente pela fala dos sujeitos, como nos verbos: ameaçar, agredir verbalmente, injuriar e proferir ameaças. Nos excertos acima, esses termos foram usados dezesseis vezes, enquanto que ações que requeriam uma atividade física diversa da fala foram empregadas apenas quatro vezes, como indicam os termos: agredida fisicamente com tapas e apertões, colocar a faca no pescoço, manter relações sexuais à força.

Quanto às atitudes das vítimas, os excertos apontam atitudes como saiu de casa, mudou-se para a casa do pai e gritou, ações essas realizadas para conter as agressões dos parceiros. Também a própria atitude de denun-ciar foi uma ação nesse sentido, de conter as atitudes dos agressores.

A literatura específica sobre a violência contra a mulher aponta que, em geral, essas vítimas possuem autoestima baixa e sentem-se incapazes de reagir (SAFFIOTI, 1997), entretanto, o cenário da pesquisa, por si só mostra uma ação das mulheres vítimas – a de denunciar. As denúncias mo-tivaram a ação do Estado sobre a violência sofrida por elas. Nos casos ana-

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lisados, todos foram iniciados pela denúncia das próprias vítimas. Além de denunciar, também é possível perceber que outras atitudes dessas vítimas destoam desse quadro descrito por Saffioti (1997), de que elas se sentem incapazes de reagir, conforme demonstram os excertos abaixo:

A vítima, em depoimento, disse que conviveu com [nome] por dois anos e que resolveu separar-se em virtude do comportamento dele [R1].

Em depoimento neste inquérito a vítima relatou que conviveu com o investigado por 41 anos e devido às agressões dele se separou [R7].

Em depoimento prestado em agosto de 2012, a vítima disse ter se separado do investigado em razão dele usar cocaína. Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai (...) [R8].

Afirma que após a última agressão física saiu de casa, (...) [R10].

Relatou ter convivido com o investigado por dez anos e que tiveram dois filhos desse relacionamento, porém, decidiu se separar [R11].

Importante pensar que essas ações praticadas pelos homens que ficam mais restritas aos atos de fala podem indicar a preocupação em não deixar mar-cas visíveis, que poderiam ser mais eficazes para a penalização desses auto-res pela Lei Maria da Penha, posto que marcas visíveis se configuram como vestígios do crime praticado e independem de testemunhas como no caso de ameaças e injúrias. No cenário da violência doméstica, a penalização muitas vezes deixa de acontecer pela ausência de provas, que podem ser tanto técnicas quanto testemunhais.

Além dessa questão da produção de provas, também se pode pensar sobre o efeito simbólico da agressão verbal sobre as mulheres, que pare-ce manter estreita relação com a sua sexualidade. Observa-se que os xin-gamentos proferidos pelos agressores contra as vítimas deslizam para sig-nificados relacionados à traição, com forte apelo sexual, sugerindo que as mulheres envolvem-se com outros homens, como no caso de puta, vaga-bunda e sem-vergonha, como mencionados nos relatórios de número 2, 4 e 8, exemplificados acima. Essa também foi uma constatação da pesquisa de Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), que investigou valores de gênero nas re-presentações de xingamentos, manifestados por adolescentes da cidade de

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Brasília. Segundo as autoras, quando atribuídos às mulheres, os xingamen-tos têm caráter sexual ativo tais como puta, prostituta, piranha, safada, já os dirigidos aos homens têm caráter passivo.

Xingar é insultar com palavras, com o propósito de machucar e degra-dar moralmente outra pessoa, o que se considera uma violência moral e psi-cológica. Na ofensa praticada via xingamento, os significantes empregados pouco importam, o que conta mesmo são seus significados. De acordo com Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), o xingamento carrega em si valores mo-rais e regras apregoados por uma sociedade, independentemente da cons-ciência do falante ao proferi-los, podendo, então, veicular, também, valores atribuídos aos diferentes gêneros.

A educação das mulheres, no sistema patriarcal, que ainda exerce for-te influência nas relações de gênero, associa as mulheres ao casamento, que deverá ser para sempre; à maternidade, além de posicioná-la no lar, onde ela ficará afastada, isolada do mundo exterior, guardada em domínio privado, do marido, provavelmente. Essa representação construída da mu-lher colabora para a compreensão dos xingamentos a elas proferidos, que as desmoraliza quanto a essa postura idealizada de comportamento feminino.

Segundo Judith Butler (2008), o gênero está, a todo tempo, sendo mo-bilizado nas práticas discursivas cotidianas que se manifestam nas atitudes de homens e mulheres, a partir de padrões determinados socialmente, so-bre o que é ser homem e o que é ser mulher. Esse posicionamento da autora remonta à questão da memória discursiva que retoma os já-ditos, em outros tempos, outros lugares.

No caso específico dos xingamentos na relação conjugal, eles costu-mam agir como coadjuvantes da violência física, conforme citado por Frei-tas e Pinheiro (2013). As injúrias proferidas pelo parceiro podem machucar muito também e, na maioria das vezes, não deixam vestígios para serem usados como provas criminais – exceto se forem proferidas por escrito ou na presença de testemunhas. Os agressores, por (supostamente) conhecerem bem suas vítimas, sabem o que pode doer mais sem deixar vestígios, uma vez que as mulheres geralmente se sentem muito afetadas pelas injúrias que recebem, talvez por atacarem a sua honra.

1.4 Heterogeneidade(s)

Os elementos que designam os papéis desempenhados pelos sujeitos como enunciador (Autoridade Policial) e interlocutor (Juiz de Direito) resultam de lugares determinados na estrutura de uma formação social que lhes é comum, conforme definido por Pêcheux e Fuchs (1997). A finalização dos textos analisados traduz essa ideia. De acordo com Orlandi (1987, p. 180), o discurso é visto como “o lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falantes e ouvintes, autor e leitor” e esse processo de inte-ração é o que pressupõe o jogo de imagens refletidas no texto. Desse modo,

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questiona-se: como se estabelece o jogo de imagens no discurso dos rela-tórios aqui analisados? Como se posicionam produtor e destinatário desse discurso, no que concerne à questão da violência contra a mulher?

Assim, considerando-se o conceito de formações imaginárias, cunhado por Pêcheux ([1969] 1997, 2008), pode-se dizer que as imagens que os in-terlocutores de um discurso atribuem a si e ao outro são determinadas por lugares construídos no interior de uma formação social, que inserem o juiz de direito em instância diversa da do delegado de polícia e que poderá ou não acatar a sugestão do policial, quanto à penalização do indivíduo investi-gado. Abaixo os excertos selecionados e grifados por mim:

Ainda, com fundamento no artigo 311, in fine e 313, III do Código de Processo Penal, represento a Vossa Excelência pela decretação de prisão preventiva em desfavor de [nome], já qualificado nos autos [R3].

Outrossim, informo que, tão-logo o indiciado for localizado será interrogado e o depoimento encaminhado a esse juízo [R1].

Observa-se que, ainda que o relatório policial seja produzido com a preo-cupação da neutralidade e a impessoalidade, os excertos apontam o uso da primeira pessoa verbal como enunciadora: represento e informo. Possivel-mente esse emprego seja uma retomada da autoridade policial garantida ao sujeito-delegado para decidir pelas ações quanto ao que foi apurado no inquérito policial.

Quanto à questão da alteridade, é possível identificar, nos relatórios analisados, que a autoridade policial atribui a elementos externos ao texto a certeza sobre a prática delituosa de alguém, a fim de subsidiar sua decisão, conforme excertos a seguir, com grifos meus:

Isso posto, baseado nas declarações da vítima e testemunha, indicie-se [nome] pela prática dos crimes previstos nos artigos 149 e 147 do Código Penal [R12].

O laudo de exame de corpo de delito constatou ofensa à integridade física de [nome] [R15].

O relatório psicológico com entrevista da criança [nome] foi conclusivo para a ocorrência de agressão de [nome] [R19].

Considerando-se que o relatório é atribuição da autoridade policial e que é nele que a autoria do crime será apresentada para o juiz (interlocutor desse texto), a menção a elementos exteriores opera como garantidores de que

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não só a opinião do policial está contando naquele momento, mas outros documentos juntados aos autos do inquérito policial, a fim de justificar e embasar a decisão da autoridade. Também o uso de aspas para marcar a fala do outro pode ser percebido nos relatórios, marcando essa presença. Os excertos a seguir, grifados por mim, apontam:

Relatou que em todas as vezes em que [nome] vai até sua casa para pegar os filhos, este agride com palavras, chamando-a de “vagabunda” e “cachorra”, inclusive na frente das crianças[R16].

Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] “iria para o inferno, assim como ele”, colocando uma faca em seu pescoço. Acrescentou que no dia seguinte foi injuriada por ele, que a chamou de “vagabunda” e “filha-da-puta” e novamente agredida fisicamente com socos, tapas e empurrões [R15].

Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras “puta e vagabunda” [R11].

[Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que “um pouquinho” (...). Tempos depois, o próprio [nome] teria dito que batera em [nome] porque ela havia falado “muitas coisas” [R17].

Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los” [R18].

Os excertos apontam, ainda, para um uso recorrente dos xingamentos que configuram o crime de injúria e que são marcados no texto do relatório pelo delegado pelo uso das aspas, provavelmente para definir o crime, bem como para chamar atenção sobre esse tipo de violência. O uso das aspas nos excertos acima apontados é o que se chama de discurso citado ou repre-sentação do discurso outro na perspectiva da heterogeneidade enunciativa proposta por Authier-Revuz (2008).

Segundo Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade discursiva dos su-jeitos que enunciam pode ser apontada por dois princípios: a Heterogenei-dade Constitutiva e a Heterogeneidade Mostrada. Esta última pode ser ain-

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da marcada e não-marcada. Quando marcas explícitas de outro sujeito são mostradas e marcadas no texto do “eu”, pelo discurso direto, uso de citações ou de aspas, por exemplo, tem-se a heterogeneidade mostrada marcada. Já a heterogeneidade mostrada não-marcada se estabelece pela presença do outro interferindo através do uso de ironia, imitação, etc. A heterogeneidade constitutiva, por sua vez, é um princípio que fundamenta a linguagem e im-plica em perceber a presença de outros discursos que não são marcados na superfície do texto, mas que poderão ser localizados na memória discursiva, pelo reconhecimento da formação social e ideológica investidas no texto enunciado.

Interessante observar que no corpus também foram encontrados mo-mentos em que as aspas não foram empregadas para marcar os xingamen-tos. Exemplos postos em destaque:

Disse que no dia 16 de maio de 2010, em uma comemoração ao dia das mães, [nome] começou a ingerir bebidas alcoólicas e em seguida passou a ofendê-la verbalmente chamando de vagabunda[R7].

Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha[R8].

[Nome], mãe de [nome], relatou que após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisicamente se a visse com outro homem [R20].

Afirma que tentou impedi-lo de entrar na residência quando foi agredida fisicamente, bem como injuriada com palavra tipo vagabunda e puta [R5].

Pode-se inferir que o uso de aspas para marcar os xingamentos sirvam para distinguir o quanto inapropriados aqueles termos ficariam na formalidade do texto do relatório. Ainda que necessários para a qualificação criminal, o emprego dos xingamentos parece destoar do cenário da escrita formal, cujas palavras seriam, ilusoriamente, do enunciador e as marcadas com aspas não. É relevante observar que, na produção do texto jurídico, há uma cons-tante preocupação com a forma e com a semântica, de maneira a construir um texto que atenda ao cenário discursivo do meio jurídico, a saber, um cenário de formalidades, de polidez, de gentilezas. Nesse cenário, o empre-go de palavras ofensivas e xingamentos, de maneira geral, não tem lugar; isso justificaria, então, o emprego das aspas, a fim de tentar limpar o texto

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da sujeira provocada pelo outro. Há de se pensar, ainda, que as formações discursivas que esse outro opera, são outras, diversas da do enunciador do relatório de inquérito, bem como esse outro pertence, via de regra, à outra classe social.

No excerto do relatório R17, mencionado acima, o uso das aspas deixa de fazer referência a xingamentos e dá ênfase a expressões utilizadas tanto pela vítima – um pouquinho – quanto pelo agressor – muitas coisas – que te-riam sido citadas por uma testemunha. A marcação das aspas naquela situ-ação sugere o distanciamento do enunciador para com aquelas expressões e parece querer sugerir outros sentidos além dos que já se podem apreender de antemão. Um pouquinho é uma quantidade difícil de ser definida, posto que está no plano relacional das ideias. Para alguém um pouquinho pode ser muito pouco, mas para outro alguém esse pouco pode ser muito; assim como muitas coisas, tanto pode significar muito quanto nada, dependendo do ponto de vista interacional no contexto da enunciação. Trata-se em am-bos de conotações autonímicas, conforme foi definido por Authier-Revuz (1990), em que o enunciador – sujeito-delegado – coloca em suspensão a sua responsabilidade sobre os sentidos que se produzem a partir dessas ex-pressões e parece questionar a apropriações dessas palavras no depoimento da testemunha que foi citado no relatório.

Além disso, ainda nesse excerto, observa-se o seguinte: “[Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que “um pouquinho” (...). A aparição desse “bebida” teria sido um lapso de escrita? Um ato falho? Possivelmente, mas provavelmente, não por acaso. De acordo com Teixeira (2005), a psicanálise atribui a esses atos uma revelação do inconsciente que se estrutura como uma linguagem. No caso analisado, uma vez que o tema “bebida” surgiu no depoimento da tes-temunha, que relata ter questionado a filha sobre ter bebido, em função do comportamento que ela e o companheiro estavam aparentando, o que teria sido admitido por essa vítima, parece haver a indicação ou a sugestão do enunciador sobre a bebida como problema de fundo naquela situação de violência doméstica. Muito frequente é a alegação das famílias de que os problemas de violência doméstica se agravam quando há o uso de bebidas alcoólicas. Ainda que se saiba que a violência doméstica não pode ser atri-buída apenas a esse fator, quando ele está presente, geralmente é aspecto impulsionador para a violência. Nessa situação, então, pode-se fazer uma leitura de que, nesse caso, o sujeito enunciador, inconscientemente, apon-ta para os motivos do delito em apuração: a bebida, que se configurou ali como um lapso de escrita, mas pode revelar outros sentidos, mas também a possibilidade de não haver mais o que se dizer. A falha ali, então, conforme Orlandi (2012, p. 79), “não é o menos, é o mais”. O mais que sugere outras reflexões sobre a violência e o contexto maior em que ela se dá.

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Outro aspecto que desperta atenção nos excertos dos relatórios apre-sentados anteriormente dizem respeito à postura dos agressores para com as vítimas. Em: “após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisica-mente se a visse com outro homem” [R20] (grifos meus), o agressor indica o sentimento de possessão que nutre pela vítima, ao ponto de amea-çar agredi-la, caso a encontrasse com outro parceiro. Considerando que ele também proferiu xingamentos como puta e vagabunda, que sugerem uma conduta sexual com muitos parceiros, é possível que esse agressor já esteja prevendo que, de fato, vai encontrá-la com outra pessoa. Considerando que estão separados, muito provavelmente ela encontrará outro parceiro e ele também. Ocorre que, enredado numa cultura machista em que incorporou um ideário de controle do homem sobre a mulher, esse agressor acredita que tem o domínio sobre ela, numa expressão de virilidade, conduzida por um padrão hegemônico atribuído ao gênero masculino, conforme definiram Freitas e Pinheiro (2013).

Outra amostra desse sentimento de posse está em “Relatou que cons-tantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los” [R18]. Há uma postura extrema des-se agressor que não aceita a separação do casal e que só admitiria isso em caso de morte. A morte é uma separação radical. Antes mesmo de o sujeito aceitar a morte, se faz necessário que aceite a separação, o que parece que ele não está disposto a fazer. É uma posição discursiva narcísica forte, que novamente demonstra sentimento de posse pela mulher, que ou será dele, ou não será de mais ninguém. Além disso, também ressoa aí também uma voz genérica de cunho religioso, ouvida no ato do casamento: até que a mor-te os separe.

Assim, para finalizar, por ora, as discussões sobre os relatórios de in-quéritos policiais selecionados para esta pesquisa sobre os efeitos de sentido gerados nos discursos produzidos nesses documentos, percebe-se que, dis-cursivamente, o enfrentamento às situações de violência a que as mulheres são submetidas, no meio doméstico não se efetiva. De fato, os sentidos que se produzem reafirmam e/ou reforçam as condições de hierarquias estabe-lecidas entre os gêneros masculino e feminino, no que concerne às marcas de gêneros deixadas no discurso que refere a violência.

Ainda que o trabalho da polícia judiciária, no contexto da violência conjugal, tenha por objetivo o encaminhamento dos agressores à esfera judicial para julgamento pelos crimes praticados contra suas parceiras, os discursos empregados na fase policial geram sentidos ainda muito impreg-nados por relações ideológicas e de poder, referente às questões de gênero. Nesse sentido, esses discursos mais reproduzem o status quo do cenário da violência conjugal do que inovam, como se esperava que acontecesse com a promulgação da Lei Maria da Penha que, conforme Pasinato (2010), representou um marco no extenso processo histórico de reconhecimento

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da violência contra as mulheres como um problema social no Brasil e cujo objetivo é de atuar no contexto da proteção, da prevenção e da repressão a esse tipo de violência.

Referências

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“Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-

em-interação

Daniela Negraes Pinheiro Andrade

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

1. Análise da Conversa (Aplicada): uma introdução

A Análise da Conversa se desenvolveu a partir do olhar científico do soció-logo Harvey Sacks direcionado para as conversas mundanas. Tendo como base um corpus de conversas telefônicas gravadas obtidas em um centro de assistência a potenciais suicidas, Sacks percebeu que, ao contrário da crença baseada no senso comum, as conversas comuns não tinham uma natureza caótica, mas obedeciam a uma organização interna própria. Os estudos de Sacks, posteriormente expandidos por Gail Jefferson e Emanuel Schegloff sedimentaram os fundamentos da Análise da Conversa (doravan-te AC). A publicação do artigo A simplest systematics for the organization of turn-taking for conversation1, em 1974, marcou oficialmente o surgimento da área. Cerca de quase 20 anos após essa primeira publicação, os analis-tas da conversa ‘de segunda geração’ Paul Drew e John Heritage (1992) organizaram o livro Talk at Work2. Esse volume, que traz uma coletânea de trabalhos voltados para a descrição das ações sociais realizadas através da fala-em-interação em contextos institucionais, pode ser considerado um marco para os analistas da conversa pelo que ele representou em termos de expansão de escopo para as pesquisas em AC. A publicação do volume, con-tudo, demandou algumas justificativas por parte dos organizadores da obra. O posicionamento dos autores frente ao que, até então, eram considerados trabalhos em AC pode ser depreendido das palavras de Drew e Heritage (1992, p.4),

1. O título do artigo pode ser traduzido como “Uma simples sistemática para a organização da tomada de turnos na conversa”.

2. O título da obra pode ser traduzido como “Conversas no trabalho”.

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pode parecer surpreendente que a perspectiva [da AC], como seu próprio sugere, que está associada às análises de conversas comuns entre pares em contextos cotidianos devesse ser aplicada às interações que não são evidentemente “conversas comuns nesse sentido.” [...] Não há nada acerca das perspectivas e técnicas associada à análise sequencial da conversa ordinária que seja inimiga da análise da fala institucional. (grifo dos autores, minha tradução)3

A partir dos trabalhos aplicados aos contextos institucionais, principalmente os voltados para estudos em ambientes de sala de aula e contextos médicos, a AC, como observa Richards (2005), passou a obter reconhecimento dentro da Linguística Aplicada, tendo em vista a “congruência, até mesmo a con-vergência, entre certos aspectos dos programas da Linguística Aplicada e da Análise da Conversa” (DREW, 2005, p. xv, minha tradução)4. Pois, nem bem a AC alcançou o status de disciplina em pé de igualdade com outros pro-gramas abarcados pela Linguística Aplicada (doravante LA), os analistas da conversa vislumbram uma segunda virada na área. Trata-se do que os pes-quisadores vêm chamando de Análise da Conversa Aplicada. Como explica Drew (2005), esse mais novo movimento da AC tende, em certos aspectos, a abranger trabalhos que transcendem as pesquisas realizadas na área até agora, Esse continuum da AC está retratado na obra Applying Conversation Analysis5, organizada por Keith Richards e Paul Seedhouse e lançada em 2005. O livro explora a interface entre a AC e a LA e demonstra como a aná-lise da conversa institucional pode contribuir para a prática profissional, po-rém, em esferas diferentes das comumente encontradas nos programas da LA. Diferentemente dos programas da LA, que se voltam majoritariamente para as práticas profissionais relacionadas à aquisição e aprendizagem da linguagem, os estudos da Análise da Conversa Aplicada (doravante ACA) es-tão direcionados para as análises de conversas institucionais no âmbito das práticas profissionais relacionadas aos negócios e ao comércio. Ao que pa-rece, essa mudança de perspectiva obedeceu a uma demanda dos próprios profissionais atuantes nas mais variadas áreas que, nas palavras de Richards

3. No original: “It may seem surprising that a perspective which, as its very name suggests, is associated with the analysis of ordinary conversation between peers in everyday contexts should be applied to interactions which are evidently not ordinary conversation in quite this sense. [...] “There is nothing about the perspective and techniques associated of ordinary conversation which is inimical to the analysis of institutional talk.”

4. No original: [there is] a congruence, even a convergence, between certain aspects of the programs of AL and CA.

5. O título do livro pode ser traduzido como “Aplicando a Análise da Conversa”.

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(2005, p.1, minha tradução)6 “vieram a reconhecer o valor da pesquisa [em AC] com respeito às suas realizações peculiares”. A relevância da AC para os estudos de fala-em-interação nas relações comerciais pode ser sintetizada nas palavras de Richards (2005, p.1, minha tradução),

um dos pontos fortes da Análise da Conversa como disciplina de pesquisa é a sua capacidade de direcionar a atenção dos pesquisadores para características aparentemente muito pequenas da interação e transcender suas dimensões para além de todas as expectativas revelando delicadezas de designs e gerenciamentos que resistem aos ataques dos mais estabanados instrumentos.

Em outras palavras, o que diferem os trabalhos aplicados que se servem dos métodos da AC é o fato de que a (in)competência linguística dos participantes implicativa ao fazer-se profissional não é um conceito tomado a priori, mas sim como algo passível de ser investigado em suas dimensões mais sutis e, ao mesmo tempo, difícil de ser observado fora do aparato teórico-meto-dológico da AC, em vista da perspectiva êmica7 (HUTCHBY; WOOFFITT, 1998) adotada como premissa nesses estudos. A perspectiva êmica da qual as pesquisas em AC estão imbuídas é particularmente interessante aos pro-fissionais, de um modo geral, uma vez que desvela, perante seus olhos, as sutilizas das ações empreendidas por eles através da fala-em-interação que são, em última instância, constitutivas do fazer-se profissional. Além disso, ou, quem sabe, justamente por isso, como coloca Drew (2005), a aplicação dos métodos da AC(A) revela aspectos da fala-em-interação institucional que parecem ser apropriado aos treinamentos que visam ao aprimoramento dos recursos interacionais dos profissionais.

O surgimento da ACA e os consecutivos desafios frente a esse novo espaço de trabalho suscitaram aos analistas da conversa algumas reflexões. Uma delas concerne às limitações da área frente às demandas impostas pelo perfil dos profissionais potencialmente interessados em pesquisas em ACA. É sabido que, no mundo corporativo, rapidez e agilidade são valores estimados pelos clientes do mercado de prestação de serviços e isso pode representar um entrave para negociações entre analistas da conversa e pro-fissionais dos negócios e comércio, hajam vistos os impedimentos que os métodos da AC apresentam concernentes ao tempo para se realizar uma

6. No original: [...] have come to recognize the value of research that respects their peculiar achievements.

7. Menos do que lidar com conceitos tais como cultura, classe social, gênero, racismo, competência, dentre outros, de forma apriorística, a perspectiva êmica leva em conta o ponto de vista dos atores sociais. A organização social é construída situadamente de acordo com o “sentido que os atores atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os cercam” (COULON, 1987, p. 15) .

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pesquisa. Kitzinger (2005) reflete sobre essa problemática em seu artigo inti-tulado “Working with childbirth helplines: the contributions and limitations of Conversation Analysis”8 e conclui que o tempo necessário para conduzir uma pesquisa em ACA “pode tensionar o gerenciamento das expectativas das organizações por resultados rápidos” (KITZINGER, 2005, p.115, minha tradução) 9. A autora também se posiciona a favor do emprego de métodos outros aliados à AC(A), tendo em vista que a área não oferece solução para todas e quaisquer demandas das organizações, mesmo quando a investiga-ção se encontra dentro dos domínios da linguagem. Esse “apelo por ecletis-mo em estudos analíticos da conversa” (HERITAGE; ROBINSON, 2005, p. 31)10 não deixa de ser um (re)posicionamento surpreendente em vista da preocupação de alguns analistas da conversa em se manterem “fiéis” aos princípios fundamentais da AC.

É importante ressaltar que, embora os estudos acadêmicos em AC que impulsionam o continuum da área tendam a ocorrer no eixo Estados Uni-dos – Europa, várias pesquisas em AC no Brasil apresentam caráter forte-mente aplicado (OSTERMANN; SOUZA, 2011; OSTERMANN, 2003; DEL CORONA, 2012) no sentido de oferecerem algum retorno pós-pesquisa às instituições que gentilmente abriram suas portas para os pesquisadores. São os casos, por exemplo, de Ostermann e Souza (2011), que realizaram pesquisa junto ao Disque Saúde, de Del Corona (2010), que estudou as interações do “190”, serviço de atendimento telefônico da Brigada Militar, no Rio Grande do Sul e Ostermann (2003), que investigou as interações em contexto de serviço de proteção à mulheres em situação de vulnerabilida-de. Há que se salientar, porém, que embora se tenham pesquisas de porte em AC no Brasil, ainda há um longo caminho a ser percorrido pela área no que diz respeito aos trabalhos de base em língua portuguesa. Em outras palavras, a grande maioria das pesquisas em AC está fundamenta na língua inglesa, havendo bastante espaço para estudos dedicados a descrever fenô-menos interacionais em língua portuguesa. Embora fenômenos tais como organização de construção e tomada de turno, organização de sequência, de reparo e de preferência, entre outros, sejam comuns aos eventos de fala--em-interação, de um modo geral, não se pode negar que as particularida-des de cada língua, como seus traços prosódicos, por exemplo, são nuances que devem ser descritas para que se consiga fazer uso de todo o potencial oferecido pelos métodos da AC.

8. O título do artigo pode ser traduzido como “Trabalhando com atendimento de apoio às gestantes em situação de pré ou pós-parto: as contribuições e limitações da Análise da Conversa.”

9. No original:“[The length of time necessary to conduct AC analysis] may mean managing organizations’ expectations for rapid results.”

10 No original:“[...] a plea for eclecticism in applied conversation analytic studies.”

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A importância de se descrever como “ações sociais são realizadas atra-vés da organização da fala” (ANTAKI, 2011, p.1)11 em língua portuguesa é implicativa à condução de pesquisas de relevância social nas mais diver-sas áreas. São muitas as áreas que oferecem grandes possibilidades para os analistas da conversa: salas de aula, consultas médicas, serviços de atendi-mento telefônico à população (bombeiros, SAMU12, conselho tutelar, polícia rodoviária, SACs13 etc.), atendimento psicológico aos adictos, delegacias da polícia civil, entre outros, são somente uma pequena gama de ambientes onde pesquisas em AC tendem a tornarem-se profícuas. As pesquisas que tomam por foco interações cotidianas (conversa informal entre amigos, fa-miliares, etc), justamente por constituírem a base da AC são, também, de fundamental importância para os estudos em AC em língua portuguesa.

1.1 Análise da Conversa aplicada ao campo forense: uma contextualização do presente trabalho

No que concernem aos estudos de AC aplicados ao campo forense em par-ticular, o Brasil mostra-se um terreno fértil, pois são poucas as publicações nessa área. A Linguística Forense enquanto disciplina constitui-se per se um campo ainda inexplorado no cenário brasileiro em comparação com o que ocorre em outros países que já dispõem, inclusive, de departamentos espe-cializados nesse campo acadêmico (e.g. Aston University e Cardiff Univer-sity, na Grã-Bretanha, Nebraska Wesleyan University, nos Estados Unidos, entre outras). Esse panorama, contudo, tende a mudar tendo em vista a fundação da Associação Luso-brasileira de Estudos Forenses, na cidade do Recife, e, também, a Terceira Conferência Europeia da Associação Interna-cional de Linguística Forense que, de forma inédita, abre espaço para uma sessão dedicada aos trabalhos em língua portuguesa. É essencial, portanto, que os trabalhos em AC(A) acompanhem a tendência de crescimento da Linguística Forense nos países falantes do português e se solidifique tanto no campo acadêmico quanto no mercado profícuo da consultoria linguísti-co-forense.

Tendo em mente a urgência de pesquisas de base em AC que con-templem o desenvolvimento da Linguística Forense no Brasil e que possam servir para futuros trabalhos de caráter aplicado nos moldes sugeridos pela ACA, segue-se uma reflexão sobre as falas-em-interações que constituíram um evento interacional “audiência de instrução”. A discussão baseia-se no depoimento de uma pessoa que teve um talão de cheques roubado e foi in-timada a depor por conta de uma folha de cheque do talão ter sido utilizada sem permissão, o que caracteriza um caso de estelionato. Kátia, a pessoa vítima do roubo do talão de cheques, dá mostras de não ter familiaridade

11. No original: “[...] how social action is brought about through the close organization of talk.”

12. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.

13. Serviços de Atendimento ao Consumidor.

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com as práticas concernentes a uma audiência de instrução. O desconhe-cimento de Kátia não sensibiliza os participantes do Direito. Muito antes pelo contrário, percebe-se que os interlocutores de Kátia, de forma especial o juiz, não agem como facilitadores em prol do entendimento da depoente acerca “do que está se passando” e isso gera consequências interacionais observáveis através da sequencialidade da conversa. A análise baseada em dados empíricos sugere que as ações empreendidas pelos participantes do Direito, nesse caso, contribuem para a construção de um ambiente intera-cionalmente tenso com o qual a depoente tem que lidar.

No caso específico desse trabalho, a AC revela-se um método apro-priado para desempacotar as ações interacionais dos interagentes do Direi-to que contribuem para percepção do senso comum de que as audiências de instrução constituem um ambiente hostil para os participantes leigos (HOLT; JOHNSON, 2010). Comumente, pensa-se que tal hostilidade dá-se em razão do uso de palavras ou expressões, principalmente de origens lati-nas, por parte dos juízes, promotores e advogados ou, em outras palavras, o uso do “juridiquêz” (Tiersma, 1999, p. 51,). Contudo, o estudo revela que mesmo em uma interação na qual o uso do “juridiquêz” apresenta-se reduzido, outras ações interacionais dão conta de construir um ambiente adverso para a participante leiga. Diante de tal constatação, a pergunta que guia esse trabalho é: como se traduz a hostilidade nos encontros legais na fala-em-interação? Para responder a essa pergunta, alguns conceitos neces-sitam ser revisados. Sendo assim, passa-se a uma breve fundamentação te-órica acerca de alguns conceitos caros à AC e à sociolinguística interacional.

