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ANTONIO CANDIDO

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Humanitas FFLCH/USP – março 2002

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ISBN 85-7506-050-3

ANTONIO CANDIDO

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São Paulo, 2002

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

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C217 Candido, AntonioO romantismo no Brasil / Antonio Candido.—São Paulo : Humanitas /

FFLCH / SP, 2002.

105p.

ISBN 85-7506-050-3

1. Literatura brasileira (História e Crítica) 2. Romantismo (Literatu-ra) I. Título

CDD 869.909

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Este resumo do Romantismo no Bra-sil foi escrito de dezembro de 1989 a janei-ro de 1990 e remetido em seguida à profes-sora Luciana Stegagno Picchio, da Univer-sidade de Roma “La Sapienza”, comocapítulo de uma obra em quatro volumes,planejada e organizada por ela, com o títulode Storia della civiltà letteraria portoghese,que será finalmente publicada, após muitasvicissitudes, pela Passagli Editora, de Flo-rença. Como o meu texto aparecerá em tra-dução italiana, no 3º volume, achei que po-deria sair em português como opúsculo denossa Faculdade e consultei a respeito aprofessora Luciana Stegagno Picchio, que oliberou para este fim. A ela, os meus agra-decimentos.

Tratando-se de escrito destinado a lei-tores estrangeiros, há nele muita coisa ób-via e desnecessária para os brasileiros. Mascomo os estudantes gostam de resumos,talvez se interessem por este, como se inte-ressaram por outro composto com finalida-de parecida, intitulado Iniciação à literatu-

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ra brasileira e também editado pela Huma-nitas.

São Paulo, julho de 2001Antonio Candido de Mello e Souza

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1.1.1.1.1.

No começo do século XIX o Brasil es-tava numa situação que hoje podemos ver oquanto era contraditória, não apenas emsentido político, mas também cultural. Co-lônia de um país atrasado como Portugal, oestatuto de dependência já atrapalhava osmovimentos de suas classes superiores, quedesejavam cada vez mais ser também diri-gentes. Os homens cultos, os clérigos, osproprietários sentiam mal-estar no mundofechado que a Metrópole criara, não apenasimpedindo o intercâmbio comercial, mastomando a parte do leão nos produtos dariqueza e estabelecendo condições humi-lhantes para os naturais do país. Isso expli-ca certas tentativas de mudança, certos pro-jetos de libertação, como a InconfidênciaMineira de 1789. De outro lado, o povo su-balterno começava a manifestar sinais deinconformismo contra as classes superio-res, o que resultava em ameaça ao Estado

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português, como foi o caso da chamada Re-volta dos Alfaiates na Bahia, em 1798.

A situação da cultura intelectual eraigualmente insatisfatória. Muitos homens desaber e administradores da Metrópole já erambrasileiros, recrutados graças à competên-cia. Apesar de integrados no sistema de do-minação, eles eram pela própria existênciaelemento de contradição, mostrando o para-doxo de uma colônia cerceada nas suas as-pirações, mas que começava a fornecer pe-ças importantes para o funcionamento dacultura e da administração metropolitana, pormeio de seus cientistas, magistrados, ecle-siásticos, escritores, funcionários.

Esses homens tinham estudado naEuropa, porque o governo português sem-pre timbrou, ao contrário do espanhol, emmanter os seus domínios americanos des-providos dos instrumentos de transmissãoe difusão da cultura superior. No Brasil nãohavia universidades, nem tipografias, nemperiódicos. Além da primária, a instruçãose limitava à formação de clérigos e ao nívelque hoje chamamos secundário, as biblio-tecas eram poucas e limitadas aos conven-tos, o teatro era paupérrimo, e muito fraco

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o intercâmbio entre os núcleos povoados dopaís, sendo dificílima a entrada de livros.

No entanto, não apenas os brasileiroscomeçavam a pesar nas letras e ciências,mas a nossa produção local era considerá-vel nas artes plásticas e na música. Portan-to, além das contradições econômicas e so-ciais, havia uma sensível contradiçãocultural. Não espanta que alguns intelec-tuais que viviam na Capitania de MinasGerais se envolvessem na mencionada In-confidência, sendo punidos com cárcere edesterro; e que pouco depois, em 1794, tam-bém outros do Rio de Janeiro se reunissempara debates inconformistas, numa associa-ção de cunho liberal, o que lhes valeu pro-cesso e prisão.

Esse estado de coisas foi alterado porum acontecimento surpreendente: a trans-ferência da Família Real Portuguesa para oBrasil. Ante a iminência da tomada de Lis-boa pelas tropas napoleônicas, o PríncipeRegente D. João escapou em dezembro de1807 com todos os seus, inclusive sua mãe,a Rainha louca D. Maria I, parte da Côrte, ogoverno, milhares de funcionários e solda-dos, tudo sob a proteção de uma esquadra

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de seus aliados ingleses, chegando em ja-neiro de 1808 à Colônia atrasada e isolada,que sofreria modificação profunda devido aessa presença insólita e sob certos aspec-tos salvadora.

De fato, tornando-se sede da Monar-quia o Brasil não apenas teve a sua unidadegarantida, mas começou a viver um proces-so de independência virtual, tornada efeti-va em 1822 depois que o soberano voltou aLisboa por exigência dos seus súditos por-tugueses. Em 1816 o país fora elevado àcategoria de Reino Unido e, em 1821, ao seretirar, o Rei D. João VI (que sucedera àmãe, morta em 1816) deixou como regenteo filho mais velho, herdeiro do trono, acon-selhando-o que caso a independência se tor-nasse inevitável ele próprio a fizesse e go-vernasse o Brasil. Foi o que fez o Príncipe,proclamando a separação e sendo aclama-do Imperador sob o nome de Pedro I, numasolução conciliatória que permitiu às clas-ses dominantes manter a posição e as van-tagens, sem resolver os problemas das clas-ses dominadas, o maior dos quais era aescravidão dos negros, abolida apenas em1889.

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Do ponto de vista da cultura, a presen-ça do governo português no Brasil foi ummarco histórico transformador, a partir doRio de Janeiro, que se tornou definitivamen-te centro do país e foco de irradiação inte-lectual e artística. Depois de 1808, forampermitidas as tipografias e imprimiram-seos primeiros livros, criou-se uma importantebiblioteca pública, foi possível importarobras estrangeiras, abriram-se cursos e fo-ram fundadas algumas escolas superiores.Só então surgiram os primeiros jornais, omais importante dos quais, Correio Brasili-ense, era todavia publicado em Londres,onde residia prudentemente o seu redator.

Nessas condições, o inconformismo eo espírito de exame cresceram por todo olado a partir do Rio de Janeiro, cidade aca-nhada que possuía cerca de cinqüenta milhabitantes à chegada do Príncipe Regente,e não apenas dobrou de imediato a popula-ção, mas se transformou social e cultural-mente ao receber uma côrte européia, como seu protocolo, os seus concertos e fes-tas, o exemplo de maneiras refinadas dadopela nobreza, diplomatas, altos funcioná-rios, intensificando-se a presença da mu-

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lher e começando a ruptura dos costumesarcaicos.

Um traço importante dessa fase foi oadensamento do meio cultural, pela chega-da de muitos homens instruídos, tanto bra-sileiros e portugueses vindos devido à mi-gração da Família Real, quanto estrangeirosde vários países: viajantes, cientistas, ar-tistas, artesãos. Entre os viajantes, algunsdeixaram retratos expressivos do país e con-tribuíram para vê-lo de maneira nova. Se-jam homens de negócio, como os inglesesMawe e Luccock, sejam naturalistas, comoos alemães Spix e Martius e o francêsAuguste de Saint-Hilaire.

A partir de 1816, uma importante mis-são artística contratada na França fundou oque seria depois a Academia de Belas Ar-tes, com os cursos de desenho, pintura,escultura, gravura etc., rompendo a tradi-ção local de fundo barroco e instaurando oNeoclassicismo, que era então uma formapreferencial de modernidade. Pintores comoTaunay e Debret, arquitetos como Grandjeande Montigny, escultores como os IrmãosFerrez deixaram marca profunda na práticaartística acadêmica de todo o nosso século

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XIX. Ao mesmo tempo florescia uma notá-vel atividade musical, com o brasileiro JoséMaurício, o português Marcos Portugal, oaustríaco Segismundo Neukomm, além denumerosos compositores de música ligei-ra, como José Joaquim da Câmara.

Outro traço importante desse períodofoi o novo sentimento de civismo, atualiza-ção do apreço ilustrado pelo bom governo.Os intelectuais brasileiros do fim do séculoXVIII pensavam sobretudo em louvar a açãodos governantes esclarecidos, vinda de cimae recebida como dádiva. No começo do sé-culo XIX, e sobretudo depois da Indepen-dência em 1822, esse ponto de vista foisubstituído pelo de participação política docidadão, que deveria tomar a iniciativa deestabelecer o bom governo, de baixo paracima, a fim de promover o império da razão.Essa transição ideológica corresponde aodesejo crescente de autonomia, que termi-nou pela separação de Portugal e se expri-miu na ação e nos escritos de intelectuais,que falavam em promover as reformas ne-cessárias para civilizar e modernizar o paíssegundo as idéias do tempo: liberdade decomércio e de pensamento, representação

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nacional, instrução, fim do regime escravistaetc.

Nesse sentido atuaram as associaçõesde tipo mais ou menos maçônico e a pró-pria Maçonaria, influindo em movimentoscomo os que ocorreram em Pernambuco,onde eclodiu, em 1817, uma rebelião auto-nomista e onde mais tarde, já proclamada aIndependência, outra rebelião quis separardo império a região Nordeste, sob regimerepublicano. A ambos os movimentos se li-garam intelectuais, como o poeta Nativida-de Saldanha e o combativo jornalista liberalFrei Caneca.

Mas o civismo dos intelectuais teverepresentantes que não chegaram a tais ex-tremos, haja vista Hipólito da Costa (1774-1823), talvez o maior jornalista brasileirode todos os tempos e o mais lúcido repre-sentante do espírito ilustrado no mundoluso-brasileiro daquela fase. Do seu redutode Londres, a salvo de repressões e censu-ras, ele redigiu com admirável espírito decoerência o Correio Brasiliense (1808-22),que influiu como escola de análise políticae pensamento moderno, de acentuado cu-nho liberal. Reivindicando o direito de críti-

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ca, exerceu uma espécie de fiscalização lúci-da em relação aos atos do governo e preconi-zou as medidas necessárias ao nossodesenvolvimento, inclusive o fim da escravi-dão e o deslocamento da capital para o inte-rior, a fim de expandir a civilização. Vendode maneira correta que a mudança da Cortepara o Rio de Janeiro estava dando ao Brasilo lugar principal na Monarquia, foi favorávelà união com Portugal até que os aconteci-mentos mostrassem a necessidade da sepa-ração, que adotou como conseqüência lógicada sua campanha. À história da literatura eleinteressa não apenas como representante deum momento no qual se esperavam do inte-lectual nítidas definições ideológicas, masdevido à qualidade do seu estilo de admirá-vel precisão e sobriedade, dotado de umasolidez que o libertou dos defeitos de ênfasee afetação, tão correntes na prosa brasileira.

O homem de maior envergadura men-tal desse tempo foi José Bonifácio de An-drada e Silva (1763-1838). Naturalista degrande valor, voltou ao Brasil em 1819 de-pois de uma brilhante carreira científica naEuropa, a tempo de desempenhar papel de-cisivo no movimento da Independência, da

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qual o chamaram Patriarca. Como ministro,foi influente na organização do Império, masse desaveio logo com o Imperador e foi exi-lado para a França. Apesar de contraditórioem suas atitudes, assumiu posições libe-rais e clarividentes com relação a proble-mas tão importantes quanto a escravidão,sobre a qual escreveu um estudo de altovalor. Poeta de segunda ordem, foi todaviasensível a certos prenúncios de transforma-ção literária, apesar de nitidamente neoclás-sico. Interessou-se por Byron e Scott, tra-duziu Ossian e deixou alguns poemas comlaivos de pré-romantismo, sobretudo pelosentimento vivo dos lugares. Essa posiçãomista era freqüente no tempo, como era tam-bém freqüente a qualidade secundária dasobras.

2.2.2.2.2.Com efeito, do ponto de vista da histó-

ria literária esse é um momento de produ-ção geralmente medíocre, caracterizado pelamistura de Arcadismo sobrevivente com tra-ços que no futuro seriam considerados pre-cursores. Inovação formal, praticamente

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nenhuma. Todos continuavam a fazer odes,cantos épicos, sonetos, elegias, em versifi-cação tradicional e quase sempre com asalusões mitológicas de preceito. Mas aqui eali começam a aparecer algumas mudançasdiscretas nos temas e no tom. A melanco-lia, por exemplo, vai sendo cada vez maisassociada à noite e à lua, ao salgueiro e àsaudade, sobretudo ao pormenor dos luga-res. Modificação paralela ocorre no trata-mento da natureza, pois a tradição nativistase liga então ao novo sentimento de orgu-lho nacional, que prenuncia o patriotismo.É preciso destacar outro traço, cheio deconseqüências: o advento de uma religiosi-dade que se distancia da devoção conven-cional para apresentar-se como experiênciaafetiva, que confere certa nobreza espirituale foi sendo considerada cada vez mais posi-ção moderna, oposta ao paganismo orna-mental da tradição.

Os primeiros românticos brasileirosconsideravam como um dos seus mestresAntônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), que de fato consagrou a segundaparte de sua vida a traduzir os Salmos, deDavi, pondo assim na linha de frente a poe-

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sia religiosa, seguido por Frei Francisco deSão Carlos e o árcade Elói Ottoni, tradutordos Provérbios e do Livro de Jó.

