O Lamento de Athlanda
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A Saga de
Mitrax
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O Lamento de
Athlanda
Autor:
Srgio Roberto de Paulo
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A fora irresistvel do holocausto se aproxima. Os elfos
que sobrevivero sero aqueles que se escondero nos
buracos e frestas insondveis. A Grande Floresta ser
destruda. E com ela, a harmonia do continente. Sem as
rvores, vir a poca do Vero Eterno e a terra ser ridae escaldante. Sem as rvores, as chuvas no viro. Ou
viro torrencialmente, varrendo a colheita. Sem as rvores
para regular as nuvens, no haver estaes e o tempo
enlouquecer. Um tempo negro se abater sobre a terra,
cobrindo com o seu manto todas as criaturas.
Collinaw
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Mar dos
Monstros
Rio Mgion
Piramar
Armon
(Imprio Angelical)
Rio Sanco
Lumerae
LagoSawagasa
Beliria
NenmenahReino das
Ondinas
Kalina Lothar(Lothar Prima)
Monte Armon
Dracmaraht
Terra dos
Gigantes
Silvnia
Floresta de
Athlanda
(~1000 a.EGRR)
Lothar Eralda
Ithra
Maras
Ew Dortas
Sursardaw
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Nerah chegou voando em zigue-zague epousou resfolegante na varanda. Procurou no fazer barulho, pois o pai dormia esparramado
sobre a confortvel cadeira. Quando se colocou firmemente em p, a pequena elfa breas
parou alguns instantes a pensar. Olhou para um lado e para o outro, com as sobrancelhas
comprimidas contra os olhos. L fora, o Sol j se punha, fazendo com que as protuberantestorres de Lothar Eralda projetassem sombras compridssimas.
-Nerah? sussurrou o rei.
Nerah se virou, assustada. O pai havia acordado.
-Por que chegaste to tarde?
A menina abaixou a cabea e lentamente caminhou at o pai. Ela no disse nada,
mas o charme foi irresistvel ao poderoso Rei Bhorgus. Ento, ele sorriu e abriu os braos.
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Diante desse gesto, a menina sorriu, feliz da vida por no ser repreendida, e correu
para os braos do pai. Este a apanhou e botou-a sobre o seu colo.
-Onde esteve? indagou ele.
-Voando atrs das fadinhas... respondeu a filhinha, com ar inocente.
O rei pensou que ela j estava na idade de entender certas coisas, mas nada disse.
Nerah, por sua vez, cansada, bocejou.
-Ah, ests com sono, no ests? perguntou o pai, sorrindo.
-Papai... conta uma histria? indagou a menina, cheia de charme - ...para me fazer
dormir?
Bhorgus sorriu novamente e pensou que havia uma histria que j estava na hora
dela conhecer. Ento, limpou a garganta com um som caracterstico, para a voz sair maissuave, tratou de aconchegar a sua filha mais nova contra o peito e comeou a contar:
O vento pressionava seu rosto conforme se precipitava dasalturas. Iblius vinha logo atrs, mas ele no era to rpido quanto ela. E isso lhe dava uma
satisfao mpar, como raras na vida. Mas ele estava rindo, no estava chateado. Podia ouvir
as suas gargalhadas, por isso sabia que estava logo atrs. E, de repente, como nenhum
contentamento eterno, uma idia perturbadora invadiu o seu ser: e se ele a deixava ganhar
todos os vos? E se, na verdade, ele fosse mais rpido, mas ficava propositadamente para
trs? No, no podia ser. Eles estavam sempre disputando e ele adorava vencer!
Mas a corrida estava no fim. O cheiro de Ithra j invadia o ar. A torre funerria de
Mardria j podia ser avistada, aparecendo dentre as nuvens, l onde o seu av haviaemanado, h cinqenta anos. E a torre lhe deu uma idia. Tinha que provar a si mesma que era
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melhor no vo que o irmo, embora ele fosse melhor em todas as outras coisas. Ento,
quando passou pela torre, repentinamente virou para a esquerda contornando-a. Iblius passou
reto, pois no percebeu a manobra. Assim, depois de um segundo, Ithrannah apareceu
imediatamente atrs dele e, sem que ele pudesse fazer qualquer coisa... arrancou as suas
calas.
Percebendo-se s de ceroulas, ele parou no ar. Colocou os punhos fechados contra a
cintura e reclamou:
-Ei!
Mas Ithrannah flutuava no ar, se contorcendo de tanto rir, pressionando as calas do
irmo contra a barriga.
-No tem graa, Tix! disse ele, verde de raiva.
Ela lhe atirou as calas. Ele sempre a chamava pelo seu nove de fada quando queriachate-la. Bem, para os elfos aquilo era a mesma coisa que chamar algum de criana. Nada
mais ofensivo para uma pr-adolescente.
Iblus vestiu rapidamente a cala e rumou para cima.
-Ei! Papai disse para voltarmos antes da quinta hora! gritou a elfa breas.
-Tchau! respondeu o irmo, j longe.
Contrariada, Ithrannah voou at em casa. Logo avistou a grande paineira a beira do
rio, prxima a um grande conjunto de cascatas projetando-se do alto das MontanhasChorosas, e pousou suavemente na varanda da frondosa casa de madeira que se confundia
com a rvore. Estava um dia nublado, um pouco estranho, e, por isso, viu que o pai trabalhava
no escritrio, pois uma bruxuleante luz de velas vazava pelas frestas das venezianas. Ele nunca
deixava as janelas abertas por causa dos espies tuellais.
Encontrou-o lendo uma carta, com uma cara de espanto. Quando ele percebeu a sua
presena, baixou o pedao de papel e, depois de um breve instante sorriu. Depois voltou a
ficar srio de novo e perguntou:
-Onde est o seu irmo?
-Voando por a... respondeu ela, casualmente.
-Vai busc-lo disse ele, num tom entre uma ordem e um pedido.
-Mas, pai, acabei de chegar! protestou a menina.
Ento ele cruzou as mos sobre o colo e suspirou. claro que as mos no podiam
ser vistas por trs da mesa, mas Ithrannah sups que ele tivesse feito isso, pela posio dos
ombros. Depois ele se levantou com uma expresso de quem pedia pacincia para si mesmo,
segurou uma das mos da filha e a puxou suavemente de volta para a varanda. Ali era ntido e
forte o som das cascatas se chocando contra as pedras.
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Ele se abaixou diante da filha, ficando de joelhos e segurou-a pelos ombros. Olhou-a
profundamente, com os olhos parcialmente cobertos pelos prprios cabelos e disse:
-Promete-me uma coisa, Ithrannah, que nunca sair de perto de teu irmo!
-Mas, pai... disse ela, um pouco assustada com a atitude do elfo notus.
-Promete-me, querida, que, no importa o que acontecer, estars sempre ao lado de
teu irmo!
-Por que, pai? indagou ela, j com um pouco de lgrimas nos olhos. Estars
conosco tambm, no estars?
-Um dia no estarei...
-No! disse ela, balanando negativamente com a cabea. Sempre estars
conosco!
-Um dia todos morrem, Ithrannah. E no ser diferente comigo disse o pai,
serenamente.
-Mas isso ser daqui a muitos sculos, no ser?
-Espero que sim, querida, espero que sim... disse ele, abraando-a.
Depois afastou-a suavemente e completou:
-Agora vai. Traze o teu irmo. Est na hora do almoo!
Ela tentou sorrir e voou, dizendo:
-Volto logo!
E, de fato, em menos de meia hora estava de volta com o irmo. Sentaram-se os trs
mesa e foram servidos pelo casal de zephyros que os atendiam h dcadas. Traziam os
pratos sobre badejas colocadas em cima das cabeas. Tinham um aspecto permanentemente
triste como muitos zephyros e tambm eram mudos, como a maioria deles. Por dcadas,
Ithrannah tentara faz-los rir, fazendo ccegas nas suas barrigas, mas o mais que conseguira
com aquilo fora que eles se transformassem em eureus e sassem voando por a. E, quando
isso acontecia, ficavam quase uma semana sem aparecer e o pai ficava aborrecido. Ento,
desistira.
-Eu no quero comer cenoura. Isso comida de gnomo! protestou o jovem Iblus.
-Ento come o resto! disse o pai, tentando resolver o problema da maneira mais
rpida possvel.
Mas, tirando as cenouras, o voraz rapazinho no fez cerimnia em devorar o resto.
Ithrannah observou atnita e um tanto enojada o irmo misturar po, tomate, folhas, cebola e
uma abundante quantidade de mel e enfiar grandes quantidades daquilo na boca, fazendouma baba amarronzada escorrer pelos cantos da boca.
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-Nesta tarde, quero que fiqueis em casa, estais me entendendo? H tuellais
rondando na cidade e vou estar fora, trabalhando declarou o pai.
-Os bandidos esto dando trabalho, pai? perguntou o menino, com vivo interesse e
a boca parcialmente cheia.
-Um pouco... respondeu o pai, sem muito entusiasmo.
-E quando vais me ensinar a ser um ailand?
-Em trs ou quatro dcadas... respondeu Bohnarius, o grande caador de tuellais.
Precisas aprender a ter disciplina primeiro!
O menino elfo nada disse, limitou-se a olhar o pai de boca cheia, sem mastigar por
alguns instantes, com cara de que no poderia esperar tanto tempo.
Algumas horas mais tarde, Bohnarius caminhava nas escuras e apertadas vielas do
bairro norte da cidade. Ali, as rvores eram bastante juntas e tinham troncos espessos,
restando pouco espao para as barracas de vendedores que se espremiam uns sobre os
outros. Para piorar, uma multido de elfos em todas as fases transitava em todas as direes.
Assim, no somente o cho estava repleto de ps notus e zephyros, como tambm o ar estava
repleto de elfos breas e eureus. E, nessas condies, para o chefe da polcia local, o faro
funcionava muito melhor que a viso. Ento, dentre aquela mirade toda de diferentes aromas
e fedores, ele sentiu um leve trao de um elfo apeliotes. Leve, mas inconfundvel.
Poucos tinham um dom to apurado para farejar tuellais, mas Bohnarius era um
mestre nessa arte. Mas no podia ser reconhecido, assim, cobriu a cabea com o capuz do
manto.
Seguiu o cheiro, abrindo pacientemente caminho entre a multido, e no demorou
muito para encontrar o seu alvo. Muito bem disfarado, tambm usando um manto, estava
um elfo suspeito, conversando com um outro na fase notus. Era discreto e tinha certeza que os
transeuntes estavam prximos a um tuellai e, portanto, corriam perigo. De longe, observando
por dentre as pequenas brechas mveis formadas entre os transeuntes que passavam, pde
observar o elfo notus entregando um pedao de papel ao tuellai. Este o colocou
cuidadosamente no bolso. Observou atentamente o rosto do notus, para gravar-lhe a
fisionomia, mas era hora de agir.
Ento, comeou a andar na direo dos dois. No se apressou, para no levantar
suspeitas. Aproximava-se olhando fixamente para os dois. Cinco metros. Eles pareciam no t-
lo percebido, pois continuavam conversando. Quatro metros. No conversavam normalmente
mas, antes, cochichavam. Trs metros. Logo daria a ordem de priso. Mas, embora eles no o
houvessem percebido, algo aconteceu. Um grito. Um terceiro. Um vigia.
