O Lamento Do Matemático

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    O Lamento do Matemático

    Traduzido e adaptado do texto “A mathematician’s lament”, de Paul Lockhart(por Marcel Novaes, Instituto de Física, Universidade Federal de Uberlândia)

    Um músico acorda de um terrível pesadelo. Ele se encontrava em uma sociedade naqual a educação musical era obrigatória. “Estamos ajudando nossos estudantes a se tornaremmais competitivos em um mundo cada vez mais cheio de som”. Educadores e sistemas escolaresestão dedicados a esse projeto vital. Estudos são encomendados, comitês são formados edecisões são tomadas – tudo sem o auxílio ou a participação de um único músico profissional oucompositor.

    Uma vez que músicos são conhecidos por expressar suas ideias na forma de partituras,aqueles pontos e linhas pretas curiosas devem constituir a “linguagem da música”. É imperativoque os estudantes se tornem fluentes nessa linguagem se pretendem atingir algum grau de

    competência musical; de fato, seria ridículo esperar que uma criança cante uma canção ou toqueum instrumento sem que possua os fundamentos todos da notação e da teoria musical. Tocar eescutar música, para não falar de compor uma nova obra, são considerados tópicos avançados egeralmente adiados até a universidade ou a pós-graduação.

    Nas escolas primárias e secundárias, a missão é treinar os estudantes para usar essalinguagem – manobrar os símbolos de acordo com um conjunto fixo de regras: “A aula demúsica é onde pegamos nosso caderno, o professor coloca algumas notas no quadro e nós ascopiamos ou as transpomos para outra clave. Os professores são exigentes, e temos que pintartotalmente as semínimas; eles tiram pontos se as hastes apontarem para o lado errado”.

    Em sua sabedoria, educadores logo perceberam que até crianças pequenas podiam

    receber esse tipo de instrução musical. É considerado vergonhoso se um aluno do terceiro anonão tiver memorizado completamente as quintas. “Tenho que colocar meu filho numa aulaparticular de música. Ele não se dedica à tarefa de música. Fica lá sentado, olhando pela janela,cantarolando e inventando musiquinhas bobas”.

    Nas séries mais avançadas, a pressão realmente aumenta. Afinal, os estudantes precisamse preparar para os exames e vestibulares. Têm cursos sobre escalas, ritmos, métricas, harmoniae contraponto. “É bastante material para eles, mas mais tarde, na universidade, quandofinalmente começarem a ouvir esse tipo de coisa, vão realmente apreciar todo o trabalho quetiveram no ensino médio”. É claro que não são muitos os estudantes que vão realmente seconcentrar em música, de modo que apenas alguns chegarão a ouvir os sons que os pontos

    pretos representam. Ainda assim, é importante que todo membro da sociedade seja capaz dereconhecer uma modulação ou uma fuga, independente do fato de que nunca ouvirão essascoisas. “Para dizer a verdade, a maioria dos alunos não são bons em música. Eles ficamentediados na aula, tem péssimas habilidades, e suas tarefas são quase ilegíveis. A maioria nemliga para a importância que tem a música no mundo de hoje; só querem fazer o número mínimode cursos de música e se livrar disso. Acho que existem pessoas musicais e pessoas nãomusicais. Mas eu tinha essa aluna, por outro lado, que era sensacional! Suas partituras eramimpecáveis – todas as notas no lugar certo, caligrafia perfeita, sustenidos, bemóis, lindo. Ele vaiser uma grande musicista algum dia”.

    Ao acordar suando frio, o músico percebe, aliviado, que foi só um sonho louco. “Éclaro”, pensa ele, “nenhuma sociedade reduziria uma arte tão profunda e bonita como a músicaa algo tão sem sentido e trivial; nenhuma cultura seria tão cruel com suas crianças a ponto deprivá-las de um meio tão natural e agradável de expressão humana. Que absurdo!”

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      Enquanto isso, em outra parte da cidade, um pintor acaba de acordar de um pesadeloparecido...

    Ele ficou surpreso ao ver-se em uma sala de aula normal – nada de pincéis, nenhumtubo de tinta. “Ah, é que não usamos tinta até o ensino médio”, disseram os estudantes. “Nosétimo ano estudamos principalmente cores e aplicadores”. Eles mostraram um exercício. Havia

    algumas manchas coloridas e espaços em branco para que colocassem os nomes das cores. “Eugosto de pintura”, disse um deles, “os professores me dizem o que fazer e eu faço. É fácil!”

    Depois da aula ele foi falar com o professor. “Seus alunos não fazem nenhuma pinturade verdade?”, perguntou. “Bem, no ano que vem temos pré-pintura-com-números. Temosdesenhos com partes numeradas, e eles devem aplicar as cores que correspondem aos números.Isso os prepara para pintura-com-números, que terão no ensino médio. Eles vão poder usar oque aprenderam aqui e aplicar isso a situações de pintura real – como mergulhar o pincel natinta, como limpar o pincel, esse tipo de coisa. É claro que nos preocupamos com as habilidadesindividuais. Os realmente excelentes – aqueles que têm os nomes de cores e pincéis decorados –podem chegar a pintar um pouco antes. Mas no geral estamos tentando dar a esses garotos bons

    fundamentos sobre o que é a pintura, para que quando saírem por aí pelo mundo real e forempintar suas cozinhas eles não façam a maior bagunça”.

    “Essas aula que você mencionou...”“Pintura-com-números? Estamos tendo muitas inscrições ultimamente. Acho que isso se

    deve aos pais que querem que seus filhos entrem em boas universidades. Nada é melhor nocurrículo do que um curso de pintura-com-números-avançado”.

    “Por que as universidades se importam em saber se os estudantes sabem preencherregiões numeradas com a cor correspondente?”

    “Ah, bem, sabe, isso mostra um pensamento lógico e claro. E, naturalmente, se umestudante pretende se graduar em alguma das ciências visuais, como moda ou decoração, então

    é realmente uma boa ideia cursar os pré-requisitos ainda no ensino médio”.“Entendo. E quando eles vão poder pintar livremente, numa tela branca?”“Ei, você parece meus professores falando! Eles estavam sempre com esse papo de

    expressão, sentimentos e por aí vai – coisas super abstratas e tal. Eu mesmo sou formado emPintura, mas nunca realmente trabalhei muito com telas brancas. Só uso os kits de pintura-com-números fornecidos pela secretaria de educação”.

    *** Infelizmente, nosso sistema de educação matemática é exatamente este tipo de pesadelo.

    De fato, se eu tivesse que projetar um mecanismo com o propósito exclusivo de destruir   acuriosidade natural de uma criança e seu amor pela criação de padrões, não poderia fazer umtrabalho melhor do que o que está sendo feito – eu simplesmente não teria imaginação para criaro tipo de ideias sem sentido e esmagadoras-de-almas que constituem a educação matemáticacontemporânea.

    Todo mundo sabe que há algo errado. Os políticos dizem “precisamos ser maisexigentes”. As escolas dizem “precisamos de mais dinheiro e equipamentos”. Pedagogos dizemuma coisa, professores dizem outra. Todos estão errados. As únicas pessoas que entendem o queestá acontecendo são aqueles mais comumente culpabilizados e mais raramente ouvidos: osalunos. Eles dizem “as aulas de matemática são idiotas e chatas”, e eles estão certos.

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      Matemática e Cultura

    A primeira coisa a ser entendida é que matemática é uma arte. A diferença entre amatemática e as outras artes, como música e pintura, é que nossa cultura não a reconhece comotal. Todo mundo entende que poetas, pintores e músicos criam obras de arte, e estão se

    expressando em palavras, imagens e sons. De fato, nossa sociedade é bastante generosa no quese trata de expressão criativa: arquitetos, chefs de cozinha, até diretores de televisão sãoconsiderados artistas. Por que não os matemáticos?

    Parte do problema é que ninguém tem a menor ideia do que os matemáticos fazem. Apercepção comumparece ser que os matemáticos estão de alguma forma ligados à ciência –talvez ajudem os cientistas com suas fórmulas, ou lidem com grandes números e computadorespor alguma razão qualquer. Não há questão de que se o mundo tivesse de ser dividido entre os“sonhares poéticos” e os “pensadores racionais”, a maioria das pessoas colocaria osmatemáticos na segunda categoria.

    Entretanto, o fato é que não há nada mais onírico e poético, nada tão radical, subversivo,

    psicodélico, quanto a matemática. Ela é tão incrível quanto cosmologia ou física (matemáticosinventaram  os buracos negros muito antes de os astrônomos encontrarem algum), e permitemais liberdade de expressão do que poesia, arte ou música (que dependem muito daspropriedades do universo físico). Matemática é a forma de arte mais pura, e também a maisincompreendida.

    Então deixe-me tentar explicar o que é matemática e o que os matemáticos fazem. Édifícil começar melhor do que citando a excelente descrição de G.H. Hardy: “O matemático,como o pintor ou o poeta, é um criador de padrões. Se seus padrões são mais permanentes queos deles, é porque são feitos de ideias”.