Na mocidade, sendo estudante em Por-tugal, Sousa Caldas manifestou idéias filo-sóficas e deístas, escreveu uma ode em defe-sa das teorias de Rousseau e foi condenadoe preso pela Inquisição. A seguir retornouà religião e ordenou-se padre em Roma,abandonando a poesia profana e tornando-se orador sacro apreciado. Mas continuoususpeito às autoridades, pois conservou asposições liberais, como podemos ver numaobra que escreveu depois de ter voltado parao Brasil, em 1808: as Cartas de Abdir a Ir-zerumo, cerca de cinqüenta pequenos en-saios, dos quais restaram infelizmente ape-nas cinco, escritos numa linguagem discretae concisa. Eles são um momento importan-te do nosso liberalismo ilustrado, pela de-fesa da tolerância, da liberdade de impren-sa e da compatibilidade entre a religião e asidéias políticas modernas.

Mas hoje Sousa Caldas interessa so-bretudo por um saboroso texto em prosa everso misturados: Carta dirigida ao meuamigo João de Deus Pires Ferreira, em que

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lhe descrevo a minha viagem por mar atéGênova (1790), no qual com muita graça eleveza faz uma alegre sátira da herança clás-sica, critica a educação baseada na Anti-güidade e deixa clara a simpatia pela Revo-lução Francesa. Publicada com as suasobras poéticas em 1820-1821, a Carta exer-ceu influência nos primeiros românticos,e vista de hoje pode ser considerada ummarco.

Frei Francisco de São Carlos (1763-1829) é exemplo interessante da misturade patriotismo e religião, que seria tão rele-vante no Romantismo. A sua longa e enfa-donha epopéia Assunção (1819) descreveo país com exaltada ternura e o Paraíso comojardim onde se encontra a nossa paisagem,com árvores e frutas tropicais, – da mesmamaneira por que o pintor Padre Jesuino doMonte Carmelo debuxava anjos mulatos nosseus painéis.

Traços pré-românticos ocorrem emDomingos Borges de Barros (1779-1855),cuja poesia, embora ainda presa ao passa-do, está cheia de melancolia transfundidade sentimento da natureza, com muito luar,salgueiros e um corte meditativo ligado ao

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oceano. Mas muito mais tocado pelo espíri-to novo foi Frei Francisco do Monte Alverne(1784-1857), professor de filosofia que in-fluenciou a primeira geração romântica peloseu ecletismo espiritualista e sobretudo pelaeloqüência dos seus sermões, cheios depatriotismo e de um sentimentalismo quetransforma a religião em experiência pes-soal. A marca de Chateaubriand é visível nasua linguagem poética amplamente modu-lada e na própria concepção lírica do Cris-tianismo.

Um elemento importante nos anos de1820 e 1830 foi o desejo de autonomia lite-rária, tornado mais vivo depois da Indepen-dência. Então, o Romantismo apareceu aospoucos como caminho favorável à expres-são própria da nação recém-fundada, poisfornecia concepções e modelos que permi-tiam afirmar o particularismo, e portanto aidentidade, em oposição à Metrópole, iden-tificada com a tradição clássica. Assim sur-giu algo novo: a noção de que no Brasilhavia uma produção literária com caracte-rísticas próprias, que agora seria definida edescrita como justificativa da reivindicaçãode autonomia espiritual.

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O primeiro a dar forma a esta aspira-ção latente foi Ferdinand Denis (1798-1890), francês que viveu aqui alguns anose depois se ocupou das nossas coisas pelavida afora. No Résumé de l’histoire littérairedu Portugal suivi du résumé de l’histoirelittéraire du Brésil (1826) ele fundou a teo-ria e a história da nossa literatura, baseadono princípio, então moderno, que um paíscom fisionomia geográfica, étnica, social ehistórica definida deveria necessariamenteter a sua literatura peculiar, porque esta serelaciona com a natureza e a sociedade decada lugar. Os brasileiros deveriam portan-to concentrar-se na descrição da sua natu-reza e costumes, dando realce ao índio, ohabitante primitivo e por isso mais autênti-co, segundo Denis. Como modelos no pas-sado, indicava os poemas de Basílio daGama (1769) e Santa Rita Durão (1781),por terem assunto ligado ao indígenas; quan-to à prática no presente, ele próprio deu oexemplo no livro Scènes de la nature sousles tropiques (1824), no qual inseriu o seuconto indianista “Les Machakalis”, primei-ra produção de um gênero que seria consi-derado, a partir da sua doutrinação, o maisnacional e o mais legítimo. Por intermédio

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de Denis, e de outros franceses que tam-bém viveram aqui, os brasileiros puderamsentir como o particularismo, inclusive soba forma do pitoresco, se ajustava ao desejode diferenciação e busca de identidade na-cional.

O pequeno livro de Denis parece hojeinsignificante, mas foi sem dúvida o que tevemaiores conseqüências em toda a nossa crí-tica, porque foi o primeiro a conceber a lite-ratura brasileira como algo diferenciado e aindicar quais deveriam ser os rumos do fu-turo. Até o fim do Romantismo, a crítica sebaseou nas suas idéias e não fez mais doque glosá-las, parecendo ter como pressu-posto um de seus conceitos fundamentais:“A América deve ser livre na sua poesiacomo no seu governo”.

Entre a publicação do Résumé e a dataoficial de início do Romantismo brasileiro,1836, estende-se uma fase durante a qualforam amadurecendo entre os intelectuaisos tópicos que ele pôs em discussão ou su-geriu: consciência de autonomia: verifica-ção do passado literário; reconhecimento daposição central dos temas nativistas; incli-nação para o lado das novas tendências es-

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téticas, que não nomeia, mas eram as doRomantismo.

Denis e Almeida Garrett (na introdu-ção ao Parnaso lusitano, 1826) lamentavamque os brasileiros do passado não tivessemabandonado a mitologia, os gêneros clássi-cos e as convenções pastorais, substituin-do-os pelo aproveitamento das característi-cas locais. Mas os brasileiros que os segui-ram de imediato parecem ter posto emsegundo plano as distinções estéticas, poisestavam preocupados sobretudo em provara existência material de uma produção an-terior que justificasse a reivindicação de au-tonomia espiritual, considerada decorrên-cia necessária da que ocorrera no nívelpolítico. Só numa segunda etapa associa-ram a isso a idéia de Romantismo, que noBrasil se confundiu em grande parte comnacionalismo.

De acordo com essa ordem de idéias, atarefa inicial consistiria em levantar o pas-sado literário e entroncá-lo no presente, oque foi feito a partir de uma coleção de tex-tos poéticos devida ao veterano de estritaobediência neoclássica Januário da CunhaBarbosa (1706-1846), padre que militara no

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movimento da Independência e era famosoorador sacro. O seu péssimo poemeto épicoNiterói (1819) pode servir de exemplo dautilização da mitologia clássica para expri-mir o patriotismo nascente. De 1829 a 1831ele publicou o Parnaso brasileiro em fascí-culos, que formaram dois pequenos volu-mes, reunindo poemas desde o passado co-lonial até os seus dias. É uma obra semordem nem método, mas que teve o méritode colecionar pela primeira vez amostras daprodução literária brasileira, inclusive iné-ditos (como os versos de Gregório de Ma-tos), e assim sugerir a existência de umcorpus. Além disso foi a primeira antolo-gia, e as antologias se sucederiam duranteanos como um dos meios de revelar textose ir formando o cânon literário do Brasil.

Exemplo da indeterminação estéticadessa fase é a atividade contraditória e mes-mo confusa de um grupo de jovens estu-dantes da Faculdade de Direito de São Paulo,que publicou em 1833 seis números daRevista da Sociedade Filomática, onde po-demos ver a curiosa mistura de atração erepulsa pelo Romantismo, que começava aser conhecido por meio dos autores portu-

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gueses e franceses. O propósito dessesmoços era afirmar a identidade e autono-mia da literatura brasileira, inclusive reco-mendando o abandono dos clássicos e dasujeição aos autores portugueses; mas aomesmo tempo temiam na prática as novastendências e preconizavam obediência àsvelhas normas.

3.3.3.3.3.Dentro da vacilante consciência críti-

ca em formação, faltava mobilizar duasidéias de Ferdinand Denis: quanto aos te-mas, privilegiar segundo um espírito novoo tratamento literário da natureza brasileirae do índio, que como temas secundários vi-nham do século XVIII; quanto à concepçãoestética, o reconhecimento de que o Roman-tismo era a grande atualidade, sendo maisadequado às novas aspirações.

Nesse processo foi decisiva a conver-são romântica de um grupo de jovens brasi-leiros residentes em Paris mais ou menosentre 1832 e 1838. Eles foram bem acolhi-dos por intelectuais e artistas franceses quetinham vivido no Brasil e faziam parte do

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Institut Historique, onde puderam falar so-bre a pátria. Em 1836 publicaram os doisúnicos números de uma revista considera-da marco fundador do Romantismo brasi-leiro, embora a absoluta maioria da matériafosse de Astronomia, Química, Economia...Mas o título indígena, Niterói, equivalia aum programa nativista, e no primeiro nú-mero Domingos José Gonçalves de Maga-lhães (1811-82) publicou, retomandoDenis, o “Ensaio sobre a história da litera-tura brasileira”, no qual traçava o programarenovador, completado pelo do prefácio dolivro que publicou no mesmo ano, Suspirospoéticos e saudades, considerado pelos con-temporâneos o ponto de partida da trans-formação literária e iniciador da literaturapropriamente brasileira.

Magalhães foi um caso interessante derenovador sem força renovadora. O seumedíocre livro de estréia, Poesias (1832), érotineiramente neoclássico, mas tem o to-que nacionalista do tempo: patriotismo ace-so e celebração da liberdade política, banha-dos na embriaguês da cidadania recente.Quando o publicou, Magalhães já devia es-tar querendo alguma coisa diferente, tanto

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assim que ao viajar para a Europa no anoseguinte escreveu uma “Carta”, decalcadana de Sousa Caldas de 1790, na qual, aexemplo deste, rejeita o uso da mitologia ediz: “outro deve ser o maravilhoso da poe-sia moderna”.

Ao receber na França o impacto das no-vas tendências não perdeu a dicção neoclás-sica, mas incorporou concepções e técnicasque foram reveladoras no Brasil: sentimen-to religioso como garantia da alta funçãomoral da poesia; imitação direta da nature-za, não dos textos clássicos, a fim de podermanifestar a originalidade do gênio; rejeiçãodas formas fixas a favor de estrofes livremen-te organizadas, em poemas sem molde pré-vio, para assegurar liberdade ao discurso.Como se vê, um programa de cunho român-tico, devendo ser destacado o último tópico,cheio de conseqüências que foram muitoalém das suas próprias realizações.

O fio condutor da concepção de Maga-lhães aparece no citado ensaio de 1836, eera o que se pode denominar “teoria dasduas literaturas”, de Frederico Schlegel, naqual ele se apóia sem mencionar a fonte, domesmo modo que seu amigo Pereira da Sil-

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va noutro ensaio, publicado no número 2da Niterói: “Estudos sobre a literatura”.

Segundo essa teoria, as nações de civi-lização ocidental têm duas literaturas quecoexistem: uma, clássica, foi elaborada arti-ficialmente a partir da tradição greco-latinae não se coadunava com a sensibilidadeoriunda do Cristianismo; a outra, românti-ca, crescera naturalmente a partir do gêniode cada nação, e aparece em autores comoDante, Shakespeare, Calderón. O espíritomoderno consistiria em romper a coexistên-cia e promover o triunfo da literatura nacio-nal, que no caso brasileiro deveria levar emconta a capacidade poética do índio. A poe-sia primitiva deste poderia exercer uma açãoregeneradora equivalente à que os cantos deOssian exerceram sobre as literaturas daEuropa, sugere Magalhães, que todavia nãoabordou nenhum tema indígena nos Suspi-ros poéticos (e mais tarde suprimiu o para-lelo quando recolheu o ensaio em livro). Alémdisso, o grupo da Niterói preconizou a filo-sofia espiritualista e adotou o ecletismo emmoda na França, certo de que assim estavasendo coerente com o Cristianismo, consi-derado essencial para a reforma literária.

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Esse grupo foi moderado no desejo dereforma, e isso ajudou a recepção desta noambiente intelectual brasileiro, pobre e ain-da preso ao Neoclassicismo banalizado. Ocomedimento de Magalhães contribuiu paradar ao nosso Romantismo inicial um ar derespeitabilidade, que tranqüilizou a culturaoficial e evitou choques, operando uma tran-sição branda e quase sempre trivial, na qualpareciam importar principalmente o desejode autonomia e o sentimento patriótico, bem-vindo por todos. Por isso é possível dizer queesse Romantismo inicial foi sobretudoprogramático e conviveu bem com a tradi-ção. Tanto assim que os seus integrantes ain-da escreviam tragédias de corte tradicional eepopéias, como foi o caso d’A confederaçãodos Tamoios, de Magalhães, poema em dezcantos sobre uma rebelião de índios contrao colonizador, no século XVI. Publicado em1856 depois de longo preparo, ele fora con-cebido para ser a grande demonstração devalidade nacional do tema indígena, mas re-sultou uma obra desinteressante e pesada,da qual raros trechos resistiram ao tempo.

Ao lado de Magalhães ficou sempre oseu amigo e admirador Manuel de Araujo

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Porto-Alegre (1806-79), que tendo chega-do antes à França pôde conviver lá comAlmeida Garrett, exilado, e receber dele su-gestões renovadoras. O seu poema “Con-tornos de Nápoles”, publicado no número2 da Niterói junto com impressões de via-gem, parece mais próximo do novo espíritoque os de Magalhães. Outros poemas dele,incluídos depois no livro Brasilianas(1863), têm uma intimidade pitoresca comos costumes e a paisagem do interior doBrasil, e isso os situa mais perto do progra-ma de nacionalismo estético, já que o agu-do senso dos lugares, característico do Ro-mantismo, aparece nos Suspiros poéticoscom referência a países da Europa. Porto-Alegre foi discípulo do pintor Debret naAcademia de Belas Artes do Rio de Janei-ro, e talvez tenha aprendido com ele a fixaro traço expressivo dos tipos humanos e dosambientes. Pintor razoavelmente talentosode corte acadêmico, fez apesar disso algunsquadros pouco conhecidos que, pela con-cepção fantasmagórica e pela liberdade dotraço, fazem lembrar os de William Blake.