2. Breve fundamentação teórica e metodologia

É comum que algumas sequências interacionais sejam organizadas em “ações pareadas” (SACKS, 1992). Isto implica dizer que, em certas ocasiões, quando uma fala é produzida por um dos participantes da conversa, abre-se espaço interacional relevante para que outra fala seja proferida em resposta à primeira, de maneira de elas formem um par adjacente (SACKS, 1992). Nesse sentido, pergunta-resposta, oferta-aceitação/rejeição, saudação-sau-dação, ordem-execução, entre outros, são exemplos de pares adjacentes. Face à primeira parte, a segunda parte do par adjacente obedece a uma or-ganização de preferência (POMERANTZ, 1984), conforme mostra o quadro abaixo, de forma resumida:

Quadro 1: adaptado por LEVINSON, 1983, p.91 apud MARCUSCHI, 2001, p. 52 [adapta-do por JUNG LAU; OSTERMANN, 2005, p.69]

Primeira parte do par Segunda parte do parPreferida Despreferida

Pedido Aceitação Recusaoferta convite Aceitação Recusa

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Avaliação Concordância DiscordânciaPergunta resposta esperada resposta inesperadacensura ofensa crítica Recusa não-resposta

Admissão

De acordo com que se pode depreender do quadro acima, a segunda parte do par adjacente, nesses casos, pode ser categorizado em (i) resposta prefe-rida e (ii) resposta despreferida. Há algumas características linguísticas que marcam as respostas despreferidas, a saber: enquanto (i) tende a apresen-tar pouco material morfológico, (ii) tende a vir marcada com maior material morfológico e a trazer hesitações, prefácios, justificativas, desculpas e miti-gadores em sua formulação (POMERANTZ, 1984). Além disso, é importan-te ressaltar que (i) e (ii) são ações sócio-culturalmente determinadas e que (ii) são, de um modo geral, evitadas entre os interagentes.

O emprego das respostas (des)preferidas está intimamente ligado ao conceito de face, cunhado por GOFFMAN (1995, 213), segundo o qual face é o “valor social positivo que os indivíduos querem criar e/ou manter para si mesmos”. Em relação ao conceito de face, Ostermann (2006, p. 18) lembra que “em circunstâncias normais, interagentes visam a manter não apenas a sua própria face, mas também a de outros participantes n interação”. De acordo com a autora, o “trabalho de manutenção de face”, ou facework (GOFFMANN, 1955, p. 213), é realizado através do emprego de estratégias interacionais que garantem a fluidez da interação e se prestam à demons-tração de interesse sobre o tópico da conversa e também ao encorajamento que os interagentes podem dar uns aos outros a fim de permitir a continua-ção da linha de pensamento em voga.

Em comparação com conversas mundanas, “provavelmente, a mais distinta e mais conhecida característica linguística da fala jurídica é a per-gunta, em ambas as formas interrogativas e declarativas [...]”14 sendo que “os participantes leigos são largamente controlados por e estão à mercê das perguntas dos profissionais nos encontros legais díades” (HOLT; JOHN-SON, 2010, p. 21, minha tradução) 15. Desse modo, a audiência de instru-ção, foco desse trabalho, que é aquela na qual o juiz toma o depoimento das partes (autor e réu) bem como das testemunhas de cada uma das partes a fim de produzir provas que o possibilite julgar o processo e, se for o caso, expedir sentença, pode representar um evento hostil (HOLT; JOHNSON, 2010) para os participantes leigos.

14. No original: “Probably the most distinctive and most widespread linguístic feature of legal talk is the question – in both interrogative and declative form [...].”

15. No original: “Lay interactants are largely controled by and at the mercy of questions from professionals in dyadic legal encounters.”

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No caso do participante leigo estar experimentando o evento (audiên-cia de instrução) pela primeira vez e, em muitos casos, “por uma única vez na vida” (DREW; HERITAGE, 1992, p. 110)16, há a possibilidade de que as ações interacionais praticadas pelos profissionais do Direito resultem em necessidade de esforço interacional por parte do participante leigo ao lidar com pressupostos concernentes ao evento a sua frente. Desse modo, con-flitos interacionais podem surgir face ao desconhecimento do participante leigo com relação à rigidez imposta pelo evento em si e sua consequente não orientação para o fato de que os turnos, nesse caso, são pré-alocados, ou seja, compete ao participante leigo se manifestar somente perante a anuên-cia do juiz. Os exemplos dos excertos 1 e 2, mostrados a seguir, se prestam para mostrar como a participante leiga, através de sua fala, demonstra não ter familiaridade com as “regras” discursivas operadas em audiências de instrução. O propósito de trazer os excertos supracitados é implicativo ao que se quer discutir mais tarde a respeito do perceptível desalinhamento por parte dos participantes do Direito, de forma acentuada, por parte do juiz, diante do desconhecimento da participante leiga em questão.

Os excertos que fazem parte dos dados analisados para esse trabalho foram extraídos de um corpus formado por interações gravadas em áudio que ocorreram em audiências de instrução no ano de 2008, em um fórum da região metropolitana de Porto Alegre. As falas foram transcritas segundo as convenções de transcrição elaboradas por Jefferson (1974) e adaptadas por Schnack, Pisoni e Ostermann (2005). Para fins de produção do pre-sente artigo, as transcrições foram revisadas no laboratório Lacontext do departamento de Linguística Aplicada da Unisinos. As convenções de trans-crição adotadas aqui se encontram em anexo ao final do artigo. Ressalta-se, também, que todas as informações referentes aos participantes foram ano-nimizadas de forma a preservar suas identidades.

3. “Não, a gente fica meia perdida, né?”: o desempacotamento da hostilidade na fala-em-interação em uma audiência de instrução

É sabido que julgamentos e audiências são convencionalmente governados por um sistema rígido que permite somente aos/às participantes do Direito escolher os tópicos a serem respondidos, fazer perguntas e controlar a in-teração como um todo. Em contraste, testemunhas não podem introduzir tópicos ou fazer perguntas outras que não pedidos de esclarecimento quan-do os/as participantes do Direito não são claros (Shuy, 2011). Além disso, conforme colocam Johnson e Coulthard (2010, p. 4, minha tradução)17,

16. No original: “once at a lifetime”

17. No original: ”Lay individuals are always disadvantadged in institutional contexts because they lack the ian institutional perspective and lack knowledge of the hybrid institutional registers they encounter.”

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participantes leigos/as estão sempre em desvantagem em contextos institucionais devido a falta de perspectiva institucional e a falta de conhecimento acerca dos registros institucionais híbridos que eles encontram em tais contextos.

Além das restrições concernentes às possibilidades de fala e, muitas ve-zes, aos conhecimentos acerca dos “registros profissionais híbridos” impos-tos aos participantes leigos, esses últimos também podem encontrar-se em situação de desvantagem em relação a outros tipos de práticas que, por vezes, fazem parte dos encontros institucionais. No caso das audiências de instrução aqui analisadas, por exemplo, uma das práticas para a qual a par-ticipante leiga mostra não estar orientada diz respeito à gravação do evento. No excerto que se segue, a assistente do juiz está orientada para colher os dados pessoais da participante leiga, Kátia. Como se pode perceber, o juiz, na linha 5, solicita que Kátia se aproxime do microfone. Vale lembrar, aqui, que existem, pelo menos, dois tipos de público para os quais os profissionais do Direito estão, supostamente, orientados: os participantes presentes na audiência – juízes, promotor(es), advogado(s), autor(es), réu(s), e testemu-nha(s) - e o público “leitor dos registros oficiais” (ANDRADE, 2010). Desse modo, ao solicitar que Kátia aproxime-se do microfone, o juiz dá mostras de estar orientado para a necessidade de ter a fala de Kátia audível na gravação oficial dos depoimentos relativos ao caso em questão.

Na linha 7, Kátia oferece a segunda parte do par adjacente aberto pela as-sistente (não mostrado aqui) e informa sua idade. Na linha 8, a assistente abre mais um par adjacente, agora, com respeito ao estado civil de Kátia ao que a depoente responde sem hesitação, fechando o par. Na linha 10, a assistente profere algo que não foi identificado pela analista e, em seguida,

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na linha 11, Kátia diz “saber do que se trata” (= a sei a↑té: ↑x >que (se tra:ta)<=), provavelmente referindo-se ao porque de ela ter sido intimada a depor. Na linha 12, a assistente profere um “sinal de recebimento da fala do outro”18 (GARDNER, 2001), indicando ter ouvido o que Kátia falou. Nesse ponto, contudo, ao invés de se alinhar ao comentário de Kátia, a assistente demonstra estar orientada para impropriedade da fala da depoente naquele espaço interacional e segue focada em sua tarefa abrindo mais um par adja-cente, agora, solicitando que Kátia informe sua profissão. Note-se que Kátia não se orienta imediatamente para a pergunta da assistente, mas somente fechará o par aberto na linha 15, após ter proferido uma fala não relativa ao provimento da informação solicitada e após uma pausa (linha 14) e uma he-sitação (ã:, linha 15). O fechamento do par adjacente prefaciado com pausa e hesitação sugere certo estranhamento por parte de Kátia pelo fato de ter tido sua fala ouvida, porém não legitimada.

A não familiaridade da participante leiga reside no fato de ela ter “falado fora de hora” e ter sofrido consequências interacionais por isso. Explicando de outro modo, a fala da depoente, na linha 11, não havia sido autorizada pelo juiz, portanto, embora a assistente tenha sinalizado ter ouvido o que foi falado por Kátia, ela não se engaja no comentário feito pela depoente. É plausível pensar que Kátia tenha dirigido sua fala não somente para a assis-tente, mas também ao juiz, uma vez que ele estava posicionado a sua frente e já havia se dirigido a ela (linha 5). Nesse ponto, embora nem sempre seja possível, é essencial que se diga que gravações em vídeo são de grande uti-lidade como fontes de recursos preciosos para pesquisas em AC pela possi-bilidade de incorporação de mais elementos de sustentação para as análises como, por exemplo, pistas de contextualização (GOFFMAN, 1974; 1981)19 (gestos, direcionamento do olhar, etc.). De um modo ou de outro, pode-se dizer que o comentário de Kátia não tem sua fala legitimada. O lapso de tempo entre a abertura da primeira parte do par adjacente feita pela assis-tente e o momento de provimento da segunda parte do par feito por Kátia aliado ao material morfológico que indica hesitação na fala evidenciam um possível estranhamento da depoente com relação ao desvio do que é comum que se espere em uma situação similar em contexto de conversa mundana. Em outras palavras, um comentário como o feito por Kátia também consti-tui a abertura de um par adjacente e, como tal, requer que a segunda parte do par opere como endosso da primeira. Como se percebe, nesse caso, o “sinal de recebimento da fala do outro” da assistente não cumpre o papel de endossar a fala da depoente. O desconhecimento de Kátia perante os pro-cedimentos comuns às audiências de instrução pode ser percebido também em outra sequência interacional, conforme mostrado mais adiante.

18 No original: Acknowledgement token . A tradução para o português foi sugerida por Ana Cristina Osterman.

19 No original: Contextualization Cues.

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Conforme mencionado acima, as gravações das interações feitas nas salas de audiências constituem parte integrante do processo em andamen-to. Essas gravações visam a institucionalizar o fato relatado. Conforme lem-bra Andrade (2010, p. 27), “em casos de crimes julgados em tribunais de 2ª instância, esse documento representará a versão oficial e definitiva do depoente, uma vez que ele não mais terá a chance de se pronunciar sobre o caso.” Sendo assim, é imprescindível que, frente a uma pergunta, o depo-ente verbalize suas respostas não podendo, por exemplo, assentir ou negar com a cabeça ou, ainda, proferir sua fala em volume insatisfatório tendo em vista os propósitos da gravação. Desse modo, o excerto 2, apresentado a seguir, se presta para mostrar a não orientação da depoente para a neces-sidade de se fazer ouvir, não somente pelos participantes presentes, mas também pelo possível público “leitor dos registros oficiais”.

O excerto em questão inicia com uma pergunta feita pela promotora dirigida à Kátia (linha 86). Após uma pausa, Kátia responde com um “re-cibo responsivo” (GARDNER, 2001, p. 95, minha tradução)20, na linha 89. Percebe-se, pela convenção de transcrição, que ela produziu sua “fala” em volume mais baixo. Após mais uma pausa, na linha 91, o juiz solicita que Kátia confirme sua resposta. A depoente, na linha 93, confirma sua resposta dando ênfase ao “sim” proferido por ela. A ênfase pode ser observada atra-vés dos sinais de sublinhado (_), que indica som acentuado e pelo sinal de divisão (:), que indica prolongamento da fala. Após mais uma pausa de 1.0 (1 segundo), Kátia, na linha 95, ao que parece, “presta contas” (COULON, 1995, p. 42)21 da sua maneira de falar (é que eu falo meio @).É interessante notar que a fala de Kátia não é completada por um adjetivo (meio o que?), mas é acompanhada de um pulso de risada (@). Segundo Jefferson (1979, p. 80), o riso, na maioria das vezes, pode ser considerado uma atividade através da qual um participante convida outro(s) participante(s) a rir. Uma vez que a atividade de rir pode funcionar como uma ação de convidar, o(s) participante(s) para quem o convite foi endereçado pode(m) aceitá-lo ou de-cliná-lo. Uma das formas através da qual o(s) participante(s) convidado(s) a rir pode(m) declinar o convite é dar seguimento à conversa preenchendo o turno subsequente de modo a ignorar a risada (JEFFERSON,1979, p. 93). O riso (ou a ausência dele) exerce um importante papel quando se trata de externar (des)afiliação em uma interação, além de mostra-se útil em situa-ções de desconforto, ansiedade e vergonha (GLENN, 2003, p. 80). Segue-se o excerto:

20 . No original:, answering Mm [token]

21. No original: accountability. A tradução para o português foi sugerida por Garcez (2008, p. 27).

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Jefferson (2003) explica que o riso é um elemento interacional que pode se prestar para várias ações, dentre elas, lidar com situações embaraço-sas. Desse modo, pode-se pensar que a fala de Kátia funciona quase como um pedido de desculpas pelo seu modo de falar. Nesse ponto, é importan-te salientar que não se tem como saber como a depoente se sentiu ou o que ela pensou ao dizer o que disse, mas pode-se refletir, sob a perspectiva da sequencialidade, sobre que ação aquela fala desempenhou naquele tur-no. Sendo assim, não parece provável que Kátia estivesse orientada para a necessidade de ser fazer audível para os propósitos da gravação. De outro modo, a construção do turno de Kátia parece indicar que a depoente tenha buscado uma forma de lidar com um possível mal-estar diante da situação embaraçosa em que ela se encontra, a saber, ter sido impelida pelo juiz a confirmar sua resposta, sem que lhe tenham explicitado que a audiência se-ria gravada e muito menos da necessidade de se falar “alto e em bom tom”22.

As análises dos dois excertos supracitados servem de contextualização para a discussão sobre as proporções hostis que podem tomar os encontros legais vis-à-vis algumas sequências interacionais. Nos excertos que se se-guem, três aspectos podem ser evidenciados nas interações analisadas: a) a não familiaridade da depoente com o evento traz complicações práticas sobre seu entendimento de como ela deve proceder perante os documentos que ela deve assinar; b) a resistência do juiz em oferecer alguma espécie de ajuda que tranquilize a depoente acerca da assinatura “daquele papel” e c) a ausência de esclarecimentos pela promotora, embora, em alguns momen-tos, ela se mostre mais sensível às necessidades da depoente.

Embora não fique explícito no excerto mostrado abaixo, a audiência está se encaminhando para o final e o juiz solicita que a depoente assine o termo de confirmação de comparecimento à audiência. No excerto 3, na

22. A pesquisadora possui a transcrição total da interação e, por isso, pode afirmar que tal informação, em nenhum momento, foi apresentada à depoente.

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linha 110, Kátia, ao que parece, começa a ler o documento, haja visto seu comentário (°<só tô: (.) tentando (entendê)>°, na linha 113. Após uma pausa na qual a depoente, provavelmente, dá continuidade à sua leitura, na linha 116, Kátia solicita uma explicação (você pode me expli↑cá assim >o que que:<) ao que a promotora lhe explica tratar-se do termo de confirma-ção de comparecimento à audiência (linhas 118, 119, 120). Note-se que o prolongamento da fala de Kátia, sinalizado por (:), abre um espaço relevante para a tomada de turno. No entanto, a promotora não toma o turno pronta-mente, mas somente após uma pausa. A pausa, numa interação face-a-face, assim como o riso, pode desempenhar ações variadas não podendo ser to-mada, a priori, como negativa. Entretanto, na interação em análise, é plau-sível refletir sobre o aspecto negativo da pausa na linha 117 haja vista que a solicitação de Kátia demonstra sua preocupação com relação ao documento que ela teve que assinar sem ler. Segue-se o excerto:

Como se pode perceber pela sequencialidade dos turnos, mesmo depois da explicação da promotora, Kátia dá mostras de que as dúvidas permanecem (linha 121). O turno de Kátia inicia-se com “sim”, o que, em princípio, pode levar a crer o seu entendimento acerca do que representa o “papel” em questão (documento de confirmação de seu comparecimento à audiência), contudo, o conteúdo morfológico do turno (>sim mas o que que (vai sê) fe:ito< algum processo,) sugere que ela requer mais informações sobre o que acontecerá depois da audiência, ou seja, que caminhos o processo irá tomar. A entonação contínua na fala de Kátia, nesse caso específico, sinali-zada por uma vírgula (,), abre um espaço relevante para tomada de turno e a promotora, dessa vez, em fala colada, provê mais elementos informativos concernentes ao processo em andamento.

Jefferson (2003) explica que o riso é um elemento interacional que pode se prestar para várias ações, dentre elas, lidar com situações embaraço-sas. Desse modo, pode-se pensar que a fala de Kátia funciona quase como um pedido de desculpas pelo seu modo de falar. Nesse ponto, é importan-te salientar que não se tem como saber como a depoente se sentiu ou o que ela pensou ao dizer o que disse, mas pode-se refletir, sob a perspectiva da sequencialidade, sobre que ação aquela fala desempenhou naquele tur-no. Sendo assim, não parece provável que Kátia estivesse orientada para a necessidade de ser fazer audível para os propósitos da gravação. De outro modo, a construção do turno de Kátia parece indicar que a depoente tenha buscado uma forma de lidar com um possível mal-estar diante da situação embaraçosa em que ela se encontra, a saber, ter sido impelida pelo juiz a confirmar sua resposta, sem que lhe tenham explicitado que a audiência se-ria gravada e muito menos da necessidade de se falar “alto e em bom tom”22.

As análises dos dois excertos supracitados servem de contextualização para a discussão sobre as proporções hostis que podem tomar os encontros legais vis-à-vis algumas sequências interacionais. Nos excertos que se se-guem, três aspectos podem ser evidenciados nas interações analisadas: a) a não familiaridade da depoente com o evento traz complicações práticas sobre seu entendimento de como ela deve proceder perante os documentos que ela deve assinar; b) a resistência do juiz em oferecer alguma espécie de ajuda que tranquilize a depoente acerca da assinatura “daquele papel” e c) a ausência de esclarecimentos pela promotora, embora, em alguns momen-tos, ela se mostre mais sensível às necessidades da depoente.

Embora não fique explícito no excerto mostrado abaixo, a audiência está se encaminhando para o final e o juiz solicita que a depoente assine o termo de confirmação de comparecimento à audiência. No excerto 3, na

22. A pesquisadora possui a transcrição total da interação e, por isso, pode afirmar que tal informação, em nenhum momento, foi apresentada à depoente.

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Para os propósitos da análise do próximo excerto, faz-se necessário esclarecer que, no momento da interação em discussão, o juiz já havia ter-minado de interrogar a depoente e havia passado a palavra ao “ministério público”, ou seja, à promotora. No excerto 4, apresentado a seguir, a de-poente continua engajada na interação com a promotora quando o juiz se manifesta. Segue-se o excerto:

Na linha 134, Kátia questiona seu direito a uma cópia do documento (>vou ganhá uma cópia de:ssa,<). Após uma micro pausa, o juiz, que tinha se manifestado pela última vez na linha 104 para encerrar oficialmente a au-diência (não mostrado aqui), toma o turno na linha 136 (“não.”). A resposta do juiz, conforme o que aponta Pomerantz (1974), apresenta-se no forma-to preferido, o que pode ser pensado como uma das formas de contribui-ção para a construção da hostilidade desse encontro situado. Explicando de outro modo, observa-se, na maioria das situações de fala-em-interação, que os interagentes, ao terem que negar algo a alguém, tendem a proteger suas próprias faces bem como as faces dos seus interlocutores (GOFFMAN, 1955). Uma das formas ad hoc de trabalho de proteção de face, nesses ca-sos, é a mitigação da resposta que, normalmente, vêm acrescidas de carga morfológica, de hesitação e de “prestações de contas” (COULON, 1995, p. 42) da razão pela qual uma negação é necessária naquele momento. Ou seja, nesses casos, o formato socialmente esperado é o despreferido.

A resposta do juiz, contudo, apresenta-se em um formato que con-traria o que é socialmente esperado. Em outras palavras, em face do for-mato preferido em que se apresenta (direta, sem hesitação, sem pausas e sem acréscimo de carga morfológica), a resposta do juiz pode ser conside-

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rada uma ameaça à face da depoente. Reflete-se também sobre o fato de a resposta preferida do juiz não apresentar, ao que parece, uma ameaça a sua própria face. Nesse aspecto, embora não se possa tomar a figura do juiz como detentor do poder aprioristicamente, pode-se dizer que a fala dele, nesse caso, opera em prol da construção de sua identidade enquanto de-tentor do poder.

Conforme vê-se, à resposta do juiz, segue-se uma pausa relativamente longa. Note-se que Kátia não se manifesta frente à negativa do juiz. Ten-do-se aberto um espaço relevante para a troca de turnos após a pausa, a promotora toma o turno e oferece uma alternativa à depoente: conseguir um atestado (provavelmente para fins trabalhistas, já que a depoente havia mencionado estar trabalhando. Sequência não mostrada aqui). O juiz se alinha à promotora (“um comprovante ãhã”.) e, em seguida, a promotora indica o local onde Kátia deve ir para conseguir o atestado. Kátia, porém, não confirma precisar do atestado, mas insiste em saber se ela não ganha “nenhum papel” (linha 142). A fala da depoente apresenta-se com entona-ção ascendente nas palavras “↑ganho”, “ne↑nhum” e “pa↑pel”, sinalizada com o símbolo de seta para cima (↑), o que evidencia a ênfase colocada nessas palavras.

Ainda sobre esse turno de fala, pode-se observar que Kátia também traz a palavra “não” ([não] ↑ganho ne↑nhum pa↑pel) (linha142). A indaga-ção de Kátia apresenta-se em formato de “pergunta de polaridade negativa” (BOLINGER, 1978). Segundo essa autora, “perguntas de mesma polarida-de” suscitam respostas que vão ao encontro da concordância sobre o que foi perguntado. Dito de outra forma, “esse tipo de pergunta suscita uma resposta que tenha a mesma equivalência polar (positiva ou negativa) da pergunta” (ANDRADE, 2010) no turno subsequente. Desse modo, pode-se pensar que ao preencher seu turno com uma “pergunta de polaridade nega-tiva”, Kátia requerera uma resposta negativa do juiz. No entanto, seguindo Lamerichs e Molder (2005), é preciso refletir não somente sobre o turno subsequente à fala de Kátia, mas também sobre que efeitos interacionais a resposta precedente do juiz, na linha 136, pode ter exercido na forma-ção do turno da depoente. Em outras palavras, ao comparar-se a primeira pergunta feita por Kátia com respeito ao seu direito de obter uma “cópia do papel” ( >vou ganhá uma cópia de:ssa,<) (linha 136), percebe-se que ela não emprega uma “pergunta polarizada”, contudo, diante da diretiva do juiz, na linha 137, pode-se pensar que Kátia tenha reformulado a sua pergunta ( linha 142) de modo a salvar sua face bem como a face do juiz. Desse modo, a depoente parece estar orientada para a polaridade negativa da resposta prévia do juiz e não que o juiz tenha proferido uma resposta alinhada à polaridade da pergunta feita pela depoente. Além disso, note-se que o juiz se orienta para “o verdadeiro desejo” de Kátia qual seja, “a cópia daquele papel à mão” e não o atestado que pode ser conseguido na “porta de vidro ao lado”, conforme sugerido pela promotora. O “desejo de Kátia”

Para os propósitos da análise do próximo excerto, faz-se necessário esclarecer que, no momento da interação em discussão, o juiz já havia ter-minado de interrogar a depoente e havia passado a palavra ao “ministério público”, ou seja, à promotora. No excerto 4, apresentado a seguir, a de-poente continua engajada na interação com a promotora quando o juiz se manifesta. Segue-se o excerto:

Na linha 134, Kátia questiona seu direito a uma cópia do documento (>vou ganhá uma cópia de:ssa,<). Após uma micro pausa, o juiz, que tinha se manifestado pela última vez na linha 104 para encerrar oficialmente a au-diência (não mostrado aqui), toma o turno na linha 136 (“não.”). A resposta do juiz, conforme o que aponta Pomerantz (1974), apresenta-se no forma-to preferido, o que pode ser pensado como uma das formas de contribui-ção para a construção da hostilidade desse encontro situado. Explicando de outro modo, observa-se, na maioria das situações de fala-em-interação, que os interagentes, ao terem que negar algo a alguém, tendem a proteger suas próprias faces bem como as faces dos seus interlocutores (GOFFMAN, 1955). Uma das formas ad hoc de trabalho de proteção de face, nesses ca-sos, é a mitigação da resposta que, normalmente, vêm acrescidas de carga morfológica, de hesitação e de “prestações de contas” (COULON, 1995, p. 42) da razão pela qual uma negação é necessária naquele momento. Ou seja, nesses casos, o formato socialmente esperado é o despreferido.

A resposta do juiz, contudo, apresenta-se em um formato que con-traria o que é socialmente esperado. Em outras palavras, em face do for-mato preferido em que se apresenta (direta, sem hesitação, sem pausas e sem acréscimo de carga morfológica), a resposta do juiz pode ser conside-

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se confirma no seu turno da linha 145 (↑não eu digo de:sse aqui.) ao que o juiz novamente nega e é endossado,dessa vez, pela promotora. Diante da terceira negativa do juiz e do endosso da promotora, Kátia repete a negativa em volume baixo (˚não,˚, linha 148). Veja-se como a depoente lida com a situação que lhe é imposta frente a sua falta de familiaridade com os proce-dimentos próprios a esse tipo de audiência, no excerto 5, a seguir:

Após uma breve explicação por parte da promotora de que o “processo cri-minal diz respeito ao acusado”, entre os turnos 150 e 156, Kátia expressa sua apreensão. A carga morfológica trazida por Kátia dá conta de explicitar que ela “estava perdida”, que “não sabia o que estava se passando” e que “havia consultado o advogado da empresa onde trabalhava” com respeito a ter que prestar depoimento. Observa-se também que há vários momentos nos quais a promotora ou o juiz poderiam ter tomado o turno, mas não o fizeram, o que pode explicar o alongamento do turno de Kátia. É somente depois de uma pausa mais prolongada que a promotora tranquiliza a de-poente, ainda assim, sem prover mais explicações sobre os procedimentos práticos adotados em situações de audiência de instrução.

4. Considerações finais

No que concernem aos pressupostos teórico-metodológicos da Análise da Conversa, a análise apresentada dá conta de desempacotar as ações inte-racionais dos participantes do Direito que se traduzem na hostilidade dos encontros legais abordada por Holt e Johnson (2010). As respostas negativas dadas pelo juiz em formato preferido diante das indagações de Kátia, em três ocasiões, sugerem que ele não se orienta interacionalmente para as dúvidas externadas pela depoente e ainda se utiliza da construção do turno em formato preferido para se construir como detentor do poder e ameaçar a face de Kátia. No contexto situado em questão, as ações empreendidas pelo juiz geram consequências para a depoente, ou seja, percebe-se que ela tem que empregar esforços interacionais para lidar com uma situação, ao que parece, até então inusitada para ela em um ambiente que se mostra pouco

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amigável. Uma das formas que a depoente encontra para lidar com a desa-filiação do juiz é reformular o design do seu turno de modo a construir uma pergunta de polaridade negativa, tendo em vista a primeira resposta nega-tiva do juiz frente a sua primeira pergunta. A depoente, ao empregar essa estratégia interacional, salva sua face e a face do juiz, agindo em conformi-dade com o que é esperado socialmente. As falas da promotora, por sua vez, trazem mais carga morfológica e apresentam-se em formato despreferido diante das indagações da depoente (pedido de explicação – fornecimento de explicação), o que, nessas ocasiões, é socialmente esperado. No entanto, as respostas dadas pela promotora diante das indagações de Kátia não podem ser interpretadas como não problemáticas, hajam vistas as pausas que as antecedem. Além disso, de qualquer forma, pela sequencialidade da inte-ração, vê-se que as explicações ofertadas pela promotora não dão conta de despreocupar a depoente. Ainda, uma última informação faz-se necessária nesse ponto para reforçar as conclusões tiradas a partir das análises fei-tas. Embora não mostrado aqui por motivos de limitação de espaço, mesmo diante da proposta da promotora de que ela deve se tranquilizar, a depoente mostra-se insegura e retorna à sala de audiência após alguns minutos de ausência para, mais uma vez, perguntar se não havia “mesmo” nenhum problema em ter assinado o documento requerido pelo juiz. Isso demonstra que as informações providas pela promotora não foram suficientes para dis-sipar as dúvidas da depoente.

As questões levantadas aqui servem como reflexão sobre os direitos dos cidadãos em saber o que se passa em situações como a apresentada no artigo. Dito de outro modo, qualquer cidadão intimado a oferecer seus préstimos de forma a contribuir com a justiça brasileira deveria ter o direito preservado de conhecer os motivos pelos quais foi chamado a comparecer a uma audiência de instrução. Ademais, o cidadão tem o direito de ser notifi-cado quanto ao fato de as interações nas salas de audiência serem gravadas e também de ser informado sobre a razão de tal procedimento. Deveras importante, ainda, o cidadão tem o direito de saber que tipo de documento está sendo impelido a assinar. Todas essas medidas tendem a evitar com-plicações interacionais que possam contribuir para a percepção do senso comum de que as audiências de instrução são constrangedoras e hostís.

No que tange à área forense, os trabalhos em ACA podem contribuir para a sensibilização dos profissionais do Direito em relação às necessidades e anseios dos depoentes, principalmente em se tratando de participantes não familiarizados com os procedimentos adotados em audiências públicas. Precisa-se ter em mente, porém, que, diferentemente do que tende a acon-tecer em situações comerciais, talvez, os participantes do Direito, na esfera pública, não sejam receptivos às propostas que visam ao aprimoramento dos recursos linguísticos dos profissionais, dado o engessamento próprio da área. Entretanto, essa não é uma afirmação com valor de verdade sem que antes seja feito um trabalho de campo com vistas a apresentar a esses pro-

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fissionais as possibilidades oferecidas pelas pesquisas em ACA. De qualquer forma, pensa-se que as práticas previstas a partir de pesquisas em ACA possam ser do interesse de profissionais forenses que atuam na esfera pri-vada nos mesmos moldes de interesse apresentados por profissionais de ou-tras áreas. É necessário lembrar, porém, que problemas éticos podem surgir para os analistas da conversa, tendo em vista a natureza conflitante própria da área forense, e cabe a cada pesquisador se posicionar com bom senso e discernimento sob pena de macular a AC(A) e os seus membros.