    Então os matemáticos estão sentados por aí criando padrões de ideias. Que tipo de

    padrões? Que tipo de ideias? Ideias sobre rinocerontes? Não, deixamos isso para os biólogos.Ideias sobre linguagens e cultura? Normalmente não. Essas coisas são muito complicadas para ogosto dos matemáticos. Se há algum tipo de princípio estético unificador na matemática, é este:o simples é belo. Matemáticos gostam de pensar sobre as coisas mais simples possíveis, e ascoisas mais simples possíveis são imaginárias.

    Por exemplo, se estou com vontade de pensar sobre formas – e costumo estar – eu possoimaginar um triângulo dentro de uma caixa retangular.

    Eu me pergunto, que fração da caixa está tomada pelo triângulo?Talvez doisterços?Uma coisa importante a ser entendida é que não estou falando deste desenho de um triângulo emuma caixa. Também não há nenhuma aplicação prática em vista aqui. Só estou brincando. Éisso que a matemática é: imaginação, brincadeira, entretenimento. A questão matemática  ésobre um triângulo imaginário dentro de uma caixa imaginária. As bordas são perfeitas porqueeu quero que sejam – é o tipo do objeto sobre o qual eu prefiro pensar. Esse é um temaimportante da matemática: as coisas são como você quiser que elas sejam. Você tem infinitasescolhas: não existe uma realidade para ficar no seu caminho.

    Por outro lado, uma vez que você tiver feito as suas escolhas (por exemplo, posso

    escolher um triângulo simétrico, ou não), então suas criações fazem o que fazem, quer vocêgoste ou não. Essa é uma coisa incrível sobre padrões imaginários: eles falam de volta! O

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    triângulo ocupa certa fração da caixa, e eu não tenho controle sobre qual fração é essa. Há umcerto número aí, talvez seja dois terços, talvez não, mas eu não posso escolher qual é. Eu tenhoque encontrar  o seu valor.

    Então podemos brincar e imaginar o que quisermos e criar padrões e fazer perguntassobre eles. Mas como vamos responder a essas perguntas? Não tem nada a ver com ciência. Não

    há nenhum experimento que eu possa fazer com tubos de ensaio e equipamentos ou o que sejaque possa me dizer a verdade sobre algo que é imaginário. O único jeito de chegar à verdadesobre nossa imaginação é usar nossa imaginação, e isso é um trabalho duro.

    No caso do triângulo na caixa, eu enxergo algo simples e belo:

    Se eu cortar o triângulo em duas partes dessa forma, posso ver que cada peça da caixa

    está dividida na diagonal pelos lados do triângulo. Portanto, o espaço dentro do triângulo deveser igual ao espaço fora dele. Isso significa que o triângulo ocupa exatamente metade da caixa!

    É assim que uma obra de matemática se parece. Essa pequena narrativa é um exemploda arte do matemático: fazer perguntas simples e elegantes sobre criações imaginárias, e criarexplicações belas e satisfatórias. Não há realmente nada que se pareça com esse reino de ideiaspuras; é fascinante, é divertido, e é livre!

    Mas de onde veio essa minha ideia? Como eu sabia que deveria desenhar aquela linha?Como um pintor sabe onde colocar seu pincel? Inspiração, experiência, tentativa e erro, purasorte. Eis a arte da coisa, criar esses pequenos e belos poemas do pensamento, esses sonetos darazão. Há algo maravilhosamente transformacional sobre essa forma de arte. A relação entre o

    triângulo e o retângulo era um mistério, e então aquela pequena linha tornou tudo óbvio. Eu nãopodia ver, e de repente eu podia. De alguma forma, fui capaz de criar uma beleza profunda esimples a partir do nada, e mudar a mim mesmo no processo. Não é disso que trata a arte?

    É por isso que é tão triste ver o que está sendo feito com a matemática nas escolas. Essarica e fascinante aventura da imaginação foi reduzida a um conjunto estéril de “fatos” a seremmemorizados e procedimentos a serem seguidos. Em lugar de uma questão simples e naturalsobre formas, e um processo criativo e recompensador de invenção e descoberta, os estudantesrecebem algo assim: “A área do triângulo é igual à metade da base vezes a altura”. Osestudantes devem memorizar essa fórmula para depois “aplicarem” de novo e de novo em“exercícios”. Foi-se a emoção, a alegria, até mesmo a dor e a frustração do ato criativo. Já nãohá sequer um  problema. A questão foi perguntada e respondida ao mesmo tempo – não restanada para o aluno fazer.

    Deixe-me ser claro sobre o que é que me incomoda. Não são as fórmulas, ou amemorização de fatos interessantes. Isso é legal em certo contexto, e tem seu lugar assim comoa aprendizagem de um vocabulário – permite que você crie obras de arte mais ricas e nuançadas.Mas não é o fato de que triângulos tomam metade de suas caixas que importa. O que importa é abela ideia de cortá-lo ao meio com uma linha, e que saber disso pode inspirar outras belas ideiase levar a desenvolvimentos criativos em outros problemas – algo que a simples menção de umfato nunca poderá oferecer.

    Ao remover o processo criativo e deixar apenas o resultado desse processo, vocêpraticamente garante que ninguém terá nenhum engajamento real com o assunto. É como dizer  

    que Michelangelo criou uma bonita escultura, sem deixar ninguém ver . Como vou ser inspirado

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    por isso? (E é claro que é muito pior do que isso – pelo menos entende-se que há  uma arte daescultura e que estou sendo impedido de apreciá-la).

    Concentrar no quê  e deixar de fora o como torna a matemática uma casca vazia. A artenão está no “fato”, mas na explicação, no argumento. É o próprio argumento que dá ao fato seucontexto e determina o que realmente está sendo dito e qual seu significado. A matemática é a

    arte da explicação. Se você nega aos seus estudantes a oportunidade de se engajarem nessaatividade – de se colocarem seus próprios problemas, fazerem suas próprias conjecturas edescobertas, de estarem errados, de se verem frustrados criativamente, de terem inspiração, e demontarem suas próprias explicações e provas – você os está privando da própria matemática. Demodo que não estou reclamando da presença de fatos e de fórmulas nas aulas de matemática.Estou reclamando é da falta de matemática nas aulas de matemática.

    ***

    Se seu professor de arte disser que pintura tem a ver com preencher regiões numeradas,

    você vai saber que algo está errado. A cultura lhe informa – há museus e galerias, assim como aarte na sua própria casa. A pintura é compreendida pela sociedade como um meio de expressãohumana. Da mesma forma, se seu professor de ciências tentar te convencer de que a astronomiatem a ver com prever o futuro de uma pessoa com base em sua data de nascimento, você vaisaber que ele é louco – a ciência já se difundiu pela cultura de tal modo que quase todo mundosabe sobre átomos e galáxias e leis da natureza. Mas se seu professor de matemática te dá aimpressão, seja expressamente ou implicitamente, de que a matemática gira em torno defórmulas e definições e da memorização de algoritmos, quem vai corrigir essa impressão?

    O problema cultural é um monstro que se auto-perpetua: os alunos aprendemmatemática de seus professores, e os professores aprendem de seus professores, e essa falta de

    entendimento e de apreciação pela matemática em nossa cultura se replica indefinidamente. Piorainda, a perpetuação dessa “pseudo-matemática”, essa ênfase na manipulação precisa mas semsentido de símbolos, cria sua própria cultura e seu conjunto de valores. Aqueles que são aptosnisso derivam muito auto-estima de seu sucesso. A última coisa de que querem ouvir falar é quea matemática tem a ver com criatividade e sensibilidade estética. Muitos estudantes de pós-graduação se desapontam quando descobrem, depois de uma década ouvindo que são “bons emmatemática”, que na verdade não possuem real talento matemático e que só são bons em seguirinstruções. Matemática não tem nada a ver com seguir instruções, tem a ver com a criação denovas direções.

    E ainda nem mencionei a falta de crítica matemática nas escolas. Em nenhum momentoos estudantes descobrem o segredo de que a matemática, como qualquer literatura, é criada porseres humanos para sua própria diversão; que trabalhos matemáticos estão sujeitos a apreciaçãocrítica; que alguém pode desenvolver um gosto matemático. Uma peça de matemática é comoum poema, e podemos perguntar se satisfaz nossos critérios estéticos: este argumento é forte?faz sentido? é simples e elegante? me leva para mais perto do fulcro da questão? É claro que nãohá apreciação crítica na escola – não há nenhuma arte sendo feita para poder ser apreciada!

    Por que não queremos que nossas crianças aprendam matemática? Será que nãoconfiamos nelas, que pensamos que é muito difícil? Parecemos achar que são capazes de tecerargumentos e chegar às suas próprias conclusões sobre Napoleão, mas não sobre triângulos? Euacho que o problema é que nossa cultura não sabe o que é matemática. A impressão que temos éde algo muito frio e altamente técnico, que ninguém poderia entender – uma profecia que se

    torna auto-realizável.

