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N o 8.237/2015-AsJConst/SAJ/PGR Recurso extraordinário 592.581/RS Relator: Ministro Ricardo Lewandowski Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL. RE- CURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 220. SISTEMA PRI- SIONAL. RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS. DIREITO FUNDAMENTAL. APLICABILI- DADE IMEDIATA. RESERVA DO POSSÍVEL. DEVER DE O ESTADO GARANTIR O MÍNIMO EXISTENCIAL. IN- TERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM POLÍTICAS PÚBLICAS. OMISSÃO ESTATAL. DETERMINAÇÃO AO EXECUTIVO DE OBRAS EM ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS. 1. A designação do problema como “controle judicial de políti- cas públicas” pode levar à conclusão da ilicitude de intervenção judicial no caso, sem se demonstrar antes a premissa de que o tema não é jurídico, mas político, e, portanto, entregue apenas aos órgãos de representação popular. Existência de direito funda- mental eventualmente desrespeitado por ação ou omissão estatal torna jurídica a questão. 2. É impossível adotar soluções absolutas em todas as questões atinentes a direitos fundamentais. A diferença de densidade dos programas e dos domínios normativos dos direitos fundamentais brasileiros é obstáculo à generalização de conclusões para sua concretização, por meio da transposição de precedentes. É ne- cessário construir casuística graduada e adequada à espécie de direito fundamental em causa. 3. Há equívoco em subsumir o direito a integridade física e mo- ral dos presos, previsto no art. 5 o , XLIX, da Constituição da Re- pública, à categoria dos direitos sociais, a cuja realização se opõem restrições de discricionariedade política e de reserva do

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No 8.237/2015-AsJConst/SAJ/PGR

Recurso extraordinário 592.581/RSRelator: Ministro Ricardo LewandowskiRecorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do SulRecorrido: Estado do Rio Grande do Sul

CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL. RE-CURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 220. SISTEMA PRI-SIONAL. RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORALDOS PRESOS. DIREITO FUNDAMENTAL. APLICABILI-DADE IMEDIATA. RESERVA DO POSSÍVEL. DEVER DEO ESTADO GARANTIR O MÍNIMO EXISTENCIAL. IN-TERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM POLÍTICASPÚBLICAS. OMISSÃO ESTATAL. DETERMINAÇÃO AOEXECUTIVO DE OBRAS EM ESTABELECIMENTOSPRISIONAIS.

1. A designação do problema como “controle judicial de políti-cas públicas” pode levar à conclusão da ilicitude de intervençãojudicial no caso, sem se demonstrar antes a premissa de que otema não é jurídico, mas político, e, portanto, entregue apenasaos órgãos de representação popular. Existência de direito funda-mental eventualmente desrespeitado por ação ou omissão estataltorna jurídica a questão.

2. É impossível adotar soluções absolutas em todas as questõesatinentes a direitos fundamentais. A diferença de densidade dosprogramas e dos domínios normativos dos direitos fundamentaisbrasileiros é obstáculo à generalização de conclusões para suaconcretização, por meio da transposição de precedentes. É ne-cessário construir casuística graduada e adequada à espécie dedireito fundamental em causa.

3. Há equívoco em subsumir o direito a integridade física e mo-ral dos presos, previsto no art. 5o, XLIX, da Constituição da Re-pública, à categoria dos direitos sociais, a cuja realização seopõem restrições de discricionariedade política e de reserva do

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possível. Esse direito fundamental é direito de defesa, malgradoeventualmente uma de suas consequências jurídicas – secundá-rias – seja o deferimento de prestação estatal. Deve preponderaro critério material, em detrimento do formal, na classificaçãodos direitos fundamentais brasileiros: direito de defesa visam àgarantia jurídica da liberdade, mediante omissões do Estado, aopasso que direitos sociais promovem igualdade de fato entre pes-soas, para que as menos aquinhoadas possam desfrutar de liber-dade jurídica, por meio de prestações jurídicas ou materiais doEstado.

4. Uma vez que os presos não possuem, por definição, liberdadede fato, mas apenas limitado raio de liberdade jurídica, sua inte-gridade recai no âmbito dos direitos de defesa.

5. Ao contrário dos direitos a prestações, cuja implementaçãoestatal se satisfaz por qualquer das opções adequadas adotadaspelo legislador ou pelo administrador, direitos de defesa somentesão respeitados caso o Estado se abstenha de todos os comporta-mentos capazes de suprimi-los ou de lesá-los. Não cabe falar, aí,de discricionariedade legislativa ou executiva no fornecimentode condições materiais que atendam ao art. 5o, XLIX, da CR.

6. Possui aplicabilidade imediata o direito fundamental ao res-peito à integridade física e moral dos cidadãos presos (art. 5o,XLIX e § 1o). O estado do sistema carcerário brasileiro fere a or-dem constitucional e deveres convencionais e legais do Brasil.

7. Não cabe aplicação da cláusula da reserva do possível que re-sulte em negativa de vigência de núcleo essencial de direito fun-damental. O Estado deve garantir proteção do mínimoexistencial do direito fundamental de respeito à integridade fí-sica e moral dos presos. Núcleo essencial intangível a ser assegu-rado, independentemente de condições adversas, limitesfinanceiros ou colisão com outros direitos fundamentais.

8. Tem legitimidade o Poder Judiciário para determinar adoçãode políticas públicas que garantam intangibilidade do mínimoexistencial do direito fundamental ao respeito à integridade fí-sica e moral dos presos, como reforma, ampliação e construçãode estabelecimentos prisionais, em caso de omissão dos entes es-tatais. Precedentes.

9. Parecer pelo provimento do recurso extraordinário.

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I. RELATÓRIO

Trata-se de recurso extraordinário interposto pelo Ministério

Público do Estado do Rio Grande do Sul contra acórdão do

Tribunal de Justiça gaúcho (folhas 377-387), que julgou

improcedente ação civil pública proposta pelo recorrente, nos

seguintes termos (sic):

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DETER-MINAÇÃO AO PODER EXECUTIVO DE REALIZA-ÇÃO DE OBRAS EM PRESIDIO. DESCABIMENTO.PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO.Preliminar:O pedido não é juridicamente impossível, porquanto nãolhe veda expressamente a ordem jurídica.Mérito:O texto constitucional dispõe sobre os direitos fundamentaisdo preso, sendo certo que as precárias condições dos estabe-lecimentos prisionais importam ofensa à sua integridade fí-sica e moral. A dificuldade está na técnica da efetivaçãodesses direitos fundamentais.É que diversa a carga de eficácia quando se trata de direitofundamental prestacional proclamado em norma de naturezaeminentemente programática, ou quando sob forma quepermita, de logo, com ou sem interposição legislativa, o re-conhecimento de direito subjetivo do particular (no caso dopreso), como titular do direito fundamental.Aqui o ponto: saber se a obrigação imposta ao Estado atendenorma constitucional programática, ou norma de naturezaimpositiva.Vê-se às claras, que mesmo não tivesse ficado no texto cons-titucional senão que também na Lei das Execuções Crimi-nais, cuida-se de norma de cunho programático. Não se tratade disposição auto-executável, apenas traça linha geral deação ditada ao poder público.Para além disso, sua efetiva realização apresenta dimensãoeconômica que faz depender da conjuntura; em outras pala-

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vras, das condições que o Poder Público, como destinatárioda norma, tenha de prestar. Daí que a limitação de recursosconstitui, na opinião de muitos, no limite fático à efetivaçãodas normas de natureza programática. É a denominada “re-serva do possível”.Pois a “reserva do possível”, no que respeita aos direitos denatureza programática, tem a ver não apenas com a possibili-dade material para sua efetivação (econômica, financeira, or-çamentária), mas também, e por consequência, com o poderde disposição de parte do Administrador, o que imbrica nadiscricionariedade, tanto mais que não se trata de atividadevinculada.Ao Judiciário não cabe determinar ao Poder Executivo a re-alização de obras, como pretende o Autor Civil, mesmo plei-teadas a título de direito constitucional do preso, pena defazer as vezes de administrador, imiscuindo-se indevida-mente em seara reservada à Administração.Falta aos Juízos, porque situados fora do processo polí-tico-administrativo, capacidade funcional de garantir a efeti-vação de direitos sociais prestacionais, sempre dependentesde condições de natureza econômica ou financeira quelonge estão dos fundamentos jurídicos.Preliminar rejeitada. Apelo provido. Unânime.

O acórdão recorrido desobrigou o Estado do Rio Grande do

Sul de realizar obras de reforma geral do Albergue Estadual de

Uruguaiana, necessárias à adequação do estabelecimento prisional

a condições mínimas de habitabilidade e salubridade, com o

fundamento de não caber ao Poder Judiciário interferir em seara

reservada à administração pública e de o art. 5o, XLIX, da

Constituição da República, que garante integridade física e moral

dos presos, constituir norma programática, a ser executada de

acordo com a cláusula da reserva do possível.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul, no recurso

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extraordinário, sustenta violação à dignidade dos presos, assegurada

pelo art. 1o, III, e pelo art. 5o, XLIX, da Constituição da República.

Afirma que o direito fundamental dos presos ao respeito à

integridade física e moral constitui norma de aplicabilidade

imediata, de forma que sua observância não pode ser postergada

com base em alegação de restrições orçamentárias e que é dever

do poder público a implantação imediata de políticas públicas que

efetivem essa garantia constitucional indisponível (fls. 393-411).

A PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, em parecer da lavra da

Subprocuradora-Geral da República ELA WIECKO V. DE CASTILHO,

opinou pelo provimento do recurso extraordinário, com o

fundamento de que a cláusula da reserva do possível não pode ser

aplicada como forma de o Estado se eximir de proteger o núcleo

essencial do direito fundamental violado (fls. 420-423).

Essa Corte reconheceu repercussão geral da matéria (fl. 435),

cuja controvérsia constitucional ficou assim definida pelo tema

220:

Competência do Poder Judiciário para determinar ao PoderExecutivo a realização de obras em estabelecimentos prisio-nais com o objetivo de assegurar a observância de direitosfundamentais dos presos.

A UNIÃO solicitou ingresso no feito na condição de terceira

interessada (fls. 442-443), pleito deferido pelo Ministro RICARDO

LEWANDOWSKI (fls. 446-447). Na manifestação de fls. 455-485,

alegou que o acórdão recorrido não avaliou o contexto fático da

questão posta nos autos, de maneira que a devolutividade do

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recurso extraordinário estaria limitada. Aduziu que o direito

fundamental do preso à integridade física encontra limite na

reserva do possível e que apenas os Poderes Legislativo e Executivo

possuem legitimidade para interpretar a dimensão positiva dos

direitos fundamentais. Apontou ineficiência das políticas de

construção e ampliação de presídios para solucionar

definitivamente os problemas do sistema carcerário. Por fim,

asseverou que o Estado do Rio Grande do Sul tem se dedicado a

solucionar o problema, o que impediria interferência do Poder

Judiciário.

