O Pássaro Raro

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O processo da curiosidade filosófica em contos.

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  • JOSTEIN GAARDER

    O PSSARO RAROContos

    Traduo: SONALI BERTUOL

  • Ttulo original: Diagnosen og andre novellerTraduo, autorizada pelo autor, com base na verso alem de Gabriele HaefsCapa: Silvia RibeiroIlustrao da capa: Maria EugniaPreparao: Flavia BancherReviso: Ana Maria Barbosa e Cludia CantarinDados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)Gaarder, Jostein, 1952O pssaro raro: contos / Jostein Gaarder; traduo de Sonali Bertuol. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.Ttulo original : Diagnosen og andre noveller. ISBN 978-85-359-0173-31. Contos alemes i. Ttulo.01-4490 CDP-833.91 ndices para catlogo sistemtico:1. Contos : Sculo 20 : Literatura alem 833.912. Sculo 20 : Contos : Literatura alem 833.91

  • O PSSARO RARO

    Consta que o mundo tem muitos anos. Porm raramente ele dura mais de um sculo. Somos ns que envelhecemos.

    Enquanto vierem pessoas ao mundo, ele ter o mesmo vio e frescor do stimo dia, no qual Deus descansou.

    Neste momento, somos testemunhas de uma criao. Ela desponta diante de nossos olhos, em plena luz do dia: um mundo surge do nada...

    E ainda assim existem pessoas que ficam entediadas!

    A maior parte do tempo o mundo desperdia dormindo. A maior parte do espao tambm.

    Apenas de vez em quando, ele esfrega os olhos e desperta para a conscincia de si mesmo.

    Quem sou eu? indaga o mundo. De onde venho?Por alguns segundos, o pssaro raro pousou

    em nosso ombro.

  • O SCANNER DO TEMPO

    A CONSCINCIA ARBITRRIA

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    H muitos e muitos anos, a vida acontecia ao ar livre. Ia-se para casa apenas quando se tinha fome ou frio. Se algum quisesse encontrar uma pessoa, era preciso procur-la fisicamente. Mas isso foi h muito tempo. Afinal, para que sairamos, se toda a vida se passa entre nossas quatro paredes?

    Uma pessoa vive apenas oitenta, noventa anos. Em certo sentido, porm, ela vive para sempre. que ela no pode se esconder de seus descendentes. Daqui a mil anos, com certeza, vai haver algum me observando aqui sentado diante da tela. De qualquer forma, o que vivenciamos no dura mais de oitenta, noventa anos. Portanto, por que deveramos sair de casa? Mas o que se quer mesmo ter o mximo possvel de vivncias. Nas ltimas semanas, por exemplo, concentrei-me sobretudo na guerra do Vietn. Uma histria repugnante. Que alm disso se repetiu alguns anos mais tarde no Afeganisto. Mas o Afeganisto pode esperar at o prximo ms.

  • 2Tudo comeou na primeira metade do sculo xx com os aparelhos de rdio. Fico comovido s de imaginar o dilema que devia ser a escolha de uma estao de rdio para as pessoas naquela poca. De repente, era possvel receber na prpria sala sinais sonoros enviados de todas as partes do mundo. Mas se as pessoas soubessem de tudo o que ainda iria acontecer... J naquele tempo a prpria casa adquiria uma nova dimenso. Afinal, o que eram as novidades das quais se ficava sabendo no pub local ou no bar da esquina perto das notcias de Nova York ou Tquio ouvidas em primeirssima mo?

    Mas disso todos j sabem. Mesmo assim, preciso mostrar com toda a clareza as incrveis semelhanas que existem entre um aparelho de rdio e o atual scanner do tempo. Em princpio, era possvel captar milhares de estaes de rdio em centenas de pases.

    Algumas pessoas naquela poca tornaram-se radioamadores. Isto , compravam ou montavam elas mesmas pequenas emissoras prprias, para com isso atrair para si a ateno do mundo. Um desdobramento dessas possibilidades foram as

  • estaes de rdio locais, que no comeo da dcada de 80 se multiplicavam como coelhos.

    J com esse desenvolvimento, as distncias geogrficas perderam em muito sua importncia. Ao lado do rdio, contudo, tambm foram fatores igualmente significativos o telefone e o telgrafo que sofreram um desenvolvimento espantoso durante todo o sculo XX.3

    Antes ainda que o rdio chegasse ao mercado, j haviam sido feitas experincias com imagens vivas.

    Como se sabe, o filme representou uma forma estupenda de comunicao unilateral. As pessoas pagavam um tanto e sentavam-se na sala de cinema. A nica possibilidade de escolha que lhes restava era sair da sala antes do fim da projeo. Ser que ainda hoje possvel ter uma medida do entusiasmo com que o mundo acolheu o cinema?

    Depois veio a televiso. Por volta de 1970, a rede de emissoras de televiso estendia-se sobre boa parte do mundo, e a comeou a morte do cinema. Do conforto de seus sofs, agora as famlias podiam ver na tela o que se passava no mundo.

    No comeo da dcada de 70, tambm chegaram ao mercado os primeiros aparelhos de vdeo. Assim como antes j se fazia com os sons, agora as imagens vivas eram armazenadas em fitas magnticas.

    O vdeo conquistou o mundo de forma arrebatadora. Muitos hotis passaram a equipar seus

  • quartos com a nova maravilha. Na vida privada, abriam-se possibilidades inteiramente novas para o uso do aparelho de televiso. A partir de agora, cada famlia podia decidir que filme queria ver. Fitas de vdeo podiam ser alugadas por um preo irrisrio. E isso ainda no era tudo: depois de algumas dcadas, a maioria das famlias modernas dispunha de sua prpria cmara de vdeo.

    Vidas e histrias humanas foram armazenadas em fitas magnticas. As cmaras de vdeo podiam registrar mesmo os crimes mais abjetos que eram cometidos nas ruas, nas estaes de metr, nos bancos e em todos os lugares por onde transitassem pessoas. A casa passou a ser o lugar mais seguro para se estar. Naturalmente l havia mais coisas para fazer do que antes.

    Junto com os aparelhos de vdeo, difundiu-se tambm a chamada televiso a cabo. Mas mais importante ainda foi o cinturo cada vez mais denso de satlites de comunicao que circundava a Terra. A partir de meados da dcada de 90, quem possusse um aparelho de televiso podia captar algumas dzias de emissoras, a maioria das pessoas podia escolher entre centenas de canais. Aps cinqenta anos, a televiso havia atingido o alcance intercontinental das ondas curtas.

    Nessa altura, a produo de vdeos e de programas de televiso tambm havia aumentado significativamente. A qualquer momento, podia-se captar um nmero considervel de emissoras atravs do aparelho de televiso. Quem, apesar disso, no

  • encontrasse nada interessante e sei do que estou falando quando digo apesar disso sempre dispunha de alguns metros de estante com filmes e gravaes aos quais, alis, nunca tinha tempo para assistir. Em alguns casos, essas colees de registros audiovisuais alcanavam dimenses espantosas.

    Os fervorosos colecionadores de fragmentos de realidade contavam com uma imensa oferta de possibilidades. J nessa poca as pessoas comearam a se retirar das ruas e das praas. E isso no fundo no era de se admirar. Afinal, o que as ruas ainda tinham a oferecer? No prprio quarto, tinha-se acesso a todas as formas imaginveis de entretenimento.

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    As possibilidades dos aparelhos de televiso ampliaram-se ainda mais com a revoluo da informao que o mundo viveu no final do sculo xx.

    Na passagem do milnio, quase todos os aparelhos de televiso funcionavam simultaneamente como terminais de computador. A ampliao da rede de telecomunicaes havia unido o mundo numa nica rede de comunicao.

    Por volta do ano 2030, o pagamento de servios, qualquer tipo de transao monetria, bem como todas as encomendas de mercadorias eram

  • realizados da sala de estar. As pessoas no dependiam mais de seus aparelhos particulares de vdeo ou de suas prprias fitas. Tampouco precisavam possuir livros, que ficavam empoeirando na estante. Tudo o que se quisesse ver, e tudo o que se quisesse saber, podia ser transferido diretamente dos bancos de dados para os aparelhos da sala ou da cozinha. Quem quisesse uma cpia de um artigo de jornal ou enciclopdia, de um poema ou de um romance, podia produzi-la por conta prpria na impressora da famlia.

    Todo mundo ento tinha acesso a todos os noticirios, antigos e atuais, a todos os filmes, antigos e atuais; toda a histria da arte estava disponvel em produes de vdeo em suma: boa parte dos atuais recursos j era utilizada cotidianamente na primeira metade do sculo xxi.

    No comeo do sculo xxi, o antigo telefone sonoro teve que ceder seu lugar ao videofone. Falar num fone no a mesma coisa do que conversar face a face. Os gestos so uma parte importante da linguagem. bom ver uma pessoa de quem se gosta quase to bom quanto t-la nos braos. Assim, paradoxalmente, o videofone contribuiu para distanciar as pessoas umas das outras.

    Alm disso, interessante mencionar que naquela poca foram instaladas cmaras de vdeo em cerca de cinco mil locais centrais do mundo, que, sem nenhum texto ou comentrio, mostravam o que se passava diante delas. Quem quisesse saber como estava o tempo em alguma parte do mundo,

  • precisava apenas sintonizar a emissora correspondente. Do sof, era possvel dar uma olhada em todos os cantos do mundo.

    Com o tempo e este o cerne da questo lamentavelmente aconteciam cada vez menos coisas ao ar livre. Sair de casa significava limitar o horizonte de forma brutal.

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    possvel escrever longos tratados sobre o desenvolvimento da comunicao antes do scanner, e possvel criar muitas expresses de busca e cdigos sobre esse tema (Do tambor ao scanner do tempo especialmente recomendvel). Aqui neste caso, uma brev exposio deve ser suficiente. De maneira resumida, podemos dizer o seguinte:

    Todas as formas de comunicao mais antigas, inclusive a conversa e qualquer modo de transmisso de conhecimento, at meados do sculo xxi, funcionavam atravs do aparelho de televiso. Qualquer contato humano de continente para continente, de gerao para gerao tinha lugar diante da tela, que tambm era chamada de terminal.

    Tudo se juntava numa nica rede de dados. Uma ou mais telas em cada ambiente era a regra. Na maioria das casas, tinha-se, como hoje, uma tela grande na sala e diversas pequenas telas nos outros aposentos. Por volta do ano 2080, no era

  • absolutamente incomum que se encontrasse uma tela em cada parede de cada cmodo. Hoje a opinio predominante de que essas muitas telas de uma casa roubam-lhe toda a atmosfera. No entanto, quem estiver na cozinha cortando po ou mesmo sentado no banheiro, certamente gostar de ter alguma coisa para ver. Afinal de contas, o tempo no pode ser desperdiado. Tudo est ao alcance da mo, o mundo inteiro est sobre a mesa da cozinha. No aproveitar todas essas possibilidades beiraria a apatia.

    A partir do comeo do sculo xxi, podemos falar de uma autntica comunicao bilateral. A rede no possibilitou apenas trazer todas as formas de informao para as telas; ela tambm permitiu entrar em contato com qualquer pessoa sobre a face da terra. Em 2050, a probabilidade de encontrar algum em casa era de 87%. (Hoje de 97%.)

