O livro negro do comunismo stephane courtois

2054

Transcript of O livro negro do comunismo stephane courtois

  1. 1. JEAN-LOUIS PANN, ANDRZEJ PACZKOWSKI, KAREL BARTOSEK, JEAN-LOUIS MARGOLIN O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO Crimes, terror e represso coma colaborao de Remi Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque Traduo CAIO MEIRA BERTRAND BRASIL Ttulo original: L livre noirdu communisme Obra publicada sob a direo de Charles Ronsac Capa: Raul Fernandes Editorao: Art Line 1999 Impresso no Brasil Printed in Braztl CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L762 O livro negro do comunismo: crimes, terror e represso / Stphane
  2. 2. Courtois... [et ai.]; coma colaborao de Remi Kauffr... [et ai.]; traduo Caio Meira. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 924p., [32] p. de estampas: il. Traduo de: L livre noir du communisme ISBN 85-286- 0732-1 1. Comunismo Histria Sculo XX. 2. Perseguio poltica. 3. Terrorismo. I. Courtois, Stphane, 1947-. CDD - 320.532 99-1236 CDU-321.74 Todos os direitos reservados pela: BCD UNIO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20 andar - Centro 20040-004 - Rio de Janeiro - RJ Tel: (OXX21) 263-2082 Fax: (OXX21) 263-6112 No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sema prvia autorizao por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal.
  3. 3. Orelhas da capa: Outubro de 1917: o golpe de estado bolchevique significou bemmais do que a queda do czarismo e a subida ao poder de umgrupo de polticos idealistas. A revoluo liderada por Lenin tornou-se o cone que representaria o comeo de uma nova era para a humanidade, anunciando uma sociedade mais justa e umhomemmais consciente de sua relao com seu semelhante. Novembro de 1989: a queda do Muro de Berlime a consequente abertura dos arquivos dos pases comunistas aparecerampara o mundo como a derrocada final do sonho comunista. O livro negro do comunismo traz a pblico o saldo estarrecedor de mais de sete dcadas de histria de regimes comunistas: massacres emlarga escala, deportaes de populaes inteiras para regies sema mnima condio de sobrevivncia, expurgos assassinos liquidando o menor esboo de oposio, fome e misria provocadas que dizimaramindistintamente milhes de pessoas, enfim, a aniquilao de homens, mulheres, crianas, soldados, camponeses, religiosos, presos polticos e todos aqueles que, pelas mais diversas razes, se encontraramno caminho de implantao do que, paradoxalmente, nascera como promessa de redeno e esperana. Os autores, historiadores que permanecemou estiveramligados esquerda, no hesitamemusar a palavra genocdio, pois
  4. 4. foramcerca de 100 milhes de mortos! Esse nmero assustador ultrapassa amplamente, por exemplo, o nmero de vtimas do nazismo e at mesmo o das duas guerras mundiais somadas. Genocdio, holocausto, portanto, confirmado pelos vrios relatos de sobreviventes e, principalmente, pelas revelaes dos arquivos hoje acessveis. O terror - o Terror Vermelho - foi o principal instrumento utilizado por comunistas tanto para a tomada do poder quanto para a sua manuteno, e tambmpor grupos de oposio que jamais chegaramao governo. Os fatos demonstram: o terrorismo de oposio e o terrorismo de Estado, comfrequncia praticados contra o seu prprio povo, so as grandes caractersticas do comunismo no sculo XX. Obstinados, pragmticos, carismticos, os lderes comunistas, que guiariamo mundo a seu destino inelutvel, tmrevelada a sua face sombria: Lenin, Stalin, Mo Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh, Fidel Castro e muitos outros tornam-se os responsveis diretos pelas atrocidades cometidas emnome do ideal comunista. Sob seus olhares zelosos, os "obstculos" - qualquer homem, cidade ou povo - foramsendo exterminados comviolncia e brutalidade. O livro negro do comunismo no quer justificar nemencontrar causas para tais atrocidades. Tampouco pretende ser mais umcaptulo na polmica entre esquerda e direita, discutindo fundamentos ou teorias marxistas. Trata-se, sobretudo, de dar nome e voz s vtimas e a seus algozes. Vtimas ocultas
  5. 5. por demasiado tempo sob a mquina de propaganda dos PCs espalhados pelo mundo. Algozes muitas vezes festejados e recebidos comtoda a pompa pelas democracias ocidentais. Todos que de algummodo tomaramparte na aventura comunista neste sculo esto, doravante, obrigados a rever as suas certezas e convices. Encontra- se, assim, uma das principais virtudes deste livro: luz dos fatos aqui revelados, o Terror Vermelho deve estar presente na conscincia dos que ainda cremnumfuturo para o comunismo. O editor e os autores dedicameste livro 2 memria de Franois Furet, que havia concordado em redigir o seu prefcio. SUMRIO OS CRIMES DO COMUNISMO 11 PRIMEIRA PARTE UM ESTADO CONTRA O POVO Paradoxos e equvocos de Outubro 53 O "brao armado da ditadura do proletariado"
  6. 6. 69 O Terror Vermelho 90 A "guerra suja" 102 De Tambov grande fome 134 Da trgua "grande virada" 161 Coletivizao forada e deskulakizao 178 A grande fome 193 "Elementos estranhos sociedade" e ciclos repressivos 205
  7. 7. O Grande Terror (1936-1938) 223 O imprio dos campos de concentrao 244 O avesso de uma vitria 259 Apogeu e crise do Gulag 278 O ltimo compl 290 15- A sada do Stalinismo 299 guisa de concluso 311 SEGUNDA PARTE REVOLUO MUNDIAL, GUERRA CIVIL E TERROR
  8. 8. 1. O Komintern emao 321 A revoluo na Europa 321 Komintern e guerra civil 325 Ditadura, incriminao dos opositores e represso no interior do Komintern 338 O grande terror atinge o Komintern 350 Terror no interior dos partidos comunistas 354 A caa aos "trotskistas" 361 Antifascistas e revolucionrios estrangeiros vtimas do terror na URSS
  9. 9. 366 Guerra civil e guerra de libertao nacional 382
  10. 10. 2. A sombra do NKVD sobre a Espanha 394 A linha geral dos comunistas 395 "Conselheiros" e agentes 398 "Depois das calnias... as balas na nuca" 401 Maio de 1937 e a liquidao do POUM 402 O NKVD emao 407 Um"julgamento de Moscou" emBarcelona 410
  11. 11. Dentro das Brigadas Internacionais 411 Exlio e morte na "ptria dos proletrios" 415
  12. 12. 3. Comunismo e terrorismo 418 TERCEIRA PARTE A OUTRA EUROPA VTIMA DO COMUNISMO
  13. 13. 1. Polnia, a "nao inimiga" 429 O caso do POW (Organizao Militar Polonesa) e a "operao polonesa" do NKVD (1933-1938) 430 Katyn, prises e deportaes (1939-1941) 434 O NKVD contra a Armia Krajowa (Exrcito Nacional) 440 Bibliografia 443 Polnia 1944-1989: o sistema de represso 444 conquista do Estado ou o terror de massa (1944-1947)
  14. 14. 444 A sociedade como objetivo de conquista ou o terror generalizado (1948-1956) 449 O socialismo real ou o sistema de represso seletiva (1956- 1981).... 454 O estado de guerra, uma tentativa de represso generalizada 459 Do cessar-fogo capitulao, ou a confuso do poder (1986- 1989) 461 Bibliografia 462
  15. 15. 2. Europa Central e do Sudeste 464 Terror "importado"? 464 Os processos polticos contra os aliados no comunistas 469 3 A destruio da sociedade civil 479 O sistema concentracionrio e a "gente do povo" 486 Os processos dos dirigentes comunistas 498 Do "ps-terror" ao ps-comunismo
  16. 16. 514 Uma gesto complexa do passado 528 Bibliografia selecionada 537 QUARTA PARTE COMUNISMOS DA SIA: ENTRE "REEDUCAO" E MASSACRE
  17. 17. 1. China: uma longa marcha na noite 545 Uma tradio de violncia? 548 Uma revoluo inseparvel do terror (1927-1946) 554 Reforma agrria e expurgos urbanos (1946-1957) 561 Os campos: submisso e engenharia social 562 As cidades: "ttica do salame" e expropriaes 567 A maior fome da histria (1959-1961) 576
  18. 18. Um"Gulag" escondido: o laogai 590 A Revoluo Cultural: umtotalitarismo anrquico (1966- 1976) 606 A era Deng: desagregao do terror (depois de 1976) 639 Tibet: umgenocdio no teto do mundo? 644
  19. 19. 2. Coreia do Norte, Vietn e Laos: a semente do Drago 650 Crimes, terror e segredo na Coreia do Norte 650 Antes da constituio do Estado comunista 651 Vtimas da luta armada 652 Vtimas comunistas do Partido-Estado norte-coreano 654 As execues 656 Prises e campos 657
  20. 20. O controle da populao 663 Tentativa de genocdio intelectual? 664 Uma hierarquia estrita 666 A fuga 667 Atividades no exterior 668 Fome e misria 669 Balano final 670 Vietn: os impasses de umcomunismo de guerra
  21. 21. 672 Laos: populaes emfuga 683
  22. 22. 3. Camboja: no pas do crime desconcertante 686 A espiral do horror 688 Variaes emtorno de ummartirolgio 699 A morte cotidiana no tempo de Pol Pot 711 As razes da loucura 734 Umgenocdio? 755 Concluso 758
  23. 23. Seleo bibliogrfica sia 764 QUINTA PARTE O TERCEIRO MUNDO
  24. 24. 1. A Amrica Latina e a experincia comunista 769 Cuba. O interminvel totalitarismo tropical 769 Nicargua: o fracasso de umprojeto totalitrio 789 Peru: a "longa marcha" sangrenta do Sendero Luminoso 800 Orientaes bibliogrficas 806
  25. 25. 2. Afrocomunismos: Etipia, Angola, Moambique 808 O comunismo de cores africanas 808 O Imprio Vermelho: a Etipia 813 Violncias lusfonas: Angola, Moambique 823 A Repblica Popular de Angola 824 Moambique 830
  26. 26. 3. O comunismo no Afeganisto 835 O Afeganisto e a URSS de 1917 a 1973 836 Os comunistas afeganes 839 O golpe de Estado de Mohammed Daud 840 O golpe de Estado de abril de 1978 ou a "Revoluo de Saur" 841 A interveno sovitica 846 A amplitude da represso 849
  27. 27. PORQU? 861 OS AUTORES 897 4 NDICE ONOMSTICO 901 OS CRIMES DO COMUNISMO [por Stphane Courtois | "A vida perdeu para a morte, mas a memria ganha seu combate contra o nada." Tzvetan Todorov Os abusos da memria J se escreveu que "a histria a cincia da infelicidade dos homens";1 nosso sculo de violncia parece confirmar essa frmula de maneira eloquente. verdade que nos sculos precedentes poucos povos e poucos Estados estiveram