Os ESTADOS DO ACRE, AMAZONAS, ESPÍRITO SANTO, MINAS

GERAIS, PIAUÍ, RONDÔNIA, BAHIA, RORAIMA, AMAPÁ, SANTA CATARINA,

MATO GROSSO DO SUL e RIO GRANDE DO SUL e o DISTRITO FEDERAL

requereram admissão no processo na qualidade de terceiros

interessados e manifestaram-se pelo não provimento do recurso

(fls. 488-507). Com exceção do RIO GRANDE DO SUL, o Ministro

RICARDO LEWANDOWSKI deferiu os pedidos (fls. 511-513).

Posteriormente, admitiu ingresso dos ESTADOS DE RIO DE JANEIRO

(fls. 524-526), SÃO PAULO (fls. 558-560) e PARÁ (fls. 563-564).

O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA pediu vista dos autos a

fim de pronunciar-se acerca da questão constitucional, tendo em

vista que a manifestação do Ministério Público é anterior ao

reconhecimento da repercussão geral pelo Plenário virtual (fl.

574).

Vieram os autos à Procuradoria-Geral da República em 28

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de outubro de 2014.

É o relatório.

II. MÉRITO

II.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A despeito das normas constitucionais e da Lei de Execução

Penal, é sabido que o sistema prisional brasileiro se encontra em

notória situação de falência quase generalizada, o que, entre outras

consequências que se verão, gerou a instauração de comissão

parlamentar de inquérito para investigar a realidade carcerária no

Brasil.1 Grande número – talvez a maioria – dos estabelecimentos

penitenciários existentes não atende às condições mínimas de

habitabilidade, salubridade, higiene, segurança e dignidade, o

mínimo exigido pelas normas em vigor para o respeito à

dignidade dos cidadãos condenados e até para tornar mais eficaz o

sistema criminal, em prol da sociedade.

A situação é tão desumana e degradante que já houve quem

comparasse as prisões brasileiras a campos de concentração:

A conclusão é que, apesar das previsões legais e constitucio-nais, o sistema carcerário nacional é, seguramente, um campode torturas físicas e psicológicas. Do ponto de vista psicoló-gico, basta referir as celas superlotadas; a falta de espaço fí-

1 A chamada “CPI do Sistema Carcerário”. Disponível em:< http://zip.net/bhp77l > ou< http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701 >. Acesso em: 7nov. 2014.

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sico; a inexistência de água, luz, material higiênico, banho desol; a existência de lixo, esgotos, ratos, baratas e porcos mis-turados com os encarcerados; presos doentes, sem atendi-mento médico, amontoados em celas imundas, e outrassituações descritas nas diligências, fotografadas e filmadaspela CPI.Em todos os estabelecimentos penais diligenciados, represen-tantes da CPI ouviram dos presos e parentes denúncias detorturas e maus tratos. Em algumas unidades prisionais dili-genciadas, a CPI constatou marcas de torturas nos presos. Ospresos são intimidados permanentemente. Boa parte das uni-dades é comandada por ex-delegados da Polícia Federal, mi-litares da ativa ou reformados, ou ainda por PoliciaisMilitares, levando à militarização do ambiente carcerário. Defato, a maioria dos estabelecimentos penais no Brasil podeser caracterizada como verdadeiros campos de concentra-ção.2

A história do sistema carcerário brasileiro é de violência e

ineficiência. Longe de funcionar como elo útil do sistema de

justiça criminal, tem sido palco de larga e incontável série de

massacres e violações de todo gênero à integridade, à dignidade e

aos direitos dos cidadãos privados de liberdade. Não é possível

deixar de mencionar os casos trágicos e emblemáticos dos

massacres na Casa de Detenção de São Paulo (conhecida como

Carandiru, com 111 vítimas), na Casa de Detenção José Mário

Alves (em Porto Velho, Rondônia, conhecida como Penitenciária

Urso Branco, com pelo menos 27 vítimas – que gerou medidas

cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos) e a

2 POZZEBON, FABRÍCIO DREYER DE ÁVILA; AZEVEDO, RODRIGO

GHIRINGHELLI DE. Comentário ao art. 5o, XLIX. In: CANOTILHO, J. J.GOMES; MENDES, GILMAR F.; SARLET, INGO W.; STRECK, LENIO L. (co-ords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina,2013, p. 417.

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sequência de assassinatos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas

(em São Luís, Maranhão, com cerca de 20 mortes apenas em

2014). Lamentavelmente, porém, os mortos do sistema carcerário

brasileiro compõem número ainda muitíssimo superior a esse

somatório de massacres.

Recentemente, a Corte de Apelação de Bolonha, Itália,

negou pedido do Brasil de extradição de HENRIQUE PIZZOLATO,

ex-diretor do Banco do Brasil condenado pelo Supremo Tribunal

Federal na ação penal 470/MG. O fundamento central para a

negativa consistiu no reconhecimento de que o sistema carcerário

brasileiro não oferece condições seguras e que respeitem os

direitos fundamentais dos presos no cumprimento da pena.3 Muito

provavelmente, esse precedente (mas, principalmente, a situação

geral do sistema penitenciário brasileiro) dificultará ou obstará

futuros requerimentos de extradição formulados pelo Brasil,

devido à possibilidade de responsabilização dos países requeridos,

com base na teoria da responsabilização por ricochete, adotada

pela Corte Europeia de Direitos Humanos, com base na

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, particularmente

em seu art. 3o.4 A Áustria, por exemplo, já recusou extradição para

3 Confira-se “Negativa de extradição de Pizzolato é derrota para Justiça doBrasil, diz PGR”, disponível em: < http://zip.net/bkp8jP > ou< http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/10/negativa-de-extradicao-de-pizzolato-e-derrota-para-justica-do-brasil-diz-pgr.html > Acesso em: 7nov. 2014.

4 Diz o art. 3o da Convenção: “Ninguém pode ser submetido a torturas, nema penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.” Disponível em< http://bit.ly/CEDHport > ou< http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf >; acessoem 11 nov. 2014.

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o Brasil em 2004, por causa da situação do sistema carcerário,

pondo o país ao lado de outros aos quais recusou extradição por

esse fundamento, como Usbequistão, Geórgia, Azerbaijão,

Cazaquistão, Bielorrússia, Rússia e Sérvia.5

O estado do sistema carcerário no Brasil descumpre diversos

instrumentos internacionais a que o país aderiu e que nele estão

em vigor, como a Convenção contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

(promulgada pelo Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991), o Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (promulgado pelo

Decreto 592, de 6 de julho de 1992, em particular seu art. 7o), a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José

da Costa Rica – promulgada pelo Decreto 678, de 6 de novembro

de 1992 –, em especial seu art. 5) e o Protocolo Facultativo à

Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos ou Degradantes (promulgado pelo Decreto 6.085, de

19 de abril de 2007).6

Não se pode esquecer, além disso, a Declaração Universal dos

5 Vide relatório do Estado-parte (State party's report) Áustria de 2009 àConvenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,Desumanos ou Degradantes (Convention against Torture and Other Cruel,Inhuman or Degrading Treatment or Punishment), documento CAT/C/AUT/4-5, p. 9, § 28. Disponível em < http://zip.net/bxp9PM > ou< http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/Countries.aspx?CountryCode=AUT&Lang=EN >; acesso em 11 nov. 2014.

6 Esses e outros instrumentos internacionais firmados pelo Brasil podem serencontrados na página da Divisão de Atos Internacionais (DAI) doMinistério das Relações Exteriores (MRE): disponível em< http://is.gd/SZeq7d > ou< http://www.itamaraty.gov.br/temas/divisao-de-atos-internacionais >;acesso em 11 nov. 2014.

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Direitos Humanos, cujo artigo 5o estabelece: “Ninguém será

submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano

ou degradante.” Pessoas condenadas a pena privativa de liberdade

não estão compelidas a perder a dignidade nem a vida.

Ainda que reforma profunda desse sistema (e igualmente do

sistema de medidas socioeducativas) não fosse urgente para

cumprimento das normas constitucionais, convencionais e legais

aplicáveis, a sociedade deveria exigi-la, quando mais não fosse, até

mesmo por um raciocínio puramente utilitário: dar aos

estabelecimentos prisionais e às carceragens condições compatíveis

com a humanidade (o que a maioria deles hoje não tem) surtiria

efeitos altamente positivos na redução de crimes, ou seja, para

diminuição da violência que a própria sociedade sofre dos seres

embrutecidos, violentados, sem qualificação profissional e

recidivistas que o sistema despeja nas ruas diariamente.

O Conselho Nacional de Justiça, particularmente por meio

de seu Departamento de Monitoramento e Fiscalização do

Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas

Socioeducativas (DMF), tem realizado valioso trabalho de

diagnóstico, acompanhamento e proposição relativamente ao

sistema carcerário e ao de medidas socioeducativas. Boa parte de

suas constatações podem ser encontradas em sua página

eletrônica.7

7 Disponível em: < http://bit.ly/cnjsistcarcere > ou< http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistema-carcerario-e-execucao-penal >; acesso em 11 nov. 2014.

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Ali se vê, por exemplo, que o último levantamento do CNJ

revelou população carcerária no Brasil de 711.463 pessoas, das

quais 147.937 em prisão domiciliar.8 O cálculo anterior, de

563.526 pessoas, não levava em conta a prisão domiciliar. De

acordo com o Conselho, o Brasil ultrapassou a Rússia e tem hoje a

terceira maior população carcerária do mundo. Para o International

Centre for Prison Studies, o Brasil estaria em quarto lugar em termos

de número total de pessoas presas.9 Há déficit estimado de 354 mil

vagas no sistema carcerário brasileiro e existem 373.991 mandados

de prisão não cumpridos. O CNJ tem apontado, em seus

relatórios, ano após ano, inumeráveis e gravíssimas deficiências do

sistema carcerário, fonte permanente de reincidência e de

violência em detrimento da sociedade.

Nesse contexto, consoante se analisará nesta manifestação, é

imperiosa a intervenção do Poder Judiciário para garantia de

direitos fundamentais explícitos na Constituição da República e, se

se preferir, para implantação de políticas públicas voltadas a

reforma, ampliação e construção de estabelecimentos prisionais, a

fim de que sejam respeitados e garantidos os direitos fundamentais

dos cidadãos presos e que acontecimentos como os citados acima

não se repitam.

8 Vide notícia “CNJ divulga dados sobre nova população carceráriabrasileira”, disponível em < www.cnj.jus.br/qk2d > ou< http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira >; acesso em 11 nov. 2014.

9 Disponível em < http://bit.ly/icpstotal > ou< http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total >; acesso em 11 nov. 2014.

