O teatro não é brinquedo de idiotas : Wole Soyinka e a ...
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O teatro não ‘é brinquedo de idiotas’: Wole Soyinka e a dramatização da
história da Nigéria
Luiza Nascimento dos Reis1
Introdução
Nascido na Nigéria, Wole Soyinka é o dramaturgo mais premiado do continente
africano. Sua obra inclui diversas peças teatrais, poemas, romances, memórias e ensaios
de crítica literária. Em O Leão e a Joia (Soyinka, 2012), uma de suas primeiras montagens
e até então a única cujo texto foi editado no Brasil, temos um importante livro que
possibilita a análise de aspectos da história contemporânea da Nigéria. Seu enredo se
desenrola em torno da jovem Sidi. “A joia de Ilunjile” precisa decidir-se entre dois
pretendentes - o jovem professor primário Lakunle e o sexagenário chefe tradicional
Baroka - ao tempo em que é destacada pelas lentes de um fotógrafo europeu. A história
acontece numa pequena comunidade imaginária dos povos iorubás, no interior da Nigéria,
denominada Ilunjile.
Múltiplas são as questões discutidas nessa trama que se desenrola em meados do
século XX. Neste artigo, focaremos a análise na narrativa e performance da personagem
Baroka. O chefe tradicional, ou bale, utiliza sua sabedoria para enganar a todas as outras
personagens, num jogo de mentira e dissimulação, que resulta na manutenção do seu
poder e no atendimento de seus desejos. A trama de Soyinka evidencia como Baroka
transforma-se num ator e nos faz refletir como o teatro não pode ser apropriado por
aqueles que detém o poder e mantém objetivos escusos. Com essa personagem, Soyinka
está discutindo as decisões de políticos africanos corrompidos, tema muito pouco
abordado à época devido à euforia pelas independências.
1 Professora Adjunta do Departamento de História, coordenadora do Instituto de Estudos da África e
do Afrika'70: Grupo de Estudos em História da África Contemporânea na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Contatos: [email protected]; @projetoafrika70. Coordenou o projeto de
extensão Leitura dramática de O Leão e a Joia de Wole Soyinka (2018) que contou com o apoio da Pró-
Reitoria de Extensão e Cultura (PROExC/UFPE).
O Leão e a Joia foi classificado como fábula, utiliza-se da ironia e comicidade
provocando o riso em diversos momentos, mas também é mordaz e aborda temas
importantes para uma Nigéria que se preparava para a independência política. Neste texto
dramático Soyinka recorre à performance de um falso ator, através do bale Baroka, para
insistir que o teatro não “é brinquedo de idiotas” (Soyinka, 2012, p. 40).
A Nigéria, no final dos anos 1950, lembrava, rememorando as palavras do
historiador José Bento Rosa da Silva (2018), uma terra em transe2. Múltiplas eram as
transformações e expectativas uma vez que, finalmente, se aproximava a tão almejada
independência política após décadas de colonização inglesa. Nestas transformações
devemos considerar a emergência de intelectuais e artistas africanos os quais, tendo
desenvolvido ao menos parte de sua formação em países europeus, onde experimentaram
a construção de conhecimentos eurocentrados e a dinâmica subalternizante do racismo,
voltavam sua produção para refletir acerca daquela profusão de mudanças ao tempo em
que também promoviam novas experiências.
Com poemas, contos, romances e textos dramáticos, esses intelectuais buscavam
construir um repertório que apresentasse o continente africano a partir de suas próprias
referências. Questionavam e enfrentavam as teorias e práticas racistas europeias que
justificavam as atrocidades da colonização afirmando a inferioridade biológica e
intelectual dos povos africanos. O ato de ler, escrever, recitar, encenar seus próprios textos
trazia importante potencial descolonizador provocando profundas reflexões acerca das
transformações em curso naquelas sociedades. É neste sentido que destacamos a
importância da análise e apreciação de produções literárias e artísticas para discutir
aspectos da história do continente africano. O Leão e a Joia é uma obra prima cômica e
ao mesmo tempo mordaz que reflete sobre dinâmicas da sociedade naqueles meses
decisivos.