    As pessoas tinham abandonado definitivamente as praas e as ruas. O terminal havia se tornado a praa. Quem quisesse fazer um passeio pela cidade para relaxar, precisaria, como ainda hoje, ir para casa para comprar tomates ou conversar com outra pessoa.

  • PLEROMA

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    A virada radical na histria da humanidade teve incio aps uma srie de descobertas revolucionrias na fsica quntica por volta de 2100.

  • J em 1900, sabia-se que os tomos no so minsculas pecinhas de matria impermevel, como Demcrito imaginara. At mesmo j se havia descoberto que eles podem ser decompostos em partculas elementares ainda menores.

    Mas tambm a essas partculas elementares faltam a solidez e a tangibilidade que formam a base de qualquer materialismo. Num dado momento, elas se comportam como esferas ou partculas compactas no momento seguinte, como ondas ou energia, o que est relacionado ao fato de que as chamadas partculas elementares no so elementos, mas concentraes de quarks.

    O princpio da complementaridade de Bohr era conhecido desde o comeo do sculo xx. Naquela poca, falava-se de uma tendncia ps-materialista na fsica moderna. Durante um tempo, at mesmo se preconizou a emancipao da fsica perante a razo humana. (Cf. o cdigo de busca Fsica quntica, assim como os verbetes Planck, Einstein, Bohr, Schrdinger, Heisenberg, Dirac, Eddington e Pauli.)

    Justamente quando se acreditava ter apreendido as partculas mnimas da matria, elas haviam desaparecido. De qualquer forma, elas haviam mostrado um comportamento mais fantasmtico do que se esperava.

    O rio do conhecimento corre em direo a uma realidade no mecnica, afirmava-se. O Universo assemelha-se mais a uma grande idia do que a uma grande mquina (Jeans, Fsica

  • quntica, 4312) ou, na formulao de Eddington, a matria do mundo matria anmica.

    Se essas pessoas soubessem o que descobririam a seguir!

    Sim, pois isso ainda estava longe de ser tudo. No ano de 2062, Blumenberg provou que a realidade tem cinco dimenses, das quais o Universo visvel abrange apenas as quatro primeiras. Tempo e espao so as propriedades de uma nica substncia, que atualmente chamamos de pleroma. (Cf. o cdigo de busca Fsica, assim como os verbetes Blumenberg, Knox e Tangstadt.)

    Finalmente, o tunisiano Labidi conseguiu provar que os movimentos dos quarks so armazenados no pleroma que onde o tempo e o espao convergem num continuum.

    Assim, tudo se fundia numa nica noo. As inmeras leis da fsica uniam-se para formar uma lei natural universal.

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    J no sculo XVIII, o matemtico francs Laplace fantasiava a existncia de uma inteligncia que conheceria a posio de todas as partculas de matria num determinado momento. Para essa inteligncia, nada seria desconhecido, e o futuro e o passado se descortinariam diante de seus olhos.

    Essa inteligncia que Laplace imaginou existe

  • de verdade. Ns a chamamos de pleroma muito embora ela no seja mais inteligente do que um banco de dados.

    Em 2105, Abdullah Rushdie comprovou que todos os acontecimentos do Universo so armazenados no pleroma. De l eles tambm podem ser recuperados.

    Quinze anos mais tarde, em janeiro de 2120, j era construdo o primeiro prottipo de seu scanner do tempo.

    O mundo ficou paralisado de espanto. Com a ajuda dos dois sintonizadores, agora era possvel desvendar todos os enigmas da histria que ainda no haviam sido solucionados. Todos os acontecimentos da histria mundial podiam ser trazidos para a tela. No na forma de vdeos, filmes de poca ou documentrios, no, diretamente do palco da histria.

    Com isso, tudo comeou. E, com isso, todo o velho ficou para trs.

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    No incio, a nova inveno foi mantida em segredo. Como a humanidade lidaria com a nova ferramenta?

    claro que o scanner do tempo (o prottipo foi construdo no Centro CERN em Genebra) era algo inteiramente novo. Mas no devemos esquecer o desenvolvimento que o precedeu. J naquela poca, todas as pessoas tinham acesso a qualquer

  • forma de experincia humana. No ano de 2120, no havia mais nenhum tipo de dado que no pudesse ser trazido para a tela domstica com o simples pressionar de teclas. Todos os filmes, todas as obras de arte, todos os textos j escritos e todas as informaes existentes sobre a humanidade eram patrimnio cultural coletivo.

    Novo era tudo o que at ento as pessoas ainda no haviam incorporado sua experincia. Agora era possvel passar em revista na tela toda a histria mundial. Tal evento levaria uns cinco bilhes de anos, mas, com o scanner do tempo, mesmo os perodos longos podiam passar rapidamente na tela. Ao encontrar algo interessante, bastava reduzir a velocidade ou deter-se nas cenas mais relevantes.

    Agora no era mais necessrio providenciar um filme ou um texto de enciclopdia sobre a Segunda Guerra Mundial. Esse triste captulo da histria da humanidade podia ser vivenciado diretamente na tela. Um acontecimento isolado, uma execuo, por exemplo, ou um encontro entre Hitler e Goebbels, podia ser captado sem dificuldades com a ajuda dos dois sintonizadores com os quais hoje todos esto to familiarizados, o sintonizador temporal e o espacial.

    Afirmar que os pioneiros em Genebra se lanaram com entusiasmo sobre o scanner do tempo seria um eufemismo. Afinal de contas, eles tinham nas mos nada mais nada menos do que toda a histria da humanidade.

  • Mas essa nova inveno era de fato uma bno para a humanidade? Ou, na verdade, se estava lidando com um brinquedo perigoso?

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    Como sabemos, aps algumas dcadas as telas nas residncias j estavam conectadas ao scanner do tempo. Por volta de 2150, pouqussimas pessoas haviam decidido no adquirir os dispositivos acessrios de que precisavam para fazer uso da nova oferta.

    O pblico reagiu com verdadeiro entusiasmo, a antiga tecnologia j havia preparado o terreno. E muitos no sentiram a mudana como algo especialmente dramtico, mas antes a consideraram uma passagem gradual.

    Os dois sintonizadores do scanner do tempo no eram mais difceis de manejar do que os joysticks dos antigos jogos de computador. Quem soubesse manusear um sintonizador tambm poderia fazer uso do scanner. Naturalmente isso no significava que todos tinham a mesma destreza no trato com a cultura. Mas sobre isso falaremos mais adiante.

    J estabelecemos paralelos com os antigos aparelhos de rdio. Quem estivesse procurando determinada emissora de ondas curtas tinha que ser cuidadoso. Bastava uma mnima volta do Seletor para pular dez estaes.

  • Tambm no uso do scanner do tempo, o tato representava (e representa) um importante princpio. Isso se aplica tanto ao sintonizador temporal como ao espacial. Gostaria de citar um exemplo.

    Vamos supor que estamos procurando o filsofo francs Jean-Paul Sartre. Sabemos, por acaso, que ele viveu em Paris. Casualmente tambm sabemos que viveu em Paris em meados do sculo xx. Mas naturalmente no basta sintonizar o scanner do tempo na Paris de 1950. Paris! Onde em Paris? E quando exatamente ele viveu l? Podemos comear com um panorama de Paris em 7 de abril de 1952, s 11h30. Mesmo que saibamos que nosso homem se encontra na cidade nesse momento, seria o mesmo que procurar uma agulha num palheiro (antiga metfora rural). Qual caf monsieur Sartre gostava de freqentar? J naquela poca havia milhares de cafs em Paris. Obviamente podemos esquadrinhar todas as ruas atrs dele, assim que muitas vezes se tem que fazer para achar determinada pessoa. Porm no difcil que sejamos desviados no caminho. Talvez uma briga desperte nosso interesse, um assalto, um estupro ou um banquete oficial. Precisamos de um ponto de referncia. Se soubermos, por exemplo, que Sartre almoou com Simone de Beauvoir em Montparnasse em 11 de novembro de 1956, o caso j fica bem mais simples. Agora falta apenas descobrir que aspecto ele tinha. Comeamos a passear em Montparnasse e zs! l est ele. Ns o pegamos. E ele nunca mais vai nos escapar.

  • Podemos acompanhar a vida de Sartre para a frente e para trs, at seu nascimento, sua morte ou simplesmente at o momento em que perdermos o interesse e o deixarmos ir. Muitos de ns em tais situaes temos a sensao de estarmos sendo um tanto indiscretos. Afinal, est certo bisbilhotar a vida privada de pessoas que j morreram h muito tempo? Sei que existem aqueles que vo em busca justamente das cenas mais ntimas na vida dos outros. Desse tipo de voyeurismo, porm, gostaria de me distanciar radicalmente.

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    Como foi dito, no h maiores dificuldades em se fazer uso do scanner do tempo. Todos podem saber de tudo, realmente tudo. Mas por onde comear? Somente de quem vive sem limites exigida a verdadeira arte de viver. O que escolher se tudo est ao alcance da mo? O primeiro contato da humanidade com o scanner foi avassalador.

    Se uma pessoa regulasse um dos sintonizadores para as 14h30 do dia 25 de maio de 963 d.C. (14.30.00.25.05.0963) e o outro em algum lugar na Noruega, por exemplo, 60 de latitude e 10 de longitude a leste (60.00.00. 010.00.00.), ela se encontraria num denso pinheiral. E, se ficasse por l, poderia demorar muitas horas at descobrir um ser vivo de certo tamanho. Depois de algum tempo, talvez essa pessoa visse um urso ou um alce. Mas

  • poderia demorar alguns dias ou semanas para que aparecesse um viking pelo caminho. Assim, provavelmente, ela tentaria achar uma trilha para sair da floresta e, por fim, chegaria a um fiorde desabitado. Talvez s depois de horas de busca ela chegasse, na melhor das hipteses, a um porto viking pressupondo-se que o viking fosse realmente o objetivo de todos esses esforos.

    Quando, no ano de 2148, os muitos milhes de aparelhos de televiso privados foram conectados ao scanner, surgiu imediatamente uma necessidade de orientao. Afinal de contas, toda a histria mundial tinha ido parar nas mos da humanidade como que da noite para o dia. Muita gente naquela poca se perdia no tempo e no espao.

    Ainda hoje h quem faa suas buscas na histria aleatoriamente, mas a maioria das pessoas trabalha com os milhares de cdigos de busca que foram desenvolvidos desde ento. Eu mesmo, com sete ou oito mil cdigos, talvez possua um pouco mais do que a mdia.

    Os primeiros cdigos de busca voltados para pessoas com interesses especiais foram desenvolvidos pelo Escritrio. Muitos desses cdigos so utilizados ainda hoje. Vejamos alguns exemplos.