  28. 28. isentos da violncia de massa. As principais potncias europeias estiveramimplicadas no trfico de negros; a repblica francesa praticou uma colonizao que, apesar de algumas contribuies, foi marcada por numerosos episdios repugnantes, e isso at o seu trmino. Os Estados Unidos permanecemimpregnados de uma certa cultura da violncia que se enraza emdois dos mais terrveis crimes: a escravido dos negros e o extermnio dos ndios. No resta dvida de que, a esse respeito, nosso sculo deve ter ultrapassado seus predecessores. Umolhar retrospectivo impe uma concluso incmoda: este foi o sculo das grandes catstrofes humanas - duas guerras mundiais, o nazismo, semfalar das tragdias mais circunscritas, como as da Armnia, Biafra, Ruanda e outros pases. Comefeito, o Imprio Otomano entregou-se ao genocdio dos armnios, e a Alemanha ao dos judeus e dos ciganos. A Itlia de Mussolini massacrou os etopes. Os tchecos tm dificuldades emadmitir que seu comportamento emrelao aos alemes dos Sudetos, em1945-1946, no esteve acima de qualquer suspeita. A prpria Sua hoje alcanada por seu passado como o pas que gerenciava o ouro roubado pelos nazistas dos judeus exterminados, apesar desse comportamento no ser emnenhuma medida to atroz quanto o do genocdio. O comunismo insere-se nessa faixa de tempo histrico
  29. 29. transbordante de tragdias, chegando mesmo a constituir umde seus momentos mais intensos e mais significativos. O comunismo, umdos fenmenos mais importantes deste curto sculo XX - que comea em1914 e termina emMoscou em1991 -, encontra-se no centro desse quadro. Umcomunismo que preexistia ao fascismo e ao nazismo, e que sobreviveu a eles, atingindo os quatro grandes continentes. O que designamos precisamente coma denominao "comunismo"? 1 Raymond Queneau, Une histoire modele, Gallimard, 1979, p. 9. 5 Devemos, desde j, introduzir uma distino entre a doutrina e a prtica. Como filosofia poltica, o comunismo existe h sculos, e quemsabe, h milnios. Pois no foi Plato quem, emA Repblica, fundou a ideia de uma cidade ideal na qual os homens no seriamcorrompidos pelo dinheiro e pelo poder, na qual a sabedoria, a razo e a justia comandariam? No foi umpensador e estadista to eminente quanto Sir Thomas More, chanceler da Inglaterra em1530, autor da famosa Utopia e morto sob o machado do carrasco de Henrique VIII, umoutro precursor da ideia dessa cidade
  30. 30. ideal? O mtodo utpico parece perfeitamente legtimo como instrumento crtico da sociedade. Ele participa do debate das ideias - oxignio de nossas democracias. Entretanto, o comunismo aqui abordado no se situa no cu das ideias. umcomunismo bemreal, que existiu numa determinada poca, emdeterminados pases, encarnado por lderes clebres - Lenin, Stalin, Mo, Ho Chi Minh, Castro, e te., e, mais prximos da histria poltica francesa, Maurice Thorez, Jacques Duelos, Georges Marchais. Qualquer que seja o grau de envolvimento da doutrina comunista anterior a 1917 na prtica do comunismo real - retornaremos a esse ponto -, foi este quemps emprtica uma represso metdica, chegando a instituir, emmomentos de grande paroxismo, o terror como modo de governo. Isso faz comque a ideologia seja inocente? Os espritos ressentidos ou escolsticos sempre podero sustentar que o comunismo real no temnada a ver como comunismo ideal. Evidentemente, seria absurdo imputar a teorias elaboradas antes de Cristo, durante a Renascena ou mesmo o sculo XDC, eventos que surgiramno decorrer do sculo XX. Entretanto, como escreve Ignazio Silone, "na verdade, as revolues so como as rvores, elas so reconhecidas atravs de seus frutos". No foi semrazo que os social- democratas russos, conhecidos como
  31. 31. "bolcheviques", decidiram, emnovembro de 1917, chamar a si prprios de "comunistas". Tampouco foi por acaso que erigiramjunto ao Kremlin ummonumento emglria daqueles que eles consideravamseus precursores: More ou Campanella. Excedendo os crimes individuais, os massacres pontuais, circunstanciais, os regimes comunistas erigiram, para assegurar o poder, o crime de massa como verdadeiro sistema de governo. certo que no fimde umperodo de tempo varivel alguns anos no Leste Europeu ou vrias dcadas na URSS ou na China o terror perdeu seu vigor, os regimes estabilizaram-se na gesto da represso cotidiana, censurando todos os meios de comunicao, controlando as fronteiras, expulsando os dissidentes. Mas a "memria do terror" continuou a assegurar a credibilidade e, consequentemente, a eficcia da ameaa * O autor se refere aqui a trs lderes do Partido Comunista Francs. (N. T.) 6 repressiva. Nenhuma das experincias comunistas, populares durante algumtempo no Ocidente, escapou a essa lei: nema China do "Grande Timoneiro", nema Coreia de KimII Sung, nemmesmo o Vietn do "gentil Tio Ho" ou a Cuba do flamejante Fidel, ladeado pela pureza de umChe Guevara, no se esquecendo da Etipia de Mengistu, da
  32. 32. Angola de Neto e do Afeganisto de Najibullah. Ora, os crimes do comunismo no foramsubmetidos a uma avaliao legtima e normal, tanto do ponto de vista histrico quanto do ponto de vista moral. Semdvida, trata-se aqui de uma das primeiras vezes que se tenta uma aproximao do comunismo, perguntando-se sobre esta dimenso criminosa como uma questo ao mesmo tempo global e central. Podero retorquir-nos que a maioria dos crimes respondia a uma "legalidade", ela prpria sustentada por instituies pertencentes aos regimes vigentes, reconhecidos no plano internacional e cujos chefes eramrecebidos comgrande pompa por nossos prprios dirigentes. Mas no ocorreu o mesmo como nazismo? Os crimes que expomos neste livro no se definememrelao jurisdio dos regimes comunistas, mas ao cdigo no escrito dos direitos naturais da humanidade. A histria dos regimes e dos partidos comunistas, de sua poltica, de suas relaes comas sociedades nacionais e coma comunidade internacional no se resume a essa dimenso criminosa, ou mesmo a uma dimenso de terror e de represso. Na URSS e nas "democracias populares" depois da morte de Stalin, na China aps a morte de Mo, o terror atenuou-se, a sociedade comeou a retomar suas cores, a "coexistncia pacfica" - mesmo sendo ainda "uma continuao da luta de classes sob outras formas"
  33. 33. tornou-se umdado permanente da vida internacional. Entretanto, os arquivos e os testemunhos abundantes mostramque o terror foi, desde sua origem, uma das dimenses fundamentais do comunismo moderno. Abandonemos a ideia de que tal execuo de refns, tal massacre de trabalhadores revoltados, tal hecatombe de camponeses mortos de fome, foramsomente "acidentes" conjunturais, prprios a tais pases ou a tal poca. O nosso mtodo ultrapassa a especificidade de cada terreno e considera a dimenso criminosa como uma das dimenses prprias ao conjunto do sistema comunista, durante todo o seu perodo de existncia. Do que falaremos, de quais crimes? O comunismo cometeu inmeros: inicialmente, crimes contra o esprito, mas tambm crimes contra a cultura universal e contra as culturas nacionais. Stalin ordenou a demolio de centenas de igrejas emMoscou; Ceaucescu destruiu o corao histrico de Bucareste para construir edifcios e traar perspectivas megalomanacas; Pol Pot fez comque fosse desmontada pedra por pedra a Catedral de PhnomPenh e abandonou 7 selva os templos de Angkor; durante a revoluo cultural maosta, tesouros inestimveis foramquebrados ou queimados pelas Guardas Vermelhas. Entretanto, por mais graves que tenhamsido essas destruies, a longo prazo,
  34. 34. para as naes envolvidas e para a humanidade inteira, em que medida elas pesamemface do assassinato emmassa de pessoas, de homens, de mulheres, de crianas? Portanto, consideramos apenas os crimes contra as pessoas, os que constituema essncia do fenmeno do terror. Esses respondema uma nomenclatura comum, mesmo que tal prtica seja mais acentuada neste ou naquele regime: execuo por meios diversos fuzilamento, enforcamento, afogamento, espancamento e, emalguns casos, gs de combate, veneno ou acidente de automvel; destruio pela fome indigncia provocada e/ou no socorrida; deportao - a morte podendo ocorrer no curso do transporte (emcaminhadas a p ou emvages para animais) ou nos locais de residncia e/ou de trabalhos forados (esgotamento, doena, fome, frio). O caso dos perodos ditos de "guerra civil" mais complexo: no fcil distinguir o que decorre do combate entre poder e rebeldes e o que massacre da populao civil. Contudo, podemos estabelecer os nmeros de umprimeiro balano que pretende ser somente uma aproximao mnima e que necessitaria ainda de uma maior preciso, mas que, de acordo comestimativas pessoais, d uma dimenso da grandeza e permite sentir a gravidade do assunto: -URSS, 20 milhes de mortos,
  35. 35. -China, 65 milhes de mortos, -Vietn, l milho de mortos, -Coreia do Norte, 2 milhes de mortos, -Camboja, 2 milhes de mortos, -Leste Europeu, l milho de mortos,-Amrica Latina, 150.000 mortos, -frica, l ,7 milho de mortos,-Afeganisto, 1,5 milho de mortos, -Movimento comunista internacional e partidos comunistas fora dopoder, uma dezena de milhes de mortos. O total se aproxima da faixa dos cemmilhes de mortos. Essa escala de grandeza recobre situaes de grande disparidade. incontestvel que, emvalor relativo, o "trofeu" vai para o Camboja, onde Pol Pot, emtrs anos e meio, conseguiu matar da maneira mais atroz - a fome, a tortura aproximadamente umquarto da populao total do pas. Entretanto, a experincia maosta choca pela amplitude das massas atingidas. Quanto Rssia leninista ou stalinista, ela d calafrios por seu lado experimental, porm perfeitamente refletido, lgico, poltico.