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      Já seria muito ruim se nossa cultura fosse apenas ignorante de matemática, mas o que éainda pior é que as pessoas realmente acham que sabem o que é matemática, e parecem sofrerda terrível ilusão de que a matemática seja de alguma forma útil à sociedade! Essa é outradiferença enorme entre a matemática e as outras artes. A matemática é vista pela cultura comoum tipo de ferramenta para a ciência e a tecnologia. Todo mundo sabe que poesia e música são

    para puro deleite e para elevar e enobrecer o espírito humano (daí sua virtual eliminação docurrículo escolar) mas a matemática não, essa é importante.

    SIMPLÍCIO: Você está tentando dizer que a matemática não oferece nenhuma aplicação práticapara a sociedade?

    SALVIATI: É claro que não. Estou apenas sugerindo que só porque algo calha de terconsequências práticas não significa que é disso que se trata. Música pode ser usada para levarexércitos para a batalha, mas não é por isso que as pessoas escrevem sinfonias. Michelangelodecorou um teto, mas tenho certeza de que tinha coisas mais elevadas em mente.

    SIMPLICIO: Mas não precisamos que as pessoas aprendam as consequências úteis damatemática? Não precisamos de contadores, carpinteiros, etc?

    SALVIATI: Quantas pessoas realmente usam essa “matemática prática” que supostamenteaprendem na escola? Você acha que carpinteiros estão por aí usando trigonometria? Quantosadultos se lembram como dividir frações, ou resolver equações quadráticas? Obviamente oprograma de treinamento atual não está funcionando, e por boas razões: é terrivelmente chato, eafinal ninguém usa isso. Então, por que as pessoas acham que isso é importante?Eu não entendoque seja bom para a sociedade ter seus membros andando por aí com vagas memórias defórmulas algébricas e diagramas geométricos, e memórias nítidas de como os odeiam. Talvezfosse bom mostrar a eles algo belo e dar a eles a oportunidade de serem criativos, flexíveis, de

    serem pensadores de mente aberta – o tipo de coisa que um educação matemática real  poderiaprover.

    SIMPLICIO: Mas as pessoas precisam verificar seus contracheques, não?

    SALVIATI: Tenho certeza de que a maioria das pessoas usa uma calculadora para a aritméticado cotidiano. Por que não? É mais simples e mais confiável. Mas meu ponto não é só que osistema atual seja tão terrivelmente ruim, é que o que ele está deixando de fora é tãomaravilhosamente bom! Matemática deveria ser ensinada como arte pela arte. Esses aspectos“úteis” mundanos seguiriam naturalmente como um subproduto trivial. Beethoven poderiafacilmente criar um jingle de propaganda, mas sua motivação para aprender música era criaralgo belo.

    SIMPLICIO: Mas nem todo mundo é artista. E quanto às crianças que não são do “tipomatemático”? Como vão se encaixar no seu esquema?

    SALVIATI: Se todos forem expostos à matemática em seu estado natural, com toda a diversãodesafiadora e as surpresas que isso implica, acho que veríamos uma mudança dramática tanto naatitude dos alunos em relação à matemática como na nossa concepção do que significa ser “bomem matemática”. Estamos perdendo muitos matemáticos de grande potencial – pessoas criativase inteligentes que rejeitam corretamente o que parece ser um assunto estéril e sem sentido. Elessão simplesmente muito espertos para perderem tempo com bobagem.

    SIMPLICIO: Mas você não acha que se as aulas de matemática fossem mais como aulas deartes um monte de crianças ficaria sem aprender nada?

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    SALVIATI: Eles já não estão aprendendo nada! Melhor não ter aulas de matemática do queaquilo que temos hoje. Pelo menos algumas pessoas teriam chance de descobrir algo belo porconta própria.

    SIMPLICIO: Então você removeria a matemática do currículo escolar?

    SALVIATI: A matemática já foi removida! A única questão é o que fazer com a casca vazia quesobrou. É claro que eu preferiria trocá-la por um engajamento ativo e divertido com as ideiasmatemáticas.

    SIMPLICIO: Mas quantos professores de matemática sabem o bastante sobre o assunto paraensiná-lo dessa maneira?

    SALVIATI: Muito poucos. E essa é só a ponta do iceberg...

    Matemática na Escola

    Com certeza não há maneira mais confiável de matar o entusiasmo e o interesse por umassunto do que torna-lo parte obrigatória do currículo escolar. Inclua-o como parte dos examesfinais e vestibulares e você garantirá que o sistema educacional seque toda a vida que ele possater. Diretores de escola não entendem o que é matemática, nem os pedagogos, nem os autores delivros-texto, as editoras e, infelizmente, nem a maioria dos professores. O escopo do problema étão enorme que mal sei por onde começar.

    Vamos começar pelo desastre das “reformas”. Por muitos anos há uma crescenteconsciência de que algo está podre no estado da educação matemática. Estudos foramencomendados, conferências realizadas e comitês sem fim de professores, editores e educadores

    foram formados para “resolver o problema”. Sem nem falar do interesse da indústria editorial(que lucra com qualquer flutuação ao oferecer “novas” edições de suas monstruosidadesilegíveis), o movimento reformista como um todo sempre errou completamente o alvo. Ocurrículo de matemática não precisa ser reformado, ele precisa ser abandonado.

    Toda essa agitação acerca de que “tópicos” devem ser ensinados e em que ordem, ousobre o uso desta ou daquela notação, ou sobre que modelo de calculadora usar, pelo amor dedeus – é como ficar reorganizando as cadeiras no convés do Titanic! Matemática é a música darazão. Fazer matemática é se envolver em um ato de descoberta e conjectura, intuição einspiração; é estar em um estado de confusão – não porque não faça sentido para você, masporque você deu sentido a isso e agora não consegue entender o que sua própria criação estáfazendo; é ter uma sacada genial; estar frustrado como artista; estar impressionado e tomado poruma beleza quase dolorosa; é estar vivo, caramba. Retire isso da matemática e você pode fazerquantas conferências quiser, não importa. Façam quantas operações quiserem, doutores: o

     paciente já está morto.

    A parte mais triste de toda essa “reforma” são as tentativas de “tornar a matemáticainteressante” e “relevante para a vida das crianças”. Você não precisa torna-la interessante – ela já é mais interessante do que podemos dar conta! E a glória da coisa é sua completa irrelevância para nossas vidas. É por isso que é tão divertido!

    Tentativas de apresentar a matemática como algo relevante para nossas vidas diáriasinevitavelmente parecem forçadas e artificiais: “Vejam só, crianças, se vocês souberem álgebrapoderão descobrir a idade de Maria se souberem que ela é dois anos mais velha que a metade da

    idade que ela tinha sete anos atrás!” (como se alguém algum dia tivesse acesso a esse tipo

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    ridículo de informação, mas não à sua idade atual). Álgebra não tem a ver com o cotidiano, tema ver com números e com simetria – e isso é uma atividade válida em si mesma.

    “Suponha que sei os valores da soma e da diferença de dois números. Será que possodescobrir quais são esses números?” Eis uma questão simples e elegante, que não requer esforçopara ser tornada interessante. Os antigos babilônios gostavam de trabalhar nesse tipo de

    problemas, e seus estudantes também vão gostar (e espero que você também goste de pensarnisso!) Não precisamos fazer malabarismos para dar relevância para a matemática. Ela temrelevância da mesma maneira que a arte tem: a importância de ser uma experiência humanasignificativa.

    De qualquer modo, você realmente acha que as crianças querem algo que seja relevantepara seu cotidiano? Você acha que algo prático como  juros compostos vai deixa-los excitados?As pessoas gostam de fantasia, e é justamente isso que a matemática proporciona – um alívio docotidiano, um escape do mundo prático diário.

    Um problema semelhante ocorre quanto os professores e livros sucumbem ao“embelezamento”. É quando tentam tornar a matemática “amigável”. Para ajudar os alunos a

    memorizar fórmulas para a área e o perímetro da circunferência, por exemplo, inventam estóriassobre o círculo que “é todo enrolado” e cuja área é “pi vezes raio ao quadrado” ou algumabesteira desse tipo. Mas e quanto à verdadeira história? Aquela sobre a luta da humanidade como problema da medida das curvas; sobre Eudoxus e Arquimedes e o método da exaustão; sobrea transcendência de π? O que é mais interessante, medir o tamanho aproximado de um pedaçocircular de papel e usar uma fórmula que alguém te deu sem nenhuma explicação (e te fezmemorizar e praticar várias vezes) ou ouvir a história de um dos mais belos e fascinantesproblemas e uma das ideias mais poderosas e brilhantes na história humana? Estamos matandoo interesse das pessoas pelos círculos, meu deus!

    Por que não estamos dando aos nossos estudantes a chance de pelo menos ouvir sobre

    essas coisas, para não falar da oportunidade de realmente fazer alguma matemática, de teremsuas próprias ideias, opiniões e reações? Que outro assunto é rotineiramente ensinado semqualquer menção de sua história, filosofia, desenvolvimento temático, critérios estéticos e statuscorrente? Que outro assunto despreza suas fontes primárias – lindas obras de arte feitas pormentes das mais criativas – e as troca por livrinhos de terceira classe?