Referências

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ANEXO – Convenções de Transcrição – 2005

[texto] = (1.8) (.), . ? - : >texto< <texto> °texto° TEXT Texto (texto) XXXX ((texto) @@@ ↓ ↑hhh.hhh

Falas sobrepostasFala coladaPausaMicropausaEntonação contínuaEntonação ponto finalEntonação de perguntaInterrupção abrupta da falaAlongamento de somFala mais rápidaFala mais lentaFala com volume mais baixoFala com volume mais altoSílaba, palavra ou som acentuadoDúvidasTexto inaudívelComentários da transcritoraRisadaEntonação descendenteEntonação ascendenteExpiração audívelInspiração audível

SCHNACK, C.; PISONI T.; e OSTERMANN, A. Transcrição de fala: do evento real à representação escrita, Entrelinhas, v. 2, n. 2. 2005.

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Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem1

Fernando José de Souza Filho

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

O presente texto trata das interações entre realidade e linguagem no âmbito dos processos linguísticos que perpassam o discurso legitimante do modelo punitivo hodierno. O capitulo tem como objetivo geral compreender qual a relevância dos processos de linguagem na formação do discurso legitimador do modelo punitivo contemporâneo.

O discurso conformador do atual sistema de justiça criminal é estuda-do à luz da criminologia crítica e da moderna teoria da linguagem. Parte-se da hipótese de que se a linguagem é o elemento fulcral do discurso, utilizan-do-se esta última palavra com o sentido empregado por Habermas, então o atual modelo punitivo se sustenta a partir de processos de linguagem.

São objetivos específicos: identificar os processos de linguagem empre-gados no discurso legitimador do atual modelo punitivo e compreender qual a importância desse discurso para as instituições estruturadas pelo Estado, para a persecução penal, como também para a manutenção e produção do delito.

O fio condutor do presente trabalho é o entrelaçamento da teoria do discurso de Habermas com as ideias de Louk Hulsman. A teoria do discurso de Habermas tem seu foco na racionalidade reflexiva subjacente aos proces-sos linguísticos, de modo que a partir de sua teoria consensual da verdade, serão demonstradas as inconsistências do modelo punitivo ante a denomi-nada situação ideal de fala.

1. Texto elaborado para o evento científico Linguagem e Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Direito.

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Inexoravelmente, linguagem e realidade estão interligadas de modo inseparável, de modo que a prática punitiva moderna é racionalmente jus-tificada através de processos linguísticos.

Louk Hulsman considera que o atual sistema de justiça criminal utili-za a linguagem da punição do cotidiano da população para mascarar os reais mecanismos aplicados na prática penal.

Portanto, o modelo punitivo hodierno passa, no presente texto, pelo crivo da moderna teoria da linguagem, demonstrando-se as gigantescas contradições existentes nesse modelo. Nesse contexto, verifica-se que as expressões linguísticas podem apresentar uma dupla dimensão: tanto des-critiva, quanto prescritiva; sendo este segundo plano indispensável à com-preensão da diferença entre aquilo que é prometido pelo modelo institucio-nal, em relação aquilo que é efetivamente aplicado na persecução penal.

No mesmo sentido, tem-se que a persuasão é um dos atributos da linguagem, devendo ser considerado esse aspecto fundamental do discurso, pois é amplamente utilizado para legitimar o atual modelo punitivo. Conse-quentemente, analisa-se o discurso que, ao mesmo tempo, mantem as ins-tituições destinadas a punir e é responsável pela produção dos delitos, aden-trando-se nas estruturas fundamentais da gênese da criminalidade. Nessa conjuntura, serão estudadas as interações entre os processos linguísticos e os mecanismos utilizados pelo Estado para solucionar desvios ou desajustes de conduta.

O entrelaçamento da teoria do discurso de Habermas com as ideias de Louk Hulsman proporciona uma visão muito mais ampla do atual modelo punitivo, fazendo com que os paradigmas tradicionalmente consolidados na prática penal, sejam vistos numa perspectiva diametralmente oposta aquela preconizada pelo discurso legitimante. A filosofia é um poderoso instrumen-to de desconstrução de paradigmas, capaz de ampliar as vias de entendi-mento de determinada matéria, através da problematização.

A filosofia de Habermas, precisamente a teoria do discurso, aplicada à criminologia crítica permite, nesse trabalho, um aprofundamento das ideias de Louk Hulsman acerca da gênese da criminalidade, sobretudo dos meca-nismos institucionais de produção e manutenção do delito.

O presente capitulo tem significativa relevância científica pois servirá de subsídio para o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal contem-porâneo, além de fornecer elementos indispensáveis à compreensão da in-fluência da linguagem na manutenção do atual modelo de punição aplicado pelo Estado.

A pesquisa é bibliográfica e descritiva, pois visa descrever a influência do discurso utilizado pelo atual sistema de justiça criminal à luz da crimi-nologia crítica e da moderna teoria da linguagem, com ênfase na teoria do

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discurso de Habermas e nas ideias de Louk Hulsman. Habermas e Louk Hulsman estão lado a lado nesta jornada rumo ao entendimento das estru-turas linguísticas que instrumentalizam a formação embrionária da crimi-nalidade nas sociedades contemporâneas.

2. A consciência moral

Como ponto de partida, por ser indispensável para a compreensão da teo-ria do discurso, serão tratados aspectos relativos à consciência e à moral, apresentando-se um sentido à expressão consciência moral. Consciência, em síntese, de acordo com a definição de John R. Searle, são “estados e processos de sensibilidade ou ciência, internos, qualitativos e subjetivos”. (SEARLE, 2010, p. 55)

Tais estados e processos de sensibilidade ou ciência têm na subjetivi-dade a sua característica de maior relevo, a qual pode ser apresentada como o pertencimento individual da consciência, ou seja, como ontologicamente única e exclusiva de cada indivíduo. ( SEARLE, 2010, p. 58)

Desse modo, tem-se que a consciência, por ser subjetiva, é percebida por cada pessoa de modo diferenciado, sendo alcançada por cada indivíduo de forma particular.

Habermas realoca o foco da problemática da consciência moral da consciência para a linguagem.

Nesse prisma, tem-se que “no quadro da filosofia da consciência, não é possível, portanto, afirmar coerentemente, ao mesmo tempo, atividade do sujeito e intersubjetividade”( DUARTE, 2004, p. 185)

Há, portanto, uma mudança de paradigma no âmbito da consciência moral, da subjetividade, que é eminentemente individual, para os processos linguísticos, que são intersubjetivos.

Viceja a relevância da racionalidade reflexiva subjacente aos processos linguísticos, havendo um deslocamento da subjetividade para a objetividade, de modo que apenas “a passagem para o paradigma do entendimento per-mite resolver a questão de uma razão concomitantemente situada e crítica”. (DUARTE, 2004, p. 185)

A relevância da consciência no discurso prático, nos termos estabele-cidos por Habermas, reside, justamente, na formação de uma ponte entre o ego e o alter. Nesse sentido, “o consenso sobre algo mede-se pelo reconhe-cimento intersubjetivo da validade de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica”. (HABERMAS, 2002, p. 77)

Do mesmo modo, “a auto-relação moral-prática do ator que age comu-nicativamente exige uma atitude reflexiva ante suas próprias ações regula-das por normas”. (HABERMAS, 2004, p. 103)

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A reflexividade individual é elemento primordial da racionalidade dis-cursiva. Por outro lado, há um amálgama entre a reflexividade individual e a sociedade, de modo que “a auto relação existencial exige uma atitude reflexiva ante o projeto de vida próprio, no contexto de uma biografia indivi-dual, mas entrelaçada com formas de vidas coletivas dadas”. (HABERMAS, 2004, p. 103)

Etimologicamente, tem-se que “o vocábulo “moral”(do latim mors, morus, mores, morale) é produto de uma das tentativas de tradução de éti-ca”. (MOLINA, 2003, p. 34)

A ligação entre o direito e a moral é reconhecida por Habermas, tese originariamente sustentada por Robert Alexy, para o qual o raciocínio ju-rídico é um caso especial de juízo moral. Há, dessa maneira, uma ligação entre direito e moral, a partir da complementariedade do discurso jurídico e das normas deônticas, hipótese que também se enquadra na doutrina de Dworkin, segundo a qual os princípios jurídicos são a dimensão jurídica da moralidade. ( DUARTE, 2004, p. 188)

Para Alexy, pelo fato da argumentação jurídica ser uma atividade lin-guística, sua teoria da argumentação jurídica se fundamentou na corre-ção dos enunciados normativos. Designando essa atividade linguística dos enunciados normativos de discurso prático. Portanto, “o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral”. ( ALEXY, 2011, p. 30)

Além disso, Habermas considera que há uma confluência entre a ética do discurso e teoria de Kohlberg acerca do desenvolvimento da consciência moral e que, dessa maneira, essa última confirmaria a primeira. (HABER-MAS, 1989, p. 143)

A teoria de Kohlberg está baseada em três premissas: cognitivismo, universalismo e formalismo. Em relação ao cognitivismo a “ ética do Dis-curso refuta o cepticismo ético, explicando como os juízos morais podem ser fundamentados”, ou seja, a ética do discurso também é adepta do cog-nitivismo, ideia que aplicada à moral, indica que juízos morais pressupõem uma racionalidade reflexiva obtida a partir do conhecimento. No tocante ao universalismo, a teoria do discurso refuta o relativismo ético, para o qual “a validez dos juízos morais só se mede pelos padrões de racionalidade ou de valor da cultura ou forma de vida à qual pertença em cada caso o sujeito que julga”. ( HABERMAS, 1989, p. 147)

Por fim, o formalismo, que significa que “a ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo”.( HABERMAS, 1989, p. 148)

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3. Teoria do discurso

O fio condutor do presente trabalho é a teoria do discurso de Haber-mas, com ênfase na racionalidade subjacente aos processos linguísticos.

A teoria de Habermas acerca da ética, a denominada ética do discurso, “parte das reflexões sobre a linguagem segundo Wittgenstein para explorar a possibilidade de identificar na comunicação humana e nas suas regras intrínsecas uma via de acesso à ética”. (NERI, 2004, p. 213)

Desse modo, “as regras intrínsecas à prática social da interação comu-nicativa não são simples regras gramaticais ou linguísticas; incluem, porém, princípios de ordem moral, que têm força normativa”. ( NERI, 2004, p. 214)

Nesse intento, perpassa-se o âmbito da denominada metalinguagem, cujo objeto central reside na “preocupação de superar as deficiências de uma linguagem qualquer para criticá-la ou chegar a maior exatidão”. (LE-PARGNEUR, 1972, p. 27)

É relevante destacar que Habermas forma a sua teoria da ética do discurso com base na filosofia da linguagem, especificamente a partir das ideias do segundo Wittgenstein, de Austin e de Searle, e, dessa maneira, buscando os “pressupostos universais da ação comunicativa, desde o ponto de vista de uma análise interacionista do estabelecimento de relações inter-pessoais, reconstruirá a teoria dos atos de fala( Austin e Searle)”. ( DUAR-TE, 2004, p. 181)

3.1 O agir comunicativo e o cognitivismo

Cumpre destacar a posição cognitivista acerca da ética defendida por Ha-bermas, para o qual razões morais estão ligadas à pretensões de validez ra-cionalmente justificáveis, rechaçando fortemente teorias não-cognitivistas como o emotivismo e o decisionismo. (HABERMAS, 1989, p. 62)

O cognitivismo está associado à ideia de uma racionalidade reflexiva como pressuposto do conhecimento. Para Habermas, apesar da teoria de-cisionista de Hare ser melhor que as doutrinas emotivistas e imperativistas por considerar que questões morais são debatidas através de razões, é falha por não associar pretensões de verdade à argumentação. ( HABERMAS, 1989, p. 76)

Por outro lado, Habermas dá destaque a teoria de Toulmin asseveran-do que “Toulmin não se atém mais à análise semântica de expressões e fra-ses, mas concentra-se quanto ao modo de fundamentação das proposições normativas”. ( HABERMAS, 1989, p. 78)

Inicialmente, cabe tratar do conceito de agir comunicativo, como sen-do “as interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medin-

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do-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez”.( HA-BERMAS, 1989, p. 79)

A diferenciação entre ação estratégica e ação comunicativa é essencial para se compreender essa última expressão. Nesse sentido, no denominado agir estratégico “um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão”. (HABERMAS, 1989, p. 79)

Perceba-se que a diferença fundamental entre os dois conceitos apre-sentados por Habermas reside na racionalidade presente no agir comuni-cativo ante as ingerências intersubjetivas que perpassam o agir estratégico.

Dessa forma, a interação estratégica, para Habermas, é, em síntese, “uma ação orientada para o êxito, ao passo que ação comunicativa é uma ação orientada para a compreensão intersubjetiva, que alcança a sua pleni-tude no exercício sem barreira da comunicação”. ( ATIENZA, 2003, p. 206)

Nos processos linguísticos em que há interações o falante ergue pre-tensões de validade, através de atos de fala, desejando que “o dito por ele seja válido ou verdadeiro num sentido amplo”. ( ATIENZA, 2003, p. 161)

O conceito de discurso para Habermas está diretamente relacionado à ideia de interação comunicativa, havendo, para esse filósofo, a transição da ação comunicativa para o discurso quando ocorre a problematização das pretensões de validade. Quando a problematização da pretensão de validez está ligada à verdade de proposições assertivas, tem-se o discurso teórico, ao passo que quando toca proposições regulativas, alcança-se o discurso práti-co. ( ATIENZA, 2003, p. 162)

O objeto principal de estudo desse trabalho está centrado no denomi-nado discurso prático, aquele atinente às normas regulativas, em que há a incidência da argumentação moral.

Cabe, nesse ponto, compreender como atos de fala relacionados à nor-mas, denominados de regulativos, estão permeados por pretensões de vali-dez, ou seja, será estudada a questão da validade moral da normas.

Enunciados normativos devem ser compreendidos diferentemente de enunciados descritivos. “Proposições normativas não podem ser verificadas ou falsificadas, isto é, não podem ser testadas pelas mesmas regras de jogo que as proposições descritivas”, de modo que não se pode tratar problemas práticos, ou seja morais, considerando-os como passíveis de verdade. ( HA-BERMAS, 1989, p. 75)

Os atos de fala se ligam aos fatos diferentemente da forma com que se ligam as normas. Habermas exemplifica essa ideia através de uma proposi-ção deôntica do tipo: não se deve matar ninguém. Essa proposição pode ser exteriorizada por meio de atos de fala regulativos, mas, independentemente

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disso, possui validez, diferentemente das proposições assertóricas do tipo: o ferro é magnético, que dependem de atos de fala constatativos para serem verdadeiras ( HABERMAS, 1989, p. 81).

Desse modo, essa distinção ocorre porque as normas sociais “diante das quais podemos adotar um comportamento conforme ou desviante, não são constituídas independentemente de toda validez, como as ordenações da natureza, em face das quais só adotamos uma atitude objetivante”. ( HABERMAS, 1989, p. 81)

Isso quer dizer, em síntese, que a validez das normas, tanto morais quanto jurídicas, preexistem aos atos de fala, do mesmo modo que só há sentido em se atribuir um predicado a um objeto, erigindo-se uma preten-são de verdade, numa proposição assertórica, empregada numa ato de fala constatativo, como por exemplo, do tipo: o morango é vermelho, diante do próprio morango.

Essa característica marcante das normas de bastarem por si, indepen-dentemente do ato de fala, é confirmada na teoria da linguagem de John R. Searle, para o qual as proposições normativas são autoreferenciais. Nesse sentido, há nas proposições regulativas, como as ordens, uma característi-ca denominada autorefencialidade que as diferencia das proposições me-ramente assertóricas, que quer dizer que elas tem em si próprias o seu referencial, independentemente da sua satisfação.

Portanto, quando uma ordem é dada, há dois comandos que devem ser considerados: que se satisfaça aquilo que foi ordenado e, sobretudo, que a ordem seja obedecida. Dessa maneira, tem-se que “as condições de satis-fação da ordem são autoreferenciais a própria ordem – pois o que a ordem ordena é que ela mesma seja obedecida”. ( SEARLE, 2010, p. 240)

Disso decorre que há uma dupla dimensão que deve ser considerada numa norma deôntica: descritiva e prescritiva.

Como exemplo, tem-se que há numa sentença judicial uma dupla jus-tificação, ou seja, há numa sentença independentemente dela ser consi-derada pela doutrina processualística como meramente declaratória, além da declaração de um direito, a ordem implícita para que a sentença seja obedecida, reafirmando todo o sistema punitivo.

Isso ocorre também em relação aos atos administrativos, pois ao de-clararem algo também prescrevem algo, reafirmando e revalidando toda a conjuntura.

Nesse sentido, o assentimento de uma norma está ligado à “possiblida-de de mobilizar, num dado contexto da tradição, razões que sejam suficien-tes pelo menos para fazer parecer legítima a pretensão de validez no círculo das pessoas a que se endereça”( HABERMAS, 1989, p. 83).

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Isto implica dizer que uma norma deverá, para que ocorra a sua acei-tação social, ter sua validez racionalmente justificada. Conforme analisado, o mundo das normas funciona diferentemente da natureza, em que a refe-rência é o estado das coisas, o qual independe de fundamentação, ou seja, a validez normativa é dependente de justificação, de modo que a verdade de atos de fala constatativos independe de fundamentação.

3.2 Princípios da universalização e do discurso

Nesse ponto, tratar-se-á do princípio da universalização. Dessa maneira, tem-se que “o princípio moral é compreendido de tal maneira que exclui como inválidas as normas que não possam encontrar o assentimento quali-ficado de todos os concernidos possíveis”. ( HABERMAS, 1989, p. 84)

Remete-se, a partir desse ideal, ao imperativo categórico de Kant.

Portanto, a teoria do discurso é incompatível com o relativismo jurídico em relação as normas morais.

“A aceitabilidade das razões apresentadas pelos participantes do dis-curso está, portanto, sob a resolutiva condição de que também a norma será efetivamente observada por todos”. (GUNTHER, 2011, p. 241)

Isto implica que o assentimento da justificação de uma norma deve corresponder a validade e observância dessa norma em relação a todos os concernidos.

Para Habermas, entretanto, não se deve confundir o princípio da uni-versalização com um princípio fundamental da ética do discurso, qual seja “uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem(ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma”. ( HA-BERMAS, 1989, p. 86)

Nesse sentido, segundo Habermas, a argumentação moral é fun-damental para a superação de problemas da vida cotidiana, em que haja pretensões de validez normativas, utilizadas em interações comunicativas. ( HABERMAS, 1989, p. 87)

A ação comunicativa problematizada, ou seja, o discurso prático, ne-cessita de agências estatais livres de obstáculos nas sociedades hodiernas, que protejam os direitos fundamentais. É essencial que “a moral e o direito estabeleçam mecanismos institucionais para a consecução da integração so-cial dos mundos da vida, intersubjetivamente compartilhados”.( DUARTE, 2004, p. 193)

Há uma preocupação, nesse aspecto, de Habermas, com a “legitima-ção por obra da lógica do dinheiro ou do poder que, inolvidavelmente, des-

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truiria os pressupostos da comunicação necessária para a legitimação nor-mativa em uma sociedade moderna”. ( DUARTE, 2004, p. 193)

4. O sistema de justiça criminal

O atual modelo de justiça criminal subsiste através das relações de poder, e como tal, reafirma-se, sistematicamente, através do discurso. Na época do suplício corporal, o terror, traduzido no medo físico e no pavor coletivo era o exemplo. Hodiernamente, o fundamento do exemplo “é a lição, o discur-so, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública.” ( FOUCAULT, 2010, p. 106)

Nesse sentido, Louk Hulsman considera a justiça criminal um sistema que usa o discurso da punição, linguagem comum ao público em geral, para legitimar o modelo e ao mesmo tempo mascarar os processos que efetiva-mente ocorrem, a saber:

Na prática, chamar tais atividades de punição significa criar uma legitimação infundada; em consequência, não considero a justiça criminal como um sistema destinado a dispensar punições, mas sim um sistema que usa a linguagem da punição de modo a esconder os reais processos em curso e produzir consenso através de sua errônea apresentação, assimilando-os aos processos conhecidos e aceitos pelo público. ( HULSMAN, 2004, p. 36)

O atual modelo punitivo legitima-se pelo discurso, passando a retórica a ocupar uma posição de destaque, de modo que a persuasão se faz pelo uso da linguagem, através da reafirmação da Lei.

Cumpre ressaltar, a importância dada por Louk Hulsman aos valores morais, de modo que há, nesse ponto, uma convergência entre a sua doutri-na e a teoria do discurso de Habermas.

Nesse sentido, sob a ótica de Gabriel Ignácio Anitua, Hulsman “rea-firmava os valores morais como o limite mais adequado para as violências”. ( ANITUA, 2008, p. 697)

5. Conclusão

Tratou-se, inicialmente, da consciência moral, com ênfase na conformação da doutrina do desenvolvimento moral de Kohlberg e da ética do discurso de Habermas. Evidenciou-se uma perfeita compatibilidade entre essas duas teorias. Em seguida, abordou-se a teoria do discurso de Habermas propria-mente dita, ressaltando-se, sobretudo, aspectos relacionados à ação comu-nicativa e ao cognitivismo, tendo-se demonstrado que razões morais estão

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ligadas à pretensões de validez racionalmente justificáveis; e aos princípios da universalidade e do discurso, premissas fundamentais da ética do discur-so de Habermas. Noutro ponto, cuidou-se da análise das peculiaridades do atual sistema de justiça criminal, apontando-se para a convergência entre a teoria do discurso de Habermas e a doutrina de Louk Hulsman, no que tange à proeminência dos valores morais.

Questão relevante, diz respeito ao assentimento social de normas. Para que ocorra a aceitação social de uma norma, ainda conforme a teoria da ética do discurso, é crucial que a pretensão de validez da norma seja racionalmente justificada para aquele grupo para o qual ela se destina. No Brasil, em matéria penal, não há o necessário assentimento generalizado das regras jurídicas pela população, de modo que as normas criminais não estão racionalmente justificadas como deveriam estar.

Da mesma forma, o dinheiro e o poder são obstáculos à legitimação normativa racionalmente justificável em uma sociedade. São indispensáveis instituições oficiais livres das ingerências do dinheiro e do poder para que se alcance uma situação ideal de fala.

Os processos linguísticos vem sendo utilizados para se legitimar um sistema de justiça criminal que não tem oferecido respostas satisfatórias para a sociedade. Portanto, conclui-se que o discurso prático, como pro-blematização da ação comunicativa, é essencial à ressignificação do atual modelo punitivo.

Referências

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ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica, Editora Forense, Rio de Janeiro 2011.

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica, Perelman, Viehweg, Alexy, MacCormick e outros, Landy Editora, São Paulo, 2003.

DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do Discurso e Correção Normativa do Direito: aproximação à metodologia discursiva do direito, Landy Editora, São Paulo, 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 38. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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GUNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Klaus Gunther; tradução: Cláudio Molz, 2 ed. - Rio de Janeiro, Forense, 2011.

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo/ Jürgen Habermas; tradução de Guido A. de Almeida – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos/ Jürgen Habermas. 2 ed. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos / Jürgen Habermas; tradução de Milton Camargo Mota, 2 ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2004.

HULSMAN, Louk. Alternativas à Justiça Criminal. In: PASSETTI, Edson(org.). Curso Livre de Abolicionismo Penal – Rio de Janeiro: Revan, 2004.

MOLINA, Aurélio et al. A ética, a bioética e o humanismo na pesquisa científica: breves apontamentos e principais documentos – Recife; EDUPE; Centro de Documentação Oliveira Lima, 2003.

NERI, Demetrio. Filosofia Moral - Manual Introdutivo; tradução: Orlando Soares Moreira, São Paulo, Edições Loyola, 2004.

LEPARGNEUR, Hubert. Introdução aos estruturalismos. São Paulo, Editora Herder, 1972.

SEARLE, John R. Consciência e Linguagem/ John R. Searle; tradução Plínio Junqueira Smith – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

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Parte VCRIMINOLOGIA CRÍTICA

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Uma análise do discurso das decisões denegatórias e concessivas de habeas corpus

de tráfico de drogas no estado de pernambuco: entre a (in)segurança pública e um direito penal

do inimigo

Cristhovão Fonseca Gonçalves e Marilia Montenegro Pessoa de Mello e Virgínia Colares

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

Os jargões relativos ao crime de drogas1 são, facilmente, encontrados na jurisprudência e sinalizam para uma incompatibilização entre o sistema processual de garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988, que salvaguarda o indivíduo submetido à persecução penal, e à aplicação do direito.

“A gravidade do delito de tráfico de drogas justifica a segregação cau-telar do acusado”; “o tráfico é catalisador da violência instaurada no seio social, estando, portanto, a ordem pública violada, o que justifica a prisão preventiva do paciente” são alguns dos exemplos comumente observados

1. Drogas, tóxicos, narcóticos, entorpecentes, estupefacientes são diferentes nomenclaturas para indicar substâncias proibidas na legislação penal brasileira, que diferentemente de outras como o álcool e o tabaco, foram tornadas ilícitas. Para fins de uniformização e estabelecimento de nomenclatura técnica, sinaliza-se, neste trabalho, para a utilização do termo drogas a fim de referir de forma geral as substâncias com capacidade química psicoativa, isto é, de gerar alucinações (maconha), estímulos (cocaína), e podendo gerar entorpecimento (ópio e substâncias derivadas). Portanto, o uso reiterado do termo deve-se a preservação de uma coerência terminológica e técnica em detrimento da não repetição de termos para fins estilísticos de construção do texto.

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em habeas corpus2, que versam sobre o crime de tráfico de substâncias tor-nadas ilícitas, prevista na Lei nº 11.343/2006.

É notório que a questão das drogas, narcóticos estupefacientes, tó-xicos, bem como toda gama de denominações vulgares e científicas a elas atribuídas - preenche, cotidianamente, as páginas dos jornais e dos notici-ários, abarrotando, por fim, as delegacias de polícia e os gabinetes judiciais no âmbito da criminalização secundária.

Diante dessa conjuntura, as drogas são, hoje, o grande mote justifica-dor de uma intervenção severa do aparato estatal, com cobertura maciça da mídia, e de uma política criminal bélica.

Por outro lado, o ordenamento jurídico processual brasileiro vem pas-sando por significativas mudanças no âmbito legislativo e jurisprudencial, notadamente nos últimos cinco anos, que reverberam, sobretudo, na Lei nº 11.343/2006 e seus dispositivos, o que causa uma estranha colisão de posturas entre Tribunais Superiores - Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) - e alguns Tribunais de Justiça.

Este trabalho propõe uma abordagem da tão propalada questão das drogas e sua correlação com o discurso de “lei e ordem”, e com os processos de estigmatização e do tratamento asséptico, descontextualizado da realida-de social, dado pelo pensamento penal dogmático, hegemônico no campo jurisprudencial contemporâneo.

2. Considerações a respeito da tipificação da legislação antidrogas -

da década de 1940 aos anos 2000

Uma breve análise da legislação de combate às drogas revela que, desde a positivação do artigo 281 do Código Penal de 19403, a política criminal no

2. Habeas Corpus consiste em remédio jurídico de previsão constitucional e processual penal. Esse instituto jurídico, ao qual se vale a pessoa cuja a liberdade é cerceada em razão de ato ilegal, coação ilícita, como esclarece a linguagem forense, é o objeto de estudo deste trabalho, atentando-se para o fato que as decisões denegatórias da liberdade, nesse instrumento, assinalam para particularidades relativas a forma como se enxerga o autor do crime de tráfico de drogas .

3. O artigo 281 do Código Penal é um dos marcos históricos da criminalização das drogas no Brasil. Sua redação inicial, depois alterado pela lei 4.451/64 e o decreto 385/68, afirmava que: “importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar ao consumo substância entorpecente- Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de dois a dez contos de réis”. O artigo 281 não diferenciava as condutas de usuários e traficantes. É com a lei 4.451/64 que se introduz ao tipo do artigo 281 a ação de plantar, mas é em quinze dias após a decretação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, no de 68 que ocorre substancial modificação na legislação de enfrentamento de drogas, como frisa Zaconne (2011, p. 90). Em 1968, com o decreto 385/68 molificou-se o mesmo artigo para sancionar traficantes e usuários da mesma maneira.

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âmbito das drogas tem sido marcada pela criação de mitos e estereótipos a respeito dessa atividade criminosa e dos efeitos do uso dessas substâncias.

Sucessivas tendências, antes da legislação que de fato foi marco na reprovação normativa do tipo tráfico de drogas, nos anos 40, podem ser en-contradas em Convenções Internacionais, como a de Haia (1912) e as de Genebra (1925, 1931 e 1936), que revelam a influência sofrida pelo Brasil4.

Trata-se de um quadro social e político, que explicita a internaciona-lização do controle das drogas marcado pelo modelo sanitarista, reformado “centripetamente”, isto é, de fora para dentro no qual a legislação interna funciona como ressonância que reflete a influência das legislações inter-nacionais sobretudo na América Latina, constituída por países que na divi-são internacional do trabalho, no mercado das drogas ocupam a função de produtores de maconha, cocaína, heroína, ácido lisérgico, mais conhecido LSD, por exemplo.

Contemplava-se na realidade social da Nação, em princípio, a venda de drogas sob receituário médico rubricado pela autoridade sanitária. As drogas, esclareça-se, estavam nas prateleiras, sob o patrocínio de farmacêu-ticos. As autoridades sanitárias aderiram às técnicas higienistas, tendo, na origem, como instrumento as barreiras alfandegárias.

A drogadição, diante desse contexto, consubstanciava-se em doença de notificação compulsória. Desenhava-se, com isso, um sistema médico--policial de enfretamento da questão das drogas.

Usuários, “curiosos”5, inicialmente, ressalte-se, não eram criminalizados. Entretanto, isso não significa ausência de controle, posto

4. Antes mesmo do surgimento da Organização das Nações Unidas, a ONU, já existiam Convenções Internacionais sobre o Ópio, como a adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposição da criminalização no plano internacional só se concretiza com as convenções da ONU, a saber: 1961, a Convenção Única sobre Entorpecentes;1971, Convênio sobre substancias psicotrópicas de 1971; 1988. Convenção de Viena. Sobre essa última, em sessão especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) o slogan “A Drug-Free World - We Can Do It” o paradigma da proibição e da ideia de que a humanidade pode viver livre de drogas foi reiterado. Uma nova Assembleia vem sendo preparada para o ano de 2016 em Genebra, Suíça.