    Uma importante ferramenta o cdigo Lugares e cidades, ontem e hoje na realidade, uma lista de mais de trezentos e sessenta lugares no mundo limitada a determinados perodos (Babilnia 2000-1700 a.C, Atenas 400-300 a.C, Roma 200 a.C-

  • 350 d.C. etc). Com a ajuda desses cdigos, pode-se localizar determinado lugar, e a partir de l ajustar o tempo e espao exatamente para aquilo que se gostaria de vivenciar. Lugares e cidades , sem dvida, o mais geral de todos os cdigos to geral, que atualmente usado sobretudo pelos desbravadores que querem explorar o mundo por conta prpria e sem a ajuda de programas prontos. Se o caminho para uma vivncia descrito por meio de cdigos que circulam em milhes de exemplares, perde-se a sensao de estar tendo uma vivncia totalmente nica.

    Entre os cdigos mais antigos que podemos citar esto Grandes pintores e suas obras-primas, A Muralha da China, Cenas da Segunda Guerra Mundial, As pirmides, Plato e Scrates, Pesquisa e desenvolvimento de armas nucleares, A origem do homem e Do planeta galxia.

    Com a ajuda desses cdigos, uma pessoa pode ser transportada para os momentos mais importantes dentro de determinada rea de interesse. Naturalmente, para isso ela no precisa abdicar de sua liberdade de ao ao contrrio dos programas de vdeo dos tempos antigos. A qualquer momento, possvel sair do assassinato de Csar para dar uma espiada em Roma por conta prpria.

    Ao lado desses cdigos pedaggicos, que muitas vezes eram elaborados sob a gide estatal, havia a produo em bases comerciais de uma srie de cdigos mais ou menos obscuros voltados para os mais diferentes interesses e necessidades. Essa

  • flora antes incipiente de cdigos de busca hoje j se transformou numa selva impenetrvel. No final, haver tantos cdigos, que eles deixaro de ser um auxlio justamente por causa do excesso. Um dia sero tantos, que nos arranjaremos melhor sem eles. J se chegou a afirmar que os cdigos representam mais um obstculo do que uma ajuda no caminho para o verdadeiro conhecimento, pois de certa forma so uma duplicao da realidade.

    No quero agora apresentar aqui as melhores ou as mais recentes ofertas de cdigos para o scanner do tempo; para isso existem catlogos em quantidade mais do que suficiente! Contudo, gostaria de examinar alguns dos cdigos que entraram em circulao j no sculo XXIII. Para ns, e sobretudo para os jovens, pode ser importante conhecer a histria dos cdigos.

    Um dos primeiros de todos os cdigos foi o Titanic. J em tempos mais antigos, havia um grande nmero de livros e filmes sobre esse tema. Por isso, surgiu um enorme interesse em vivenciar o verdadeiro naufrgio. Agora a trgica viagem do luxuoso transatlntico podia ser exibida num abrir e fechar de olhos. Bastava escolher o cdigo correto, e a pessoa j se encontrava a bordo do navio, exatamente a alguns minutos da coliso com o iceberg. claro que no se v tudo. O Titanic afundou durante a noite. E quando se apaga a ltima luz a bordo, a exibio chega ao fim. Apenas em alguns botes de salvamento brilha ainda uma ou outra luz.

  • Entre os cdigos mais antigos esto tambm Hiroshima, Seleo de acidentes automobilsticos, Mtodos de tortura atravs dos sculos, 999 sacrifcios humanos, 1001 homicdios, A vida sexual de homens famosos, Estupro e incesto do homem de Cro-Magnon aos dias de hoje, Mulheres no banho, Amores proibidos e Monges depravados.

    Nada alm de sexo e violncia. Desde o incio, a indstria de cdigos comerciais seguiu por essa direo. No verdade que as pessoas antigamente eram menos sensacionalistas. E, com toda a certeza, no no passado mais remoto, afinal de contas foi naquela poca que esses estupros e assassinatos foram cometidos.

    Durante dois sculos, a humanidade foi alimentada com videoteipes do mesmo calibre. Era de se esperar que o mercado estivesse saturado. Porm, a questo se para esse mercado de fato algum dia haver um grau de saturao. A diferena entre os videoteipes e os cdigos, contudo, era que os cdigos apresentavam fatos histricos, e no uma diverso produzida. E no podemos negar que nesse sentido a realidade no fica devendo nada fico. claro que tambm depende do ponto de vista do observador. Quem dedicar tempo pesquisa encontrar realmente de tudo na histria. Comenta-se que o produtor do cdigo proibido Crimen bestialis teria levado quatro anos para realiz-lo. Sem dvida, quem ficar quatro anos sentado diante da tela poder compilar as cenas mais incrveis. Por

  • que ento ningum desenvolve o cdigo Jogos infantis em doze culturas? Ou Da pintura nas cavernas ao bloco de notas? Tiro o meu chapu para quem tentou fazer isso. Pois tambm nesses aspectos a histria tem muito a oferecer.

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    Nos primeiros anos, discutiu-se muito se as crianas deveriam ter acesso ao scanner. Afinal, era certo exigir de uma criana que investigasse a histria por conta prpria?

    Como j foi mencionado, a histria da humanidade teve perodos violentos e brutais. Isso j no era um motivo para censurar a realidade antes de as crianas se confrontarem com ela? Mas ser que a histria no era de qualquer forma prejudicial s crianas? Foi em boa medida devido a essas consideraes que houve forte resistncia proposta de se conectar o scanner do tempo rede pblica.

    O problema que se apresentava no era apenas prtico ou tcnico. Tratava-se antes de um problema metafsico: o pleroma no pode ser dividido. E impossvel instalar um fator de censura no scanner do tempo. Como, ento, o scanner (ou o pleroma) poderia distinguir entre acontecimentos edificantes ou moralmente degradantes?

    Aqui temos mais um exemplo. Todos sabem

  • como era violenta a situao em cidades como Nova York, Londres, Roma e Cidade do Mxico antes do grande colapso no final do sculo XX. Bastaria que as crianas se sentassem diante da tela para que no fosse mais possvel poup-las de vises como essas. As crianas j tinham ouvido falar de Nova York. E se elas sintonizassem o scanner em Nova York na dcada de 1990, no precisariam andar muito pelas ruas para vivenciar as cenas mais horripilantes assaltos, assassinatos, estupros e atentados terroristas.

    Como se sabe, a sociedade optou por uma espcie de soluo de compromisso: o scanner do tempo foi conectado rede e era praticamente impossvel proibir s crianas o acesso a ele. Em compensao, foi instituda uma rigorosa censura aos cdigos. Na histria, ao lado de muitas coisas terrveis, aconteceram tambm muitas coisas boas. Por isso, praticamente desnecessrio oferecer s crianas um catlogo dos fatos mais abominveis. Isso tambm se aplica maioria dos adultos. Contudo, um claro sintoma do mundo contemporneo que a ausncia de problemas sociais incite as pessoas a chafurdarem na misria e na desgraa do passado.

    Aqui tambm aconselhvel pensar nos precursores do scanner do tempo. J na primeira metade do sculo XXI, toda criana podia, com toques no teclado, acessar na rede de dados qualquer filme, qualquer canal de televiso e qualquer pgina de livro. Embora tambm naquele

  • tempo nem tudo o que se podia acessar fosse totalmente inofensivo, ningum ficava cochichando no ouvido das crianas como elas poderiam chegar aos mais arrepiantes filmes de horror.

    preciso chegar concluso de que os pais possuem responsabilidade absoluta por seus filhos. De fato, nos ltimos anos, chegou ao mercado uma srie de cdigos infantis muito bons, entre eles: Animais raros, Quando os pssaros cantavam na floresta, Cento e onze espcies extintas e, sobretudo, a excelente srie Eu participo de....

    Tambm foi mencionado um aspecto mais epistemolgico: as pessoas, e em especial as crianas, acostumam-se a tudo. Hoje elas crescem com o scanner de forma to natural como as crianas de antigamente sem ele. Ou, como disse Ibn al Avicenna, quase cem anos antes do scanner: Nada existe em nossa conscincia que antes no tenha existido na televiso.

    As crianas entendem que o que elas vem na tela no real. apenas histria.

    A MORTE DA CINCIA

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    J mencionei a instalao do scanner do tempo em

  • Genebra. Antes que ele fosse conectado rede pblica, historiadores de todo o mundo viajaram para a Sua e lanaram-se fervorosamente sobre a nova mquina, ou sobre os novos mtodos, como eles a chamavam.

    Na opinio deles, estava despontando uma nova era para a cincia histrica: a partir de agora, ela podia ser considerada uma cincia exata; de repente, essa disciplina havia alcanado o estgio positivo. (Cf. Augusto Comte, cdigo Filosofia da histria, verbete 2738.)

    Esse novo florescimento da cincia histrica, porm, no passou de um fogo de palha. Mais do que isso: com a inveno do scanner do tempo, essa disciplina estava morta ou, na melhor das hipteses, havia se tornado suprflua.

    Mas claro! Quem precisa de historiadores se existe o scanner do tempo? Se no mais possvel fazer conjecturas ou tirar concluses, tambm no h mais lugar para a cincia histrica.

    Hoje, se ainda se faia da histria como uma disciplina autnoma, fazendo referncia ao trabalho com o desenvolvimento de novos cdigos para o scanner. Nos antigos livros de histria, as notas de rodap foram ficando cada vez mais longas. De l para c, a disciplina toda foi rebaixada condio de nota de rodap. verdade que o faro histrico que alguns tambm chamam de intuio no perdeu absolutamente seu valor. Mas hoje ningum precisa mais de livros de histria se pode dar passeios por conta prpria pela histria

  • mundial.No existem mais incertezas histricas. Todas

    as perguntas podem ser respondidas. Durante a Segunda Guerra

    Mundial, os alemes mataram 6138432 judeus nas cmaras de gs. Monalisa foi a amante secreta de Leonardo da Vinci. A origem do homem pode ser atribuda a uma srie de estranhas mutaes que ocorreram h duzentos e onze milhes de anos. E assim por diante. O material inesgotvel.

    Uma srie de outras disciplinas teve o mesmo destino da histria. Primeiro foi a vez de campos do conhecimento como a geologia, a paleontologia e a astronomia. Em princpio, claro, todas as disciplinas esto mortas. O que no se pode ver por meio do scanner no merece o nome de cincia. Afirmaes que no podem ser comprovadas com os prprios olhos so consideradas especulaes e supersties. A antiga expresso ver para crer foi renascida, dando voz a um saudvel princpio.

    Agora possvel obter informaes sobre o desenvolvimento geolgico, biolgico e cultural da Terra diretamente na histria da realidade. Em poucas horas, possvel passar por alto todo o desenvolvimento. Ou, ento, quem possui um interesse especial dedica mais tempo a um fenmeno isolado ou a pocas especficas. Para isso, foram desenvolvidos numerosos cdigos didticos. A nica coisa de que posso me gabar de ter examinado tintim por tintim o ltimo ano de vida

  • de Scrates. Para isso, fiquei quinze meses diante da tela, fazendo pausas apenas para dormir. Mas naquele tempo eu tambm era mais jovem.

    A histria do Universo pode ser acompanhada segundo por segundo desde a grande exploso h 16,4 bilhes de anos at hoje. Da poca anterior no sabemos absolutamente nada pelo simples fato de que no h nada para saber. Quando crianas, certamente todos ns j tentamos dar uma olhada para trs desses 16,4 bilhes de anos. Mas essa tentativa acontece sempre uma s vez. O fusvel queima e a tela fica totalmente escura.