  36. 36. 8 Essa abordagemelementar no poderia esgotar a questo cujo aprofundamento implica a utilizao de ummtodo "qualitativo" que repouse na definio de crime. Tal definio deve apoiar-se emcritrios "objetivos" e jurdicos. A questo do crime cometido por umEstado foi tratada pela primeira vez, do ponto de vista jurdico, em1945, no tribunal de Nuremberg institudo pelos Aliados para julgar os crimes nazistas. A natureza desses crimes foi definida pelo artigo 6 dos estatutos do tribunal, que designa trs crimes maiores: os crimes contra a paz, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade. Ora, umexame do conjunto dos crimes cometidos sob o regime leninis-ta/stalinista, e tambmno mundo comunista emgeral, conduz-nos ao reconhecimento de cada uma dessas trs categorias. Os crimes contra a paz so definidos pelo artigo 6a e concernem"a dire-o, a preparao, o incio ou o prosseguimento de uma guerra de agresso, ou de uma guerra de violao de tratados, garantias ou acordos internacionais, ou a participao numplano concertado ou numcompl para a consecuo de qualquer umdos atos precedentes". Stalin cometeu incontestavelmente esse tipo de crime, pelo menos quando negociou secretamente com Hitler, atravs dos tratados de 23 de agosto e de 28 de
  37. 37. setembro de 1939, a partilha da Polnia e a anexao dos Pases Blticos, da Bucovina do Norte e da Bessarbia URSS. O tratado de 23 de agosto, libertando a Alemanha do perigo de umcombate emduas frentes, provocou diretamente o incio da Segunda Guerra Mundial. Stalin perpetrou umnovo crime contra a paz ao agredir a Finlndia em30 de novembro de 1939. O ataque imprevisto da Coreia do Norte contra a Coreia do Sul em25 de junho de 1950 e a interveno macia do exrcito da China comunista so atos da mesma ordem. Os mtodos de subverso, assumidos durante umtempo pelos partidos comunistas comandados por Moscou, poderiamigualmente ser assimilados aos crimes contra a paz, pois sua ao desembocou emalgumas guerras; assim, o golpe de Estado comunista no Afeganisto acarretou, em27 de dezembro de 1979, uma interveno militar macia da URSS, inaugurando uma guerra que ainda no terminou. Os crimes de guerra so definidos no artigo 6b como "as violaes das leis e costumes da guerra. Essas violaes compreendem- semestaremlimitadas a isto, porm o assassinato, maus-tratos ou deportao para trabalhos forcados, ou ainda comoutro objetivo, das populaes civis dos territrios ocupados, o assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra e de pessoas no mar, a execuo de
  38. 38. refns, a pilhagemdos bens pblicos ou privados, a destruio semmotivos de cidades e povoados ou a devastao no justificada por exigncias militares". As leis e costumes de guerra esto inscritos emconvenes, sendo que a mais conhecida dentre elas a Conveno de Haia de 1907, que estipula: "Emtempos de guerra, as populaes e os beligerantes permane-9 cemsob o imprio dos princpios do direito internacional, tais como os que resultamdos usos estabelecidos pelas naes civilizadas, as leis da humanidade e as exigncias da conscincia pblica." Ora, Stalin ordenou ou autorizou numerosos crimes de guerra, sendo a execuo da quase-totalidade dos oficiais poloneses aprisionados em1939 -dos quais os 4.500 mortos de Katyn so apenas umepisdio o crime mais espetacular. Mas outros crimes de amplitude ainda maior passaramdespercebidos, como o assassinato ou a morte no Gulag* de centenas de milhares de militares alemes aprisionados entre 1943 e 1945; a isto acrescentam-se os estupros emmassa de mulheres alems pelos soldados do Exrcito Vermelho na Alemanha ocupada; semfalar da pilhagemsistemtica de todo o parque industrial dos pases ocupados pelo Exrcito Vermelho. Incorremno mesmo artigo 6b o aprisionamento, o fuzilamento ou a deportao das resistncias organizadas que combatiamabertamente o
  39. 39. poder comunista: por exemplo, os militares das organizaes polonesas de resistncia antinazista (POW, AK), os membros das organizaes de partidrios blticos e ucranianos armados, as resistncias afegs, etc. A expresso "crimes contra a humanidade" apareceu pela primeira vez em18 de maio de 1915, numa declarao d Frana, da Inglaterra e da Rssia contra a Turquia, emrazo do massacre dos armnios, qualificado como "novo crime da Turquia contra a humanidade e a civilizao". As extorses nazistas levaramo tribunal de Nuremberg a redefinir a noo emseu artigo 6c: "O assassinato, o extermnio, a escravido, a deportao e todo ato inumano cometido contra toda e qualquer populao civil, antes ou durante a guerra, ou ainda perseguies por motivos polticos, raciais ou religiosos, quando estes atos ou perseguies forem cometidos na sequncia de todo crime que entre na competncia do tribunal, ou que esteja ligado a este crime, quer violemou no o direito interno do pas onde foram perpetrados." Emseu requisitrio emNuremberg, Franois de Menthon, procurador geral francs, destacava a dimenso ideolgica dos crimes: "Proponho-me a demonstrar-lhes que toda criminalidade organizada e sistemtica decorre do que me permitirei chamar
  40. 40. de crime contra o esprito, quero dizer, de uma doutrina que, negando todos os valores espirituais, racionais ou morais, sob os quais os povos tentaramh milnios fazer progredir a condio humana, visa a devolver a Humanidade barbrie, no mais a barbrie natural e espontnea dos povos primitivos, mas a barbrie demonaca, j que consciente dela prpria e * Gulag o nome dado aos campos de concentrao na URSS. (N. T.) 10 utilizando para os seus fins todos os meios materiais postos disposio dos homens pela cincia contempornea. Esse pecado contra o esprito a falta original do nacional- socialismo da qual todos os crimes decorrem. Essa doutrina monstruosa a do racismo. [...] Que se trate de crime contra a Paz ou de crimes de guerra, no nos encontramos diante de uma criminalidade acidental, ocasional, que os eventos pudessem, talvez, no apenas justificar, mas explicar, encontramo-nos simdiante de uma criminalidade sistemtica, que decorre direta e necessariamente de uma doutrina monstruosa, servida pela vontade deliberada dos dirigentes da Alemanha Nazista." Franois de Menthon explicava tambmque as deportaes
  41. 41. destinadas a assegurar mo-de-obra suplementar para a mquina de guerra alem e as que visavama exterminar os oponentes eramapenas "consequncia natural da doutrina nacional-socialista, segundo a qual o homemno tem nenhumvalor emsi quando no est a servio da raa alem". Todas as declaraes no tribunal de Nuremberg insistiamnuma das caractersticas maiores do crime contra a humanidade: o fato de que a potncia do Estado esteja a servio de polticas e de prticas criminosas. Porm, a competncia do tribunal estava limitada aos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Era ento indispensvel ampliar a noo jurdica a situaes no implicadas nessa guerra. O novo Cdigo Penal francs, adotado em23 de julho de 1992, define assimo crime contra a humanidade: "a deportao, a escravido, ou a prtica macia e sistemtica de execues sumrias, de sequestro de pessoas seguido de sua desapario, da tortura ou de atos inumanos, inspirados por motivos polticos, filosficos, raciais ou religiosos, e organizados emexecuo de um plano concertado que atinja umgrupo de populao civil" (grifo nosso). Ora, todas essas definies, emparticular a recente definio francesa, aplicam-se a numerosos crimes cometidos no perodo de Lenin, e sobretudo no de Stalin, e tambmpor todos os pases de regime comunista, comexceo (sob reserva de verificao) de Cuba e da Nicargua dos
  42. 42. sandinistas. A condio principal parece incontestvel: os regimes comunistas trabalharam"emnome de umEstado praticante de uma poltica de hegemonia ideolgica". exatamente emnome de uma doutrina, fundamento lgico e necessrio do sistema, que forammassacrados dezenas de milhes de inocentes semque nenhumato particular possa lhes ser censurado, a menos que se reconhea que era criminoso ser nobre, burgus, kulak, ucraniano, ou mesmo trabalha- * Campons russo que dispunha de terras e haveres, tendo a seu servio outros camponeses emregime de verdadeira escravido. (N. T.) 11 dor ou... membro do Partido Comunista. A intolerncia ativa fazia parte do programa posto emprtica. assimque Tomski, o grande lder dos sindicatos soviticos, declarava em13 de novembro de 1927, no Trud. "Emnosso pas, outros partidos tambmpodemexistir. Mas eis o princpio fundamental que nos distingue do Ocidente; a situao imaginvel a seguinte: umpartido reina, todos os outros esto na priso."2 A noo de crime contra a humanidade complexa e recobre crimes designados formalmente. Umdos mais especficos o
  43. 43. genocdio. Aps o genocdio dos judeus pelos nazistas, e a fimde tornar mais preciso o artigo 6c do tribunal de Nuremberg, a noo foi definida por uma conveno das Naes Unidas, de 9 de dezembro de 1948: "O genocdio compreendido como umdos atos infracitados, cometidos na inteno de destruir, todo ou emparte, umgrupo nacional, tnico, racial ou religioso, como tal: a) mortes de membros do grupo; b) atentado grave integridade fsica ou mental de membros do grupo; c) submisso intencional do grupo s condies de existncia que acarretemsua destruio fsica, total ou parcial; d) medidas que visema impedir nascimentos no seio do grupo; e) transferncias foradas de crianas do grupo a umoutro grupo." O novo Cdigo Penal francs d ao genocdio uma definio ainda mais ampla: "O fato, a execuo de umplano concertado que tenda destruio total ou parcial de um grupo nacional, tnico racial ou religioso, ou de umgrupo determinado a partir de qualquer outro critrio arbitrrio" (grifo nosso). Essa definio jurdica no contradiz a abordagemmais filosfica de Andr Frossard, para quem "h crime contra a humanidade quando se mata algumsob o pretexto de que ele nasceu."3 Emseu curto e magnfico relato intitulado Toutpasse, Vassili Grossman diz a respeito de Ivan Grigorievitch, seu heri oriundo do campo: "Ele permaneceu o que ele era emseu nascimento, umhomem".4 precisamente esse o motivo de ele sucumbir ao golpe do
  44. 44. terror. A definio francesa permite sublinhar que o genocdio no sempre do mesmo tipo - racial, como no caso dos judeus - e que tambmpode visar grupos sociais. Emumlivro publicado emBerlim, em1924 - intitulado La terreur rouge en Russie-, o historiador e socialista russo Serguei Melgunov cita Latzis, umdos primeiros chefes da Tcheka (a polcia poltica sovitica) que, em19 de novembro de 1918, deu as seguintes diretivas a seus esbirros: "Ns no fazemos uma guerra especfica contra as pessoas. Ns exterminamos a burguesia enquanto classe. No procurem, na investigao, documentos e provas do que Citado por Kostas Papaionannou, Ls Marxistes, J'ai Lu, 1965. L Crime contre l'humanit, Robert Laffont, 1987. 4 Tout passe, Julliard-L'Age de 1'homme, 1984. 12 o acusado fez, ematos ou palavras, contra a autoridade sovitica. A primeira questo que vocs devemcolocar-lhe a que classe ele pertence, qual sua origem, sua educao, sua instruo, sua profisso."