-Ailand!
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No havia tempo de identificar de onde a voz havia partido. Os dois suspeitos, ao
ouvirem o grito, olharam para todos os lados e o viram. Hora de correr.
Bohnarius disparou na direo dos dois. Estavam perto, mas havia ainda muita gente
no caminho. Derrubou vrios, mas o notus correu pela esquerda e o ailand correu atrs do
tuellai. Este era gil, mais magro e rpido que Bohnarius. Aos poucos, ento, foi sedistanciando por entre a multido, derrubando vrios. Jamais o pegaria assim.
Mas, felizmente, ele rumou pela rua baixa dos Murmrios. O ailand, portanto,
seguiu pela esquerda, para passar pelo elevado. Era a sua nica chance de peg-lo. Enquanto
corria, derrubando elfos e barracas, podia ver o tuellai l em baixo, tambm avanando
forando a passagem dentre a multido.
Bohnarius correu o mais que podia, comeando a perder o flego. Tinha que
melhorar a sua forma, pensou. E, ento, se jogou do elevado, quase sem olhar.
Veio a cair justamente sobre o bandido, machucando vrios transeuntes, e tratou
logo de agarrar-lhe o manto. Como o havia derrubado, procurou posicionar o seu corpo sobre
o dele, para prend-lo. O tuellai, enraivecido, o mirou com olhos vermelhos, to vermelhos
como Bohnarius jamais vira num elfo negro, e que o assustou. Ao mesmo tempo, o bandido
vociferou:
-Idiota! Esto todos perdidos aqui!
-Miservel! gritou o ailand. Quem te mandou aqui?
O tuellai apenas riu e, num movimento rpido e preciso, deu uma cotovelada norosto do policial, que resultou num hematoma que jamais sararia, tirando-o de cima do
bandido. Bohnarius rolou para o lado, repleto de dor, mas ainda segurando firmemente o
manto. Mas este ficou leve, pois o tuellai se desvencilhou desse item de sua roupa e fugiu
rapidamente. Mas, assim, com o rosto inchado e sangrando, com a face manchada de verde,
cercado pela multido atnita, Bohnarius sorriu, feliz, pois, na sua mo direita, segurava o
pedao de papel que fora entregue ao tuellai.
#######
Na manh seguinte, o pai mastigava alguma coisa na mesa, absorto, parecendo
perdido em seus pensamentos. Os gmeos cochichavam e sorriam. Ento, um deles tomou
coragem e perguntou:
-Pai, podemos ir ao festival? indagou Iblus.
Mas o pai, preocupado com os seus pensamentos, nem prestou ateno direito na
pergunta, e respondeu automaticamente:
-Claro...
Assim, as crianas sorriram e gritaram:
-Oba!
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E saram correndo. Foi somente ento que Bohnarius voltou a si e percebeu que
respondera sem refletir. Bem, no muito seguro andar pelas ruas hoje em dia, pensou,
mas, depois de ontem, no acredito que novos tuellais surjam to cedo. E depois... tambm
estarei l!.
#######
O Grande Festival de Ithra Maras ocorria sempre no dia 14 de maio. Acontecia numa
extensa pradaria, ao sul da cidade, onde se armavam imensas tendas decoradas por um sem
nmero de fitas coloridas. Olhando-se para o norte, as grandes torres ithrianas podiam ser
vistas, despontando por cima do dossel. Dezenas de milhares de elfos se concentravam ali,
para o festival, sendo vrios de outras grandes cidades de Athlanda, como Lothar Eralda,
Sursardaw e da capital, Kalina Lothar. Mas, naquele ano de 1017 da Era dos Elfos, ningum de
Ew Dortas e Nenmenah, as maiores cidades do norte, havia vindo. A ausncia dos respectivos
estandartes imediatamente foi notado por Ithrannah, mas, quando os gmeos perguntavam a
qualquer adulto a razo daquela ausncia, notavam um constrangimento na resposta. aguerra, diziam alguns. Muito arriscado vir aqui, afirmavam outros. Mas evitavam falar
muito naquilo.
-Eu sei o que est acontecendo! disse Iblus, resoluto, enquanto caminhavam
passeando por entre as tendas.
-O que? indagou a irm.
-As salamandras destruram essas cidades! respondeu ele, com um tom trgico.
Iriannah no sabia se o irmo de fato pensava aquilo ou estava tentando amedront-la. Assim, retrucou apenas:
-Credo! Vira essa boca pra l!
Ento, avistaram um conhecido e sorriram.
-Olha! o Easrius!
Um elfo notus, alto e esguio, a uns vinte metros de distncia, ajeitava a sela de um
drago verde, cujos arreios estavam sendo seguros por dois criados humanos.
-Ei, Easrius! gritou Iblus, acenando de longe.
Ao ouvir o seu nome, o elfo se virou e sorriu. Andou apressado at as crianas e,
abrindo os braos, disse:
-Seus pestinhas!
E abraou-as.
-Vais competir, Easrius? indagou Ithrannah.
- claro! Trouxeram fitas?
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Ento, as crianas reviraram os bolsos e tiraram longas fitas coloridas. A de Iblus era
azul e a de Ithrannah, amarela.
-timo! disse o notus, apanhando as fitas. Vinde!
Conduziu-as at o drago de longo pescoo e cauda. J tinha muitas fitas amarradasnessas partes de seu corpo. Algumas j estavam bem gastas e desbotadas, pois haviam sido
postas em festivais passados.
-Esse o Idomeus disse, apontando o drago. Podem acarici-lo, manso!
As crianas olharam admiradas o drago. Aos poucos, foram tomando coragem e
acariciaram a sua cabea, que ele abaixara na direo do dono. Como todo drago verde,
aquele tinha a cabea pequena, do tamanho do tronco de um homem adulto.
-Agora vou amarrar as fitas disse o elfo notus.
-Amarra a minha logo abaixo da cabea! pediu Ithrannah.
Assim ele o fez, colocando a fita de Iblus logo em seguida.
-Vais ganhar os jogos, no vais, mano? indagou o menino.
-Ora! H outros competidores muito bons. Imonarion o favorito!
-H exclamou Ithrannah, tu derrotas ele!
O irmo mais velho sorriu mas, de repente, o sorriso se foi, pois seus olhos haviam
avistado outra pessoa:
-Ol, Easrius disse a pessoa.
O elfo notus ficou ereto, saindo da posio mais abaixada, que usava para falar com
as crianas.
-Ol, pai... respondeu ele, demonstrando pouco nimo.
-No vais abraar o teu velho pai? indagou Bohnarius.
O jovem notus ento sorriu, caminhou para frente e abraou o pai.
Mais tarde, ambos, Bohnarius e Easrius caminhavam atravs do parque onde fora
montado o festival. Passavam pela multido de transeuntes. Elfos de todas as fases brancas
compravam bugigangas e conversavam animadamente.
-E ento, indagou o pai, enquanto caminhava, - ainda no desististes dessa idia de
se dedicar vida militar?
-No, pai respondeu o filho, pensativo. o que quero para a minha vida. Sabesque no consigo ficar parado num lugar s!
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O pai parou. No se conformava com a escolha do filho, mas falou da maneira mais
suave possvel, desta vez:
-Filho... vem trabalhar comigo... Sabes que tens talento em caar tuellais!
-Pai... discutimos isso milhares de vezes... ento Easrius baixou a cabea econfessou: - Fui destacado para Kalina Lothar...
-No vai, filho. suicdio! implorou o pai.
-H numerosas foras concentradas l, pai. Nada vai me acontecer!
J estavam parados, olhando-se mutuamente, mas Bohnarius comeou a andar de
um lado para o outro, nervoso, gesticulando.
-Eu vi os exrcitos de fogo, Easrius... No h como lutar contra aquilo!
-Pai, vamos deter as salamandras. Vamos par-las antes que cheguem a meio
caminho de Ew Dortas. Athlon sabe o que faz!
-Athlon no sabe de nada! H tuellais ajudando as salamandras, Easrius, tuellais!
-Pai, vs tuellais em todas as coisas! Sei que teu trabalho, mas...
-Interceptei uma mensagem... confessou o pai, em voz baixa. Os exrcitos de fogo
no vo rumar para Ew Dortas, Easrius, vo atacar diretamente a capital!
-Kalina Lothar? Bogabem! retrucou o filho, espantado. Jamais cometeriam tal
suicdio! Elas jamais tomariam a cidade... No, fortificada demais... E os ventos...
-Jamais imaginamos que tomariam Nenmenah, no verdade? insistiu o pai, agora
falando mais brandamente, mas demonstrando temor. Afinal, quem imaginaria que
salamandras tomariam a cidade das guas? Mas elas tomaram, Easrius, contra todas as
nossas expectativas!
- verdade isso, pai? Essa mensagem...
-Por acaso ests duvidando de teu prprio pai?
Easrius olhou bem para o pai, atnito, mas as trombetas soaram, chamando oscompetidores para os jogos.
-Vai disse o pai, imaginando que aquela conversa no terminara ali. Ests
atrasado!
Easrius fez um sutil gesto com a cabea e se encaminhou apressadamente para o
seu drago.
#######
O vento comeou a soprar para leste. Uma singular direo, para aquela poca. Oscompetidores se ajeitaram em suas montarias. Drages verdes, todos com um nico chifre no
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alto da testa, todos abundantemente enfeitados com fitas coloridas. Segundo a tradio lfica,
os que portavam mais fitas eram aqueles que carregavam maior nmero de esperanas, e a
esperana era capaz de grandes feitos. E o de Easrius era um dos mais enfeitados. Fitas notas
e fitas antigas. A mais significativa delas, a fita da me, vermelha, desbotada e rasgada,
colocada na base do pescoo do drago pouco antes dela ir. Easrius acariciou a fita, enquanto
tentava se concentrar na competio. Eram dezoito nessa bateria. Os jogos estavam apenas
comeando.
A trombeta soou. Todos largaram rapidamente, voando pelo cu com as suas
montarias. Easrius ficou para trs. Estava distrado nos pensamentos e no percebeu direito o
instante da largada. Os competidores passaram pelas argolas. Trs. Situadas a vinte e cinco
metros do cho. Fixadas em colunas de madeira. Eram estreitas. Mal dava para o drago
passar. Mas todos passaram com facilidade. Easrius era o ltimo e imaginou que no seria
fcil naquele ano. Mas rapidamente recuperou espao. Ultrapassou os oito mais lentos e
continuou avanando. A trajetria consistia em voltas em torno do campo. Assim, todos
poderiam ver o que acontecia. Agora era a vez das argolas mveis. Eram suspensas por cabos e
presas em estruturas de madeira. Todo competidor deveria passar por trs delas em
sequncia. Era difcil. Aquele que tocasse nos aros era desclassificado. Dois ou trs tocaram,
mas os outros passaram. E Easrius era mestre nessa etapa. Assim, ultrapassou mais uns trs.
Agora vinha as argolas de fogo. Foram introduzidas nos jogos depois que as salamandras se
insinuaram alm do rio Sanco.
Quando Easrius as viu, uma mirade de lembranas tomou conta do seu ser.