Tudo somado, a sua vida literária pare-ce pouco valiosa, inclusive porque o grande

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projeto que o ocupou durante mais de vinteanos foi a epopéia em quarenta cantos Co-lombo (1866), medíocre e cansativamenteprolixa. O objetivo era mais ambicioso queos dos contemporâneos que fizeram poemasépicos, – sobre a Independência (Teixeira eSousa) ou sobre o índio (Magalhães, Gon-çalves Dias). Ele quis abranger toda a Amé-rica, sem esquecer a Europa no prólogo. Masnão foi além de uma rotina sem surpresas.

Esses dois escritores e diversos outrosdo primeiro Romantismo estiveram ligadosa uma importante associação erudita fun-dada em 1838 pelo General Cunha Matos eJanuário da Cunha Barbosa, o InstitutoHistórico, que em 1839 começou a publi-car uma revista ainda existente. O Institutocontribuiu para dar cunho respeitável à re-novação literária, inclusive porque a partirdos anos de 1840 era freqüentado assidua-mente pelo Imperador Pedro II, que patro-cinou generosamente atividades intelectuaise, sendo ele próprio homem culto, deu-lheuma espécie de legitimidade. Isso foi posi-tivo de um lado, à vista da pobreza do meio,que tornava bem-vindo qualquer apoio; masfoi negativo pelo conformismo palaciano que

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favoreceu, tolhendo eventuais rebeldias, quesó mais tarde se fariam sentir como corren-te alternativa, em outros ambientes.

O primeiro Romantismo, marcado pelocompromisso e os meios-tons, teve entreoutros méritos o de fundar a crítica literá-ria no Brasil, tomando como ponto de refe-rência a discussão do problema da autono-mia. Havia de fato uma literatura brasileira?Seria ela distinta da portuguesa? A polêmi-ca e as hesitações prolongaram-se até tar-de, havendo alguns que afirmavam a impos-sibilidade de haver duas literaturas dentroda mesma língua; outros adotavam critériopuramente histórico, ou mesmo político,afirmando que a partir da Independência aliteratura praticada no Brasil se tornou dis-tinta da portuguesa; os mais radicais, queacabaram prevalecendo, eram no caso osesteticamente moderados românticos ini-ciais, que achavam que no Brasil semprehouvera uma literatura própria, emboramenos nitidamente caracterizada antes darenovação que propuseram.

Isso gerou como pressuposto a neces-sidade de saber o que era essa literatura ede reunir os seus produtos, problema qua-

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se patético, que preocupou toda uma gera-ção. Os ensaios da Niterói evidenciam queos seus jovens autores não sabiam direitoquais eram os escritores do passado, e Ma-galhães conta como andou fazendo buscasem bibliotecas da Itália e da França, atrásde textos que não conseguia localizar. A in-formação que tinham se limitava ao que foraregistrado por Denis, Garrett e Januário,compreendendo os poetas da segunda me-tade do século XVIII, alguns posteriores econtemporâneos mais velhos. Em geral, pri-vilegiavam Basílio da Gama e Durão, devi-do ao tema indianista; em seguida, CláudioManuel, Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Sil-va Alvarenga, apesar do arsenal clássico.Esse era o ponto de partida, antes do qualsabiam da existência de alguns cronistasque não conheciam, além de imaginarem aexistência de registros que teriam preser-vado a desejada poesia original dos índios.Como predecessores imediatos e inspirado-res, destacavam Sousa Caldas, São Carlose Monte Alverne, devido ao tema religioso.E como se tratava de engordar a lista, su-pervalorizavam poetas insignificantes, al-guns dos quais ainda vivos, como o próprio

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Januário, Vilela Barbosa, Gualberto dosReis. Mas não sentiram a importância deGregório de Matos, revelado em amostrasinsuficientes no Parnaso de Januário. Essedesejo comovente de provar a existência deum corpus literário próprio levou os primei-ros românticos a de certo modo inventar aliteratura brasileira, tentando um primeirolevantamento, que a marcha da investiga-ção e o estabelecimento de critérios críti-cos foram ampliando.

O trabalho pioneiro de Januário se pro-longou praticamente até a História da lite-ratura brasileira (1888), de Sílvio Romero,quando ficou nítida a existência de uma tra-dição ponderável, sobretudo porque já po-dia incluir os autores do século XIX. Notempo do Romantismo esse trabalho foi re-presentado principalmente pelos resumoshistóricos, as antologias, as biografias, quetraçavam a sucessão das obras, coleciona-vam textos e narravam com toque romanes-co a vida dos autores. As antologias maisimportantes foram o Parnaso brasileiro (2volumes, 1843-5), de João Manuel Pereirada Silva (1817-97), que já encontramos aofalar da Niterói; e o Florilégio da poesia bra-

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sileira (3 volumes, 1850-3), de FranciscoAdolfo de Varnhagen. Ambas são precedi-das de introduções críticas e históricas, aexemplo do “Bosquejo da história da poe-sia brasileira”, de Joaquim Noberto (intro-dução ao seu livro Modulações poéticas,1841), o primeiro resumo da nossa litera-tura feito por brasileiro.

Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-91), discípulo fervoroso de Magalhães, foipéssimo poeta, péssimo narrador, crítico ra-zoável e bom pesquisador, que passou a vidarealizando as tarefas críticas propostas ousugeridas pelo movimento de renovação, ini-ciado por Denis e acelerado pelo grupo daNiterói. A partir dos anos de 1840 publi-cou artigos e criou um tipo de edição de tex-tos do passado e do presente, acompanha-dos de materiais informativos de valia,segundo o critério em voga de correlacionarvida e obra. Algumas das edições que co-meçou a preparar foram terminadas poroutros, já no século XX.

Norberto participou de um trabalho derecuperação histórica bem característico doesforço reconstrutivo dessas gerações: a daInconfidência Mineira de 1789, que ficara

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na sombra devido ao cunho republicano eao fato de seus figurantes terem sido con-denados como réus de lesa-majestade pelogoverno da avó do primeiro Imperador, bi-savó do segundo. Recuperar a Inconfidên-cia foi algo que se somou à valorização doíndio, como expressão do desejo de afirmara identidade do Brasil em relação ao coloni-zador, tanto no terreno político quanto lite-rário, pois dela haviam participado intelec-tuais e poetas. As obras destes foram entãoeditadas ou reeditadas, e sobre eles surgi-ram, a partir do decênio de 1840, roman-ces, poemas, peças de teatro. Um fecho des-se movimento foi a História da ConjuraçãoMineira (1873), de Norberto, significativa,aliás, da relativa ambigüidade com que al-guns abordaram o tema: se por um ladoexaltavam o sentimento de liberdade dosinconfidentes, lamentavam por outro o ca-ráter regional do seu movimento, que con-trariava o desejo de unidade, ao prever aseparação de apenas uma zona do país.

Era este, com muita firmeza, o pontode vista de Francisco Adolfo de Varnhagen(1816-78), o verdadeiro fundador da histo-riografia brasileira. Até ele, tinha havido

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sobretudo crônica, isto é, relato de aconte-cimentos sem diretriz interpretativa, e asprimeiras obras de história propriamentedita foram devidas a estrangeiros, como ofamoso poeta inglês Robert Southey. Varnha-gen não apenas escreveu monografias ba-seadas na mais rigorosa investigação docu-mentária; não apenas localizou e publicoutextos inéditos do passado; mas é autor daHistória geral do Brasil (2 volumes, 1854-7), na qual descreve e analisa o processopelo qual o país se tornou uma nação. Des-te modo, fez no domínio da história, commuito mais competência e amplitude, o queos estudiosos de literatura procuravam fa-zer do seu lado.

Ao contrário deles, Varnhagen tinhauma concepção anti-romântica do índio, queapresentou como selvagem cruel, desprovi-do de instituições e crenças humanizadoras,em relação ao qual se justificavam os méto-dos do colonizador. O seu ponto de vistaacentuadamente conservador discrepava,ainda, por justificar sempre a política me-tropolitana, divergindo, por isso, do fortenativismo do tempo. Tanto assim, queminimizou, ou mesmo desqualificou os

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movimentos de inconformismo e rebeldia,tão caros à sensibilidade dos românticosliberais.

Varnhagen contribuiu também para osestudos literários (já vimos a importânciado seu Florilégio), inclusive publicando tex-tos medievais portugueses e textos brasi-leiros do período colonial. A sua obra, to-mada no conjunto, exprime a ambiçãoconstrutiva dessas gerações, que definiramo que eram a nacionalidade e a literaturabrasileira, procurando não apenas estabe-lecer o cânon desta, mas interpretá-la se-gundo o espírito da época, que em críticapreconizava o tratamento biográfico e a de-finição do gênio nacional por meio da cor-relação com a natureza e a sociedade.

O escrito mais lúcido da nossa críticadaquele tempo é o ensaio “Da nacionalida-de da literatura brasileira”, publicado em1843 na revista Minerva Brasiliense por umjovem que morreu em 1847 na quadra dosvinte anos: Santiago Nunes Ribeiro. Eleretoma os argumentos correntes, mas os de-senvolve com mais inteligência que os pre-decessores e sucessores. Aplicando logica-mente o pressuposto que as literaturas são

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relativas ao meio e à época, afirma a auto-nomia da brasileira desde as origens e mos-tra que não há razão para lamentar, comose costumava fazer, que os árcades tenhamseguido a norma neoclássica, pois era a queexistia como orientação normal no tempo.A crítica nascida com o Romantismo, dizele, não podia ser dogmática nem se basearem padrões fixos; devia analisar a correla-ção entre a obra e a época para compreen-der o seu significado. Com isso Santiago nãoapenas avaliou com maior pertinência a pro-dução literária do Brasil, mas estabeleceu aprimeira divisão satisfatória de suas etapas.

A citada Minerva Brasiliense (1843-5)foi a primeira revista que manteve nível ele-vado e durou o bastante para movimentaras idéias literárias, em parte devido à orien-tação que lhe deu Santiago Nunes Ribeiro.Ao lado do Instituto Histórico e sua revis-ta, ela exprime certo amadurecimento davida intelectual no Rio de Janeiro.

4.4.4.4.4.Portanto, o Romantismo brasileiro foi

inicialmente (e continuou sendo em parte

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até o fim) sobretudo nacionalismo. E na-cionalismo foi antes de mais nada escreversobre coisas locais. Daí a importância danarrativa ficcional em prosa, maneira maisacessível e atual de apresentar a realidade,oferecendo ao leitor maior dose de verossi-milhança e, com isso, aproximando o textoda sua experiência pessoal.

O romance começou a ter voga duran-te os anos de 1830 por meio de traduções.Eram sobretudo narrativas de tipo folheti-nesco, carregadas de episódios melodramá-ticos, que se refletiram nas primeiras tenta-tivas feitas aqui, sob a forma de contos enovelas insignificantes. Considera-se oficial-mente como sendo o primeiro romancistapropriamente dito Antônio Gonçalves Tei-xeira e Sousa (1812-61), autor também doprimeiro poema longo de tema indianista,por sinal muito ruim: “Três dias de um noi-vado” (1844). Um ano antes tinha publica-do O filho do pescador, e em seguida publi-cou mais cinco romances até 1856. Escritorde terceira ordem, apostou na peripécia ena mais desabalada complicação, ao mododos livros de aventura e mistério que eramentão devorados pelo público, tanto aqui

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(onde ele era bem pequeno) quanto na Eu-ropa. No entanto, não chegou à popularida-de, e dos seus livros só dois tiveram segun-da edição até hoje. Esses livros atingem porvezes as raias do grandioso pela fúria deurdir e complicar acontecimentos, poden-do-se dizer de alguns deles, como A provi-dência (1854), o que disse certo crítico nor-te-americano dos de um autor do seu país:“São tão ruins, mas tão ruins, que chegamquase a ser bons”...

O que mais atraiu o leitor daquele tem-po em matéria de romance parece ter sido ode costumes, no qual ele encontrava a vidade todo o dia, sem prejuízo dos lances ro-manescos que eram então indispensáveis.O brasileiro parecia gostar de ver descritosos lugares, os hábitos, o tipo de gente cujarealidade podia aferir, e que por isso lhedavam a sensação alentadora de que o seupaís podia ser promovido à esfera atraenteda arte literária. A voga do nosso romancecomeça de fato com uma despretensiosanarrativa de costumes do Rio de Janeiro, Amoreninha (1844), o primeiro grande êxitode público na literatura brasileira, que atéhoje é reeditado, lido e estimado.

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Seu autor, Joaquim Manuel de Macedo(1820-82), estava terminando o curso deMedicina e teve uma longa carreira de ro-mancista, dramaturgo, cronista e até poeta.Sem ter escrito nenhuma obra de real valor,compôs algumas que são legíveis, num es-tilo agradável quando superava os rompan-tes melodramáticos em moda. Historica-mente, interessa por ter funcionado comomodelo do que era ser escritor, ao mostrara seus contemporâneos que a literatura po-dia ser caminho para a popularidade.

A sua novelística exprime bem a esté-tica romântica, pela mistura de realismoespontâneo e lances folhetinescos, numaprosa que também transita da simplicidadeà afetação. Certos romances dele, como Omoço loiro (1845), combinam o bom sensoda observação dos costumes às mais des-vairadas complicações do arsenal romanes-co, algumas inspiradas por autores comoEugène Sue. A veia humorística e a bonomiaconciliadora não impediram Macedo de es-crever ficções de grave conteúdo social,como as que consagrou ao problema da es-cravidão: As vítimas algozes (1869). Nemapagaram os traços de melodrama tétrico,

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presentes de maneira flagrante no poemanarrativo “A nebulosa” (1857), verdadeiroparadigma do Romantismo tenebroso.