  45. 45. Desde o incio, Lenin e seus camaradas se situaramno contexto de uma "guerra de classes" semperdo, na qual o adversrio poltico, ideolgico, ou mesmo a populao recalcitrante eramconsiderados - e tratados - como inimigos e deveriamser exterminados. Os bolcheviques decidiram eliminar legalmente, mas tambmfisicamente, toda oposio ou toda resistncia - e mesmo a mais passiva - ao seu poder hegemnico, no somente quando esta era formada por grupos de adversrios polticos, mas tambmpor grupos sociais propriamente ditos tais como a nobreza, a burguesia, a intelligentsia, a Igreja, etc., e tambmas categorias profissionais (os oficiais, os policiais...) -conferindo, por vezes, uma dimenso de genocdio a esses atos. Desde 1920, a "descossaquizao" corresponde abertamente definio de genocdio: o conjunto de uma populao comimplantao territorial fortemente determinada, os cossacos, era exterminado, os homens fuzilados, as mulheres, as crianas e os idosos deportados, os povoados destrudos ou entregues a novos habitantes no cossacos. Lenin assimilava os cossacos Vendia,* durante a revoluo francesa, e desejava aplicar- lhes o tratamento que Gracchus Babeuf, o "inventor" do comunismo moderno, qualificava como "populicdio".6 A "deskulakizao" de 1930-1932 no foi seno a retomada, emgrande escala, da "descossaquizao", coma novidade
  46. 46. de a operao ser reivindicada por Stalin, para quema palavra de ordemoficial, alardeada pela propaganda do regime, era "exterminar os kulaks enquanto classe". Os kulaks que resistiam coletivizao eramfuzilados, os outros eram deportados junto comsuas mulheres, crianas e os idosos. De fato, eles no foramtodos diretamente exterminados, mas o trabalho forado ao qual foramsubmetidos, nas zonas no desbravadas da Sibria ou do Grande Norte, deixou-lhes pouca chance de sobrevivncia. Vrias centenas de milhares deixaramali suas vidas, mas o nmero exato de vtimas permanece desconhecido. Quanto grande fome ucraniana de 1932-1933, relacionada resistncia das populaes rurais coletivizao forada, ela empoucos meses provocou a morte de seis milhes de pessoas. Aqui, o genocdio "da classe" junta-se ao genocdio "da raa": matar de fome uma criana kulak ucraniana deliberadamente coagida indigncia pelo regime stalinista "vale" o matar de fome uma criana judia do gueto de 5 Jacques Baynac, La Terreur sous Lnine, L Sagittaire, 1975, p. 75. * Guerras de Vende ou Vendia, insurreio contra-
  47. 47. revolucionria provocada em1793, entre os camponeses da Bretanha, Poitou e Anjou, pela constituio civil do clero e o recrutamento emmassa. (N. T.) 6 Gracchus Babeuf, La Guerre de Vende et l systeme de dpopulation, Tallandier, 1987. 13 Varsvia coagida indigncia pelo regime nazista. Essa constatao de modo algumrepe emcausa a "singularidade de Auschwitz": a mobilizao dos mais modernos recursos tcnicos e a implantao de um verdadeiro "processo industrial" - a construo de uma "usina de extermnio", o uso de gases, a cremao. Mas destaca uma particularidade de muitos regimes comunistas: a utilizao sistemtica da "arma da fome"; o regime tende a controlar a totalidade do estoque de comida disponvel e, por umsistema de racionamento por vezes bastante sofisticado, s o distribui emfuno do "mrito" e do "demrito" de uns e de outros. Este procedimento pode mesmo provocar gigantescas situaes de indigncia. Lembremo-nos de que, no perodo posterior a 1918, somente os pases comunistas conheceramessa grande fome que levou morte de centenas de milhares, ou quemsabe at de milhes de pessoas. Ainda nesta ltima dcada, dois pases
  48. 48. da frica que se dizemmarxistas-leninistas -Etipia e Moambique sofreramdessas indigncias assassinas. Umprimeiro balano global desses crimes pode ser esboado: fuzilamento de dezenas de milhares de refns, ou de pessoas aprisionadas semjulgamento, e massacre de centenas de milhares de trabalhadoresrevoltados entre 1918 e 1922; a fome de 1922, provocando a morte de cinco milhes de pessoas; -execuo e deportao dos cossacos da regio do Don em 1920; assassinato de dezenas de milhares de pessoas emcampos de concentrao entre 1919 e 1930; execuo de cerca de 690.000 pessoas por ocasio do Grande Expurgode 1937- 1938; deportao de dois milhes de kulaks (ou supostos kulaks) em1930-1932; destruio por fome provocada e no socorrida de seis milhes deucranianos em1932-1933; deportao de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, blticos,moldvios e bessarbios em1939-1941, e posteriormente em1944-1945; deportao dos alemes do Volga em1941;
  49. 49. deportao-abandono dos trtaros da Crimia em1943; deportao-abandono dos chechenos em1944; deportao-abandono dos inguches em1944; -deportao-abandono das populaes urbanas do Camboja entre1975 e 1978; -lenta destruio dos tibetanos pelos chineses, desde 1950, etc. No terminaramos nunca de enumerar os crimes do leninismo e do stalinismo, comfrequncia reproduzidos de modo quase idntico pelos regimes de Mo Zedong, KimII Sung, Pol Pot. 14 Permanece uma difcil questo epistemolgica: o historiador est apto a usar, emsua caracterizao e emsua interpretao, fatos ou noes tais como "crime contra a humanidade" ou "genocdio", relativos, como vimos acima, ao domnio jurdico? No seriamessas noes demasiado dependentes de imperativos conjunturais - a condenao do nazismo em Nuremberg -
  50. 50. para seremintegradas a uma reflexo histrica que vise estabelecer uma anlise pertinente a mdio prazo? Por outro lado, essas noes no esto demasiado carregadas de "valores" suscetveis de "falsearem" o objetivo da anlise histrica? Sobre o primeiro ponto, a histria deste sculo mostrou que a prtica do massacre de massa, feita por Estados ou por Partidos-Estados, no foi uma exclusividade nazista. Bsnia e Ruanda provamque essas prticas perdurame que elas constituiro, semdvida, uma das caractersticas principais deste sculo. Sobre o segundo ponto, no se trata de modo algumde um retorno s concepes histricas do sculo XIX, segundo as quais o historiador procurava bemmais "julgar" do que "compreender". Contudo, diante das imensas tragdias humanas diretamente provocadas por certas concepes ideolgicas e polticas, pode o historiador abandonar todo princpio de referncia a uma concepo humanista ligada nossa civilizao judaico-crist e nossa cultura democrtica - como, por exemplo, o respeito pela pessoa humana? Numerosos e renomados historiadores, tais como Jean-Pierre Azema numartigo sobre "Auschwitz"? ou Pierre Vidal-Naquet comrespeito ao processo de Touvier,8 no hesitamemutilizar a expresso
  51. 51. "crime contra a humanidade" para qualificar os crimes nazistas. Parece-nos, ento, que no ilegtimo utilizar essas noes para caracterizar alguns dos crimes cometidos pelos regimes comunistas. Almda questo da responsabilidade direta dos comunistas no poder, coloca-se a questo da cumplicidade. O Cdigo Criminal canadense, modificado em1987, considera, emseu artigo 7 (3.77), que as infraes de crime contra a humanidade incluemas infraes de tentativa, cumplicidade, conselho, ajuda e encorajamento ou de cumplicidade de fato? So tambmassimilados aos crimes contra a humanidade - artigo 7 (3.76) - "a tentativa, o compl, a cumplicidade aps o fato, o conselho, a ajuda ou o encorajamento a respeito desse fato" (grifo nosso). Ora, dos anos 20 aos anos 50, os comunistas do mundo /J.-P. Azema, F. Bdarida, Dictonnaire ds annes de tourmente, Flammarion, 1995, p. 777. Rflexions sur l gnocide, La Dcouverte, 1995, p. 268; P. Vidal-Naquet escreve, alis:"Falamos de Katyn e do massacre, em1940, dos oficiais poloneses prisioneiros dos soviticos.Katyn entra perfeitamente na definio de Nuremberg". Denis Szabo, Alain Joff, "La rpression ds crimes contre
  52. 52. l'humanit et ds crimes du genreau Canada", in Mareei Colin, L Crime contre 1'humanit, Ers, 1996, p. 65. 15 inteiro e vrias outras pessoas aplaudiramcomentusiasmo a poltica de Lenin e, emseguida, a de Stalin. Centenas de milhares de homens engajaram-se nas fileiras da Internacional Comunista e nas sees locais do "partido mundial da revoluo". Nos anos 50-70, outras centenas de milhares de homens veneraramo "Grande Timoneiro" da revoluo chinesa e cantaramos grandes mritos do Grande Salto Adiante ou os da Revoluo Cultural. J emnosso meio, muita gente se felicitou quando Pol Pot tomou o poder.10 Alguns respondero que "no sabiam". verdade que nemsempre foi fcil saber, j que os regimes comunistas fizeramdo segredo uma das estratgias de defesa privilegiadas. Mas, frequentemente, essa ignorncia era to- somente resultado de uma cegueira devida crena militante. E, desde os anos 40 e 50, muitos fatos eram conhecidos e incontestveis. Ora, se vrios desses bajuladores abandonaramseus dolos de ontem, foi com silncio e discrio. Mas o que pensar do profundo amoralismo que h emabandonar umengajamento pblico no maior dos segredos, semtirar dele qualquer lio? Em1969, umdos pioneiros no estudo do terror comunista,
  53. 53. Robert Conquest, escreveu: "O fato de tantas pessoas 'engolirem' efetivamente [o Grande Expurgo] foi, semdvida, umdos fatores que tornarampossvel qualquer Expurgo. Os processos, principalmente, teriamtido muito pouco interesse se no tivessemsido validados por certos comentadores estrangeiros - ou seja, 'independentes'. Estes ltimos devem, pelo menos emparte, arcar coma responsabilidade de uma certa cumplicidade para comessas mortes polticas, ou, em todo caso, para como fato de que elas vierama se repetir quando a primeira operao, o processo Zinoviev [de 1936], foi beneficiada comumcrdito injustificado."11 Se atribumos, atravs desse parmetro, uma cumplicidade moral e intelectual a umcerto nmero de no-comunistas, o que dizer da cumplicidade dos comunistas? E no nos lembramos de ver Louis Aragon arrepender-se publicamente por ter, numpoema de 1931, evocado a vontade da criao de uma polcia poltica comunista na Frana,12 mesmo que, algumas vezes, ele tenha criticado o perodo stalinista. Joseph Berger, antigo membro do Komintern, ele prprio "expurgado" e conhecedor dos campos, cita a carta recebida de uma antiga deportada do Gulag, mas que permaneceu membro do Partido aps ter retornado dos campos de concentrao:
  54. 54. "Os comunistas de minha gerao aceitarama autoridade de Stalin. Eles aprovaramseus crimes. Isso vale no somente para os comu-10 Ver a este respeito a anlise de Jean-Nol Darde, L Ministrc de Ia Vrt: histoire d'un gno-cide damlejournal, UHumanit, L Seuil, 1984. 11 "La Grande Purge", Preuves, fevereiro-maro de 1969. 12 Ver Louis Aragon, Prlude au temps ds cerses. 16 nistas soviticos, mas tambmpara aqueles do mundo inteiro, e essa ndoa nos marca individual e coletivamente. S podemos apag-la fazendo comque isso nunca mais se reproduza. O que aconteceu? Havamos perdido a razo ou somos traidores do comunismo? A verdade que todos ns, inclusive os que estavammais prximos a Stalin, fizemos dos crimes o contrrio do que eles realmente eram. Ns os consideramos como uma importante contribuio para a vitria do socialismo.
  55. 55. Acreditamos que tudo o que fortalecia a potncia poltica do Partido Comunista na Unio Sovitica e no mundo era uma vitria para o socialismo. No imaginvamos jamais que pudesse haver umconflito no interior do partido entre a poltica e a tica." Por sua vez, Berger desenvolve essa afirmao: "Estimo que se podemos condenar a atitude daqueles que aceitarama poltica de Stalin, o que no foi o caso de todos os comunistas, bemmais difcil censur-los por no terem tornado esses crimes impossveis. Acreditar que homens, mesmo aqueles compostos mais elevados, podiamopor-se a seus desejos no compreender nada do que foi o seu despotismo bizantino." Berger tema "desculpa" de ter estado na URSS e, portanto, de ter sido tragado pela mquina infernal, sempoder escapar dela. Mas e os comunistas da Europa Ocidental que no sofriamnenhum constrangimento direto do NKVD*, que cegueira fez com que continuassemfazendo a apologia do sistema e de seu chefe? Seria preciso que a poo mgica que os mantinha em submisso fosse potente! Emsua notvel obra sobre a Revoluo Russa La Tragdie Sovitique , Martin Malia traz umpouco de luz ao assunto falando "desse paradoxo: umgrande ideal que levou a umgrande crime."14 Annie Kriegel, uma outra grande analista do comunismo, insistia nessa articulao quase necessria das duas faces do comunismo: uma luminosa e outra escura.