5. Becker em capítulo especifico de um clássico da sociologia do crime, Outsiders, “ marginais”, explica a respeito das carreiras desviantes, relacionadas ao uso de drogas, estabelecendo distinção entre aqueles que utilizam a maconha, no caso especifico dessa conhecida pesquisa, como pela primeira vez “para terem o barato”, “curiosos” e que, de acordo com a sociabilização especifica e do sentimento de prazer, vão engrenando no universo particular das drogas, tornando-se usuários, pessoas que habitualmente lançam mão de drogas em seu cotidiano. De acordo com o sociólogo, pois, pode-se categorias o uso dessas substâncias em três fases iniciante (a pessoa que fuma maconha pela primeira vez), usuário ocasional (aquele para qual o consumo é esporádico e depende de fatores fortuitos como encontrar determinado grupo desviante em que se utiliza a droga) e usuário regular (para quem fumar se torna uma rotina sistemática, em geral diária) (BECKER, 2009, p. 71)

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que tais pessoas estavam submetidas a rigoroso tratamento, que passava pela internação obrigatória (por representação da autoridade policial ou do Ministério Público, pautada, nos casos urgentes, em mero laudo de exame, com caráter sumário) ou facultativa (por controle familiar até o quarto grau, com projeções patrimoniais, pelo acautelamento dos bens). Um fato curioso é que o hospital que recebesse toxicônomos6 deveria comunicar tal situação imediatamente à autoridade sanitária, que comunicaria aos órgãos tradicio-nalmente responsáveis pela persecução penal (cf. BATISTA, 1998).

Esse contexto revela um quadro em que a droga deveria ser minis-trada em doses homeopáticas para os internos, pela diminuição gradativa ou pela privação progressiva do uso da mesma substância. A saída desses enclausurados atrelava-se ao atestado médico de cura, referente à alta con-cedida pela autoridade sanitária, que notificaria a polícia, para efetivar a vigilância e controle pós-ambulatorial. Percebe-se, então, que o eixo médi-co-farmacêutico impregnou o modelo legal e imprimiu um caráter científico com primeiros e tímidos traços moralistas que consubstanciariam a estig-matização do usuário de drogas e a construção de sua identidade deteriora-da7 (GOFFMAN, 2012).

Na trilha por entender a criminalização das drogas no Brasil, aponta--se que o Código Penal de 1940 firmou uma opção por não se criminalizar o consumo de drogas8. No contexto histórico da redemocratização, após o Es-tado Novo, foi se delineando, a partir de 1946, um eixo moral-estigmatizan-te sobre o mercado das substâncias entorpecentes, lançando estereótipos sobre usuários e comerciantes do mercado das drogas, o que continuaria com ainda mais força após os anos de 649.

6 . A expressão toxicônomos pode ser lida como adictos, dependente, drogado e outras denominações que adjetificam o uso abusivo de álcool e outras drogas, embora algumas sejam classificadas como drogas lícitas. A palavra toxicônomo, nesse fragmento do texto, foi utilizada de acordo com seu uso histórico, posto que essa nomenclatura fora utilizada com bastante frequência no Brasil, sobretudo, após a vigência da Lei nº 6368/76, tida como Lei Antitóxicos.

7. Goffman (2012, p. 12) alerta para esse processo quando um estranho é apresentado a um desconhecido e os primeiros aspectos permitem a previsão de sua categoria e os seus atributos, de status social, nesse inclusas percepções como “honestidade”, “ocupação”. Esses julgamentos morais consistem a formulação social a respeito da identidade do usuário de drogas

8. A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 resultou num protocolo assinado em 1972, pelos Estados Participantes, iniciando o que se denomina de Ideologia da Diferenciação. Desse modo, é possível perceber que até os anos sessenta do século XX não havia nas legislações nacionais a criminalização da figura do usuário de drogas. É com o marco da Ideologia da Diferenciação que o traficante é definido como criminoso e o usuário como doente. (cf. ZACONNE, 2011, p. 86) São as marcas transitórias da história da criminalização das drogas de um modelo sanitário para um bélico.

9. O acompanhamento do avanço legislativo da repressão às drogas, demonstra que as marcas de embrutecimento punitivo foram se consolidando a partir da vigência da Ditadura

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A década de 60, pois, significou a baliza divisória da ruptura do mo-delo de política criminal, que se transpôs do sanitário para o bélico com a consolidação da Ideologia da Diferenciação10. Todavia, se percebem algumas permanências, vinculadas à construção do estereótipo da dependência e da doença.

O divisor entre as formas de tratamento já aludidas foi 1964, o ano do golpe militar, por razões que beiram a clarividência do projeto político-social de sociedade “idealizado” pelos autores do regime autoritário civil-militar. Esse regime passou a ter ingerência sobre a condução de toda a política criminal no Brasil.

Nesse mesmo contexto de eclosão de revoluções sociais, reações auto-ritárias e libertações culturais, na Europa às Américas, sem partir para uma analise pormenorizada de outros contextos geográficos, desde a década de 60, o uso de drogas passa a ter uma conotação libertária, associada às ma-nifestações políticas contestatórias, relacionadas àquilo que se chamou de contracultura. O consumo de, especialmente, drogas psicodélicas, capazes de gerar alucinações, como a maconha e o LSD é potencializado nesse tem-po de contracultura política e cultural.

Rosa Del Olmo em “A Face Oculta das Drogas”, sintetiza o pensamento dominante na década de 60 na América Latina a respeito do consumo de drogas:

Esse duplo discurso sobre a droga pode ser conceituado como modelo médico-jurídico, tentando estabelecer ideologia de diferenciação, que possui como característica principal a distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente. O primeiro, em razão de sua condição social, estaria absorvido pelo discurso médico, consolidado pelo modelo médico-sanitário. (DEL OLMO, 1990, p. 34)

Nesse mesmo momento histórico, delineia-se a Guerra Fria, com o capita-lismo industrial de guerra, fato que propiciou a militarização das relações internacionais, no campo da geopolítica. Para o governo militar, a droga era ainda tida pelo DOPS-Rio como elemento de subversão, vista como estra-tégia comunista para destruir o Ocidente

(MALAGUTI, 2003, p. 112) e as

bases morais da civilização cristã. Nessa direção, os investimentos foram se tornando cada vez mais vultosos no combate às drogas.

Civil Militar Brasileira, a partir de Decretos e Leis do Período, que serão, a seguir, exploradas neste trabalho

10. Para compreender melhor o termo e sua dimensão na Política Criminal de Drogas, ler referência nº 09 deste trabalho.

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Em 1968, quinze dias após a decretação do ato institucional nº 5, o AI-5, um decreto de nº 385 modificou o artigo 281 do Código Penal, acres-centando naquele tipo penal outros verbos incriminadores, aumentando, com isso, a sorte de condutas tidas, a partir dessa época, como criminosas (algumas delas o que a dogmática penal chama de atos preparatórios)11.

Interessante observar tal “progresso”, para afastar a difundida ideia de um conceito ontológico de crime que distorce este de um processo de construção histórica e social. A história da criminalização das drogas, nesse ponto, torna latente que não existe, per se uma criminalidade, mas uma criminalização: “atos não são, eles se tornam” (cf. CHRISTIE, 2011, p. 29).

A propósito, a Escola Superior de Guerra, com a colaboração da Mis-são Militar Americana, teve relevância nesse processo. Modelou-se, pois, a Doutrina de Segurança Nacional, a qual estabeleceu os inimigos internos, associados aos comunistas. Algum tempo depois, ocorreria novo desloca-mento nessa plataforma teórica de combate para uma nova categoria de ini-migos internos: os traficantes de drogas. O Brasil, assim, passou a integrar o modelo de política criminal bélica.

Dessa maneira, com base num modelo paleorepressivo (MOLINA, 2006, p. 455) de Lei e Ordem os traficantes se coadunavam ao inimigo interno. A política criminal de drogas ajustou-se à lamentável metáfora da guerra. Os discursos proferidos passaram a articular a noção de combate ao inimigo, que deve ser exterminado com o aval da sociedade. A política da guerra foi potencializada no Brasil por uma tríplice base ideológica, a ideologia da Defesa Nacional, complementada pela Doutrina de Segurança Nacional e pelos Movimentos de Lei e Ordem (CARVALHO, 2010, p. 29).

Com a Lei nº 5.726 de 1971, que esboçou, já em seu primeiro artigo, a preocupação no combate ao tráfico como sendo um dever de todos, com a necessidade premente de colaboração na delação se verifica o delineamen-to de um controle punitivo mais severo e adequação da legislação pátria ao controle internacional que forjou a Ideologia da Diferenciação.

11. A Lei de Entorpecente (11.343/2006), ainda hoje conhecida pelo senso comum como Lei Antitóxico (6368/1976), é marcada por profunda ambiguidade legislativa. Utiliza-se na técnica legislativa alicerçada em normas penais - responsáveis por definir o que é entorpecentes; proliferação dos verbos nucleares que sinalizam o que seja o ato de traficar; utilização de termos imprecisos e genéricos; incriminação de condutas autolesivas em defesa da suposta saúde pública; incriminação de atos meramente preparatórios; indefinição do dolo de tráfico; desproporcionalidade das sanções penais aplicadas e minimização de princípios processuais garantistas, como o contraditório e a ampla defesa, tal como é a prática corrente da escuta do acusado antes das testemunhas de defesa e acusação, a exemplo questionável regra do artigo 57 da Lei 11.343/2006 e do artigo 44 do mesmo diploma legal, declarado inconstitucional incidentalmente pelo STF no Habeas Corpus 97.256/RS, que vedava a liberdade provisória para quem respondesse por crimes de tráfico (artigo 33) e associação( artigo 35).

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Tal lei em questão transpôs, desse modo, no âmbito penal, aqueles que seriam os espectros da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170 de 1983) e impôs grande repressão. Esse diploma legal deixa de considerar o usuário de drogas como criminoso mas continuar a equiparar usuários e traficantes, impondo às duas figuras pena privativa de liberdade de 01 a 06 anos, culmi-nando com a Lei 6.368/76. (CARVALHO, 2010, p. 17).

Oportunamente, é necessário contextualizar a primeira lei penal ex-travagante a respeito do tráfico (Lei nº 6.378/76) que revogou a outrora previsão do Código Penal. A partir daqui, atrela-se a política de drogas, ba-sicamente, a dois pilares: a ideia de que o uso e o tráfico de substâncias en-torpecentes devem ser combatidos mediante prevenção, repressão e como problema abstrato de índole de saúde pública e através da implementação de um modelo internacional da guerra contra as drogas, nos moldes nor-te-americanos. Eis que se flexibiliza a punição do usuário, o que passa a constituir a marca do controle penal sobre drogas no País desses anos de transição até os anos 2000.

A Lei nº 11.343/2006, segunda lei penal especial no Brasil de comba-te às drogas, deve ser pontuada como promovedora de uma agudizaçãodo quadro prisional brasileiro com as características que se já vinham se de-marcando numa moldura repressiva da política criminal, promovendo au-mento de penas e de gravames à execução penal. Eis algumas constatações respeito do diploma legal.

Essa breve história revela que, desde os anos 60, caminha-se para mo-delos de repressão às drogas, ou melhor, às pessoas envolvidas no universo do comércio e produção cada vez mais brutais.

3. Pontuações criminológicas a respeito da “evolução” da criminalização das drogas e das ideologias repressivas ao tráfico de drogas

Ao se considerar a questão da drogadição e da mercancia de drogas deve-se vislumbrar as ideologias que embasam a conhecida política criminal au-toritária de combate aos entorpecentes. Dentre as principais construções doutrinárias desse universo de combate às drogas, é possível observar a for-mulação de Günther Jakobs (2005, p. 38) sobre o direito penal do inimigo.

A respeito da política criminal concernente ao tema das drogas e seu discurso oficial, percebe-se que se trata de uma política de guerra, susten-tada por uma tríplice base ideológica: a ideologia da defesa social (a nível dogmático) completada pela ideologia da segurança nacional (a nível de segurança pública), ambas ideologias em sentido negativos instrumentaliza-das (a nível legislativo) pelos movimentos de lei e ordem (ANDRADE, 2010, p. xxii).

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É possível notar que na argumentação trazida pelos tribunais, em especial o Tribunal de Justiça de Pernambuco, prepondera a figura do tra-ficante de drogas como inimigo, como espécie diferenciada de criminoso. Essas considerações devem-se ao uso excessivo de adjetivações pejorativas a respeito dessa atividade ilícita como se ela fosse pior do que outros tipos de crime e dela adviessem outros crimes.

A periculosidade, conceito trabalhado por Jacobs, aparece reiterada-mente nas argumentações denegatórias da liberdade de pessoas envolvidas em processos criminais relativos à Lei nº11.343/2006. Por embasar a lógica da belicuosidade, o ato criminoso relativo ao mercado ilícito das drogas não é considerado como mera infração, desvio, mas ato de guerra, incidindo na reprovação estatal a lógica do inimigo interno e das concepções autoritárias de um direito penal de exceção, tornando o uso da prisão como regra.

A falácia de que a proibição das drogas e o combate aos traficantes é medida de evitar violência aparece nas decisões como mote de justificação da severa intervenção penal, e deve ser denunciada. Por outro lado, a falta de leis que regularizem esse setor ocasiona situações em que qualquer con-flito ou disputa é, de fato, resolvido com violência. Esta, então, é uma cruel consequência da proibição e do silêncio do Estado frente a necessidade de regulamentação do mercado das drogas.

Não é difícil, pois, inferir que o tráfico é consequência da realidade estrutural econômica capitalista e, assim sendo, o próprio Estado e a legis-lação favorecem e geram criminalidade e violência.

Nesse panorama, os meios de comunicação, em conjunto com a polí-tica oficial, contribuem para a construção de um discurso maniqueísta de repressão ao tráfico, que personifica o mal absoluto na figura do comercian-te (ZACONNE, 2011, p. 88) e potencializa o preconceito contra os pobres, estes declaradamente “responsáveis” pela mercancia das drogas, reforçan-do a violência, que parece ser a outra face do binômio da miséria.

Esse modo de enfrentar o problema, por sua vez, continuará a dis-criminar os usuários como doentes, fracos e financiadores da violência. Este discurso míope perpetuará ocultando o verdadeiro processo histórico (ZALUAR, 2000, p. 56) e as causas estruturais da violência e da criminali-dade.

Observando-se a política criminal a respeito das drogas, percebe-se que há uma tendência explícita e crescente de tratar traficantes como “inimigos” e usuários como “amigos”, porém é de se mencionar que a tênue linha entre esses dois agentes é, quase imperceptível, o que da margem às construções hermenêuticas no âmbito da criminalização do tráfico e da reafirmação de estereótipos.

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Para a categoria traficante, uma análise particular do processo de cri-minalização revela que não incidem os direitos dos cidadãos, pois eles são uma categoria à parte, mais do que inimigos, são o símbolo de reprovação aguçada, coisificados ao nível de sua atividade ilícita.

O traficante funciona como o bode expiatório que é “imolado”. É uma categoria fantasmática, do jornalismo, da psicologia, não tem face, é desu-manizado, porque disponibiliza substâncias psicoativas.

A proibição das drogas forja, pois, a guerra a essas substâncias, e tem propiciado o controle das classes proletarizadas e subproletarizadas via cár-cere, instituição total, que melhor exerce a função de controle por meio do signo da violência. São inúmeros os trágicos exemplos de pessoas envolvidas direta ou indiretamente em áreas de conflito entre agentes do tráfico e do Estado que se somam aos mortos na guerra às drogas. Amarildo, Cláudia, e outros anônimos são a prova de que o combate à drogadição por meio de um paradigma bélico gera violações de direitos humanos e mortes na diária guerra às drogas.

Como alerta Zaconne (2011, p. 58) não é preciso se aprofundar na carga estigmatizante que o termo traficante revela, mas é bom lembrar que os chamados autos de resistência – inquéritos instaurados a partir de mortes de pessoas em conflito com a polícia são, muitas vezes, arquivados quando se descobre que as vítimas têm em suas fichas criminais alguma “passagem” ou condenação em tráfico de drogas. A irracionalidade e barbárie punitiva passam a ser legitimadas na guerra às drogas e na luta contra a figura nú-mero um a ser combatida pelas agências de persecução penal: o traficante de drogas.

Em nome da “ideologia da segurança urbana” qualquer pessoa identi-ficada como participante da engrenagem do tráfico de drogas torna-se objeto vulnerável de prisões, chacinas e violações corporais de natureza diversi-ficada. Como já se pontuou, as práticas que envolvem a guerra às drogas em tudo lembram velhas táticas de intervenção, observadas nos regimes ditatoriais.

Esse modelo de direito penal bélico no enfrentamento da problemática das drogas cresce desde os anos 80, é marcada por forte atuação dos Movi-mentos de Lei e Ordem e um retrocesso, de certo modo, a medidas de um Estado de Exceção, cuja principal característica é a intervenção autoritária.

Na ótica socioeconômica – ocultada pela atual política bélica de com-bate às drogas em nome de um discurso que está camuflado no discurso psiquiátrico individual (DEL OMO, 1990) – podem ser apontadas algumas consequências apontadas por Boiteux (2006, p, 242) como: aumento da vi-gilância, controle e violência imposta aos mais desfavorecidos, que são sus-peitos de tráfico, até prova em contrário, o que leva à discriminação; favo-recimento do envolvimento dos jovens com o crime, desagregação familiar;

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incremento do tráfico de armas; incremento das possibilidades de lavagem de dinheiro; a alta dos preços derivada da ilegalidade torna cada vez mais poderosa as organizações traficantes; aumento da corrupção nos poderes púbicos e na polícia, em especial nos países em desenvolvimento; aumento da violência e do número de homicídio nos grandes centros urbanos.

Difunde-se, assim, no seio do Estado Democrático de Direito, a be-ligerância penal, não apenas como reitora da política criminal, mas, igual-mente, como base interpretativa da dogmática penal, quando em verdade, a dogmática deve servir como barreira externa da Política Criminal autoritá-ria, tendo como escopo os princípios constitucionais de índole liberal.

Alessandro Baratta (1992, p. 35-49), ao tratar dos fundamentos ideo-lógicos da ainda atual política criminal sobre drogas, aborda a construção do sujeito através do que Foucault chamou de “práticas de divisão”: cidadãos decentes e criminosos. Estes, no simbolismo criado pelo mito da droga no País, são representados, em geral, pelos jovens negros e pobres, moradores das periferias e favelas dos aglomerados urbanos.

Portanto, ao revés da união entre política criminal e ditames constitu-cionais, percebe-se que aquela, hodiernamente, é inteiramente dissociada de pretensões inclusivas e emancipatórias, estando a serviço do discurso do medo, da insegurança e do controle penal dos “indesejáveis”.

4. Considerações Finais

O poder de punir, que esconde relações de dominação, e vende, a partir da neutralidade, uma série de promessas como proteção, segurança e ordem deve ser denunciado.

Um confronto entre os princípios constitucionais e modificações ad-vindas da conjuntura processual revela que o pensamento penal dogmático, hegemônico no campo jurisprudencial, relega deliberadamente, em segun-do plano, as construções legislativas e dos Tribunais Superiores, massifican-do a prisão provisória no caso do crime de tráfico de drogas.

Desse modo, o “caminhar processual” que rechaça a prisão pela gra-vidade em abstrato do delito, possibilita a liberdade provisória em casos de crimes hediondos e, a partir de 2012 com a declaração de inconstitucionali-dade incidental pelo STF do artigo 44 da Lei de Drogas, parece encontrar na realidade do Tribunal de Justiça de Pernambuco uma blindagem instrans-ponível no universo da criminalização. É o que se percebe entrelaçamento do discurso proferido em habeas corpus, dados estatísticos o Ministério da Justiça de 2006, ano de vigência da Lei nº 11.340/2006, a 2012 que expli-citam o aumento da prisão provisória e do encarceramento por tráfico de drogas.

A lógica geral de funcionalidade do Sistema de Justiça Criminal mos-tra-se, então, na criminalização das drogas, a partir de uma analise do dis-

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curso que explicita a realidade expansionista de uso do direito penal como “primeiro general”, quando, de fato, deveria ser utilizado como “último bas-tião” na resolução de conflitos sociais.

Uma construção repleta de posturas ideológicas e pouco preocupadas o respeito da lei e garantias fundamentais do acusado é observada na cons-trução de silogismos retóricos, congregadores de discurso de “lei e ordem” atrelado a um processo de estigmatização que negam quase 92% dos habeas corpus por tráfico de drogas.

É assim que se observa crescimento, aparentemente, inexplicável dos índices aprisionadores no delito de tráfico de drogas e a respeito da prisão preventiva, muito embora a conjuntura processual inegavelmente tenha caminhado para uma tentativa de consagração de escopo garantista do pro-cesso penal. O processo passa a ser instrumento não de salvaguardar direi-tos de primeira geração (liberdade), mas para proteger - ao menos no plano discursivo - direitos de segunda( sociais, igualdade), encerrando no uso do direito penal, mesmo que antecipadamente com a prisão preventiva, uma “esperança” de proteção da sociedade.

Referências

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BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito Penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

______. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas. In: GONÇALVES, Odair Dias; BASTOS, Francisco Inácio. Só socialmente... Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.

BATISTA, Nilo. Política Criminal e derramamento de Sangue. In: Discursos Sediciosos, nº12. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BECKER, S. Howard. Outsideres. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BOITEUX, Luciana. Controle Penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de Doutorado da Faculdade de Direito do São Paulo, São Paulo: USP, 2006.

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei 11.343/2006. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio Janeiro: LCT, 2012.

JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

____________________. Guerra às Drogas e Saúde: Os Danos Provocados pela Proibição. In: LOPES, Ellias Lucíla; MALAGUTI, Vera (coords). Atendendo na guerra: Dilemas médicos e jurídicos sobre o “crack”. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

MALAGUTI, Vera. Difíceis ganhos fáceis: drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

_________________. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

ZALUAR, Alba. Violência, dinheiro fácil e justiça no Brasil: 1980-1995. In: ACSELRAD, Gilberta (Org.) Avessos do prazer: drogas, AIDS e direitos humanos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.

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A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o Direito numa

Perspectiva Interdisciplinar1

José Antonio de Albuquerque Filho, Maria Emília Miranda de Oliveira Queiroz

Universidade Católica de Pernambuco

1. Ponto de partida

O presente capitulo situa-se no âmbito do Direito Penal Brasileiro e da Cri-minologia Crítica2, no que se refere aos assuntos interdisciplinaridade e re-alidade criminal. O objetivo geral apresenta como iniciativa contribuir com

1. Parte deste artigo é procedente da dissertação “Direito à saúde e o dever da fundamentação jurídica: uma abordagem transdisciplinar ancorada na Análise Crítica do Discurso Jurídico”, construída por José Antonio de Albuquerque Filho no Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), sob a orientação da Professora Doutora Virgínia Colares. ALBUQUERQUE FILHO, José Antonio. Direito à saúde e o dever da fundamentação jurídica: uma abordagem transdisciplinar ancorada na Análise Crítica do Discurso Jurídico. 2011. 154 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2011. Registramos também a publicação do presente artigo no livro Cárcere Social: por um direito penal sem fronteiras, organizado pela Drª. Vanessa Pedroso, tendo como objetivo geral a importância da interdisciplinaridade nos estudos do direito penal e da criminologia crítica, referente à aplicação do direito. ALBUQUERQUE FILHO, José Antonio; QUEIROZ, Maria Emília. A importância da criminologia crítica para o direito penal: como aplicar o direito numa perspectiva interdiswciplinar. In: Cárcere Social: por um direito penal sem fronteiras. 1 ed. Recife: Appodi, 2011, p. 122-140.

2 . “Criminologia Crítica é a expressão genérica, sinônima de Nova Criminologia, Criminologia Radical, Economia Política do Crime, Criminologia Moderna. Trata-se do movimento criminológico que importa numa reação à chamada Criminologia Tradicional, que fulcrada no pensamento positivista, preocupa-se, apenas, com a etiologia do delito e com os aspectos psicológicos da passagem do ato, a partir de conceitos estratificados em lei” LYRA, Roberto; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Criminologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 224.

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a reflexão sobre a aplicação do direito numa perspectiva interdisciplinar, considerando a importância da Criminologia na interface do Direito Penal.

2. A importância da Criminologia para o Direito Penal

Em nome da segurança jurídica e da garantia de uma igualdade formal (de todos os indivíduos perante a lei), o Direito Penal se estabelece como um arcabouço de normas jurídicas em defesa da sociedade de condutas típicas e antijurídicas. A aplicação do Direito Penal à realidade criminal apresenta um enfoque puramente formalista e simbólico, preocupando-se tão somen-te com a conduta delitiva e sua adequação ao modelo típico estabelecido na norma penal abstrata. Nesse sentido,

o delinqüente, em conseqüência, não é senão o sujeito ativo da infração; a vítima, o sujeito passivo; e o próprio delito, a lesão do “bem jurídico”, síntese categorial brilhante que descrevem – dizem – o resultado de um enfrentamento simbólico entre a lei e o infrator3.

Nesses termos, certamente, a construção lógica de uma decisão judicial penal não nos fornece o diagnóstico do fenômeno criminal4. Ou melhor, o próprio Direito Penal não se preocupa com a realidade criminal, com o campo fenomenal da pessoa julgada, com o contexto situacional ou situacio-nalidade criminal. Não se propõe o Direito Penal à verificação, à explicação e à investigação do problema criminal. Se o crime é problema para o Direito Penal, que seja em sua unidade normativa, enquanto fato descritivo do tipo penal, desconsiderando qualquer análise da realidade circundante.

De fato, diante do delito como fenômeno social, o Direito Penal, repressivo que é, exaure suas possibilidades sem alcançar um solucionamento satisfatório para o problema criminal. Para o Direito Penal tudo se finda com a aplicação e execução da pena. Ele não vai além. Ditada a pena e providenciada sua execução, não mais interessa ao Direito Penal o homem que delinquiu, salvo se reincidir. Talvez por isso, em seu livro Criminologia, Orlando Soares, criminólogo

3. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lai 9.099/95 – lei dos juizados criminais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 25.

4. Nesse sentido, cf. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ: Impetus, 2011, p. 2.

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pátrio de amplo acatamento, rotula o Direito Penal de “ciência abstrata e inócua, que nada tem podido realizar no campo da prevenção do crime e do tratamento do criminoso, porque, em verdade, só cuida do problema da repressão do delito”5.

Logo, em face das limitações do Direito Penal, que não representa o direito criminal em sua plenitude e não abrange toda a complexidade das relações sociais, a Criminologia se apresenta como caminho possível na explicação do fenômeno delitivo, não resumindo seu objeto de estudo apenas ao crime e ao criminoso, voltando-se também para a vítima e para o controle social do comportamento delitivo.

Nesse contexto, “cabe definir a Criminologia como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo (...)”6. Podemos observar que esta definição da Criminologia expressa claramente o seu mé-todo (empírico e interdisciplinar), bem como o seu objeto de estudo (crime, delinquente, vítima e controle social), consagrando-a como ciência autôno-ma.

Como função, a Criminologia oferece as ferramentas necessárias para que o analista mergulhe na realidade criminal, no intuito de conhecer e pre-venir o delito. A análise é realizada observando o crime em sua totalidade, inserido numa sociedade criminógena, dinâmica e complexa. O observador estuda a realidade fenomênica, insere-se “na própria realidade a ser obser-vada7” a ponto de conhecê-la, explicá-la e transformá-la.

O jurista nada mais é do que um observador. É o aplicador do direito, considerando “as diversas características do uso da palavra direito”8. Consi-deramos a atitude do jurista como um estilo, que observa e aplica o direito,

5. FERNANDES, Valter; FERNANDES, Newton. Criminologia integrada. 3. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2010, p. 41.

6. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lai 9.099/95 – lei dos juizados criminais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 32.

7. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 43.

8. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 38. Nesse sentido, João Maurício Adeodato destaca o “caráter multívoco do vocábulo “direito”, utilizado para denominar o conjunto de normas jurídicas objetivamente consagradas pelo ordenamento positivo (...); significando também direito em sentido subjetivo (...) e outros sentidos que seria desnecessário enumerar”. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: saraiva, 2009, p. 108.

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conforme defende Herkenhoff, numa perspectiva axiológica, fenomenológi-ca e sociológico-política:

a) na perspectiva axiológica, o juiz ajusta a lei a seus valores, a sua consci-ência, a seu mundo;

b) na perspectiva fenomenológica, ajusta a lei à percepção da pessoa julga-da;

c) na perspectiva sociológico-política, promove a abertura da lei ao fato so-cial; deixa de perceber apenas o subsistema jurídico e nele situar-se, para apreender, mais amplamente, todo o sistema social e neste atuar9.

As três perspectivas defendidas por Herkenhoff devem ser visualizadas si-multaneamente na aplicação do direito. O jurista, quando decide, carrega consigo todos os seus valores, suas crenças e seus registros de vida. Pode-mos, através do aparato teórico-metodológico da Análise Crítica do Discurso (ACD)10, por exemplo, verificar se o magistrado, quando decidiu, observou o campo fenomenológico apresentado pelo caso concreto.

A idéia fenomenológica está explicitada no contexto situacional, na própria realidade circundante. O parâmetro de uma conduta mais ativa por parte do jurista se estabelece no caso concreto, na própria realidade crimi-nal.

O jurista que se permite envolver com importantes questões ciminológicas – a visão do crime como problema, a seletividade e a falibilidade do aparato repressor formal, o enfoque vitimológico, o controle social, a relação do fenômeno da criminalidade com a identidade social e com os aspectos econômicos, dentre outras – retorna aos seus processos, aos seus códigos e às suas audiências com uma visão mais ampla. É capaz de avaliar o contexto em que está inserido e, sobretudo, os limites de suas possibilidades.

9. HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 81.

10. Para Wodak, a ACD é uma “agenda de pesquisa”, um modelo que se estabeleceu no interior da lingüística. A ACD não é uma teoria pura da lingüística, não é método de pesquisa e nem se propõe a tal finalidade, antes, apresenta-se como uma proposta teórico-metodológica interdisciplinar ou transdisciplinar, que busca identificar na superfície dos textos as evidências, que muitas vezes se encontram no plano do implícito ou do subentendido, das relações de poder e ideologia e suas implicações nos contextos sociais mais complexos. A relação da ACD com outras áreas do conhecimento revela o seu caráter interdisciplinar, possibilitando diversas pesquisas, onde o objeto de estudo é compreendido na interação com outras disciplinas. WODAK, Ruth. Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes e seus desenvolvimentos. Revista Linguagem em (Dis)curso. vol. 04, 2004, p. 04.

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Se for verdadeiramente intencionado, voltará à sua lida com mais humildade (...).

Para Canotilho, interpretando Deinhammer, “o direito deve ter aberturas dialógicas para os rostos, os corpos, as almas, dos que enfrentam as dificul-dades da dor, da pobreza, do isolamento, da opressão, da ignorância (...)”11. Em outras palavras, o que Canotilho retrata é justamente o campo fenome-nal, defendido por Herkenhoff.

Nesse contexto, o magistrado, quando julga um delito, deve buscar a solução mais adequada e mais justa para o caso concreto, adotando como lastro decisório a cooperação e a interação com a Criminologia. A decisão judicial penal deve ser construída visando não só critérios formalistas, cuja conclusão advém de uma fórmula específica, pronta e acabada (silogismo lógico).