O aparecimento do romance, gêneroadaptado à sensibilidade moderna, foi umverdadeiro acontecimento, pelas perspecti-vas que abriu. Igualmente importante foi arevelação de Antônio Gonçalves Dias (1823-64), o primeiro grande talento do Roman-tismo brasileiro, que parece finalmente con-figurar-se com ele, para além dos programase das intenções. O essencial da sua obrapoética está contido em três livros: Primei-ros cantos (1847), Segundos cantos (1848),Últimos cantos (1851), revistos e reunidosnum volume em 1857. Eles foram conside-rados pelos contemporâneos como a verda-deira pedra fundamental da poesia brasilei-ra moderna, sobretudo porque traziamfinalmente um conjunto de boa qualidadesobre o tema do índio, que até então haviasuscitado poucas e em geral medíocres pro-duções.

A obra de Gonçalves Dias foi no Brasila primeira de elevada qualidade depois dosárcades do século XVIII, como concepção ecomo escrita. A cadência melodiosa, o dis-

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cernimento dos valores da palavra e a cor-reção da linguagem formavam uma base,rara naquela altura, para a calorosa vibra-ção e o sentimento plástico do mundo queanimam os seus versos. O tempo desgas-tou a maior parte de sua obra, como a detodos os contemporâneos, e o que dela res-tou é hoje relativamente pouco. Pouco, masbastante para manter a sua posição, devidasobretudo aos poemas indianistas, os úni-cos realmente belos dessa tendência, nãoporque correspondam etnograficamente aoque o índio foi, mas, ao contrário, porqueconstruíram dele uma imagem arbitrária,que permitiu recolher no particular da rea-lidade brasileira a força dos sentimentos edas emoções comuns a todos os homens. Osopro poético e a deformação cavalheirescacom que tratou os seus selvagens os con-servaram vivos, realizando o seu desejo deredefinir a tradição da literatura ocidentalpor meio de novas imagens, referidas a umagente diversa. No belo prólogo em verso dopoema “Os Timbiras” (1857) (que plane-jou como culminação de sua obra, mas nãoalcança no conjunto o desejado nível), elesubstitue a coroa clássica de louros por

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outra, feita com as flores brancas da acáciae as amarelas dos sassafrás, o que pode sertomado como metáfora iluminadora da ten-tativa indianista.

Apesar de alguns poemas bons de ou-tro tipo, como a singela “Canção do exílio” euns poucos entre os que chamou “Hinos”,foi portanto no tema indianista que produ-ziu os melhores versos, como “Marabá”, “Ocanto do Piaga”, “O leito de folhas verdes” esobretudo “I-Juca Pirama”. Este é um poe-meto heróico sobre o prisioneiro de uma tri-bo inimiga que, contrariando o heroísmo in-flexível do índio convencional, se humilhapara ter a vida salva, a fim de poder conti-nuar guiando o pai cego. Mas este o maldizpor isso, e ele acaba lutando com denodo paratornar-se digno do sacrifício ritual. O movi-mento do poema é expresso pela variação demetros e ritmos em diferentes combinaçõesestróficas, tudo admiravelmente adequado àmodulação das emoções. Já em “O leito defolhas verdes” o assunto é um encontro amo-roso frustado, em que a mulher lamenta aausência do homem num monólogo cuja den-sidade aumenta pela representação da fugado tempo, graças a recursos de métrica e lin-

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guagem que bem mostram a força de Gon-çalves Dias nos bons momentos.

Embora integrado no espírito românti-co, ele guardou certo compasso neoclássi-co, que soube combinar de maneira pessoal àmusicalidade conquistada pelo seu tempo. Eo virtuosismo lhe permitiu escrever um poe-ma em português arcaico, as “Sextilhas de FreiAntão”, como se quisesse demonstrar que abusca da expressão nacional comportava fi-delidade à tradição, e a liberdade se entroncavana obediência ao gênio intemporal da língua.Além disso, foi ensaísta e bom dramaturgo,tendo também escrito uma monografia etno-gráfica, O Brasil e a Oceania (1852), e o Di-cionário da língua tupi (1857)

Gonçalves Dias fez parte da comissãode redação da revista Guanabara (1849-55),com Joaquim Manuel de Macedo e AraujoPorto-Alegre. Foi um periódico importante,que marcou o fastígio dos iniciadores da li-teratura romântica no Brasil e seus imedia-tos continuadores. Momento em que elesforam vistos como fundadores gloriosos, eem que a renovação se consolidara com aintrodução do romance e a demonstraçãode qualidade dada por Gonçalves Dias quan-

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to à viabilidade dos temas nacionais. Omovimento se justificara e se impusera,coincidindo com o que alguns historiado-res consideram o fim do processo de con-solidação da Independência.

Tendo entrado em conflito com as ten-dências nacionalistas de seus súditos bra-sileiros, e querendo além disso resolver acomplicada sucessão do trono português, oImperador Pedro I abdicou em 1831 e seretirou para Portugal, deixando o filho decinco anos como sucessor. Desde então até1840 o país foi governado por sucessivasregências, que enfrentaram movimentos derebelião contra o poder central. Em 1840, ojovem Pedro II foi declarado maior antes dos15 anos, mas as rebeliões continuaram atéa última, de 1849, exprimindo em muitoscasos as tendências regionais de autonomia,que poderiam ter levado, como na AméricaEspanhola, à divisão do Brasil em pelo me-nos três ou quatro países. A partir de 1850houve paz interna e um grande progressodevido à extinção do tráfico de escravos, ten-do por conseqüência a liberação dos capi-tais envolvidos nele, que puderam ser apli-cados no desenvolvimento do sistema de

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crédito e em investimentos modernizadoresde vários tipos, inclusive as estradas de fer-ro.

Na literatura, o decênio de 1850, viu aconsagração do Romantismo, cuja manifes-tação considerada mais nacional, o indianis-mo, teve nele o momento de maior prestígioe, extravasando da lírica, chegou ao mesmotempo ao romance e à epopéia, numa curio-sa coexistência de arcaísmo e modernidade.

Além das duas obras eruditas de Gon-çalves Dias, já citadas, apareceram, na Re-vista do Instituto Histórico, uma monografiade Joaquim Norberto sobre aldeamentosindígenas da Província do Rio de Janeiro(1853), e um longo ensaio de Gonçalves deMagalhães, “Os indígenas do Brasil peran-te a história” (1859), refutação do ponto devista etnocêntrico de Varnhagen, demons-trando (apesar do tom apologético) maiorsensibilidade em relação às culturas indí-genas. Vimos que Magalhães publicara trêsanos antes A confederação dos Tamoios,aclamada pelos seus numerosos devotos,mas acerbamente criticada por José deAlencar, sob o pseudônimo de Ig., numasérie de brilhantes artigos depois reunidos

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em opúsculo. Na defesa de Magalhães seagitou a literatura oficial, e o próprio Impe-rador não hesitou em publicar sob pseudô-nimo um escrito de elogio.

Muito mais moderno, Alencar mostrouque para versar os temas indianistas a for-ma antiquada posta em prática por Maga-lhães não servia, com o seu duro verso semrima e as sobrevivências do maravilhosoconvencional. Visivelmente inspirado porOssian e Chateaubriand, preconizava umalinguagem transfundida de cor local e mu-sicalidade, que tentou a seguir sob a formado romance, a começar por O guarani(1857), que teve grande êxito e se tornoudos mais lidos pelo público brasileiro, alémde fornecer bem mais tarde o tema para olivreto da ópera do mesmo nome, compostapelo maior músico do tempo no Brasil, An-tônio Carlos Gomes (1836-96), e estreadacom êxito no Scala, de Milão, em 1870. Onacionalismo literário se completava assimpela música, que também absorvia as nor-mas européias, para dar viabilidade geral aodesejo de exprimir os nossos aspectos con-siderados mais originais. Fazendo músicaromântica de tipo italiano para assunto in-

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dígena, Carlos Gomes valeu-se do direito deusar em qualquer país de cultura ocidentalas linguagens que permitem a comunicaçãoentre os que dela participam.

Em 1858, um grande erudito, OdoricoMendes (1799-1864), em nota da sua tra-dução das Bucólicas, de Virgílio, identifica-va quatro áreas temáticas na literatura bra-sileira, correspondendo aos diferentes tiposhumanos: a referente aos “mais civilizados”,que pouco se distinguiam dos europeus; areferente aos selvagens; e a que deveria to-mar como objeto os sertanejos, deixados delado até então, e que ele considerava maisou menos equivalentes aos pastores de bu-cólica, e típicos do interior, merecendomaior atenção dos escritores. A seguir acres-centa a possibilidade de um grupo inspira-dor, os negros, e conclui dizendo que aoabordar esses elementos característicos, osautores assegurariam uma literatura pro-priamente nacional. Estas observações in-teressam porque são uma espécie de pre-monição do que começaria a ocorrer: aintrodução do romance regionalista e o in-teresse crescente pelo negro, em verso e pro-sa, nos anos de 1860 e 1870.

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5.5.5.5.5.O decênio de 1850 viu também o que

se costuma chamar, à maneira dos portu-gueses, Ultra-romantismo, tendência quevinha dos anos de 1840 e se expandiu nes-se, numa espécie de literatura da mocida-de, feita por jovens que, antes das atenua-ções inevitáveis trazidas pela “vida prática”,deram largas ao que alguns críticos caute-losos do tempo chamavam “os exageros daescola romântica”. Esses poetas levaram amelancolia ao desespero e o sentimentalis-mo ao masoquismo, além de os temperarfreqüentemente pela ironia e o sarcasmo,não raro com toques de satanismo, isto é,negação das normas e desabalada vontadede transgredir, que levou alguns deles à poe-sia do absurdo e da obscenidade. Do pontode vista formal, é o momento de avanço damusicalidade no verso; quanto aos temas,manifesta-se pouco interesse pelo patriotis-mo ornamental e pelo indianismo, perma-necendo vivo o sentimento da natureza esurgindo a atração pela morte.

Significativos dessas tendências foramos grupos de estudantes de Direito, sobre-tudo os de São Paulo, que desde o decênio

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de 1830 exprimiam uma sociabilidade es-pecial, que se tornou objeto de lendas e con-tribuiu para a imagem do Romantismo comorebeldia, sofrimento e mal-do-século. Fecha-dos numa pequena cidade provinciana, for-mando grupo à parte, os estudantes contri-buíram de maneira original para essaliteratura de mocidade, que parecia aberran-te, mas acabou, com o tempo, aceita emparte como manifestação peculiar de talen-to.

Eles formaram uma espécie de públicorestrito e caloroso, que produzia e simulta-neamente consumia literatura, assegurandoa esta (o que não era freqüente na época)circulação e apreciação. Deste modo, houveoportunidade para se acolherem não só osprodutos da rotina, mas também os diver-gentes, que exprimiam a ousadia eventualdesse grupo suspenso no flanco da socieda-de, em cujos padrões os seus membros aca-bariam por integrar-se um dia, quando cum-prissem o seu destino social de quadrosjurídicos, políticos e administrativos da na-ção.

Os anos que vão mais ou menos do fimdo decênio de 1840 aos meados do decênio

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de 1860 são os mais característicos dessaliteratura da mocidade, expressa em nume-rosas associações culturais e pequenos pe-riódicos, como Revista do Ensaio Filosófi-co Paulistano (1850-64?) e EnsaiosLiterários do Ateneu Paulistano (1852-60).A colaboração é desigual, obviamente, mashá, nelas e noutras, páginas de qualidade,como os ensaios de um jovem que soubeavaliar com notável inteligência crítica anatureza do Romantismo e a produção domomento: Antônio Joaquim de MacedoSoares (1838-1905).

Representativo dessa atmosfera espi-ritual foi Manuel Antônio Álvares de Aze-vedo (1831-52), uma espécie de menino-prodígio morto aos vinte anos, antes determinar os estudos de Direito, cujos escri-tos foram reunidos e publicados depois desua morte em edição que misturou textosacabados, rascunhos, fragmentos, aos quaisfaltaram a seleção e o polimento do autor(Poesias, 2 volumes, 1853-5). A sua obra éportanto irregular demais e deve ser avalia-da pelo pouco que tem de melhor.

Álvares de Azevedo possuía informa-ção considerável para o tempo e a idade.

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Impregnado de Shakespeare, Byron, Hoff-mann, Heine, Musset; obcecado pelas con-tradições do espírito e da sensibilidade, asua produção é mais densa que a dos con-temporâneos, sobretudo pelo dom de pas-sar de um pólo ao outro, modulando a dor eo sarcasmo, o patético e o cômico, a grandi-loqüência e o prosaísmo, com uma versati-lidade que era programada e ele manifestapela adesão à teoria romântica dos contras-tes, a “binomia”, como a chamava. O seulivro seduziu os leitores e teve até o fim doséculo sete edições, o que é notável para oBrasil atrasado e estreito daquele tempo.

A princípio, o que mais se apreciou nelefoi a vertente desalentada, sentimental emelodramática. Hoje, apreciamos os versoshumorísticos, a primeira parte do dramaMacário e certa poesia intimista ligada aocotidiano.

Possuindo acentuado espírito crítico,Álvares de Azevedo encarou com reserva onacionalismo estético que triunfava em seutempo e concebeu a literatura como espaçosem fronteira, uma espécie de comunhãouniversal dos talentos verdadeiros. Por isso,não apenas satirizou o indianismo como

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convenção vazia, mas negou a independên-cia da literatura brasileira em relação à por-tuguesa, opondo-se deste modo a dois pro-fessores do seu Colégio Pedro II do Rio deJaneiro: Gonçalves de Magalhães e Santia-go Nunes Ribeiro.