  56. 56. A esse paradoxo, Tzvetan Todorov traz uma primeira resposta: "O habitante de uma democracia ocidental queria pensar no totalitarismo como algo completamente estranho s aspiraes humanas normais. Ora, o totalitarismo no teria se mantido por tanto tempo, no teria arrastado tantos indivduos emsua senda, se ele fosse assim. Ele , ao contrrio, uma mquina de tremenda eficcia. A ideologia comunista prope a imagemde uma sociedade melhor e nos incita a desej-la: no faz parte da identidade humana o desejo de transformar o mundo emnome de umideal? [...] Almdo mais, a sociedade comu-13 Joseph Berger, L Naufrage d'unegnration, Denol, "Lettres nouvelles", 1974, p. 255. * Sigla das palavras russas que significam "Comissariado do Povo para os Negcios Interiores", organismo criado em1934 aps a dissoluo da GPU (Polcia Poltica Sovitica de 1922 a 1934). (N. T.) MLeSeuil, 1995, p. 15. 17 nista priva o indivduo de suas responsabilidades: so sempre "eles" quemdecidem. Ora, a responsabilidade frequentemente umfardo pesado a ser carregado. [...] A atrao pelo sistema totalitrio, experimentada inconscientemente por numerosos indivduos, provmde umcerto medo da liberdade e da responsabilidade - o que
  57. 57. explica a popularidade de todos os regimes autoritrios ( a tese de Erich FrommemO medo da liberdade); o que existe uma 'servido voluntria', j dizia La Botie".1* A cumplicidade daqueles que enveredaramna servido voluntria no foi e continua no sendo abstrata e terica. O simples fato de aceitar e/ou assumir uma propaganda destinada a esconder a verdade demonstrava e continua demonstrando uma cumplicidade ativa. Pois tornar pblico o nico meio - ainda que no seja sempre eficaz, como acaba de mostrar a tragdia de Ruanda de lutar contra os crimes de massa cometidos emsegredo, protegidos dos olhares indiscretos. A anlise dessa realidade central do fenmeno comunista no poder -ditadura e terror - no simples. Jean Ellenstein definiu o fenmeno stalinis-ta como uma mistura de tirania grega e despotismo oriental. A frmula sedutora, mas no d conta do carter moderno dessa experincia, de seu alcance totalitrio, distinto das formas anteriormente conhecidas de ditadura. Umrpido sobrevoo comparativo permitir uma melhor compreenso. Poder-se-ia inicialmente evocar a tradio russa da opresso. Os bolcheviques combatiamo regime terrorista do Czar, que,
  58. 58. entretanto, empalidece diante dos horrores do bolchevismo no poder. O Czar denunciava os prisioneiros polticos diante de uma verdadeira justia; a defesa podia exprimir-se tanto quanto ou ainda mais do que a acusao e tomar o testemunho de uma opinio pblica nacional inexistente no regime comunista e, sobretudo, de uma opinio pblica internacional. Os prisioneiros e os condenados se beneficiavamde uma regulamentao nas prises, e o regime de desterro, ou mesmo o de deportao, era relativamente leve. Os deportados podiampartir comsuas famlias, ler e escrever o que quisessem: caar, pescar e se encontrarem, nos momentos de lazer, comseus companheiros de "infortnio". Lenin e Stalin puderamexperimentar essa situao pessoalmente. Mesmo as Recordaes da casa dos mortos, de Dostoievski, que tanto chocarama opinio pblica na poca de sua publicao, parecemandinas em face dos horrores do comunismo. Seguramente, houve, na Rssia dos anos 1880 a 1914, tumultos populares e insurreies duramente reprimidos por umsistema poltico arcaico. Porm, de 1825 a 1917, o nmero total de pessoas condenadas UTzvetanTodorov, UHommedfpays, L Seuil, 1996, p. 36. 18
  59. 59. morte nesse pas, por sua opinio ou sua ao poltica, foi de 6.360, dos quais 3.932 foramexecutados - 191 de 1825 a 1905, e 3.741 de 1906 a 1910 -quantidade que j havia sido ultrapassada pelos bolcheviques emmaro de 1919, aps somente quatro meses de exerccio de poder. O balano da represso czarista , assim, semparalelo como do terror comunista. Entre os anos 20 e 40, o comunismo censurou violentamente o terror praticado pelos regimes fascistas. Umrpido exame dos nmeros mostra que as coisas no so assimto simples. O fascismo italiano, o primeiro emao e tambm quemabertamente reivindicou para si o ttulo de "totalitrio", aprisionou e comfrequncia maltratou seus adversrios polticos. Entretanto, ele raramente chegou a cometer assassinatos, de modo que, na metade dos anos 30, a Itlia tinha algumas centenas de prisioneiros polticos e vrias centenas de confnati postos emresidncia vigiada nas ilhas , mas, verdade, tinha tambmdezenas de milhares de exilados polticos. At a guerra, o terror nazista visou alguns grupos; os oponentes ao regime - principalmente comunistas, socialistas, anarquistas, alguns sindicalistas foram reprimidos de maneira aberta, encarcerados emprises e
  60. 60. sobretudo internados emcampos de concentrao, submetidos a humilhaes severas. No total, de 1933 a 1939, aproximadamente 20.000 militantes de esquerda foram assassinados comou semjulgamento nos campos e prises; semfalar dos acertos de contas internos ao nazismo, como a "noite dos punhais" emjunho de 1934. Outra categoria de vtimas destinadas morte foramos alemes que supostamente no correspondiamaos critrios raciais do "grande ariano loiro" - doentes mentais, deficientes fsicos, idosos. Hider decidiu executar seus intentos por ocasio da guerra: 70.000 alemes foramvtimas de umprograma de eutansia comasfixia por gs, entre o fimde 1939 e o incio de 1941, at que as Igrejas protestasseme que o programa fosse encerrado. Os mtodos de asfixia por gs aperfeioados na ocasio so os que foramaplicados no terceiro grupo de vtimas, os judeus. At a guerra, as medidas de excluso contra eles eram generalizadas, mas sua perseguio teve seu apogeu na ocasio da "Noite de Cristal" - vrias centenas de mortos e 35.000 internamentos emcampos de concentrao. Foi somente coma guerra, e sobretudo como ataque URSS, que se desencadeou o terror nazista, cujo balano sumrio o
  61. 61. seguinte: 15 milhes de civis mortos nos pases ocupados; 5,1 milhes de judeus; 3,3 milhes de prisioneiros de guerra soviticos; 1,1 milho de deportados mortos nos campos; vrias centenas de milhares de ciganos. essas vtimas se juntaram8 milhes de pessoas destinadas a trabalhos forados e 1,6 milho de detentos sobreviventes emcampos de concentrao. O terror nazista chocou as imaginaes por trs razes. Inicialmente, 19 por ter atingido diretamente os europeus. Por outro lado, uma vez vencidos os nazistas, e comseus principais dirigentes julgados emNuremberg, seus crimes foram oficialmente designados e condenados como tais. Enfim, a revelao do genocdio dos judeus foi umchoque por seu carter de aparncia irracional, sua dimenso racista, o radicalismo do crime. Nosso propsito aqui no o de estabelecer uma macabra aritmtica comparativa qualquer, uma contabilidade duplicada do horror, uma hierarquia da crueldade. Entretanto, os fatos so tenazes e mostramque os regimes
  62. 62. comunistas cometeramcrimes concernentes a aproximadamente 100 milhes de pessoas, contra 25 milhes de pessoas atingidas pelo nazismo. Essa simples constatao deve, pelo menos, provocar uma reflexo comparativa sobre a semelhana entre o regime que foi considerado, a partir de 1945, como o regime mais criminoso do sculo, e umsistema comunista que conservou, at 1991, toda a sua legitimidade internacional e que, at hoje, est no poder emalguns pases, mantendo adeptos no mundo inteiro. Mesmo que muitos dos partidos comunistas tenham reconhecido tardiamente os crimes do stalinis-mo, eles no abandonaram, emsua maioria, os princpios de Lenin e nunca se interrogamsobre suas prprias implicaes no fenmeno terrorista. Os mtodos postos emprtica por Lenin e sistematizados por Stalin e seus mulos, no somente lembramos mtodos nazistas como tambm, e comfrequncia, lhes so anteriores. A esse respeito, Rudolf Hoess, encarregado de criar o campo de Auschwitz, e tambmseu futuro comandante, sustentou afirmaes bastante indicativas: "A direo da Segurana fizera chegar aos comandantes dos campos uma detalhada documentao sobre os campos de concentrao russos. Baseando-se nos testemunhos dos fugitivos, estavamexpostas emtodos os detalhes as
  63. 63. condies reinantes no local. Destacava-se particularmente que os russos exterminavampopulaes inteiras utilizando- as emtrabalhos forados."16 Porm, se fato que a intensidade e as tcnicas da violncia de massa foram inauguradas pelos comunistas e que os nazistas tenhamse inspirado nelas, isto no implica, a nosso ver, que se possa estabelecer uma relao direta de causa e efeito entre a tomada do poder pelos bolcheviques e a emergncia do nazismo. Desde o fimdos anos 20, a GPU (novo nome da Tcheka) inaugurou o mtodo das quotas: cada regio e cada distrito deviamdeter, deportar ou fuzilar uma determinada percentagemde pessoas pertencentes s camadas sociais "inimigas". Essas percentagens eramdefinidas centralmente pela direo do Partido. A loucura planificadora e a mania estatstica no diziamrespeito somente economia; elas tambmse aplicavamao domnio do terror. Desde 16 L commandant 'Auschwitzparle, La Dcouverte, 1995, p. 224. 20 1920, coma vitria do Exrcito Vermelho sobre o Exrcito Branco, na Crimia, surgirammtodos estatsticos, e mesmo sociolgicos: as vtimas so seleciona-das segundo critrios precisos, estabelecidos coma ajuda de questionrios aos quais ningumpoderia deixar de responder. Os mesmos
  64. 64. mtodos "sociolgicos'' sero postos emprtica pelos soviticos para organizar as deportaes e execues em massa nos Estados Blticos e na Polnia ocupada de 1939- 1941. O transporte dos deportados emvages de animais acarretou as mesmas "aberraes" que as cometidas pelo nazismo: em1943-1944, emplena batalha, Stalin fel comque milhares de vages e centenas de milhares de homens das tropas especiais do NKVD deixassemo fronte para assegurar emumcurtssimo espao de tempo a deportao das populaes do Cucaso. Essa lgica do genocdio -que consiste, retomando o Cdigo Penal francs, na "destruio total ou parcial de umgrupo nacional, tnico, racial ou religioso, ou de umdeterminadogrupo, a partir de qualquer outro critrio arbitrrio" - aplicada pelo podercomunista a grupos designados como inimigos, a fraes de sua prpria sociedade, foi conduzida ao seu paroxismo por Pol Pot e seus khmers vermelhos. Fazer a aproximao entre o nazismo e o comunismo, no que diz respeito a seus respectivos extermnios, pode chocar. Entretanto, Vassili Grossman -cuja me foi morta pelos nazistas no gueto de Berditchev, escritor do primeiro texto sobre Treblinka e tambmumdos
  65. 65. mestres do Livre noir sobre oextermnio dos judeus na URSS - que, emseu relato Tout passe, faz umdeseus personagens dizer a respeito da fome na Ucrnia: "Os escritores e o prprio Stalin diziamtodos a mesma coisa: os kulaks so parasitas, eles queimamo trigo, matamas crianas. E nos disseramsemrodeios: preciso que as massas se revoltem contra eles, para aniquil-los todos, enquanto classe, esses malditos." E acrescenta: "Para mat-los, seria preciso declarar: os kulaks no soseres humanos. Do mesmo modo que os alemes diziam: os judeus no soseres humanos. Foi o que Lenin e Stalin disseram: os kulaks no so sereshumanos." E Grossman conclui, a respeito das crianas kulaks: " como osalemes que assassinaramas crianas judias nas cmaras de gs: vocs no tmdireito de viver, vocs so judeus."17 cada vez, no so tanto os indivduos que so atingidos, mas os grupos. O terror temcomo objetivo exterminar um grupo designado como inimigo, que, na verdade, constitui- se somente como uma frao da sociedade, mas que atingido enquanto tal por uma lgica do genocdio. Assim, os mecanismos de segregao e de excluso do "totalitarismo da classe" se parecemsingularmente queles do "totalitarismo da raa". sociedade nazista futura devia ser construda emtorno da "raa pura"; a sociedade comunista