Ningum acreditava que as salamandras pudessem atravessar um grande rio. Mas elas o
fizeram. Arrancaram enormes rvores do cho e as jogaram em grande quantidade no rio, at
que entupissem a sua superfcie, criando uma espcie de plataforma. Depois jogaram entulhos
em cima e passaram com os seus exrcitos. Ouvira dos lbios do prprio Grande Rei, numa
grande audincia, que cada uma daquelas rvores mortas doeu fundo na sua alma. Mas a dor
do rei no seria suficiente para deter as elementais do fogo. Atravs do Sanco, trezentos mil
homens de fogo passaram, bem como dezenas de milhares de lees e pssaros de fogo, e
tambm smios salamndricos, mirades de drages, cinco espcies diferentes, e outras
estranhas criaturas e, claro, vinte e cinco mil salamandras.
Tinha medo do fogo, mas passar por argolas era fcil para ele. Era s fechar os olhos
no ltimo instante e estava tudo bem. E j estava em quarto. Agora vinham os alvos. Primeiro
os fixos. claro que seria fcil acert-los, no fosse a velocidade. Agora era a etapa em que,
quem fosse rpido, poderia ultrapassar os demais. Quanto menos rpido o drago voasse,
maior a probabilidade de acertar, mas a poder-se-ia ser ultrapassado pelos outros.
Easrius fez o que sabia: retardou um pouco a velocidade do drago de forma a
poder ter a certeza de acertar. Mas a ele apareceu. Veio de trs com o seu velho drago.
Aquele que carregava apenas uma fita. Uma fita roxa. Todo mundo sabia que era de sua finada
amada. Ele, Imonarion, veio rpido como um raio. Disparou um sem nmero de flechas
acertando todos os alvos, os fixos e os mveis, tomando a dianteira da competio. Easrios
at ficou poucos instantes observando-o, movendo-se a frente lentamente. E no soube se
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fora uma pea pregada pelos seus olhos, mas pareceu t-lo visto piscar para ele. Ento,
desanimou um pouco. claro que Imonarion iria vencer novamente os jogos.
#######
Mas os jogos no tiveram fim. No segundo dia, bem na hora dos competidores seprepararem, uma comitiva da capital invadiu o parque. Uma centria de arqueiros alados da
fora militar do leste. O centurio anunciou que o rei Athlon convocava todos os membros da
reserva e os licenciados. Isso inclua praticamente todos os competidores.
Bohnarius se adiantou e indagou:
-Centurio, qual o motivo da convocao?
-Os exrcitos salamndricos rumam para Kalina Lothar! foi a resposta dele.
Toda a multido que o ouvia ficou em silncio. Todos sabiam o que aquilo significava.Bohnarius olhou para o filho mais velho, distncia. Este o pressentiu e retribuiu o olhar aflito.
Mas aquele fitar mtuo durou pouco, pois Easrios tratou logo de rumar para a tenda onde
estavam os seus pertences. O pai foi atrs. Entrou na tenda vociferando:
-No vai, Easrius!
-Como no? indagou o filho. Fui convocado!
- loucura!
-Pai!
-Vou providenciar para ti uma dispensa. Direi que vais trabalhar comigo! H tuellais
ajudando as salamandras e precisamos descobri-los.
-Pai... Easrius nem sabia como dizer aquilo. No vo acreditar em ti...
-No vai! Espera-me aqui! e saiu apressadamente.
O filho pensou por alguns minutos. Mas decidiu ir. Mais tarde, quando o pai retornou
tenda, no o encontrou mais.
#######
Dois dias mais tarde, o elfo notus que passou a mensagem ao tuellai foi preso.
Bohnarius dirigiu-se sua cela e entrou para interrog-lo.
-Muito bem, conta-me tudo! gritou o policial, tentando intimidar o prisioneiro.
O elfo o olhou com rancor, resmungando baixinho:
-Jamais sabers por estes lbios!
-Se cooperares, sua pena ser abrandada Bohnarius tentou uma abordagem maisdiplomtica.
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-No tens provas contra mim! desfiou o prisioneiro.
-Bastar uma palavra minha para apodreceres pelo resto da vida nos calabouos de
Al-Nazir!
O elfo olhou para o cho, parecendo perturbado. Depois decidiu que no fariadiferena alguma contar ou no:
-A nao lfica est condenada! No h o que fazer! gritou o prisioneiro, com uma
voz rouca e sinistra. A cada dia que passa, o cristal verde perde poder. No h como deter as
salamandras!
-Ento decidiste te aliar a elas, no ?
-No o que todos deveramos fazer? Elas nos prometeram a sobrevivncia!
-Sobrevivncia? indagou espantado Bohnarius. Salamandras no tm escrpulos!No tm palavra. Foram criadas para matar e destruir. A vida perece por onde elas passam.
Um milho de quilmetros quadrados de florestas j foram queimados por elas!
-Quem se importa com a floresta, quando a nossa sobrevivncia que est em jogo?
-Quem se importa com a floresta? protestou Bohnarius, indignado. A floresta a
nossa sobrevivncia!
-A natureza foi criada para nos servir. Devemos nos apropriar dela! As rvores esto
a para que as usemos. No h nada de sagrado nelas! Se as salamandras querem queim-las,
que seja!
Bohnarius olhou atnito para aquele elfo. Tentou entender o seu pensamento, mas
no conseguiu. No conseguiu adivinhar de onde vinham aquelas idias. Como poderia um elfo
admitir a destruio de uma nica rvore?
-No verdade que a natureza est a nosso servio. Se destruirmos a floresta,
tambm seremos destrudos.
-Bobagem! Os gnomos retiram ouro da terra e com isso obtm riqueza. Os homens
cortam as rvores para alocar o gado, e com isso podem ter uma vida farta. Por que ns no
podemos fazer o mesmo? Podemos extrair o que precisamos da natureza sem se importar com
ela. Ela nossa escrava!
-Tu s doente! exclamou vagarosamente o ailand, olhando fixamente para o seu
interlocutor. Pensou que tais pensamentos somente poderiam ser resultado do
enfraquecimento do cristal verde. Isso significava que, logo, mais elfos pensariam assim.
Ento, seria o fim da civilizao e cultura que conhecia. A civilizao dos construtores de
cidades entre as rvores. As cidades danantes como os conveses dos navios. Seria o fim de
Athlanda.
#######
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Mas, em agosto daquele ano, um ai-juellai, ou arqueiro montador de drages, foi
encontrado ferido nos arredores da cidade por um grupo de ailands, assistentes de
Bohnarius, e foi levando at o palcio do rei de Ithra Maras. Bohnarius tambm foi chamado.
Contudo, o rei tambm havia se deslocado em socorro a Kalina Lothar, ento, em seu
lugar, fora nomeado regente o filho do rei, o prncipe Scilion, um jovem elfo notus recmpassado pela cerimnia do ingew, a qual representa a fixao do elfo na sua fase mais
madura, ou entrada na fase adulta.
Estavam naquele salo o prprio prncipe, Bohnarius, que tambm era o tio do
primeiro, o ai-juellai e Patsinah, a feiticeira. O cho estava oscilando mais forte naquele dia, j
que ventos furiosos vinham de noroeste. As luzes da manh penetravam suavemente pelos
vitrais, tornando o recinto parecido com o interior de uma floresta entristecida. O ferido havia
recebido os primeiros tratamentos mdicos, mas apresentava queimaduras srias e cortes
profundos. Assim, veio trazido em uma espcie de maca.
O prncipe Scilion andava de um lado para o outro, com as mos unidas s costas,
impaciente, antes do sobrevivente ser trazido. Mas Bohnarius via o medo estampado na face
do seu jovem sobrinho.
Ao ser colocado diante do prncipe, o sobrevivente foi logo dizendo, falando como
podia, com os olhos arregalados, parecendo ainda presenciar o terror:
-Quando sa da capital, Kalina Lothar estava em chamas... Um fogo to imenso
consumia nossas torres que, mesmo sendo o meio da noite, tudo parecia claro como o dia. Vi
prdios antigos, to altos quanto as nuvens, em poucos minutos serem reduzidos a p... Ruam
em grande estrondo e estalar, assim que se transformavam em cinzas... As foras
salamndricas nos abateram sem piedade, mandando centenas de milhares de elfos para o
inferno. Um rastro de fogo surgia por onde elas passavam... fazendo com que Athlanda
queimasse em todas as direes... Sua narrativa era entremeada com sussurros, gritos e
tremores. No estais sentindo o cheiro de queimado?
Ningum ali sentia qualquer cheiro diferente, mas o sobrevivente no podia se
libertar do odor dos corpos carbonizados.
-E depois que tudo estava em runas... continuou o relato, - elas continuaram
rumando para o sul, como se nada tivesse acontecido!
-Para o sul? indagou o prncipe, espantado, como se no acreditasse no que tinha
ouvido. No entendo... Por que poupariam Ew Dortas?
Bohnarium pensou por alguns instantes, temendo pelo pior. Depois concluiu:
-No tm interesse por Ew Dortas. Uma presa fcil para mais tarde. O que elas faro
dividir a Floresta ao meio, rasgando-a de norte a sul.
-Mas elas tero que atravessar o Mgion... objetou o prncipe. E isso ...
impossvel!
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-Atravessaram o Sanco, no foi? Atravessaro o Mgion tambm! sentenciou o
ailand.
-O que faremos, tio? indagou Scilion, quase desesperado.
-Com a queda de Kalina Lothar... a nao lfica no tem mais esperana... admitiuBohnarius, falando absortamente. Depois se virou para o sobrevivente e indagou:
-E o rei? Sobreviveu?
-Que rei? indagou o ai-juellai, sem saber a que rei seu interlocutor se referia. O
amado Irineus pereceu em batalha. Quanto a Athlon... da ltima vez que eu o vi, rumava para
sudoeste...
Ao ouvir que o pai havia perecido, o jovem prncipe se jogou no trono, chocado.
Bohnarius pensou nas possibilidades que lhes restaram e somente via uma nica esperana:
-Vamos abandonar Ithra Maras... disse.
-Abandonar a cidade? indagou o prncipe, ainda mais assustado. Por que?
-Temos que rumar para o oeste, Scilion. Cara elfo adulto, macho e fmea, cada idoso
e cada criana. Nosso pas est condenado. Vamos para o oeste, para Karnevion. Creio que
para l que Athlon vai. Deve estar levando o cristal. Todos os elfos devem se reunir l, para
protegermos o que nos mais precioso!
Scilion sabia que Bohnarius se referia s pedras fulfilliari, onde as almas dos elfos
esto guardadas. Mas a idia, em si, era assustadora demais. Assim, no conseguiu decidir. Seuestmago revirou, ficando com um mpeto forte de vomitar. Comeou a suar frio. Depois,
transformou-se num breas e comeou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Segurava
firmemente nas laterais do trono, para resistir ao mpeto de voar.
Mas aquilo no era anormal para um elfo. Especialmente considerando o quo jovem
era.
-Usaremos os ventos... Zephyros nos ajudar... disse, gaguejando, com grande
dificuldade o prncipe, suando. Mas Patsinah, que estivera calada at ento, rompeu o silncio:
-Os ventos as vezes aplacam o fogo, mas tambm podem excit-lo.