O drama Macário é uma representaçãosatânica da mentalidade estudantil de SãoPaulo, e sua primeira parte ainda prende pelaintensidade do desencanto e pela presençada noite romântica, expressos numa prosavibrante, cortada pelo sarcasmo e pelo de-sespero. O poema “Idéias íntimas” é singu-lar para o tempo, graças à naturalidade comque o prosaísmo do cotidiano se associa àforça analítica e à emoção. Os seus versosmostram a originalidade que surge por vezesnesse poeta desigual, a quem não faltou umapitada de genialidade.

Bernardo Joaquim da Silva Guimarães(1827-84), colega e companheiro de Álva-res de Azevedo, escreveu certo número depoemas de corte meditativo, com uma inti-midade cheia de graça em relação à paisa-gem, que soube apresentar com simplicida-de. Mas o que sobreviveu de sua obra poéticaé a parte cômica, grotesca e obscena. O poe-

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ma “A orgia dos duendes” mistura de modovertiginoso o folclore macabro e o gosto ro-mântico do pecado, criando uma comicida-de que todavia se torna sadicamente cruele, deste modo, manifesta os aspectos doRomantismo enquadrados na tríade de Ma-rio Praz: “carne, morte e diabo”.

Espírito bastante contraditório, transi-tou com facilidade do sentimentalismo ànegação mais irreverente, que se pode vernos poemas obscenos: “A origem do mêns-truo”, sátira divertida da tradição mitológi-ca, e “O elixir do pajé”, paródia dos poemasindianistas de Gonçalves Dias, contando deque maneira certa erva misteriosa deu a umvelho nigromante índio a mais desabaladaenergia priápica.

Bernardo foi mestre numa variante dapoesia grotesca, o nonsense, o velho anfi-guri cultivado havia muito na literatura por-tuguesa, que teve no Romantismo brasilei-ro uma ocorrência que se poderia considerarnotável, se os seus produtos tivessem so-brevivido em maior número. Sabemos quemuitos além dele praticaram o gênero, en-tre os quais provavelmente Álvares de Aze-vedo; mas é claro que ao entrar na “vida

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prática” eles descartavam tais poemas, e osorganizadores de obras póstumas jamaispensariam em incluí-los. Há materiais iné-ditos a serem publicados, mas por enquan-to o que conhecemos é muito pouco. Cha-mada em geral “bestialógico”, a poesia doanfiguri foi denominada expressivamentepelos estudantes românticos de São Paulo“pantagruélica”. Vista de hoje, ela seduz pelaforça da associação livre e pelo insólito dassituações, nascidas de um automatismorevelador de estranhas obsessões. Ao mes-mo tempo, depois das experiências de her-metismo e as do associacionismo surrea-lista, nós a podemos ver como manifestaçãode um lado importante do jogo poético: alivre combinação de palavras e o direito deelaborar objetos gratuitos.

Esse gosto heterodoxo pela comicida-de, a obscenidade e o contransenso, tão vivonos grupos estudantis de São Paulo, que-bra a convenção romântica, que ia impondoo sentimentalismo piegas, o cansativo des-fiar de lamúrias, numa linguagem que seautomatizou rapidamente. Ele talvez seja umtipo peculiar de satanismo e ajuda a expli-car certa parte inconformada da obra de

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Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902),que usou no fim da vida o nome de Sousân-drade. A sua concepção muito pessoal e acapacidade de jogar com as palavras, até àbeira do nonsense, contribuíram para o des-caso dos contemporâneos e explicam o in-teresse com que o restaurou em nosso tem-po a crítica de vanguarda.

O livro de estréia, Harpas selvagens(1857), não tinha relevo especial, nem ino-vações, que aparecem na epopéia inacabadaO guesa errante, cujos cantos ele foi publi-cado em edições aumentadas a partir de1866 até o decênio de 1880. Embora com-prometido pela prolixidade implacável dosromânticos, é uma visão transfigurada detoda a América, tendo momentos de grandeinteresse, devido à imaginação prodigiosa,às ousadias de linguagem e um admirávelfermento de rebeldia, muito mais profundoque o desencanto mecânico da moda. A lin-guagem, cheia de traços grotescos e pesqui-sas de sonoridade, serve a uma visão histó-rica de inegável poder. Sousândrade encara,por exemplo, de maneira movimentada edramática, as culturas pré-colombianas,destroçadas mas presentes como força viva;

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no outro pólo, alegoriza o capitalismo nor-te-americano em fase expansiva, vendo nelecom admirável premonição uma componen-te diabólica, que estrutura o texto mais sin-gular do poema: “O inferno de Wall Street”.São estrofes curtas, precedidas cada umapor uma rubrica em prosa, tão interessantequanto os versos, nos quais se acumulamjogos de palavra e sonoridades ásperas, for-mando um movimento de pandemônio quejustifica o título. E em todo o poema nota-se uma ausência de sentimentalismo quereconforta, em comparação com o açucara-mento habitual da época.

O lirismo açucarado de toque sentimen-tal, dissolvendo a natureza na emoção e aemoção na confissão, foi um dos traços quemais atraíram o leitor do tempo. Ele predo-mina de maneira alarmante na produçãomédia, em dezenas e dezenas de poetas, dosquais pode ser considerado paradigmaCasimiro José Marques de Abreu (1839-60), cujo livro Primaveras (1859) se tornouum dos mais populares quase até hoje. Asua versificação correta e fácil, a ternura algomórbida do tom e a capacidade de desper-tar uma piedosa simpatia tiveram eco no

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gosto médio; e só a crítica dos nossos dias,com Mário de Andrade, discerniu o quehavia nele, por baixo dos traços menciona-dos, de erotismo quase agressivo, disfarça-do pelo aspecto convencional do texto. Tal-vez por isso Casimiro de Abreu tenha atraídotanto as moças, que encontravam na suaobra a força do sexo sem ofensa às conven-ções.

Bem menos popular foi Luis José Jun-queira Freire (1832-55), hoje esquecido,monge beneditino cujo livro Inspirações doclaustro (1855) comoveu os contemporâneospelo desespero e pela representação patéticada morte, ligados ao egocentrismo, patentenum curto escrito autobiográfico que expri-me a vocação romântica da auto-análise de-salentada, à qual não faltava certo prazer nosofrimento, parte do “mal-do-século”.

Esses dois e muitos outros que morre-ram cedo favoreceram a idéia corrente deque o Romantismo estava ligado a uma fa-talidade inexorável, manifestada não apenasno sentimento de malogro, freqüente emseus versos, mas no próprio destino pes-soal, tocado pela morte precoce. “Lira dosvinte anos”, título de uma parte da obra de

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Álvares de Azevedo, bem poderia ser aepígrafe da produção de todos eles.

No decênio de 1850 surgiu um roman-ce singular em relação às tonalidades e con-cepções predominantes: Memórias de umsargento de milícias, de Manuel Antônio deAlmeida (1831-61), publicado anonima-mente em folhetins de 1852 a 1853. Alémdele, o autor só publicou artigos e um libretode ópera, sem imaginar que o seu livro des-pretensioso, e despercebido na hora, teriano futuro um êxito duradouro, que o tor-nou até hoje dos mais lidos e estimados danossa literatura.

É uma obra marginal, desligada dasmodalidades em voga, tanto realistas quan-to melodramáticas. Para começar, o autornão pertencia aos grupos literários predo-minantes, e portanto não tinha satisfaçõesa dar ao gosto oficial. Em segundo lugar,não parece ter querido a princípio escreveruma narrativa estruturada, mas apenas ircontando cenas e episódios da vida populardo Rio de Janeiro nos anos de 1810 e 1820.Em terceiro lugar, como bom jornalista, ti-nha golpe de vista para perceber o traço pi-toresco dos costumes. Tudo isso o deixou

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bastante livre para seguir uma espécie deprazer fabulativo, eqüivalente ao do conta-dor de casos que não pretende fazer obraimportante. Mas como o Reino dos Céuspertence aos humildes, ele conseguiu semquerer o milagre de um romance original,apesar de singelo, escrito com naturalidadeúnica no tempo e tornado significativo pelodiscernimento da vida diária.

A sua posição é um certo amoralismotolerante e alegre, capaz de enxergar o ou-tro lado de cada sentimento e de cada ação,de maneira a apagar a divisão entre o bem eo mal, tão respeitada pelos românticos. As-sim, forjou um olhar literário relativista eencantador que ainda hoje atrai, porque aescrita leve, espontânea, de um lado pren-de a atenção, e de outro desvenda com hu-morismo as molas do comportamento. Nãoporque Manuel Antônio de Almeida tenhasido um realista antecipado, como disseramos críticos do Naturalismo; mas porque,como se viu mais tarde, entroncava na sa-bedoria popular imemorial.

Bem diferente foi a obra romanesca deJosé Martiniano de Alencar (1829-77), aotodo vinte romances publicados entre 1856

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e 1877, dando exemplo da importância queo gênero havia adquirido na literatura bra-sileira, ultrapassando o nível modesto dospredecessores e demonstrando capacidadenarrativa bem mais definida.

É uma obra bastante ambiciosa. A par-tir de certa altura, Alencar pretendeu abran-ger com ela, sistematicamente, os diversosaspectos do país no tempo e no espaço, pormeio de narrativas sobre os costumes urba-nos, sobre as regiões, sobre o índio. Parapôr em prática esse projeto, quis forjar umestilo novo, adequado aos temas e baseadonuma linguagem que, sem perder a corre-ção gramatical, se aproximasse da maneirabrasileira de falar. Ao fazer isso, estava to-cando o nó do problema (caro aos românti-cos) da independência estética em relaçãoa Portugal. Com efeito, caberia aos escrito-res não apenas focalizar a realidade brasi-leira, privilegiando as diferenças patentesna natureza e na população, mas elaborar aexpressão que correspondesse à diferencia-ção lingüística que nos ia distinguindo cadavez mais dos portugueses, numa grandeaventura dentro da mesma língua. Comomais tarde Mário de Andrade no Modernis-

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mo, José de Alencar atacou a questão daidentidade pelo aspecto fundamental da lin-guagem. E, como Mário Andrade, nem sem-pre acertou no alvo: o seu diálogo ainda éafetado e livresco, as suas descrições sãoexcessivas e o pecado da ênfase comprometemuitas das suas páginas.

Os seus romances se ordenam desde anarrativa banal sobre donzelas virtuosascasando com rapazes puros, até certas his-tórias de força realista, nas quais não ape-nas traça com o devido senso da complexi-dade humana o comportamento e o modode ser de homens, e sobretudo mulheres,mas revela por meio deles certos abismosdo ser e da sociedade. É o caso de Lucíola(1862), sobre o tema da prostituição, vistacomo máscara que recobre a retidão funda-mental da protagonista. Esta afoga o senti-mento de culpa na sensualidade violenta,da qual se despoja ao toque do amor quevai redimi-la, mas não salvar, pois Alencar,apesar de tudo obediente às convenções,termina o livro pela morte expiatória. Mes-mo assim, foi inovador no modo franco detratar o sexo, bem como na escrita, que dei-xava longe a banalidade de Macedo.

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Igualmente apreciável é Senhora (1875),denúncia do casamento por interesse pecu-niário, no qual desenvolve uma das suaspreocupações constantes: o papel do dinhei-ro na classificação e avaliação das pessoas,bem como no próprio teor das relações bur-guesas. Em muitos dos seus livros o enfo-que é comprometido pelo conformismo, queobrigava os escritores a penalizar o mal epromover a recompensa das virtudes con-vencionais. Apesar disso, o talento analíti-co e a habilidade expositiva lhe permitiramem alguns deles apresentar com êxito adialética do individual e do social na com-posição da conduta.

A sua obra atraiu a maioria dos leito-res pelo que tinha de romanesco no sentidoestrito, tanto sob o aspecto de sentimenta-lismo quanto de heroísmo rutilante. O gua-rani (1857), cuja ação decorre no séculoXVI e é o mais popular dos seus livros, temessas duas coisas, além de facilitar pelo pró-prio enredo a escrita poética e empolada quemarcou o Romantismo. Amor, bravura, per-fídia se combinam nele para dar ao leitor oespetáculo de um Brasil plasticamente belo,enobrecido pelas qualidades ideais do

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epônimo indígena. Parecia uma demonstra-ção da capacidade de produzir narrativas tãoatraentes quanto as que as traduções deWalter Scott e Alexandre Dumas proporcio-navam, inclusive pelo afastamento no tem-po e pelo sentimento de exotismo que o ho-mem da cidade experimentava em face dasdescrições de florestas e grandes rios, semfalar da história de feitos de um passadoque poderia parecer tão fascinante quantoo europeu. Mas o leitor de hoje talvez prefi-ra, em matéria de pitoresco, Iracema (1865),narrativa lírica dos amores de português eíndia, escrita como poema em prosa e cor-respondendo melhor ao programa queAlencar traçara na sua polêmica contra Aconfederação dos Tamoios: melodia verbal,imagens cheias de cor, fusão íntima com anatureza.

Entre os romances históricos destaca-se As minas de prata (1859-65), compostosegundo o espírito de complicação dos ro-mances folhetinescos. Os regionais corres-pondem à vocação geográfica da ficção bra-sileira, um de cujos propósitos parecia ser ode descobrir literariamente o país, num mo-vimento progressivo que aos poucos desven-

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da as regiões e equivale a uma forma de re-velação para o leitor, que graças a isto se fa-miliariza cada vez mais com a pátria, por meioda realidade de suas paragens distantes.Alencar situou narrativas deste tipo no RioGrande do Sul, em São Paulo e, na sua pro-víncia natal do Ceará, O sertanejo (1875),tentativa de transpor situações cavalheires-cas equivalentes às da ficção romântica eu-ropéia para o século XVIII do Nordeste bra-sileiro, marcado pela rusticidade da pecuária.