  66. 66. 17 Vassili Grossman, op. cit., pp. 140 e 150. 21 futura, emtorno de umpovo proletrio, purificado de toda escria burguesa. O remodelamento dessas duas sociedades foi planejado do mesmo modo, apesar de os critrios de excluso no seremos mesmos. Portanto, falso pretender que o comunismo seja umuniversalismo: se o projeto tem uma vocao mundial, uma parte da humanidade declarada indigna de existir neste mundo, como no caso do nazismo; a diferena que umrecorte por estratos (classes) substitui o recorte racial e territorial dos nazistas. Logo, os empreendimentos leninista, stalinista, maosta e a experincia cambojana pem humanidade assimcomo aos juristas e historiadores uma nova questo: como qualificar o crime que consiste emexterminar, por razes poltico-ideo-lgicas, no mais indivduos ou grupos limitados de oponentes, mas partes inteiras da sociedade? preciso inventar uma nova denominao? Alguns autores anglo-saxes pensamdessa forma, criando o termo "politicdio". Ou preciso chegar, como o fazemos juristas tchecos, a qualificar os crimes cometidos pelos regimes comunistas como "crimes comunistas"? O que se sabia dos crimes do comunismo? O que se queria
  67. 67. saber? Por que foi preciso esperar o fimdo sculo para que esse tema obtivesse o status de objeto de cincia? Pois evidente que o estudo do terror stalinista e comunista em geral, comparado ao estudo dos crimes nazistas, temum enorme atraso a recuperar, mesmo que, no Leste, os estudos se multipliquem. Umgrande contraste no pode deixar de nos causar surpresa: foi comlegitimidade que os vencedores em1945 situaramo crime - e emparticular o genocdio dos judeus - no centro de sua condenao ao nazismo. Numerosos pesquisadores emtodo o mundo trabalhamh dcadas sobre essa questo. Milhares de livros lhe foram consagrados, dezenas de filmes, dos quais alguns muito famosos nos mais diferentes gneros Noite e Neblina ou Shoah, A Escolha de Sofia ou A Lista de Schindler. Raul Hilberg, para citarmos apenas umautor, fez da descrio detalhada das modalidades da matana aos judeus no III Reich18 o centro de sua obra mais importante. Ora, no existe umtrabalho como esse sobre a questo dos crimes comunistas. Enquanto que nomes como os de Himmler ou o de Eichman so conhecidos emtodo o mundo como smbolos da barbrie contempornea, os de Dzerjinski, lagoda ou de lejov so ignorados da maioria. Quanto a Lenin, Mo, Ho Chi Minh e o prprio Stalin, eles sempre
  68. 68. foramtratados comuma surpreendente reverncia. Umrgo do Estado francs, a Loto, chegou a ter a inconscincia de associar Stalin e Mo a uma de suas campanhas publicitrias! Quemteria a ideia de utilizar Hitler ou Goebbels numa operao semelhante? 18 Raul Hilberg, La Destruction desjuifi d'Europe, Fayard, 1988. 22 A ateno excepcional concedida aos crimes hitleristas perfeitamente justificada. Ela responde vontade dos sobreviventes de testemunhar, dos pesquisadores de compreender e das autoridades morais e polticas de confirmar os valores democrticos. Mas por que os testemunhos dos crimes comunistas tmuma repercusso to fraca na opinio pblica? Por que o silncio constrangido dos polticos? E, sobretudo, por que um silncio "acadmico" sobre a catstrofe comunista que atingiu, h aproximadamente 80 anos, umtero da espcie humana, sobre quatro continentes? Por que essa incapacidade de situar no centro da anlise do comunismo umfator to essencial quanto o crime, o crime de massa, o crime sistemtico, o crime contra a humanidade? Estamos diante de uma impossibilidade de compreenso? No se trata, antes, de uma recusa deliberada de saber, de ummedo
  69. 69. de compreender? As razes dessa ocultao so mltiplas e complexas. Inicialmente, estava emjogo a vontade clssica e constante dos carrascos de apagar as marcas de seus crimes e de justificar o que eles no podiamesconder. O "relatrio secreto" de Kruschev (1956), que se constituiu como o primeiro reconhecimento dos crimes comunistas pelos prprios dirigentes comunistas, tambmo relato de um carrasco que vai procurar mascarar e encobrir seus prprios crimes -como chefe do Partido Comunista ucraniano no auge do terror atribuindo-os somente a Stalin e valendo-se do fato de que obedecia a ordens; ocultar a maior parte do crime ele fala somente das vtimas comunistas, bemmenos numerosas do que todas as outras; atenuar o significado desses crimes - ele os qualifica como "abusos cometidos pelo regime stalinista"; e, enfim, justificar a continuidade do sistema comos mesmos princpios, as mesmas estruturas e os mesmos homens. Kruschev nos d umtestemunho franco, relacionando as oposies comas quais ele se chocou ao preparar o "relatrio secreto", particularmente no que diz respeito ao homemde confiana de Stalin: "Kaganovitch era de tal modo umadulador, que ele teria cortado a garganta de seu pai se Stalin assimo ordenasse comuma piscada de olhos, dizendo-lhe que era no interesse da Causa: a causa
  70. 70. stalinista, claro, f...] Ele argumentava contra mimpor causa do medo egosta de perder o pescoo. Ele obedecia ao desejo impaciente de fugir a toda responsabilidade. Se havia crimes, Kaganovitch queria somente uma coisa: estar certo de que suas marcas foramapagadas."1^ O fechamento absoluto dos arquivos dos pases comunistas, o controle total da imprensa, da mdia e de todas as sadas para o exterior, a propaganda do "sucesso" do regime, toda essa mquina de ocultar informaes visava, emprimeiro lugar, impedir que viesse luz a verdade sobre os crimes. Nikita Kruschev, Souvenirs, Robert Laffont, 1971, p. 330. 23 No contentes emesconder seus delitos, os carrascos combaterampor todos os meios aqueles que tentavam relat-los. Pois alguns observadores e analistas tentaram esclarecer seus contemporneos. Aps a Segunda Guerra Mundial, isso foi particularmente claro emduas ocasies na Frana. De janeiro a abril de 1949 teve lugar emParis o processo que ops Victor Kravchenko - umex-alto funcionrio sovitico que havia escrito/'tf / choisi Ia liberte, livro no qual era descrita a ditadura stalinista - ao jornal comunista dirigido por Louis Aragon, Ls Lettres Franaises, que cobria Kravchenko de injrias. Teve lugar tambmemParis, de novembro de 1950 a janeiro de 1951, um
  71. 71. outro processo entre Ls Lettres Franaises (mais uma vez) e David Rousset, umintelectual, ex-trotskista, deportado da Alemanha pelos nazistas e que, em1946, havia recebido o prmio Renaudot por seu livro LUniven concentrationnaire; Rousset convocara, em12 de novembro de 1949, todos os antigos deportados dos campos nazistas para formar uma comisso de investigao sobre os campos soviticos, sendo ento violentamente atacado pela imprensa comunista, que negava a existncia desses campos. Em seguida convocao feita por Rousset, em25 de fevereiro de 1950, numartigo do Figaro littraire intitulado "Pour 1'enqute sur ls camps sovitiques. Qui estpire, Satan ou BelzbutW? Margaret Buber-Neumann expunha sua dupla experincia de deportada dos campos nazistas e soviticos. Contra todos esses esclarecedores da conscincia humana, os carrascos desenvolveram, numcombate sistemtico, todo o arsenal dos grandes Estados modernos, capazes de intervir no mundo inteiro. Eles procuraramdesqualific-los, desacredit- los, intimid-los. A. Soljenitsyne, V. Bukovsky, A. Zinoviev L. Plichki foramexpulsos de seu pas, Andr Sakharov foi exilado emGorki, o general Piotr Grigorenko, abandonado numhospital psiquitrico, Markov, assassinado comum guarda-chuva envenenado.
  72. 72. Diante de tal poder de intimidao e de ocultao, as prprias vtimas hesitavamemse manifestar, tornando-se incapazes de reintegrar a sociedade onde desfilavamseus delatores e carrascos. Vassili Grossman20 narra essa desesperana. Ao contrrio da tragdia dos judeus em relao qual a comunidade judia internacional encarregou- se da celebrao dos mortos do genocdio - durante muito tempo foi impossvel s vtimas do comunismo e aos seus interessados manter uma memria viva da tragdia, estando proibido qualquer tipo de celebrao ou demanda de reparao. Quando no conseguiammanter a verdade escondida a prtica dos fuzilamentos, os campos de concentrao, a fome imposta , os carrascos tra- * Pela investigao dos campos soviticos. Quem pior, Sat ou Belzebu? (N. T.) 20 Toutpasse, of. cit., 1984. 24 mavama justificao dos fatos maquiando-os grosseiramente. Depois de teremreivindicado o terror, eles o erigiramcomo figura alegrica da revoluo: "quando se corta a floresta, as farpas voam", "no se pode fazer uma omelete semse quebraremos ovos". A isto Vladimir Bukovski replicava ter visto os ovos quebrados, mas no ter
  73. 73. nunca provado omeletes. Mas, semdvida, foi coma perverso da linguagemque se chegou ao pior. Atravs da magia vocabular, o sistema dos campos de concentrao tornou-se obra de reeducao, e os carrascos, educadores aplicados emtransformar os homens de uma sociedade antiga em"homens novos". Pedia-se, atravs da fora, aos zeks - termo que designa os prisioneiros dos campos de concentrao soviticos para que acreditassemnumsistema que os subjugava. Na China, o interno na concentrao denominado "estudante": ele deve estudar o pensamento justo do partido e reformar o seu prprio pensamento imperfeito. Como acontece comfrequncia, a mentira no , strcto sensu, o inverso da verdade, e toda mentira se apoia sobre elementos verdadeiros. As palavras pervertidas aparecem como uma viso deslocada que deforma a perspectiva de conjunto: somos confrontados a umastigmatismo social e poltico. Ora, fcil corrigir a percepo deformada pela propaganda comunista, mas muito difcil reconduzir aquele que percebeu erroneamente a uma concepo intelectual pertinente. A impresso primeira permanece e torna-se preconceito. Como fazemos praticantes do judo - e graas a sua incomparvel potncia propagandista, amplamente baseada na perverso da linguagem, os comunistas utilizaramtoda a fora das crticas feitas aos seus mtodos
  74. 74. terroristas para retorn-las contra essas prprias crticas, reunindo, a cada vez, as fileiras de seus militantes e simpatizantes na renovao do ato de f comunista. Assim, eles reencontraramo princpio primeiro da crena ideolgica, formulada por Tertuliano, emsua poca: "Creio porque absurdo." No contexto dessas operaes de contrapropaganda, os intelectuais, literalmente, se prostituram. Em1928, Gorki aceitou ir em"excurso" s ilhas Solovki, umcampo de concentrao experimental que, atravs de suas "metstases" (Soljenitsyne), dar origemao sistema do Gulag. Ele trouxe de l umlivro exaltando Solovki e o governo sovitico. Henri Barbusse, escritor francs ganhador do Goncourt* de 1916, no hesitou, emtroca de uma recompensa financeira, emexaltar o regime stalinista, publicando, em1928, umlivro sobre a "maravilhosa Gergia" - onde, precisamente em1921, Stalin e seu aclito Ordjonikidze se entregarama uma verdadeira carnificina, e onde Beria, chefe do NKVD, se fazia notar por seu maquiavelismo e seu sadismo - * PrxGoncourt, grande prmio de literatura na Frana. (N. T.) 25
  75. 75. e, em1935, a primeira biografia oficiosa de Stalin. Mais recentemente, Ma-ria-Antonietta Macciochi fez a apologia de Mo, Alain Peyrefitte lhe fez coro, enquanto Danielle Mitterrand passeava ao lado de Castro. Cupidez, apatia, vaidade, fascinao pela fora e pela violncia, paixo revolucionria: qualquer que seja a motivao, as ditaduras totalitrias sempre encontraramos bajuladores dos quais necessitavam, tanto a ditadura comunista quanto as outras. Diante da propaganda comunista, o Ocidente mostrou-se durante muito tempo de uma cegueira excepcional, mantida tanto pela inocncia emface de umsistema astuto, quanto pelo medo da potncia sovitica, semfalar do cinismo dos polticos e dos interesseiros. Cegueira presente emYalta, quando o presidente Roosevelt deixou o Leste Europeu entregue a Stalin, contra a promessa, redigida de forma clara e limpa, de que ele organizaria eleies livres na regio o mais rapidamente possvel. O realismo e a resignao estavampresentes emMoscou quando, emdezembro de 1944, o General de Gaulle trocou o abandono da infeliz Polnia ao Moloch pela garantia da paz social e poltica, assegurada pela volta de Maurice Thorez a Paris. Cegueira que foi fortalecida, quase que legitimada, por uma crena entre os comunistas ocidentais e muitos homens de esquerda segundo a qual esses pases estavam "construindo o socialismo", e que a utopia que nas