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II.2 CUIDADOS INICIAIS NA DISCUSSÃO

Alguns cuidados preliminares são relevantes para a correta

condução do debate neste processo.

II.2.1 A Armadilha Terminológica

Inicie-se pela observação da impropriedade da denominação

corrente no Brasil do tema deste processo, como sendo “controle

judicial de políticas públicas”. Malgrado seu emprego na praxe

forense e na doutrina permita individualizar o assunto, não parece

ser a melhor designação do problema. Não se trata apenas de

discussão em torno de palavras.

O aparente caráter anódino dessa nomenclatura dá de barato

que o tema pertence, com exclusividade, ao âmbito da política, do

qual o Ministério Público e Judiciário se devem afastar, porque

dotados de legitimidade técnica, mas não da eleitoral.10

Imperceptivelmente se transmite a ideia de que essa espécie de

discussão pertenceria apenas ao Executivo e ao Legislativo.

O erro lógico implícito a tal designação da controvérsia é

claro: tem-se aí petição de princípio, pois o caráter político – e não

jurídico – de determinado tema só pode resultar de sua análise, e

não ser seu ponto de partida.

10 Para a distinção entre ambas, cf. LUIS PRIETO SANCHIS apud INOCÊNCIO

MÁRTIRES COELHO (Interpretação constitucional. 2. ed., Porto Alegre: SergioAntonio Fabris, 2003, p. 86), acerca da legitimidade judicial comoaquisição decorrente do modo pelo qual se exerce a jurisdição e dosmecanismos de controle.

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Decorre daí necessidade de estabelecer critério por cujo

meio se delimitem os campos do direito e da política. Além de

escrito forense não ser local para resolver problema de tal

complexidade, o caráter prático da jurisdição indica necessidade de

fixar o parâmetro referido apenas no que diz respeito às exigências

do caso, isto é, de demarcar a licitude do controle judicial das

condições materiais de presídio.

II.2.2 Necessidade de Critério para Evitar

o Impasse da Nomenclatura

O pedido formulado na ação felizmente recorta, no extenso

domínio dos programas condicionais e dos finalísticos da

Constituição de 1988, o âmbito do debate e sua causa de pedir.

Com isso se tem definida a espécie de título jurídico capaz de

legitimar a iniciativa do Ministério Público e a decisão judicial

neste âmbito.

A configuração de casos desta espécie dispensa indagar se as

normas relativas aos fins estatais e aos objetivos da República,

assim como se as impositivas do dever de legislar, permitem que o

comportamento do Executivo e do Legislativo seja avaliado pela

revisão judicial clássica, isto é, realizada fora do controle abstrato de

inconstitucionalidade por omissão.11

11 Para tipologias, vejam-se, por exemplo, ROBERT ALEXY, Theorie derGrundrechte, 1. Aufl., Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1994, p. 456-457; e J. J.GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:Coimbra Editora, 1982, p. 374-375.

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À solução do problema, basta verificar se direito fundamental

incide na situação de fato. A incidência de direito fundamental no

domínio examinado tem como consequência direta transformar a

discussão em jurídica, não mais submetida apenas – ou nem

preponderantemente – ao domínio da política. Entendimento

contrário privaria os direitos fundamentais do caráter de direitos

subjetivos e, portanto, do sentido imposto pelo art. 5o, § 1o, da CR.

Em termos históricos, a alternativa implicaria regresso a momento

anterior ao séc. XIX, quando os direitos fundamentais eram

oponíveis, ao menos, à administração pública, na forma da lei.12 Na

prática, a opção privaria tais direitos até dessa qualidade.13

Ainda que merecesse ser reconduzido à lógica dos direitos

12 Entre tantos, cf. RALF ALLEWELDT. Bundesverfassungsgericht undFachgerichtsbarkeit. 1. Aufl. Tübingen: Mohr, 2006, p. 35.

13 KRELL, ANDREAS J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 23. LUÍS ROBERTO BARROSO rememora a exigibilidade judicial da pretensãocomo elemento definidor dos direitos fundamentais e prossegue:“modernamente já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, aexigibilidade e a acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua múltiplatipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que aindahoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais.Também os direitos políticos e individuais enfrentaram [...] a reaçãoconservadora, até sua final consolidação” (O direito constitucional e aefetividade de suas normas. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 100-101 e102).Após criticar as categorias de normas programáticas como o “limboconstitucional”, CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA observa: “[...] sendo oEstado um dos maiores agressores aos direitos fundamentais haveria umaantinomia em deixar que apenas ele definisse quando e como cumprir asnormas constitucionais nas quais eles são declarados e segundo as quaistêm que ser assegurados” (O constitucionalismo contemporâneo e ainstrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. In: Revistatrimestral de Direito Público. Malheiros, 1996, v. 16, p. 38-58, p. 46 e 54).

15

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sociais a prestações, como advoga a entidade pública, não se

poderia opor à ação do MP e à sentença o obstáculo da intrusão

na seara política. Vale, para a Constituição brasileira, a conclusão de

CANOTILHO a respeito da homóloga portuguesa: “é líquido que as

normas consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais

da Constituição Portuguesa de 1976 individualizam e impõem

políticas públicas socialmente activas”.14

Tal entendimento vige no Brasil, por força do art. 5o, § 1o, da

CR, apesar de sua inserção no capítulo dos direitos individuais,

aparentemente sugestiva de restrição que, contudo, destoa do teor

do enunciado; do sistema constitucional, tendo em vista que os

direitos políticos e os relativos à cidadania seriam assim privados

de efeito imediatos;15 e, afinal, parece dever-se apenas ao fato de a

Constituição não possuir normas gerais sobre o regime dos

direitos e garantias fundamentais, ao contrário do que ocorre no

direito comparado.16

O Ministro CELSO DE MELLO bem ponderou em ação de

descumprimento de preceito fundamental:

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito dasfunções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Su-

14 Cf. J. J. GOMES CANOTILHO (Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed.Coimbra: Almedina, 2003, p. 409), ainda que o autor mencionado sublinheo caráter discutível, na ordem lusa, da exigibilidade direta de tais direitos, apartir da Constituição (p. 408).

15 SARLET, INGO WOLFGANG, A eficácia dos direitos fundamentais, 12. ed., PortoAlegre: Livraria do Advogado, 215, p. 269.

16 Citem-se, por exemplo, as Constituições de Portugal (arts. 16-18) e daEspanha (art. 53) e, apenas em relação às limitações dos direitosfundamentais, a Lei Fundamental alemã (art. 1o e 19).

16

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prema Corte, em especial – a atribuição de formular e deimplementar políticas públicas [...] pois, nesse domínio, oencargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo eExecutivo. Impende assinalar, contudo, que a incumbênciade fazer implementar políticas públicas fundadas na Consti-tuição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, aoJudiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, pordescumprirem os encargos político-jurídicos que sobre elesincidem em caráter vinculante, vierem a comprometer, comtal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos in-dividuais e/ou coletivos impregnados de estatura constituci-onal, como sucede na espécie ora em exame.17

II.2.3 Impossibilidade de Soluções Absolutas

em Toda Revisão Judicial sobre Direitos Fundamentais

O terceiro cuidado a tomar consiste em não ceder à tentação

de simplificar artificialmente o problema, oferecendo-lhe solução

de caráter disjuntivo absoluto: ou o Judiciário sempre pode

determinar ao Estado a adoção de todas as providências para o

cumprimento de direitos em todas as suas virtualidades ou, ao

reverso, nunca pode fazê-lo.

Muito embora um acórdão do STF, sobretudo se proferido

em processo dotado de repercussão geral, tenda naturalmente a ser

norte nos casos a respeito da licitude da atuação do Ministério

Público e do Judiciário para compelir o Executivo a providências

alheias àquilo que para si traçou, o resultado a que se chegar neste

debate tem raio de ação limitado a processos relativos ao sistema

17 STF. Plenário. MC na ADPF 45/DF. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. Decisãomonocrática, 29/4/2004. DJ, 4 maio 2004, p. 12; RTJ, vol. 200(1), p. 191;Informativo STF, 345/2004.

17

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prisional, ainda assim nos aspectos versados no caso.

Tal é a amplitude da gama de normas constitucionais

brasileiras em que se estabelecem programas condicionais e

finalísticos, de variadas densidades normativas, que seria arriscado

transpor, sem mais, entendimento firmado a respeito de um

domínio da Constituição para outro de seus campos. Ela regula,

nem sempre apenas em traços elementares, áreas tão diversas como,

de um lado, aspectos da execução penal e, de outro, os direitos

sociais de “educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer,

segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância,

assistência aos desamparados”, para ficar apenas nas grandes áreas

temáticas do art. 6o da CR.18

Especificidades normativas e mesmo dos diversos domínios

constitucionais podem determinar soluções diferentes. Recorde-se,

apenas exemplificativamente, a diferença estrutural entre o art. 3o,

III, que fixa a erradicação da pobreza como objetivo da República,

e o art. 208, §§ 1o e 2o, da CR, que qualifica o acesso ao ensino

obrigatório e gratuito como “direito público subjetivo”, e cujo

descumprimento sanciona com responsabilidade da autoridade

obrigada a fornecê-lo. O problema destes autos oferece, aliás, boa

18 Para classificação da diversidade estrutural dos direitos sociais da LeiFundamental, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 456-457. Entre nós, cf., porexemplo, KRELL, ob. cit. na nota 13, p. 54, e SARLET, especificamente sobre aimpossibilidade de generalização de conclusões combatida no texto: “oobjeto dos direitos sociais a prestações (em última análise, o conteúdo daprestação) dificilmente poderá ser estabelecido e definido de formal geral eabstrata, necessitando de análise calcada nas circunstâncias específicas decada direito fundamental que se enquadre no grupo em exame” (ob. cit. nanota 15, p. 292).

18

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amostra de como as características de determinadas normas

influem na possibilidade e na intensidade da intervenção de ambas

as instituições, em temas da espécie.

Daí, por exemplo, os rumos da jurisprudência alemã retratada

por KRELL: “ao mesmo tempo [em que reconheceu o direito

fundamental ao mínimo existencial], a Corte [Constitucional

Federal] deixou claro que esse ‘padrão mínimo indispensável’ não

poderia ser desenvolvido pelo Judiciário como ‘sistema acabado de

solução’, mas através de uma ‘casuística gradual e cautelosa’”.19

II.3 A ÓTICA DOS DIREITOS SOCIAIS

O pedido formulado nesta ação requer realização de obras de

índole civil em estabelecimento penal, porque seria a forma de

garantir até a integridade física dos cidadãos que ali se encontram

presos.

Algumas manifestações jurídicas sobre o tema dispensam

tratamento dogmático equivocado ao objeto do processo: utilizam

instrumental teórico dos direitos fundamentais sociais, embora, na

verdade, disso não se cuide aqui.