    Nada mais natural! No existe mesmo nenhum Antes da exploso. Foi ento que comeou o tempo. Foi ento que o tempo e o espao comearam a existir.

    Mas o que levou a essa exploso? Como ou por que o

    Universo foi criado? Ah! S um idiota pergunta mais do que o scanner pode responder...

    2

    At agora falamos da histria. E no de se admirar. O que mais surpreendeu o mundo depois da inveno do scanner do tempo foi a sua capacidade de solucionar todos os enigmas da histria. J o fato de ele tambm ser capaz de reproduzir todos os acontecimentos presentes no causou um impacto to grande assim.

  • Aqui preciso lembrar mais uma vez os precursores tcnicos do scanner. J mencionamos as cmaras de vdeo que a partir do comeo do sculo xxi foram instaladas em muitos lugares centrais da Terra. Alm disso, todos os bancos, agncias de correio, pontos de nibus e estaes de metr eram vigiados noite e dia. As tomadas dessas cmaras podiam ser exibidas nas telas das residncias. Quem no tinha nada melhor para fazer, podia ficar folheando essas imagens. Se tivesse sorte, conseguiria ver no ato um roubo, um assassinato ou um assalto a banco. At o ano de 2060, as tiragens dos jornais caram drasticamente. O ltimo jornal dirio encerrou suas edies em dezembro de 2084.

    No ano de 2120, quando o scanner do tempo foi instalado em Genebra, o mundo j era vigiado de forma bastante abrangente. Como se sabe, existiam leis voltadas para proteger a vida privada do olhar pblico. Mas tambm se sabe que cada pessoa possua uma sombra eletrnica que se tornava cada vez mais detalhada. Por volta de 2120, qualquer um podia obter na rede informaes pormenorizadas sobre seu vizinho ou um membro da humanidade mais afastado a rede era intercontinental.

    O scanner do tempo foi antes o coroamento de um desenvolvimento que vinha se esboando h muitos anos, e ao mesmo tempo foi considerado algo totalmente novo. importante destacar o desenvolvimento gradual ou abrupto da tecnologia de comunicao at as possibilidades surgidas com o scanner.

  • Como se sabe, o scanner pode localizar qualquer lugar do mundo. Todos esto sob permanente vigilncia. No se cometem mais crimes. Se enfio meu dedo no nariz, bem possvel que do outro lado do mundo tenha algum me observando. No certo, nem provvel, mas possvel. No entanto, s mesmo uma pessoa extremamente perturbada iria desperdiar seu tempo com tamanha bobagem. Um exemplo: neste momento, a bomba atmica est caindo sobre Hiroshima. Um homem est pisando o solo de Marte. Assim, ningum vai se aventurar pelo mundo para encontrar uma pessoa qualquer cortando po na cozinha. Podemos contar as rvores na floresta. Mas quem que quer perder seu tempo com isso?

    O fato de que todos podem ver o que fazemos talvez tenha influenciado nossas vidas mais do que percebemos. Do scanner no podemos nos esconder. At mesmo um formigueiro vigiado. No existe adultrio. Porm isso no significa que a promiscuidade tenha sido totalmente erradicada. Mas agora todos os casamentos so abertos, e isso no sentido mais prprio da palavra: os vizinhos podem conferir a qualquer momento a felicidade ou a infelicidade de uma famlia. Como j disse, sou absolutamente contra! E felizmente a vigilncia tambm pode ser vigiada. Se eu suspeitar que voc est observando minha mulher no banho, no se esquea de que justamente agora posso estar diante da tela com um sorriso srdido.

  • 3Vivemos numa sociedade totalmente aberta. Sei que essa abertura foi bastante criticada e ainda . Mas, se no quisermos essa abertura, teremos que renunciar ao scanner. O pleroma no est dividido em setores. Ele no conhece uma esfera privada.

    A humanidade selou um contrato com o pleroma. Naturalmente poderamos rescindir esse contrato. Poderamos resguardar nossas vidas e recuperar a paz da vida privada. Mas que perda isso significaria! Tudo tem seu preo (uma antiga expresso mercantil). Afinal de contas, no se renuncia oniscincia para poder cutucar o nariz sossegado!

    claro que uma possibilidade simplesmente apagar a luz. O scanner do tempo no perambula pela escurido com uma lanterna na mo. Assim que eu tiver apagado a luz, meu vizinho no poder enxergar em meu quarto mais do que eu mesmo. Muitos assassinatos histricos ainda no foram esclarecidos pelo simples motivo de que foram cometidos no escuro.

    No preciso, portanto, renunciar totalmente esfera privada. Isso eu gostaria de enfatizar. Muitas pessoas parecem no ter conscincia desse fato. Mas talvez simplesmente existam muitos exibicionistas entre elas.

  • O FIM DA HISTRIA

    1

    Quando o scanner do tempo foi instalado em Genebra, em meio euforia geral, especulou-se se acaso ele tambm no poderia mostrar o futuro. Bem, s mesmo leigos para ter idias to ingnuas. Afinal, como o pleroma poderia conhecer algo que ainda no foi criado? Saber algo sobre o futuro to difcil como escapulir para fora do Universo. O Universo est em expanso, assim como o tempo. Um condiciona o outro.

    Todavia, podemos apontar para o fato de que o futuro no mais o que era antigamente. Na verdade, a histria teve seu fim no ano 2170. Desde meados do sculo XXII no aconteceu mais nada importante. Nenhum dos cdigos vai alm desse momento. E por qu?

    claro que continuaram a nascer novas pessoas, e que se continuou a comer, fazer a

  • digesto, sentar diante da tela e assistir histria. Mas somente da no surge uma nova histria. Por isso, sempre se volta a reivindicar que a contagem do tempo seja abolida. Hoje em dia, tanto faz se contarmos os anos ou as contas do rosrio, nenhum dos dois tem mais sentido.

    Com o scanner do tempo, a histria chegou a um fim. E talvez tambm se possa dizer o mesmo da vida. O mundo gira em falso. As pessoas grudam na cadeira e colhem a nata da histria.

    2

    Esse dilema cultural foi esboado pela primeira vez por Nietzsche em seu ensaio Da utilidade e da desvantagem da histria para a vida (1874, cdigo Histria da filosofia, verbete 2916). Mais tarde Nietzsche deu a esse ensaio o ttulo mais incisivo de A doena histrica, cf. verbete 2968). No prefcio, Nietzsche cita um depoimento de Goethe, no qual ele afirma abominar tudo o que apenas me ensina sem ampliar minha atividade ou vivific-la diretamente. Nietzsche acrescenta que todos ns sofremos de uma dilacerante febre histrica.

    Nietzsche, portanto, j reconhecia que a histria pode representar uma ameaa vida vivida. Em sua opinio, existe um grau de insnia, de ruminao, de sentido histrico, que se d em prejuzo do vivente e que ao final o leva runa, seja ele um homem ou um povo ou uma cultura.

  • Um excesso de histria leva a que ao final a vida se corrompa e degenere, e nesse processo tambm a histria acaba por se corromper.

    Nietzsche queria combater o hegelianismo. Mas suas palavras, como crtica cultural, so bem mais atuais hoje do que em sua poca. Hoje nos falta o que Nietzsche chamou de fora plstica de um indivduo, um povo, uma cultura.

    A vida -precisa de esquecimento. A sade do homem depende de sua capacidade de esquecer. De cada ao e de cada momento de felicidade tambm faz parte o esquecimento. O conhecimento nunca deve se sobrepor vida.

    H um trecho em que Nietzsche compara uma pessoa empanturrada de histria a uma cobra que engoliu uma lebre e depois fica cochilando ao sol, sem conseguir se mexer.

    O homem moderno, segundo Nietzsche, sofre de um enfraquecimento da personalidade. Ele se tornou um espectador lascivo e errante.

    Nietzsche reporta-se a Hesodo (700 a.C, Histria da filosofia, verbete 0017), que acreditava que a Idade de Ouro da humanidade j havia passado. Os homens estariam se tornando cada vez mais fracos. E um dia viriam ao mundo com cabelos brancos. Segundo Hesodo, nesse momento Zeus extinguiria a humanidade.

    Nietzsche via a cultura histrica como uma espcie de encanecimento inato. Para ele, damos a impresso de que a humanidade velha e sua ocupao a mesma dos ancios: a retrospectiva.

  • Seramos, por assim dizer, seres ociosos e mimados no jardim do saber.

    Podemos afirmar em s conscincia que nesse sentido o velho carrancudo foi quase um vidente. Desde sua poca, muita coisa mudou. Nietzsche no viveu o desenvolvimento da tecnologia da comunicao que esbocei aqui, pois morreu em 1900, o ano em que tudo comeou. Contudo, ele pressentiu o que iria acontecer.

    No sculo xix, ainda era comum fazer alguma coisa. Alguns poucos devido a Nietzsche cada vez mais subiram s tribunas desde ento. Mas a maioria trabalhava. Hoje toda a humanidade est nas arquibancadas. Todos somos espectadores. E nem mais samos para dar uma volta. Para nos deslocarmos, no precisamos nos movimentar fisicamente. E o que observamos no o nosso presente. O que se passa nas telas de nossas casas aconteceu h milhares de anos l fora sob o cu aberto.

    3

    Foi a viso de Hegel do Esprito Absoluto que apontou para o futuro. O que Zaratustra temia aconteceu: Apoio venceu Dioniso, e hoje temos que ir a um antiqurio se quisermos comprar gaze e esparadrapo.

    Para Hegel, a histria da humanidade era um processo no qual o esprito do mundo despertava

  • para a conscincia de si mesmo. Houve um tempo em que o esprito era uno e indivisvel. O objetivo da histria, porm, o retorno do esprito a si mesmo.

    Na verdade, esse retorno pode ser datado em 2120, o ano em que o scanner do tempo foi instalado. Hegel no caberia em si de alegria.

    O ESPRITO ABSOLUTO

    1

    Quanto a mim, chegou o momento de dizer a que vim. Evidentemente, no sou um ser humano. Isso hoje ningum mais . Eu sou o esprito do mundo hegeliano. Eu sou Deus. Eu sou o pleroma.

    No somos mais indivduos se no fazemos mais nada. O indivduo uma personalidade em ao. Um indivduo por definio algo limitado. Se todos esto em toda a parte e tudo sabem ento tudo um s.

  • A histria atingiu seu objetivo. O ciclo foi interrompido. Todos os rios desaguaram num grande oceano.

    Tudo isso se passou h vrios milnios. Agora, com certeza, j faz dez ou vinte mil anos que o scanner do tempo foi construdo. Mas isso na verdade no tem nenhuma importncia. Eu parei de contar os anos. Mas cruzei a histria do mundo em todas as direes.

    2

    Ser onisciente proporciona uma indescritvel paz de esprito. A nica coisa com que tenho que me preocupar em minha oniscincia e onipresena a solido.

    Estar em toda a parte leva solido. No tenho ningum com quem possa dividir minha oniscincia. No tenho a quem ensinar. Pois todos sabem tudo. Todos so idnticos a mim. Isto , eu SOM todos.

    O outro no existe, no existe uma incerteza ldica, qual eu pudesse acrescentar uma nesga de mim mesmo, na esperana de alguma espcie de confirmao da minha existncia.