O dramaturgo Wole Soyinka
2 Parecer apresentado por José Bento Silva por ocasião da defesa de Anna Mirella Cibalde Sousa, no
departamento de História da UFPE, em 2018, cujo trabalho de conclusão de curso analisou aspectos da obra
O Leão e a Joia.
Wole Soyinka é o escritor do continente africano mais premiado tendo sido
contemplado com o Nobel de Literatura em 1986. Nasceu em 1934 na cidade de
Abeokuta, região berço dos povos iorubás na Nigéria. Realizou seus estudos primários e
secundários na Nigéria, incluindo o início de seu curso superior em Literatura no, então,
Colégio Universitário de Ibadan, entre 1952 e 1954. Na Inglaterra, bacharelou-se na
Universidade de Leeds, onde residiu entre 1954 a 1958. Voltou à Nigéria e à Universidade
de Ibadan, num período crucial de transição para a independência do país, oficializada
em 01 de outubro de 1960. Fundou um grupo teatral, passou a lecionar, pesquisar e se
dedicar à dramaturgia, produzindo diversas montagens. Sua permanente postura crítica
aos governantes que ascenderam ao poder lhe rendeu alguns anos de prisão, e diferentes
períodos de exílio em outros países. Atualmente, após longa temporada no Estados
Unidos, reside na África do Sul e viaja à Nigéria com regularidade.
Soyinka, assim como diversos outros escritores e escritoras, intelectuais e artistas,
oriundos de países africanos que emergiram no século XX, construíram suas obras em
meio a dilemas, embates e expectativas que vivenciavam enquanto lutavam pela
descolonização política, econômica, cultural. O principal desafio era, e ainda é, a
descolonização epistemológica, ou seja, a afirmação de uma produção de conhecimento
comprometida com conhecimento dos povos africanos (Panorama, 2019). Os novos
estados africanos herdaram fronteiras territoriais e instituições construídas pelos
colonizadores organizadas a partir de um pensamento que, de modo geral, não valoriza o
pensamento africano.
Soyinka desenvolveu uma produção intelectual e artística conectada com a África
contemporânea. Sua obra tornou-se referência mantendo a mordacidade e o sarcasmo
como características marcantes. Naqueles anos de grandes expectativas pelas
independências, Soyinka abordava questões que muitos ainda não estavam atentos, a
exemplo da corrupção. Este é um dos temas abordados em O Leão e a Joia que se destaca
com a personagem Baroka.
Baroka, o Leão de Ilunjile
Chefe tradicional da aldeia, Baroka é o bale, assim descrito: “(...) magro e
musculoso, com uma barbicha branca, parecendo muito mais robusto que os seus 62 anos
(...)” (Soyinka, 2012, p. 44). Sua personagem traz a experiência com a idade e o saber dos
mais velhos. Ele representa o estilo de vida iorubano, africano e encarna a representação
da ancestralidade e do poder tradicional. Na trama, que está dividida em Manhã, Meio-
dia e Noite, Baroka aparecerá com maior ênfase no período da noite quando, em seu
encontro com a jovem Sidi, pode exercitar sua astúcia e inteligência para seduzi-la. O
texto dramático é construído em torno de Sidi, que é cortejada por Lakunle, o jovem
professor primário e Baroka, o chefe sexagenário. Considerada a mais bela de todas as
jovens em Ilunjile, Sidi tem sua posição supervalorizada na comunidade após ter suas
fotografias publicadas numa revista inglesa.
Baroka parece ser o oposto de Lakunle. O professor primário, que usa roupas
ocidentais e estudou em escolas coloniais, reproduz o vocabulário, conceitos e
pensamento europeu insistindo na falta de modernidade africana. Em sua narrativa
colonizada, os africanos deveriam simplesmente copiar os modos europeus para saírem
da selvageria. Embora sinta-se superior à Baroka, Sidi e aos demais membros da
comunidade, Lakunle é constantemente ridicularizado. Sua personagem – suas roupas
puídas e desproporcionais, seu vocabulário estrangeiro e portanto pouco inteligível, o
ritmo impaciente de seu diálogo com Sidi – constrói uma caricatura do colonizador que
desperta reflexões acerca da impertinência e superficialidade dos pressupostos coloniais
ao tempo que faz rir.