II.3.1 Crítica à Estrutura das Teses de Defesa

A estrutura da defesa revela que sua premissa maior é a

suposta disputa, no caso, por direito social. Congruentemente com

19 Ob. cit. na nota 13, p. 61-62.

19

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isso, invocam-se os dois argumentos típicos a respeito das

dificuldades na implementação dos direitos a prestações,

sintetizados no art. 6o da Constituição e desenvolvidos em outras

de suas normas. Assevera-se, de um lado, que a tarefa de estipular

alocação de recursos públicos por meio dos quais se satisfazem

prestações estatais representaria espaço de discricionariedade

legislativa no orçamento e executiva em seu implemento. De

outro lado, tais prestações encontrariam limite material na “reserva

do possível”. Desse modo, apenas órgãos investidos de legitimidade

eletiva poderiam fazer as supostas opções requeridas pelos diversos

interesses em causa.

Esse modo de raciocinar corresponde, por inteiro, àquilo que

a doutrina tem assinalado como as objeções mais complexas aos

direitos sociais.20 Ilustrativa é a seguinte passagem de CANOTILHO

acerca dos aspectos gerais, mas não inexoráveis, das duas grandes

categorias de direitos fundamentais:

Concretamente, o problema das relações da lei e dos direitosfundamentais reconduz-se a dois esquemas nucleares:

1 – Direitos de liberdade = direitos de defesa → pretensão aomissão dos poderes públicos.

2 – Direitos sociais, econômicos e culturais → pretensão auma acção legislativa (ou de outros poderes públicos).21

Se, no exterior, tais problemas desaconselharam a inclusão

expressa de direitos sociais em diversas constituições, semelhantes

argumentos são muitas vezes declinados, no Brasil, como meio de

20 Cf., por exemplo, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 461 e segs.21 Ob. cit. na nota 14, p. 364.

20

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paralisação da atividade de seu controle pelo Judiciário, apesar de

sua positivação inequívoca, cujas consequências jurídicas, é certo,

podem ser discutidas.22 A recepção incondicional dos óbices

estrangeiros em nossa ordem reflete recepção acrítica de

pressupostos normativos alheios.23

Independentemente da transposição inadequada de premissas

mal colhidas no direito estrangeiro para esta espécie de caso,

interessa verificar se este envolve direito fundamental a prestações

e se as objeções mais gerais relativas à concretização de direitos

sociais têm pertinência estrita à discussão.

II.3.2 Premissa Maior Equivocada: Direito de Defesa,

Não Direito Fundamental a Prestações

O problema comum às teses do poder público em causas

relativas a melhoras do sistema prisional está no engano de sua

premissa maior: o caso não põe em pauta direitos fundamentais a

prestações, mas especialmente um direito de defesa.

A assimilação do litígio à busca do implemento de políticas

públicas tendentes à outorga de prestações sociais a pessoas

encarceradas está equivocada, pois se trata – antes de mais nada –

da proteção do clássico direito de defesa do art. 5o, XLIX, da

Constituição, que assegura aos presos respeito à integridade física e

22 Cf., por todos, NEVES, MARCELO. A constitucionalização simbólica. São Paulo:Acadêmica, 1994, p. 83, 92, 110 e 153 e segs.

23 A demonstração pormenorizada desse erro de suposto direito comparado,inclusive nos pressupostos sociais diversos entre o Brasil e a Alemanha, porexemplo, é o tema da monografia de KRELL, ob. cit. na nota 13.

21

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moral. Isso, como se verá, faz toda a diferença no tratamento da

questão, que não se reconduz primordialmente à estrutura e aos

problemas postos pelos direitos sociais do texto de 1988.

A demonstração de que se controverte acerca de direito de

defesa deve principiar pelo afastamento do erro de supor que a

mera presença de prestações estatais, como melhora das condições

de prisões, implique sempre presença de direitos sociais.

Tampouco, ao reverso, é acertada a equiparação de direitos de

defesa a meras omissões estatais. Embora tal esquema reproduza o

núcleo dessas definições,24 subsistem exceções. “Ocasionalmente

um direito fundamental parece deferir um direito a prestação, no

qual, entretanto, o direito à prestação é, na realidade, apenas uma

consequência jurídica do direito de defesa”, notam PIEROTH e

SCHLINK,25 Exemplo corrente na doutrina comparada é a

expedição de autorização administrativa para certas atividades:

embora o exercício do direito fundamental de liberdade

econômica requeira eventualmente algum ato do Estado, sob a

forma da autorização, não é o aspecto juridicamente decisivo.26

24 Cf. a nota 21.25 PIEROTH, BODO; SCHLINK, BERNHARD, Grundrechte Staatsrecht II, 26. ed.,

Heidelberg: Müller, 2010, p. 23, no 80: “Gelegentlich scheint einGrundrecht ein Leistungsrecht zu geben, wobei aber das Leistungsrechtnur eine Rechtsfolge des Abwehrrechts ist”. Daí a doutrina diferenciarentre as funções primárias e secundárias ou principais e auxiliares dosdireitos fundamentais; nesse sentido, por exemplo, JARASS, HANS D.Funktionen und Dimensionen der Grundrechte. In: MERTEN, DETLEF;PAPIER, HANS-JÜRGEN. Handbuch der Grundrechte. Heidelberg: CF Müller,2006, Band 2, § 38, p. 625-654 (627, no 6); e SACHS, MICHAEL.Abwehrrecht. In: MERTEN & PAPIER, Handbuch der Grundrechte. ob. cit.,Band 2, § 39, p. 655-659 (659, no 8).

26 PIEROTH & SCHLINK, ob. cit. na nota 25, p. 23, no 81, e BOROWSKI,

22

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Ao menos dois critérios podem ser declinados para

classificação da função preponderante de certo direito

fundamental: o parâmetro material e o formal, como esclarece

BOROWSKI.27 O critério material decorre da diferença entre a

liberdade natural das pessoas e as demais situações jurídicas

asseguradas pelos direitos fundamentais.28 Já o padrão formal

considera apenas a espécie de pretensão exercitável, não seu

fundamento, de modo que os direitos de defesa garantem

abstenções, enquanto os direitos a prestações asseguram

comportamento positivo do Estado.29

Esse autor defende a prevalência do critério material, porque

assim a “argumentação substancial” ocupa o primeiro plano, em

detrimento da consideração da “consequência jurídica aleatória”

desencadeada pelo direito em causa.30 Acresça-se que o sentido

histórico e teleológico dos direitos individuais é o

reconhecimento da liberdade dos seres humanos, desdobrada em

suas diversas facetas de defesa. Nessa perspectiva, a função de

anteparo da esfera individual contra agressões difere-a das

prestações historicamente ligadas ao Estado de bem-estar social ou,

pelo menos, às nações comprometidas com garantias do mínimo

existencial a seus integrantes em situação econômica aflitiva.

Recupere-se, por isso, a ideia central dos direitos

MARTIN, Grundrechte als Prinzipien, 2. Aufl., Baden-Baden: Nomos, 2007, p.213.

27 Ob. cit. na nota 26, p. 213-214.28 Idem, p. 213-214.29 Idem, p. 222.30 Idem, p. 224.

23

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contrapostos, na síntese de BOROWSKI: “enquanto direitos de defesa

no sentido clássico garantem liberdade jurídica, os sociais visam à

liberdade fática. [...] Direitos fundamentais sociais dirigem-se a

prestações financeiras ou materiais, que possibilitam gozo das

liberdades jurídicas como liberdade fática”.31

Por definição, indivíduos presos são titulares de diminuta

liberdade jurídica, mas nula de fato. Portanto, não faz sentido dizer

que a melhora das condições materiais de estabelecimentos

penitenciários se reconduz à categoria dos direitos sociais. Por

meio do aperfeiçoamento do sistema prisional, não se aumenta

nenhuma liberdade, mas apenas se aprimoram as condições sob as

quais alguém é custodiado pelo Estado, por decisão deste. Logo, de

direito social não se pode cuidar. Trata-se, antes, do direito de

defesa dos detentos de não serem encarcerados em condições

atentatórias a sua integridade moral e física. Tem-se aí, na verdade,

curto raio de liberdade jurídica, a ser respeitado pela clássica

omissão estatal, como é típico dos direitos clássicos de defesa: não

ser preso em condições lesivas.

A redação do art. 5o, XLIX, da CR pode dificultar sua visão

como direito de defesa, porquanto nele se dispõe que “é

assegurado aos presos respeito à integridade física e moral”, ao

invés de determinar que o Estado não atentará contra a

31 BOROWSKI, ob. cit. na nota 26, p. 341: “Während Abwehrrechte inklassischen Sinne rechtliche Freiheit gewähren, zielen soziale Grundrechtteauf faktische Freiheit. [...]. Soziale Grundrechte zielen auf finanzielle odersachliche Leistungen, die dem einzelnen die Wahrnehmung rechtlicherFreiheiten, faktische Freiheit ermöglichen”.

24

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integridade dos detentos. A diferença de redação não implica

transformação da índole do direito. Parece hoje assentado que

norma jurídica não se confunde com seu enunciado.32 Daí ser

indiferente que o enunciado do inc. XLIX tenha sido concebido

em termos positivos, ao invés de negativos. Nem sempre um

direito de defesa se expressa por meio de enunciado que imponha

abstenções estatais; também pode resultar de proibições33 ou até do

emprego de fórmulas similares às das ciências naturais para

descrição de evidências denotadas pelo presente durativo, como se

vê no art. 5o, I, da CR. Além de essa norma se inscrever entre os

direitos individuais do art. 5o e não nos direitos sociais do art. 6o e

encontráveis em outros tópicos da Constituição, o principal está na

função desse direito. Não há, aí, ordem para que se prendam

pessoas e, depois, passe o Estado a aportar-lhes prestações diversas,

32 Tal conclusão se lê em ALEXY e em FRIEDRICH MÜLLER, aqui lembradosexemplificativamente, porque nem a disparidade de seus modelos lhesimpede de ver essa realidade. Mesmo alinhado à corrente maisconservadora no particular, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 43, recorda: “quese deve distinguir entre enunciado normativo e norma, já que se podereconhecer no fato de que a mesma norma se deixa exprimir pordiferentes enunciados” (“Daß zwischen Normsatz und Norm zuunterscheiden ist, läßt sich daran erkennen, daß dieselbe Norm durchverschiedene Normsätze ausgedrückt werden kann”). Também MÜLLER

nota: “já se demonstrou de muitas formas que uma norma jurídica é maisdo que o texto normativo. [...]. Apenas [...] do trabalho com todos osdados linguísticos [do texto normativo] o operador do direito obtéminicialmente o programa normativo, tradicionalmente entendido como‘comando jurídico’” (“Es hat sich mehrfach gezeigt, daß eine Rechtsnormmehr ist als der Normtext. [...]. Erst aus der Bearbeitung des Normtextes,mehr noch: aus der Verarbeitung sämtlicher Sprachdaten gewinnt derRechtsarbeiter zunächst das Normprogramm, den herkömmlich soverstandenen ‘Rechtsbefehl’” - Juristische Methodik, 7. Aufl., Berlin:Duncker & Humblot, 1997, p. 172 e 173, no 230 e 232.