Bohnarius imaginou que ela tinha razo. Havia elfos ajudando as salamandras. O que
ela saberia sobre os tuellais?
Depois, ela fitou o vazio, parecendo entrar num transe, e continuou:
-As lgrimas das montanhas secaro. At o cu parar de chorar, pois o fogo vir e a
tudo consumir. A terra ficar nua, envergonhada. O solo estar coberto de cinzas e a vida
nele cessar. O esplendor da civilizao lfica chegou ao fim!
Bohnarius olhou desconfiado para ela. Concordava com o que ela dissera, mas no
era necessrio ser vidente para concluir aquilo. Sempre achou que as Montanhas Chorosas
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choravam por algo e que um dia, como todos os que choram, as lgrimas cessariam. Mas
desconfiava das feiticeiras. As vezes tinha a impresso que eram charlats e que nada diziam
de valor. Contudo, outras vezes observava-as fazer coisas inexplicveis, mas no sabia se de
fato eram milagres ou fenmenos que ainda desconhecia.
Entretanto estava preocupado em convencer o prncipe que, com a morte do pai,agora seria rei em evacuar a cidade. Mas o jovem olhou o tio perdido, parecendo no saber o
que fazer e a gr-feiticeira tambm no parecia se objetar partida. Ento, naquele momento,
Bohnarius sabia que a grande Ithra Maras seria uma cidade fantasma.
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Contudo, a evacuao de uma cidade daquele porte no era uma coisa trivial. Foi
necessrio juntar mantimentos, confeccionar armas, construir carroas para os debilitados,
recolher ou destruir informao que no poderiam cair nas mos das salamandras, soltar
criminosos e prisioneiros, alm, claro, de convencer os reticentes. Assim, a partida somentefoi possvel em 17 de setembro, quando um contingente de cerca de duzentos e cinqenta mil
elfos e cinqenta mil servos humanos, a maioria a p, deixou a cidade. Mesmo assim, cerca de
trinta mil, um contingente pequeno sob o ponto de vista de Bohnarius, ficou para trs,
observando, com coraes constrangidos, aqueles que partiam.
Partiram por uma das inmeras estradas secretas que cruzavam a grande floresta de
Athlanda. Quem no fosse elfo poderia julgar que aquilo no era estrada alguma. Era um
caminho com muitas curvas e zigue-zagues, onde rvores mortas ou condenadas haviam sido
retiradas, respeitando-se a vida na floresta, formando picadas onde pudessem passar as
carroas especiais lficas. Tais carroas eram bastante estreitas e as rodas eram montadas emesteiras que podiam passar com relativa facilidade sobre tocos e vegetao rasteira. Alm do
mais, essas estradas no podiam ser vistas do alto, pois eram ocultas pelas rvores mais altas.
O jovem rei Scilion rumava a frente, montado num ornamentado cavalo branco, com
vestes adornadas, abarrotadas de cristais coloridos. Mas, na primeira oportunidade, numa
hora em que poucos olhavam diretamente para o prncipe, Bohnarius aproveitou a
oportunidade e derrubou o sobrinho do cavalo. Ele se levantou rapidamente, como pde, e
olhou espantado para o tio, que se apressou em rasgar-lhe as roupas.
-Que isso, tio! Sou vosso rei! gritou ele, indignado.
-Tolo! Sai j desse cavalo e trata de te vestires como todos os outros! respondeu o
tio, em alto tom. Assim no sers um alvo fcil e ganhars o respeito dos demais! De que
adiantaria para ns um rei morto?
claro que o prncipe no se objetou s admoestaes do tio e logo Bohnarius
mostrou quem mandava ali, pois organizou a caravana, estabelecendo batedores, nomeando
mdicos e atribuindo a cada grupo tarefas especficas. Seu maior temor era o fato de
praticamente no contarem com soldados, pois todos haviam se retirado em auxlio capital.
Restou apenas a guarda real e os policiais da cidade, e estes j estavam antes sob o seu
comando.
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Na distribuio de armas, foi caminhando ao longo da coluna, indagando quais os
jovens notus que h mais tempo haviam passado pelo ingew. Depois, aos breas, quais
estavam mais prximos do ritual de passagem. E isso era o melhor que podia fazer a respeito
da guarda da caravana. Quanto aos batedores, teve que recorrer aos jovens e indisciplinados
breas. Formou grupos deles e os mandou para os quatro cantos. Mas, entre tais jovens
estavam os seus prprios filhos. Estes, com a cara mais animada que um breas pode ter,
pediram:
-Podemos ajudar? e, como anjinhos, expuseram todos os dentes ao mundo.
O primeiro impulso de Bohnarius foi um curto e grosso no, mas no poderia fazer
diferena para com os seus filhos diante de toda aquela gente. No seria bom para a
comunidade. Assim, deixou-os ir. Mas recomendou:
-Jamais sai de perto um do outro! Entenderam?
Ambos os anjinhos balanaram a cabea afirmativamente e se foram, felizes da vida,
voando sobre o dossel.
Assim, grupos de breas sobrevoavam os arredores o tempo todo e certamente
avistariam a aproximao de qualquer drago. Alm disso, batedores notus acompanhavam a
caravana sem tocarem o cho, percorrendo o caminho atravs do dossel, saltando de um
galho a outro. Quanto aos pequeninos eureus, no havia o que fazer com eles. Silfos e fadas
eram pequenos, rpidos e espertos demais para que qualquer ser salamndrico os pegasse. Os
mais frgeis, na verdade, eram os zphyros, pois no voavam, eram frgeis e chores e
tambm no podiam correr direito, pois as pernas eram curtas e nem mesmo conseguiam
subir nas rvores. Os elfos em tal fase se pareciam mais com gnomos do que elfos
propriamente ditos.
Ento Bohnarius conseguiu definir precisamente o que era aquela caravana: Um
bando de crianas, velhos e doentes escapando de um exrcito de centenas de milhares de
seres de fogo.
Mas o que o ailand mais temia era a chegada da noite. claro que na escurido, um
homem de fogo inflamado era melhor visto, mas eles pouco poderiam fazer diante da
aproximao de salamandras desinflamadas pois os elfos no so como os gnomos que
enxergam bem no escuro, embora os elementais do ar pudessem ver coisas que outros seresno viam, como os rastros da urina dos animais.
E foi ao cair de uma noite que aconteceu algo, depois de cerca de dez dias da partida.
Estava Bohnarius e mais um jovem ailand notus percorrendo a estrada a uns trs
quilmetros a frente da caravana, que j havia parado por aquele dia, quando, enquanto
conversavam, um impulso de raiva tomou conta de sua alma. O jovem fazia comparaes
entre os jovens que receberam treinamento militar em Ithra Maras com os de outras
localidades. O comentrio dava margem para a interpretao de que o prprio filho de
Bohnarius tinha formao inferior a ele mesmo. Ambos utilizavam armamento bsico de todosos que assumiram o papel de protetores da caravana: duas cimitarras cruzadas nas costas,
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junto com uma aljava, e um arco atravessado no peito. Diante do comentrio, Bohnarius
retirou uma das cimitarras das costas e ameaou o companheiro, gritando com uma voz
colrica:
-Retira o que disseste!
O jovem olhou espantado para ele, mas logo pareceu encolerizar-se tambm. Retirou
uma de suas prprias cimitarras e, colocando-a em riste, desafiou:
-Pois no retiro!
Bohnarius o conhecia desde que era um breas. Sempre foram grandes amigos.
Ento, ele hesitou por alguns instantes, e percebeu o que estava acontecendo. A idia era
desconcertante, especialmente por estarem ainda bem perto de casa.
-Ldus... um drago sinistro!
O rosto do jovem passou de uma expresso de dio para espanto, enquanto que o
elfo mais velho continuou:
-Ele induz pensamentos funestos em nossa mente!
O jovem ficou pasmo e, agora, com um misto de rancor, espanto e medo, disse:
-Eu sei...
Ento, ambos se viraram segurando suas armas. Deram as costas um para o outro
olhando o arredor, a espera do aparecimento do drago.
-E sabias tambm que eles costumam atacar as suas vtimas noite, especialmente
no cair dela, quando o nosso esprito est mais fraco?
-Infelizmente! respondeu o jovem.
Bohnarius estava com raiva do drago. Queria que ele atacasse logo. Mas, com muito
esforo, conseguiu manter alguma clareza na mente e se lembrou que os drages sinistros so
pacientes. Normalmente, lanam suas chamas apenas no momento final, quando tm a
certeza da presa. Mas ele se lembrou tambm que se tratam de monstros silenciosos e que,
apesar do grande tamanho, podem deslizar silenciosamente entre as rvores, sem fazerbarulho, como gatos. Lembrou-se tambm que so negros e dificilmente podem ser avistados
a noite.
-Procura os olhos! So amarelos e brilhantes como o fogo! explicou o ailand.
Como comprimiram as costas um contra o outro, Bohanarius pde sentir que o
jovem tremia. Mas lembrou-se tambm que o drago jamais atacaria enquanto eles
estivessem assim. Embora suas faces fossem medonhas, os drages sinistros no tm couraa
protetora. Aguardaria pacientemente eles se cansarem antes de atacar. Havia a noite inteira
pela frente. Espremendo a ltima gota de racionalidade da sua mente, Bohnarius percebeu
que teriam que atra-lo. E s havia uma maneira de fazer aquilo: excit-lo.
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Ento, ele se afastou do jovem, se virou e, num movimento rpido, golpeou seu
ajudante com a cimitarra, ferindo-lhe o rosto, de onde brotou sangue verde.
-Crpula! gritou Bohnarius.
O jovem, influenciado pelo campo do drago, rapidamente se enfureceu e atacou seusuperior. Este, j prevenido, com um movimento certeiro, arrancou-lhe a arma das mos,
dizendo vorazmente:
-Corre, se queres salvar tua vida!
Ento, agora completamente submetido influncia sinistra, o medo tomou conta do
rapaz. Assim, ele saiu correndo e Bohnarius foi em seu encalo, gritando improprios, para que
ele corresse cada vez mais.
Ambos penetraram numa regio mais densa da floresta. O ailand deixou que o
jovem tomasse certa vantagem. Sabia que ele corria para a boca do drago, pois sabia que, aessa altura, ele estava completamente submetido ao campo de influncia da criatura. Ento,
Bohnarius, aos poucos, foi tomando um caminho paralelo. Se tivesse sorte, isso poderia
enganar o drago salamndrico.
Apavorado, o jovem correu sem poder prestar muita ateno nos arredores,
contando com um pouco de luz que a lua projetava atravs do dossel. Foi quando ele
apareceu.
Sem produzir qualquer rudo, surgiu de repente frente do rapaz, abrindo suas
enormes mandbulas cheias de dentes, prestes a cuspir fogo. Mas, quanto estava em vias deliquidar a sua vtima, num salto de mais de quatro metros, Bohnarius surgiu com a sua
cimitarra em punho... e cortou o pescoo do drago.
A cabea rolou aos ps do rapaz que, a essa altura, j havia se transformado num
zphyros.