Baroka é o chefe. Na trama, vamos conhecê-lo mais a fundo durante à Noite, na
terceira e última parte. Antes disso, suas aparições se dão de maneira pontual,
obrigatoriamente acompanhado de pessoas que constituem seu séquito, sempre recebido
com bastante reverência. O bale aparece subitamente quando Sidi, Lakunle e as garotas
da aldeia estão comemorando a chegada da revista encenando a passagem do fotógrafo
pela aldeia tempos antes. Ao vê-lo, “Todos se abaixam, uns se ajoelham e outros se
prostram no chão, saudando-o com gritos de ‘Kabiyesi’, ‘Baba’, etc., [...]” (Soyinka,
2012, p. 44). Animado com a encenação, Baroka aproveita para participar atuando na
cena em que prendeu aquele estrangeiro que fazia fotografias embriagado antes de
compreender ser um exagero tal castigo e festejar com todos.
A imagem de Baroka, frente às demais personagens, não é das melhores. Para as
garotas da aldeia que trouxeram a revista e notícias de sua repercussão, o bale estava com
inveja e fingia sentir orgulho da fama de Sidi (Soyinka, 2012, p. 35). Para Lakunle, já
conhecido por falar bastante, Baroka era um “patife espertalhão” (Soyinka, 2012, p. 24)
e “inimigo jurado do progresso” (Soyinka, 2012, p. 62). E Sidi, maravilhada com suas
fotografias, sentiu-se superior ao bale:
Sidi: Sidi é mais importante até que o bale!
É mais famosa que aquela pantera das árvores,
Agora ele está abaixo de mim...
Esse que você chama de patife sem medo.
De terror das mulheres!
Mas agora ele divide um cantinho de folha
Com a mais inferior das coisas inferiores...
Com um buraco que serve de latrina para a aldeia! (SOYINKA, 2012,
p. 37)
Conheceremos mais um pouco do bale ao Meio dia em três rápidas cenas. Na
primeira, Sadiku, a primeira e mais velha esposa de Baroka, a “chefe das esposas”, vai
até Sidi levar um pedido de casamento: “Baroka quer tomar você como sua nova esposa”
(Soyinka, 2012, p. 54). Diante da recusa impensável de Sidi, Sadiku a convida para um
jantar. Na segunda cena, Baroka está em seu quarto com Ailatu, sua esposa mais recente
e, portanto, a mais jovem e “favorita”. Contudo, bastou que a jovem esposa desse um
puxão desajeitado num pelo da axila do chefe para que o irritasse seriamente. Na
sequência, Baroka recebe a notícia da negativa de Sidi e então, inesperadamente
carinhoso, após gabar-se de sua força e façanhas ao longo da vida, revela a Sadiku sua
infertilidade.
Baroka: Eu queria ter Sidi, porque ainda esperava... [...]
Que com uma virgem jovem e ardente, minha força
Diminuída ressurgiria para salvar meu orgulho. [...] (SOYINKA, 2012,
71)
Quando a virilidade acaba, ela acaba. [...]
Estou esgotado e sem forças [...] (SOYINKA, 2012, 72)
À noite, Sidi resolve ir ao Palácio do chefe para zombar de sua fragilidade
irremediável. Naquele momento, Baroka revela, num longo diálogo que caminha para o
desfecho da história, suas reais intenções com Sidi e Ilunjile. Baroka não é totalmente
contra o “progresso” trazido pelo colonizador, como todos pensavam, mas quer usá-lo de
modo fortalecer seu poder. Isso incluía planos de fazer circular as imagens de Sidi em
selos de correspondência que tornariam Ilunjile conhecida em todo o mundo. A falsa
notícia de sua infertilidade foi um pretexto para aproximar e seduzir Sidi. Atentemos para
trechos de sua argumentação.