33 Exemplificativamente no direito comparado, SACHS, ob. cit. na nota 25, p.659, no 8).

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como se tratasse de oferecer aos presos direitos sociais similares aos

devidos a quem esteja em liberdade. A diferença reside, antes de

tudo, na ausência completa do propósito de aumentar a liberdade

fática dos presos, para que possam gozar seus direitos de liberdade

jurídica, como é típico dos direitos sociais à saúde e ao trabalho,

por exemplo.

Em adição aos elementos estruturais e sistemáticos desse

direito, invoque-se ainda o critério histórico da sedimentação dele,

para se perceber ser típico exemplar da categoria de defesa.

Examinando os pactos ingleses, KRIELE escreveu: “a proteção contra

a detenção e a persecução penal arbitrárias é o direito fundamental

originário, a raiz da liberdade. Pois sem esse direito fundamental o

homem está permanentemente ameaçado; todo tipo de expressão

ou atividade espiritual, política, religiosa ou de outro tipo pode

custar-lhe a liberdade pessoal; o medo obriga-o a fechar a boca.

[...] A proteção contra detenção arbitrária é, pois, não só

historicamente, mas também materialmente, a mãe de todos os

direitos fundamentais”34. Já no plano do direito nacional, basta

lembrar que o direito em causa tem antecedente no art. 179, XXI,

da Constituição de 1824, da qual estavam ausentes direitos sociais:

“as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas

34 KRIELE, MARTIN, Introducción a la teoria del Estado. Buenos Aires: Depalma,1980, p. 209; entre nós, cf., por todos, ORLANDO BITAR, para demonstraçãoanalítica da síntese de KRIELE, com base em estudos da Magna Carta e deoutros documentos ingleses da liberdade (A lei e a constituição. In: _____.Obras completas. Conselho Federal de Cultura, v. 2, p. 13-209 (p. 110-111); eFontes e essência da Constituição britânica. In: _____. Obras completas.Conselho Federal de Cultura, vol. 2, p. 259-316 (266 e segs.).

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casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e

natureza dos seus crimes”. Em suma, o direito a não ser submetido

a situações atentatórias à integridade física e moral em

estabelecimentos penais tem estrutura aproximada ao direito a não

ser preso por motivo arbitrário, de que, aliás, constitui

desdobramento humanitário.

Resta ver o que juridicamente decorre de litigar-se aqui

sobre direito fundamental de defesa, em termos de sua

exigibilidade por meio judicial.

II.3.3 Consequências do Direito Fundamental de Defesa

à Integridade Física e Moral de Cidadãos Presos

Após recordar que a exigibilidade judicial dos direitos de

defesa, por implicarem atos negativos, sempre oferece menos

problemas do que os postos pelos direitos a prestações, ALEXY

explica o motivo disso, em termos de estrutura dos direitos

contrastados. “Enquanto para satisfação de mandados de proteção

ou de fomento, como de modo geral de todos os direitos a

prestações, a adoção de apenas uma ação protetiva ou de fomento

é suficiente”, a abstenção de cada comportamento de supressão ou

de constrição dos direitos de defesa é condição necessária a seu

respeito, mas apenas a omissão de todas as condutas dessa espécie

se mostra suficiente para atender à proibição de sua destruição ou

constrição.35

35 ALEXY, ob cit. na nota 11, p. 421: “Der Grund für den Unterschied liegt tiefer.Er besteht darin, daß die Unterlassung jeder einzelnen Zerstörungs- und

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As implicações da diferença estrutural entre direitos de defesa

e direitos sociais no caso são importantes. É equivocado enquadrar

a causa como avanço do Ministério Público e do Judiciário no

campo das opções legislativas e executivas para concretizar direitos

fundamentais sociais, pois aos órgãos da representação popular

cabe a escolha de meio adequado para resolução do impasse. O

motivo do engano está em que a função principal do direito de

defesa discutido impõe total abstenção da manutenção de

condições lesivas à integridade física e moral de pessoas presas. O

Estado não se desincumbe de seus deveres constitucionais por

satisfação parcial, isto é, pela omissão de um ou de alguns dos

vários meios de se prejudicarem os bens protegidos pelo art. 5o,

XLIX, da CR, mas apenas quando se omitir em todas as

modalidades agressivas das faculdades dele decorrentes.

Segue-se disso o erro do ponto de vista de que o direito em

causa não seria exigível em juízo, por depender de opções

interditadas ao Ministério Público e ao Judiciário. Especialmente

por se tratar de direito fundamental de defesa, não existe opção

legislativa ou executiva de omissão parcial de comportamentos

danosos à integridade dos detentos. Presos têm direito a obter do

Estado comportamento negativo, em relação a todas as omissões

Beeinträchtigungshandlungen eine notwendige Bedingung und erst dieUnterlassung aller Zerstörungs- und Beeinträchtigungshandlungen einehinreichende Bedingung für die Erfüllung des Zerstörungs- undBeeinträchtigungsverbot und damit für die Erfüllung des Abwehrrechts ist, währendzur Erfüllung von Schutz- oder Förderungsgeboten, wie ganz allgemein für dieErfüllung von Leistungsrechten, die Vornahme nur einer geeigneten Schutz- oderFörderungshandlung hinreichend ist”.

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nesse campo de defesa: se o Estado deseja encarcerar alguém, deve

fazê-lo de modo que não afete aquele direito subjetivo

fundamental, em todas as suas facetas.

Talvez em função das limitações processuais do recurso

extraordinário, o tema tem sido discutido no Supremo Tribunal

Federal sob o aspecto da responsabilidade civil das entidades de

direito público em decorrência de lesões a direitos de detentos. O

Tribunal tem garantido em todos os casos indenizações; em alguns

deles como decorrência do direito fundamental aqui discutido.

Quer em casos nos quais se configuram agressões de determinado

preso por outro, quer até nos de suicídio, o reconhecimento da

responsabilidade civil pelo STF parece pressupor o direito

subjetivo incontrastável de integridade física e moral.36

II.3.4 Análise do Caso à Luz da Premissa Correta

O acórdão recorrido merece ser reformado, porque

encampou tese nula, qual seja, da impossibilidade de o Judiciário

verificar se o comportamento do Estado ofende o direito

fundamental de integridade dos presos, determinando que se

adotem as medidas necessárias à superação de estado de

36 STF. RE 215.981. Rel.: Min. NÉRI DA SILVEIRA; AI 603.865, rel.: Min.CÁRMEN LÚCIA; RE 458.618 AgRg, rel.: Min. RICARDO LEWANDOWSKI; ARE700.927 AgR, rel.: Min. GILMAR MENDES. A conclusão defendida no textoparece válida mesmo em relação aos julgados em temas processuais, comoos da súmula 279 do STF, pois eventual inexistência do direito em causa e,sobretudo, do dever estatal excluiria a responsabilidade nestes casos, aindaque indiscutível a existência da lesão, a qual não se poderia reputar danojurídico.

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desrespeito dos deveres públicos dele decorrentes.

A sentença da Juíza de Direito CRISTINA LOPES NOGUEIRA,

aliás, chegou a considerar a ótica aqui exposta, ao registrar, por

exemplo, que “não se pode consentir que o Estado, que deveria ser

o maior guardião de nossos direitos constitucionais, quede-se

inerte diante de situação tão crítica, na qual o direito à vida e à

saúde de presos e dos funcionários resta ameaçado” (volume 2,

folha 332).

II.4 INADEQUAÇÃO DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL

Ainda que se examine o problema prevalentemente sob o

prisma do dever estatal de implantação de políticas públicas,

também deve ser o recurso provido, até porque, neste caso, se trata

de desdobramento do dever estatal de respeito aos direitos

fundamentais, de que até aqui se tratou.

O artigo 1o da Constituição Federal estabelece que a

República Federativa do Brasil constitui-se em Estado

Democrático de Direito e possui como um de seus fundamentos a

dignidade do ser humano.37 Significa isso que o poder constituinte

originário elegeu a dignidade da pessoa como finalidade e a

própria razão de existir do Estado Brasileiro. Trata-se de “princípio

(e valor) fundamental, que deve servir de norte ao intérprete, ao

37 “Art. 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúveldos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos: [...]III – a dignidade da pessoa humana; [...]”.

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qual incumbe a missão de assegurar-lhe a necessária força

normativa”.38

A dignidade do ser humano possui dupla dimensão, negativa

e positiva, as quais impõem, ao mesmo tempo, limitações e tarefas

ao Estado e à sociedade, conforme bem explica INGO SARLET:

Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoanão pode ser reduzida à condição de mero objeto da açãoprópria e de terceiros, como também o fato de que a digni-dade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que aviolem ou a exponham a graves ameaças, sejam tais atosoriundos do Estado, sejam provenientes de atores privados.Como tarefa, a dignidade implica deveres vinculativos de tu-tela por parte dos órgãos estatais, com o objetivo de protegera dignidade de todos, assegurando-lhes, também por meio demedidas positivas (prestações), o devido respeito e promoção,assim como decorrem deveres fundamentais (inclusive de tu-tela) por parte de outras pessoas.39

Proteção e promoção da dignidade do ser humano norteiam,

portanto, todo o ordenamento constitucional, e servem de guia

para a atuação estatal e para concretização de diversos direitos

fundamentais, entre os quais se encontra o direito dos presos ao

respeito à integridade física e moral, segundo a previsão explícita

da Carta Política:

Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liber-dade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termosseguintes: [...]

38 SARLET, INGO W. Comentário ao artigo 1o, III. In: CANOTILHO, MEN-DES & STRECK. Comentários à Constituição do Brasil. Obra citada, p. 124.

39 SARLET, INGO W. Idem, p. 125.

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XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade fí-sica e moral; [...].