    O maior problema com a matemática da escola é que não existem  problemas. Sim, euconheço o que se faz passar  por problemas nas aulas de matemática, os insípidos “exercícios”.“Eis um tipo de problema. Eis como resolvê-lo. Sim, vai cair na prova. Façam os exercícios 1 a35 do livro como tarefa”. Que forma triste de aprender matemática: ser treinado como umchimpanzé.

    Um problema, uma honesta e genuína questão humana e natural – isso é outra coisa.Qual o comprimento da diagonal de um cubo? Os número primos são infinitos? Infinito é umnúmero? De quantas maneiras simétricas posso tesselar uma superfície? A história damatemática é a história do envolvimento humano com questões como essas, não a regurgitaçãosem sentido de fórmulas e algoritmos (e exercícios enrolados projetados para usá-los).

    Um bom problema é algo que você não sabe como  resolver. É isso que o torna umenigma, e uma boa oportunidade. Um bom problema não existe em isolamento, ele serve comotrampolim para outros problemas interessantes. Um triângulo ocupa metade de sua caixa. E umapirâmide dentro de uma caixa tridimensional? Podemos tratar esse problema de maneirasemelhante?

    Entendo a ideia de treinar os estudantes para que dominem certas técnicas – eu também

    faço isso. Mas não como um fim em si mesmo. Técnicas matemáticas, como em qualquer arte,devem ser aprendidas em contexto. Os grandes problemas, sua história, o processo criativo –

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    esse é o contexto certo. Dê a seus estudantes um bom problema, deixe que eles se esforcem efiquem frustrados. Veja o que eles produzem. Espere até que estejam ávidos por uma ideia, e sóentão dê a eles uma técnica. Mas não muito.

    Então deixe de lado seus planos de aula e seu projetor, seu livro colorido abominável,seus CDs e todo o resto do show de circo da educação contemporânea, e simplesmente faça

    matemática com seus estudantes! Professores de arte não perdem tempo com livros texto nemtreinando técnicas específicas. Eles fazem o que é natural ao seu campo – eles deixam os alunospitarem. Eles vão de tela em tela, fazendo sugestões e oferecendo conselhos.“Estive pensando sobre esse problema do triângulo, e notei algo. Se o triângulo for inclinado elenão ocupa metade da caixa! Veja:"

    “Excelente observação! O argumento do corte pela linha supõe que a ponta do triângulo estejasobre a base. Precisamos de uma ideia nova agora”.“E se eu tentar cortar de outra forma?”“Vá em frente. Tente todo tipo de ideias. Depois me conte o que você imaginou!”

    ***

    Como devemos ensinar matemática aos nossos estudantes? Escolhendo problemasnaturais que produzam engajamento, adequados aos seus gostos, personalidades e nível de

    experiência. Dando a eles tempo para fazerem descobertas e formularem conjecturas. Ajudando-os a refinarem seus argumentos e criando uma atmosfera de crítica matemática saudável evibrante. Sendo flexíveis e abertos a mudanças inesperadas na direção em que a curiosidadedeles os levar. Em suma, tendo uma relação intelectual honesta com nossos alunos e com oassunto.

    É claro que o que estou sugerindo é impossível, por várias razões. Mesmo deixando delado o fato de que os currículos padronizados e os vestibulares virtualmente eliminarem aautonomia dos professores, duvido que a maioria dos professores sequer queira ter uma relaçãotão intensa com os estudantes. Isso requer muita vulnerabilidade e muita responsabilidade. Emsuma, é muito trabalho!

    É bem mais fácil ser um conduíte passivo do “material” do editor e seguir as instruçõesno vidro de shampoo, “explique, avalie, repita”, do que pensar profundamente sobre osignificado do assunto e sobre a melhor maneira de levar esse significado diretamente ehonestamente para os alunos. Somos encorajados a deixar de lado a difícil tarefa de tomardecisões baseadas em sabedoria e consciência individuais e a simplesmente “aderir aoprograma”. É o caminho de menor resistência.

    O problema é que a matemática, como a pintura ou a poesia, é um duro trabalhocriativo. Isso a torna difícil de ensinar. Matemática é um processo lento de contemplação. Levatempo para produzir uma obra de arte, e é preciso um professor hábil para perceber uma. É claroque é mais fácil seguir um conjunto de regras do que guiar jovens artistas aspirantes, e é maisfácil escrever um manual do que um livro que realmente ofereça um ponto de vista.

    Matemática é uma arte, e arte deve ser ensinada por artistas, ou ao menos por pessoasque apreciam a forma de arte e podem reconhece-la quando a vêem. Não é necessário que você

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    aprenda música com um compositor profissional, mas você gostaria de aprender com, ou queseu filho fosse ensinado por, alguém que nunca tocou um instrumento, que nunca ouviu músicana vida? Você aceitaria como professor de arte alguém que nunca pegou num pincel ou pôs ospés num museu? Por que então aceitamos professores de matemática que nunca produziramuma peça original de matemática, nada sabem da história e da filosofia do assunto, nada sabem

    sobre os desenvolvimentos recentes, nada sabem de fato além do que pretendem ensinar aosinfelizes estudantes? Que tipo de professor é esse? Como alguém pode ensinar algo que nuncafez por si mesmo? Eu não sei dançar, e por isso nunca pretenderia dar aulas de dança (eupoderia tentar, mas não seria bonito). A diferença é que eu sei  que não posso dançar. Ninguémvem me dizer sou bom de dança só porque eu sei algumas palavras relacionadas a dança.

    Não estou dizendo que professores de matemática precisam ser matemáticosprofissionais, nada disso. Mas eles não deveriam ao menos entender o que é a matemática, serbons nela, e gostar de praticá-la?

    ***

    Se o ensino é reduzido a mera transmissão de informação, se não há ocompartilhamento de uma excitação e de um maravilhamento, se os próprios professores sãorecipientes passivos de informação e não criadores de ideias novas, que esperança há para osestudantes? Se adição de frações é para o professor apenas um conjunto arbitrário de regras, enão o resultado de um processo criativo e o resultado de escolhas estéticas e desejos, então éclaro que vai parecer assim também para os pobres alunos.

    Ensino não trata apenas de informação. Trata-se de ter uma relação intelectual honestacom os estudantes. Não requer método, ferramentas, nem treinamento. Apenas a habilidade deser real. Se você não pode ser real, então não tem o direito de impor sua presença a crianças

    inocentes.Em particular, não se pode ensinar a ensinar . Escolas de educação são charlatanismo.Sim, você pode ter aulas sobre o desenvolvimento infantil e tal, e você pode ser treinado a usaro quadro negro de forma “eficiente” e a preparar um “plano de aula” organizado (que, aliás,garante que sua aula será planejada e, portanto, falsa), mas você nunca vai ser um professor deverdade se não está disposto a ser uma pessoa de verdade. Ensinar significa abertura ehonestidade, uma habilidade para compartilhar excitação, e um amor à aprendizagem. Sem isso,todos os diplomas de educação do mundo não vão te ajudar, e com isso eles serãocompletamente desnecessários.

    É perfeitamente simples. Estudantes não são alienígenas. Eles respondem à beleza e aospadrões, e são naturalmente curiosos como todo mundo. Fale com eles! E, mais importante,ouça-os!

    SIMPLICIO: Tudo bem, entendo que existe uma arte na matemática e que não estamos fazendoum bom trabalho em expor as pessoas a ela. Mas isso não é uma coisa meio esotérica e eruditademais para se esperar do nosso sistema educacional? Não estamos tentando criar filósofos aqui,só queremos que as pessoas tenham um domínio razoável da aritmética básica para que possamfuncionar na sociedade.

    SALVIATI: Não é verdade! A matemática da escola está preocupada com coisas que não têmnada a ver com a habilidade de estar na sociedade – álgebra e trigonometria, por exemplo. Essas

    coisas são irrelevantes para o cotidiano. Só estou sugerindo que se vamos incluir essas coisascomo parte da educação básica dos nossos alunos, então devemos fazê-lo de uma forma

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    orgânica e natural. Aliás, como eu já disse, só porque um assunto acaba tendo alguma aplicaçãomundana não significa que devemos fazer desse uso o foco do nosso ensino. Talvez vocêprecise saber ler para preencher os formulários da Receita Federal, mas não é por isso queensinamos as crianças a ler. Nós as ensinamos a ler para o propósito mais alto de permitir queelas tenham acesso a ideias importantes e belas. Não só seria cruel ensinar a ler dessa forma –

    forçando as crianças a preencher formulários sobre impostos – como não funcionaria!Aprendemos coisas porque elas nos interessam, não porque podem ser úteis mais tarde. Mas éexatamente isso que pedimos que as crianças façam com a matemática.

    SIMPLICIO: Mas não queremos que as crianças saibam aritmética?