A Criminologia, através de seu método, determina o seu campo de atu-ação, evocando o empirismo e a interdisciplinaridade como critérios cien-tíficos apropriados para diagnosticar e contextualizar o problema criminal, como também “orientar a Política Criminal (...) e a Política Social”12.

O Direito Penal necessita ser observado além do Direito, através de outras lentes, num processo humano dialético perceptível, em completa harmonia com a Criminologia Crítica, com a realidade social e toda a ordem jurídica.

3. Como aplicar o direito numa perspectiva interdisciplinar13

Resgatando o pensamento aristotélico, identificamos a interdisciplinaridade como herança do pensamento dialético. O pensamento dialético pressupõe uma pluralidade de maneiras de pensar, defendendo a idéia de que “não existe uma única forma possível de verdade”14.

Segundo Arnaud, a dialética pode ser tida como resultante de “premis-sas comumente aceitas como verossímeis. A arte de administrar as opiniões

11. CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito dos pobres no activismo judiciário. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érika Paula Barcha (Coords.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 33.

12. LYRA, Roberto; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Criminologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 21.

13. Este capítulo é baseado em pesquisa já publicada pela coautora – QUEIROZ, Maria Emília Miranda de Oliveira – no XIX Congresso Nacional do CONPEDI – Florianópolis, sob o título: Theodor Viehweg e a Interdisciplinaridade no Direito – o pensamento zetético em oposição ao sistema lógico dedutivo positivista.

14. ALBUQUERQUE FILHO, José Antonio. A tópica e sua relação com a ordem jurídica. In COLARES, Virgínia (Org.). Linguagem e direito. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010, p. 29.

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opostas, confrontando-as e instaurando entre elas um diálogo, à maneira de um processo crítico”15.

Para Ferraz Júnior,

as demonstrações da ciência seriam apodíticas, em oposição às argumentações retóricas, que são dialéticas. Dialéticos são os argumentos que se concluem a partir de premissas, aceitas pela comunidade como parecendo verdadeiras. A dialética seria, então, uma espécie de arte de trabalhar com opiniões opostas, que instauram entre elas um diálogo, confrontando-as, no sentido de um posicionamento crítico. Enquanto a analítica estaria na base da ciência, a dialética estaria na base da prudência16.

A idéia de interdisciplinaridade e de zetética constituem a base de nosso es-tudo. Estas expressões se comunicam colaborando na aplicação do direito. Num enfoque zetético, não há de se falar numa ciência do direito herméti-ca, isolada das demais ciências, sob pena de cair-se numa contradição, uma vez que por conhecimento científico devemos entender uma observação controlada dos fatos verificados empiricamente, sugerindo o questionamen-to como fonte primordial em busca da completude sócio-jurídica.

Nesse sentido, a investigação zetética dos fatos parte do pressuposto de que não existem verdades absolutas, até porque se apóia na observação controlada de acontecimentos de natureza mutável. Logo, o que hoje é uma verdade científica pode não ser amanhã. Conseqüentemente, este modo de pensamento científico, faz com que a própria ciência questione a si pró-pria continuamente, já que mesmo depois de verificado pela observação controlada certo fato como verdadeiro, esta observação há de renovar-se com o tempo, acompanhando a evolução humana, sob pena de cair num posicionamento oposto a este, o da dogmática, que, como o título sugere, parte de dogmas aceitos como verdadeiros, e como tal não devem mais ser questionados, posto que são absolutos.

O reducionismo dogmático, característico do racionalismo lógico-de-dutivo, adotado pelo Direito Penal, não é interessante à aplicação do direito, uma vez que dá ao sistema jurídico interno normativo uma pretensão ape-nas de validade, não se preocupando com a de legitimidade. Seria o império

15. ARNAUD, André-Jean (direção - et. al.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Tradução de Patrice Charles, Ef. X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 793.

16 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 327.

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da lei, onde as frias letras do texto legal seriam soberanas, camuflando a ideologia subjacente àquele que detém o poder.

A este extremismo chamamos dogmatismo jurídico, uma vez que a norma escrita seria um dogma, o qual o “cidadão”17 deve respeitar e obede-cer inquestionavelmente, posto que é dogma, cabendo apenas aceitar, sem criticar18.

Urge considerar que a incorporação do modelo zetético faz com que os benefícios do pós-positivismo cheguem até o jurisdicionado, a partir da fundamentação da decisão em enunciados de profissionais com graduações diversas, em setores eminentemente jurídicos. O reconhecimento da falên-cia da “ficção de auto-suficiência”19 das ciências jurídicas, que encontra no aparato da zetética jurídica a razão para abrir o direito à sua complementa-ridade, é que faz aflorar a necessidade de uma interdisciplinaridade eficaz à justiça.

Arnaud20 elenca várias possibilidades para o estudo zetético, entre elas

Interdisciplinariedade - a pesquisa é apartada, mas os resultados compartilhados. Ou seja: articulação de saberes que acarreta por abordagens sucessivas, como em um diálogo, reorganizações parciais dos campos teóricos em presença. Poderíamos dizer, nesse caso, que se faz uma tradução de um jogo de linguagem para outro, isto sem negar as dificuldades e até mesmo os limites inerentes a este tipo de exercício, notadamente a

17. Leia-se o conceito amplo de cidadão, não restringindo à participação na vida político-eleitoral, mas ampliando à submissão às normas.

18. Utilize-se aqui a analogia à doutrina Católica, que faz uso de dogmas que seus adeptos devem seguir e aceitar, sem questionamentos, até porque não são comprováveis empiricamente, só pela fé. Como é exemplo a aflição que viveu Santo Agostinho tentando destrinchar o dogma da Santíssima Trindade. A inquietude, ilustrativa de um espírito zetético, não o abandonava, o fazendo supor diversas teorias acerca do assunto, sem sucesso, pois se tratava de um dogma. Até que, como conta a tradição, caminhava pela praia buscando uma resposta e encontrou uma criança (que esta mesma tradição classifica como um anjo enviado para esta missão) que carregava vagarosamente um pequeno balde de água do mar e trazia à areia, um a um, pacientemente. Então Agostinho lhe questionou o que pretendia com aquilo, respondeu a criança que tentava esvaziar o mar. Ele alertou que seria impossível aquilo, então retrucou que impossível também seria ele entender o dogma da santíssima trindade, como um só Deus englobaria pessoas três.

19 . Terminologia utilizada por Cláudio Souto, em Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992.

20. ARNAUD, André-Jean (direção - et. al.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Tradução de Patrice Charles, Ef. X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 96.

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necessidade de respeitar o gênio próprio de cada língua (...)21

Entendemos que a interdisciplinaridade permite a construção de um estu-do científico, fundamentado na interação dialógica dos enunciados de cada ciência. Não existe nenhuma hierarquia entre os saberes científicos. Cada ciência colabora com o todo, na construção de caminhos possíveis.

Podemos citar como exemplo de enriquecimento de uma decisão a utilização de um saber de conteúdo de psicologia judiciária, que é vista por Sidou22 como

parte da psicologia forense dedicada à base da psicologia experimental, ao estudo do desenvolvimento do testemunho, do depoimento dos menores, velhos, psicopatas e emocionados, da acareação dos tipos de testemunha e do julgamento público, singular ou coletivo.

Na Criminologia Crítica, a busca do conhecimento científico se faz na in-teração com outras ciências, a saber: Biologia, Sociologia, Psicologia, Me-dicina Legal, Direito etc. A interdisciplinaridade é a chave da análise do fenômeno criminal. Diante da complexidade social e da realidade criminal, “a interdisciplinaridade surge como uma necessidade prática de articulação de conhecimentos (...)”23.

É assim que temos as Ciências Contábeis auxiliando o direito nas pe-rícias contábeis; várias Engenharias na formulação de pareceres sobre con-dições de trabalho, periculosidade ou até mesmo para desvendar crimes (eletricidade, mecânica, etc); Medicina Legal, nos laudos periciais crimi-nais (tanatoscópicos etc.); Pedagogia, História, no tocante a retrospecções que esclareçam condutas; a Sociologia, a Economia, a Ciência Política, a Criminologia e quantas outras respondam às necessidades que o direito apresente.

Na tópica de Viehweg, essas ciências contribuiriam para o processo de-cisório, aparecendo na cena através dos topoi, enunciados interdisciplinares com função de fundamentação da prestação jurisdicional, que enquanto

21. Wittgenstein foi quem primeiro utilizou a expressão “jogo de linguagem”, associando “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 3. ed. Bragança Paulista: Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2004, p. 19.

22 . SIDOU, J. M. Othon. Dicionário Jurídico - Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 456.

23. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ: Impetus, 2011, p. 11.

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processando-se em moldes meramente lógico-dedutivos eivavam a decisão de imperfeições práticas, provocando lacunas e abismos no direito. E o direi-to apresenta estas necessidades exatamente porque não é auto-suficiente.

Cláudio Souto24 bem se expressa sobre o assunto, afirmando: “contu-do, a interdisciplinariedade entre as ciências básicas do direito tem ocor-rido, de fato, de modo penoso, em virtude de uma atitude arraigada ou de formalismo, ou de sociologismo, ou de filosofismo, a propósito do jurídico”25.

Esclareça-se que a interdisciplinaridade aqui tratada pelo autor é a referente às ciências jurídicas básica do direito: ciência formal do direi-to, ciência social do direito e ciência filosófica do direito26, que estudam os elementos componentes do próprio direito27. E é exatamente por elas que chegam até o jurídico as outras ciências, pois é pela Sociologia Jurídica que, através de sua proposta zetética, encontra-se um espaço de abertura do direito a elas.

O sistema lógico-formal, preterido por Viehweg, restringe o processo decisório a um único enunciado: o texto legal, retratando a hermeticidade que acompanha a ciência jurídica tradicionalmente. Isso pela ficção de auto-suficiência28 que o direito tem em relação às demais ciências.

Esta ficção chega a afetar conseqüentemente a interdisciplinarieda-de do direito com as demais ciências empíricas, uma vez que abstrai do real um relacionamento concretamente existente e isola cada ciência, tornando imaginário o concreto relacionamento, isolando cada saber específico da respectiva ciência. Se o direito se fecha dentro de si próprio, fragmentando as ciências que o abordam diretamente, mais ainda se fechará às ciências que tratam de seu objeto indiretamente.

24. SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992. p. 09.

25. Entendemos esta “atitude arraigada” como dogmática, pois a postura dogmática pode caracterizar qualquer linha de pensamento, desde que se considere absoluta e estanque. Assim a própria Sociologia do Direito pode ser considerada dogmática, quando parar de se questionar e tomar como verdades absolutas seus conhecimentos, que bem sabemos, são prováveis, pela relatividade temporal do conhecimento científico.

26. SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 09.

27 . Segundo a teoria realeana são: fato, valor e norma. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

28. Não nos referimos aqui à especialização do jurista em determinada diretriz do saber do direito, inclusive isto é louvável em prol de maior profundidade no tema, desde que em seu ponto de partida o direito seja considerado holisticamente. Falamos sim dos radicalismos que compõem uma perspectiva anti-interdisciplinar do direito. Isto porque o abordam acentuadamente, ou até mesmo exclusivamente, sob uma ótica única, uma visão deficiente e incompleta.

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Fugindo dos extremismos e do hermetismo dogmático, o proces-so interdisciplinar enriquece o julgamento com fundamentação das mais variadas ciências, entre elas a Criminologia, que tratam o homem na sua completude, como ser global que é. Com esse ideal, atinge-se uma maior efetividade da justiça, da aplicação do direito, a conseqüente melhoria na prestação jurisdicional e o desenvolvimento de uma política criminal séria.

4. Considerações Finais

Há de propor-se uma reestruturação na formação do autor29 jurídico, para que as aberturas propostas pela interdisciplinaridade (abertura dos atores sociais para a realidade fenomênica) sejam oportunizadas e praticadas atra-vés da interação dialógica.

Ou seja, não basta aos juízes de direito, promotores de justiça, policiais, psicólogos e assistentes sociais trabalharem no mesmo prédio no estudo do fenômeno criminal. É preciso manter um diálogo aberto (um verdadeiro diálogo) com os outros profissionais, procurando interagir com as outras áreas materialmente, não somente no sentido formal, da boca pra fora, sem estar inteiramente comprometido com isso30.

Para aqueles atores do direito que apenas observam a norma jurídica abs-trata na aplicação do direito, é necessário alertá-los que o direito tem um caráter multívoco, podendo ser concebido não só como norma, mas como faculdade, ideia de justo e, principalmente, como fato social. É como fato social que o direito revela seus preceitos éticos, fornecendo aos magistrados e demais colaboradores do direito o despertar de um pensamento crítico do contexto situacional (dos mais variados problemas surgidos na sociedade), bem como da ampliação de uma consciência criminológica, fundamentada não apenas no crime e no delinqüente, mas também no estudo da vítima (vitimologia) e do controle social do comportamento delitivo. A nossa so-ciedade reclama atitudes coesas e coerentes através dos julgamentos dos magistrados, considerando o fenômeno criminal nas perspectivas empírica e interdisciplinar.

29. Ou ator do direito, denominação alertada pela Professora Mirian de Sá Pereira, quando do magistério da disciplina Sociologia Jurídica, na Universidade Católica de Pernambuco, criticando a utilização do termo “operadores do direito”, uma vez que o direito deve ser criado e vivido.

30. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ: Impetus, 2011, p. 12.

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A complexidade dos conflitos sociais há algum tempo já cobra do Esta-do-Juiz uma solução eficiente, amparada numa prestação jurisdicional cé-lere, adequada e justa. Essa mesma complexidade social reclama a necessi-dade de todas as ciências agirem de forma interdisciplinar. Esta abordagem interdisciplinar faz com que uma determinada disciplina se reconheça na interface de outras, numa completa e profunda interação epistêmica.

Para tanto, a solução se iniciaria no próprio ensino do direito, incenti-vando os alunos a desenvolverem pesquisas interdisciplinares. O direito por si só não responde completamente as atuais complexidades da sociedade. Precisamos ir além do direito, promover o diálogo entre o direito e a lingüís-tica, a economia, a sociologia, o direito penal etc.

Esperamos que cada leitor sinta-se motivado a trabalhar de maneira diferente, sendo criativo e determinado. Depois da leitura desse capituloo tornamo-nos um pouco analistas com a missão de promover a concretização de novos estudos relacionados com os diferentes contextos. Certamente, construiremos um direito interconectado com a sociedade, a qual se encon-tra há bastante tempo em estado de espera.

Referências

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__________. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lai 9.099/95 – lei dos juizados criminais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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A Análise da Neutralização da Vítima no Crime de Estupro De Vulnerável

Naira Celi Pereira Vinhas e Érica Babini Lapa do Amaral Machado

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

O presente capitulo é fruto da Monografia apresentada para aquisição do título de Bacharel a qual surgiu a partir das aulas da disciplina de Crimino-logia ministradas pela Professora Érica Babini e corresponde uma análise da neutralização da vítima no estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A da Lei 12.015/2009, através de uma compreensão da vitimologia e um exame acerca da vulnerabilidade, da sua relativização, do consentimento do menor de 14 anos para a prática de relações sexuais além da expropriação pelo Estado dos interesses da vítima ao criar tal tipo penal.

Desta forma, neste capitulo, tem-se como problemática os seguintes questionamentos: Estabelecer no crime de estupro de vulnerável a tutela absoluta ao menor de 14 anos corresponde um passo contrário as conquis-tas vitimológicas? Esta absolutividade está de acordo com o Estado Demo-crático de Direito? Assim, os objetivos do presente capitulo correspondem na demonstração da expansão do sistema punitivo e do empoderamento do Direito Penal da dor da vítima para sua autolegitimação, demonstrando sua função simbólica ao criar o novo tipo penal com pena mais elevada que o estupro simples como resposta à reação social tendo em vista a influência midiática na venda da insegurança. Quanto ao método utilizou-se revisão bibliográfica de cunho crítico e análise de jurisprudências.

Para a investigação desta temática, inicialmente será feito um estudo a cerca da vitimologia, dando-se maior ênfase ao processo de vitimização e de neutralização da vítima provocada pelo Estado diante do empoderamento do conflito; posteriormente uma análise do crime de estupro de vulnerável tendo maior enfoque na substituição da presunção pela vulnerabilidade,

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mudança decorrente da Lei nº 12015/09; e por último uma abordagem da expansão do Direito Penal, do populismo punitivo, do medo e das influên-cias midiáticas. Assim será apresentada, de forma crítica, a necessidade e adequação da alteração legal ao âmbito do Estado Democrático de Direito.

2. Vitimologia: do conceito de vítima à importância do movimento vitimológico

2.1 Conceito de Vitimologia

Etimologicamente o termo vitimologia deriva da palavra latina vítima, ae, e da raiz grega logos significando o estudo das vítimas e foi utilizado pela primeira vez por Benjamin Mendelsohn em 1947, numa Conferência reali-zada no Hospital do Estado, em Bucarest: “New bio-psycho-social horizons: Victimology”1. (PIEDADE JR, 1993)

Não há entre os estudiosos da vitimologia uma unicidade quanto ao conceito de vitimologia, devido às opiniões contrárias existentes entre os vitimólogos diante do entendimento da vitimologia ter autonomia científica ou ser um ramo recente da criminologia. Dentre os que defendem que a vitimologia tem autonomia científica temos Mendelson o qual defenderá que: “a finalidade da vitimologia é o estudo da personalidade da vítima de delinqüente, tanto vítima de delinqüente como vítima de suas inclinações subconscientes” (MOREIRA FILHO, 1999).

Entretanto, existem os que entendem que é um ramo da Criminologia, mas tem possibilidade de se tornar uma ciência autônoma conforme con-sidera a Professora Lola Aniyar, criminóloga venezuelana: “ainda em seu estado atual de simples hipótese de trabalho, como objeto de uma possível ciência autônoma”. (Apud MOREIRA FILHO, 1999).

Dentre aqueles que a defendem como ramo da Criminologia temos Eduardo Mayr o qual a define como

O estudo da vitima no que se refere a sua personalidade, quer no ponto de vista biológico, psicológico e social. Quer do de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação como vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos. (MAYER, apud MOREIRA FILHO, 1999, p 24).

1. A Professora Ester Kosovski defende que este fato ocorreu em The Origins of the Doctrine of Victimology, obra pioneira de Mendelson. (PIEDADE JR, 1993)

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Apesar de não haver convergência quanto ao assunto, neste trabalho será le-vado em conta que tanto a Criminologia quanto a Vitimologia apesar de suas particularidades e especialidades devem ser estudadas e compreendidas em conjunto, pois se complementam fato bastante comum na atualidade por outras ciências. Existe uma interdisciplinariedade entre elas, de maneira que dependem uma da outra. Apesar de tudo tem-se em vista que objeto da Criminologia é mais abrangente que o da Vitimologia.

2.2 Conceito de vítima sob o enfoque da vitimologia

O termo vítima também tem várias definições, derivado do latim victima, ae tem como significado pessoa ou animal sacrificado ou que será destinado ao sacrifício (PIEDADE JR, 1993). Entretanto se relacionada ao termo vincire significa “atar”, “amarrar”, pois como explicita Heitor Piedade Jr., na Anti-guidade, a vítima era sacrificada por ocasião de vitória, após a guerra sendo o animal a ser sacrificado amarrado, atado e posto sobre o altar do sacrifício. Além disso, o autor estabelece uma relação da expressão vítima com termo vinger tendo como significado um ser vigoroso posto que a vítima geralmen-te fosse um animal forte diferente da hóstia que consistia em vítima ofereci-da à Divindade, mas era de pequeno porte. (PIEDADE JR, 1993)

De acordo com Ester Kosovski, pode apresentar 03 visões a primeira visão corresponde na antropológica, pois se refere ao sacrifício humano aos deuses com o objetivo de aplacar a sua ira ou pedir a suas benesses através da oferenda da vida humana, a qual foi substituída pela de animais, para a expiação dos pecados do grupo. A segunda a bíblica correspondendo no momento do quase sacrifício de Isac, quando Deus testa a lealdade de Abraão pedindo-lhe a vida de seu filho em holocausto. (PIEDADE JR, 1993) e a terceira na penal, consistindo naquela que sofre a ação ou omissão do autor do delito (sujeito ativo) sendo sinônimo de ofendido, lesado ou sujeito passivo. (KOSOVSKI, 1990)

Dentro da literatura da Vitimologia será possível encontrar diferentes definições da expressão vítima. Dentre os quais temos a de Mendelson que a conceitua como:

É a personalidade do indivíduo ou da coletividade na medida em que está afetada pelas conseqüências sociais de seu sofrimento determinado por fatores de origem muito diversificada, físico, psíquico, econômico, político ou social, assim como do ambiente natural ao técnico. (apud PIEDADE JR. 1993, p.88)

Entretanto, a concepção do termo vítima deve ser mais ampla do que a en-tendida pelo Direito Penal e a Criminologia devendo abranger aquele que

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padece de um mal muito grave e provavelmente inesperado, mesmo que seja fortuito e puramente natural. Pelo Direito Penal e pela Criminologia a vítima é aquele que sofre um mal causado de forma injusta por outrem, consistindo na vítima do delito. (HASSEMER; COÑDE, 2001)

É perceptível que este conceito é puramente restrito sendo reservado apenas a quem sofre diretamente as conseqüências do delito, coincidindo necessariamente com o sujeito passivo do crime. Dessa forma, como asse-gura Antonio Beristain (2000) à definição de vítima deve ser mais abrangen-te que o sujeito passivo do delito, ou seja, sujeito passivo da infração. Deve, portanto, incluir pessoas naturais e jurídicas que de forma direta ou indireta mente sofrem danos a partir da infração. (BERISTAIN, 2000)

De fato é impossível estabelecer um conceito único de vítima, pois o mesmo dependerá do “paradigma científico do modelo e da ideologia adota-da e vice e versa: cada teoria, tendência ou perspectiva elaborará sua defi-nição de vítima” conforme explica Luis Rodrigues Manzanera que também trará uma definição ampla da vítima, entendendo-a como “indivíduo ou gru-po que sofre um dano, por ação ou omissão, própria ou alheia, ou por caso fortuito”. (apud, PIEDADE JR, 1993)

2.3 Neutralização da vítima

A neutralização da vítima tem como característica o papel utilitário da víti-ma como mero repositório de informações, ou seja, a vítima perde o papel de protagonista na solução dos conflitos. Isso decorre do surgimento do Es-tado como instituição pública detentor do jus puniendi.

Merece sublinhado que a ‘substituição histórica da vítima pelo Estado teve apenas como medida a dimensão dos interesses do Estado’ (ANDRADE, 1980, p.230), que ao assumir o monopólio da relação criminal não o fez com uma intencionalidade de proteção das vítimas individuais. (CÂMARA, 2008, p.39)

Mesmo antes de o Estado Moderno surgir como detentor do jus puniendi e impedir a vingança privada, tanto a Igreja quanto os Senhores Feudais e os Reis, já puniam, inclusive com castigos severos, como a condenação de or-dem pecuniária e apropriação de bens ficando com parte dos valores adqui-ridos e repassando uma parte pequena às vítimas. (PEDRA JORGE, 2005)

A vítima passa deixa de ser a protagonista do conflito e passa a ter uma posição periférica, passando o Estado a ser o detentor do jus puniendi, pois o delito passa a ser uma ofensa à sociedade, toda ordem e não mais ao indivíduo, cabendo ao Estado coibi-lo. De maneira que o exercício das

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próprias razões antes legitimado passa a ser crime. O Estado surge com o objetivo de afastar a rivalidade entre agressor e vítima na intervenção do conflito, pois o julgamento imparcial afastaria a crueldade da vingança apli-cada ao autor do crime

Assim, o desaparecimento da vítima na relação de conflito resulta na passagem do direito penal privado para um direito penal público2, ocor-rendo com isso a despersonalização do conflito, pois ao excluir a vítima da relação jurídico-penal o Estado detentor do jus puniendi, com o objetivo de promover a pacificação social, acaba por inviabilizar a solução do conflito. (PEDRA JORGE, 2005).

A prática de crime como assegura Foucault em seu livro Vigiar e Pu-nir (1984) consiste num atentado simbólico contra o soberano, pois o exer-cício do poder de infligir penas passa dos senhores feudais para os monarcas (reis) e destes para o Estado, desta forma percebe-se que a própria justiça penal é dominada pelo interesse do soberano, o qual se vale do corpo (eco-nomia política do corpo), dos supliciados (a tortura surge como pena e meio de conseguir prova) como para restaurar simbolicamente a soberania lesada pelo crime. Com isso pode-se dizer que o direito de punir consiste em uma reafirmação do poder o qual consiste em redução da complexidade da vida social. (PEDRA JORGE, 2005)

A expropriação do conflito por parte do Estado não permite o diálogo, consenso, acordo entre o delinqüente e a vítima e principalmente a repa-ração do dano. Insta questionar a razão desta alteração a qual será tratada mais a frente, especificamente.

2.4 Processo de Vitimização

A revalorização da vítima traz como consequência o processo de vitimiza-ção, pois este corresponde na colocação de alguém como objeto-alvo da vio-lência diante da conduta de outrem e a revalorização consiste em fazer da vítima um objeto da análise discutindo-se sua possível participação no crime e quais seus interesses.

Heitor Piedade Júnior define a vitimização como:

ação ou efeito de alguém (indivíduo ou grupo) se autovitimar ou vitimar outrem (individuo ou grupo). É o processo mediante o qual alguém (individuo ou grupo) vem a ser vítima de sua própria conduta de terceiro (individuo ou grupo), ou de fato da Natureza. No processo de vitimização, salvo no caso de

2. O direito penal atual, enquanto monopólio do Estado neutraliza a vítima e ao invés de promover o acordo proporciona a ação penal pública entre as partes envolvidas.

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autovitimização quando ocorre a autolesão, necessariamente encontra-se a clássica dupla vitimal, ou seja, de um lado, o vitimizador (agente) e do outro a vítima (paciente). (PIEDADE JR, 1993, p.107)

O Processo de Vitimização consiste no processo de atribuir prejuízo a outrem seja por ação ou omissão de ato previsto ou não como crime decorrente de características pessoais (raça, sexo, idade, condição social, opção sexual). Alguns indivíduos têm uma predisposição a este processo pela fragilidade ou discriminação. Porém pode ocorrer diante de acidentes como os de trabalho e nos casos de atuação do aparelho judicial.

Existem 03 tipos de processo de vitimização: a Vitimização Primária, Vitimização Secundária e Vitimização Terciária (BERISTAIN, 2000).

A primária é causada diretamente pelo próprio crime, ou seja, consiste na vitimização sob uma ótica horizontal (relação delinqüente – vítima);

A secundária decorre das instâncias formais e informais que recebem a vítima, pois ocorrerá durante o processo de registro e apuração do crime, de forma que consiste no efeito vitimizador realizado pelos próprios órgãos de administração da justiça penal quando as investigações e atuações poli-ciais ou processuais provocam novos danos as vitimas sendo em alguns casos desnecessárias e em outros inevitáveis para a investigação do delito e castigo do delinquente. Tal vitimização tem relação direta teoria do etiquetamento, que surgiu com o Labeling Aproach, ou seja, a teoria da estigmatização que se ocupou do processo de vitimização, ou seja, as razões que levaram a um indivíduo ter mais possibilidade de ser vitima do delito que outros como con-sequência da seleção realizada pela atuação dos órgãos às vitimas.

Com a virada paradigmática conhecida como Labeling Aproach, ou seja, teoria da Reação Social a atenção antes voltada para o crime e para o criminoso passou, como explica Jorge de Figueiredo Dias, a ser transferida para as instâncias de controle social e sendo consideradas responsáveis pela seleção ou estigmatização dos desviantes (criminoso), consistindo numa ruptura significativa com a Criminologia Tradicional.

A partir de uma perspectiva vitimológica do labeling percebe-se que o desviante ou vítima do processo delinqüente pode ser considerado vítima do processo seletivo de estigmatização realizado pela sociedade, gerando a “desviance secondaire, i.e., delinquência resultante do processo casual pro-vocado pela estigmatização” (CÂMARA, 2008)

Além disso, essa desviance secondaire pode gerar uma auto-estigmati-zação visto que o próprio desviante pode se autodefinir como tal diante da etiqueta ou rótulo fixado pelos demais membros da sociedade e principal-mente órgãos oficiais de repressão

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A visão dada pelo labeling ao trazer à atenção as instâncias de controle social proporcionou uma perspectiva quanto ao problema das vítimas de crime, pois passou a analisar:

o papel relevante as instâncias formais em selecionar a desviance, a existência de um processo paralelo de seleção e de estigmatização da vítima, flagrando-se, destarte, o fenômeno da vitimização secundária. (CÂMARA, 2008, p 84)

A última é a Vitimização Terciária abordada por Antonio Beristain e decorre da conduta posterior à vítima, ou seja, pode resultar das vivências e proces-sos de atribuição e rotulação como conseqüência ou ‘valor acrescentado’ diante das vitimizações primárias e secundárias. Por exemplo, alguém que sabendo da vitimização primária e secundária que está sujeito utiliza a mí-dia através da fama e absorve este papel a fim de vingar seus vitimadores. Para isso atua como delinqüente. (BERISTAIN, 2000)

3. O estudo do estupro de vulnerável a partir do elemento tipo

Em 2009, o STJ proferiu uma decisão que absolveu dois acusados3 do cri-me previsto no art. 244-A do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (exploração sexual de menores). Em 1º Grau os réus foram absolvidos do crime de estupro, mas condenados pelos outros crimes. A defesa apelou ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul contra a decisão que condenou os réus com base no ECA e o presente Tribunal absolveu-os do crime de exploração sexual de menores por considerar os antecedentes da vítima, ou seja, por já estarem corrompidas. Entretanto ressaltou que a responsabili-dade penal dos acusados seria maior caso tivessem iniciado as atividades de prostituição das vítimas e mantiveram a condenação pelo crime do art. 241 4 do ECA.

O Ministério Público interpôs recurso extraordinário ao STJ alegando que o fato das vítimas já serem corrompidas não excluiria o ilicitude do cri-me de exploração sexual, baseando- se em repercussão geral. (COUTINHO, 2009). O Supremo teve o seguinte posicionamento5: “o crime previsto no art. 244-A do ECA não abrange a figura do cliente ocasional, eventual diante da ausência de exploração sexual nos termos da definição legal”.

3. O caso em questão refere-se à contratação feita pelo ex-atleta José Luiz Barbosa, Zequinha Barbosa, e seu acessor Luiz Otávio Flores para fins sexuais a três adolescentes de idades 13, 15 e 17 já iniciadas na prostituição as quais se encontravam em um ponto de ônibus.

4. Adquirir, possuir ou armazenar fotografia, vídeo ou outra forma de registro de sexo explícito envolvendo menores

5. Exige-se a submissão do infante à exploração ou à prostituição sexual, o que não ocorreu no caso em questão, de acordo com o STJ. (BRASIL, 2009a)

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Após este caso, surgiu o projeto de lei nº 253/04 que viria se tornar a Lei e 12.015/09 a qual provocou uma profunda reforma no Título IV do Có-digo Penal, pois tentou adaptar as normas penais ao modo atual de pensar e agir da sociedade. A primeira alteração encontra-se na própria denomina-ção do Título o qual deixou de ser “Dos crimes contra os costumes” e passou a ser “Dos crimes contra a dignidade sexual6”.