O art. 5o, XLIX, da Constituição da República consubstancia

direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos

termos do § 1o do mesmo dispositivo,40 isto é, independentemente

de lei.41 É certo que a diversidade de direitos fundamentais e seus

diferentes níveis de complexidade resultam, no plano da realidade,

em graus distintos de aplicabilidade das normas. Mesmo os direitos

fundamentais que demandam prestação do Estado, contudo, devem

ser protegidos e garantidos pelos entes estatais sempre no sentido

de atribuir-lhes máxima eficácia e efetividade:

[...] Nesta perspectiva, por terem direta aplicabilidade, asnormas de direitos fundamentais terão a seu favor pelo me-nos uma presunção de serem sempre também de eficáciaplena, portanto, não dependentes de uma prévia regulamen-tação legal, destacando-se, por oportuno, que a plena eficáciaaqui não vai tomada no sentido da impossibilidade de seremestabelecidos limites aos direitos fundamentais. Em termospragmáticos, um direito fundamental não poderá ter suafruição negada pura e simplesmente por conta do argumen-to de que se trata de direito positivado como norma progra-mática e de eficácia meramente limitada, pelo menos não nosentido de que o reconhecimento de uma posição subjetivase encontra na completa dependência de uma interposiçãolegislativa.42

40 “Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-dade, nos termos seguintes: […]§ 1o. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm apli-cação imediata.”

41 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.178.

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Desse modo, direitos fundamentais de conteúdo

programático também são de observância obrigatória e possuem

eficácia vinculante, não contêm meras promessas ou declarações.

GOMES CANOTILHO, aliás, defende que se deve abolir a ideia

tradicional de normas constitucionais meramente programáticas:

Precisamente por isso, e marcando uma decidida ruptura emrelação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da “morte”das normas constitucionais programáticas. Existem, é certo,normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que impõem,uma actividade e dirigem materialmente a concretizaçãoconstitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assi-nalado pela doutrina tradicional: simples programas, exorta-ções morais, declarações, sentenças políticas, aforismospolíticos, promessas, apelos ao legislador, programas futuros,juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Àsnormas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídicoconstitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos daconstituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia pro-gramática (ou directiva), porque qualquer norma constituci-onal deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãosdo poder político (CRISAFULLI). Mais do que isso: a eventualmediação concretizadora, pela instância legiferante, das nor-mas programáticas, não significa que este tipo de normas ca-reça de positividade jurídica autónoma, isto é, que a suanormatividade seja apenas gerada pela interpositio do legisla-dor; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas pro-gramáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãoslegiferantes. Concretizando melhor, a positividade jurí-dico-constitucional das normas programáticas significa fun-damentalmente: (1) vinculação do legislador, de formapermanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vin-culação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendoestes tomá-las em consideração como directivas materiais per-manentes, em qualquer dos momentos da actividade concreti-zadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na

42 SARLET, INGO W. Comentário ao artigo 1o, III. In: CANOTILHO, MEN-DES & STRECK. Comentários à Constituição do Brasil. Ob. cit., p. 515.

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qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públi-cos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconsti-tucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.43

Foi nesse sentido, igualmente, a orientação firmada pela Se-

gunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de

agravo regimental no RE 271.286/RS:

PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDADE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA EÀ SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE ME-DICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DOPODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5o, CAPUT, E 196) –PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IM-PROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTACONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCI-ÁVEL DO DIREITO À VIDA. – O direito público subjeti-vo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível asse-gurada à generalidade das pessoas pela própria Constituiçãoda República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucional-mente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneiraresponsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – eimplementar – políticas sociais e econômicas idôneas que vi-sem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores dovírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farma-cêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além dequalificar-se como direito fundamental que assiste a todas aspessoas – representa conseqüência constitucional indissociá-vel do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja aesfera institucional de sua atuação no plano da organizaçãofederativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao pro-blema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda quepor censurável omissão, em grave comportamento inconsti-tucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PRO-GRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EMPROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜEN-TE. – O caráter programático da regra inscrita noart. 196 da Carta Política – que tem por destinatários

43 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob.cit., p. 1.176-1.177.

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todos os entes políticos que compõem, no plano ins-titucional, a organização federativa do Estado brasi-leiro – não pode converter-se em promessa constitu-cional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,fraudando justas expectativas nele depositadas pelacoletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cum-primento de seu impostergável dever, por um gestoirresponsável de infidelidade governamental ao quedetermina a própria Lei Fundamental do Estado.DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS APESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial davalidade jurídica de programas de distribuição gratuita demedicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portado-ras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos funda-mentais da Constituição da República (arts. 5o, caput, e 196)e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reveren-te e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especial-mente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser aconsciência de sua própria humanidade e de sua essencialdignidade. Precedentes do STF.44

Portanto, ainda que se considere como de caráter

programático a norma insculpida no art. 5o, XLIX, da Constituição

da República, possui o Estado dever de conferir-lhe máxima

eficácia e efetividade. Visa ela a garantir, com fundamento no

princípio da dignidade do ser humano, condições minimamente

dignas (e nem isso hoje há, em muitos casos) de tratamento

àqueles que se encontrem privados de liberdade, tanto no aspecto

negativo, de limitação, quanto no positivo, de prestação. Não

bastasse a norma do art. 5o, III, da Constituição, que veda

tratamento desumano ou degradante a qualquer pessoa, o

constituinte originário instituiu preceito com destinatário

específico, o preso, a fim de assegurar-lhe efetivo respeito à

44 STF, 2a T., RE 271.286 AgR/RS. Rel.: Min. CELSO DE MELLO, 12/9/2000,unânime, DJ, 24 nov. 2000, sem destaque no original.

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integridade física e moral.

Entende-se por esse direito não só proteção contra violência

praticada por outros detentos e por agentes públicos quaisquer,

mas também prestação mínima de assistência material, sanitária,

jurídica, educacional, religiosa, social e psicológica. É certo que a

observância desse direito fundamental impõe gastos ao poder

público, o qual, muitas vezes, por limitação orçamentária, não

possui condições de destinar recursos suficientes a suprir todas as

demandas decorrentes do sistema prisional. Com não pouca

frequência, entes federativos invocam a reserva do possível para se

eximir dos deveres impostos pela ordem constitucional.

Todavia, dita cláusula não se pode aplicar, no caso.

Reconhece a doutrina constitucional que os direitos

fundamentais possuem núcleo intangível, que deve ser assegurado,

protegido e promovido pelos entes estatais. A repercussão disso é

que, mesmo diante de condições adversas, de limites financeiros ou

de colisão com outros direitos fundamentais, o conteúdo essencial

do direito fundamental deve ser preservado, sendo inaceitável sua

redução ou ponderação, pois isso significaria nulificar a própria

eficácia desse direito.

RICARDO LOBO TORRES, em obra específica dedicada ao

direito ao mínimo existencial, esclarece:

Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidadede sobrevivência do homem e desaparecem as condições ini-ciais da liberdade. A dignidade humana e as condições mate-riais da existência não podem retroceder aquém de um

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mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais eos indigentes podem ser privados.O mínimo existencial não tem dicção constitucional pró-pria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípiosconstitucionais da dignidade humana, da igualdade, do de-vido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dosDireitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cida-dão.45

Não se trata, portanto, de pretender regalias e privilégios para

pessoas presas, mas de assegurar-lhes o mínimo necessário à

manutenção da dignidade e de condições de sobrevida. Se o

Estado avoca exclusividade da aplicação legítima de sanção pelo

cometimento de infrações penais, como verdadeiro apanágio

civilizatório, não pode ao mesmo tempo afirmar não possuir

condições de ensejar condições básicas de dignidade àqueles aos

quais a privação de liberdade seja imposta.

De resto, o cumprimento desses deveres redunda não apenas

em benefício dos presos, mas no da própria sociedade, pois a

erradicação das condições degradantes de boa parte do sistema

carcerário brasileiro tende a reduzir a geração de violência, de

criminalidade e de reincidência nos egressos das unidades

penitenciárias.

II.5 NECESSIDADE E LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO

PODER JUDICIÁRIO NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A proteção do mínimo essencial dos direitos fundamentais

45 TORRES, RICARDO LOBO. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro:Renovar, 2009, p. 36.

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implica observância dos direitos básicos à vida, à liberdade, à

igualdade e à dignidade humana. Cabe ao poder público a

efetivação do padrão mínimo dos direitos fundamentais, de seu

conteúdo essencial e intangível, missão que não se encontra no

campo da discricionariedade do Executivo ou do Legislativo,

muito menos pode ser limitada pela cláusula da reserva do possível.

Repita-se: trata-se aqui do mínimo indispensável ao respeito da

vida, da integridade e da dignidade dos presos no sistema

carcerário brasileiro. Cuida-se de assegurar o mínimo para o

cumprimento da Constituição, das leis e dos compromissos

internacionais do país e para que este se possa considerar em

patamar civilizatório compatível com sua grandeza.

Acerca do tema da intervenção judicial na implantação de

políticas públicas, o Ministro CELSO DE MELLO, em decisão

monocrática na ADPF 45, bem observou:

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em talhipótese – mediante indevida manipulação de sua atividadefinanceira e/ou político-administrativa – criar obstáculo ar-tificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propó-sito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimentoe a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condi-ções materiais mínimas de existência. Cumpre advertir,desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” –ressalvada a ocorrência de justo motivo objetiva-mente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado,com a finalidade de exonerar-se do cumprimento desuas obrigações constitucionais, notadamentequando, dessa conduta governamental negativa, pu-der resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação

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de direitos constitucionais impregnados de um sen-tido de essencial fundamentalidade.46

Dessa maneira, respeitados certos limites e certo grau, é

cabível e pode ser até recomendável intervenção do Poder

Judiciário para adoção de políticas públicas que garantam a

intangibilidade do mínimo existencial dos direitos fundamentais,

de forma que a Carta Constitucional não se torne documento

inócuo, para que a força normativa da Constituição seja preservada

e para que o princípio da dignidade humana seja observado.47

RICARDO LOBO TORRES reconhece a relevância da atuação do

Poder Judiciário na garantia do direito ao mínimo existencial, sem

que isso implique violação ao princípio da divisão funcional do

poder, também conhecido como da separação dos poderes:48

46 STF, ADPF 45, rel.: Min. CELSO DE MELLO, 29/4/2004, decisão monocrá-tica, DJ, 4 maio 2004, sem destaque no original.

47 Sobre o fenômeno da judicialização de políticas públicas, LUIZA CRISTINA

FRISCHEISEN esclarece: “Esse processo de judicialização das demandas coleti-vas, que antes eram veiculadas tão somente pela via política através, porexemplo, das eleições e consequente atividade do Poder Legislativo, é con-sequência natural da positivação pelas Constituições dos direitos sociais.[...]Não se trata, portanto, de um Juiz Legislador ou da substituição do Execu-tivo pelo Judiciário, mas sim de um Juiz intérprete da Constituição Federal,que deve estar em sintonia com as demandas dos diversos setores da socie-dade em que vive e trabalha.” FRISCHEISEN, LUIZA CRISTINA FONSECA.Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. SãoPaulo: Max Limonad, 2000, p. 103.