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E nada mais ocorreu de extraordinrio nas prximas semanas. Assim, em primeiro de
novembro finalmente chegaram s imediaes do Monte Lumerae, prximo ao cruzamento
dos grandes rios. Em torno do Monte, havia vrias aldeias. Eram comunidades isoladas e comcostumes diferentes. L, elfos, gnomos e humanos conviviam em igualdade, de forma
diferente de todas as cidades e vilas lficas, onde os humanos eram meros servos.
A comunidade recebeu a caravana com desconfiana, mas tambm com pesar. A
maioria dos elfos de Ithra Maras era relativamente rica. Desta forma, compraram muitos
mantimentos nessas vilas.
Mas, no mesmo dia que chegaram, constataram que no poderiam avanar mais.
Alguns elfos do local levaram Bohnarius at o lado oeste do Monte, no incio da manh, beira
do precipcio que limita o Rio Sanco e, de l, puderam avistar, estendendo-se at a vista nomais alcanar, do lado sul do Rio Megion um imenso campo com labaredas. Do espesso dossel
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verde que l havia, nada mais restara, exceto a fumaa que ainda se elevava, carvo e fuligem.
Podia-se ver que o campo estava apinhado de homens de fogo, divises militares marchavam
de um lado para o outro e uma cidade estava sendo construda prxima do centro do campo
de viso.
claro que o corao do ailand se apertou no peito, pois no h nada mais dolorosopara um elfo do que a extino de uma floresta, uma rvore tombada ou a perda dos filhos.
Por onde a vista percorresse, no se podia ver uma nica rvore de p, afinal, o fogo era
inimigo da madeira e do vento. E a corrente de ar que vinha do noroeste trazia um cheiro que
somente os elfos podiam sentir: um cheiro de morte.
Bohnarius pensou no filho mais velho e orou a todos os ventos para que ele estivesse
bem.
Drages rubros sobrevoavam o local. De vez em quando mergulhavam e agarravam
algum animal de grande porte torrado pelas chamas. A eles se juntaram gigantescos abutresdo norte, atrados por carcaas em putrefao.
Aquilo tudo soou a Bohnarius como um canto triste e fnebre, um coro contnuo e
lamentoso, o lamento de Athlanda.
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Mas o lamento deu ensejo raiva. Quando voltou aldeia em que estavam, j vinha
batendo os ps contra o solo. A primeira coisa que fez foi ter com os filhos. Praticamente
ordenou que eles o seguissem. Ento, penetraram fundo na floresta. Ithrannah e Iblus quase
no podiam acompanh-lo. Assim, desistiram de ir andando e passaram a voar entre asrvores. De repente, Bohnarius parou e se virou, fazendo com que as crianas breas quase se
chocassem contra ele.
-Ambos tendes mais que cinqenta anos, no mesmo? disse ele, parecendo
furioso. As crianas ficaram imaginando o que haviam feito e tiveram quase a certeza de que
vinha castigo por a. Ento est na hora de saberdes algumas coisas! O que vedes vossa
volta?
Os gmeos se entreolharam, desconfiados, sem saber onde o pai queria chegar. Mas
ele, sem pacincia suficiente para esperar pela percepo dos filhos, acabou dizendo:
-rvores! o que tendes. rvores! E sabeis o que isso significa?
Os filhos continuavam no entendendo nada. Mas Bohnarius no estava com
pacincia para aguardar pela perspiccia de seus rebentos:
-Vida! o que tendes! Vida!
As crianas se mantinham espantadas. Iblus passou at a desconfiar da sanidade do
pai. Mas este tinha l as suas razes, pois baixou a voz e passou a olhar para o nada, ao mesmo
tempo assustado, irado e triste:
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-As rvores... elas so tudo, entendeis? Elas controlam tudo, elas... ento se virou,
olhou os filhos nos olhos e assim prosseguiu: - ...as nuvens que esto no cu, as chuvas, a
temperatura, nossa comida... nossas almas... As rvores so tudo o que temos alm de ns
mesmos, entendeis?
Elas ficaram alguns segundos caladas, mas, como houvesse ali uma tenso poralguma resposta, Ithrannah acabou se pronunciando:
- claro, pai. As rvores nos do abrigo e nos ocultam das salamandras.
-No, Ithrannah, muito mais que isso! exclamou o pai, se afastando um pouco dos
filhos. Depois, ele pensou um pouco, imaginando como iria explicar, mas, como era prtico, o
fez utilizando o menor nmero possvel de palavras.
-Ora, sabeis que as rvores so vivas, no sabeis?
-Sim, pai responderam em unssono.
-Pois bem, ento elas tm que se alimentar como ns, no ?
As crianas balanaram afirmativamente as cabeas.
-E de onde vem o alimento das rvores?
Quase imediatamente, Iblus arriscou um palpite:
-Da terra! Ele sobe pelas razes!
Bohnarius quase sorriu diante da resposta do filho. Depois, prosseguiu reassumindo
uma postura sria:
-No, Iblus. Ns somos os elementais do ar e nossa ligao forte com as rvores um
indcio de que o alimento das rvores provm do ar. A madeira, meus filhos, vem do ar!
Os filhos se espantaram com a afirmao. Iblus coou a cabea e Ithrannah franziu o
cenho. Bem, as primeiras dcadas de educao na escola, segundo os costumes lficos,
estavam baseadas na tica, nas lnguas e na histria. Eles apenas seriam iniciados na cincia e
na matemtica anos mais tarde, da no terem aprendido ainda esse ensinamento.
-Olhai continuou o pai, pegando uma folha de uma das rvores, sem arranc-la
debaixo das folhas existem pequenos orifcios, os estmatos, que no podem ser vistos de to
minsculos. H um grande nmero deles cobrindo a superfcie inferior da folha. So as bocas
das rvores. Por aqui, a substncia gasosa que formar a madeira entra. E por esses orifcios as
rvores podem se comunicar com o ar.
-Comunicar? indagou Ithrannah. Como assim?
-Por esses orifcios respondeu o pai a rvores no somente absorvem coisas do ar
como tambm emitem. Algumas das minsculas coisinhas invisveis que a rvores expelem
para o ar faz com que as nuvens se formem e, com isso, traz a chuva!
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Iblus j estava com a boca aberta e Ithrannah, curiosssima.
-Quer dizer que as rvores controlam a chuva? indagou ela.
-Exatamente, Ithrannah, as rvores controlam a chuva. Sem elas, as nuvens no se
formam. Sem as rvores, nada de chuva!
Os jovens elfos se entreolharam um tanto surpresos e um tanto desconfiados. Ser
que o pai estaria brincando? No, no parecia.
-As rvores fazem com que chova quando est muito seco e retardam a chuva
quando a terra est encharcada. Sem as rvores poderamos ter chuvas torrenciais tambm.
Depois o pai ficou uns instantes em silncio, e, ento, olhando para o nada concluiu: - Mas
temo que, sem as rvores no mais chover aqui. Ento, os rios se transformaro em riachos e
os riachos desaparecero...
Os filhos ficaram tambm entristecidos, pois sentiram o lamento do pai. Estaria issoacontecendo?
-As razes de todas essas rvores disse ainda o pai olhando ao redor em conjunto
criam embaixo da terra uma espcie de esponja que retm gua. Ento, a gua segue atravs
das razes, tronco e caules e expelida pelos estmatos. Assim, as rvores mantm o ar mido
e fresco e menos sujeito a variaes de temperatura. Sem as rvores, a terra secar e no se
poder plantar mais nada. O ar tambm estar seco. Os dias sero trridos e as noites
terrivelmente frias, como acontece no deserto.
-No vai acontecer isso, no , pai? indagou o menino.
Bohnarius queria dizer-lhe que no. Queria peg-lo no colo, sorrir, e dizer claro
que no!. Mas no podia fazer isso. Ento, calou-se.
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Diante da impossibilidade do avano, mais tarde houve uma grande reunio, numa
ampla tenda que fora armada para abrigar o prncipe e o governo provisrio de Ithra Maras.
Alguns vileiros que foram convidados reunio defendiam que o povo do leste deveria
construir uma grande cidade nos arredores do Monte, pois diziam que era sagrado e emitia
uma proteo mgica sobre aqueles que viviam no seu entorno. J outros se recusavamterminantemente a aceitar a presena de estrangeiros, pois temiam que eles atrassem as
salamandras. Houve uma discusso entre os dois grupos que quase levou a uma briga, mas
Bohnarius pensou numa coisa diferente. Ele se levantou, ergueu ambos os braos para chamar
a ateno, e discursou:
-H um outro caminho. No vamos construir aqui uma cidade. Precisamos chegar a
Karnevion e concentrar l todas as nossas foras. a nica maneira de deter as salamandras.
Vamos passar pelo inimigo sem mesmo ele perceber!
Houve silncio geral, pois ningum imaginava como fazer aquilo. O silncio somentefoi quebrado com o pronunciamento do prncipe:
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-E como vamos fazer isso, tio!
-O subsolo do sudeste de Lumerae repleto de passagens. Vamos por l!
Murmrios tomaram conta do recinto. Uns acharam uma grande idia, outros
levantaram obstculos.
-Mas as passagens so controladas pelos gnomos! declarou um elfo ithrano idoso.
-Vamos falar com eles explicou Bohnarius.
-Dadaai jamais nos permitir passar em seu reino! declarou um jovem elfo notus.
-Falaremos com ele insistiu o ailand.
Houve outro silncio. A maioria duvidava que os gnomos deixariam um contingente
de elfos to grande passar pelo meio dos seus domnios. Mas havia uma gnoma no recinto, e
ela disse:
-Conheo ele. Vale a pena tentar!
E assim o fizeram. Mas, antes de falar com o rei dos gnomos, Bohnarius esperou que
surgisse um dia em que o cu estivesse nublado e selecionou dois elfos notus que sabiam
montar em drages. Ento, despachou-os pelo cu. Sua misso era investigar os limites da
ocupao salamndrica e verificar se havia algum local para que a caravana emergisse do
subsolo. Ento, um pequeno grupo entre eles, Bohnarius e o prncipe partiu para a entrada
dos subterrneos, que ficava a sudoeste do cruzamento dos rios. Aps caminharem cerca de
trezentos metros naquela passagem j foram cercados por um bando de gnomos armados comestilingues. Bohnarius sabia que aquelas no eram armas de brinquedo, pois as pedras por elas
lanadas podiam ferir mortalmente. Mas ele sabia falar suficientemente bem o miraris, a
linguagem geral dos gnomos. Ento, explicou a situao de seu povo, apresentou o prncipe
Scilion e solicitou uma entrevista com Dadaai.
Assim, foram conduzidos, escoltados por vinte soldados gnmicos. Andaram por
cerca de trs quilmetros, percorrendo um labirinto indecifrvel para quem no conhecesse
muito bem aquelas passagens. Durante todo o percurso, Bohnarius sentiu que estavam
descendo. Conforme se aproximavam da cidade subterrnea, os elfos se surpreenderam com a
crescente atividade: uma grande quantidade de gnomos cavava a procura de minerais eabrindo novas passagens, que eram escoradas por paredes de pedras. O ailand perdeu a
conta de quantos corredores forrados com blocos de pedra passaram. Aquelas, claramente,
eram passagens artificiais, cavadas na terra e na rocha. Mas o mais impressionante, para
Bohnarius, foi observar um crescente nmero de gnomos transportando alimentos, em sacolas
de couro, para a cidade, vindos no se sabe de onde. Beterrabas, cenouras, batatas e um sem
nmero de tubrculos. Impressionante tambm foram os imensos bolses de cultivo de fungos
nas profundezas daquele lugar iluminado apenas por tochas e pedrasfuellai, que emitem uma
luz azulada.