    SALVIATI: Para quê? Você quer treiná-los a calcular 427 mais 389? Não é uma questão quemuitos alunos do terceiro ano estejam se fazendo. Muitos adultos não entendem direito a ideiade casas decimais, e você espera que as crianças o façam? Ou você não se importa se elasentendem ou não? É simplesmente muito cedo para esse tipo de treinamento técnico. É claroque pode ser feito, mas acho que acab causando mais mal do que bem. Seria melhor esperar que

    a própria curiosidade natural deles a respeito de números acabasse aparecendo.SIMPLICIO: Então o que é que nós deveríamos ensinar as crianças nas aulas de matemática?

    SALVIATI: Jogos! Xadrez, gamão, damas, sudoku, qualquer coisa. Invente um jogo. Resolvaenigmas. Exponha-os a situações em que raciocínio dedutivo é necessário. Não se preocupe comnotação e técnicas, ajude-os a se tornarem ativos e crie pensadores matemáticos.

    SIMPLICIO: Parece que estaríamos correndo um risco. E se descuidarmos tanto da aritméticaque nossos alunos acabem não sendo capazes de adicionar e subtrair?

    SALVIATI: Acho que o risco maior é o de criar escolas destituídas de expressão criativa dequalquer tipo, em que a função dos estudantes é memorizar datas, fórmulas e listas de

    vocabulário, e então regurgita-las nos exames.

    SIMPLICIO: Mas deve haver um corpo de fatos matemáticos que uma pessoa educada precisasaber.

    SALVIATI: Sim, e o mais importante deles é que matemática é uma forma de arte, feita porseres humanos por prazer! Sim, seria bom se as pessoas soubessem algumas coisas básicassobre números e formas, por exemplo. Mas isso nunca virá de memorização, repetições,palestras e exercícios. Aprendemos coisas fazendo-as e lembramos o que importa para nós.Temos milhões de adultos andando por aí com “menos b mais ou menos raiz quadrada de b aoquadrado menos 4ac, tudo sobre 2a” em suas cabeças, e absolutamente nenhuma ideia do que

    isso significa. E a razão é que nunca foi dada a eles a chance de descobrir ou inventar essascoisas por si mesmos. Eles nunca tiveram um problema interessante com o qual se preocupar,com o qual ficarem frustrados, para criar neles o desejo de uma técnica ou um método. Maisimportante, nenhuma chance de sequer terem curiosidade sobre uma questão; foi tudorespondido antes que eles pudessem perguntar.

    SIMPLICIO: Mas não temos tempo para todo estudante inventar a matemática sozinho! Levouséculos para as pessoas descobrirem o Teorema de Pitágoras. Como você espera que umacriança típica faça isso?

    SALVIATI: Não espero. Vamos deixar isso claro. Estou reclamando da ausência total de arte einvenção, história e filosofia, contexto e perspectiva no currículo de matemática. Isso não quer

    dizer que notação, técnica e desenvolvimento de conhecimento não tenham lugar. É claro quetêm. Temos que ter de tudo. Se faço objeção a que o pêndulo esteja muito para um lado, não

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    significa que quero que esteja muito para o outro lado. Mas o fato é que as pessoas aprendemmelhor quando isso resulta de um processo. Uma apreciação real por poesia não vem dememorizar um monte de poemas, vem quando você escreve o seu próprio poema.

    SIMPLICIO: Sim, mas antes de você escrever seus próprios poemas você precisa aprender oalfabeto. O processo tem de começar em algum lugar. Você precisa saber andar antes de correr.

    SALVIATI: Não, você precisa querer correr em direção  a algo. Crianças podem escreverpoemas e histórias conforme aprendem a ler e escrever. Um texto de uma criança de seis anos éuma coisa incrível, e os erros de ortografia e pontuação não o tornam menos incrível. Mesmocrianças bem pequenas inventam canções, e não fazem ideia de que clave ou métrica estãousando.

    SIMPLICIO: Mas a matemática não é diferente? Não é uma linguagem própria, com todo tipode símbolos que precisam ser aprendidos antes que se possa usá-los?

    SALVIATI: De forma alguma. Matemática não é uma linguagem, é uma aventura. Os músicos“falam outra língua” apenas porque escolhem abreviar suas ideias com pequenos pontos pretos?Isso não parece ser obstáculo para a criancinha e sua canção. Sim, certa quantidade de jargãomatemático se desenvolveu ao longo dos séculos, mas não é nada essencial. A maior parte damatemática é criada com um amigo durante um café, com um diagrama rascunhado numguardanapo. Matemática é e sempre foi sobre ideias, e uma ideia valiosa transcende os símboloscom os quais você escolhe representa-la. Como Gauss disse uma vez, “O que precisamos é denoções, não notações”.

    SIMPLICIO: Mas não é um dos objetivos da educação matemática ajudar os estudantes a pensarde forma mais precisa e lógica, e a desenvolver suas “habilidades de raciocínio quantitativo”?Todas essas definições e fórmulas não ajudam a formar a mente dos estudantes?

    SALVIATI: Não, não ajudam. Na verdade, o sistema atual tem o efeito oposto de estupidificar amente. Acuidade mental de qualquer tipo vem de resolver problemas por si mesmo, não deouvir falar sobre como resolvê-los.

    SIMPLICIO: Tudo bem. Mas e quanto aos estudantes que estão interessados em seguir umacarreira em ciência ou engenharia? Eles não precisam do treinamento que o currículo tradicionaloferece? Não é por isso que ensinamos matemática?

    SALVIATI: Quantos estudantes que têm aula de literatura serão escritores um dia? Não é porisso que ensinamos literatura, nem é por isso que os estudantes fazem os cursos. Ensinamos paraeducar a todos, não para treinar futuros profissionais. De qualquer modo, a habilidade mais

    importante para um cientista ou engenheiro é ser capaz de pensar de forma criativa eindependente. A última coisa que alguém precisa é ser treinado.

    O currículo de matemática

    O que é realmente doloroso sobre a maneira com que a matemática é ensinada nasescolas não é o que está faltando – o fato de que não há matemática verdadeira nas aulas – maso que está em seu lugar: a massa confusa de desinformação destrutiva conhecida como“currículo de matemática”. É hora de olharmos mais de perto para o quê exatamente nossosestudantes estão enfrentando – ao quê eles estão sendo expostos em nome da matemática, e

    como estão sendo prejudicados no processo.

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      A coisa mais chocante sobre a assim-chamada matemática do currículo é sua rigidez.Isso é especialmente verdade nas séries mais avançadas. Em escolas diferentes, em cidadesdiferentes, em estados diferentes, as mesmas coisas estão sendo ditas e feitas exatamente damesma maneira e na mesma ordem. Em vez de estarem preocupadas com esse estado orwellianode coisas, a maioria das pessoas simplesmente aceita esse “modelo padrão” de currículo de

    matemática como sendo sinônimo da própria matemática.Isso está intimamente ligado ao que chamo de “mito da escada”, a ideia de que a

    matemática pode ser arranjada como uma sequência de “assuntos”, cada um sendo de algumaforma mais avançado, ou mais “alto” que o anterior. O efeito é tornar a matemática escolar umacorrida – alguns estudantes estão “na frente” dos outros, e os pais se preocupam que seus filhosestejam “ficando para trás”. E aonde exatamente essa corrida leva? O que está esperando nalinha de chegada? É uma triste corrida para lugar nenhum. No final eles foram tapeados eficaram sem uma educação matemática, e nem sequer percebem isso.

    A matemática real não vem em uma lata – não existem ideias de álgebra 2. Osproblemas te levam onde te levarem. Arte não é corrida. O mito da escada é uma imagem falsa

    do assunto, e o caminho do próprio professor ao longo do currículo padrão reforça esse mito e oimpede de ver a matemática como um todo orgânico. Como resultado, temos um currículomatemático sem perspectiva histórica ou coerência temática, uma coleção fragmentada detópicos e técnicas, unidos apenas pela facilidade com que podem ser reduzidos a procedimentopasso-a-passo.

    Em lugar de descobertas e explorações, temos regras e regulamentos. Nunca ouvimosum estudante dizer “eu queria ver se poderia haver sentido em elevar um número a umapotência negativa, e descobri que aparece um padrão legal se escolhermos que isso signifique oinverso do número”. Em vez disso, temos os professores e os livros apresentando a “regra doexpoente negativo” como algo pronto, sem mencionar a estética por trás dessa escolha, ou

    sequer que se trata de uma escolha.Em lugar de problemas interessantes, que poderiam levar a uma síntese de ideiasdiversas, a territórios inexplorados, a discussões e debates, e a uma sensação de unidadetemática e harmonia na matemática, temos exercícios redundantes e sem graça, específicos paraa técnica em pauta, e tão desconexos um do outro e da matemática como um todo que nem osalunos nem o professor têm a menor ideia de como ou por que tais coisas surgiram, paracomeço de conversa.

    Em vez do contexto de um problema natural, no qual os estudantes possam tomardecisões sobre o que querem que as palavras signifiquem, e que noções desejam codificar, estãosujeitos a uma sequência sem fim de “definições” a priori e sem motivação. O currículo éobcecado com jargão e nomenclatura, aparentemente sem outro propósito que não seja dar aosprofessores algo para testar os alunos. Nenhum matemático no mundo perderia tempo com estasdistinções sem sentido: 2 1/2 é um “número misto”, enquanto 5/2 é uma “fração imprópria”. Sãoiguais, pelo amor de deus. São o mesmo número, têm as mesmas propriedades. Quem usa essaspalavras depois da quarta série?