  76. 76. democracias alimentava os conflitos sociais e polticos tornava-se "para eles" uma realidade cujo prestgio Simone Weil destacou: "Os trabalhadores revolucionrios so felizes por teremumEstado por detrs deles umEstado que d s suas aes esse carter oficial, uma legitimidade, uma realidade que somente ele, o Estado, pode conferir, e que, ao mesmo tempo, est situado longe deles o suficiente para no causar-lhes desgosto".21 O comunismo apresentava, ento, sua face clara: ele se declarava Iluminado, inserido numa tradio de emancipao social e humana, de sonho da "igualdade real" e da "felicidade para todos" inaugurada por Gracchus Babeuf. essa face luminosa que ocultava quase que totalmente a face das trevas. ignorncia desejada ou no da dimenso criminosa do comunismo juntou-se, como sempre, a indiferena de nossos contemporneos para comseus irmos humanos. No que o homemtenha o corao de pedra. Pelo contrrio, eminmeras situaes-limite, ele mostra insuspeitadas fontes de solidariedade, de amizade, de afeio e mesmo de amor. Entretanto, como destaca Tzvetan Todorov, "a memria de nossos lutos nos impede de percebermos o sofrimento dos outros".22 E, terminada a Primeira e, em seguida, a
  77. 77. 21 Simone Weil, L'Enracinement, Gallimard, 1949. 22 Tzvetan Todorov, "La Morale de 1'historien", colloque L'Homme, Ia langue, ls camps, ParisIV-Sorbonne, maio de 1997. 26 Segunda Guerra Mundial, que povo europeu ou asitico no estava ocupado emcurar as chagas de inmeros lutos? As dificuldades encontradas na prpria Franca no afrontamento dos anos sombrios so suficientemente eloquentes. A histria - ou melhor, a no-histria - da Ocupao continua a envenenar a conscincia francesa. Acontece o mesmo, talvez commenos intensidade, coma histria dos perodos "nazi" na Alemanha, "fascista" na Itlia, "franquista" na Espanha, da guerra civil na Grcia, etc. Neste sculo de ferro e sangue, cada umesteve demasiadamente ocupado com suas prprias mazelas para poder compadecer-se das dos outros. A ocultao da dimenso criminosa do comunismo remete,
  78. 78. porm, a trs razes especficas. A primeira refere-se ao apego prpria ideia da revoluo. Ainda hoje, o luto dessa ideia, tal como ela foi preconizada nos sculos XIX e XX, est longe de terminar. Seus smbolos bandeira vermelha, a Internacional, punho erguido - ressurgempor ocasio de todo movimento social importante. Che Guevara retorna moda. Grupos declaradamente revolucionrios permanecem ativos e se manifestamcomtoda legalidade, tratando com desprezo a menor reflexo crtica sobre os crimes dos seus predecessores e no hesitando emreiterar os velhos discursos justificativos de Lenin, de Trotski ou de Mo. Paixo revolucionria que no acometeu somente aos outros. Muitos dos prprios autores deste livro acreditaram durante algumtempo na propaganda comunista. A segunda razo refere-se participao dos soviticos na vitria sobre o nazismo, o que permitiu aos comunistas mascarar sob umpatriotismo intenso seus fins ltimos, que visavam tomada do poder. A partir de junho de 1941, os comunistas do conjunto dos pases ocupados entraram numa resistncia ativa e comfrequncia armada ocupao nazista ou italiana. Do mesmo modo que os demais resistentes aos regimes de sujeio, eles tiveramde pagar o imposto da represso, com milhares de fuzilados, massacrados, deportados. Eles se serviramdesses mrtires para sacralizar a causa do
  79. 79. comunismo e proibir toda crtica a seu respeito. Almdisso, no curso dos combates da Resistncia, muitos dos no- comunistas estabeleceramlaos de solidariedade, de combate, de sangue comcomunistas, o que impediu que muitos olhos se abrissem; na Frana, a atitude dos gaullistas foi comfrequncia comandada por essa memria comume encorajada pela poltica do general de Gaulle que utilizava o contrapeso sovitico diante dos americanos.23 A participao dos comunistas na guerra e na vitria sobre o nazismo fez triunfar definitivamente a noo de antifascismo como critrio de verdade da 23 Ver Pierre Nora, "Gaullistes et communistes", Ls Lieuxde mmoire, Gallimard, 1997, Quarto, vol. 2. 27 esquerda, e, certamente, os comunistas se colocaramcomo os melhores representantes e os melhores defensores desse antifascismo. O antifascismo tornou-se umrtulo definitivo para o comunismo, sendo fcil, emnome do antifascismo, silenciar os recalcitrantes. Franois Furet escreveu pginas esclarecedoras sobre esse assunto crucial. Como nazismo vencido, designado pelos Aliados como o "Mal Absoluto", o comunismo saltou quase que mecanicamente para o campo do Bem. O que ocorreu, evidentemente, na ocasio do
  80. 80. processo de Nuremberg, quando os soviticos estiveram sentados no banco da acusao. Assim, episdios embaraosos para os valores democrticos foram escamoteados, tais como os pactos germano-soviticos de 1939 ou o massacre de Katyn. A vitria sobre o nazismo deveria supostamente fornecer a prova da superioridade do sistema comunista. Na Europa libertada pelos anglo-ameri- canos, ela teve, sobretudo, o efeito de suscitar umduplo sentimento de gratido para como Exrcito Vermelho (do qual no se teve que suportar a ocupao) e de culpa em face dos sacrifcios suportados pela populao da URSS, sentimentos que a propaganda comunista no hesitou em manipular a fundo. Paralelamente, as modalidades de "libertao" feitas pelo Exrcito Vermelho no Leste Europeu permanecem amplamente desconhecidas no Ocidente, onde os historiadores assimilaramdois tipos de "libertao" bastante diferentes: o primeiro deles conduzia restaurao das democracias, o outro abria caminho instaurao das ditaduras. Na Europa Central e no Leste Europeu, o sistema sovitico postulava sucesso do Reich de mil anos, e Witold Gombrowicz exprimiu empoucas palavras o drama desses povos: "O fimda guerra no trouxe libertao aos poloneses. Nesta triste Europa Central, significou somente a troca de uma noite por outra, dos carrascos de Hitler pelos de Stalin. No momento exato emque, nos cafs parisienses,
  81. 81. as nobres almas saudavamcomumcanto radiante a 'emancipao do povo polons do jugo feudal', na Polnia, o mesmo cigarro aceso simplesmente mudava de mo e continuava a queimar a carne humana".24 Aqui reside a falha entre duas memrias europeias. Entretanto, certas obras revelaramrapidamente a maneira pela qual a URSS libertou do nazismo poloneses, alemes, tchecos e eslovacos.25 A ltima razo dessa ocultao a mais sutil, e tambma mais delicada a exprimir. Aps 1945, o genocdio dos judeus apareceu como o paradigma da barbrie moderna, chegando mesmo a ocupar todo o espao reservado percepo do terror de massa no sculo XX. Aps negarem, durante algum tem-24 Witold Gombrowicz, Testament. Entretens avec Dominique de Roux, Folio, 1996, p. 109. 25 Cf. Piotr Pigorov, J'ai quitt ma patre, La Jeune Parque, 1952; ou Michel Koriakoff, Je memets hors Ia loi, ditions du Monde Nouveau, 1947. 28 p, a especificidade da perseguio dos nazistas aos judeus,
  82. 82. os comunistas compreenderamtoda a vantagemque eles podiamtirar de umtal reconhecimento, reutilizando regularmente o antifascismo. O espectro do "animal imundo cujo ventre ainda fecundo" - segundo a frmula famosa de Bertolt Brecht foi agitado comfrequncia, comou sem motivo justificado. Mais recentemente, o fato de ter sido posta emevidncia a "singularidade" no genocdio dos judeus, focalizando a ateno sobre sua atrocidade excepcional, tambmimpediu que se percebessemoutras realidades da mesma natureza no mundo comunista. Como imaginar que eles prprios, que tinhamcontribudo comsua vitria na destruio de umsistema de genocdio, pudessemtambmpraticar os mesmos mtodos? A reao mais corrente foi a recusa emadmitir tal paradoxo. A primeira grande virada no reconhecimento oficial dos crimes comunistas situa-se em24 de fevereiro de 1956. Nessa noite, Nikita Kruschev, pri-meiro-secretrio, vem tribuna do XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, o PCUS. A sesso a portas fechadas; somente os delegados do congresso esto presentes. Emsilncio absoluto, aterrorizados, eles escutamo primeiro-secretrio do Partido destruir metodicamente a imagemdo "pequeno pai dos povos", do "Stalin genial" que foi, durante 30 anos, o heri do comunismo mundial.
  83. 83. Esse relato, conhecido como o "relatrio secreto", constitui uma das inflexes fundamentais do comunismo contemporneo. Pela primeira vez, umdirigente comunista do mais alto escalo reconheceu oficialmente, ainda que assistido somente pelos comunistas, que o regime que tomara o poder em1917 cometera uma "deriva" criminosa. As razes que levaramo "Senhor K" a quebrar umdos maiores tabus do regime sovitico erammltiplas. Seu principal objetivo era o de imputar os crimes do comunismo somente a Stalin, circunscrevendo e extraindo o mal para poder salvar o regime. Tambmfazia parte de sua deciso a vontade de atacar o cl dos stalinistas que se opunhama seu poder emnome dos mtodos de seu antigo chefe. Alis, aps o vero de 1957, esses homens foramdemitidos de todas as suas funes. Contudo, pela primeira vez desde 1934, a "morte poltica" destes ltimos no foi acompanhada da morte real, podendo- se inferir, atravs desse simples "detalhe", que as razes de Kruschev erammais profundas. Ele, que tinha sido durante anos o grande chefe da Ucrnia e, por isso mesmo, havia conduzido e acobertado gigantescas chacinas, parecia cansado de todo esse sangue. Emsuas memrias, onde, sem dvida, temo papel de mocinho, Kruschev relembra o que lhe passava pelo esprito:
  84. 84. "O Congresso vai terminar; resolues sero tomadas, todas para cumprir comas fornia-29 lidades. Mas para qu? Aqueles que foramfuzilados s centenas de milhares permanecero emnossas conscincias".26 Ao mesmo tempo, ele censura duramente seus camaradas: "O que faremos comos que foramdetidos, assassinados? [...] Sabemos agora que as vtimas das represses eram inocentes. Temos a prova irrefutvel de que, longe de sereminimigos do povo, eramhomens e mulheres honestos, devotados ao Partido, Revoluo, causa leninista da edificao do socialismo e do comunismo. [...] impossvel tudo esconder. Cedo ou tarde, os que esto na priso, nos campos, sairo e retornaro a suas casas. Eles relataro ento aos seus parentes, seus amigos, seus camaradas o que lhes aconteceu. [...] por isso que somos obrigados a confessar aos delegados tudo a respeito do modo como o Partido foi dirigido naqueles anos. [...] Como pretender nada saber do que acontecia? [...] Sabemos que reinava a represso e a arbitrariedade no Partido, e devemos dizer ao Congresso o que sabemos. [...] Na vida de todos os que cometeramum crime, vemo momento emque a confisso assegura a
  85. 85. indulgncia, e mesmo a absolvio".27 Emalguns dos homens que haviamparticipado diretamente dos crimes perpetrados pelo regime stalinista - e que, emsua maioria, deviamsua promoo ao extermnio de seus predecessores na funo emergia umcerto tipo de remorso; umremorso constrangido, claro, umremorso interesseiro, umremorso poltico, mas, ainda assim, um remorso. Efetivamente, era preciso que algumterminasse como massacre; Kruschev teve essa coragem, mesmo no tendo hesitado, em1956, emenviar uma frota de tanques soviticos a Budapeste. Em1961, na ocasio do XXII Congresso do PCUS, Kruschev evocou no somente as vtimas comunistas, mas tambm todo o conjunto das vtimas de Stalin, chegando a propor que fosse erigido ummonumento emmemria delas. Sem dvida, ele havia transposto o limite invisvel almdo qual o prprio princpio do regime estava posto emcausa: o monoplio do poder absoluto reservado ao Partido Comunista. O monumento jamais veio luz. Em1962, o primeiro-secretrio autorizou a publicao de Une journe d'Ivan Denissovitch, de Alexandre Soljenitsyne. Em24 de outubro de 1964, Kruschev foi brutalmente demitido de todas as suas funes, mas ele tampouco foi assassinado, morrendo no anonimato em1971.