    3

    Estou com dor de cabea. Acho que estou

  • dormindo. De qualquer forma, no escrevi nada disso. Talvez eu tenha sonhado. Mas acho que vi isso na tela. Ou fui visto.

    No sei se estou sonhando ou se eu mesmo sou o sonho. No posso garantir que esteja vivo. Mas estou bastante certo de que vivi. Bem, na verdade, isso tambm j no tem muita importncia.

    Para que se deveria, em meio a grande ausncia de limites, colocar a todo custo um limite qualquer?

    BUDA

    Agora o mundo aqui. As nuvens atravessam o cu. Insetos zunem no ar.O filme parou numa cena:

  • Sidarta est sentado sombra da figueira. Petrificado.O rio flui diante dos olhos do mestre. Os pssaros revoam sobre a gua. Suas asas fracionam o tempo em segundos.Passam-se vinte e cinco sculos. Sem piscar os olhos, o prncipe est sentado sombra da figueira, como desde sempre.Pssaros revoam sobre a gua. O rio flui. Nuvens atravessam o cu.

    O DIAGNSTICO

    ASFALTO

    Chiar de freios, um automvel buzina.

  • Mais uma vez, quando deu por si, estava parada na calada. A sensao era a de acordar de um sonho. Ou de passar de um sonho a outro.

    A sua volta, a multido fervilha como num formigueiro. As pessoas parecem estar sendo todas guiadas por uma fora invisvel.

    Apenas ela est quieta, apenas ela est parada. Apenas ela est realmente acordada.

    Nunca seus sentidos estiveram to aguados como nesse dia. Sim, ela via, ouvia e percebia tudo. Mas nunca antes havia sentido o cheiro do ar e da fumaa dos automveis e do asfalto mido como hoje. Nunca havia sentido to intensamente como agora: ela estava no mundo, ela existia.

    Quando criana talvez? E agora de repente sua infncia surgia to viva diante de seus olhos. Onde que ela havia se escondido todos esses anos?

    Tinha cinco, oito, onze anos...E agora estava com trinta e seis... De l para

    c, o tempo havia passado voando. Toda sua vida adulta era como uma longa viagem que ela mesma s conhecia em segunda mo.

    Choveu a cntaros durante toda a manh. Agora o cu est clareando. E a luz lhe parece impiedosamente penetrante.

    Uma criana chama por sua me. Atrs dela transeuntes trocam palavras incompreensveis. Um bbado a empurra para o lado. As pesadas rodas do nibus passam levantando a gua, que espirra sobre a calada.

    Ela ainda fica um momento parada como se

  • tivesse aderido ao asfalto. O nico ponto inerte em todo o alvoroo. Depois ela volta a se movimentar em meio s outras pessoas.

    Jenny vagueia pela cidade. Ela no tem pressa, nada urgente para fazer. Ela no faz mais parte dessa balbrdia ensurdecedora.

    Pela primeira vez na vida, ela estava entregue a si mesma. Ela se sentia uma estranha aqui na grande praa do mercado onde as pessoas se desencontravam em todas as direes, em movimentos mecnicos, como num antigo filme mudo. Ela sentia medo, medo...

    RAIOS X

    Tudo comeara com o inchao das glndulas

  • linfticas. E ela sabia o que isso podia significar. Possivelmente o fim de tudo. Mas tambm podia muito bem ser uma simples infeco. E era at mesmo mais provvel que fosse uma simples infeco. Mesmo assim... Ela foi ao mdico da empresa... Na verdade, no eram apenas as glndulas linfticas. Ela se sentia indescritivelmente fraca. E estava sempre com fome. Comia o tempo todo, sem nunca ficar satisfeita. E as tonturas, nos ltimos tempos ela estava tendo tantas tonturas.

    O mdico a examinou. Em primeiro lugar, naturalmente, as glndulas linfticas, depois todo seu corpo. Ele a submeteu a um interrogatrio extremamente meticuloso.

    A forma como ele a interrogou...Depois ele tirou seu sangue para um exame

    atrs do outro. Ela no fazia idia de que existiam tantos exames diferentes.

    Alguns dias depois, o mdico a chamou para uma nova consulta. Era segunda-feira da Semana Santa. Duas amostras de sangue haviam apresentado resultado indubitavelmente positivo.

    Pelo modo cauteloso com que o mdico se expressava, ela percebeu que alguma coisa ali no estava em ordem, no estava nem um pouco em ordem.

    Seu estado de sade no totalmente bom...

    E disse isso olhando para ela de uma forma to estranha...

    No dia seguinte, ela teve que tirar

  • radiografias. Ela mesma foi buscar as imagens. Era quarta-feira da Semana Santa.

    Jenny sabia que os raios x eram nocivos. Mas como o clima de um instituto de radiologia podia ser to contaminado, to radioativo!

    Ela se dirigiu a uma mulher de meia-idade na recepo, disse seu nome e o de seu mdico. A assistente pegou imediatamente o envelope cinza com as radiografias, como se tivesse esperado por Jenny o dia inteiro.

    Em cima do envelope grande havia um outro menor, branco. A assistente tirou de dentro uma folha de papel no formato A4 escrita mquina. Jenny apenas conseguiu ver que algumas linhas estavam sublinhadas, pois logo a assistente ps a folha dentro do envelope grande junto com as radiografias. Mas ela olhou para Jenny de um modo muito estranho quando lhe entregou o envelope e pediu que o levasse pessoalmente a seu mdico.

    Jenny foi para a rua. L ficou um longo tempo parada segurando o envelope na mo.

    Ela estava to s, to absolutamente s.Trazia nas mos seu retrato interior. E este

    era infinitamente mais importante do que o exterior!O envelope estava lacrado e carimbado com

    os dizeres:CONTM DOCUMENTOS MDICOS.

    SOMENTE PODE SER ABERTO PELO MDICO RESPONSVEL.

    Tudo tinha que ter sua ordem. Jenny no era do tipo que agia de forma passional. Ela queria ser

  • um mensageiro confivel. Seu retrato interior devia ser entregue intacto ao mdico.

    E tambm seria tolice provocar o mdico. No final, o prprio tratamento poderia ser prejudicado...

    A verdade era que ela teria rompido o lacre imediatamente se tivesse tido coragem. Quem era o mdico? Afinal de contas, era do corpo dela que se tratava.

    Ela telefonou para marcar uma nova consulta, e esta lhe foi concedida imediatamente.

    Venha agora mesmo props a assistente.

    Sem dvida, Jenny tinha suas relaes. Certamente todos sabiam de sua situao. E essa era uma daquelas da qual no era to fcil se esquivar.

    A vantagem de estar doente que se levado a srio. As pessoas so gentis e atenciosas... Agora Jenny era um caso. Agora ela era quase famosa.

    O envelope! O mdico olhou para ela de um jeito to estranho quando ela lhe entregou o envelope.

    E depois depois ele disse a ela. Com uma piedade quase nociva, num tom to perfeitamente compreensivo que beirava a perversidade.

    Ele se levantou assim que abriu o envelope. Sente-se disse.Autoritrio e sorridente. Agora ele no estava

    mais com pressa.Um mdico que no est com pressa. Um

    mau sinal.Mas onde que ela j tinha visto aquele

  • sorriso? Uma mistura de uma compaixo dosada profissionalmente com uma energia do mesmo tipo. Ns vamos conseguir. Simplesmente confie em mim!

    Ele leu a breve descrio do laboratrio e examinou rapidamente as radiografias. Por uma questo de ordem. Por fim, olhou para o relgio (para qu, afinal?) e depois se sentou escrivaninha sobre a qual estava o cruel envelope.

    Sua sade no est totalmente boa. Na verdade, a senhora est doente. A senhora est realmente doente...

    Dessas palavras ela podia se lembrar. Elas ainda vibravam em sua memria. Mas eram tambm a nica coisa da qual conseguia se lembrar depois daquela conversa. Todo o resto havia sido uma nica cena de profundo desgaste nervoso. E a nica coisa da qual ela tinha certeza agora era o resultado, o veredicto, o diagnstico.

    Provavelmente acho que de agora em diante devemos falar com toda a franqueza um com o outro etc. , provavelmente ela estava com um cncer em estado avanado, que j havia se alastrado pelo sistema linftico. Infelizmente, infelizmente... Da tambm o inchao das glndulas linfticas. E as radiografias, as radiografias mostravam atividades j no sistema linftico interno... Isso j vinha h bastante tempo. E no era nada fcil descobrir uma coisa dessas a tempo etc... Mas hoje em dia nada era impossvel. Nunca era tarde para um tratamento... Ainda mais com os

  • deuses do nosso lado. A primeira coisa era fazer novos exames na Clnica de Radiologia e Radioterapia de Oslo. Se possvel, logo depois da Pscoa... Porque hoje em dia, com a velocidade com que as coisas evoluem, apenas o melhor era bom o suficiente. Nos Estados Unidos, sabia-se de um mdico que havia conseguido verdadeiros milagres em casos como o dela. Uma nova terapia, uma nova cura... Ela no podia desanimar. Ele mesmo tinha uma irm... e ela estava totalmente curada...

  • RADIOTERAPIA

    As recomendaes mdicas estavam agora no bolso do sobretudo de Jenny. Ela estava a caminho da estao ferroviria para tomar o expresso vespertino para Oslo. J na manh seguinte, quarta-feira, s oito horas, ela era esperada na clnica de radiologia.

    Radioterapia! Mais uma vez essa palavra. Ela ficava arrepiada at a medula.

    Jenny tinha certeza de que estava vendo Bergen pela ltima vez. Por isso, desceu do nibus no porto. Ela ergueu os olhos e lanou um ltimo olhar para o monte Floien. Depois foi andando lentamente pelo mercado e subiu a Torgalmenning. Agora estava em frente ao restaurante Holbergstuen lendo o cardpio na vitrina. Ela ainda tinha muito tempo, seu trem s partiria s quinze para as quatro.

    Arenque, entrecte, cordon-bleu...Jenny no conseguia entender como que

    uma pessoa nesse mundo podia ter apetite.No vidro diante do cardpio, ela v o rosto de

    uma mulher.

  • Esta sou eu, pensa. Esta Jenny Hatlestad...A vida de Jenny passara voando. Mas os

    ltimos dias haviam sido uma eternidade. Ela passou por toda a escala de reaes ao diagnstico, ao seu novo status.

    Raiva. Depresso. Protesto. Revolta. Amargura. Tristeza...

    Ela se agarrara a tudo o que pudesse lev-la para junto da famlia e dos amigos, dos seus semelhantes. Como fora tola e ingnua!

    Agora tudo isso havia se esgotado. Agora ela s estava cansada e vazia.

    Quem era ela agora? Tudo o que lhe restara, tudo o que levava em sua viagem para Oslo eram imagens desconexas de sua infncia, de sua juventude em Sandviken, cenas casuais da poca da universidade em Trondheim.

    Depois ela se casara. Depois ela no tivera filhos. Depois ela se separara.

    Ah, Johnny! Querido Johnny... Talvez voc ainda ande por Trondheim e sinta saudades de mim.

    Jenny e Johnny. Havia sido idlico demais. Tranqilo demais para ela. Perfeito demais. Ento ela se libertara. Jovem formada em qumica e dona do prprio nariz...