    É claro que é muito mais simples testar o conhecimento de alguém sobre uma definiçãosem sentido do que inspirá-los a criar algo belo e a encontrar seu próprio sentido. Mesmo queconcordemos que um vocabulário básico comum é importante, não é este. É triste que alunos daquinta série aprendam a dizer “quadrilátero” em lugar de “figura de quatro lados”, mas nuncaaprendam a usar palavras como “conjectura” ou “contraexemplo”. Estudantes do ensino médioprecisam aprender a usar a função secante, “sec(x)”, que é uma abreviação para o inverso do

    cosseno, “1/cos(x)” (uma definição com tanto peso intelectual quanto a decisão de usar "&" em

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    lugar de "e"). Que essa definição em particular ainda esteja em uso é um mero acidentehistórico. Entulhamos nossas aulas de matemática com nomenclatura sem sentido.

    Na prática, o currículo não é nem sequer uma sequência de tópicos, ou ideias, mas umasequência de notações. Fica parecendo que a matemática consiste de uma lista secreta desímbolos místicos e regras para sua manipulação. Crianças pequenas aprendem '+' e '-'. Mais

    tarde podem aprender ‘ ’ e depois ‘ x ’ e ‘ y’ e a alquimia dos parênteses. Finalmente, sãodoutrinados no uso de ‘sen’, ‘log’, ‘ f(x)’ e se forem realmente merecedores, ‘d ’ e ‘ ∫ ’. Tudo isso

    sem que tenham tido uma única experiência matemática significativa.Esse programa está tão firmemente estabelecido que professores e autores de livros-

    texto podem prever, com anos de antecedência, o que exatamente os estudantes estarão fazendo,inclusive em qual página de exercícios estarão. Não é incomum ver alunos do ensino médiotendo que calcular o valor de [ ( ) ( )] / f x h f x h+ −   para várias funções  f , para que já tenham

    “visto” isso quando fizerem cálculo, anos depois. Naturalmente nenhuma motivação é dada (ouesperada) de por que essa combinação aparentemente aleatória de operações deveria ter alguminteresse, apesar de eu achar que muitos professores tentam explicar o que isso significa, e

    devem achar que estão fazendo um favor aos alunos, quando na verdade para eles é só mais umproblema inútil de matemática que precisa ser feito. “O que querem que eu faça? Ah, é só enfiaros números aí? Ok”.

    Outro exemplo é o treinamento dos estudantes para que expressem informação de formadesnecessariamente complicada, só porque em algum ponto do futuro distante isso fará sentido.Algum professor faz ideia de por que pede a seus alunos para expressarem a frase “o número  x  

    está entre três e sete” na forma | 5 | 2 x − < ? Será que os autores dos livros texto realmenteacham que estão ajudando os estudantes ao prepara-los para o dia, anos depois, em que talvezestejam operando no contexto de uma geometria em mais dimensões ou algum espaço métricoabstrato? Acho que não. Acho que estão apenas copiando uns dos outros por décadas e décadas,

    talvez mudando as letras ou as cores, e felizes da vida quando um sistema escolar adota seuslivros, tornando-se seus cúmplices.

    Matemática tem a ver com problemas, e problemas devem ser o foco da vidamatemática dos estudantes. Doloroso e frustrante como talvez seja, os alunos e os professoresdevem estar engajados no processo – tendo ideias, não tendo ideias, descobrindo padrões,fazendo conjecturas, construindo exemplos e contraexemplos, elaborando argumentos ecriticando uns aos outros. Técnicas específicas e métodos surgem naturalmente desse processo,como aconteceu historicamente: não isolados, mas organicamente conectados ao problema emquestão.

    Professores de português sabem que ortografia e pronúncia são aprendidos melhor no

    contexto da leitura e da escrita. Professores de história sabem que nomes e datas não sãointeressantes quando removidos da sequência de eventos subjacente. Por que a educaçãomatemática permanece presa no século dezenove? Compare sua própria experiência naaprendizagem de álgebra com as lembranças de Bertrand Russell: “Eu tinha que decorar que ‘oquadrado da soma de dois números é igual à soma de seus quadrados mais o dobro de seuproduto’. Eu não tinha a mínima ideia do que aquilo significava e, quando eu não conseguialembrar as palavras, o professor arremessava o livro na minha cabeça, o que não estimulavameu intelecto de forma alguma”.Será que as coisas são diferentes hoje?

    SIMPLICIO: Não acho que isso seja justo. É claro que os métodos de ensino melhoraram desdeentão.

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    SALVIATI: Você quer dizer os métodos de treinamento. Ensino é uma relação humanacomplicada; não requer um método. Melhor dizendo, se você precisa de método entãoprovavelmente não é um professor muito bom. Se não tem afinidade o bastante sobre oconteúdo para falar sobre ele com sua própria voz, de forma natural e espontânea, quão bemvocê o conhece? E falando de estar preso no século dezenove, não é chocante que o currículo

    esteja no século dezessete? Pense em todas as descobertas incríveis que ocorreram nos últimostrês séculos! Estão ausentes como se nunca tivessem acontecido.

    SIMPLICIO: Mas você não está pedindo muito dos professores de matemática? Você esperaque eles dêem atenção individual a dúzias de estudantes, guiando-os em seus próprios caminhosaté descobertas e iluminações, e também que estejam por dentro da história da matemática?

    SALVIATI: Você espera que seu professor de arte te dê conselhos sábios e individuais sobre asua pintura? Você espera que ele saiba alguma coisa sobre os últimos trezentos anos da históriada arte? Mas de fato, eu não espero nada disso, apenas queria que fosse assim.

    SIMPLICIO: Então você culpa os professores de matemática?

    SALVIATI: Não, eu culpo a cultura que os produz. Os coitados estão dando seu melhor, e estãoapenas fazendo o que foram treinados para fazer. Tenho certeza de que a maioria ama os alunose odeia o que estão sendo forçados a fazer com eles. Eles sabem em seus corações que é semsentido e degradante. Eles podem sentir que se tornaram engrenagens em uma grande máquinade destruir almas, mas não têm a perspectiva necessária para entende-la ou enfrenta-la. Sósabem que precisam deixar os alunos prontos “para o ano que vem”.

    SIMPLICIO: Você realmente espera que a maioria dos estudantes sejam capazes de operar emnível tão alto para poderem criar sua própria matemática?

    SALVIATI: Se honestamente acreditamos que um raciocínio criativo é algo “avançado” demais

    para nossos estudantes, e que eles não serão capazes, por que permitimos que escrevam textossobre história ou sobre Shakespeare? O problema não é que os alunos não consigam fazê-lo, éque nenhum dos professores consegue fazê-lo. Eles nunca provaram nada por si mesmos, entãocomo poderiam aconselhar um aluno? De todo modo, obviamente sempre haveria umadiversidade de interesses e habilidades, assim como em qualquer assunto, mas ao menos osestudantes iriam gostar ou desgostar da matemática pelo que ela realmente é, e não por causadessa imitação perversa que vêem.

    SIMPLICIO: Mas queremos que nossos estudantes aprendam um conjunto básico de fatos ehabilidades. É para isso que o currículo serve, e é por isso que é uniforme – há certos fatosduros e imortais e queremos que os estudantes saibam: um mais um é dois, os ângulos de um

    triângulo somam 180 graus. Essas não são opiniões, ou sentimentos artísticos.

    SALVIATI: Pelo contrário. Estruturas matemáticas, úteis ou não, são inventadas edesenvolvidas dentro do contexto de um problema, e derivam seu significado desse contexto. Àsvezes queremos que um mais um seja zero (o que é chamado de aritmética “módulo 2”) e sobrea superfície da esfera os ângulos de um triângulo somam mais de 180 graus. Não existem“fatos” em si mesmos; tudo é relativo e relacional. É a história que conta, não só o final.

    SIMPLICIO: Estou me cansando desse seu mambo-jambo místico! Aritmética básica, certo?Você concorda ou não que os estudantes devem aprender isso?

    SALVIATI: Isso depende do que você entende por “isso”. Se quer dizer uma apreciação pelos

    problemas de contagem e arranjo, as vantagens de agrupar e nomear, a distinção entre umarepresentação e a coisa em si, e alguma ideia do desenvolvimento histórico dos sistemas

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    numéricos, então sim, acho que nossos estudantes devem ser expostos a isso. Se quer dizermemorização de fatos aritméticos sem nenhum contexto conceitual, então não. Se quer dizerexplorar o fato nada óbvio de que cinco grupos de sete dá no mesmo que sete grupos de cinco,então sim. Se quer dizer estabelecer uma regra de que 5x7=7x5, então não. Fazer matemáticadeve ser sempre a descoberta de padrões e a criação de explicações significativas e belas.