48 É preferível denominá-lo de princípio da divisão funcional do poder, emlugar de “separação”, pois esta na realidade não há. Como disse o MinistroEROS GRAU em julgamento dessa Corte, “a separação dos poderes constituium dos mitos mais eficazes do Estado liberal” (STF. Plenário. ADI3.367/DF. Rel.: Min. CEZAR PELUSO. 13/4/2005, maioria quanto ao mérito.DJ, 17 mar. 2006, p. 4; republ. DJ, 22 set. 2006, p. 29; v. voto na fl. 269 dosautos). Em outro ponto, cita feliz consideração de Carlos Maximiliano emseus Comentários à Constituição brasileira: “Como no corpo do homem, não

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A superação da omissão do legislador ou da lacuna orça-mentária se realiza por instrumentos orçamentários, e jamaisà margem das regras constitucionais que regulam o orça-mento. Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, aabertura dos créditos adicionais cabe aos poderes políticos(Administração e Legislativo), e não ao Judiciário, que ape-nas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial e de-termina aos demais poderes a prática dos atos orçamentárioscabíveis. Na insuficiência da verba, o Executivo, desde queautorizado pelo Legislativo (art. 167, V, da CF), deve suple-mentá-la pressionado pelo Judiciário; não havendo dotaçãonecessária à garantia do direito, o Legislativo deve abrir cré-dito especial, providenciando a anulação das despesas corres-pondentes aos recursos necessários (art.166, § 3o, II e 167, V,da CF). O STF já decidiu assim diversas vezes.49

Também ANA PAULA DE BARCELLOS defende a possibilidade de

controle jurisdicional da observância pelo Executivo e pelo

Legislativo do mínimo existencial:

Desse modo, há, de um lado, um espaço normativo da digni-dade do que diz respeito àquele consenso mínimo e que, porisso mesmo, poderá ser objeto de amplo controle judicial.Controle esse – repita-se – cujo propósito não é apenas im-pedir que os enunciados normativos em questão sejam vio-lados, mas assegurar a produção dos efeitos por elepretendidos. Esse é o campo de trabalho do direito e da Jus-tiça Constitucional, não estando tais regras à disposição dadeliberação política.50

Destaque-se, a esse respeito, trecho do voto do Ministro

CELSO DE MELLO no julgamento de agravo regimental no RE

há no Estado isolamento de órgãos, e, sim, especialização de funções” (3.ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929, p. 304, citado na fl. 278 dosautos).

49 TORRES, RICARDO LOBO. O direito ao mínimo existencial. Ob. cit., p. 95-96.50 BARCELLOS, ANA PAULA DE. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 257.

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410.715/SP, em que se discutiu a obrigatoriedade de o poder

público prestar educação infantil por meio de creches e

pré-escolas:

É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel.Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF no 345/2004) – quenão se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institu-cionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, emespecial – a atribuição de formular e de implementar políti-cas públicas [...], pois nesse domínio, como adverte a dou-trina, o encargo reside, primariamente, nos PoderesLegislativo e Executivo. Impende assinalar, no entanto, que tal incumbência poderáatribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, see quando os órgãos estatais competentes, por descumpriremos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em ca-ráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comporta-mento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/oucoletivos impregnados de estatura constitucional, como su-cede na espécie ora em exame.[...]Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, so-ciais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidadede seu processo de concretização – depende, em grande me-dida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado àspossibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que,comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade eco-nômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá ra-zoavelmente exigir, então, considerada a limitação materialreferida, a imediata efetivação do comando fundado notexto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hi-pótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de inde-vida manipulação de sua atividade financeira e/oupolítico-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurávelpropósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabele-cimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos,

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de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF,Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF no 345/2004).51

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal possui inúmeros

julgados nos quais reconhece possibilidade de interferência do

Poder Judiciário para implementação de políticas públicas, quando

houver inadmissível inércia governamental, a enfraquecer a

supremacia da Constituição.52

No julgamento do agravo regimental no agravo de

instrumento 810.410/GO, relatado pelo Ministro DIAS TOFFOLI, a

Primeira Turma do STF confirmou atuação do Poder Judiciário

do Estado de Goiás para garantir segurança em estabelecimento de

custódia de menores:

Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucio-nal. Poder Judiciário. Determinação para implementação depolíticas públicas. Segurança pública. Destacamento de poli-ciais para garantia de segurança em estabelecimento de cus-tódia de menores infratores. Violação do princípio daseparação dos Poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. OPoder Judiciário, em situações excepcionais, podedeterminar que a Administração pública adote medi-das assecuratórias de direitos constitucionalmente re-conhecidos como essenciais sem que isso configureviolação do princípio da separação dos poderes. 2.Agravo regimental não provido.53

51 STF. 2a T. RE 410.715 AgR/SP. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. 22/11/2005,un. DJ, 3 fev. 2006.

52 STF. 1a T. RE 628.159 AgR/MA. Rel.: Min. ROSA WEBER. 25/6/2013, un.DJ eletrônico 159, 14 ago. 2013; STF. 1a T. AI 810.410 AgR/GO. Rel.: Min.DIAS TOFFOLI. 28/5/2013, un. DJe 154, 7 ago. 2013; STF. 1a T. AI 829.984AgR/RO. Rel.: Min. DIAS TOFFOLI. 14/5/2013, un. DJe 154, 7 ago. 2013;STF. 2a T. RE 581.352. AgR/AM. Rel.: Min. CELSO DE MELLO.29/10/2013. DJe 230, 21 nov. 2013.

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Recentemente, a Segunda Turma do STF firmou legitimi-

dade do Poder Judiciário para determinar aplicação de políticas

públicas relacionadas à instalação de defensoria pública estadual na

Comarca de Apucarana (PR). Confira-se trecho do acórdão:

[...] É lícito ao Poder Judiciário, em face do princípio da su-premacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional, me-didas destinadas a tornar efetiva a implementação depolíticas públicas, se e quando se registrar situação configu-radora de inescusável omissão estatal, que se qualifica comocomportamento revestido da maior gravidade político-jurí-dica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também des-respeita a Constituição, também ofende direitos que nela sefundam e também impede, por ausência (ou insuficiência)de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos pos-tulados e princípios da Lei Fundamental. Precedentes. Dou-trina. – A função constitucional da Defensoria Pública e aessencialidade dessa Instituição da República: a transgressãoda ordem constitucional – porque consumada medianteinércia (violação negativa) derivada da inexecução de pro-grama constitucional destinado a viabilizar o acesso dos ne-cessitados à orientação jurídica integral e à assistênciajudiciária gratuitas (CF, art. 5o, LXXIV, e art. 134) – autorizao controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Es-tado e permite aos juízes e Tribunais que determinem a im-plementação, pelo Estado, de políticas públicas previstas naprópria Constituição da República, sem que isso configureofensa ao postulado da divisão funcional do Poder. Prece-dentes: RTJ 162/877-879 – RTJ 164/158-161 – RTJ174/687 – RTJ 183/818-819 – RTJ 185/794-796, v.g.. Dou-trina.54

Em outra decisão (conquanto monocrática), o Ministro

GILMAR MENDES traçou ricas considerações acerca da possibilidade

53 STF. 1a T. AI 810.410 AgR/GO. Rel. Min. DIAS TOFFOLI. 28/5/2013, un.DJe 154, 7 ago. 2013, sem grifo no original.

54 STF. 2a T. AI 598.212 ED/PR. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. 25/3/2014, un.DJe 77, 23 abr. 2014.

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de o Poder Judiciário expedir ordem para que o Executivo

concretize determinadas políticas públicas, quando houver

mandamento constitucional expresso e se constatar inércia estatal

injustificada que ponha sob risco direitos fundamentais de especial

relevância.55 É certo que nesse caso se tratava de assegurar eficácia

a comandos constitucionais pertinentes à proteção integral da

55 Na suspensão de liminar 235/TO, sustentou o então Presidente da Corte:“[...] Nesse sentido, destaca-se a determinação constitucional de absolutaprioridade na concretização desses comandos normativos, em razão da altasignificação de proteção aos direitos da criança e do adolescente. Temrelevância, na espécie, a dimensão objetiva do direito fundamental àproteção da criança e do adolescente.Segundo esse aspecto objetivo, o Estado está obrigado a criar ospressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo deste direito.Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentaisnão contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote),expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria,assim, para utilizar uma expressão de CANARIS, não apenas uma proibiçãode excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteçãoinsuficiente (Untermassverbot) (CLAUS-WILHELM CANARIS,Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichenAnwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161).Nessa dimensão objetiva, também assume relevo a perspectiva dos direitosà organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren),que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, deprovidências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos eprocedimentos indispensáveis à sua efetivação.Parece lógico, portanto, que a efetividade desse direito fundamental àproteção da criança e do adolescente não prescinde da ação estatal positivano sentido da criação de certas condições fáticas, sempre dependentes dosrecursos financeiros de que dispõe o Estado, e de sistemas de órgãos eprocedimentos voltados a essa finalidade.De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de um espaço amplo dediscricionariedade estatal, situação fática indiscutivelmente repugnada pelasociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente porparte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano maisespecífico.[...]Nesse sentido, o argumento central apontado pelo Estado do Tocantinsreside na violação ao princípio da separação de poderes (art. 2o, CF/88),

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criança e do adolescente, cuja realidade e cujas normas,

naturalmente, não são as mesmas aplicáveis ao indivíduo preso.

Sem embargo das diferenças essenciais, há importante similitude

entre esses dois subsistemas, no que tange à existência de certos

direitos fundamentais a ambos aplicáveis e que são igualmente

beneficiários dos influxos do princípio da máxima efetividade das

formulado em sentido forte, que veda intromissão do Poder Judiciário noâmbito de discricionariedade do Poder Executivo estadual.Contudo, nos dias atuais, tal princípio, para ser compreendido de modoconstitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz darealidade constitucional brasileira, num círculo em que a teoria daconstituição e a experiência constitucional mutuamente se completam.[...]Ademais, a decisão impugnada está em consonância com a jurisprudênciadessa Corte, a qual firmou entendimento, em casos como o presente, deque se impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar condiçõesobjetivas que possibilitem, de maneira concreta, a efetiva proteção dedireitos constitucionalmente assegurados, com alta prioridade, tais como: odireito à educação infantil e os direitos da criança e do adolescente. Nessesentido, destacam-se os seguintes julgados: RE-AgR 410.715/SP, 2a T. Rel.CELSO DE MELLO, DJ 03.02.2006; RE 431.773/SP, rel. MARCO AURÉLIO, DJ22.10.2004.Do julgamento do RE-AgR 410.715/SP, 2a T. Rel. CELSO DE MELLO, DJ03.02.2006, destaca-se o seguinte trecho:[...]A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de todacriança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliaçõesmeramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina arazões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão,prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art.211, § 2o) – não poderão demitir-se do mandato constitucional,juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da LeiFundamental da República, e que representa fator de limitação dadiscricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujasopções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208,IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio emjuízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia dessedireito básico de índole social. – Embora resida, primariamente, nosPoderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executarpolíticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,

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normas constitucionais.