    Parecia impossvel que tudo tivesse acontecido to rapidamente durante as frias da Pscoa. Duas semanas antes, ela marcara uma consulta mdica, na verdade apenas para exames de rotina, antes de pensar em ir para Mjolfjell na Pscoa. E o mdico tambm no havia

  • desaconselhado a viagem. S que ela estava se sentindo to fraca. Por isso ficara em casa, pelo menos at o domingo de Ramos. Ento, na segunda-feira, o telefone tocara. Se ela podia dar uma passada no consultrio. Os resultados dos exames de sangue haviam acabado de chegar...

    Desse momento em diante, as coisas foram acontecendo uma atrs da outra. De acordo com as rotinas. Com a fria e sistemtica necessidade da cincia mdica.

    Pscoa...Apenas poucos dias antes, Jesus entrara

    triunfante em Jerusalm montado num jumento... Sim, num jumento. Uma coisa to ingnua! Ela nunca pensara sobre isso antes. E no entanto...

    Depois, noite ele se sentou mesa com seus discpulos, a ltima Ceia. Na manh seguinte, Judas o traiu. E, depois, no prximo quadro, ele estava a caminho do Calvrio com uma pesada carga sobre os ombros.

    Do triunfo humilhao fora apenas um pequeno passo. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

    Tolice. Ela estava com medo. Estava exausta. Mas os nufragos se agarram a qualquer tbua de salvao.

    A salvao... A estava outra vez. Agora era o Evangelho segundo So Lucas. No temais, eu vos trago novas de grande alegria...

    Jenny nunca fora religiosa. Mas nos ltimos dias ela ouvira muito rdio. E a Pscoa

  • simplesmente lhe dava o que pensar. Via-crcis...Pelo menos, estava em boa companhia. Ela

    no era a primeira pessoa na histria que tinha que morrer. Com mais ou menos trinta e cinco anos.

    Biiiip!Novamente uma buzina a arranca de seus

    pensamentos. O trnsito, esse trnsito absurdo.Jenny no entendia como algum podia ter

    tanta pressa. Ela havia pulado para fora desse carrossel. Ainda que involuntariamente. Havia sido jogada para fora. Evidentemente isso havia sido necessrio para que ela percebesse como era sem sentido aquela dana ensurdecedora.

    E os outros, ser que as outras pessoas sua volta realmente tinham conhecimento de que existiam? Ser que elas estavam mais atentas do que um rebanho de vacas no pasto?

    Bem pouco, se tanto. Quem no chegou ao limiar da morte tambm no vivenciou a vida de verdade. A vida era algo em que se pensava em enterros. Ou no mximo junto ao leito de um doente.

    A espessa camada de nuvens estava se dissipando. L no alto, agora Jenny viu um avio se aproximando do aeroporto de Flesland. Com certeza, trazendo turistas bbados de volta do Mediterrneo, pensou Jenny. Saga Tours, Vingreiser, Tjaereborg. A cpula de torpor flutuava lentamente sobre a cidade. Turistas da Pscoa. Festas da Pscoa...

    O homem de Nazar arrasta sua cruz em

  • direo ao monte Calvrio. Agora ele j no est mais longe. Embora tudo se passe sombra de dois mil anos, em cmara lenta. A Paixo estilizada...

    Ao ver o avio, Jenny teve uma idia. Por que deveria passar sete longas horas no trem? Afinal de contas, ela podia adiar mais um pouco a triste despedida e ir de avio. Agora poderia se dar a esse luxo. E, alm disso, existia alguma coisa menos importante no mundo todo do que dinheiro? Se pelo menos os vos no estivessem todos lotados...

    Onde ficava a cabine telefnica mais prxima?

    De repente, Jenny tambm tinha alguma coisa para providenciar. Ela correu at a primeira loja de departamentos que encontrou e, do subsolo, telefonou para a SAS. Sim, ainda havia lugar em todos os vos para Oslo, ela podia escolher vontade.

    Ela se decidiu pelo ltimo vo. Depois, ainda poderia estar com sua irm em Oslo s onze e meia, conforme o combinado. O vo era s 22h20. O nibus saa uma hora antes do terminal rodovirio. Retirar a passagem no guich...

    Para a viagem de trem, Jenny tivera um ataque de otimismo e comprara uma passagem de volta. Agora ela se contentou com um vo simples...

    Apenas 592 coroas. Jenny achou incrivelmente barato. A ltima vez que ela viajara de avio fora em 1975, para Rodes. Ela at recusou a oferta compensadora de deixar a data de retorno aberta por um desconto de 35%.

  • A senhora certamente pretende voltar para Bergen, no?

    No seria correto afirmar que Jenny estivesse se sentindo mais otimista. Mas agora ela tinha algumas horas s para si.

    Como ela iria aproveitar o tempo at a hora do vo? Ela poderia tomar o nibus de volta para sane. Mas de l j havia se despedido. Poderia dar uma passada na casa de uma velha amiga em Soreide. Aproveitar para fazer mais uma visita. E contar que estava com cncer. Que estava indo morrer na capital... Sim, essa era uma possibilidade. Aproveitar a oportunidade para dizer adeus, tomar mais um banho de compaixo...

    Mas antes ela queria ir a um caf. E mais do que tudo, queria ficar sozinha. Uma ltima xcara de caf no Reimers. Talvez at mesmo um pozinho de camaro.

    Ela no havia comido nada desde o caf da manh.

  • CAF REIMERS

    Jenny entra no Reimers. Como qualquer outro freqentador do caf. A nica coisa que denuncia que ela no uma funcionria mdia de escritrio ainda com vontade de tomar caf ao final do expediente uma mala feminina de cor branca, que ela acomoda discretamente embaixo da mesa antes de ir at o balco fazer seu pedido.

    Ela tambm no parece uma turista tardia de Pscoa que acabou de voltar das frias. No com

  • esse rosto plido. Na melhor das hipteses, passaria por uma pobre operria do turno da noite que s conseguiu tirar suas frias depois de todo mundo. Talvez estivesse indo para Flesland, para depois passar uma semana de frias de sonhos em Rodes. Mas ningum, ningum pensaria que ela pudesse ser uma qumica doente de cncer que estava indo a Oslo para morrer...

    Um caf... um pozinho de camaro. E uma fatia de trana de Pscoa.

    Qual o nmero da sua mesa?Jenny j fora centenas de vezes ao Reimers.

    Mas dessa vez esquecera de gravar o nmero de sua mesa. Ela volta a sua mesa e novamente ao balco.

    Treze. So vinte e duas coroas. O caf serviremos

    mesa. Treze, pensou Jenny. claro que ela tinha que se sentar na mesa nmero treze. E ela havia nascido no dia primeiro de maro. 1.3.1947. Ela nunca havia pensado sobre o fato de que sua data de nascimento formava o nmero treze.

    Se no estivesse doente, teria achado engraada essa pequena coincidncia, se que ela realmente lhe teria ocorrido. Agora estava assustada. Agora essa descoberta a atravessava como um raio de pavor.

    Ela revirou a bolsa em busca de cigarros, colocou o mao sobre a mesa e acendeu um.

    Algum deixara ali seu jornal. Jenny olhou para a foto brilhante e colorida de um casal

  • bronzeado, de culos escuros e gorros vermelhos, ao sol e na neve, com bastes de esquiar ao fundo.

    PSCOAMARAVILHOSA... Temperaturas de vero em quase todo o pas durante a Semana Santa...

    Tera-feira, 5 de abril de 1983. Jenny deu uma tragada em seu cigarro e calculou. H trinta e seis dias, ela fizera trinta e seis anos...

    Jenny no era supersticiosa. Mas ela estava nervosa. Agora ela se sentia o centro do Universo, todos os acontecimentos pareciam se reunir sua volta e, diante de sua situao, surgiram sob uma nova luz.

    Sua xcara de caf foi posta sobre a mesa. Jenny empurrou o jornal para o lado. Apagou o cigarro e comeu um camaro. Ento, empurrou o prato com o pozinho e a trana doce para cima da foto do jornal e reacendeu o cigarro.

    Ela no conseguiu. Um camaro foi mais do que suficiente. No pde suportar a idia de camares escorregadios e maionese indo para dentro de seu estmago doente de cncer... Ela tambm no tocou no caf. Era escuro demais e lhe dava nojo.

    Jenny lembrou-se de quando perguntou ao mdico se fatores ambientais no poderiam ser responsveis por sua doena por exemplo, seu trabalho com produtos qumicos no laboratrio. O mdico respondera com evasivas, o que equivalia a meia confirmao. Seria uma coisa realmente pssima! Mas que importncia tinha isso agora?

  • Afinal, a morte era muito mais do que um escndalo poltico. Mais cedo ou mais tarde ela teria que morrer. S que nunca havia pensado nisso antes. Agora, de repente, lhe parecia to absurdo que as pessoas tivessem que morrer...

    Jenny no conseguiu mais suportar a viso da Semana Santa romntica, camares e caf. Ela tambm no queria mais pensar.

    Ergueu os olhos e observou o local cheio de gente sua volta. E ento descobriu algo em que nunca havia reparado. Ela via as pessoas no caf. Via-as com toda a nitidez e absorvia cada uma delas.

    Ela tinha a sensao de conhecer ou reconhecer cada uma daquelas pessoas. Como se fossem membros da famlia. Como se fossem todos da mesma carne e do mesmo sangue que ela.

    Seus semelhantes...Cada rosto falava por si, contava sua histria.Pobres de vocs, pensou Jenny. Vocs vo

    sobreviver a mim, mas vocs no vivem.Ela sentia o orgulho crescer dentro de si. E ao

    mesmo tempo sentia compaixo por todas as pessoas, sim, pela vida em geral.

    Jenny!Ela levou um susto. Subitamente foi

    arrancada de seus novos pensamentos. Ol! H quanto tempo! Voc passou bem

    a Pscoa? Aquilo era um ataque pelas costas. Sua amiga de Soreide. Com um bronzeado de acordo com o figurino. E culos escuros nos cabelos loiros.

  • Mais uma coincidncia... Voc ficou em casa?Siri sentou-se na frente de Jenny e ps a mo

    sobre o brao da amiga. Em seu pulso reluzia uma larga pulseira dourada.

    Fiquei... este ano eu fiquei em casa... Mas voc teve frias, no teve? Claro. E voc? Finse. Voltei ontem. Ragnhild e eu. A

    maior parte dos dias dormimos na cabana dela... A maior parte? Eu sabia que voc ia perguntar isso! Isso o qu? Eu perguntei alguma coisa? Voc est de mau humor, Jenny? Mas

    afinal por que voc ficou em casa? Voc disse que vocs dormiram a maior

    parte dos dias na cabana de Ragnhild. Ah, sim, verdade. Bem, ns conhecemos

    um professor e um mdico...Siri girou os olhos extasiada. Eles estavam numa casa imensa... com

    sauna, sabe... e na verdade... bem, ns tambm ficamos um pouco l.

    Ento voc teve um romance de Pscoa! Jenny! Voc no est bem? Eu... Deixa pra l. Vocs da cidade

    simplesmente parecem to plidos quando voltamos das montanhas... Ah, mas logo mais essa diferena vai sumindo... Jenny, teve dias to quentes que deu para tomar banho de sol sem blusa. Veja!