  86. 86. Todos os analistas reconhecema importncia decisiva do "relatrio secreto" que provocou a ruptura fundamental na trajetria do comunismo no sculo XX. Franois Furet, que justamente acabava de deixar o Partido Comu-as Nikita Kruschev, op. ct., p. 329. 27 Nikita Kruschev, op. cit., pp. 331-2. 30 nista Francs em1954, escreve a este respeito: "Ora, eis que o 'relatrio secreto' de fevereiro de 1956 transtorna de uma s vez, assimque ele veio a pblico, o estatuto da ideia comunista no universo. A voz que denuncia os crimes de Stalin no vemmais do Ocidente, mas de Moscou, e do santo dos santos de Moscou, o Kremlin. No se trata mais de umcomunista infringindo seu exlio, mas do primeiro dos comunistas no mundo, o chefe do Partido Comunista da Unio Sovitica. Ento, emlugar de ser alvo das suspeitas que acometemos discursos dos ex-comunistas, esta voz est investida da autoridade suprema outorgada pelo sistema ao seu chefe. [...] O extraordinrio poder do 'relatrio secreto' sobre as conscincias vemdo fato de ele no ter contraditores".28 Desde o comeo, o evento era to paradoxal, que numerosos contemporneos haviamprevenido os bolcheviques contra os perigos de seus procedimentos. Desde 1917-1918 batiam-
  87. 87. se no prprio interior do movimento socialista os que acreditavamno "grande claro do Leste" e os que criticavam semremisso os bolcheviques. A disputa recaa essencialmente sobre o mtodo de Lenin: violncia, crimes, terror. Enquanto que, dos anos 20 aos anos 50, o lado sombrio da experincia bolchevique foi denunciado por numerosas testemunhas, vtimas, observadores qualificados, e tambmpor incontveis artigos e obras, foi preciso esperar que os prprios comunistas no poder reconhecessemessa realidade ainda que de modo limitado para que uma frao cada vez maior da opinio pblica pudesse tomar conhecimento do drama. Reconhecimento enviesado, j que o "relatrio secreto" abordava somente a questo das vtimas comunistas. Ainda assim, umreconhecimento que trazia a primeira confirmao de testemunhos e estudos anteriores, e que corroborava o que muitos desconfiavamh bastante tempo: o comunismo havia provocado na Rssia uma imensa tragdia. Os dirigentes de muitos dos "partidos irmos" no se persuadiram, de imediato, de que era preciso que se engajassemno caminho das revelaes. Ao lado do precursor Kruschev, eles pareciamumtanto retardados: foi necessrio esperar 1979 para que o Partido Comunista chins distinguisse na poltica de Mo "grandes mritos" - at 1957 - e "grandes erros" emseguida.
  88. 88. Os vietnamitas somente abordamessa questo luz da condenao do genocdio perpetrado por Pol Pot. Quanto a Castro, ele nega as atrocidades cometidas sob sua gide. At ento, a denncia dos crimes comunistas vinha somente da parte dos seus inimigos, dos dissidentes trotskistas ou dos anarquistas; e ela no tinha sido particularmente eficaz. A vontade de testemunhar era to forte nos 28 Franois Furet, L Passe d"une illusion. Essai sur l'ide communiste au XX? sicle, Robert Laffont/Calmann-Lvy, 1995, p. 513. 31 sobreviventes dos massacres comunistas quanto nos sobreviventes dos massacres nazistas. Mas eles forammuito pouco - ou quase nada - escutados, emparticular na Frana, onde a experincia concreta do sistema de campos de concentrao sovitico s afetou diretamente a grupos restritos, tais como os Malgr-nous da Alsace-Lorraine.2^ Na maior parte das vezes, os testemunhos, as erupes de memria, os trabalhos das comisses independentes criadas sob a iniciativa de algumas pessoas - assimcomo a Commission Internationale sur l regime concentrationnaire, de David Rousset, ou a Commission pour Ia vritsur ls crimes de Staline* - foramencobertos pelo tamanho da verba para a propaganda comunista,
  89. 89. acompanhado por umsilncio covarde ou indiferente. Esse silncio, que sucede geralmente a algummomento de sensibilizao provocado pela emergncia de uma obra - UArchipel du Goulag, de Soljenitsyne . ou de um testemunho mais incontestvel do que outros - Ls Rcits de Ia Kolyma, de VariamChalamov,3 ou UUtopie meurtrire, de Pin Yathay3i -, mostra uma resistncia prpria aos vrios e diferentes segmentos das sociedades ocidentais no que diz respeito ao fenmeno comunista; eles se recusam, at o momento, a encarar a realidade: o sistema comunista comporta, ainda que emgraus diversos, uma dimenso fundamentalmente criminosa. Comesta recusa, as sociedades participaramda mentira, no sentido aludido por Nietzsche: "Recusar-se a ver algo que se v; recusar-se a ver algo como se v". A despeito de todas essas dificuldades na abordagemda questo, vrios observadores tentarama empreitada. Dos anos 20 aos anos 50 - na falta de dados mais confiveis, cuidadosamente dissimulados pelo regime sovitico a pesquisa repousava essencialmente sobre os testemunhos dos desertores. Suscetveis de estaremimbudos de um esprito vingativo, ou difamatrio, ou ainda de serem manipulados por umpoder anticomunista, esses
  90. 90. testemunhos - passveis de contestao pelos historiadores, como todo testemunho - eramfrequentemente desconsiderados pelos bajuladores do comunismo. O que se poderia pensar, em1959, da descrio do Gulag feita por um desertor dos altos escales da KGB, tal como ela fora recuperada no livro de Paul Barton?32 E o que pensar de Paul Barton, ele prprio umexilado tcheco, cujo verdadei-29 Cf Pierre Rigoulot, Ls Franais au Goulag, Fayard, 1984; e, sobretudo, Jacques Rossi, LGoulag de A Z, L Cherche Midi, 1997. * Respectivamente: Comisso Internacional Sobre os Regimes dos Campos de Concentrao e Comisso Pela Verdade Sobre os Crimes de Stalin. (N. T.) 30 VariamChalamov, Rcits de Ia Kolyma, F. Maspero, 1980, reed. La Dcouverte/Fayard,1986. 3' Pin Yathay, UUtofie meurtrire, Robert Laffont, 1980. 32 paul Barton, UInatution concentrationnaire en Russie, 1930-1957, Plon, 1959. 32
  91. 91. ro nome Jiri Veltrusky, umdos organizadores da insurreio antinazista de 1945 emPraga, obrigado a fugir de seu pas em1948? Ora, a confrontao comos arquivos doravante abertos mostra que essa informao era perfeitamente confivel. Nos anos 70 e 80, a grande obra de Soljenitsyne - UArchipel du Goulag, e depois o ciclo dos "Ns" da Revoluo Russa - provocou umverdadeiro choque na opinio pblica. Sem dvida, umefeito produzido muito mais pela literatura, pelo cronista genial, do que por uma tomada de conscincia geral do horrvel sistema por ele descrito. Entretanto, Soljenitsyne encontrou dificuldades emperfurar a crosta da mentira, chegando a ser comparado, em1975, por umjornalista de um grande jornal francs, a Pierre Lavai, Doriot e Dat, "que acolhiamos nazistas como libertadores"^^. Seu testemunho foi, todavia, decisivo para uma primeira tomada de conscincia, assimcomo o de Chalamov sobre a Kolyma, ou o de Pin Yathay sobre o Camboja. Mais recentemente, Vladimir Bukovski, uma das principais figuras da dissidncia sovitica no perodo Brejnev, ergueu umnovo grito de protesto que reclamava, sob o ttulo Jugement Moscou,^ a instaurao de umnovo tribunal de Nuremberg para julgar as atividades criminosas do regime; seu livro foi recebido no ocidente comgrande sucesso de crtica, mas no de pblico. Simultaneamente, vemos as publicaes que tentama
  92. 92. reabilitao de Stalin35 florescerem. Que motivao pode encorajar, neste fimde sculo XX, a explorao de umdomnio to trgico, to tenebroso, to polmico? Hoje, no somente os arquivos confirmama exatido desses testemunhos, como tambmpermitemir muito mais adiante. Os arquivos internos do sistema de represso da ex-Unio Sovitica, das ex-democracias populares e do Camboja evidenciamuma realidade aterradora: o carter macio e sistemtico do terror, que, em vrios casos, conduziu ao crime contra a humanidade. Chegou o momento de abordar de maneira cientfica documentada por fatos incontestveis, e livre das implicaes pol-tico-ideolgicas que a sobrecarregavam- a questo recorrente que todos os observadores se puseram: que lugar ocupa o crime no sistema comunista? Nessa perspectiva, qual pode ser a nossa contribuio especfica? Procuramos utilizar procedimentos que respondam, emprimeiro lugar, a umdever para coma histria. Nenhumtema tabu para o historiador, e as impli- Bernard Chapuis, L Monde, 3 de julho de 1975. Vladimir Boukovski,/gfjff Moscou, Robert Laffnt, 1995. Ver, por exemplo, o livro de Ludo Martens, Un autre
  93. 93. regarsur Staline (EPO, 1994,350 pp.),vendido na Cidade dos livros da Festa da Humanidade 1997. J numestilo umpouco menoshagiogrfico, Lilly Marcou publicou Staline, vieprve, Calmann-Lvy, 1996. 33 caes e presses de todo tipo - polticas, ideolgicas, pessoais - no devemimpedi-lo de seguir o caminho do conhecimento, da exumao e da interpretao dos fatos, sobretudo quando estes estiverampor umlongo tempo voluntariamente enterrados no segredo dos arquivos e das conscincias. Ora, a histria do terror comunista constitui-se como umdos maiores panos de fundo da histria europeia, sustentando comfirmeza os dois extremos da grande questo historiogrfica do totalitarismo. Este ltimo teve uma verso hitlerista como tambmas verses leninista e stalinista, no sendo mais aceitvel elaborar uma histria hemiplgica, que ignore a vertente comunista. Do mesmo modo, a posio defensiva que consiste emreduzir a histria do comunismo unicamente a sua dimenso nacional, social e cultural insustentvel. Sobretudo porque o fenmeno totalitrio no se limitou Europa e ao episdio sovitico. Ela compreende tambma China maosta, a Coreia do Norte, o Camboja de Pol Pot. Cada comunismo nacional esteve ligado por algumtipo de cordo umbilical matriz russa e sovitica, o que tambmcontribuiu para o progresso desse
  94. 94. movimento mundial. A histria coma qual nos confrontamos a de umfenmeno que se desenvolveu emtodo o mundo e que diz respeito a toda a humanidade. O segundo dever ao qual responde esta obra o de um dever para coma memria. E uma obrigao moral honrar a memria dos mortos, sobretudo quando so vtimas inocentes e annimas do Moloch conduzido por umpoder absoluto que procurou, inclusive, apagar a sua prpria lembrana. Aps a queda do Muro de Berlime o desmoronamento do centro do poder comunista em Moscou, a Europa, continente matricial das experincias trgicas do sculo XX, est prestes a recompor uma memria comum; podemos, por nossa parte, dar a nossa contribuio. Os prprios autores deste livro so portadores dessa memria: ummais ligado Europa Central devido a sua vida profissional; outro, s ideias e prticas revolucionrias, em seus engajamentos contemporneos a 1968 ou mesmo mais recentes. Esse duplo dever, para coma memria e a histria, inscreve- se nos mais diversos contextos. Para alguns, ele se refere a pases onde o comunismo praticamente nunca pesou, nem sobre a sociedade nemsobre o poder - Gr-Bretanha, ustria, Blgica, etc. Para outros, ele se manifesta empases emque o comunismo foi uma potncia temida como nos Estados Unidos aps 1946 ou temerria, mesmo no
  95. 95. tendo jamais chegado ao poder como na Frana, Itlia, Espanha, Grcia, Portugal. Do mesmo modo, ele se impe comfora nos pases onde o comunismo perdeu o poder que detivera por vrias dcadas - Leste Europeu, Rssia. Por fim, sua pequena chama vacila emmeio ao perigo nos lugares onde o comunismo ainda est no poder - China, Coreia do Norte,