Escritor característico do Regionalismofoi Bernardo Guimarães, de quem já falamos,que a certa altura passou para a prosa deficção. No conjunto a sua obra é medíocre,apesar de qualidades como a naturalidade daescrita, mesmo coexistindo com os momen-tos de ênfase declamatória própria do tem-po. O mesmo senso penetrante da paisagemque aparece na sua poesia aparece tambémnos romances, cujo cenário é quase sempreo oeste de Minas Gerais, ou o seu prolonga-mento no sul de Goiás, zona de campos ex-tensos com população que naquele tempo erarala, de costumes rígidos e atrasados. O seumelhor livro é O seminarista (1872), narra-tiva que começa pelo ilídio campestre de duas

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crianças, depois adolescentes, que todavianão pode se realizar porque os pais do rapazo obrigam a ser padre, em virtude de umapromessa. A narrativa é reforçada por umaespécie de naturalismo espontâneo, que fa-cultou a Bernardo Guimarães descrever ossentimentos em correlação com o sexo, che-gando nisso a uma franqueza singela queera inédita na literatura brasileira do tem-po. N’O seminarista ele não apenas desen-volveu bem a narrativa, harmonizando osatos com a paisagem e os impulsos natu-rais, mas assumiu deliberadamente posiçãoideológica, combatendo com veemência ocelibato clerical.

66666.....O decênio de 1860 foi perturbado pela

maior guerra já havida na América Latina:de um lado, a Tríplice Aliança entre Brasil,Argentina e Uruguai; de outro, o Paraguai,cujo presidente, Francisco Solano Lopez,havia organizado um forte exército e procu-rava expandir o seu país mediterrâneo. Osangrento e desumano conflito durou cincoanos, de 1865 a 1870, ao fim dos quais o

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Paraguai estava destroçado e os outros paí-ses, transformados e em vias de enfrentarsituações difíceis. Os historiadores costu-mam dizer, quanto ao Brasil, que o apogeudo regime imperial se situa nessa altura,tendo o declínio começado em seguida.

A partir da Guerra do Paraguai surgemno horizonte político e social dois proble-mas que se avolumariam até mudar afisionomia econômica e institucional dopaís: a chamada “questão servil”, isto é, odebate sobre a abolição do regime escravis-ta, e a propaganda republicana, que desfe-charia em 1889 no destronamento do im-perador e no fim da Monarquia.

A vida cultural se desenvolveu muitonos decênios de 1860 e 1870, caracterizan-do-se este último pelo grande progressomaterial, inclusive o desenvolvimento dasvias férreas e a inauguração, em 1874, docabo telegráfico submarino, que permitiu aaproximação com a Europa por meio danotícia imediata. Foram então fundadas oureorganizadas escolas de ensino superior, ojornalismo ganhou tonalidade mais moder-na e houve notável progresso na produçãode livros, graças a algumas casas editoras

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das quais ressalta a Garnier, que promoveua publicação em escala apreciável de autoresbrasileiros do passado e do presente, semfalar no incremento de obras traduzidas.Além disso, ela editou a boa Revista Popular(1859-62), que exprime o amadurecimentodos pontos de vista críticos do Romantismo.

Na poesia e no romance continuamnessa fase as linhas já indicadas, mas sur-gem alguns traços que acentuam as suascaracterísticas e anunciam desenvolvimen-tos novos. É o caso da invasão de melodiano verso, que se vai tornando cada vez maisfluido, preferindo ritmos cantantes que aca-bam por desfibrá-lo. Assim, o decassílabosáfico (acentos nas 4ª, 8ª e 10ª sílaba), an-tes usado com parcimônia, assume, a partirde Casimiro de Abreu, uma espécie de in-discreta preeminência, por ocorrer, ao con-trário do que recomendavam os tratadistasde poética, em todos os versos do poema,de maneira a criar melopéias que envolvema sensibilidade como encantamento, super-pondo-se ao próprio sentido. O seu airosomovimento de valsa transforma o texto emdança e parece querer suprir a insuficiênciada palavra com auxílio de sua música infusa.

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A isso se junta o gosto pela rima interna,que aumenta a sonorização e envolve o lei-tor, ou auditor, numa espécie de entorpeci-mento que anestesia a razão. Essa é, aliás,uma tendência comum a toda poesia delíngua portuguesa daquele tempo, e foi comos poetas de Além- Mar que os brasileirosaprenderam a segui-la.

Desde Gonçalves Dias era usual o em-prego dos mesmos acentos tônicos em to-dos os versos de um poema, sobretudo tra-tando-se de endecassílados acentuados nas2ª, 5ª, 8ª, e 11ª sílabas, ou de novessílabosanapésticos, acentuados nas 3ª, 6ª, e 9ª,ambos vindos da poesia italiana. O sáficoinvariável, cujo emprego culmina nos anos60 e 70, produz um ritmo mais melodioso eserve para muitos matizes do sentimentolírico. É preciso lembrar que nos anos 60foi intensa a aliança entre música e poesia,não apenas por meio dos recitativos acom-panhados ao piano por um apoio sonoro,mas pelo hábito cada vez mais difundido demusicar os poemas, fato importante queveremos melhor daqui a pouco.

Em relação aos temas, a novidade foi otoque social, que assumirá grande vulto no

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decênio de 70, cultivado tanto por verseja-dores de toda a sorte, arrastados pelos mo-vimentos sociais do período, quanto pelospoetas de boa qualidade, dois dos quais sedestacam: Fagundes Varela e Castro Alves.

Luis Nicolau Fagundes Varela (1841-75) foi muito versátil. A sua força resideprincipalmente no lirismo ao mesmo tem-po descritivo e confidencial em que escre-veu alguns dos mais belos poemas do Ro-mantismo brasileiro, como “Juvenília”, quese encontra no livro Cantos e fantasias(1865), no qual sentimento e natureza fun-dem-se em felizes achados verbais, não raroenvoltos por um toque de magia que parecesituá-los em esfera inefável. Mas a sua for-ça é menor nos poemas longos, inclusiveno que escreveu por morte de um filho,“Cântico do calvário”, em que estão algunsdos seus melhores versos e, ao mesmo tem-po, momentos de constrangedora prolixida-de. Este traço negativo é máximo na fastidi-osa epopéia religiosa Anchieta ou o evange-lho na selva (1875). Com o passar dos anosele foi se apegando cada vez mais à poesiado campo, com suas flores e pequenos ani-mais, criando uma espécie de regionalismo

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lírico que teve correspondentes noutros lu-gares, sobretudo no Nordeste, sem que ne-nhum outro poeta conseguisse a sua maes-tria. Varela teve ainda o mérito de dar aten-ção ao tema do continente latino-americano,antecipando o interesse de Sousândrade eCastro Alves em Vozes da América (1864);e foi também quem deu categoria ao trata-mento poético do negro em “Mauro, o es-cravo” (1864).

Sob mais de um aspecto, portanto, épercursor de Antônio de Castro Alves (1847-71), em cuja obra a poesia do Romantismoencontrou o fecho brilhante, pois em segui-da só se produziu coisa de segunda e tercei-ra ordem. Durante a vida publicou um livroapenas: Espumas flutuantes (1869). O ou-tro foi publicado depois de sua morte sob otítulo de A Cachoeira de Paulo Afonso(1876).

Além de uma ampla visão social decunho messiânico, Castro Alves era dotadodo que se chamava naquele tempo “inspira-ção generosa”, isto é, facilidade torrencialde composição, associada à prodigiosa con-catenação verbal dos improvisadores. Es-creveu muitos poemas comprometidos pela

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incontinência, que o levou não raro pertodo ridículo; mas escreveu também outrosde grande beleza plástica, cheios de ima-gens raras, e transfigurados pela exuberân-cia comunicativa. Com ele rompe-se o ma-soquismo lamuriento que estava na modaaté então, e nos seus poemas os sentimen-tos parecem um ato de afirmação vital. Tan-to mais quanto tinha a capacidade de in-ventar metáforas expressivas e dinamizaro verso por meio do contraste e da antíte-se, empregados ao gosto de Victor Hugo.Desse modo, pôde expor a sua visão domundo e dos homens segundo um movi-mento amplificador que aproxima a suapoesia da oratória.

A sua fama foi devida sobretudo à poe-sia humanitária e social. Deixando de ladoo índio, voltou-se para o negro e tornou-seo poeta dos escravos, com uma generosida-de e um ânimo libertário que fizeram da suaobra uma força nos movimentos abolicio-nistas. Com ele o escravo se tornou assun-to nobre da literatura e o seu generoso âni-mo poético soube criar para cantá-losituações e versos de grande eficácia, comose vê em “O navio negreiro”, no qual usa

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diversos metros e organiza a narrativa comexpressivo senso de movimento.

O tema do negro avultou nessa fase esuscitou, da parte dos escritores, uma to-mada de posição na luta contra a escravidão,que cresceu depois da Guerra do Paraguai,na qual negros livres e escravos formaramparte dos contingentes, forçando o governoa decretar a liberdade dos recém-nascidosem 1871, a libertação dos sexagenários em1885 e afinal a abolição do regime servil em1888. Destruída assim a base da oligarquiaque dominava o país e era o suporte da Mo-narquia, esta não sobreviveu.

Sem ter assumido posição abolicionis-ta, José de Alencar, que morreu quando co-meçava a fase aguda do movimento, se preo-cupava entretanto com os efeitos moraisnegativos da escravidão e as iniqüidades queela gerava, e sobre isso produziu uma comé-dia e um drama: O demônio familiar (1857)e Mãe (1859). Joaquim Manuel de Macedoescreveu no mesmo sentido algumas narra-tivas reunidas no livro As vítimas algozes(1869), e abertamento abolicionista foi o fa-moso romance de Bernardo Guimarães, Aescrava Isaura (1875), que é muito ruim mas

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causou grande efeito, pois descreve a si-tuação extrema de uma jovem que é bran-ca no aspecto, mas de condição servil, po-dendo ser comprada e vendida.

É importante mencionar Luis Gama(1830-82), filho livre de mãe africana li-berta, mas vendido iniquamente pelo paibranco. Vencendo toda a sorte de dificul-dades, conseguiu libertar-se, instruir-se, etornou-se jornalista, advogado prático, de-dicando-se principalmente à defesa de suaraça. A sua obra poética, quase toda satíri-ca, é insignificante esteticamente, mas hánela um poema admirável, “Quem sou eu”,sátira perfeita do preconceito de cor, quealém de odioso é ridículo num país onde,naquele tempo, a população tinha cerca detrês quartos de negros ou mestiços, quehoje constituem pelo menos a metade dopovo brasileiro.

Nesse poema Luis Gama desmonta aideologia oficial de brancura e vai arrolan-do as classes e os grupos infiltrados de san-gue africano, num crescendo que se trans-forma em apoteose cômica, graças àmaestria com que manipula as enumera-ções burlescas, tornadas expressivas não

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apenas pelo ritmo saltitante dos versos,mas pelo jogo das sonoridades.

Não haveria mãos a medir se fôsse-mos indicar as numerosas produções nes-te sentido em todos os gêneros, mas con-vém fazer uma referência à oratória civil,gênero de grande prestígio em todo o sécu-lo XIX e depois dele, sendo talvez o quemais valia para consagrar um intelectual.Ora, a Campanha Abolicionista, que seconfigurou como grande movimento socialno decênio de 1870, deu lugar à atuaçãode oradores que empolgaram o público, etalvez o prestígio de Castro Alves tenhavindo menos da leitura de seus textos emlivros que da declamação nos teatros e naspraças. Entre os oradores, é preciso desta-car Joaquim Nabuco (1849-1910), notá-vel líder que mais tarde se tornaria um dosmaiores historiadores brasileiros, cuja ora-tória fluente e calorosa foi dos grandesacontecimentos desse fim de Romantismo,marcado pelas posições humanitárias, nasquais se destacou também Rui Barbosa(1849-1923), que ficou para o brasileiromédio como símbolo da inteligência e dacapacidade verbal ilimitada.

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7.7.7.7.7.Os romancistas vindos de antes conti-

nuaram a produzir com abundância nosanos 70. Entre os novos, destacam-se dois,que representam direções diferentes: Tau-nay e Távora. Mas o futuro mostraria que ofato de relevo foi a atividade inicial de Ma-chado de Assis, que nesse decênio publi-cou nada menos de dois livros de contos equatro romances, além de dois de poesia,tendo publicado o primeiro no decênio an-terior. Naquela altura não se poderia preverque ele fosse além de um nível estimável, esó depois de 1880 ficariam evidentes a ori-ginalidade de concepção e a força de estiloque fizeram dele o maior escritor brasileiro.Por isso, a história dos seus inícios só ad-quire sentido quando relacionada aos de-senvolvimentos futuros. Sendo assim, nãocabe neste escrito.

Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-99) representa o caso bem brasileiro do fi-lho de estrangeiros de tal maneira identifi-cado à nova pátria que se torna intérpreteprivilegiado da sua realidade. Militar de car-reira, tinha boa formação intelectual e ar-tística, sendo bom desenhista e composi-

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tor, qualidades que soube transpor para asua prosa, capaz de descrever a naturezacom força pictórica. Como participante daGuerra do Paraguai, colheu material paradiversos livros que redigiu de um ângulo aomesmo tempo documentário e pessoal, cujoexemplo mais completo é A retirada da La-guna (1871). As suas Memórias, publicadaspostumamente em 1948, são interessantese denotam uma personalidade que apesarda vaidade é generosa e simpática, prenden-do o leitor pela naturalidade um pouco irre-gular do estilo.

O seu romance mais famoso é Inocên-cia (1872), que alguns consideram o me-lhor produto do Regionalismo e é de fatobem realizado, graças à habilidade com quedescreve a paisagem e os costumes do ser-tão remoto, quadro no qual soube contarcom singeleza a tocante paixão que envolvea protagonista. Este livro se prende à expe-riência do autor em suas andanças peloCentro- Oeste durante a guerra, enquantosua outra vertente, de homem de alta socie-dade do Rio de Janeiro, aparece em Ourosobre azul (1874), típico da narrativa de cos-tumes inaugurada por Macedo e refinada por

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Alencar. Seus outros romances têm menosvalor, mas o de estréia, Mocidade de Trajano(1871), cuja ação decorre numa fazenda deSão Paulo, combina bem o gosto pela urdi-dura com percepção correta dos problemassociais.