Ento chegaram ao grande porto de ferro que guardava a entrada de Eramus Nor.Bohnarius se deteve por alguns instantes, para admirar o porto. Era constitudo por duas
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folhas, sendo que apenas uma delas estava aberta. Tinha pelo menos doze metros de altura e
uma espessura de um metro. Era feito de ferro fundido. Na sua superfcie estavam gravadas
em alto relevo figuras da histria gnmica e dizeres em miraris. Bohnarius ficou se
perguntado como os gnomos faziam para mover aquele porto, pois devia ter um peso
incomensurvel. Mas, quando passaram por ele, a viso de uma dzia de trolls verdes
acorrentados e em hibernao redimiu as suas dvidas.
Mas, ao passar pelo porto, uma estranha sensao no corao era inevitvel diante
da viso da segunda capital gnmica, pois um imenso bolso se apresentou, revelando um
ambiente vigoroso, constitudo por milhares de gnomos se dirigindo apressadamente, ou nem
tanto, de um lado para o outro. E Bohnarius sabia onde estava. Estava num lugar famoso, mas
que no imaginava que seria to vigoroso assim: o mercado de carnes de Eramus Nor.
Milhares de vendedores passavam pelo porto trazendo antas, capivaras, tatus,
coelhos, pacas e at aves para serem vendidos no mercado. Os gnomos eram grandes
apreciadores de carnes, a despeito disso enojar a maioria dos elfos. Milhares de gnomos egnomas tambm vinham ali para comprar as carnes e, como eles mantinham uma ferrenha
tradio de barganhar, isso fazia com que aquele lugar fosse um dos mais barulhentos que
Bohnarius havia estado na vida.
Eramus Nor era uma cidade vigorosa. Tratava-se da capital de um dos trs reinos
gnmicos da Era dos Elfos. A segunda em ordem de importncia. A terceira era Olmea Cratus,
ao sul de Surkarnevion e nos limites do reino dos gigantes e a primeira era a opulenta Minas
Gnssia, ao sul, na foz dos rios Fulcro e Voliatis.
Aps o mercado, passaram pelo segundo porto, que deu lugar aos bairrosresidenciais da periferia. A maioria das casas era feita de pedras. Outras no passavam de
cavernas escavadas nas pareces das passagens ou at mesmo no cho. Mas penetraram no
centro da cidade apenas aps passar pelo terceiro porto, por trs do qual estava a parte mais
rica da cidade: um opulento conjunto de bolses forrados com pedras, onde os gnomos
construram suntuosos palcios.
Mas Bohnarius no se impressionou com os palcios. Pensou nos portes e, a
princpio, imaginou que Dadaai era esperto, pois as salamandras jamais conseguiriam
derret-los, uma vez que necessitariam de energia demais para aquilo. Nem o mais vigoroso
drago poderia dar conta de passar por aquelas massas de ferro. Mas, quando ele entrou nopalcio do rei, quando ele se postou diante de Dadaai no salo principal, outra impresso
tomou conta do seu ser. O elfo no era supersticioso, mas o seu refinado olfato de elfo lhe
trouxe uma sensao desconcertante: um cheiro de morte.
Ele tentou afugentar pensamentos funestos de sua mente, convencendo-se de que
era apenas uma impresso falsa, gerado por aquele ambiente pouco iluminado. Mas o que
Bohnarius no podia saber, nem adivinhar, que as salamandras, na verdade, entrariam na
cidade, ento o cheiro que sentia era um prenncio da derrocada daquela sociedade. Mas isso
somente aconteceria no ano de 581 da Era das Salamandras, durante a Guerra dos Trapos,
quando tanto Eramus Nor quanto Olmea Cratus cairiam, restando apenas Minas Gnssia comoo ltimo baluarte gnmico, a qual resistiria at a Era dos Grandes Reis e Rainhas, protegida
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pelas guas que a contornavam. Mas, o cheiro que Bohnarius sentia era um cheiro indelvel
vindo de seis sculos no futuro, quando duzendos mil elfos pereceriam em auxlio aos gnomos,
muitos deles nesse mesmo salo.
To pouco ele poderia adivinhar que a tragdia que se abateria sobre os gnomos no
futuro adviria de suas prprias aes, uma vez que somente uma criatura na face daMicropella poderia derreter aqueles portes: o grande drago rubro Pharmagon, que agora
estava adormecido, hibernando no interior de um bloco de gelo, que fora transportado por
gnomos, h quase dois mil e quinhentos anos atrs, a partir das eternas terras geladas do sul,
at o Templo de Malar, em Machu, onde agora repousava silenciosamente, sob a guarda dos
arquimagos da Ordem de Escorpio. Mas essa uma outra histria.
Pouco depois de chegarem ao salo, Dadaai apareceu com uma pequena comitiva.
Veio acompanhado pela esposa e um gnomo idoso, com longas barbas brancas. O rei sentou-
se no trono, que era feito de ouro, e adornado com grandes pedras preciosas, e parecia grande
demais para um gnomo, de forma que ele ficava balanando os ps. A esposa se postou ao seulado, mas no muito perto, e ficou observando os estranhos. J o velho, sentou-se numa
confortvel poltrona prxima. O rei veio segurando uma tigela e, pelo barulho, mastigava
alguma coisa crocante.
-Quereis? foi a primeira coisa que disse, revelando uma boca suja por um molho
estranho, aproximando a tigela dos elfos. Minhocas fritas, uma delcia!
Bohnarius tentou disfarar a sensao de nojo e respondeu polidamente.
-Muito obrigado, majestade, mas j comemos...
O rei sorriu, coando a enorme barriga, que aparecia por debaixo do casaco semi-
aberto. Depois finalmente perguntou:
-E o que trazeis vs aqui?
Bohnarius procurou explicar-lhe com o maior nmero de detalhes possvel a situao
de seu povo e suas necessidades, sem, contudo, fazer um relato muito enfadonho. Dadaai
ouviu tudo atentamente, com a boca ligeiramente aberta e um ouvido mais prximo do elfo
pois, parecia, era surdo do outro.
Aps o relato do elfo, fez-se silncio no recinto. Bohnarius se sentiu observado por
muitos olhos. Ento, reparou que um grande nmero de crianas gnomas o observava,
escondidas por trs de colunas e mveis. Ento, teve uma sensao ao mesmo tempo de
desconforto, por estar sob a mira de tantos, e ao mesmo tempo confortado por serem
crianas.
Mas foi o velho quem primeiro falou, para o espanto dos elfos:
-Ora! Vamos fazer churrasquinho deles!
Bohnarius notou que o prncipe tremera sob aquelas palavras, mas depois lembrou-se que aquele deveria ser o sogro de Dadaai, um gnomo que era reconhecidamente tant.
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O rei, em si, coou o gordo queixo imberbe, dizendo:
-Hum... hum...
E depois de algum tempo, para manter um clima de mistrio, finalmente
desembuchou, mantendo apenas um olho aberto:
-Ora! E o que eu vou lucrar com isso?
claro que Bohnarius j esperava por aquilo, pois os gnomos so conhecidos por sua
apreciao por riquezas materiais.
-Temos ouro respondeu o ailand.
-Temos muito ouro! foi a resposta de Dadaai.
Mas Bohnarius tambm j esperava por essa resposta. Vira muitas esttuas e objetos
ordinrios folheados a ouro pelo caminho. Ento ofereceu algo menos intil:
-Podemos conseguir-vos pedras nefrat e fuellai para o vosso uso por dcadas!
O rei ento apanhou um punhado de minhocas e as enfiou na boca, mastigando
barulhentamente e pensando:
-Hum... hum...
-J disse que podemos cozinh-los e fazer um guisado de elfos! ralhou o velho.
-Hum... para deixar tanto elfo passar pelos nossos domnios... finalmente disse orei, coando o queixo. No sei no!
Ento, algo inesperado aconteceu. A gnoma, que se colocara a distncia, indagou ao
elfo:
-H crianas convosco, no h?
Bohnarius estranhou aquela manifestao, mas no demorou muito para entender a
situao.
-Sim, muitas! respondeu ele.
-H... amor - disse Dadaai, virando-se para a sua esposa, um tanto desajeitado, -
estou tentando fazer um negcio aqui...
Ao ouvir isso, a gnoma, com cara de poucos amigos, apanhou uma pedra enorme do
cho, com uma mo s, e ameaou o marido:
-Pois trata logo de largar mo dessa histria de negcio e deixa eles passarem!
E, como a gnoma ameaou a jogar a pedra na cabea do rei, este a enfiou o mximo
que pde entre os ombros, dizendo:
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-Sim, amorzinho!
-E v se manda uns meninos os acompanharem! completou ela.
-Sim, amorzinho! Sim, amorzinho! respondeu o rei.
E assim terminou aquela entrevista.
Dias mais tarde, a caravana de Ithra Maras atravessou Eramus Nor, seguindo um
caminho subterrneo para oeste, escoltada por uma centria de gnomos. Segundo tais
gnomos, o mais prximo de Karnevion que poderiam sair da terra seria a Garganta de Erh, que
mais tarde seria soterrada pelas salamandras, a trezentos quilmetros a oeste. Contudo,
estariam apenas a meio caminho de seu destino. Assim, o grande desafio seria atravessar esse
segundo segmento, sem a proteo das profundezas da terra. Mas a maior preocupao de
Bohnarius era o tempo que levariam para chegar at Erh, pois, poucos quilmetros aps acidade gnmica, o caminho no se revelou fcil. Tanto que levaram quase trs meses para
percorrer a distncia que os separavam de Erh. Para isso, tiveram que atravessar abismos,
construir pontes, cavar tneis onde a terra havia deslizado, transpor rios subterrneos, alm
de enfrentar trolls e proteger as crianas dos luvarti.
E, mais ou menos ao mesmo tempo em que iam de Eramus Nor a Erh, mais ao sul, o
anjo Belial acolhia em sua cidade de pedras os foragidos de Sursardaw, sendo cercado por
dois exrcitos salamndricos. Ento, o anjo se utilizaria de inventos mecnicos e prticas de
ilusionismo para enganar as elementais do fogo, at que os elfos pudessem sair em segurana.
Mas essa tambm outra histria.
#######
Bohnarius foi o primeiro a sair a cu aberto, em Erh. Subiu pela encosta da garganta,
abarrotada de pedras. Mas, quando chegou superfcie, o que viu foi o horror. Por onde quer
que olhasse, havia vazio e desolao. At aonde a vista alcanasse, no viu uma nica rvore
em p. Tudo a sua volta se resumia a cinzas. O cho ainda estava quente e plumas de fumaa
ainda voavam aqui e ali, fantasmagoricamente.
Quando ficou em p, aps um lento esforo, tremeu. Sentiu-se nu e solitrio.
Desprotegido. Estariam todos desprotegidos ali. Mas o que mais o angustiava que havia uma
dor nesse lugar, como se as almas das rvores ainda permanecessem na regio, desorientadas,
libertas pelo fogo que a tudo havia consumido.