Outra mudança significativa foi a unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor; severidade quanto ao crime de exploração sex-ual e a previsão do crime de estupro de vulnerável entendendo este último que para a sua configuração é apenas necessária à prática da relação sexual com o menor, não constituindo elemento típico a grave ameaça e violência.; proteção estendida aos vulneráveis por enfermidade ou deficiência mental; intensificou a repressão a outras formas de exploração sexual.

4. Considerações gerais a cerca do estupro de vulnerável

O estupro de vulnerável encontra-se previsto no art. 217-A e §1º do Código Penal, acrescentado pela Lei nº 12.015/09 e pressupõe ter conjunção car-nal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, pessoa alienada ou débil mental, e aquela que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência tendo como pena reclusão, de 08 (oito) a 15 (quinze) anos. Consistindo em crime específico. (NUCCI, 2010b) Além disso, não exige a ameaça ou violência para sua caracterização.

No que tange ao bem jurídico, não se pode falar da liberdade sexual nos casos de crimes sexuais contra vulneráveis, pois não há plena disponibi-lidade da liberdade, caracterizando sua vulnerabilidade. Por isso o bem jurí-dico será a proteção a evolução e desenvolvimento normal da personalidade do menor, de forma que ao chegar à fase adulta possa decidir, sem traumas, seu comportamento sexual.

Apesar de ser um crime hediondo, pois se encontra previsto no rol do art. 9º da lei 8.072/90 (pena acrescida da metade respeitando o limite máximo de 30 anos de reclusão), não admite a causa de aumento de pena, pois esta se encontrava vinculada à presunção de violência (CAPEZ, 2010) e com a sua revogação é passível na jurisprudência do STJ7 de que não há sua aplicação.

6. O termo “dignidade” possui diversas definições, mas combinado com o termo “sexual” “relaciona com o sadio desenvolvimento da sexualidade e a liberdade de cada indivíduo de vivenciá-la a salvo de todas as formas de corrupção, violência e exploração” (MIRABETE; FABBRINI, 2011).Reconhece - se a primazia do desenvolvimento sadio da sexualidade e do exercício da liberdade sexual, como bens merecedores de proteção penal, deslocando o objeto central de tutela da moralidade pública para o indivíduo.

7. STJ, REsp 1.102.005-SC, 5ª. T., rel. Felix Fischer, 29/09/2009

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A conjunção carnal é elemento normativo extrajurídico do tipo e re-fere-se à cópula ou coito vaginal que representa na introdução do órgão masculino na cavidade vaginal. (PRADO, 2010) Já os atos libidinosos con-sistem em atos que ofendem o pudor ou decência sexual, ou seja, é o ato sexualmente obsceno8.

No que tange ao elemento subjetivo, dolo, ou seja, vontade de ter a conjunção ou de praticar o ato libidinoso é necessária a consciência da vul-nerabilidade. Existindo dúvida quanto à condição de vulnerabilidade (idade, enfermidade ou doença mental) incorre em dolo eventual. O erro neste caso exclui o dolo, mas pode-se verificar a hipótese de crime previsto no art. 213 ou 215 (estupro ou violência sexual mediante fraude). Neste caso não se admite a culpa. (MIRABETE; FABBRINI, 2011)

Em relação à consumação dá-se com a conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso. A tentativa configura-se quando o agente inicia a exe-cução do delito com a prática de todos que tendem sua consumação, mas deixa de fazê-lo, pois é impedido por coisa superveniente a sua vontade. Por exemplo, o agente chega a ameaçar o menor para a prática de ato libidinoso o qual foge. É possível a desistência voluntária desde que ocorra antes de qualquer prática libidinosa. (MIRABETE; FABBRINI, 2011)

As qualificadoras do crime encontram-se previstas nos §§ 3º e 4º do art. 217-A do Código Penal, e consistem em lesão corporal grave9 ou mor-te10, do ato praticado pelo agente, conjunção carnal ou ato libidinoso. Estes resultados são configurados pela culpa, pois o agente não tinha intenção de provocá-los. (PRADO, 2010) Dessa forma, há dolo na ação do agente de praticar a conjunção carnal ou ato libidinoso e culpa na consequência desta ação, pois o agente não tinha o intuito de provocá-la. (GRECO, 2010)

Entretanto, se o agente tem a intenção ou assume o risco de praticar a lesão corporal grave ou morte utilizando da prática da relação sexual, ha-verá concurso material entre crime sexual e o delito de homicídio ou lesão corporal grave. Como exemplo, temos a hipótese do agente que para estu-prar a vítima joga-a no solo de forma abrupta de maneira que esta fratura um dos braços ficando impossibilitada de exercer atividades habituais por mais de 30 dias; (PRADO, 2010)

As lesões corporais de natureza leve e as vias de fato decorrentes da violência empregada pelo agente para a prática da relação sexual serão incorporadas pelo próprio art. 217-A do Código penal. (PRADO, 2010) Por

8. Neste caso deve haver o contato ou aproximação corporal, de maneira que pode ser realizado pela vítima no próprio corpo, sobre o corpo do agente ou de um terceiro ou até mesmo sobre a vítima pelo agente ou por terceiro. (LUNA apud PRADO, 2010)

9. Pena será reclusão de 10 (dez) a 20 (vinte) anos

10. Pena é reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) an

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outro lado, André Estefam defende que haverá concurso de crime formal se do fato resultar lesão corporal de natureza leve, pois entende que não absorção da lesão pela figura típica do estupro de vulnerável, pois este não tem previsto a violência como elementar do tipo. (ESTEFAM, 2011)

5. Da presunção de violência à vulnerabilidade

A primeira legislação que previu a presunção de violência no Brasil foi o Código de 1980 o qual estabelecia que a violência fosse ficta quando o ato sexual fosse praticado contra menor de dezesseis anos (PRADO, 2010). O Código de 1940 adotou a presunção de violência, mas diminui a faixa etária atingindo a vítima até que completasse 14 anos. Além disso, ampliou a pre-visão, pois adicionou as seguintes hipóteses: vítima alienada ou débil mental ou a que por algum motivo não consegue oferecer resistência. (PRADO, 2010).

A presunção de violência conhecida também como violência ficta não levava em conta o consentimento da vítima, pois entendia que esta não possuía capacidade para consentir diante de sua imaturidade quanto aos assuntos referentes ao sexo ou incompreensão do ato praticado (GRECO, 2006).

Na vigência da norma anterior surgiu a discussão quanto à presunção do menor de 14 anos se esta seria relativa ou absoluta. Houve o questio-namento da possibilidade do menor ter noção da relação sexual de modo que afastaria a presunção. Inicialmente tanto a Doutrina quanto os Tribu-nais Superiores entendiam que a presunção era absoluta, não se admitindo prova em contrário. Conforme precedentes a seguir do Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça, respectivamente.

Habeas Corpus. 2. Estupro. Presunção de Violência. Vítima Menor de 14 anos de idade. 3. Sequer elide a presunção de violência o alegado do consentimento da vítima quanto à relação sexual. 4. A violência ficta, prevista no art. 224, letra a, do Código Penal, é absoluta e não relativa, conforme iterativa jurisprudência do STF (STF, HC 72.575-9-PE – DJU de 3-3-2000, apud MIRABETE; FABBRINI, 2008, p. 1893)

A violência presumida, prevista no art. 224, a, do CP, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal de proteção à liberdade sexual do menor de quatorze anos, em face volitiva. O consentimento do menor de quatorze anos é irrelevante para a formação do tipo penal do estupro, pois a proibição legal no sentido de coibir qualquer prática

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sexual com pessoa nessa faixa etária (STJ, RT 839/539 apud MIRABETE; FABBRINI, 2008, p. 1893)

Com o tempo, tal posicionamento foi modificando e a doutrina passou a ter dois posicionamentos quanto à relatividade ou absolutividade da presunção. A maioria dos doutrinadores passou a defender a relativização da presunção (juris tantum). Entretanto existiam ainda aqueles que defendiam a pre-sunção absoluta (júris et de júri) . Na Jurisprudência, o posicionamento tornou-se pacífico quanto à relativização, sendo excluída a presunção quan-do o menor já era experiente, mas não seria motivo de exclusão se a menor não fosse mais virgem ou namoradeira. Dessa forma, levava-se em conta a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a insciência quanto aos fatos sexuais.

Diversas decisões foram proferidas a cerca da presunção. Quando se tratava de: erro sobre a idade da vítima, pois pelo porte físico aparentava ter idade maior; experiência na prática sexual e menor já corrompida entendia--se pela relatividade da presunção. Conforme precedente abaixo.

Estupro – Configuração – Violência Presumida – Idade da vítima – Natureza. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça – artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea a, do Código Penal (JSTF 223/372-3 apud MIRABETE; FABBRINI, 2008, p. 1891)

A nova lei ao trazer uma nova roupagem para a presunção não põe fim ao debate. Isto porque nem sempre que se tiver relação sexual com menor de 14 anos configurará estupro, devendo a vulnerabilidade ser relativa, confor-me será demonstrado posteriormente.

Segundo Nucci, o legislador perdeu a oportunidade de adequar o Có-digo Penal ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pois poderia ter adotado o conceito de criança, pessoa menor de 12 anos, e de adolescente, pessoa maior de 12 anos, eliminado a idade menor de 14 anos. Além disso, defende que, baseando-se no ECA, a tutela absoluta deveria ser prevista para os me-nores de 12 anos e a relativa aos maiores de 12 anos de maneira que seria possível a atipicidade do fato ou sua desclassificação quando for possível

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provar a plena capacidade de entendimento da relação sexual sem que haja violência ou grave ameaça real ou qualquer forma de pagamento. (NUCCI, 2010a)

Em contra partida, Greco entende que o legislador, ao determinar a idade, o fez diante de uma eleição político-criminal, proibindo que se tenha conjunção carnal ou outro ato libidinoso com o menor de 14 anos ou os de-mais sujeitos elencados no § 1º do Art. 217-A do Código Penal. Entendendo, portanto, que a idade é o critério mais objetivo. (GRECO, 2010)

Assim, uma das falhas da lei é a não descriminalização da conduta e o aumento da pena em comparação com o estupro simples, pois se percebe que o legislador não levou em conta as mudanças quanto à sexualidade na adolescência, já que é bastante comum encontrar um jovem de 18 anos namorando uma adolescente menor de 14 anos e manter relações sexuais.

Com a alteração legal, a vítima não é verificada na sua liberdade, conforme a jurisprudência a seguir:

Para a configuração do estupro ou do atentado violento ao pudor com violência presumida (previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214, c/c o art. 224, a, do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009 [hoje, art. 217-A], é irrelevante o consentimento da ofendida menor de quatorze anos ou, mesmo, a sua eventual experiência anterior, já que a presunção de violência a que se refere a redação anterior da alínea a do art. 224 do Código Penal é de caráter absoluto. Precedentes (STF, HC 94818, rel. min. Ellen Gracie, Dje 15.08.2008) (HC99993-SP, 2ª T., rel. Joaquim Barbosa, 24.11.2009, v.u.).

Mostra-se irrelevante a averiguação da existência de violência real, quando a vítima tem apenas 11 anos de idade, situação em que a violência presumida e essa presunção é absoluta (STJ, HC 142024 – ES, 5ª T., rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 04.02.2010, v.u.).

Apesar dos Tribunais Superiores não admitirem a vulnerabilidade relativa, os Tribunais de alguns estados já a admitem como pode ser visto através das decisões abaixo.

Reputa-se relativa a violência presumida disposta no inciso [alínea a] do art. 224 do Cód. Penal. 2. O principal fundamento da intervenção jurídico penal no domínio da

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sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e contra a violência sexual de homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiam em vontade livre e consciente, ainda mais quando a suposta vítima com 13 (treze) e 10 (dez) meses de idade à época dos fatos se portava como se mulher fosse tendo pleno discernimento quanto à sua vontade de praticar relações sexuais com o apelante (TJBA, AP. 15525-1/2003, 1ª C.C. rel. Abelardo Virgílio de Carvalho, j. 09.03.2010 apud NUCCI, 2010b, p. 112-113)

APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - VULNERABILIDADE NÃO COMPROVADA - ABSOLVIÇÃO - POSSIBILIDADE. 1- A condição de vulnerabilidade da vítima, trazida pela Lei nº 12.015/09, é relativa, já que o direito penal não admite presunções absolutas, ainda mais nos dias atuais, onde as cenas sexo são temas dominantes na mídia televisiva. 2- Admitir-se hipocritamente que uma jovem com idade inferior a 14 anos seja ingênua e inexperiente, sem capacidade de se autodeterminar em relação à sua sexualidade, é fazer vista grosa à moderna realidade que aí está, onde as meninas, como no caso dos autos, tomam as iniciativas das relações sexuais, dizendo ao namorado que queria perder a virgindade com ele. 3- Restando comprovado que a conjunção carnal ocorreu de comum acordo, sem que tenha havido qualquer tipo de violência ou grave ameaça, não há que se falar em crime de estupro de vulnerável, pois a inexistência da innocentia consilii afasta vulnerabilidade da vítima. 3- Recurso defensivo provido. Recurso ministerial prejudicado. (TJMG, APELAÇÃO CRIMINAL N° 0078171-43.2010.8.13.0693 - 3ª C. C. rel. Antônio Armando dos Anjos, j. 01/11/2011)

Sendo assim, percebe-se que a Lei 12.015/09 trouxe uma maior rigidez para os casos que envolvem menores de 14 (quatorze) anos, pois o estupro de vulnerável possui pena maior que o estupro simples. O porquê de tal mu-dança e sua eficácia será discutido posteriormente.

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6. A análise da neutralização da vítima no crime de estupro de vulnerável

Diante do exposto, resta agora analisar os institutos apresentados nos capí-tulos anteriores, quais sejam vitimologia e o crime de estupro de vulnerável, à luz da expansão do Direito Penal, do populismo punitivo, do medo e da Mídia.

7. A expansão do direito penal na sociedade globalizada

Atualmente vive-se numa sociedade globalizada produto de uma revolução tecnológica, especificamente quanto à tecnologia da comunicação. Dessa forma tem-se como consequência a exclusão decorrente da expulsão de indivíduos do sistema produtivo, a insuficiente invenção de serviços e a fa-cilitação da comunicação tornando-a mais barata. (ZAFFARONI, apud KA-RAM, 2005)

A globalização, conjuntamente com a sociedade de risco, gera o sen-timento generalizado de insegurança e medo tendo em vista a imprevisibi-lidade e liquidez 11 das relações sociais. Esta sociedade de risco decorre do consumo de produtos perigosos, do risco cotidiano de vitimização envolven-do número indeterminado de pessoas em acidente de veículo, acidentes ambientais, pânico social diante do crime organizado, terrorismo interna-cional, tráfico de drogas. (NUNES APOLINÁRIO, 2009)

Assim, é perceptível a relação entre medo de crime e vitimização, pois as pessoas têm medo da repetição do evento diante do sentimento de inse-gurança ou um receio, constituindo na realidade no medo de ser vítima de um crime, ou seja, passar pelo processo de vitimização,

O medo do crime decorre do sentimento de insegurança generalizado. Tanto este quanto o sentimento de insegurança são sentimentos bastante comuns na atualidade devido à sociedade de risco12. Assim a vulnerabilidade do mundo tem fundamento nos perigos da probabilidade não calculável – promovem um aumento na preocupação com novas formas de criminalida-de que surgem diante da nova realidade, como, por exemplo, as referentes ao crime organizado e terrorismo. (apud WERMUTH, 2011)

A ênfase dada ao risco ou perigo gera um alarme não justificado quan-to à segurança remonta um clamor social para uma maior presença e eficá-

11. Este conceito de liquidez é trazido por Bauman referindo-se a fluidez da era moderna e a flexibilização das relações da pós-modernidade. Além disso, remete as inseguranças trazidas pela sociedade globalizada diante da falta de vínculos e de valores sólidos que trazem uma perspectiva de previsibilidade. (BAUMAN, 2001)

12. Ou como sugere Bauman sociedade de incertezas, pois o conceito de risco com base no estudo de Ulrich Beck permite que os mesmos sejam calculados o que só teria sentido num mundo repetitivo, isto é, monótono.

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cia das instancias de controle social, consistindo a “Cultura de Emergência” (CEPEDA apud CALLEGARI, 2010).

Assim, o Direito Penal se expande e se arma como resposta ao medo possuindo as seguintes características:

1. Maior identificação social com a vítima do delito diante do medo de se tornar uma delas de forma que o Direito Penal deixa de ser visto como um instrumento de defesa dos cidadãos diante do jus puniendi estatal, ou seja, como Carta Magna do delinquente e passa a ser visto como Carta Magna da vítima. (SILVIA SÁNCHEZ, 2002,);

2. Politização do Direito Penal, ou seja, utilização política de segurança, resultante de um empobrecimento ou simplificação do discurso político cri-minal e influência dos meios de comunicação consistindo num processo de politização populista do Direito Penal. (CEPEDA, apud CALLEGARI; WERMUTH, 2010);

3. Instrumentalização do Direito Penal no intuito de evitar que os riscos se convertam em situações concretas de perigo. Aparecem leis penais preven-tivas tentando evitar a inatividade política diante dos riscos (ALBRECHT, apud CALLEGARI; WERMUTH, 2010) ;

4. Desapreço quanto as formalidades e garantias penais e processuais, ca-racterísticas de um direito penal liberal e que passam a consistir em obs-táculo frente à eficácia que se espera do sistema punitivo da insegurança (SILVIA SANCHEZ, 2002)

A expansão do Direito Penal decorre do populismo punitivo13 o qual consiste num fenômeno frequente que alimenta a aplicação do direito penal como forma de solucionar as patologias sociais (CADENAS, 2009). Bottoms en-tende que o populismo punitivo aparece em três situações: maiores penas podem reduzir o delito, as penas ajudam a reforçar o consenso moral da sociedade, e ganhos eleitorais como produto. (LARRAURI, 2006).

Este fenômeno pede uma reforma na legislação penal diante de acon-tecimentos que geram a comoção da opinião pública a qual tem relação di-retamente com o papel das redes sociais e da televisão os quais trabalham a relação entre a vítima e seu agressor, além de difundirem o caso a terceiros. Surge um novo autoritarismo, denominado por Zaffaroni de Autoritarismo Cool, pois é um autoritarismo diferente do anterior (de entre guerras) já que se propaga por meio de publicidade e impõe uma propaganda puramente emocional, sendo caracterizado pela expressão cool consistindo o que é su-perficial, indiferente de maneira que não possui convicção profunda, mas está vigente, pois é da moda e por isso é preciso se adequar a ele, visto que se não o fizer será estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e perderá espaço na publicidade. (ZAFFARONI, 2007)

13. De maneira geral é a expropriação do Direito Penal pela Classe

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Tais normas funcionam como meios de expandirem o medo na socie-dade e fomentarem o fenômeno do populismo punitivo.

8. A insegurança como produto de venda da mídia

Os meios de comunicação em massa incentivam o argumento de que a solução para os problemas sociais encontra-se no direito penal e mesclam os fatores de acalmar a ânsia de uma opinião pública desinformada (não esclarecida) e uma percepção tendenciosa do direito penal por parte dos cidadãos. (CADENAS, 2009)

A atuação destes meios baseia-se na insegurança e institucionalizando e manipulando o sentimento de medo nos cidadãos, assim, há uma ins-trumentalização das vítimas para anunciar e promulgar leis penais de ma-neira que diante da sociedade de risco vivenciada por todos atualmente os políticos se utilizam da opinião pública para adotar medidas urgentes com o intuito de satisfazer os reclames sociais. por exemplo, criam leis com os nomes das vítimas como aconteceu no Brasil com a Lei Maria da Penha que instituiu o tratamento severo aos que cometerem violência doméstica contra a mulher. (GARLAND apud CALLEGARI, 2010)

Atualmente tem-se crescido o número de reformas legislativas diante de comoção social, sendo conhecida como produto normativo das legisla-ções em pânico. Tais normas desobedecem à necessária limitação das fontes de criação de proibições penais, pois se distanciam do rigor técnico. A dou-trina nominou de “legislação simbólica” a qual tem consequências concre-tas, por exemplo, elevação do número de encarcerados, alteração da postura dos operadores do direito que se encontram identificados ideologicamente com esta política criminal antidemocrática apoiada pela visão de pânico fo-mentada pelos meios de comunicação.

Atualmente, diante da globalização percebe-se uma influência muito grande dos meios de comunicação na formação de opinião pública. Tais meios são utilizados como mecanismos para fomentar crenças, culturas e valores, com o intuito de sustentar interesses mercadológicos. (WERMU-TH, 2010)

O produto destes meios é a venda de insegurança e medo, pois será objeto da venda o sexo, o crime e a violência. Além disso, a notícia é cons-trução social da realidade, mostrando que não constitui o fenômeno social como realmente é. Portanto há um filtro na informação, pois houve inter-pretações acerca do caso que aconteceu no passado. (ANIYAR DE CASTRO, 2005) Existe também uma discrepância do que é falado e do que acon-teceu, pois as próprias pessoas que trabalham com a mídia transformam números irrisórios em atemorizantes, dependendo do nível de audiência. (CELLEGARI; WERMUTH, 2010) Vale salientar que a mensagem passada é a mesma para os diversos níveis sociais, a diferença encontra-se no fato

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de que aqueles que têm certo conhecimento da influência sofrida podem ter uma visão mais crítica sobre o caso e não acreditar em tudo o que é dito.

Nilo Batista (2009) defende que a vinculação entre a mídia e o sistema penal encontra-se no compromisso da imprensa, pois esta deixa de ter uma mera função comunicativa e adquire também uma função de executorieda-de além de ter ligação com os grupos econômicos que exploram os negócios das telecomunicações tendo em vista o empreendimento neoliberal. Esta vinculação é legitimada e segundo este autor, proporciona uma

“Alavancagem de algumas crenças e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria ideia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de conflitos” (BATISTA, 2009, p. 3)

Como exemplo de influência midiática que gerou reforma na Legislação tem-se a decisão do STJ que gerou notícia sob o título: “Cliente ocasional não viola Artigo 244-A do Estatuto da Criança” veiculada no próprio. Dessa forma, houve uma forte repercussão quanto à opinião pública de maneira que diversos outros sites trouxeram o assunto criticando a posição do Supre-mo. Percebe-se que neste caso houve uma forte influência das redes sociais, pois foi divulgado para a população em geral que o STJ não admite como crime pagar por sexo com menores. Acontece que o MP apenas recorreu da decisão quanto ao crime de exploração sexual e o STJ tem o entendimento de que este crime tem o intuito de punir o chamado “cafetão” ou “rufião” os quais submetem e exploram crianças e adolescentes à prostituição. Assim, o cliente eventual poderia ser punido, pois pratica relação sexual com menor de 14 anos enquadrando-se no crime de estupro cominado com a presunção de violência (art. 213 cc 224 do CP com redação anterior à Lei 12.015/09) e não pelo dispositivo 224-A do ECA.

Vale salientar que a questão só gerou repercussão social, pois foi vei-culada nas redes sociais que a partir daí passaram a querer uma resposta do judiciário a cerca do assunto. Como isso muitos meios de comunicação passaram a tratar de tal tema, chegando a informação à população e à ONU as quais solicitaram ao Estado uma resposta para tal situação que corres-pondeu à Lei nº 12.015/09 que trouxe a previsão do crime de estupro de vulnerável entendendo que para a sua configuração é apenas necessária à prática da relação sexual com o menor, não constituindo elemento típico a grave ameaça e violência, possuindo pena mais rigorosa que a do estupro simples.

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9. O enfraquecimento do estado democrático de direito e valorização do estado de polícia

Garland traz na sua trilogia a perspectiva de uma virada do Estado De-mocrático de Direito, Estado Social, para um Estado Penal. Segundo este autor, a partir da década de 80 surge uma nova cultura do controle diante do processo de globalização o qual proporcionou uma exclusão de grande contingente de pessoas do mundo econômico, desemprego e precarização do mercado de trabalho. (apud CELLEGARI; WERMUTH, 2010).

Cepeda defende como consequência da globalização o surgimento de um mundo mercantil, de maneira que as pessoas pertencem a uma única classe, a dos consumidores, sendo assim, a capacidade de consumir gera critério de inclusão ou exclusão no grupo social. (apud CELLEGARI; WER-MUTH, 2010) Percebe-se que há uma seletividade, pois como defende Wa-cquant os consumidores serão protegidos da presença indesejável da pobre-za que incomoda, ou seja ‘a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência’. (apud CELLEGARI; WERMUTH, 2010)

Bauman entende que há uma polarização14 social em consumidores e não consumidores. Baseando-se em tal posicionamento, Cepeda defende que há uma dicotomia entre os que produzem riscos e os que consomem segurança, pois os primeiros serão excluídos do modelo produtivo já que não tem funcionalidade para este e constituem em fonte de produção de riscos (apud WERMUTH, 2010), ou seja, são possíveis agentes de crimes.

Apesar destas pessoas não terem leis protetoras garantistas são vin-culadas ao sistema penal por meio de leis penais com funções repressivas, ou seja, Política Criminal de Lei e Ordem. Sendo assim, há um enfraque-cimento do Estado Social e conseqüentemente uma valorização do Estado de Polícia. Dessa forma, tem-se um Direito Penal baseado nas pequenas delinquências e desenvolvido diante de uma segurança cidadã. Este modelo é entendido por Díez Ripolés como um processo de vampirização do debate penal de maneira que na sociedade de risco a antecipação da tutela penal justifica-se como resposta aos novos riscos e urgência quanto à criminalida-de de rua ou de massa (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007).

Esta substituição de um Estado Democrático Social para um Estado Punitivo remonta uma postura repressiva, prevenção geral, de maneira que em vez de funcionar como ultima ratio, ou seja, última instância o Direito Penal é usado para intervir tanto em casos de grave quanto de leve lesão a

14. Percebe-se a presença do maniqueísmo nesta relação, pois há uma separação na própria sociedade entre os que consomem e os que geram a insegurança, devendo estes últimos serem contidos pelo sistema penal no intuito de promover a segurança dos consumidores.

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bem jurídico, contrariando o Princípio da Intervenção Mínima15. A inobser-vância deste Princípio decorre do aumento de leis penais em branco, perigo abstrato consequências de uma legislação penal de emergência. Além disso, corresponde um risco as garantias fundamentais e de liberdade do cidadão. (NUNES APOLINÁRIO, 2009)

A expansão do Direito Penal tendo como consequência a criação de novos tipos penais, estipulação de penas mais graves consiste na substitui-ção de um Estado Democrático de Direito por Estado de Polícia, pois de-senvolve um Direito Penal com caráter preventivo geral dando uma maior ênfase à pena. Desta forma, cabe ao Estado decidir se houve ou não violação á norma e aplicar as sanções cabíveis para cada caso concreto, ocorrendo, portanto, o fenômeno da neutralização da vítima, pois esta é esquecida pas-sando o Estado a roubar-lhe o conflito.

Como exemplo de tal questão foi trazido o estupro de vulnerável o qual decorreu do empoderamento do conflito por parte do Estado como resposta ao clamor social influenciado pela mídia diante de um caso envolvendo me-nores de 14 anos que já possuíam vida sexual ativa. Percebe-se que a vítima menor de 14 anos, teve sua vontade e discernimento neutralizado, já que o crime se configurará independentemente de seu consentimento tal como assim prevê o Código Penal e a Jurisprudência pátria. Como consequência a tal aspecto tem-se que a omissão do legislador quanto à violência ou a grave ameaça para a configuração do crime demonstra uma incapacidade do menor de 14 anos quanto ao discernimento da prática de atos sexuais, havendo, portanto, uma limitação da liberdade sexual de tais sujeitos.

Portanto, o que se percebe é um passo contrário às conquistas do movimento vitimológico, devendo, assim, o legislador, ou mesmo o Supremo Tribunal Federal, no seu exercício de conformação da legislação infraconsti-tucional à Carta Maior, ponderar pela relativização do tipo penal, atendendo à prerrogativa constitucional da autonomia da pessoa humana.

10. Conclusão

Diante do exposto conclui-se que:

1. O Estado enquanto detentor do jus puniendi tem competência exclusiva quanto à reação penal frente ao delito, neutralizando a vítima;

2. Tendo em vista que este fenômeno da neutralização impossibilita que a vítima responda uma violência sofrida com outra, surgem grupos sociais que atuam por vingança ou ensejam atitudes preventivas do ato delinquen-te, podendo surgir decisões político-criminais simbólicas para satisfazer sentimentos de dor, medo e insegurança veiculados pela mídia. Solicita-se,

15. Segundo Nilo Batista (2005) estabelece a intervenção nos casos de grave ataque a bem jurídico, sendo os de leve ataque correspondendo uma criminalidade de bagatela objeto de outros ramos do direito, ou seja, protegidos por instrumentos não penais.

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então, ao Direito Penal a criação de novos delitos, aumento da estipulação da pena tornando-a mais rígida, privação de direitos e garantias sendo con-sequência da expansão do direito penal.

3. Neste sentido, deram-se as mudanças trazidas pela lei nº 12.015/2009 ao Código Penal que ainda encontra-se ligado ao conservadorismo em que foi elaborado, pois não acompanha a realidade brasileira ao estipular para consumação do crime de estupro de vulnerável a simples conjunção carnal ou prática de qualquer ato libidinoso, não sendo disciplinada a violência ou grave ameaça. Atualmente é notório o aumento do número de jovens, menores de 14 anos e maiores de 12 anos, que iniciam a vida sexual cedo. Com a substituição da presunção de violência para a vulnerabilidade ocor-reu uma rigidez maior na lei, pois a primeira, violência ficta (não real), era admitida a sua relativização tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Entretanto, a segunda traz de modo absoluto que a prática do estupro de vulneral decorre da relação sexual obtida com menor de 14 desconsideran-do a vontade e o consentimento do mesmo.

4. Baseando-se no Estatuto da Criança e do Adolescente o qual considera criança aquele que tem até 12 anos e adolescente o maior de 12 e menor de 18 anos, o Código Penal poderia estabelecer a tutela absoluta quando se tratar de criança e relativa nos casos referentes ao adolescente.

5. A rigidez da lei decorreu da pressão social e exposição midiática da deci-são do STJ acerca do caso de abuso de menores no qual houve absolvição dos réus por entender-se que as vítimas já eram corrompidas, não sendo possível a configuração do crime de corrupção de menores previsto no Esta-tuto da Criança e do Adolescente. Diante da comoção social o Estado sentiu a necessidade de dar uma resposta a qual consistiu na previsão do estupro de vulnerável, tendo este crime pena superior que o do estupro simples.

6. A mídia exerceu bastante influência nas pessoas, pois tem como produto de venda a insegurança a qual tem como consequência o medo de se tornar vítima de algum crime do qual tem como resposta o populismo punitivo de-senvolvido pelas pessoas quando as mesmas pedem ao Estado uma solução para o caso que se apresenta através da expansão do Direito Penal, com o aumento de penas e criação de novos crimes.