Muito diferente foi João Franklin daSilveira Távora (1842-88), que nos anos 60publicou narrativas e dramas de qualidadeinferior, marcados pela ênfase melodramá-tica, mas em 1869 parece outro escritor nocurto romance O casamento no arrabalde,que mais de um crítico considerou a suaobra-prima. É uma narrativa simples e flu-ente sobre costumes de Pernambuco, pro-víncia nordestina que seria cenário de seusromances seguintes: O cabeleira (1876), Omatuto (1878), Lourenço (1881), que for-mam uma espécie de tríptico histórico, e Osacrifício (1879), retomada e ampliaçãomuito inferior de O casamento no arrabalde.

A obra ficcional de Távora perdeu o in-teresse com o tempo. A sua narrativa rara-mente chega a prender e a escrita é banal;mas historicamente o seu significado foigrande, pois ele pode ser considerado o fun-dador do regionalismo do Nordeste, um dos

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veios mais ricos e duradouros da nossa li-teratura de ficção.

Távora criticava acerbamente José deAlencar numa série de artigos, reunidos emseguida no livro Cartas a Cincinato (1870),no qual censura a falta de documentaçãodo grande escritor e preconiza rigorosa fi-delidade ao real, por meio do seu conheci-mento direto. Mais tarde defendeu tambémoutro princípio: que sendo duas regiões dis-tantes, como formação histórica, mentali-dade e paisagem, o Norte e o Sul do Brasildeveriam ter literaturas conscientemente di-versas. Por isso, na folha de rosto de seusromances aparecia no alto a menção geral:“Literatura do Norte”.

Coerente com esse ponto de vista, nãoapenas se armou de um conhecimento his-tórico profundo do Nordeste, mas registroucom senso ecológico muito vivo os aspec-tos da sua paisagem. Lendo-o, temos a im-pressão de estar na raiz de Gilberto Freyree José Lins do Rego, devido à intimidadeque estabelece entre o homem e a cana-de-açúcar em vários níveis. A sua obra maduratem como cenário a zona canavieira de Per-nambuco, obedecendo na citada trilogia a

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uma espécie de combinação entre a dimen-são histórica e a geográfica, pois a ação de-corre no século XVIII e uma de suas molasé o conflito entre senhores rurais brasilei-ros e comerciantes portugueses em tornoda economia açucareira.

Por um lado a posição de Távora con-tradizia o esforço unificador da literatura ro-mântica, um de cujos pressupostos, comotemos visto no decorrer deste escrito, era aafirmação de uma identidade nacional, em-bora sem prejuízo de reconhecer a diversi-dade física e social do país. O seu regiona-lismo extremado talvez seja devido aotraumatismo causado no Nordeste pela per-da progressiva da hegemonia política e eco-nômica, acelerada a partir da preeminênciado Centro-Sul, em torno do Rio de Janeiro,com a vinda da Família Real e substituiçãoda cana pelo café como principal produtode exportação, e portanto como base da do-minação oligárquica.

Mas por outro lado Távora apenas exa-gerava uma realidade notória, de importân-cia decisiva na literatura: a força inspiradoradas nossas regiões, tão diversificadas, so-bre a imaginação dos escritores.

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As suas posições teóricas correspon-dem à transição do Romantismo para no-vas tendências estéticas e a um fato impor-tante nesse sentido: a ação renovadora deum combativo grupo de intelectuais nordes-tinos cujo centro espiritual, ou ponto de par-tida, foi a Faculdade de Direito de Recife.Apesar de alguns deles terem escrito poe-mas e obras de ficção, o seu papel manifes-tou-se sobretudo na crítica e na filosofia,graças às quais contribuíram para moder-nizar a vida cultural. Se Távora havia cen-surado na ficção romântica o que segundoele lhe faltava em conhecimento do real, seuamigo Sílvio Romero empreendeu em jor-nais de Recife, nos anos 70, verdadeira cam-panha anti-romântica, procurando mostrarque o Romantismo era uma sobrevivênciaprejudicial à boa compreensão do país e aoque a produção literária deveria ser. Reto-cados e reunidos em volume no ano de 1880sob o título de A literatura brasileira e a crí-tica moderna, esses artigos eram um balan-ço injusto mas oportuno, porque mostra-vam que os tempos eram outros e que aorientação literária deveria mudar com eles,pois, nas suas palavras carregadas de de-

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terminismo, ela pode ser vista como “sin-toma”.

Para ele, o Romantismo teria sido po-sitivo por um lado, mas sobretudo negativo,por outro. Negativos foram o sentimento re-ligioso e a filosofia espiritualista, contráriosambos ao espírito moderno. Foi negativa,ainda, a exaltação pueril da pátria, encaradacomo algo portentoso a partir do cenárionatural, o que confunde a retidão do juízo.Mas negativo foi sobretudo o indianismo.Este mereceu dele os ataques mais duros,por significar o endeusamento de um povoque teve pouca importância em nossa for-mação (segundo ele), se comparado ao por-tuguês e ao negro, que procurou ressaltarcomo fator decisivo em nossa diferenciaçãoracial e social. Do lado positivo, reconheceuque o nacionalismo dos românticos foi im-portante para desligar a nossa vida mentalda influência portuguesa e nos abrir paraoutras culturas européias de melhor quali-dade.

Sílvio Romero errou quanto às suges-tões que fez para a renovação literária, masos seus escritos valem como “sintoma”,para usar o seu conceito, de um esgotamento

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da estética romântica, visível durante osanos 70, quando surgem novas correntesque no decênio seguinte desaguarão noParnasianismo, enquanto o romance entra-rá pela nova moda naturalista. O Romantis-mo propriamente dito acabara, depois dehaver consolidado a literatura no Brasil.

8.8.8.8.8.O nome Romantismo simplifica uma

realidade bem mais complexa, como é sem-pre o caso nas nomenclaturas de períodosliterários. No Brasil, ele designa um con-junto compósito, no qual há pelo menos trêsveios que se interpenetram: (1) os traçosque prolongam o período anterior; (2) ostraços heterodoxos; (3) finalmente os quese podem considerar específicos, e são osque em geral o crítico e o historiador iso-lam do conjunto.

Como exemplo de rotina tradicionalmencionemos as odes, epístolas e outrosque as revistas publicavam imperturbavel-mente pelo século afora, como hoje aindase publicam sonetos parnasianos. Mencio-nemos ainda as concepções de fundo retó-

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rico da teoria literária, prolongamento semadaptação das normas clássicas, que impe-diram, entre outras coisas, o estudo do ro-mance nas aulas de literatura, embora elejá fosse o gênero moderno por excelência.Se isso não desviou o gosto por ele, dificul-tou certamente o seu tratamento analítico econtribuiu para estabelecer uma mutilação,segundo a qual se ressaltava o conteúdo(moral, afetivo, social), deixando de lado opossível interesse pela estrutura.

Mas é preciso mencionar também o quese pode denominar rotina incorporada, istoé, a sobrevivência de elementos arcaicos emtextos cujos autores desejavam praticar amaneira nova, como é visível na obra poéti-ca de Gonçalves Dias e mesmo na de Álva-res de Azevedo, sendo quase indiscreta emoutros, como Junqueira Freire. Talvez issofosse em parte devido ao fato da instruçãose basear nos clássicos, criando automatis-mo tenazes.

Os traços que hoje nos parecem hete-rodoxos e até avançados podem ser devi-dos a certa sagacidade dos autores, como éo caso da bonomia popularesca de ManuelAntônio de Almeida, tão desligada das con-

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venções; ou ao desejo de contrariar expres-samente as normas, e é o que acontece napoesia anfigúrica e obscena, ambas conten-do fortes elementos de paródia, que vimosao falar de Bernardo Guimarães. A diver-gência é também grande numa parte da obrade Sousândrade, e no futuro próximo Ma-chado de Assis seria exemplo de rupturasob aparência de conformidade. São destetipo os aspectos que hoje parecem mais mo-dernos, porque podemos ver neles afinida-des com o que veio depois.

Quanto aos traços que é possível consi-derar mais característicos, destaca-se obvia-mente, como vimos, o nacionalismo, trans-formação do nativismo que vinha do começodo século XVIII e talvez tenha significadomais político do que estético, porque foi umdesígnio correlativo ao sentimento de inde-pendência. No limite, o seu pressuposto deoriginalidade nacional era ilusório, porqueimplicava um estado imaginário de separa-ção no conjunto das literaturas ocidentais,às quais a brasileira pertence organicamentee das quais não pode ser destacada. Às ve-zes o nacionalismo exaltado daquele período(mais teórico do que prático) parece a clás-

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sica rejeição dos pais pelos filhos no mo-mento da adolescência, – os pais sendo nocaso os portugueses.

O desejo de autonomia encontrou,como vimos, apoio sólido na estética parti-cularista aplicada aos países do Novo Mun-do. Ela foi importante na medida em quepropunha o característico em lugar do ge-nérico, levando a valorizar o pitoresco, napaisagem e nas populações. Levava tambéma privilegiar a singularidade do sentimentoindividual, que deveria procurar expressõesúnicas, e não se acomodar no discurso tó-pico dos clássicos. Acentuando tendênciasque vinham do século XVIII, quando se ins-talou o culto da sensibilidade, os românti-cos chegaram ao subjetivismo sentimentalmais indiscreto e consideraram a expansãoconfidencial como indício de nobreza do ser.No limite das duas coisas (o particular daterra, o particular do ser), aparecia o índiocomo símbolo privilegiado, que encarnavao país no que este possuía de mais autênti-co, podendo assim receber por transferên-cia as expansões mais nobres da alma.

A função do índio romântico foi, por-tanto, significativa durante algum tempo e

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extravasou do campo da literatura. Já ine-xistente havia muito nas regiões civilizadas,ele se tornou imagem ideal e permitiu a iden-tificação do brasileiro com o sonho de ori-ginalidade e de passado honroso, além decontribuir para reforçar o sentimento deunidade nacional, sendo, como era, algoacima da particularidade de cada região.Serviu ainda, como escreveu Roger Basti-de, de álibi para conceituar de maneira con-fortadora a mestiçagem, que lhe foi atribuí-da estrategicamente. A mestiçagem com onegro, mais presente e abundante nas regi-ões povoadas, era considerada humilhanteem virtude da escravidão. O indianismoproporcionou deste modo um antepassadomítico, que lisonjeava por causa das virtu-des convencionais que lhe eram arbitraria-mente atribuídas, inclusive pela assimilaçãoao cavaleiro medieval, tão em voga na litera-tura romântica. Tanto assim, que até hoje égeral o uso de prenomes e sobrenomes indí-genas, não raro tomados aos textos literá-rios; e a própria Monarquia, ao distribuir tí-tulos de sua nobreza improvisada, associou-os freqüentemente à convenção nativista,resultando combinações pitorescas: barão de

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Pindamonhangaba, visconde de Abaeté, con-de de Araruama, marquês de Quixeramo-bim...

Função paralela deve ter sido exercidapela exaltação da natureza. Com efeito, nafalta de uma ilustre tradição local, quepermitisse evocar paladinos e varões sábiosdesde a Antigüidade (como ocorria na Eu-ropa), a natureza brasileira entrou de certomodo em seu lugar como motivo de orgu-lho, passando a substituir a grandeza e abeleza que se desejaria ter tido no passadohistórico. No Brasil não tinha havido bata-lhas memoráveis, nem catedrais, nem divi-nas comédias, – mas o Amazonas era o maiorrio do mundo, as nossas florestas erammonumentais, os nossos pássaros mais bri-lhantes e canoros... É o que vemos em tan-ta obras, como os poemas A confederaçãodos Tamoios, de Magalhães; “Gigante depedra” e “Canção do exílio”, de GonçalvesDias; “A Serra de Paranapiacaba”, de Car-doso de Meneses, e monótonas centenas deoutros. Essa natureza mãe e fonte de orgu-lho funcionou como correlativo dos senti-mentos que o brasileiro desejava exprimircomo próprios, não apenas na poesia patri-

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ótica e intimista, mas também na narrativaem prosa, invadida pela sua presença porvezes indiscreta, mas considerada chavepara definir o específico local. Alguns con-temporâneos de Álvares de Azevedo diziamque apesar do grande talento ele não era“brasileiro”. Por quê? Porque falava poucodo mundo exterior e preferia temas menostípicos e mais universais, inclusive fazendopassar na Itália narrativas e poemas. E jáno século XX muitos admiradores de Ma-chado de Assis lamentavam que ele descre-vesse tão pouco a paisagem.

Mas vamos agora deixar de lado temase sentimentos, para pensar em alguns re-cursos expressivos e em alguns modos deconceber as obras literárias que influíramdiretamente na sua difusão junto ao públi-co. Tomemos para isso um exemplo: a ali-ança entre poesia e música, a partir de umaverificação, a saber, que a notória pobrezapoética das literaturas neolatinas no séculoXVIII foi até certo ponto redimida pelamúsica, que levou poemas medianos e mes-mo medíocres ao nível de canções encanta-doras, inclusive, no caso luso-brasileiro,graças à modinha. Segundo Mário de An-

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drade, ela teve origem erudita, em árias deóperas italianas, mas os portugueses e bra-sileiros, sobretudo estes, amaciaram e de-ram cunho terno à sua melodia, que ao serassociada a poemas de acentuado cunhoafetivo tornou-se um modo consideradonosso de expressão.