    SIMPLICIO: Mas e a geometria? Os alunos não provam as coisas nas aulas de geometria?

    Geometria do ensino médio: instrumento do diabo

    Não há nada mais constrangedor para o autor de uma acusação do que ter seu alvoprincipal oferecido em sua ajuda. Nunca houve um lobo em pele de cordeiro tão dissimulado,nenhum falso amigo tão traidor, quando a Geometria do Ensino Médio. É precisamente por ser  a tentativa da escola de introduzir os alunos à arte do argumento que ela é tão perigosa.

    Fingindo ser a arena em que os estudantes finalmente irão se engajar em raciocínio

    matemático verdadeiro, esse vírus ataca a matemática em seu coração, destruindo a própriaessência do argumento racional criativo, envenenando a experiência dos alunos com esseassunto lindo e fascinante, e permanentemente impedindo-os de pensar sobre matemática deforma natural e intuitiva.

    O mecanismo por trás disso é sutil e dissimulado. A vítima é primeiro chocada eparalisada por uma avalanche de definições sem sentido, proposições e notações, e então élentamente e dolorosamente separada de sua curiosidade natural e de sua intuição sobre formase padrões por uma doutrinação sistemática na linguagem rígida e no formato artificial da assim-chamada “prova formal geométrica”. As aulas de geometria são as mais mentalmente eemocionalmente destrutivas do currículo. Outras aulas de matemática podem esconder o belopássaro, ou coloca-lo numa gaiola, mas na aula de geometria ele é abertamente e cruelmentetorturado.

    O que acontece é que a intuição do estudante é sistematicamente minada. Uma prova,um argumento matemático, é um trabalho de ficção, um poema. Seu objetivo é ser satisfatório.Uma prova bonita deve explicar, e deve explicar claramente, profundamente, elegantemente.Um argumento bem feito e bem escrito deve ser como um mergulho em água fresca, como umraio de luz. Deve ser refrescante para o espírito e iluminador para a mente. E deve ter charme.

    Não há nenhum charme naquilo que acontece nas aulas de geometria. Os estudantes sãoapresentados a um formato rígido e rigoroso no qual as suas “provas” devem ser feitas. Umformato tão desnecessário e tão inapropriado quanto insistir que as crianças que querem plantarum jardim se refiram a suas flores por gênero e espécie.

    Vejamos alguns exemplos concretos dessa insanidade. Comecemos com o exemplo deduas retas que se cruzam

    A primeira coisa que acontece é que embaçamos a coisa com notação excessiva. Pareceque não podemos falar de duas linhas cruzadas; precisamos dar nomes elaborados a elas. E nãopode ser só “linha 1” e “linha 2”, ou “a” e “b”. Precisamos selecionar pontos aleatórios eirrelevantes sobre elas, e então nos referirmos às linhas usando a “notação de retas” especial.

    C

    D

    B

    A

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    Está vendo, agora podemos chama-las de  AB   e CD . E Deus te proteja se vocêesquecer as barrinhas em cima. Não importa que isso seja sem sentido e desnecessário, é assimque devemos aprender. Agora vem a informação, normalmente chamada por algum nome

    absurdo como “PROPOSIÇÃO 2.1.1: Sejam  AB  e CD  retas que se intersectam no ponto P.Então ~ APC BPD∠ ∠ ”.Em outras palavras, os ângulos dos dois lados do cruzamento são os mesmos. Ora, dãã!

    A configuração das linhas cruzadas é simétrica, meu deus! Se já não fosse ruim o bastante, essefato óbvio sobre retas e ângulos precisa ser “provado”.PROVA:

     APC APD   π  ∠ + ∠ =  

    BPP APD   π  ∠ + ∠ =  

     APC APD BPD APD∠ + ∠ = ∠ + ∠  

     APC BPD∠ + ∠  

    Em vez de um argumento esperto e agradável escrito por um ser humano, em algumadas linguagens humanas naturais, temos essa prova balofa, sem alma e burocrática. E quetempestade em copo d’água! Será mesmo que uma observação imediata como essa precisa deum preâmbulo tão longo? Seja honesto: você sequer leu tudo? Claro que não. Quem iria quererler isso?

    O efeito de uma produção como essa ser realizada acerca de algo tão simples é fazer aspessoas duvidarem de sua intuição. Pondo em dúvida o óbvio, insistindo que ele deve ser“rigorosamente provado” (como se o que vai acima consistisse em uma prova legítima) é dizerao estudante: “Seus sentimentos e ideias são suspeitos. Você precisa aprender a pensar e falar donosso jeito”.

    Existe um lugar para a prova formal na matemática, sem dúvida. Mas esse lugar não é oprimeiro contato do aluno com o argumento matemático. Pelo menos deixe as pessoas sefamiliarizarem com os objetos, aprenderem sobre o que esperar deles, antes de formalizar tudo.Prova rigorosa formal só se torna importante quando há uma crise – quando descobrimos quenosso objeto imaginário se comporta de forma contra-intuitiva, quando aparece algum tipo deparadoxo. Essa higiene preventiva excessiva é completamente desnecessária aqui, ninguémficou doente ainda! É claro que se alguma crise lógica aparecer em algum momento, entãoobviamente deve ser investigada, e o argumento deve ser tornado mais claro, mas o processodeve ser conduzido também de forma intuitiva e informativa. De fato é a alma da matemáticaque alguém leve a cabo esse diálogo com a própria prova.

    Não só as crianças ficam confusas com esse pedantismo – nada mais mistificador doque uma prova do óbvio – mas as poucas cuja intuição permaneceu intacta devem traduzir suasbelas ideias para esses absurdos hieróglifos, a fim de que o professor as julgue “corretas”. Oprofessor então fica contente por achar que está de alguma forma afiando as mentes dosestudantes.

    Como exemplo mais sério, considere o caso de um triângulo dentro de um semi-círculo.

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    O belo padrão aqui é que não importa em que lugar do círculo esteja a ponta dotriângulo, ela sempre compreenderá um ângulo reto (não me oponho a um termo como “ânguloreto” se for relevante para o problema e torne a discussão mais fácil; não é à terminologia que

    me oponho, mas à terminologia inútil. De qualquer modo, estaria disposto a usar “canto” ou"ponta" se os estudantes preferirem).

    Eis um caso em que a intuição fica em dúvida. Não é nada claro que isso seja verdade;parece mesmo improvável . O ângulo não deveria mudar quando mudamos a posição da ponta?

    O que temos aqui é um problema matemático fantástico! É verdade? Se for, por que é verdade?Que grande projeto! Que ótima oportunidade para exercitar a criatividade e a imaginação! Éclaro que essa oportunidade não será dada aos estudantes, cuja curiosidade e interesse serãoimediatamente sufocados pelo

    TEOREMA 9.5: Seja  ABC   um triângulo inscrito em um semicírculo com diâmetro  AC .

    Então  ABC ∠  é ângulo reto.PROVA:

    OBC BCA∠ = ∠  

    OBA BAC  ∠ = ∠  

     ABC OBA OBC ∠ = ∠ + ∠  

     ABC BCA BAC    π  ∠ + ∠ + ∠ =  

     ABC OBCA OBA   π  ∠ + ∠ + ∠ =  

    2   ABC    π  ∠ =  / 2 ABC    π  ∠ =  

    Pode existir alguma coisa menos atrativa e menos elegante? Pode algum argumento sermais obtuso e ilegível? Isto não é matemática! Uma prova deveria ser uma epifania dos deuses,não uma mensagem em código do Pentágono. É isso que resulta de um senso deslocado de rigorlógico:  feiúra. O espírito do argumento foi soterrado debaixo de um monte de formalismoconfuso.

    Nenhum matemático trabalha dessa forma. Nenhum matemático  jamais trabalhou dessaforma. Isto é um mal entendido completo da empreitada matemática. Matemática não tem a vercom erguer barreiras entre nós e nossa intuição, e tornar coisas simples complicadas.Matemática tem a ver com remover obstáculos à nossa intuição, e manter simples as coisassimples.

    Compare essa porcaria com o seguinte argumento, apresentado por um aluno meu dasétima-série:

    "Pegue o triângulo e rode-o de modo a formar umquadrilátero. Esse quadrilátero não pode ser inclinado,porque ambas as diagonais são diâmetros do círculo. Seas diagonais são iguais, os lados têm de ser iguais.Portanto, é um retângulo e o ângulo tem de ser reto".

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    Não é lindo? E o mais importante é que essa ideia foi do  próprio  estudante. A salateinha um belo problema para trabalhar, conjecturas foram feitas, provas foram tentadas, e issofoi o que um estudante produziu. É claro que levou vários dias, e o resultado final foi resultado

    de uma série de fracassos.O problema com o currículo padrão de geometria é que a experiência pessoal de ser um

    artista foi eliminada. A arte da prova foi substituída por um padrão rígido passo-a-passo dededuções formais sem inspiração. O livro texto apresenta uma série de definições, teoremas eprovas, o professor as copia no quadro e os estudantes as copiam em seus cadernos. Eles depoistêm de imitá-las nos exercícios. Aqueles que pegam o jeito rápido são os “bons” alunos.