7. Dessa forma, a expansão do Direito Penal tem as seguintes consequên-cias: supressão de direitos e garantias processuais e da execução; produção de novos tipos penais; agravamento de penas dos crimes existentes, inclu-sive daqueles que são punidos por outras esferas jurídicas ou que não atin-gem o bem jurídico, apenas o põem em perigo.

Com isso aumenta o número de lei penal em branco, ou seja, de perigo abstrato de maneira que ocorre uma inobservância acerca do Princípio da mínima intervenção do Estado o qual deve funcionar como a ultima ratio intervindo como última instância de maneira que haja uma proteção de

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bens jurídicos relevantes. Esta postura repressiva consiste numa prepon-deração de um Estado de Polícia sobre um Estado Democrático de Direito.

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Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa criminológica:as principais críticas ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma

abordagem criminodogmática

Diego José Sousa Lemos

Universidade Católica de Pernambuco

1. Considerações preliminares: entendendo a Lei nº 12.654 de 2012

No dia 28 de maio, a Presidenta da República sancionou a Lei nº 12.654 que prevê a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal, alterando, para tanto, a Lei nº 12.037/09 (Lei de Identificação Criminal)1 e a Lei nº 7.210 (Lei de Execução Penal). O novo texto legal, além de autori-zar a coleta de material genético, disciplina o funcionamento dos Biobancos, local nos quais as amostras ficarão armazenadas, realçando o sigilo2 sobre os

1. Art. 1o O art. 5o da Lei no 12.037, de 1o de outubro de 2009, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: “Art. 5o ....................................................................... Parágrafo único: Na hipótese do inciso IV do art. 3o, a identificação criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético.” (NR) Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm Acessado em junho de 2012

2. Art. 2o A Lei no 12.037, de 1o de outubro de 2009, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos: “Art. 5o-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal. § 1o As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos. § 2o Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial. § 3o As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.”

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398 | Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa criminológica:as principais críticas ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem criminodogmática

dados depositados e as consequências para sua violação. Prevê, ademais, as situações nas quais será possível colher de DNA dos suspeitos e condenados (MINAHIM, 2012).

Note-se a diferenciação empreendida aqui entre investigados e con-denados. Ela tem importância para além do simples fato de os separarem uma sentença penal condenatória transitada em julgado. É que, a depender do caso, a aplicação da novel legislação em tela tem desdobramentos bem distintos.

Quando estamos nos referindo a investigados, o artigo legal de refe-rência é o segundo e nos encontramos no âmbito da Lei nº 12.037/09, que trata da identificação criminal. Aqui se tem um instrumento a serviço da investigação criminal, portanto.

Todavia, a legislação sub examine também alterou a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84) e, neste específico, estabeleceu a obrigatoriedade de submissão de alguns tipos de condenados à identificação por perfil gené-tico. Eis aí o ponto sensível sobre o qual se debruçará este artigo.

A partir desse dispositivo, os condenados por crime praticado, dolosa-mente, com violência de natureza grave contra pessoa e os condenados por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA – ácido desoxirribonucleico, por técnica adequa-da e indolor. Portanto, os condenados por crimes graves e violentos - den-tro desses estariam necessariamente os condenados por crimes hediondos - passam a necessariamente ter que se submeter à coleta do material bioló-gico e ao cadastramento do perfil genético3.

“Art. 7o-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito.” “Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm Acessado em junho de 2012

3. Art. 3o A Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 9o-A: “Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor. § 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. § 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm Acessado em junho de 2012

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Repise-se, a legislação em análise disciplina duas situações diferentes: uma a do suspeito do crime (investigado) e outra a do condenado definiti-vamente.

No primeiro caso, tem-se, conforme dito, a alteração que a Lei nº 12.654/12 trouxe à 12.037/09. Trata-se de identificação criminal através de extração de material genético de indivíduo suspeito do crime. Aqui há, então, finalidade exclusivamente probatória, vinculada à necessidade da identificação para a investigação. Serão exigidos, nesse caso, dois requisitos em concorrência, quais sejam: a já mencionada necessidade para as inves-tigações e a autorização judicial (LOPES JR., 2012).

A Lei nº 12.654/12 visou nos seus primeiros artigos, portanto, tão ape-nas alterar a lei já existente que regulava a identificação criminal, a fim de que a coleta de material biológico para obtenção de perfil genético seja mais uma forma de identificação ao lado das já existentes: identificação fotográfica e datiloscópica. Neste sentido, a Lei nº 12.654/12 deve ser lida em conformidade com a lei que ela veio alterar, posto que os novos artigos (5º, 5º-A, 7º-A e 7º-B) da Lei nº 12.037/09, trazidos no bojo dos arts. 1º e 2º da novel legislação, farão parte de um plexo legal maior, logo imprescindível uma leitura do conjunto da primeira lei, já alterada pela segunda.

Tal leitura deixa inconteste a exigência de preenchimento dos requisi-tos supramencionados. Sendo assim, a autoridade policial deverá demons-trar a necessidade da identificação criminal para as investigações através de pedido fundamentado e que efetivamente demonstre a imprescindibilidade deste tipo de prova. A coleta do DNA do suspeito deverá ser, por assim dizer, a ultima ratio do sistema, somente admitida quando demonstrada a impos-sibilidade de obter prova da autoria do crime de outro modo (LOPES JR., 2012).

Esse pedido da autoridade policial, ou mesmo um requerimento do Ministério Público, será submetido à apreciação do juiz que autorizará o ato em decisão fundamentada que comprove a sua necessidade (LOPES JR., 2012).

É de se perceber que nesses casos, com finalidades probatórias, a cole-ta do material genético para identificação criminal do suspeito/investigado/indiciado/acusado pode ser aplicada para qualquer crime. Aqui se tutela o interesse da investigação, havendo a possibilidade de intervenção para qual-quer tipo de delito.

Muito diferente é o segundo caso de aplicação da novel lei. O segun-do momento é aquele em que ela altera a Lei nº 7.210/84 e aqui se tem a redução de possibilidades de identificação criminal por perfil genético. Em verdade, tem-se a obrigatoriedade da extração de DNA para identificação do perfil genético para um específico rol de indivíduos, aqueles condenados por crime hediondo ou por crime doloso cometido com violência de natu-

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reza grave contra a pessoa. Neste caso o material genético irá para banco de dados visando ser usado como prova em relação a fatos futuros. Não se exige autorização judicial para a coleta do material, ela é obrigatória. Tam-bém não se prevê por quanto tempo esses dados ficarão disponíveis, tendo em vista que aqui não há a anterior finalidade probatória e investigatória (OLIVEIRA, 2012).

Relevante é que se compreenda o conceito de crimes dolosos cometi-dos com “violência de natureza grave contra pessoa”, inédito termo estabe-lecido na Lei nº 12.654/12. Seguramente, pelas compreensões doutrinárias que já se têm, tratam-se daqueles crimes cometidos dolosamente nos quais resultam lesões graves, gravíssimas ou morte da vítima. Portanto, teríamos aqui a ideia de condenados por crimes praticados com violência real contra a pessoa com resultado grave, logo lesão grave, gravíssima ou morte (LO-PES JR., 2012).

Em que pese a intenção de trazer as principais críticas ao cadastra-mento dos perfis genéticos como um todo sob uma abordagem criminodog-mática, é precisamente sobre este segundo momento da lei em comento que nos deteremos com mais afinco por ocasião deste artigo, conforme já mencionado. Será, sobretudo, no art. 3º da Lei nº 12.654/12 que repousa-remos nossa atenção, procurando desvendar os absurdos, incongruências e inconstitucionalidades que essa inovação legislativa acabou por validar. Para tanto, há de se tomar a lupa da criminologia crítica para construção de uma verdadeira abordagem criminodogmática.

2. O Penalismo Crítico e a construção de uma abordagem criminodogmática

Seria perfeitamente possível aduzir uma análise crítica da Lei nº 12.654/12 apenas à luz de uma abordagem dogmática e já aqui as críticas ao novel dispositivo e a possibilidade de apontamento de suas incongruências não seriam poucas, todavia se busca ir além neste artigo; intenta-se, isto sim, uma análise criminológico-crítica da própria dogmática penal e processual penal. Busca-se, portanto, um olhar mais amplo e completo que abarque elementos outros, ligados aos demais aspectos das ciências criminais. Eis aí a razão da escolha por uma abordagem que una criminologia e dogmática na busca por uma compreensão crítica do instituto em comento.

Convém recordar, neste sentido, a reticência com que são vistos por alguns penalistas de base clássica os saberes criminológicos. Inebriados pe-las promessas de igualdade e segurança jurídica, tão valiosas ao ideário do Estado de Direito, esses pensadores, que encontram na velha e “inques-tionável” doutrina clássica de Liszt e Welzel seu lastro espistemológico, construíram um lugar de centralidade para a dogmática penal (ANDRADE, 2003, p. 103-160). Ela afirmou-se, desde a sua gênese alemã e italiana até suas mais recentes heranças brasileiras e latino-americanas, como uma ci-

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ência sistemática e eminentemente prática, a serviço de uma administração racional da justiça penal que conduziria, em tese, à segurança jurídica e à justiça das decisões (ANDRADE, 2009, p. 171).

Foi assim que, no modelo integrado de ciências penais, a dogmática:

[...] recebeu a coroa e faixa de rainha, reinando com absoluta soberania, enquanto todos os demais saberes, integrativos do amplo espectro das chamadas ciências criminais, se consolidariam, e bem, com faixas de segundas e terceiras princesas (ANDRADE, 2009, p. 171).

A criminologia positivista e a política criminal, então, passaram ao “estatuto de ciências auxiliares da dogmática penal” (ANDRADE, 2009, p. 171).

Todavia, não se pode perder de vista o resgate da autonomia do saber criminológico e a constatação de que uma contemporânea discussão sobre as relações entre dogmática penal e processual penal e criminologia precisa ocorrer sobre novas bases, não mais sob as clássicas estruturas que relega-ram à criminologia a condição de segunda princesa. Não é possível construir um paradigma que fuja ao antigo modelo positivista de ciência penal que coloca a criminologia e a política criminal a serviço da dogmática? (ANDRA-DE, 2009, p. 184-186). Não só é possível, como é necessário que se o faça.

Parece claro que as relações entre a dogmática e a criminologia têm sido historicamente pouco cordiais e sujeitas a fortes tensões, as quais to-mam novo fôlego quando se indaga a respeito da possibilidade de uma nova relação diferente da tradicional. Apesar das tensões, compreende-se que somente responde à atual crise estrutural do sistema penal um novo modelo integrado de ciência penal que conjugue igualmente a dogmática, a crimi-nologia e a política criminal.

Este modelo inaugurador de uma nova relação entre criminologia e dogmática, no qual a primeira não é mais vista como auxiliar da segunda, potencializa uma compreensão crítica e criminologicamente fundamentada do sistema penal, assente não mais sobre a legitimidade, mas sobre a des-legitimação da dogmática e do sistema penal modernos. É o que se chama neste artigo, tal qual faz Vera Regina Pereira de Andrade, de “penalismo crí-tico”, que passa a investigar o direito penal não mais segundo o positivismo clássico e a dogmática tradicional, mas a partir de uma abordagem crimino-dogmática (ANDRADE, 2009, p. 161-192).

Feita tal escolha, anunciadora de um novo modelo integrado de ci-ência penal, o aqui chamado penalismo crítico, mister se faz deixar claro o marco teórico central utilizado, o qual já aparece desnudado para o leitor, porém ainda clama por uma explicitação conceitual.

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A análise criminológica que aqui se faz da dogmática penal e pro-cessual penal, especificamente da Lei nº 12.654/2012, toma como mar-co teórico central a criminologia de base crítica, a qual aponta para uma “eficácia invertida” (ANDRADE, 2003) e crise estrutural do sistema penal, bem como abre possibilidades para uma nova relação entre criminologia e dogmática penal – criminodogmática (ANDRADE, 2009).

Perceba-se que a escolha pela abordagem criminológica, desenvol-vida sob o paradigma da reação social, desde o seu momento fundacional, com as teorias do labelling approach, até a sua maturidade com a crimino-logia crítica e historiografia dos sistemas punitivos, não é um recorte teórico arbitrário e abstrato. O sistema penal vive inquestionavelmente um hori-zonte de crise de legitimidade ou deslegitimação (ANDRADE, 2003, p. 293-297), o que é amplamente demonstrado pelas conclusões dessa plataforma teórica.

Evidencie-se que por sistema penal se entende, conforme Vera Regi-na Pereira de Andrade:

A totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal (parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão), a totalidade das leis, teorias e categorias cognitivas (direitos + ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente, a sua atuação, e seus vínculos com a mecânica do controle social e global (mídia, escola, Universidade), na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo que se enraíza, muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas penais (ANDRADE, 2006, p.469).

Todo o sistema penal, portanto, vai tender a intervir como subsistema espe-cífico no amplo universo dos processos de socialização e educação, os quais são institucionalizados pelo Estado e outros aparelhos ideológicos em uma rede cada vez mais capilarizada (BARATTA, 2011, p. 169).

A crise de legitimidade ou deslegitimação desse abrangente sistema penal, então, vai encontrar seus porquês no desvelamento das múltiplas in-capacidades do sistema. Conforme aponta Louk Hulsman, há três grandes problemas incontornáveis reveladores dessa deslegitimação: 1) o sistema penal causa sofrimentos desnecessários distribuídos socialmente de modo injusto; 2) ele não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvi-das nos conflitos; 3) é extremamente difícil manter este sistema sob contro-le (HULSMAN apud ZAFFARONI, 1991, p. 98).

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A compreensão da deslegitimação da Lei nº 12.654/12, portanto, in-sere-se no contexto mais amplo da crise de legitimidade do próprio sistema penal que a compreende.

3. Um olhar criminolígico crítico sobre a Lei nº 12.654/2012: uma crítica a partir da experiência norte-americana e da escolha por uma política criminal não-punitivista

A partir do interesse social e estatal por segurança pública, enuncia-se uma certa crença na importância do cadastramento do perfil genético dos cri-minosos para a sociedade. Alguns apontam para a identificação criminal através de material biológico como um moderno avanço para a investigação policial e para a persecução judicial penal (BONACCORSO, 2010). O banco nacional de perfis genéticos poderia, assim, “ajudar em investigações de cri-mes cometidos por ex-detentos, ou seja, os reincidentes” (cf. CONSULTOR JURÍDICO, 2012). Teríamos, portanto, um sistema há muito demandado por peritos criminais que vêem nele uma moderna forma de identificar os ex-detentos que voltam a praticar crimes (SILVA, 2012). Esses expertos afirmam que “se o banco de DNA já existisse, teria sido possível identificar criminosos antes que eles fizessem novas vítimas” (cf. SILVA, 2012).

Nesse diapasão, é de se trazer à baila o pretenso sucesso do sistema norte-americano, o denominado CODIS, que serviu de modelo para a cria-ção legislativa brasileira. A experiência norte-americana, certamente, pode nos fornecer valiosos subsídios para a discussão.

Loïc Wacquant mostra que uma nova era do panoptismo penal foi aberta na América em 1994 com a votação, pelo Congresso, do DNA Identi-fication Act, que liberou US$ 25 milhões para facilitar a sistematização des-tes fichários informatizados e sua conexão através do país, graças à criação de um registro-fonte comum, o mencionado CODIS (combined DNA Indez System) (WACQUANT, 2003, p. 242).

Lá, como aqui, alguns o apresentaram como o remédio milagroso que finalmente iria permitir aos Estados Unidos se livrar da peste da violência criminal, isolando, facilmente, o pretenso “núcleo duro” dos criminosos in-corrigíveis (WACQUANT, 2003, p. 242).

É preciso se entender, contudo, que o grande mote influenciador desta lei, tanto nos EUA, como no Brasil, qual seja: a crescente hegemonia do dis-curso penal e a insistência da sociedade em tematizar os seus conflitos sob a forma de demanda punitiva, significa, em verdade, a obstrução de canais de comunicação política. É por isso que Theodomiro Dias Neto pontua que o discurso sobre os conflitos sociais converteu-se em um discurso sobre a criminalidade. “Ao invés de ‘politizados’, os problemas são ‘policializados’”(-DIAS NETO, 2002).

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É justamente essa lógica, lastreada numa política criminal punitivista, que norteia a Lei nº 12.654/2012 e, em especial, o seu cadastro de perfis genéticos dos criminosos. Muito mais do que uma estratégia de segurança pública eficiente e de prevenção de novos delitos, estamos diante, isso sim, de uma solução simbólica calcada no instrumento penal: não se impedem necessariamente novos crimes de ocorrerem ou se reduz a criminalidade, mas se mantém inexoravelmente uma parcela específica de indivíduos, os inimigos do direito penal (ZAFFARONI, 2007), perenemente controlados pelo vigilantismo criminal do cadastro de perfis genéticos.

É de pontuar, nesse sentido, a sinalização clara dada pela legislação em análise ao vigilantismo. Ela se mostra claramente garroteada numa perspectiva de “panoptismo punitivo” (WACQUANT, 2003, p. 355) e vai, no influxo da contemporaneidade social, da punição à vigilância (FOUCAULT, 1979), no que parece ser a moderna história da repressão sutilmente revi-sitada numa só lei. Michel Foucault compreende essa passagem como um momento central e a lei em comento é um claro indicativo no sentido da ampliação do vigilantismo, que, em última análise, significa a ampliação do sistema penal.

Mesmo que não precisamente encarcerados, os indivíduos abarcados pelo cadastro estarão ad eternum sob o controle penal, já que a pena pode até ter sido cumprida e o período de restabelecimento criminal pode até ter passado, mas o cadastro continuará lá eternizado no banco de dados dos perfis genéticos. O fichamento do DNA criminoso, com o perdão do trocadi-lho lombrosiano, será perpétuo.

Wacquant mostra os assustadores desdobramentos que essa política criminal pode alcançar. O autor ressalta esse mesmo entusiasmo que obser-vamos em solo tupiniquim, só que agora para com o CODIS. Tal entusiasmo levou um grupo de especialistas do governo federal norte-americano, a Co-missão Nacional sobre o Futuro da Comprovação pelo DNA, a examinar os problemas jurídicos e técnicos colocados pela constituição de um mega ban-co nacional de dados de identificação genética (WACQUANT, 2003, p. 244).

Perceba-se que a preocupação já deixou de ser apenas com os conde-nados por crimes violentos ou sexuais, como anunciado outrora. O sobredi-to “núcleo duro” da criminalidade deixou de ser o único alvo; foi-se além: eram todos os condenados. E mais, todas as pessoas detidas pelos diversos serviços de polícia, isto é, 15 milhões de estadunidenses anualmente (WA-CQUANT, 2003, p. 244).

Um fichamento dessa natureza poderia, segundo os estudos, tornar-se rapidamente realidade, levando-se em conta avanços combinados da bio-tecnologia e da informática. As economias de escala tornadas possíveis pela generalização dessa técnica de identificação levaram alguns especialistas a apostarem que num futuro próximo se poderá recolher, estocar e ana-lisar uma amostra de DNA por menos de US$ 10 (WACQUANT, 2003, p.

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244). A possibilidade de instalação de mini-laboratórios portáteis de DNA, do tamanho de uma maleta, tornando possível proceder in locu a análises de sangue, saliva, pelos ou raspas de unhas, e decifrar o código genético dos indivíduos presentes no local do crime em menos de meia hora (WA-CQUANT, 2003, p. 244), é a concretização do sonho das séries e filmes policiais hollywoodianos.

É evidente que a realidade marginal latino-americana nos coloca em posição bem menos privilegiada quanto ao nível de desenvolvimento tec-nológico que possibilitaria tal realização, contudo, seguramente, estamos, como em diversos momentos da nossa história e como almeja grande parte do senso comum teórico, no rastro do paradigma iniciado pelos Estados Unidos.

O que se observa, portanto, na experiência norte-americana, profun-damente influenciadora do nosso porvir, é que, na teoria, o cadastramento genético permitia, supostamente, focar a mira do sistema penal sobre os cri-minosos incorrigíveis, bandidos empedernidos e muitas vezes reincidentes (WACQUANT, 2003, p. 244). Até aqui, temos a mesma promessa por parte dos nossos especialistas. Reduzir-se-ia, portanto, o impacto colateral desse núcleo duro da criminalidade, segundo o prometido.

Na realidade, todavia, a generalização do fichamento genético tradu-z-se por um alargamento sem precedentes da vigilância e do controle indi-retos. O seu prolongamento por uma duração indefinida. É assim que um indivíduo fichado no CODIS ou no banco de dados genéticos da polícia de sua cidade nos EUA figurará ali para sempre. Ele estará susceptível, desse modo, de ser identificado e confundido por infrações, mesmo as menores, cometidas muitos anos antes. Para tanto, basta um controle de rotina da po-lícia, com uma simples detenção, funcionando à maneira de um mini-pro-cesso de comparecimento imediato à Justiça (WACQUANT, 2003, p. 244).

Tem-se, pois, que:

Para os estadunidenses capturados na rede do aparelho policial e penal que se substitui, pouco a pouco, aos vestígios do Estado assistencial nas regiões inferiores do espaço social nacional, mais do que o “direito ao esquecimento”, eles já ingressaram na sociedade da vigilância punitiva, permanente e perpétua (WACQUANT, 2003, p. 244).

Esse é um ponto sensível do cadastramento dos perfis genéticos criminosos no banco nacional de dados de DNA. Com ele, a Lei nº 12.654/2012 extin-gue o direito ao esquecimento. Agora, não se pode mais almejar a reabili-tação criminal, posto que o cadastro do indivíduo que comete crime com violência de natureza grave contra a pessoa e do criminoso hediondo estará

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lá para sempre. Essa pessoa jamais poderá voltar a ser primária, a rigor. É quase que a implantação de uma pena perpétua no Brasil: ao lado dos efei-tos sociais extra-penais de estigmatização e marginalização – incontroláveis e quase sempre eternos, mas a depender do caso ocultáveis – estabeleceu-se um acessório perpétuo para a pena em alguns tipos de crimes: a presença num cadastro genético criminal, o biobanco.

Convém ressaltar que esta mudança de procedimentos e de resulta-dos é a clara e inequívoca tradução do abandono do ideal da ressocialização. Substitui-se o paradigma da reinserção por uma filosofia gerencial que se contenta em administrar fluxos e conter os custos contábeis. Evita-se, por-tanto, cuidadosamente, enfrentar a questão das causas e das consequências do encarceramento em massa. Não fosse esse o caso, se continuaria apos-tando na reinserção social do detento, uma vez paga a pena. Invés disso, porém, tem-se a prisão como espaço para isolar e, sobretudo, neutralizar categorias desviantes ou perigosas por meio de uma vigilância padronizada, o panoptismo punitivo, e de uma gestão estocástica dos riscos. No lugar do trabalho social, uma pesquisa operacional para a absorção carcerária dos “dejetos sociais” (WACQUANT, 2003, p. 247).

Sendo assim, a fraqueza externa do Estado é compensada pelo au-mento de seu autoritarismo (SANTOS, 1994). O Direito Penal esvazia-se enquanto sistema de garantias, ao mesmo tempo em que amplia as suas competências regulatórias para novas fronteiras (BARATTA Apud DIAS NETO, 2002). É precisamente daí que surgem conceitos como o “direito penal do inimigo”, o “direito penal do risco”, o “direito penal simbólico e eficiente” – todos eles absolutamente compatibilizados com as finalidades implícitas e explícitas da lei em tela. E, na análise crítica do tema, é de rigor a percepção do uso instrumental do sistema penal para fins político-sociais.

O cadastro de perfis genéticos, notadamente aquele obrigatoriamen-te imposto por ocasião do art. 3º da lei em análise, serve muito bem para aplacar os temores sociais e indicar para a população uma atuação política nos conflitos que desagradam e aflingem a sociedade. Cria-se o “monstro” que é o criminoso hediondo ou o criminoso violento e, ao mesmo tempo, encontra-se a “mágica” solução para combatê-lo que é o cadastramento de seu perfil genético. Uma estratégia muito bem posta e orquestrada pelo “populismo punitivo”, teatralizado pela mídia, braço forte da comunicação do sistema punitivo, e pelo senso comum teórico, ecoado pelas vozes de es-pecialistas de variadas matizes.

4. Fechando o ciclo de uma abordagem criminodogmática: a crítica legal ao cadastramento obrigatório dos perfis genéticos criminais da Lei nº 12.654/2012

A lei em comento no presente estudo não é passível de críticas tão somente a partir de uma perspectiva criminológico-crítica, lastreada numa política

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criminal não-punitivista. Também no bojo da legalidade penal e constitu-cional há contundentes críticas a essa novel legislação, que simboliza um preocupante atentado à principiologia da dogmática penal e constitucional clássicas e um lamentável golpe ao direito penal e processual penal demo-cráticos. Para fechar o ciclo da abordagem criminodogmática que se propôs neste artigo, portanto, cabe, por fim, lançar luzes sobre essas críticas legais.

Primeiramente, é preciso pontuar que a Lei nº 12.654/12 fere clara-mente princípios e garantias constitucionais. O mais evidente deles é, sem dúvidas, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Com base nesse princípio, os acusados e condenados não devem, ainda que com decisão judicial e mesmo que com técnica adequada e indo-lor – que em nada altera a ausência de obrigatoriedade da coleta, ser coagi-dos a fornecerem os seus materiais genéticos (SILVA, 2012).

O acusado ou condenado tem direito de se recusar a retirar seu ma-terial biológico para exame de DNA sem que essa recusa importe numa confissão.

Sabe-se que em julgamentos cíveis, como nos casos de investigação de paternidade, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal se manifestam no sentido de permitir a recusa à realização do exame. Toda-via, tal recusa importa em presunção relativa de paternidade, a qual admite prova em contrário4.

No julgamento de casos criminais, contudo, o entendimento prevale-cente é firme no sentido de que ninguém é obrigado a produzir provas con-tra si mesmo, uma homenagemem aos princípios da não autoincriminação, ampla defesa e presunção de inocência. A recusa não gera, pois, qualquer presunção de veracidade dos fatos.

É assim que se manifesta a Corte Suprema em casos tais, como o da discussão sobre a obrigatoriedade ou não do acusado em fornecer padrão de escritas para a realização de perícias. O STF é pacífico pela não obrigato-riedade de fornecimento, em razão do princípio da não autoincriminação5.

No mesmo sentido, há decisões do Superior Tribunal de Justiça em relação ao “teste do bafômetro” nas blitz da “Lei Seca”. Firmou-se enten-dimento de que não deve ser obrigatório para o motorista a realização do

4. O entendimento mencionado tem embasamento na jurisprudência do STJ, já pacificada através da Súmula 301 da Corte, que assim dispõe: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.” e na Lei Federal nº 12.004/09, que previu alterações na Lei 8.650/92, acrescentando um parágrafo único no artigo 2º-A dessa norma que prevê que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em com junto com o contexto probatório

5. STF-1ª T., HC nº 77.135, rel. Min. Ilmar Galvão. DJ de 06/11/1998

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“teste do bafômetro” ou o fornecimento de material para exame sanguíneo, em razão do princípio da não autoincriminação6.

Ora, o direito ao silêncio é decorrência da máxima latina nemo tenetur se detegere, a qual consubstancia os princípios supramencionados, compre-endendo, além do direito ao silêncio, o direito de não se autoincriminar. A autodefesa, juntamente com a defesa técnica, constitui o direito de am-pla defesa, o qual, em matéria criminal, abrange a recusa em colaborar na produção de provas que possam importar em autoincriminação (QUEIJO, 2003, p. 74-75).

A recusa do acusado em colaborar na persecução penal não poderá ser interpretada desfavoravelmente a ele, sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência. Não se admite que o acusado venha a tornar-se ob-jeto da prova (QUEIJO, 2003, p. 78), posto que é consequência inafastável da presunção de inocência que a imputação do ônus da prova recaia unica-mente sobre a acusação, não sendo possível obrigar o acusado a colaborar nas investigações (GOMES FILHO, 1991, p. 39-40).

Convém lembrar ainda que a extração de DNA, como regulada pela Lei nº 12.654/12, trata-se ou de medida investigatória, destinada à apuração de autoria e aplicável a qualquer crime, ou de medida extracondenatória, quando será obrigatória a extração do material biológico para composição do Biobanco nacional de dados dos perfis genéticos de condenados por crimes cometidos com violência real contra pessoa e crimes hediondos.

No primeiro caso, funciona como um meio de coleta de prova que, na sua hipótese de ocorrência durante o inquérito, só será possível através de autorização judicial, não sendo, pois, medida automática e comum de qua-lificação de indiciados como é a identificação digital e fotográfica. Diante disso, temos que, enquanto é obrigatória à identificação criminal por meios comuns (identificação digital e datiloscópica), o mesmo não se pode dizer da identificação criminal por perfil genético, não podendo os indiciados ser coagidos a retirar seus materiais biológicos, posto que isso constitui meio de prova e o acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo (MA-CHADO, 2012).

No segundo caso, a vulneração vai além do princípio da não autoincri-minação e da ampla defesa e atinge especificamente a presunção de inocên-cia. Ora, a extração de DNA obrigatória para condenados, a fim de formação de banco nacional de dados de perfis genéticos, servirá como meio de pro-dução de provas em eventuais processos futuros (CUNHA; GOMES, 2010). Além de representar uma espécie de prova pré-constituída, gera uma pre-sunção de que quem cometeu crime com violência real contra pessoa ou

6. STJ-3ª Seção, REsp nº 1.111.566/DF (sistemática dos recursos repetitivos), rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. DJ 17/11/2010.

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hediondo irá cometer crime novamente, daí porque se manter o cadastro (MACHADO, 2012).

Eugênio Pacelli de Oliveira afirma quanto ao tema que:

Uma coisa é permitir a identificação genética para finalidades probatórias; outra, muito diferente, é referendar um cadastro genético nacional de condenados em crimes graves. Aí, parece-nos, haveria transcendência exponencial da Segurança Pública, incompatível com o Estado de Direito e as liberdades públicas. A pessoa, em semelhante cenário, passaria do estado (situação) de inocência para o estado de suspeição, ainda que se reconheça – e o fazemos expressamente! – o proveito na apuração de futuros delitos (casos de reiteração, evidentemente). A radicalização no tratamento do egresso do sistema carcerário atingiria níveis incompatíveis com as funções declaradas da pena pública (OLIVEIRA, 2012).

5. Considerações [não]finais à guisa de uma conclusão

Longe de se destinarem a pôr um ponto final sobre a discussão trazida neste artigo, as considerações que aqui se colocam à guisa de uma conclusão pre-tendem ser, isto sim, a abertura de um diálogo com uma perspectiva demo-crática do direito penal e processual penal. O início de um caminho crítico e enunciador da deslegitimação do sistema punitivo.

A conclusão que ora se impõe, portanto, é sobre o início de uma com-preensão criminologicamente fundamentada sobre a Lei nº 12.654/12. Ela se insere numa lógica de desenvolvimento de políticas de segurança ativas e punitivas, centradas num tipo selecionado de delinquência, situada nas fis-suras e margens da nova ordem econômica e moral (WACQUANT, 2003, p. 25). O entender dessa lei como instrumento violador de direitos e garantias fundamentais e ofensor de princípios inafastávies do direito penal e proces-sual penal, portanto, é necessário.