Baroka: Pensar que antigamente eu achava
Que Sidi era uma delícia para os olhos,
Porém era vaidosa e sua mentalidade
Leve como pluma, sempre entontecida
Por pensamentos triviais. E agora vejo
Que ela é sábia e madura além de seus anos. (SOYINKA, 2012. p.110)
Baroka: [...]
Você consegue imaginar, Sidi?
Dezenas de milhares destas fotografais delicadas
Cada uma difundindo a lenda de Sidi?
[...]
Espero que você não ache uma carga
Pesada demais, ter de carregar o correio do país
Com toda a sua beleza e elegância.
[...]
Já faz um tempo bastante longo
Que os moradores da aldeia contam histórias
Sobre o atraso de Ilunjile, e finalmente
Baroka ficou magoado, já que ele conserva
O bem-estar de seu povo no fundo do coração.
Mas agora, se fizermos isto, será uma prova
De que fazemos mais que qualquer outra aldeia!
[...] (SOYINKA, 2012, p.113 -114)
Após tão eloquente discurso, a cena finaliza informando que a cabeça de Sidi cai
lentamente no ombro do bale.
Tempo de fazer teatro, tempo de repensar a política
O trabalho de Soyinka foi saudado por trazer aos palcos elementos do teatro
tradicional, ou ritual, após intensa vivência e pesquisa com as tradições artísticas da
Nigéria. De acordo com o prefácio de Ubiratan Araújo, O Leão e a Joia é uma “obra
africana” uma vez que “a apresentação em forma de uma peça de teatro permite que o
texto literário tenha o suporte da linguagem cênica da música, da dança, da mímica e dos
tambores” (Soyinka, 2012, p. 8). É nesta mímica que as personagens se transformam
noutras personagens e encenam fatos de outrora. “Após cada sequência de diálogos, é na
performance dos atores que se reflete sobre a temática e se define a continuidade do texto”
(Soyinka, 2012, p. 8).
Dentre as múltiplas possibilidades de discussão e vivências ensejadas com a
construção deste texto, e sua concomitante montagem e apresentação, penso que um dos
elementos centrais trazidos por Soyinka é a reflexão acerca da importância e pertinência
do fazer artístico e teatral. O próprio teatro está em discussão. É importante ressaltar como
ainda hoje é um desafio a construção, circulação e encenação de textos teatrais produzidos
por autores e autoras africanas e afrodescendentes. No início dos anos 1960, Soyinka fazia
um esforço de construir obras que mostrassem aos nigerianos e ao mundo a potência das
artes dramáticas africanas a partir da experiência iorubá.
A importância do teatro para os povos iorubás é evidenciada logo na primeira
parte do texto, na cena em que Sidi organiza a “Dança do viajante perdido” (Soyinka,
2012, p. 38). Trata-se da representação da passagem do fotógrafo pela aldeia. Lakunle é
escolhido para representar o estrangeiro pois “É parecido com ele, sabe falar a língua
dele, pensa do mesmo jeito, e é tão desajeitado como ele [...]” (Soyinka, 2012, p. 40). A
resposta de Lakunle está diretamente relacionada ao lugar em que o teatro realizado pelos
africanos é colocado pelo colonizador:
Lakunle: Não, não, eu não quero. Não gosto dessas bobagens.
É brinquedo de idiotas. Tenho trabalho mais importante... (SOYINKA,
2012, p. 40)
Enquanto se posicionam e desenvolvem a performance com uma articulação que
busca ressaltar quão comum pode ser a arte da representação para aquela comunidade,
são interrompidos pela presença de Baroka.
Baroka: Bem, essa peça de vocês estava muito divertida
Quando eu cheguei. E agora parou tudo.
Lakunle: Dificilmente eu pensaria que o bale
Teria tempo a perder com tolices de crianças.