Nunca vira tamanha desolao na vida. At o vento parecia ter-se ido. Estava
estarrecido e amedrontado diante do silncio e do vazio. Tudo o que restara da outrora
exuberncia da grande floresta, eram apenas cinzentas migalhas, inertes no cho, abraando
os seus ps como a implorar. Tudo o que restara era a terra seca, o vazio e um lamento que
parecia se espalhar preguiosamente pelo ar: o lamento de Athlanda.
Sua boca tremeu e os seus olhos arderam. Os lares dos elfos haviam-se ido.
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Logo outros estavam ao seu lado. Os demais do destacamento avanado. Nenhum
dos notus que ali se postaram disse uma nica palavra. E ficariam assim, ali, pelo resto da vida,
contemplando aquela trgica viso, vazios de alma, se no fosse a sua mera obrigao de
sobrevivncia.
Aps alguns minutos assim, Bohnarius pareceu se recuperar do transe e ordenou queos drages fossem trazidos. Trouxeram trs deles, para fazer o reconhecimento. Tiveram que
pux-los com cordas para fora, pois no queriam sair. Estavam tristes e amuados tambm,
como se tivessem um mau pressentimento. Dois deles estavam machucados, pois se debatiam
dentro dos tneis, impacientes pela luz do Sol.
Bohnarius iria despachar trs dracocavaleiros para o reconhecimento da regio.
Ento, lhes disse:
-Lembrai-vos: no estamos com pressa, portanto no vos arriscai. Ficai sempre
protegidos pelas nuvens!
Os trs jovens notus se entreolharam, um pouco espantados com as palavras do
lder. At que um deles disse:
-No h nuvens no cu, senhor...
Foi ento que, espantadssimo, o ailand lembrou-se que no havia notado o cu.
Assim, olhou para cima e a luz cegante do Sol revelou-lhe um imenso azul sem uma nica
nuvem sequer, como um deserto de um incomensurvel plido azul.
-Mas vamos assim mesmo, senhor... disse outro dracocavaleiro.
Bohnarius no pode fazer nada alm que expressar um sutil aceno afirmativo com a
cabea. Ento, os jovens se foram.
Quando voltaram, estavam desolados. O relatrio de um deles foi mais ou menos
assim:
-Voamos num raio de cem quilmetros e, onde quer que fssemos, por onde quer
que dirigimos nossas vistas, nada enxergamos alm de destruio e fumaa. No h mais uma
nica rvore em p. No h mais uma nica mancha verde nesse solo cinzento!
Foi ento que Bohnarius se deu conta de que suas chances eram mnimas. Estariam a
cu aberto, desprotegidos do ataque direto dos exrcitos salamndricos. Chegou a pensar em
retornar, mas a sua nica esperana ainda era Karnevion.
Como o lder parecia mergulhado em profundos pensamentos, um dos batedores
sugeriu:
-Senhor, creio que nossa nica chance nos abrigarmos entre as colinas. O relevo a
nica proteo possvel!
Bohnarius concordou com aquilo. Era a nica coisa que poderiam fazer. Assim, apsuma semana, conseguiram reunir toda a caravana ainda nos subterrneos e, durante dois dias
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caminhando sem parar, varando a noite, chegaram at o vale onde poderiam descansar pela
primeira vez. E assim prosseguiram a sua jornada, algumas noites dormindo, outras no.
Durante mais uma semana, prosseguiram sem ser vistos, mas, depois disso, algo
aconteceu.
Num dia, ao crepsculo, dois dracocavaleiros notus pousaram no acampamento
ithrano: no mais nem menos que Easrius e Imonarion. Imediatamente, o primeiro procurou
pelos familiares, encontrando primeiramente os irmos. As crianas o abraaram, felizes da
vida e nem notaram o seu estado lastimvel. Mas, em questo de minutos, Bohnarius foi
avisado e avistou o filho, ainda abraado aos irmos. Quando Easrius avistou o pai e se ps
em p, Bohnarius imediatamente reparou no estado do filho: o lado esquerdo do seu rosto,
bem como o brao do mesmo lado, estavam medonhamente queimados. No era uma
queimadura recente, estava praticamente cicatrizada, mas tornara sua pele algo difcil para aviso de um pai.
-Filho... balbuciou o experiente ailand.
Easrius aproximou-se do pai e o abraou:
-No foi nada, pai, no foi nada... sussurrou o jovem notus.
Ento o pai o afastou, segurando-o pelos ombros com ambas as mos, olhando-o nos
olhos:
-Como isso aconteceu, filho?
-Andei esbarrando com uns drages por a... respondeu o filho, tentando sorrir.
Mas Easrius lembrava-se muito bem como ganhara aquelas cicatrizes e melhor
ainda a dor que passou nos dias subseqentes. Ele estava patrulhando os ares do norte,
sobrevoando o Mgion, com Imonarion, aquele que fora designado para ser seu companheiro.
Em princpio ele detestara a nomeao, pois o outro jovem era mais hbil que ele mesmo e
no era nada modesto, gabando-se desavergonhadamente dos seus feitos. Mas a guerra
pareceu t-lo tornado mais humilde e, assim, com o tempo, eles se tornaram amigos.
Mas, naquele dia, quando tomaram a direo oeste e iniciavam o retorno, um
homem de fogo montado num drago vermelho surgiu no se sabe de onde. Instintivamente,
eles se separaram, como mandam os manuais militares de vo. Assim, sabiam que o inimigo
perseguiria um deles, enquanto o outro teria alguma vantagem. Pois o inimigo escolheu
perseguir Imonarion.
Imediatamente, Easrius partiu atrs do homem de fogo, o mais rpido que pde.
Viu que Imonarion danava na sua frente, zigue-zaguando para l e para c, para no ser
atingido pelas chamas do drago que, de vez em quando, se pronunciavam, mais como testes
do que ataques propriamente ditos. Contudo, embora os drages verdes lficos sejam maisgeis, os rubros so maiores e mais rpidos. Assim, Easrius sabia que era questo de alguns
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segundos at que as chamas inimigas atingissem o companheiro. Ento, tirou o arco do tronco
e passou a arremessar flechas.
A carcaa de um drago rubro espessa e no se podia perfur-la com flechas, mas
Easrius procurou atingir os lugares mais vulnerveis possveis: partes das asas, das coxas e da
barriga. A maioria das flechas era desviada sem penetrar, mas algumas ficaram. O drago,contudo, pareceu nem sentir. Mas era tudo o que o jovem notus podia fazer, pois no poderia
atingir o homem de fogo, no com aquela couraa mineral que revestia o seu corpo. Afinal,
todo elfo sabia que os nicos lugares vulnerveis de um homem de fogo, quando se trata de
flechas, so os olhos.
Desta forma, o que acabou acontecendo foi que, quando o inimigo se aproximou
mais de Imonarion, o drago cuspiu um jato to espesso que praticamente desintegrou
metade da montaria do seu companheiro. Ele, claro, se projetou numa queda vertiginosa,
sem que Easrius pudesse fazer qualquer coisa, pois estava demasiadamente longe.
A nica coisa que pde fazer foi mudar a trajetria o mais rpido que pde, pois o
inimigo agora viria atrs dele, e torcer para que o companheiro conseguisse mudar de fase:
-Vamos, cara, tu consegues! torceu Easrius, apertando fortemente o punho
fechado.
Em queda livre, de fato Imonarius conseguiu mudar de fase. Contudo, no se
transformou num breas, pelo seu esforo mental, mas num eureus, um silfo, por puro medo.
Ento, voou at o alto de uma colina, onde se transformou novamente num notus assustado e
ofegante.
Easrius, por sua vez, imaginou que teria apenas uma chance. Ento, parou o seu
drago no ar e se virou. Observou o inimigo se aproximar rapidamente e ficou em p sobre
Idomeus. Colocou duas flechas no arco e mirou. Esperou at o ltimo segundo e, ao mesmo
tempo em que disparou as flechas, o enorme drago lanou sua labareda.
As flechas atravessaram as chamas.
E se fincaram nos olhos do homem de fogo, derrubando-o do drago.
Mas as chamas atingiram Easrius e ele caiu de sua montaria.
Contudo, no se precipitou no ar vazio, pois, lutando contra a dor, conseguiu agarrar
as protuberncias dorsais do seu drago, com a mo direita, sentindo o rosto e o brao
esquerdo em frangalhos.
Mas Idomeus se ajeitou sob ele e Easrius conseguiu montar novamente, a essa
altura feliz, porque o drago rubro, liberto de seu condutor, no retornou.
Mais tarde, deitado numa tenda mdica, Imonarion veio ter com ele, brincando,
dizendo que ele era mole por estar deitado devido a uma queimadurazinha de nada. Mas, no
meio da brincadeira, ficou srio, e pediu para Easrius no contar para ningum que ele haviase transformado num silfo. Isso seria muito vergonhoso.
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Easrius, no entanto, nem tinha visto o que tinha acontecido com o companheiro,
mas, mesmo assim, prometeu:
-Ser um segredo de ns dois!
Durante o resto do dia, o pai desfrutou da presena do filho, mas, noite, aps as
crianas terem dormido, como sempre, eles no deixaram de discutir. O dilogo tenso se
iniciou com uma pergunta mais sria:
-E Athlon, onde est?
-Acampado a uns duzentos quilmetros daqui, prximo ao pntano, resistindo como
pode...
-E o cristal? indagou o pai, preocupado.
-Est com ele.
-As salamandras no penetraro no pntano.
-No, pai? objetou o filho. Elas atravessaram os grandes rios!
-Precisa avis-los sobre ns, Easrius.
-Athlon j sabe. Por isso viemos.
-E quando ele mandar um destacamento para nos escoltar?
Diante da pergunta do ailand, o filho ficou em silncio durante algum tempo.
Depois, balanou a cabea e finalmente respondeu:
-No vir destacamento algum, pai...
-Como no? No podemos atravessar duzentos quilmetros de terra nua! No
chegaremos l, Easrius!
-Athlon no tem como nos ajudar, pai. Ele mal se sustenta na sua posio!
Indignado, o pai se levantou e passou a andar de um lado para o outro:
-Isso no pode ser! Falarei com o prncipe e...
-Pai! interrompeu Easrius. Podes falar com quem quiseres. No vai mudar as
coisas!
-Easrius, vai at o grande rei e lhe implore! H muitas crianas conosco e...
-No vai adiantar, pai! Sei disso! Se assim o fizer, apenas me perders, pois no
poderei voltar. Vou ficar aqui, eu e Imonarion, ao seu lado. Vamos chegar a Athlon!
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Mas o pai olhava o vazio, sombrio, em pensamentos funestos. E, assim, deixou
algumas palavras murmuradas lhe escapar por entre os lbios:
-Vamos morrer todos...
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E, de fato, nos dois dias que se seguiram, avanaram no caminho sem encontrarem
nenhum ser salamndrico. Tudo o que viram foi cinzas, fuligem, carvo vegetal e
absolutamente nenhuma rvore em p. Mas, no terceiro dia, Bohnarius viu algo
extraordinrio.