Uma análise criminodogmática da Lei nº 12.654/12 só nos leva à com-preensão de que o debate a seu respeito está no começo e não no fim. Tal norma específica se insere num conjunto mais amplo de normatizações penais, que manifestam mundo afora um desejo insaciável por inovações burocráticas e dispositivos tecnológicos. A montagem do perfil criminal com fichamento (por ora ainda não generalizado) das marcas genéticas visa res-ponder a um sentimento de insegurança que é apropriado de forma oportu-nista pela irracionalidade de uma política criminal punitivista (Wacquant, 2003, p. 28).

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410 | Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa criminológica:as principais críticas ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem criminodogmática

Deve surgir daí, então, um pacto político-criminal de descontinuidade que traga o deslocamento do paradigma de segurança pública: da atuação autoritária e incidental, calcada no vigilantismo e no panopstismo punitivo, para uma atuação cidadã, que rompa com a estigmatização, a seletividade e a hiper e extracriminalização, optando, em seu lugar, pela prevenção e pela incidência nas causas e não nas conseqüências dos crimes. Politizar confli-tos e problemas para não policializar temas e criminalizar soluções.

Invés de se centrar no binômio punição-vigilância, típico da política criminal repressora que sustenta a formulação da Lei nº 12.654/12, a aná-lise dessa legislação deve se pautar no paradigma liberdade-garantias, a fim de que o direito penal e processual penal não constituam, no lugar de um dique de contenção ao arbítrio estatal, um alçapão para a irracionalidade perpétua do poder punitivo e da vigilância penal eterna.

Opera-se, então, a substituição do panoptismo punitivo do cadastra-mento dos perfis genéticos de criminosos pela potência crítica criminológi-ca, que desnuda a crise de legitimidade do sistema penal. No lugar do feti-chismo vigilantista penal, a escolha pela racionalidade da contração punitiva e da contenção dos efeitos penais e extra-penais do jus puniendi estatal.

É a partir desta compreensão crítica e criminodogmática que se deve analisar a Lei nº 12.654/12.

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Lei Maria da Penha: uma análise crítica da sua aplicação na cidade do Recife entre os anos de

2007 e 2010

Carolina Salazar L. Q. de Medeiros, Daniele Nunes de Alencar, Débora de Lima Ferreira, Marcela de Andrade Nunes, Érica

Babini Lapa do Amaral Machado e Marília Montenegro Pessoa de Mello

Universidade Católica de Pernambuco

1. Introdução

No âmbito do direito penal, “saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito” (ZAFFARONI, 2003, p. 40), houve, ao longo da história, uma grande preocupação com a mulher. Vários tratamentos foram dados à figura feminina, apropriados do discurso oferecido pelo direito penal na crença da proteção ao bem jurídico. Esta proteção, cada vez mais apri-morada, seria proporcionada através da ameaça da pena que restabeleceria um equilíbrio nas relações sociais, não permitindo que o sexo masculino, mais forte, se sobreponha ao sexo feminino, mais fraco. Percebe-se que os discursos não mudaram muito do final do século XIX até hoje; ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem social como uma imensa má-quina simbólica tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se ali-cerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação” (BOURDIEU, 2003, p.18).

É verdade que, como a situação de desigualdade e descriminação perdurou por muito tempo, inclusive no âmbito legal, tornou-se necessário que a própria legislação ordinária apresentasse um equilíbrio, como faz, por exemplo, a Lei 11.340/2006, que protege a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. “Cabe à lei ordinária tratar desigual-

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mente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas” (MELLO, 2009, p. 474).

Há uma crescente demanda criminalizadora da violência doméstica no Brasil, como uma forma de evitar a vitimização da mulher nesse tipo de conflito. Consequentemente, “a busca por segurança pública acarreta a saturação punitiva e prisional, que está na base de uma das mais espeta-culares expansões punitivas que o capitalismo tem vindo a experimentar” (ANDRADE, 2009, p. 342). Tal perspectiva legitima o objetivo do ordena-mento jurídico, mas a regra do direito penal máximo é inapropriado para os problemas domésticos e familiares.

Há, em curso, um movimento reformista, sob o signo despenalizador do princípio da intervenção mínima, do uso da prisão como última ratio e da busca de penas alternativas a ela, que se desenvolve, no Brasil, desde a reforma penal de 1984, passando pela implantação dos Juizados Especiais Criminais Estaduais (Lei 9.099/95) para tratar dos crimes de menor poten-cial ofensivo. “Parece não haver nenhuma dúvida de que é melhor seguir o caminho das medidas sócio-educativas, psicossociais, palestras, cursos etc.” (GOMES, 2002, p. 73).

O presente trabalho teve, pois, como objetivo, analisar o tratamento dispensado pelo Poder Judiciário aos julgados referentes aos crimes e con-travenções no contexto da violência doméstica e traçar o perfil dos agresso-res, a fim de encontrar pontos comuns entre eles e averiguar se este perfil corresponde à parcela dos criminalizáveis1, haja vista a seletividade do sis-tema de justiça criminal. Além disso, objetiva comprovar as contradições e compatibilizações entre as funções declaradas e a operacionalidade do siste-ma penal oferecidas pelas Leis Maria da Penha e dos Juizados Especiais Cri-minais, a partir dos referenciais teóricos da Criminologia Crítica e da Crimi-nologia Feminista. Foram analisados 312 processos criminais iniciados nos anos de 2007 a 2010 na 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife. Da análise dos processos, foram extraídos dados especí-ficos os quais foram lançados em um formulário previamente elaborado. A abordagem vale-se da metodologia de cunho indutivo a fim de estabelecer conclusões no sentido da realização ou não do recrudescimento no trato dos delitos de violência doméstica e familiar. A metodologia dedutiva também é

1. A seletividade do sistema penal é escancarada a partir da constatação de que a maioria dos encarcerados no Brasil faz parte dos setores mais vulneráveis da população: os marginalizados, como também que a maioria dos crimes punidos efetivamente são aqueles contra o patrimônio. Da população carcerária de 496.251 presos, apenas 1.829 possuem ensino superior completo. O grau de instrução mais frequente, dentre os encarcerados, é o ensino fundamental incompleto, com o total de 201.938. Há, ainda, a soma de 81.102 detentos analfabetos ou apenas alfabetizados. Dos 496.251 presos, apenas 156.535 são brancos; dentre os restantes, há poucos índios e amarelos; a imensa maioria é parda ou negra. Da quantidade total de 428.713 crimes tentados e consumados apurados, os crimes contra o patrimônio representam 216.180, enquanto que os crimes contra a pessoa representam 50.791 (DEPEN, 2010).

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utilizada no sentido de revisão bibliográfica, com o objetivo de compreender se a argumentação da vitimização da mulher, colocada em especial como sujeito passivo da Lei Maria da Penha, é estratégia viável para a consagração daqueles objetivos de emancipação e inibição das violências características.

2. O movimento feminista e o empoderamento via direito penal

No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social de-veu-se, essencialmente, ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas também os direitos sociais, humanos e políticos. “Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pedagógico - o da formação de mulheres conscientes da experi-ência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o capitalista” (CAMURÇA, 2007, p. 19).

O feminismo, como movimento social, é um movimento essencialmen-te moderno, surge no contexto das ideias iluministas e das ideias transfor-madoras da Revolução Francesa. Desde os primórdios da Revolução Fran-cesa, no século XVIII, é possível identificar mulheres, que de forma mais ou menos organizada, lutaram por seu direito à cidadania, a uma existência le-gal fora da casa, único lugar em que tinham algum tipo de reconhecimento como esposas e mães. “No entanto, os movimentos feministas só passaram a ganhar reconhecimento e a se organizarem no Brasil, a partir da década de setenta, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação e da igual-dade entre os sexos” (ANDRADE, 2003a, p. 133-134).

As mulheres aceitaram o princípio da diferença sexual, mas o rechaçaram como fundamento para a discriminação injustificada. As líderes dos movimentos de mulheres criticaram seu tratamento diante da lei e impugnaram os termos de sua exclusão social e política, mas o fizeram de forma que reconheciam a importância do seu papel na família, um argumento que foi utilizado tanto pelas feministas quanto pelos estados, ainda que com fins distintos (MOLYNEUX, 2003, p. 79).

O feminismo busca a transformação de um nascer mulher, para um tor-nar-se “mulher”, baseando-se no enfrentamento das questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para “demonstrar e siste-matizar as relações de dominação e subordinação, que envolvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre estas” (TELES, 2003, p. 16). Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca:

Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua aparição entre as feministas americanas que queriam insistir

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sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise (SCOTT, 1990, p. 5).

A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “para nós, trata-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade, fundamen-tadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13).

Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a im-portância do feminismo brasileiro na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta dos movimentos feministas são contínuas e árduas, pois as injustiças e maze-las causadas em nossa sociedade como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingindo gera-ções. “A cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15).

Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empodera-mento, o pleito dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título de equilíbrio, que pretende proteger a mulher nas si-tuações em que ela possa ser fragilizada pela violência. “Cabe à lei ordinária tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas” (MELLO, 2009, p. 474).

A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda fe-minista, e a despeito de inúmeras críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violência do-méstica e familiar contra a mulher.

Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égide da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.

A pretensão do legislador de retirar a possibilidade de apenar o agressor com medidas

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que são, reconhecidamente, inócuas – sob o olhar daqueles que têm a crença na prevenção geral, atendendo as demandas de castigo de algumas vertentes do movimento feminista - e que por certo não cumpririam com uma das finalidades da pena, qual seja a chamada prevenção geral negativa (cujo fundamento é a intimidação do criminoso levada a efeito pela espécie e quantidade da pena atribuída àqueles que cometem determinada conduta criminosa) (DIAS, 2010, p. 141).

O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na his-tória do Brasil e de importância indiscutível no combate à violência contra a mulher. As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamentaram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como manei-ra de enfrentamento daquelas formas, representando o falacioso discurso oficial de emancipação da mulher.

3. As estratégias punitivas da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher

A Lei “Maria da Penha” não criou novos tipos penais, mas conceituou e identificou as formas de violência doméstica contra a mulher, que pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Diante de conceito tão abrangente, o legislador praticamente não deixou, no ordenamento jurídico brasileiro, infrações penais livres da possibilidade de serem praticadas con-tra a mulher no contexto doméstico e familiar. Outrossim, para que todas essas infrações passassem a ser vistas como mais graves, no lugar de qua-lificar individualmente cada uma delas, bastou o artifício legal da inserção de uma agravante penal genérica no Código Penal brasileiro, para os crimes praticados no contexto da violência doméstica contra a mulher.

Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminado-res surgiram conforme a atual tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos preexisten-tes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não con-sigam demonstrar a relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI, 2009).

O maior enrijecimento legal, no entanto, está presente na redação do artigo 41, da Lei n.º 11.340/2006 o qual afasta expressamente a aplicação da Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados no contexto da violência doméstica contra a mulher. Logo, independente do crime e pena, configurada a violên-cia descrita, a possibilidade de utilização das medidas despenalizadoras será afastada, o termo circunstanciado de ocorrência não poderá ser lavrado, o inquérito policial deverá ser instaurado, o procedimento utilizado deverá ser

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o disposto no Código de Processo Penal e a natureza da ação penal do crime de violência doméstica será pública incondicionada.

Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é, notadamente, de menor potencial ofensi-vo, a vedação implicou a impossibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incontáveis ca-sos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que desprogramou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e aplicação de penas encarceradoras desumanas.

No mais, a proibição da aplicação da Lei n.º 9.099/1995 no âmbito da violência doméstica contra a mulher modificou a natureza da ação penal do crime de lesões corporais leves (CUNHA; PINTO, 2008, p. 190-197). Como a procedibilidade da ação penal estaria nas mãos das vítimas, e, consequen-temente, a possibilidade de condenação e prisão do agressor, abrir-se-ia a oportunidade de uma espécie de “conciliação civil”, a qual, além de mais eficaz para a solução dos problemas vivenciados nas relações domésticas – seja para a separação, seja para reconciliação - melhor atenderia os interes-ses da vítima, na maioria das vezes não voltados para a punição do agressor (DIAS, 2010, p. 158-159).

No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistên-cia às estratégias expansionistas do Direito Penal, cedeu às pressões popula-res (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e, ao julgar a ADI 44242, optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incondicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica.

Ainda no campo das contraditórias decisões judiciais, a decisão do STF no habeas corpus n.º 106.212 deixou ainda mais ampla a vedação da apli-cação das medidas depenalizadoras quando se trata de violência doméstica. Muito embora a redação da Lei seja categórica ao vedar a aplicação da Lei n.º 9.099/1995 apenas aos crimes cometidos contra a mulher no contexto doméstico, a interpretação da Suprema Corte brasileira estendeu a veda-ção às “adormecidas” contravenções penais3 e contrariou a imposição legal da interpretação taxativa de uma lei penal. Observa-se que os resultados

2. O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.

3. A Lei de Introdução ao Código Penal - Dec-Lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941, ainda em vigor, estabelece a distinção entre o crime e a contravenção penal em razão da gravidade da sanção penal. Às contravenções penais aplicam-se a pena de prisão simples ou a de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente; e aos crimes, por sua vez, pena

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apresentados neste trabalho dizem respeito a um recorte temporal anterior à decisão supramencionada. Logo, as contravenções penais praticadas no contexto da Lei Maria da Penha eram ainda processadas e julgadas nos JECrims. Tal opção político-criminal de processamento no ãmbito dos JE-Crims foi bastante criticada porque às mulheres não recebiam o aparato e ajuda que a equipe multidisciplinar poderia lhes oferecer, bem como o pe-dido das medidas protetivas.

Do ponto de vista de expansão do direito penal, a ampla interpretação do sentido do artigo 41 da Lei Maria da Penha findou por estender a proibi-ção do uso das medidas despenalizadoras a todas as espécies do gênero in-fração penal, isto é, aos crimes e às contravenções penais, de modo que elas acabaram sofrendo o mesmo tratamento dos delitos, em tese mais graves.

O posicionamento político-ideológico que defendeu a criminalização da violência doméstica e familiar contra a mulher e o recrudescimento das normas penais e processuais penais no enfrentamento dessa violência, pois, tendeu por afastar a aplicação das medidas despenalizadoras por tê-las como representação da impunidade. O principal argumento para essa postura se funda, em síntese, na banalização do crime praticado contra a mulher, de-corrente da brandura da resposta penal proposta pela Lei 9.099/95, “de modo que além de não contribuir para a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, têm contribuído para exarcebar o sentimento de impunidade e alimentar o preconceito e a discriminação contra as mu-lheres na sociedade brasileira” (CUNHA; PINTO, 2009, p. 116).

A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inú-meras críticas que foram lançadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tra-tamento dos conflitos domésticos e familiares. No entanto, resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminali-zador têm sido atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem social como uma imensa máquina sim-bólica tendente a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18).

Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante paradoxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não con-seguem cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas,

de detenção ou reclusão ou de detenção, seja isolada, de forma alternativa ou cumulativa com a de multa (BRUNO, 1984).

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como também, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que preten-dem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).

No contexto dessa expansão e interpretações extensivas do direito pe-nal que potencializou a criminalização de homens pela prática da violência doméstica, resta saber, face a dados de pesquisas nacionais que revelam a “democraticidade” da violência doméstica, se a Lei Maria da Penha é tão democrática quando da criminalização masculina, ou se o homem crimi-nalizado, dito “agressor”, preenche apenas o perfil dos selecionáveis pelo sistema de justiça criminal.

4. Análise dos processos-crimes da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife nos anos de 2007 a 2010, sob o enfoque criminológico crítico

Na pesquisa de campo realizada no 1° Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da cidade do Recife, a análise dos 312 processos criminais instaurados entre os anos de 2007 a 2010 na 1ª Varada de Vio-lência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife, constatou-se que os crimes com maior incidência naquela Vara são: ameaça (51,5%); injúria (17,5%); lesões corporais leves (10,3%); difamação (9%) e os 11,7% restan-tes correspondem a infrações penais diversas as quais, quando computados individualmente, não têm representação expressiva no resultado geral. O resultado obtido na pesquisa, portanto, confirmou resultados obtitidos na-cionalmente4 de que a maioria dos crimes de gênero no âmbito doméstico que chegam ao conhecimento do judiciário são crimes que se encaixam no conceito legal de baixa potencialidade lesiva da Lei n.º 9.099/95.

Na contramão do enrijecimento legal trazido às infrações de menor potencial lesivo praticadas no contexto da Lei Maria da Penha, digno de des-taque o entendimento do Juízo pesquisado no sentido afastar o julgamento das contravenções penais no âmbito da Vara de Violência Doméstica5. En-tretanto, a partir do julgado do STF que extendeu a vedação dos institu-tos depenalizadores às contravenções penais praticadas no lar em razão do gênero, estima-se que na cidade do Recife, tal entendimento seja acatado,

4. Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho, com base no Relatório Anual do Conselho Nacional de Justiça (2010) e em registros do Ministério Público do Rio Grande do Sul, afirmam que os crimes mais praticados contra mulher no contexto da violência doméstica e familiar no Brasil são as lesões corporais e a ameaça (cf. CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 163-165).

5. Nos processos arquivados nos anos-base 2007 a 2008, as contravenções inseridas no contexto da violência doméstica foram processadas e julgadas pelos JECrims. Já na segunda parte da análise, referente aos anos-base 2009 e 2010, observou-se que, do universo das 79 infrações analisadas, apenas 2 eram de contravenções penais, correspondendo a 2,5% daquelas. Ressalta-se, entretanto, que um dos processos-contravenção somente foi conduzido pelo 1º JVDFM em virtude da necessária citação do réu por meio de edital, pelo procedimento do Código de Processo Penal, uma vez que não prevista no âmbito da Lei 9.099/95.

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de modo a afastar, por completo, as contravenções penais do âmbito dos JECrims.

No que tange ao perfil socioeconômico dos homens processados e jul-gados pela prática de infrações penais no âmbito da VVDFMR, como a pes-quisa abrangeu um amplo recorte temporal, pode-se afirmar que foi possível traçar com certa precisão mencionado perfil.

Praticamente todos os agressores analisados eram brasileiros, com ex-ceção de um que não tinha sua nacionalidade especificada no processo. Em sua maioria, eram solteiros (46,9%) ou casados (mais de 30%). A idade dos agressores é muito diversificada, estando a maioria compreendidos na faixa etária de 26 a 50 anos (66%), o que demonstra que não há uma idade em que os homens estão mais passíveis de cometer atos de violência, de modo que esses comportamentos podem ocorrer em qualquer época da vida deles.

A cor dos agressores, na maioria dos casos (69,5%), não é informada no processo, mas, dos declarados, a maioria é pardo (19,7%), seguido dos brancos e negros, cada um com 5%. No entanto, dada a miscigenação de raças que ocorre no Brasil, não se pode constatar nada relevante com os dados referentes à cor, uma vez que nenhum brasileiro é 100% branco ou preto e a caracterização do que é ser branco, pardo ou preto não é muito bem delimitado.

No que tange a escolaridade dos agressores, a mesma é bastante va-riada, tendo desde analfabetos até homens com o terceiro grau completo. O percentual de analfabetos é de 5,6% e o dos que tem o primeiro grau incom-pleto é de 36,8%. Os que possuem o ensino médio completo são 18,5% e os graduados são 8,9%. Os agressores pesquisados possuíam as mais variadas profissões, sendo a maioria autônomo (9,9%), desempregado (7,0%), apo-sentado (5,6%), comerciante (5,6%) ou policial militar (4,2%).

Os dados relativos ao perfil socioeconômico do homem já despertam bastante curiosidade, já que contrariam as expectativas de encontrar uma distribuição paritária de homens de diversas classes sociais no polo ativo do crime, já que diversas pesquisas nacionais apontam para a “democraticida-de” da violência doméstica contra a mulher e descontroem a ideia de que ela seri um fenômeno característicos nas classes pobres (PASINATO, 1997, p. 167-169). Não se pode olvidar da cifra oculta, que são aqueles casos de violência doméstica que efetivamente ocorreram, mas nunca chegaram ao conhecimento das autoridades, nem geraram processos, logo, mesmo que o percentual de pessoas instruídas seja menor, não quer dizer que elas pra-tiquem menos crimes, pois as mulheres mais instruídas tem outros meios de solução de conflitos que não o Poder Judiciário, tais como psicólogos, amigos, psiquiatras etc. Para a mulher mais esclarecida, causa muito mais vergonha ir à delegacia e expor o seu problema. Para uma mulher mais des-favorecida socialmente, que mora em comunidades, expor o fato não chega

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a ser o maior problema, pois, como se sabe, em comunidades, todos sabem do que se passa na casa dos outros.

Nesse contexto, percebe-se que o rigor da Lei Maria da Penha vem sendo reservada aos tradicionalmente criminalizáveis pelo sistema de justi-ça criminal.

A realidade do mundo das drogas e do alcoolismo é uma dura realida-de que não poderia passar despercebida nos delitos que envolvem violência doméstica. O percentual de agressores que fizeram uso de drogas, sejam elas lícitas (álcool) ou ilícitas (maconha, crack) foi de 35,5%. Desses, 79% faziam uso do álcool, 16% faziam uso de crack e 13% faziam uso de maco-nha. A maconha e o crack aparecem em quantidades inferiores e, por vezes, foram associadas ao uso do álcool. O fato é que o uso de drogas pode deixa o homem mais propenso a cometer atos de violência contra as mulheres por distorcerem a noção do certo e errado e até por tornar o ser humano mais inconsequente e incapaz de medir as proporções dos seus atos.

Quase 80% dos casos se tratavam de relações amorosas, sendo a maio-ria companheiros (22,5%) ou ex-companheiros (26,8%). O tempo de du-ração desses relacionamentos varia, tendo relacionamentos que duraram de 6 meses a 1 ano (5,3%), de 1 a 3 anos (14%), de 3 a 7 anos (22,8%), de 7 a 10 anos (15,8%), de 10 a 15 anos (15,8%) e até mesmo mais de 15 anos (19,3%), de forma que não se pode dizer que um homem que nunca apresentou um comportamento violento não possa vir a fazê-lo, pois, como se pode perceber, o percentual do tempo de relacionamento está bem dis-tribuído. É válido ressaltar que 64,9% dos casais estavam separados quando da ocorrência do fato e o tempo da separação também é bastante variado, sendo desde menos de um mês (10,5%) a até mais de 10 anos (5,3%), sen-do mais incidente entre 1 e 6 meses da separação (22,8%). Havia filhos em 64,3% das relações amorosas. Também houve casos de mãe e filho, irmãos e, até mesmo, cunhadas, sogras e primas.

O motivo das agressões também é diversificado, mas o motivo mais comum é a não aceitação do término da relação (29,6%), envolvimento com drogas (16,9%) ou ciúmes (5,6%). Teve casos extremos, como um em que a violência se originou porque a vítima pretendia ingressar em uma Univer-sidade e outro em que começou por causa de uma conta telefônica. Sendo interessante o fato de que apenas 9,9% das mulheres declararam depender economicamente dos maridos, fato que contradiz a tese de que a mulher aceita as agressões pelo fato de depender economicamente do parceiro.

Quase 60% das ocorrências se deu no local de coabitação ou na casa da vítima. Apenas 5% ocorreram na casa do agressor, situação que represen-ta uma possibilidade de serem eles que vão ao encontro das vítimas e não elas ao encontro deles. E, aproxidamente, 25% das ocorrências se deram em local público, o que demonstra a falta de vergonha desses agressores em serem vistos por terceiros.

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A quantidade de agressores que foram presos em flagrante e ficaram presos durante o processo foi de 25,1%. E porquíssimos dos agressores pes-quisados eram reincidentes, um percentual irrisório. Um dado interessante é que praticamente todas as prisões foram efetuadas em flagrante delito, só existindo um único registro de prisão por descumprimento de medida pro-tetiva previamente deferida pelo juiz, possibilidade prevista pela Lei.

As estratégias de empoderamento via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defendidas por parcela dos movimentos feministas, supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência doméstica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na reali-dade brasileira.

A pesquisa de campo (FERREIRA, 2011, p. 20)6 trouxe um estudo com relação à aplicabilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha. Dos 98 processos-crimes, do ano de 2007, analisados, destacam-se os seguintes dados: nos casos analisados, 4,08% das vítimas retrataram-se antes do recebimento da denúncia; 94,90% dos réus não são reincidentes específicos em violência doméstica; 100% dos processos-crimes não houve suspensão condicional da pena e não houve suspensão condicional do pro-cesso (possibilidade de aplicação a partir do ano de 2009); 99% não houve aplicação de pena privativa de liberdade (1% - pena: entre 3 e 4 anos); e, 100% não houve aplicação de pena restritiva de direitos (por amplíssima extinção do processo sem resolução do mérito em virtude da ocorrência da decadência). Dos 143 processos-crimes, do ano de 2008, analisados, des-tacam-se os seguintes dados: nos casos analisados, 43,36% das vítimas re-trataram-se antes do recebimento da denúncia; 95,80% dos réus não são reincidentes específicos em violência doméstica; 100% dos processos-cri-mes não houve suspensão condicional da pena, não houve suspensão condi-cional do processo (possibilidade de aplicação a partir do ano de 2009), não houve aplicação de pena privativa de liberdade e nem de pena restritiva de direitos (por amplíssima extinção do processo sem resolução do mérito em virtude da ocorrência da retratação e da decadência).

Dos 71 processos-crimes, dos anos de 2009 e 2010, analisados, des-tacam-se os seguintes dados: em 94,3% houve extinção do processo sem resolução do mérito, dos quais em 77,6% houve retratação da vítima, em 14,9% houve decadência e em 7,5% houve a ocorrência da prescrição; em 4,2% houve condenação; e, em 1,4% houve absolvição.

Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, portanto, não implica que seja, o Direito Penal, ne-cessariamente a melhor solução. Importante, assim, que sejam discutidos

6 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, da Universidade Católica de Pernambuco, vinculado ao projeto de pesquisa da Profª. Drª. Marília Montenegro Pessoa de Mello, intitulado “Medidas apresentadas como forma de resolução de conflitos domésticos na Lei 11.340/2006: uma análise crítica do sistema punitivo (ano 2007-2008)”.

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e apresentados quais os objetivos declarados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o paradigma penalista tra-dicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.

A crescente demanda criminalizadora da violência doméstica no Bra-sil, como uma forma de evitar a vitimização da mulher nesse tipo de con-flito, legitima o objetivo do ordenamento jurídico, mas a regra do direito penal máximo é inapropriada para os problemas domésticos e familiares. Trata-se da manifestação de um direito penal simbólico, porque há uma in-congruência entre os objetivos declarados pela norma e os alcançados com a aplicação dela. Deve-se destacar que, nesses casos, a proteção de um bem jurídico, que legitimou a criação da norma, não se verifica na aplicação dela, predominando os efeitos latentes sobre os manifestos.

Em momento propício, entrou em vigor a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, com o fim de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma diferença de tratamento entre os gêneros, mesmo quando praticado o mesmo crime. A lei não criou nenhum tipo penal, mas alterou o tipo já exis-tente e eliminou a aplicação das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95, quando a vítima for mulher, bem como algumas penas alternativas.

A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso da criminologia crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88).

A vertente criminológica parte do pressuposto de que o direito deve decla-rar a função de proteger a ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. O que se quis, pois, foi investigar essa coerência por meio de uma metodologia dialética, a qual visou identificar funções latentes – “não declaradas, ideologicamente encobertas e tendentes a assegurar a manu-tenção dos papeis sociais que ela tem no interior do conjunto da sociedade” (BARATTA, 2004, p. 95) – e as funções declaradas – que no caso dos mo-vimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da cri-minologia crítica com o objetivo de trazer a apreciação feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos movi-mentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres, essa criminologia percebeu-se também no papel

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de trazer para esses movimentos uma base teórica que possa orientá-los em suas opções político-criminais, já que constatou que esse sistema (enrijeci-mento penal legislativo) não está apto, por si só, a garantir direitos, uma vez que atua, muito mais, no plano simbólico, criando a sensação apenas ilusó-ria de segurança jurídica. O que se pretendeu, pois, na presente pesquisa, foi o aprofundamento do referencial teórico e empírico dessa constatação, possibilitando um clareamento, aos movimentos feministas, das melhoras formas para a realização de seus objetivos reais.

A violência doméstica ocorre devido ao sentimento de superioridade do gênero masculino perante o gênero feminino. A mulher é controlada du-rante toda a sua vida por homens (LARRAURI, 2008, p. 3). Primeiramente, por seu pai, o qual se preocupa com a sexualidade da filha e exerce um maior controle sobre a mesma. Posteriormente, a mulher é controlada pelo marido quando depende economicamente deste, sofrendo restrições por parte deste, dada a ideia de que o homem trabalha e a mulher deve obediên-cia (LARRAURI, 2008, p. 4). Além disso, a mulher sofre controle de outras mulheres e dela mesma, visto que as mulheres foram criadas com o pensa-mento machista e recriminam umas às outras quando desviam da postura “padrão”, assim entendida pela sociedade. O controle excessivo que envolve a mulher, de certa forma, legaliza socialmente a violência doméstica, como se ela pudesse e, até mesmo, devesse ser castigada por não se portar como uma mulher ideal. O que se combate principalmente com a intervenção do direito penal nesses casos é a subordinação da mulher e não sua diferença em si do gênero masculino, pois tal subordinação está arraigada na cultura da sociedade e não muda de uma hora para a outra, é preciso ser ensinada através das gerações (MELLO; ALENCAR; MEDEIROS, 2012, p. 3).

5. Conclusão

Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – com-bater a violência e estabelecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que Vera Andrade denomina de “eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das declaradas” (ANDRADE, 2003b, p. 74).

O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âmbito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será.

Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na realidade da violência ora tratada, apenas ins-tituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema, forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas.

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Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle so-cial, inclusive sobre as mulheres, resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de emancipação.

O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado cons-truir nas últimas décadas e a associação à figura da vítima, de sujeito passi-vo, em nada contribui, antes ratificam a imagem da mulher como ser frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determinado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicote-rapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.

Também foram abstraídos dados que comprovam o quão o sistema penal é seletivo e discriminatório. A maioria dos homens processados no âmbito da VVDFMR é parda e ocupante de uma classe social pouco abas-tada, tal que possui tem um nível de escolaridade baixo e empregos sem grandes perspectivas de ascensão econômica. Contudo, não se pode dizer que apenas pessoas com tais características sejam sujeitos ativos do crime de violência doméstica. Parece mais prudente inferir que é principalmente para essas pessoas que o rigor da Lei Maria da Penha está voltado; fato que demonstra um reforço das funções de seletividade garantidora das estrutu-ras de classe e raça pelo sistema de justiça criminal.

É importante ressaltar que não há apenas um culpado nesse conflito; às vezes, nem a própria vítima quer ver o agressor preso. Diante desses fatos estatisticamente demonstrados, nota-se que o sistema penal talvez não este-ja cumprindo com os seus objetivos no caso específico da violência domésti-ca e família contra a mulher, uma vez que nenhum agressor foi efetivamen-te condenado e grande parte das vítimas desistiu do processo criminal. É necessário, portanto, que o Estado elabore uma forma mais resolutiva para contornar esse problema social.

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