    O resultado é que os estudantes se tornam participantes passivos do ato criativo. Elesfarão afirmações que se encaixam em um padrão de prova pré-existente, não porque acreditam nelas. Estão sendo treinados para imitar argumentos, não para cria-los. Não só não têm ideia doque o professor está falando, não têm ideia do que eles mesmos estão falando.

    Mesmo a forma tradicional pela qual definições são apresentadas é uma mentira. Em umesforço para criar uma ilusão de “clareza” antes de embarcar na cascata típica de proposições eteoremas, um conjunto de definições é fornecido, de modo que as afirmações e provas sejam tãosucintas quanto possível. Superficialmente, isso parecer ser inócuo; por que não fazer algumasabreviações para que as coisas possam ser ditas de modo econômico? O problema é quedefinições são importantes. Elas vêm de decisões estéticas sobre quais distinções você comoartista considera importantes. E elas derivam do problema. Fazer uma definição é chamaratenção para alguma característica ou propriedade estrutural. Historicamente, isso veio dotrabalho em algum problema, e não como prelúdio ao trabalho.

    O ponto é que você não começa com as definições, você começa com problemas.

    Ninguém teve a ideia de chamar um número de “irracional” antes de Pitágoras tentar medir adiagonal do quadrado e descobrir que não poderia ser representada por uma fração. Definiçõesfazem sentido quando um certo ponto é alcançado no argumento em que uma distinção se faznecessária. Fazer definições sem motivação irá mais provavelmente causar  confusão.

    Esse é outro exemplo da maneira com que os estudantes são excluídos do processomatemático. Eles precisam ser capazes de apresentar suas próprias definições conforme anecessidade aparece. Não quero estudantes que digam “a definição, o teorema, a prova”; queroque digam “minha definição, meu teorema, minha prova”.

    À parte todas essas reclamações, o problema real com esse tipo de apresentação é queele é chato. Eficiência e economia não são ingredientes de uma boa pedagogia. Tenhodificuldade de acreditar que Euclides aprovaria isto; eu sei que Arquimedes não aprovaria.

    SIMPLICIO: Então devemos apenas embarcar em uma excursão matemática livre, e osestudantes vão aprender o que quer que aconteça de aprenderem?

    SALVIATI: Exatamente. Problemas vão levar a outros problemas, técnicas serão desenvolvidasquando necessário, novos tópicos surgirão naturalmente. E se algum assunto não surgirnenhuma vez ao longo de treze anos de educação, não pode ser tão importante assim.

    SIMPLICIO: Você ficou louco.

    SALVIATI: Talvez. Mas, mesmo trabalhando do jeito tradicional, um bom professor pode guiara discussão e o fluxo de problemas para permitir aos alunos que descubram e inventem amatemática por si mesmos. O problema real é que a burocracia não permite a um professor

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    individual fazer isso. Com um currículo para seguir, o professor não pode liderar. Não deveriahaver currículos. Apenas indivíduos fazendo o que acham que é melhor para seus alunos.

    SIMPLICIO: Mas então como as escolas garantiriam que os estudantes teriam o mesmoconhecimento básico? Como poderiam medir o progresso deles?

    SALVIATI: Não poderiam, e não iriam. Como na vida real. Você tem que encarar o fato de queas pessoas são diferentes, e que não há problema com isso. De todo modo, não há pressa.Digamos que uma pessoa se forme no ensino médio sem saber as fórmulas do meio-ângulo(como se soubessem hoje!). E daí? Pelo menos essa pessoa terá saído com alguma ideia sobredo que se trata o assunto, e teria visto alguma coisa bela.

    Conclusão

    Para terminar minha crítica do currículo, e como um serviço à comunidade, apresentoagora o primeiro currículo completamente honesto de matemática.

    MATEMÁTICA PRIMÁRIA: A doutrinação começa. Estudantes aprendem que matemáticanão é algo que você faz, mas algo que é feito a você. A ênfase é em sentar direito, preencherformulários e seguir instruções. Crianças devem dominar um conjunto complexo de algoritmospara manipular símbolos hindus, sem relação com nenhum desejo real ou curiosidade, econsiderados alguns séculos atrás como difíceis demais para o adulto comum. Tabelas demultiplicação são enfatizadas, e os pais, professores e alunos são estressados.

    MATEMÁTICA SECUNDÁRIA: Estudantes aprendem a ver a matemática como um conjuntode procedimentos, como ritos religiosos, que são eternos e escritos em pedra. As tábuassagradas, ou “livros de matemática”, são entregues, e os alunos aprendem a se referir aos

    ministros da igreja como “eles” (como em “o que eles querem que eu faça aqui? dividir?”).Problemas enrolados e artificiais serão apresentados em língua comum, a fim de fazer afeitiçaria sem sentido da aritmética parecer divertida em comparação. Estudantes serão testadosa respeito de uma lista de termos técnicos desnecessários, tais como “número inteiro” e “fraçãoprópria”, sem a menor justificativa para tais distinções. Excelente preparação para Álgebra 1.

    ÁLGEBRA 1: Para não perder tempo pensando sobre números e seus padrões, este curso focaem símbolos e regras para sua manipulação. A narrativa que leva da antiga Mesopotâmia até aarte dos algebristas do Renascimento é descartada em troca de uma visão pós-moderna,perturbadoramente fraturada, sem personagens, enredo ou tema. A insistência para que todos osnúmeros e expressões sejam colocados em várias formas padronizadas proverá confusão

    adicional a respeito do sentido de identidade e igualdade. Estudantes precisam memorizar afórmula quadrática por alguma razão.

    GEOMETRIA: Isolado do resto do currículo, este curso dará esperanças aos estudantes quequerem se engajar em uma atividade matemática significativa, e então as destruirá. Notaçãoatrapalhada e sem sentido será introduzida, nenhum esforço será poupado para fazer o simplesparecer complicado. O objetivo do curso é erradicar quaisquer vestígios remanescentes de umaintuição matemática natural, em preparação para Álgebra 2.

    ÁLGEBRA 2; O assunto deste curso é o uso não-motivado e inapropriado de geometriacoordenada. Seções cônicas são introduzidas utilizando coordenadas, a fim de evitar asimplicidade estética dos cones e suas seções. Estudantes aprendem a reescrever formasquadráticas em uma variedade de formas padronizadas sem nenhuma razão. Funções

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    exponenciais e logarítmicas também são introduzidas em Álgebra 2, apesar de não seremobjetos algébricos, apenas porque precisam ser enfiados em algum lugar. O nome do curso éescolhido para reforçar o mito da escada. Por que geometria vem entre álgebra 1 e álgebra 2permanece um mistério.

    TRIGONOMETRIA: Duas semanas de conteúdo são esticadas ao longo de um semestre atravésde desvios definicionais masturbatórios. Fenômenos realmente interessantes e belos, como amaneira com que os lados de um triângulo dependem dos ângulos, têm a mesma ênfase queabreviações irrelevantes e convenções notacionais obsoletas, para evitar que os estudantesformem uma ideia clara do assunto. Eles aprenderão truques mnemônicos em vez dedesenvolver uma intuição natural sobre orientação e simetria. Medidas de triângulos serãodiscutidas sem menção da natureza transcendental das funções trigonométricas, ou dosconsequentes problemas linguísticos e filosóficos associados a tais medidas. Calculadoras sãoexigidas, a fim de atrapalhar ainda mais o entendimento.

    PRÉ-CÁLCULO: Uma sopa sem sentido de tópicos desconexos. Basicamente uma tentativa

    meia sola de introduzir métodos analíticos do século dezenove em contextos nos quais não sãonecessários nem úteis. Definições técnicas de “limite” e “continuidade” são apresentadas a fimde obscurecer a noção intuitivamente clara de mudança gradual. Como o nome sugere, essecurso prepara o aluno para Cálculo, em que a fase final do embaçamento sistemático dequaisquer ideias naturais relacionadas a forma e movimento será completada.

    CÁLCULO: Este curso explora a matemática do movimento, e as melhores maneiras de soterrá-la sob uma montanha de formalismo desnecessário. Apesar de ser uma introdução ao cálculointegral e diferencial, as ideias simples e profundas de Newton e Leibniz serão descartadas esubstituídas pela abordagem mais sofisticada, baseada em funções, desenvolvida em resposta avárias crises analíticas que não se aplicam a este contexto, nenhuma das quais será mencionada.

    ***

    Pronto. Uma prescrição completa para destruir permanentemente as jovens mentes.Uma cura certa para a curiosidade. O que fizemos com a matemática!

    Há uma profundidade tão incrível e uma beleza tão tocante nessa forma de arteancestral. Que ironia que as pessoas descartem a matemática como se fosse a antítese dacriatividade. Estão ficando de fora de uma forma de arte mais antiga que qualquer livro, maisprofunda que qualquer poema, mais abstrata que qualquer abstrato. E é a escola que faz isso!Que interminável e triste ciclo de professores inocentes infligindo danos a estudantes inocentes.Podíamos estar nos divertindo tanto.