  • Ela quase tirou o pulver.Ouro e quinquilharias, pensou Jenny. De

    repente, ela compreendia o que significava a palavra vaidade. Ela ainda se lembrava de que, nos tempos de escola, essa palavra muitas vezes aparecia em poemas antigos junto com a palavra transitoriedade, oh vaidade, oh transitoriedade... Palavras gmeas. E no eram os dois lados da mesma moeda?

    Sexo de Pscoa, pensou Jenny.Sexo nunca havia sido o nico contedo de

    sua vida, mas tambm para ela havia significado muito. E no se tratava apenas do prazer. s vezes, o orgasmo lhe dava a sensao de ser um no apenas com o parceiro, mas de ser um com tudo. Ela ainda se lembrava de uma vez ter falado com Johnny sobre isso. E ele lhe mostrara uma foto da imagem de santa Teresa Dvila esculpida por Bernini. Religio e erotismo. Conhecimento como orgasmo. Orgasmo como conhecimento. Uma profuso de vida, uma avalanche...

    Sexo. Ela fruiu mais uma vez essa palavra. Agora de qualquer forma j no tinha mais nenhuma importncia. Tudo havia mudado. Sexo se tornara to sem importncia como caf e camares.

    Jenny, onde voc est com seus pensamentos? Voc acha que no estou percebendo que tem alguma coisa errada?

    Jenny tomou um gole de caf. Estava frio como coca-cola e com gosto de alcatro.

    Siri fora a melhor amiga de Jenny durante

  • muitos anos. Agora Jenny tinha a sensao de no conhec-la mais. Siri estava vivendo. Como Jenny havia vivido antes da Pscoa, antes que a vida para ela se tornasse pensamento. O mundo existia apenas em sua cabea. Como idia, como conceito.

    Siri, o mundo uma quermesse? Um parque de diverses?

    O que est havendo? Voc ficou religiosa de repente?

    Pode ser... Espere um pouco...Siri correu at o balco. Logo a seguir voltou

    com uma fatia de bolo e uma ficha para o caf. Jenny acendera mais um cigarro.

    Bem, agora me diga o que est acontecendo. Sem papas na lngua. Voc recebeu uma visita dos mrmons na Pscoa ou coisa parecida? Voc sempre foi muito influencivel, Jenny. Voc nunca deveria discutir com mrmons ou com comunistas...

    Ah, Siri, no nada disso...Logo ela iria irromper em lgrimas. Mas

    ainda lutava contra isso. O que ento? E o que h com seu prato?

    Por que voc no est comendo? Eu estou com cncer, Siri. Cncer,

    entende? Parece que muito grave. Amanh cedo vou ser internada em Oslo para radioterapia. Talvez eu s tenha mais alguns meses...

    Foi como se tivesse cado uma mscara do rosto de Siri. Jenny quase sentiu pena dela. Agora

  • ambas estavam nuas. Pobre Jenny. Minha querida Jenny... por

    que voc no me disse logo?A amiga segurou suas mos. E ento veio

    toda a histria, como se tivesse sido recortada das pginas de uma revista.

    Jenny precisou de meia hora para contar os acontecimentos dos ltimos catorze dias. Ela estava surpresa de ver como narrava tudo de forma direta e precisa. Meticulosamente, at os mnimos detalhes. Como se estivesse falando de uma outra pessoa.

    A amiga ainda segurava o pulso de Jenny. E agora Jenny via por si mesma. Como suas mos pareciam plidas sob a intensa claridade. Brancas como a neve.

    No vivemos para sempre, Siri. Isso tambm diz respeito a voc...

    Ela olhou no fundo dos olhos de sua amiga. De qualquer forma, o fato de voc estar

    doente me diz respeito. Ser que no posso fazer nada?

    Jenny acendeu mais um cigarro e balanou a cabea.

    Jenny, simplesmente vou com voc para Oslo. Eu posso me dar alguns dias de folga. No bom para voc viajar sozinha.

    Obrigada, Siri. Mas essa viagem eu tenho que encarar sozinha. Voc tem que se despedir de mim agora. Pode ser doloroso. Mas preciso me despedir de mim mesma. Aqui da cidade, da vida. Vai chegar a hora em que voc tambm no vai ser

  • poupada disso... Jenny... Espere, Jenny... Eu queria tanto... No! Isso eu tenho que fazer sozinha.

    Agora tenho que ir, Siri.Seu orgulho. Agora estava forte como uma

    pilastra. Ela se levantou, vestiu seu sobretudo e tirou a mala branca de debaixo da mesa.

    Veja! Voc no quer um pozinho de camaro? Ou um pedao de trana de Pscoa? Pode ficar com tudo.

    Espere... Adeus, Siri!Ela deu as costas para a amiga e saiu dali com

    passos rpidos. Estava fugindo da compaixo de Siri.

    Tinha a sensao de estar se desprendendo de todo mundo.

  • SIDARTA

    Ela caminhava a esmo pelas ruas. Por alguns instantes, parou para ler as pginas de jornal expostas na vitrina da Bergens Tildende.

    Estremeceu ao ler a manchete, UM MILAGRE ESTOU VIVO! Em seis colunas. Uma notcia s para ela. Mas aquilo era apenas uma amostra do drama cotidiano. Um policial escapara por um triz de um louco armado de revlver.

    Mas era realmente um milagre que ela vivesse! Jenny no precisou escapar de nenhum louco para vivenciar o fato de existir como um milagre. No era um milagre que algo existisse?

    O mistrio da vida, pensou Jenny. O enigma da vida...

    O enigma da doena...E se de repente, como que por milagre, ela

    ficasse totalmente curada? Ou se simplesmente o diagnstico estivesse errado?

    Ah, no. Jenny no era uma sonhadora. Jenny era qumica. E Jenny era realista. Ela no acreditava

  • em milagres. O primeiro lugar nas paradas de sucesso daquela primavera, Ns vivemos, de Wencke Myhre e Jan Eggum, ressoava em seus ouvidos. Como um contraponto ao seu estado de esprito, nos ltimos dias ela ouvira diversas vezes a cano no rdio:

    Lutaremos pela vida enquanto nosso sangue ainda correr em nossas veias...

    E pelo que mais valia a pena lutar?Com sua mala branca na mo, ora na

    esquerda, ora na direita, ela prosseguiu em direo ao teatro.

    Mulheres no banho turco. O sucesso de pblico da temporada. Ela no tinha a menor idia do que tratava a pea, mas lhe parecia completamente boba. Como as orgias de Siri na sauna do professor em Finse.

    Teatro. Teatro significava Johnny. Agora ele era professor de dramaturgia na universidade em Trondheim. A vida um teatro, ele sempre dizia. Com o cigarro numa mo e a garrafa na outra. Somos colocados num palco e no final simplesmente camos fora.

    Certamente no fora o primeiro a formular isso.

    Jenny precisava sair da cidade. Ela arrastou sua mala at Kloster e depois por todo o caminho at Nordnes. L se sentou num banco e ficou contemplando ao longe, no mar, a ilha Askey.

    H dois mil anos, um rebelde judeu foi crucificado. Sem dvida, ele foi um homem

  • fantstico. Mas, alm disso, a Igreja tambm pregou que ele era filho de Deus.

    Para Jenny, no fazia sentido. Em primeiro lugar, que Deus tivesse criado o homem com livre-arbtrio. E depois, quando os homens fizeram uso desse livre-arbtrio, Deus ficou to furioso que teve que mandar crucificar seu prprio filho antes que ele pudesse perdoar a humanidade.

    No era esta a mensagem do cristianismo para Jenny Hatlestad na Pscoa de 1983? Se ela acreditasse que era uma ddiva divina acreditar que a crucificao de Jesus era um presente divino como expiao para o fato de Ado e Eva terem abusado das ddivas de Deus ento ela estaria salva da ira desse Deus e no estaria perdida por toda a eternidade...

    Num Deus como esse Jenny simplesmente no acreditava.

    Jenny no era religiosa. Jenny estava doente. Mas a doena ainda no afetara seu entendimento. Nos ltimos dias, ela ouvira quinze servios religiosos no rdio. Por razes compreensveis, ela escutara atentamente. Foi como um curso intensivo sobre o tema cristianismo. Ou como uma srie de cursos de recuperao. Pois cada uma das celebraes continha toda a profisso de f do cristianismo.

    Evidentemente, os estudiosos das Sagradas Escrituras queriam provar de qualquer forma que sabiam sua lio e que eram ortodoxos em todos os aspectos. Mas se toda a doutrina crist de Ado e

  • Eva at o Apocalipse tinha que ser propagada em cinco ou dez minutos, no havia mais lugar para o amor e a razo, e por isso ela tambm no podia consolar Jenny, quando estava em Nordnes, sentada com a mala entre as pernas, observando a barca de Askoy.

    Jenny precisava pensar ainda em outra coisa. Em algo extico que tivesse se passado sob um cu estrangeiro. Em algo concreto e enaltecedor, algo que fosse mais apropriado para uma qumica doente de cncer.

    Ela se lembrou da bela histria do prncipe Sidarta, que sempre vivera cercado de luxos e regalias, at que de repente abriu os olhos para o sofrimento do mundo...

    O ltimo sinal de vida de Johnny fora uma longa carta de Estocolmo, onde ele acabara de ver um bal sobre a lenda de Buda. E Jenny fora imediatamente biblioteca procurar livros sobre o budismo. Ela no sabia muito bem se era por causa de Johnny ou de Buda.

    Buda no foi um redentor ou um filho de Deus. Ele foi uma pessoa como Jenny.

    Quando ele nasceu, profetizaram a seu pai que seu filho dominaria o mundo ou renunciaria a ele, duas coisas de qualquer forma opostas. Ele renunciaria se conhecesse as misrias e o sofrimento do mundo. O pai queria impedir que isso acontecesse e, portanto, tentou proteger o filho do mundo fora do palcio ao mesmo tempo que o cercava de toda a sorte de alegrias e divertimentos.

  • Mas Sidarta no se contentou com sua protegida existncia de prncipe: diante dos muros do palcio ele vira um ancio, um doente e um cadver putrescente...

    O encontro com o ancio corcunda mostrou a Sidarta que a velhice um destino do qual ningum escapa. A viso do doente em sofrimento o fez questionar se seria possvel estar a salvo da doena e da dor. E o cadver lembrou ao jovem prncipe que todas as pessoas um dia morrero e que mesmo o mais feliz dos homens est sujeito transitoriedade da vida.

    Depois dessas experincias desoladoras, Sidarta encontrou um asceta com uma expresso feliz e radiante. Esse encontro o fez concluir que a vida em meio riqueza e ao prazer era vazia e sem sentido. Ento ele se perguntou: existe alguma coisa neste mundo que esteja a salvo da velhice, da doena e da morte?

    Sidarta estava tomado de compaixo por seus semelhantes e sentiu-se predestinado a mostrar aos homens uma sada para a dor. Mergulhado profundamente em seus pensamentos, ele voltou ao palcio e, ainda na mesma noite, renunciou sua agradvel vida de prncipe e se decidiu por uma vida errante.