A sua voga deve muito ao árcade Do-mingos Caldas Barbosa (1740-1800), queviveu e morreu em Portugal como uma espé-cie de mensageiro das coisas do Brasil e,sendo poeta de certo valor, foi também com-positor e cantor à guitarra. No Brasil, amodinha se associou de maneira durável àpoesia erudita, e já no começo do século XIXcorriam musicados muitos versos de TomásAntônio Gonzaga, acontecendo o mesmo dalipor diante com a obra da maioria dos nossospoetas (até, podemos dizer, a atual MPB –Música Popular Brasileira). Essa aliança foiuma ponte feliz entre Arcadismo e Roman-tismo, exprimindo traços que irmanam osdois períodos por cima da ruptura estética.No tempo de D. João VI e de D. Pedro I,alguns músicos de valor, como os citadosJosé Maurício e Marcos Portugal compuse-ram modinhas, e Segismundo Neukomm

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harmonizou algumas do compositor popularJosé Joaquim da Câmara, inclusive uma sé-rie de seis sem menção dos autores dos po-emas, um dos quais pude identificar comoDomingos Borges de Barros.

O Romantismo levou ao máximo estatendência, enchendo o século XIX de poe-sia cantada, que assim fez chegar ao povotextos dos poetas mais importantes, que deoutro modo se teriam difundido muito me-nos em país de pouca instrução e hábitosreduzidos de leitura. Ainda hoje é freqüen-te ouvirmos canções tornadas anônimaspela incorporação ao patrimônio popular,cujas letras são versos de Castro Alves,Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu.

Isso mostra que no Brasil o Romantis-mo foi responsável por uma notável difu-são da poesia, mas é preciso completar di-zendo que atuação parecida teve o romance,gênero relativamente informe por compara-ção, escrito muitas vezes de maneira maispróxima à fala e requerendo menos infor-mação para ser apreciado. A literatura detradição clássica exigia um mínimo de co-nhecimentos, pois quem ignorasse a mito-logia e a história da Antigüidade não pode-

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ria penetrar adequadamente no código lite-rário básico; sem falar na necessidade deconhecer um pouco as regras estritas quecomandavam cada gênero, visto como aapreciação dependia da possibilidade de afe-rir a fidelidade dos textos em relação a elas.

Mas o Romantismo puxou a literaturapara temas e paisagens locais, usando lin-guagem mais natural, aproximada dos usoslingüísticos, embora o correr do tempo a façaparecer afetada para nós. O homem comumficava à vontade quando lia numa péssimaficção de Joaquim Norberto, ou num bomromance de Alencar, que os figurantes pas-seavam na Floresta da Tijuca, andavam pelaPraia do Flamengo e trabalhavam na Ruado Ouvidor. Nos poemas, ouviam falar doconhecido sabiá, compreendiam as alusõesàs “virgens morenas” e acomodavam bem oouvido aos ritmos parecidos com o das le-tras de modinha. Não precisavam ter emmente o que fora a Batalha de Salamina nemconhecer o significado de Terpsícore; mui-to menos saber que Febo era o sol e Cronoso tempo. Sob este aspecto, as diferentes for-mas de particularização foram importantescomo fator de democratização da literatura,

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inclusive atenuando um pouco o abismo queantes separava a literatura erudita da litera-tura popular. Foi como se cada um pudesseencontrar mais facilmente nos textos, quemuitas vezes eram ouvidos, com ou semmúsica, uma linguagem mais apta a expri-mir o mundo em que vivia e os sentimentosque os animavam.

Importante nesse sentido foi a passa-gem da oralidade de salão e academia, típi-ca do Arcadismo, para a oralidade de tea-tro, comício, reunião política, – coisas novasno Brasil, culminadas pelo movimento abo-licionista, que pôs os poetas, oradores, jor-nalistas em contato intenso com o povo.Sendo mais acessível, a literatura do tempodo Romantismo pôde popularizar-se mais edar voz aos que não tinham meios de expri-mir-se em nível erudito.

Por isso ela contribuiu para a idéia queo brasileiro ia formando de si mesmo, ouseja, para o sentimento de identidade, pormeio de mecanismos que ampliaram e tor-naram mais comunicativa a mensagem. Aomesmo tempo, implantou a noção ideologi-camente importante que a nossa produçãoliterária era própria, – e isso faz pensar no

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problema, hoje sem interesse, mas impor-tante no pensamento crítico até bem pou-co, de saber até que ponto o que se faziaaqui era reflexo ou criação. Pensando so-bretudo na poesia, para simplificar, é pos-sível dizer que o relacionamento da litera-tura brasileira do Romantismo com asliteraturas matrizes da Europa pode ser su-gerido por meio do estudo de três proces-sos, implícitos na fatura dos textos, quepodem ser denominados, de maneira apro-ximativa – transposição, substituição e in-venção.

A transposição consiste em passar parao contexto brasileiro as expressões, concep-ções, lendas, imagens, situações ficcionais,estilos das literaturas européias, numa apro-priação (perfeitamente legítima) que se in-tegra e dá ao leitor a impressão de algumacoisa que é muito nossa, e ao mesmo tem-po faz sentir a presença das raízes cultu-rais. No poemeto “Juvenília”, de FagundesVarela, a atmosfera encantada de magia éobtida por meio de um arsenal que exprimeoutros contextos: “pérola de Ofir”, “fada”,“silfo”. Mas como isso é expresso numatonalidade sentimental que nos habituamos

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a considerar como própria, os elementostranspostos funcionam ao modo de ingre-dientes de um universo familiar, o que nãosurpreende se considerarmos que, apesardas alegações rituais do nacionalismo lite-rário mais extremado, a nossa cultura do-minante é a mesma que gerou aquelas ima-gens e entidades. Por isso, em geraçõesanteriores, Silva Alvarenga transpusera es-quemas estróficos e rítmicos tomados aPaolo Rolli e Metastasio para elaborar osseus melodiosos rondós, que sempre pare-ceram corresponder ao que há de mais au-têntico na sensibilidade brasileira. Mas hácasos em que a transposição parece inassi-milável, como quando Bernardo Guimarãescoloca flocos de neve nas árvores de certaspaisagens de seus versos, sabendo-se que asua experiência se refere à natureza tropi-cal. No entanto, eles acabam funcionando,porque evocam a paisagem dos países deonde nos veio a civilização e que, portanto,a imaginação dos brasileiros incorpora comoparte de um patrimônio que afinal de con-tas está nas suas raízes.

A substituição é um processo mais pro-fundo do ponto de vista da linguagem e da

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interpenetração cultural. Nele, o escritorbrasileiro põe de lado a terminologia, asentidades, as situações da literatura euro-péia e os substitui por outros, claramentelocais, a fim de que desempenhem o mes-mo papel. Por exemplo: substituem o cava-leiro pelo índio, o fidalgo pelo fazendeiro, otorneio pela vaquejada, como se pode verem O sertanejo, de José de Alencar. Assim,na introdução ao poema “Os timbiras” ogosto pelas ruínas é substituído pela des-crição da aljava rota que pende dos ombrosdo índio vencido e vai deixando cair as fle-chas inúteis, simbolizando o fim da sua so-ciedade. No mesmo sentido, o poeta decla-ra que não quer mais se inspirar na fonteCastália nem subir ao Parnaso, mas, encos-tado num tronco de palmeira, tenciona tra-duzir a melodia selvagem dos ventos, quesão a voz de uma outra realidade. Ao fazerisso, não deseja como prêmio a coroa clás-sica de louros, mas outra, feita de floresbrasileiras, que já mencionamos antes nes-te escrito. Em tal caso, a situação épica e osmoldes de composição permanecem ajus-tados à prática das literaturas matrizes, masos temas e as imagens foram substituídos,

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de maneira a produzir uma espécie de du-plicação, que corresponde ao novo mundonatural e cultural.

Podemos falar em invenção quando oescritor parte do patrimônio europeu paracriar variantes originais, como ocorre numpoema de Álvares de Azevedo, “Meu sonho”,no qual ele fecunda o modelo da baladamacabra de tipo alemão(como a “Lenora”,de Bürger), deformando-o a fim de obter algodiferente. A balada se caracteriza, pelas suaspróprias origens populares, por ser umanarrativa sobre personagens exteriores aopoeta; mas a de Álvares de Azevedo descre-ve o drama interior, elaborando imagens queprojetam as tensões do ser, de modo a re-sultar um tipo novo de composição poética.Essa transformação de um gênero narrati-vo em gênero intimista pode ser considera-do invenção, que todavia não apaga o laçoorgânico em relação às literaturas da Euro-pa, das quais (nunca é demais repetir quan-do se fala do Romantismo com a sua fortecomponente nativista) a brasileira é umramo.

Estas indicações permitem compreen-der certas ilusões do nacionalismo românti-

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co, cujo programa era demonstrar a autono-mia e originalidade da literatura brasileira,menores na verdade do que alegavam as for-mulações. Mas naquele momento de inde-pendência recente era estrategicamente opor-tuno minimizar o vínculo com as literaturasmatrizes, mesmo sendo preciso usar paraisso uma espécie de farisaísmo patriótico,pois os escritores continuavam normalmen-te imitando e citando os modelos europeus,assim como as modas passavam de lá paracá. É preciso distinguir, portanto, as afir-mações programáticas e a realidade estéti-ca, para perceber que o nacionalismo român-tico foi historicamente importante, mastinha muito de ilusório.

Neste sentido, convém levar em contao fenômeno da auto-sugestão, segundo aqual os brasileiros consideram freqüente-mente específico o que era genérico, ou, poroutras palavras, consideravam “tipicamen-te nosso” o que vinha de empréstimo, masse incrustava tão normalmente em nossasensibilidade, em nossos automatismos eilusões, que parecia ter nascido aqui. Não éraro os críticos do século XIX, e mesmo doXX, apontarem como “autenticamente bra-

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sileiros” ritmos oriundos da poesia italia-na, imagens da poesia portuguesa, concep-ções francesas de narrativa. Todos esses sãofatos normais e legítimos de difusão cultu-ral que nada têm a ver com a melhor ou piorqualidade, ou com o significado dos textos,pois, repito, somos parte da mesma civili-zação, trazida inteira pela conquista e mo-dificada segundo as vicissitudes do nossodestino histórico. No que concerne aos ní-veis eruditos da literatura, essa modifica-ção nunca alterou os núcleos essenciais, eas contribuições importantíssimas do índioe do negro se revelaram decisivas sobretu-do no domínio da cultura popular, que es-capa ao objetivo deste escrito.

Foi, portanto, por meio de empréstimosininterruptos que nos formamos, definimosa nossa diferença relativa e conquistamosconsciência própria. Os mecanismos deadaptação, as maneiras pelas quais as in-fluências foram definidas e incorporadas éque constituem a “originalidade”, que nocaso é a maneira de incluir em contexto novoos elementos que vêm de outro.

Para terminar, vejamos um exemplopitoresco, que talvez ajude a esclarecer o

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assunto. A bandeira brasileira foi, desde aIndependência, um retângulo verde com umlosango amarelo inscrito, que a princípiotocava as bordas; no centro havia as armasimperiais, que depois da República foramsubstituídas pela esfera azul estrelada coma inscrição positivista Ordem e Progressona faixa branca.

Aprende-se na escola e ouve-se depoispela vida afora nos discursos patrióticos queela simboliza a nossa realidade natural: overde representaria as riquezas vegetais,encarnando a “verdura sem par dessas ma-tas” (diz Olavo Bilac no “Hino à bandeira”);o amarelo representaria as riquezas minerais,encarnadas no ouro. Não se explicava o de-senho, único entre os das bandeiras do mun-do, mas talvez se pensasse que fosse inven-ção local, realçando o cunho inventivo doconjunto, ao engastar a riqueza na natureza.

Mas a verdade é diferente. Depois daIndependência, D. Pedro I encomendou orisco da bandeira da jovem nação ao pintorDebret, membro da Missão Francesa de ar-tistas, vinda em 1816, recomendando queusasse a cor heráldica da Casa de Bragança,verde, e o amarelo, cor heráldica dos Habs-

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burgos, família da Imperatriz. Nada, portan-to, de galas e opulência do Brasil. E o dese-nho? Acho certo que Debret o tenha copia-do do que aparece em certas bandeirasmilitares do seu país no tempo da Revolu-ção Francesa e de Napoleão. Ele consistiaem transformar a faixa branca central dabandeira tricolor num grande losango, ondese podiam inscrever a designação da unida-de e outros dizeres. É o que se vê em qua-dros da era napoleônica, como o de David,existente no Museu de Versalhes, que re-presenta o recém-coroado imperador arri-vista recebendo o juramento de fidelidadedas suas tropas.

Este exemplo mostra um caso de rede-finição, típica do nosso processo cultural:elementos tradicionais da heráldica européiaalusivos aos jovens soberanos e manipula-dos segundo um esquema francês, foramreinterpretados pela imaginação coletiva epassaram a representar a nossa realidade.Segundo os termos usados há pouco, seriapossível dizer que a fisionomia e o signifi-cado da bandeira nacional se formaram apartir de transposições, substituições e in-venções, que deram ao brasileiro a idéia de

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que simbolizavam o que temos de mais pró-prio.

Pensemos um pouco nesse contrapon-to das duas leituras do nosso “auri-verdependão” para avaliarmos o nacionalismo ro-mântico, que orientou a marcha de uma lite-ratura ao mesmo tempo própria e comum,porque correspondeu à essência de uma cul-tura nutrida de transposições, que soubeacompanhar a diferenciação da sensibilida-de local.

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Divulgação LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Formato 12 X 18 cm

Mancha 9 x 15 cm

Tipologia BernhardMod BT 12 e Charlesworth 12

Montagem Charles de Oliveira / Marcelo Domingues

Papel miolo: off-set 75 g/m2

capa: supremo 250 g/m2

Impressão da capa Quadricromia

Impressão e acabamento GRÁFICA FFLCH

Número de páginas 106

Tiragem 2.000 exemplares

Ficha técnica