Estava sozinho, sobre um cavalo, explorando o terreno. Ele havia designado alguns
cavaleiros e dracocavaleiros para a explorao do caminho. Estes ltimos procuravam por
caminhos livres de exrcitos de fogo e os primeiros exploravam as rotas alternativas apontadas
pelos primeiros mais detalhadamente. Bohnarius seguia por uma dessas rotas, com trs
quilmetros de vantagem em relao caravana, quando pressentiu algo se movendo fora de
seu campo de viso. Quando se virou, constatou que algo se aproximava rpido, algo envolto
em fogo. Em princpio, Bohnarius julgou ser um homem de fogo ou mesmo uma salamandra,
ento levou a mo direita ao cabo de uma das cimitarras atravessadas nas suas costas, mas
logo constatou ser outra coisa.
Quando a criatura se aproximou mais, pde ver exatamente o que era: era uma
corsa. Uma corsa jovem e rpida, mas que tinha o dorso tomado pelas chamas. Ela corria em
desespero, procurando fazer com que o fogo desmontasse do seu dorso, se precipitando para
o nada e escoiceando ao mesmo tempo, e o elfo, privilegiado por sua viso acurada, pde
tambm ver claramente a morte estampada nos seus olhos.
Ela desapareceu por trs de uma colina e o ailand sabia com certeza que ela no iria
longe.
Mas, ento, fez-se silncio. Um silncio profundo, absoluto. Bohnarius apurou o
ouvido e nada mais ouviu que o vazio incomensurvel. Seus parcos pelos se eriaram. Havia
uma sensao estranha ali. Um silncio sombrio.
Contudo, alguns segundos depois, realmente ouviu algo. Um tilintar de pedras, vindo
de trs de outra colina, mais ou menos da direo em que a corsa viera. Estava desconfiadomas, mesmo assim, bateu com os calcanhares contra a barriga do cavalo. Este passou a andar,
mas parecia hesitante.
Aos poucos, a colina rotacionou diante dos seus olhos. Mas tudo o que via era
sempre a mesma paisagem inspita e sem vida. Logo, sentiu que o cavalo empacara e, por
mais que o cutucasse na barriga, no queria seguir em frente. A essa altura, Bohnarius j sabia
que havia algo ali, algo verdadeiramente perigoso. Mas tambm sabia que no era um exrcito
salamndrico, e nem mesmo um pequeno destacamento, pois, nesse caso, ouviria alguma
coisa. Ento, desceu do cavalo e caminhou adiante cuidadosamente.
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Ento, a criatura entrou no seu campo de viso. Em princpio no a enxergou, pois
pouco se distinguia das pedras, observando-a daquele ngulo, mas, logo, o barulho de
pequenas pedras a rolar a denunciaram.
Estava sobre uma pequena colina, agachada. Quando Bohnarius percebeu o que era,
seu corao disparou. Ento ela o encarou com aqueles olhos vermelhos. O elfo parou e ficouesttico, completamente imvel.
Ele percebeu o que ela fazia no topo daquela colina: botava ovos.
Mas parecia j ter acabado pois, num movimento brusco, se levantou. E fez o que o
elfo temia: lentamente, passou a descer a colina, em sua direo.
Ele jamais imaginou que se sentiria assim, na primeira vez que estivesse frente a
frente diante de uma salamandra. O que sentia era medo. E ela parecia saber disso. Mas,
olhando-a descer da colina, uma mirade de outras sensaes tomou conta do seu ser.
Embora dissessem que, se voc tocasse numa salamandra, a sentiria como uma
pedra, que o seu corpo no era animal, mas mineral, a aparncia do seu corpo era igual ao de
uma mulher sensual: tinha ancas e coxas largas e cintura fina. Ao andar, rebolava de um lado
para o outro. Ento, entre o medo desesperador, Bohnarius tambm sentiu-se excitado.
Contudo, no tinha seios, pois as salamandras so ovparas, e o rosto era um perfeito
meio termo entre o rosto de uma linda drade e um lagarto. No tinha orelhas e o nariz mal
passava de dois orifcios sobre a boca sensual. Boca esta que escondia duas presas de
serpente.
Os olhos eram longitudinais como os dos gatos durante o dia e as mos e ps, garras.
Quando estava a mais ou menos vinte metros dele, emitiu um silvo ameaador.
Ento, Bohnarius compreendeu que, alm de medo e excitao, tambm sentia dio pela
criatura. Assim, sacou as duas cimitarras, com ambas as mos, e tentou alert-la, adivinhando
que o seu estado tambm no devia ser muito bom, pois ainda no havia se incendiado:
-Ests com fome, no ests? No podes te inflamar, no mesmo? Alerto-te que sei
como dar cabo de uma salamandra!
Mas a ameaa no teve efeito e Bohnarius no sabia se ela havia entendido a sualngua. Ela continuou a avanar, agora mais rpido. Ele, ento, se preparou para o encontro.
Segurou firme suas lminas e sabia que teria uma breve chance, pois a nica maneira de matar
uma salamandra usando espadas era enfi-las no seu nico ponto vulnervel: a juno do
pescoo com a cabea.
Todavia, ela foi rpida demais. Quando estava a um passo do elfo, este moveu as
cimitarras o mais precisamente que pde, mas suas lminas se quebraram, uma contra o
pescoo e outra contra o peito da criatura. Assim, ela o abraou. Um abrao de morte, pois
ainda tinha algum combustvel interno. A temperatura do seu corpo estava em centenas de
graus, o suficiente para oferecer ao habilidoso ailand uma morte rpida.
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O corpo caiu chamuscado no cho, exalando fumaa. Ento, a salamandra o mirou
bem, balanando a cabea de um lado para o outro. Depois se agachou e se preparou para
devorar o corpo do elfo, abrindo a boca incomensuravelmente e expondo os dentes pontudos
como o de um sauro.
Mas, antes que pudesse abocanhar uma nica parte do elfo, Imonarius apareceucorrendo pelo campo vazio, com duas cimitarras na mo. Antes que a salamandra pudesse
fazer qualquer coisa, ele, num salto, se posicionou a sua frente e, colocando as lminas na
forma de uma tesoura, num movimento preciso, decepou-lhe a cabea.
Um sangue de cor vermelho vivo brotou do pescoo, acompanhado de uma espcie
de leo negro, parecido com petrleo. Depois, o corpo da elemental de fogo tombou para o
lado, encontrando as cinzas finas que forravam o cho.
#######
claro que a morte de Bohnarius provocou uma forte comoo nos filhos. Mas tal
sentimento foi amenizado, em parte, pela unio entre os trs irmos. Easrius disse que ele
cuidaria dos pequenos agora, mas Ithrannah e Iblus eram bravos.
Como no podiam contar com torres fnebres, improvisaram uma paliada do alto
da colina mais alta das redondezas, depositando o corpo sobre a plataforma que construram
contando com pedaos de madeira que sobraram da devastao, rogando aos ventos que o
corpo pudesse se decompor em paz.
Aps as justas homenagens, a caravana prosseguiu para oeste. Caminharam muitos
dias e, ao contrrio do que esperavam, no encontraram foras inimigas. Easrius, ento,adivinhou que os exrcitos salamndricos deveriam estar concentrados num cerco a Athlon.
Assim, na terceira semana aps a morte de Bohnarius, Easrius, no cu, do alto de
seu drago verde, pde avistar, ao longe, um destacamento. Algo mais que duzentos
cavaleiros. Ao se aproximar um pouco mais, pde divisar os estandartes exibindo uma figura
esverdeada parecida com uma coroa, sobre um fundo branco: era o smbolo de Lothar Prima,
o smbolo do Rei Athlon.
O capito do regimento disse que eles foram destacados para encontrar os
refugiados de Ithra Maras e que Athon estava a menos que cinqenta quilmetros dedistncia, mas que estava cercado. Assim, teriam que abrir caminho numa das linhas
salamndrias. Ento, felizes por estarem j perto do rei, mas temerosos pelo enfrentamento
do inimigo, prosseguiram.
Aps mais duas semanas de jornada, finalmente atingiram o extremo de um plat,
alm do qual se situava o vale que abrigava o leito do Mgion, e, do alto do plat, puderam
avistar tanto o acampamento do rei, quanto as chamas das foras salamndricas, que
formavam uma espcie de semicrculo em torno, com uns cinco quilmetros de raio. Estas
foras de fato poderiam esmagar Athlon, mas alguma coisa as mantinha a distncia.
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Ao longo dos prximos dias, Ithrannah, ainda banhada em lgrimas pela morte do
pai, pde assistir, do alto daquele planalto, diversas batalhas enquanto o rei dos elfos se
preparava para romper o cerco, permitindo assim a passagem dos refugiados. Ela viu como os
grandes drages rubros salamndricos sobrevoavam o acampamento lfico, tentando despejar
as suas chamas sobre os mesmos, mas algo parecia desviar as chamas que, quase
invariavelmente, fazia com que as labaredas se voltassem contra si mesmos. Viu tambm o
movimento dos homens de fogo, particularmente noite, como pontos luminosos que se
deslocavam tais quais rios de lava, deslizando sobre o cho e entoando mantras assustadores,
como se fossem sussurros que se podia ouvir a quilmetros de distncia.
E assim, alguns dias depois, veio a noticia que teriam que correr. O alerta foi dado
bem no meio de uma noite. Ento, todos foram acordados e pegaram o que puderam,
passando a se deslocar o mais rpido que podiam, na extensa descida que os separavam do
rei. claro que estavam correndo diretamente para as bocas vidas das salamandras, mas, a
poucos quilmetros dessas, sentiram uma glida rajada de vento vindo do oeste. Todos ento
sorriram e pensaram ou disseram:
-O Zphiros vem nos acolher!
Ao encontro deles soprava um vento cada vez mais intenso. Tal vento rompera o
cerco das salamandras, de dentro para fora, bem no trajeto dos refugiados.
As crianas foram colocadas entre os primeiros da caravana, assim, Ithrannah teve
uma viso privilegiada do que ia a frente. Desta forma, ela viu uma grande massa espessa de
fuligem e fumaa que se elevara bem a sua frente, escondendo o que havia muito alm de sua
vista. Viu, nas laterais do canal constitudo por um rio de ar em movimento, formado pelovento, pontos luminosos que se aproximaram e que adivinhou serem homens de fogo,
soldados salamndricos, autoinflamados. E, acima de tudo, viu, surgindo qual um ser
mitolgico de dentro da cortina de fumaa e cinzas, aquele senhor fornido como uma rocha,
com um olhar destemido e ao mesmo tempo suave. Montava um cavalo branco, brandindo
uma pesada espada reluzente, com uma singela coroa na cabea. Vestia-se de branco, embora
as tnicas lhe estivessem sujas, e sob a sua espessa barba branca, vociferava com uma voz ao
mesmo tempo suave e ao mesmo tempo tal qual um trovo:
-Segui contra o vento e estareis a salvos!
Foi tudo muito rpido, mas, anos mais tarde, quando Ithrannah se lembraria do fato,
o veria aparecendo e se aproximando em cmera lenta, como um baluarte de esperana a
todos os que levam a dor no corao.
Mas lembrar-se-ia tambm que ele passara por ela como um relmpago, uma luz
incandescente a pulsar num mero momento, iluminando de esperana o mundo, sendo
seguido por uma fila indiana de cavaleiros lf