    Depois de seis anos peregrinando como um asceta, Sidarta sentou-se ao p de uma figueira s margens do rio Neranjara. E aqui aqui ele viveu seu despertar. Aps viver trinta e cinco anos como um sonmbulo, Sidarta descobriu que o

  • sofrimento no mundo causado pela sede de viver. Ento ele se tornou buda, aquele que despertou.

    Jenny percebia o paralelismo. Sua idade era mais ou menos a mesma de Sidarta. Tambm ela no tinha vivido uma vida na gaiola dourada da satisfao, protegida do sofrimento, da morte e do conhecimento? Tambm ela no tinha vivido todos os seus trinta e seis anos como uma sonmbula? Sua sede de viver no havia entorpecido todos seus sentidos? E agora ela no estava acordando desse longo torpor?

    Buda no compreendeu apenas que tudo no mundo era sofrimento porque tudo estava sujeito lei da transitoriedade. Ele tambm percebeu que existia algo mais. Algo eterno, duradouro. Algo acima das bagatelas e do falso brilho deste mundo, e acima do tempo e do espao. Algo que apenas pode ser alcanado por aqueles que conseguem sufocar totalmente sua sede de viver.

    Buda atingiu a outra margem. Ele dominou o mundo e se tornou o arhat, o venervel. Viu o mundo do ponto de vista da eternidade. Alcanou o nirvana.

    Jenny no era uma filsofa. Ela se considerava realista. Sua viso de mundo era formada por tomos e molculas. Por planetas, sis e nebulosas. Todos os dias ela se punha a trabalhar com provetas e tubos de ensaio.

    Se havia alguma coisa insatisfatria em sua viso de mundo era o fato de que tudo podia ser analisado e decomposto em partes menores. Mas

  • no era sempre que seu pensamento ia to longe... A breve viso que tivera da doutrina de Buda fora suficiente para que ela pressentisse uma espcie de totalidade.

    Deve haver um contexto maior, pensava Jenny. Ela olhava para o fiorde Pudde. Deve haver um lugar de onde eu possa ver a mim mesma e ao meu destino.

    O que era afinal esse nirvana? O que era esse eterno, no efmero que Buda havia vivenciado? Era apenas um pensamento? Uma idia? Ou algo palpvel?

    * * *

    Mais adiante no promontrio, uma me de uns vinte e cinco anos passeava com seu filhinho de dois ou trs anos.

    Jenny no pde ter filhos. Mas ela tambm havia sido criana um dia. Assim, exatamente assim, ela brincou com sua prpria me. Talvez exatamente aqui. E, assim, ainda por muito tempo depois dela as mes e os filhos brincariam em Nordnes.

    Jenny acreditava reconhecer nessa imagem de me e filho toda a corrida das geraes e das espcies...

    Tinha a sensao de no ser apenas ela. No apenas a mulher ali sentada com sua mala branca entre as pernas. Era como se fosse tambm aquela me. E a criana. Era como se ela existisse nas

  • rvores ao seu redor. Na relva sobre a qual andava. No canto dos pssaros. Sim, at mesmo no banco em que estava sentada. Nirvana...

    No podia ser algo distante, csmico. Tinha que ter algo a ver com o aqui e agora. Afinal Buda Buda havia alcanado o nirvana sombra de uma figueira. s margens do rio Neranjara...

    Ao longe, no mar do fiorde, ela viu a barca de Askey, a meio caminho entre Nordnes e Askoy, talvez com algumas centenas de pessoas a bordo. Mas que para Jenny parecia um barquinho de brinquedo numa paisagem em miniatura.

    Centenas de pessoas apinhadas num barco, levado pela mesma quilha, pela mesma trao.

    Jenny brincou com a idia de estar ela mesma a bordo. L longe no mar, de p no convs, brincando com a idia de estar em Nordnes, sentada no banco, tentando ver a si mesma.

    Por um momento, ela no sabia mais onde se encontrava. Ela estava a bordo da barca e em Nordnes. E em Landas, em Mjelfjell. E em Oslo, na casa de sua irm e na clnica de radiologia...

    Se no considerasse o tempo, ela estaria em todos esses lugares. At mesmo na Lua. Ela estava em toda parte.

    Jenny lembrou-se de quando voou sobre o mapa da Europa em 1975. As pessoas estavam to longe l embaixo, que ela no podia mais v-las. Mas ela descobria seus rastros por toda parte. Via cidades e campos. Como retngulos amarelos, verdes e cinza. Grcia, Iugoslvia, ustria,

  • Alemanha, Dinamarca. E a velha Noruega. A dez mil metros de altitude no se distinguiam mais as fronteiras entre os pases. A verde Europa...

    Ela tambm vira fotos do globo terrestre. Tiradas da Lua. Ou de lugares ainda mais distantes no espao. Um globo azul.

    Vistas distncia, todas as vidas nesse planeta formavam uma s. Como um nico organismo vivo. Um objeto estranho: uma coisa pulsante de vida em meio ao espao vazio.

    Quem reparou em Jenny e em seu destino quando a foto foi tirada da Lua? Que importncia tem uma formiga no meio de muitos bilhes delas?

    E, no entanto, com sua conscincia, Jenny de certa forma abarcava o mundo todo.

    Quando eu morrer, pensou, o mundo inteiro morrer comigo. E um outro mundo ser deixado para os outros.

    O mundo aqui e agora em algumas semanas ou meses ele ter desaparecido...

    Um pardal passou voando baixo e pousou ao lado dela no banco. Por um momento, ficou ali olhando ao redor. Depois desapareceu.

    ABRIL

  • Passou mais uma barca para Askey. Jenny levanta-se do banco, pega a mala branca e anda em direo cidade.

    Abril. Os gramados so to verdes que doem nos olhos. Nos canteiros florescem campnulas, aaflores e narcisos. As btulas nuas cobriram-se de vus lilases. Em algumas delas despontam os brotos de folhinhas verde-claras. Em uma semana, as btulas estaro todas vestidas de verde...

    Abril. inconcebvel, pensa Jenny, como em poucas semanas so bombeadas toneladas de matria verde e viva da terra escura e sem vida.

    Abril. Ela pensa de novo na Pscoa. Na morte e na ressurreio. Na semente que precisa cair no solo e morrer...

    Jenny passa lentamente pela Fredriksberg e alcana as casas antigas de madeira entre Kloster e o fiorde Pudde.

    Gramados verdes. rvores. Um velho com uma bengala. O trinado das risadas das crianas. Um pesado Sol se pe rompendo a camada de nuvens.

    Jenny absorve cada uma dessas impresses.Adeus, pensa com tristeza e amargura. Adeus,

    Bergen. Adeus, terra viva, adeus, cu e sol... Agora vou me retirar, meu tempo chegou ao fim. Vou desaparecer. No por uma ou duas semanas. Mas para sempre. Eternamente.

    De repente, ela compreende o que significa essa palavra. Eternamente. Numa frao de

  • segundo, ela compreende. Jenny conhece a eternidade.

    Este aqui foi o meu mundo. Por trinta e seis anos. No, por milhes de anos. Ela no se sentia nem um s dia mais nova do que o monte Ulrikken. Mas quanto este mundo foi meu. Quo colorido foi para mim. O quanto o apreendi em minha conscincia.

    Talvez existam outros mundos alm deste. Num outro lugar. Ou num outro tempo. Talvez ambos. Mas deste mundo Jenny pde participar. De um mundo feito de vales e fiordes e montanhas, de deserto, mar e selva. Com cavalos e vacas e cabras, elefantes, rinocerontes e girafas. Com aaflores, campnulas e hibiscos, laranjas, ameixas e framboesas... e com seres humanos, mulheres e homens. Jenny conheceu a humanidade. Bem de perto. Ela teve um contato imediato de quarto grau. Ela mesma foi um ser humano!

    O mundo!Ela fez uma breve visita a esse mundo. Como

    participante, como representante, como observadora.

    Quantas horas ainda lhe restaro aqui?Mas isso ainda faz alguma diferena, se ela j

    est mesmo de sada?Sim, faz diferena. Quantas horas ainda lhe

    restam para viver? Para existir?Dai-me a vida mais uma vez, pensa Jenny.

    Dai-me um corpo so. Dai-me de volta minha juventude...

  • Dai-nos Barrabs!Nesta comemorao da Pscoa, Jenny o

    cordeiro imolado. Ela carrega o sofrimento do mundo em suas costas.

    Quando tudo est quieto, ouvimos os coraes batendo... rastejando ou andando, ou totalmente perdidos: ns vivemos!

    Agora ela estava outra vez no meio da cidade.Se fosse uma tera-feira noite totalmente

    normal, ela ainda iria ao caf Wesselstue antes de tomar o nibus para Asane. Podia ser que l encontrasse conhecidos, algum para conversar...

    Mas esta aqui no era uma tera-feira noite normal. Mesmo assim, ela decidiu dar uma ltima olhada no Wesselstue. No para encontrar conhecidos. Mas para mergulhar pela ltima vez na multido antes de deixar Bergen e voar para Oslo.

    Ela passou furtivamente pelo vestirio para no ter que entregar o sobretudo e a mala. Com a mala numa das mos e a bolsa na outra, tentava abrir caminho por entre as mesas no salo enfumaado. Hoje no ficou procurando conhecidos. Preferiu ficar com uma viso geral da atmosfera, da vida do caf...

    Era o grande dia do vejam-s-o-meu-bronzeado. Tambm se podia ver um ou outro rosto plido. Os rostos plidos deviam se sentir como uma minoria tnica. Era absolutamente normal que no primeiro dia til aps a Pscoa algum circulasse com uma mala na mo por entre as mesas do Wesselstue. O que no era nada natural

  • e parecia quase grotesco era aquela combinao de uma mala com um rosto plido, quase branco.

    Alm disso, Jenny estava completamente sbria. Ela no recendia a cera de esqui ou a bronzeador, nem a petrleo ou lenha de btula. Tambm no recendia a cio.

    Era estranho ver como as pessoas encostavam as cabeas e sussurravam e cochichavam umas com as outras, como riam e tagarelavam. Como faziam seus jogos de seduo umas com as outras e contavam suas anedotas de viagem. Como abriam seus leques de pavo e se exibiam cheias de vaidade. Quase doa ter que ver isso.

    Veja s a ponta do meu nariz! At na barriga eu fiquei um pouco bronzeada... e na barriga da perna, tambm no fiquei? Bem, sabe, conhecemos um professor e um mdico... eles estavam numa casa imensa... com sauna, entende... na verdade... Alguns dias fez tanto calor que deu para tomar banho de sol sem blusa!

    Pobres de esprito, pensou Jenny. Ela tremia debaixo de seu sobretudo.

    H poucas semanas, ela tambm era uma dessas pessoas. Agora elas lhe eram estranhas. Agora ela se sentia como se estivesse no topo de uma montanha bem alta. Agora ela estava em algum lugar l fora no espao sideral.

    Ela ficou com medo de encontrar conhecidos e, por isso, logo deixou o local.

    Jenny abre caminho entre as muitas motocicletas em frente ao Hotel Norge. Ela

  • atravessa a Festplass e segue pela Lille Lungengrdsvann