Baroka: Ahá, senhor Lakunle... Sem essas coisas que você chama
De tolices, a vida de um bale seria muito aborrecida. (SOYINKA, 2012,
p. 46)
O bale mostra intimidade com a prática teatral, e participa da cena, encenando a
si próprio quando prendeu o estrangeiro. Contudo, seria apenas uma diversão para o
chefe? Acaso o bale aceitaria encenar um papel que não correspondesse à sua autoridade?
Naquela representação teatral realizada naquela comunidade iorubá havia “uma crítica
aos costumes” (Soyinka, 2012, p. 8) mas, ao contar com a presença física do bale, acabava
por reproduzir a ordem socialmente estabelecida.
Outra é a situação na qual o bale é representado por dançarinos. Enquanto Lakunle
e Sadiku aguardam o retorno de Sidi em sua visita ao palácio, bailarinos mímicos entram
no palco e representam uma história:
Agora é iniciada a dança da virilidade, que, naturalmente, não é outra
senão a história de Baroka. Executam movimentos muito atléticos.
Mesmo que esteja no auge de sua masculinidade, “Baroka” é
interpretado como uma figura cômica, tratada com uma espécie de
respeito tolerante por suas mulheres. Enquanto ele declina e finalmente
tomba, elas cada vez menos o poupam de suas zombarias e executam
movimentos sedutores para troçar de sua pretensa impotência. [...]
Depois que “Baroka” foi finalmente esmagado ritualmente, a trupe,
inclusive o “estropiado”, retorna a dança inicial repetindo os
movimentos de entrada. (SOYINKA, 2012, p. 122-3)
A partir da leitura de O Leão e a Joia conhecemos aspectos desse teatro iorubano
tradicional que representa fatos, acontecimentos ou histórias que circulam na
comunidade. Soyinka trabalha os elementos cênicos de modo que tudo contribua para
revelar sua perspectiva: o vocabulário, os conceitos, o ritmo de cada diálogo, a expressão
de cada personagem através do corpo, da indumentária, da música e dança. A discussão
de como os corpos desses homens e mulheres iorubanos se colocam em cena, como
podem ser lidos e problematizados, e o choque com concepções inglesas de vestimenta,
postura e comportamento e, finalmente de concepção de mundo, é tão marcante, que a
professora Cássia Lopes denominou o livro de “uma fábula do corpo” (Lopes, 2014).
Na trama, conhecemos as atitudes dos colonizadores através de lembranças
evocadas ou das representações através de mímica. Nenhum homem branco inglês tem
nome ou é uma personagem na trama. Tomaremos ciência do episódio no qual Baroka,
insatisfeito com a construção de uma estrada de atravessaria a comunidade de Ilunjile,
ofereceu ao agrimensor responsável “um maço de notas de libras e punhados de valiosas
nozes de cola” e depois “outro maço de notas e uma porção de galinha amarradas [...]
uma cabra e depois mais dinheiro” (Soyinka, 2012, p. 64-5). A trama busca evidenciar
que a presença física dos ingleses foi limitada em comunidades do interior nigeriano. Por
outro lado, revela qual impactante foram as ideologias colonizadoras e subalternizantes
representadas pelo comportamento e educação coloniais de Lakunle e pela representação
imagética exotizante de Sidi.
Toda a obra O Leão e a Joia é um chamado para repensar as atitudes individuais
e coletivas, especialmente dos nigerianos, frente a descolonização. Seu enredo principal,
bem como os temas que o atravessam, acabam por evidenciar como a prática teatral pode
e deve assumir um compromisso com sua comunidade incentivando a reflexão sobre
acontecimentos de um passado recente que se pretendia romper e superar.
Baroka, que pode atuar reproduzindo seu poder de chefe ou ser assassinado
ritualmente em cena, também se destaca na trama por outra atuação. O bale mente
deliberadamente fazendo circular a falsa notícia de sua própria infertilidade. Para tanto,
realiza uma verdadeira performance para fazer crível sua nova condição. O impacto da
notícia estava relacionado ao fato de que, seguindo as regras de sucessão do poder
tradicional, a falta de virilidade do bale significaria a perda do poder político. Baroka
contava, como aconteceu, com a rápida difusão da notícia gerando atitudes precipitadas.
Essa notícia levou Sidi até o palácio. Mais uma vez, numa atitude dissimulada,
Baroka finge não saber o motivo daquela visita de Sidi aproveitando para seduzi-la. Sidi,
uma personagem que se destacava frente a todos pela determinação e altivez
demonstrados ao longo da trama, dá lugar a uma coadjuvante dos desejos e interesses
políticos do sexagenário Baroka. O bale aproveita-se de certa arrogância da jovem,
propondo difundir aquelas fotografias em selos de correspondência que divulgariam
Ilunjile ao mundo, ao tempo em que reafirmaria seu poder e virilidade esposando a mulher
mais bonita e famosa da comunidade.
Notemos que estas duas cenas, decisivas para o desfecho da história, são
protagonizadas por Baroka. O chefe, que goza da confiança de sua comunidade, se utiliza
de um expediente sórdido, qual seja, a mentira e dissimulação, para alcançar seus
objetivos reafirmando seu poder sobre todos. Nesta sabedoria ardilosa, Baroka encarna
um falso ator, ou seja, alguém que encena e atua a pretexto de dizer a verdade. Isso torna-
se demasiado grave quando sabemos que o chefe deve ser sábio e se guiar pelo bem-estar
da comunidade antes do seu. Entre as contradições que as personagens apresentam,
Lakunle que disse não gostar do teatro, chamando-o de tolices, mostra-se bastante
interessado no teatro dos dançarinos que encenam a morte de Baroka (Soyinka, 2012, p.
123). Já Baroka, que demostrou interesse pelo teatro tradicional, revelou não o respeitar
quando utilizou uma representação para propagar uma mentira que o beneficiaria.
Com a personagem de Baroka, Soyinka quer refletir sobre o perfil, o estilo de vida
e as decisões tomadas por chefes tradicionais. Essas personalidades certamente
ocupariam – e muitos ocuparam – lugares de destaque no estado independente que se
pronunciava. Ao longo da trama, destacam-se elementos como a riqueza do chefe, seu
estilo de vida imponente, e também sua articulação ao tomar decisões que pareciam pouco
pensadas, mas estavam conectadas com seu entendimento sobre o funcionamento daquela
sociedade. As relações que Baroka estabeleceu com os colonizadores, quando ofereceu
propina para que não se instalassem nas terras, foi lida pela população como uma ação
contra o progresso. Mais adiante entendemos que o chefe não era contra o progresso, mas
contra um importante empreendimento colonial que pouco os beneficiaria.
Com O Leão e a Joia temos a oportunidade de refletir sobre os diferentes papeis
que os sujeitos poderiam desempenhar naquele mundo em mudança assim como os
diferentes caminhos possíveis com a independência política da Nigéria. A personagem
Baroka evidencia que não deveríamos fazer uma leitura superficial da atuação dos chefes
tradicionais. Sua longa relação com a chefia e o poder, seu profundo entendimento
daquela sociedade, poderiam resultar em ações que favorecessem sua comunidade. Para
isso, o chefe teria que lidar com as próprias vaidades e com a corrupção, expediente
evidenciado desde a colonização e que, pelo visto, se faria presente e persistente naquele
estado nacional organizado segundo um modelo europeu.
Mesmo com o truque de Baroka para ter Sidi e aproveitar-se de sua fama, o
desfecho da história não é de todo decepcionante. Sidi reconhece que havia algo de
importante e especial no relacionamento com aquele homem parecia conhecer o segredo
dos “próprios deuses” (Soyinka, 2012, p. 132). Soyinka chamava atenção para o fato de
que a construção do estado independente deveria, mesmo com as contradições e fraquezas
de cada um, considerar as articulações e decisões dos próprios nigerianos e nigerianas. A
sabedoria dos chefes, desde que compromissada, poderia fazer a diferença. E a arte, neste
caso o teatro, poderia contribuir para vivenciar experiências e promover reflexões naquele
mundo em mudança.
Referências:
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