II.6 A EXPERIÊNCIA ESTADUNIDENSE

A imposição de políticas públicas pelo Poder Judiciário

mostrou-se essencial para transformação e reestruturação de

penitenciárias e até de sistemas prisionais estaduais nos Estados

determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipótesesde políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estasimplementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – porimportar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobreeles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer aeficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados deestatura constitucional.[...]’No presente caso, vislumbra-se possível proteção insuficiente dos direitosda criança e do adolescente pelo Estado, que deve ser coibida, conforme jádestacado. O Poder Judiciário não está a criar políticas públicas, nemusurpa a iniciativa do Poder Executivo.A decisão impugnada apenas determina o cumprimento de políticapública constitucionalmente definida (art. 227, caput, e § 3o) e especificadade maneira clara e concreta no ECA, inclusive quanto à forma de executá-la. Nesse sentido é a lição de CHRISTIAN COURTIS e VICTOR ABRAMOVICH

(ABRAMOVICH, VICTOR; COURTS, CHRISTIAN, Los derechos sociales comoderechos exigibles, Trotta, 2004, p. 251):

‘Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino lade confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicosaplicables y – en caso de hallar divergencias – reenviar la cuestión a los poderespertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia.Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseño depolíticas públicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida,corresponderá al Poder Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestiónpara que elaboren alguna medida. Esta dimensión de la actuación judicial puedeser conceptualizada como la participación en un <> entre los distintos poderesdel Estado para la concreción del programa jurídico-político establecido por laconstitución o por los pactos de derechos humanos.’ (sem grifo no original)

[...].Portanto, a determinação constitucional de absoluta prioridade naproteção dos direitos da criança e do adolescente (art. 227, CF/88)evidencia tanto a dimensão objetiva de proteção destes direitosfundamentais, quanto a proibição de sua proteção insuficiente pelo Estado

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Unidos da América. Na obra Judicial Policy Making and the Modern

State – How the Courts Reformed America's Prisons, MALCOLM M.

FEELEY e EDWARD L. RUBIN analisam o protagonismo das cortes

estadunidenses na transformação dos sistemas prisionais estaduais.

Na década de 1960, iniciou-se uma onda de reformas de

estabelecimentos prisionais de diferentes estados norte-americanos.

de Tocantins, por impossibilitar condições fáticas e concretas deimplantação de programa de internação e semiliberdade na Comarca deAraguaína/TO.Não há violação ao princípio da separação dos Poderes quando o PoderJudiciário determina ao Poder Executivo estadual o cumprimento dodever constitucional específico de proteção adequada dos adolescentesinfratores, em unidade especializada, pois a determinação é da própriaConstituição, em razão da condição peculiar de pessoa emdesenvolvimento (art. 227, § 1o, V, CF/88).A proibição da proteção insuficiente exige do Estado a proibição deinércia e omissão na proteção aos adolescentes infratores, com primazia,com preferencial formulação e execução de políticas públicas de valoresque a própria Constituição define como de absoluta prioridade.Essa política prioritária e constitucionalmente definida deve ser levada emconta pelas previsões orçamentárias, como forma de aproximar a atuaçãoadministrativa e legislativa (Annäherungstheorie) às determinaçõesconstitucionais que concretizam o direito fundamental de proteção dacriança e do adolescente.Assim, não vislumbro grave lesão à ordem e economia públicas, comexceção da fixação de multa por não construção, em doze meses, deunidade especializada para abrigar adolescentes infratores na Comarca deAraguaína/TO.Diante o exposto, defiro parcialmente o pedido de suspensão, tão-somentequanto à fixação de multa diária por descumprimento da ordem judicialde construção de unidade especializada, em doze meses, na comarca deAraguaína/TO.Dessa forma, diante da determinação da Constituição e do Estatuto daCriança e do Adolescente, mantenho os efeitos da decisão impugnadaquanto à (1) implantação, em doze meses, de programa de internação esemiliberdade de adolescentes infratores, na comarca de Araguaína/TO e(2) de proibição, sob pena de multa diária, de abrigar adolescentesinfratores em outra unidade que não seja uma unidade especializada (nostermos do ECA). [...]” (STF. Presidência. Suspensão de liminar 235/TO.Rel.: Min. GILMAR MENDES. 8/7/2008, decisão monocrática. DJe 143, 4

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O que começou com reconhecimento de direitos aos presos

transformou-se em efetiva reformulação de todo o sistema

prisional de diversos estados. O primeiro caso emblemático foi o

do sistema prisional do Arkansas (nos casos TALLEY versus STEPHENS,

JACKSON vs. BISHOP, COURTNEY vs. BISHOP, HOLT vs. SARVER, HOLT vs.

HUTTO e FINNEY vs. HUTTO), que influenciou a atuação judicial em

outros estados, como Mississípi, Oklahoma, Flórida, Louisiana e

Alabama.56

As decisões do Judiciário dos EUA abrangeram ampla gama

de atividades, tais como visitas constantes às prisões, negociações

com os órgãos estatais responsáveis, estipulação de gastos, fixação

de multas, recomendações de diferentes modalidades, entre elas

sobre limitação do número de detentos, determinação de soltura

de presos, reformas de celas, treinamento de agentes, demissão de

funcionários violentos, fechamento de estabelecimentos e até

construção de novas unidades penitenciárias.

Após analisarem a evolução do comportamento dos tribunais

estadunidenses, os autores concluem que a vassalagem exacerbada

a princípios como o do federalismo e da divisão funcional do

poder é inadequada e insuficiente para tratar de temas que

envolvam proteção da liberdade:57

ago. 2008; RTJ, vol. 210(3), p. 1.236).56 FEELEY, MALCOLM M.; RUBIN, EDWARD L. Judicial Policy Making and the

Modern State: How the Courts Reformed America's Prisons. Nova York: Cam-bridge University Press, 2000. Cambridge Criminology Series. p. 39-40.

57 Em português:“Deve reconhecer-se que a separação dos poderes possui um precursorpré-moderno que é tão newtoniano em conceito quanto a separação dospoderes – a teoria inglesa do século XVII de uma constituição equilibrada.

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To be sure, separation of powers possesses a premodern precursorthat is every bit as Newtonian in concept as the separation of pow-ers – the seventeenth-century English theory of a balanced constitu-tion. But governmental mechanisms do not become obsolete merelyon the basis of their ancient lineage. The point, rather, is that theydo not become relevant and usable in a modern administrative stateby virtue of that lineage. Each mechanism must be judged by itscontemporary performance; if one is beginning with the governmen-tal furniture delivered by tradition, each inherited item must bejudged by its ability to fit the place we currently inhabit. Separationof powers translates into the empirical necessity of governmentalspecialization, but provides no useful method for protecting liberty;checks and balances, however, translates into supervision and redun-

Mas, mecanismos de governo não se tornam obsoletos meramente porcausa de sua antiga linhagem. O ponto, antes, é que eles não se tornam re-levantes e utilizáveis em um estado administrativo moderno em virtudedessa linhagem. Cada mecanismo deve ser julgado por seu desempenhocontemporâneo; se se começa com o aparato governamental fornecidopela tradição, cada item herdado deve ser julgado por sua habilidade paraencaixar-se no lugar em que atualmente vivemos. A separação dos poderestraduz-se na necessidade empírica de especialização governamental, masnão fornece método útil para proteger a liberdade; os freios e contrapesos,contudo, traduzem-se em supervisão e redundância, o mecanismo domi-nante pelo qual as burocracias modernas são refreadas e pelo qual a liber-dade das pessoas sujeitas a essas burocracias é preservada. Para atingir essatradução, porém, o discurso newtoniano deve ser desprezado, e o conceitodeve ser reconfigurado nos termos dinâmicos e interativos da moderna go-vernança.Nos casos de reforma de prisões, os tribunais não agiram como déspotas,mas como amigos da liberdade e como agentes de nossa comunidade naci-onal. Eles ignoraram o federalismo e a separação dos poderes – e os freios econtrapesos existentes – ao impor o poder federal nos estados e o poderjudicial sobre os órgãos administrativos. Eles desse modo restringiram econtrolaram órgãos estaduais que poderiam de outra forma ter continuadoa perpetrar tiranias obscuras mas opressoras sobre um grupo de pessoas queestavam sujeitas a controle sem supervisão. Os tribunais federais eram aorevés controlados pela existência contínua desses estados e órgãos; eles “as-sumiram” as prisões, em um sentido muito real, mas o fizeram apenascomo supervisores, não como autoridades absolutas e descontroladas. Elescontrolaram, e foram controlados em contrapartida, e desse modo impuse-ram a dinâmica essencial do governo democrático moderno.” FEELEY &RUBIN. Judicial Policy Making and the Modern State: How the Courts Refor-med America's Prisons. Ob. cit., p. 345-346.

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dancy, the dominant mechanism by which modern bureaucracies arerestrained, and by which the liberty of the people who are subject tothese bureaucracies is preserved. To achieve this translation, however,the Newtonian discourse must be jettisoned, and the concept mustbe reconfigured in the dynamic, interactive terms of modern gover-nance. In the prison reform cases, the courts did not act as despots but asfriends of liberty and as agents of our national community. They ig-nored federalism and the separation of powers – and providedchecks and balances – by imposing federal power on the states andjudicial power on administrative agencies. They thus restrained andcontrolled state agencies that might otherwise have continued to per-petrate obscure but grinding tyrannies on a group of people whowere subject to unsupervised control. The federal courts were con-trolled in turn by the continued existence of those states and agen-cies; they “took over” the prisons, in a very real sense, but they didso only as supervisors, not as absolute and unconstrained authorities.They checked, and they were checked in turn, and thus enacted theessential dynamic of modern democratic government.

Não há dúvida de que o tema é complexo e admite múltiplas

abordagens, que não cabe aqui exaurir. Obviamente, não se

defende assunção irrestrita de funções do Executivo e do

Legislativo por parte do Judiciário, o que levaria a decisões

ilegítimas, por indevida superação da vontade popular expressa no

sufrágio, e a desequilíbrio institucional. Em casos limítrofes,

contudo, em virtude de mandados constitucionais expressos58 e

observada madura e cautelosa autocontenção por parte dos órgãos

58 Na citada obra, LUIZA FRISCHEISEN pondera, com acerto: “[...] as normasconstitucionais criam vinculação para a administração e para o legislador,pois a Constituição Federal estabelece claramente políticas públicas, queforam explicitadas em leis integradoras, a serem cumpridas paraimplementação dos direitos estabelecidos no título da ordem social e emoutros dispositivos já mencionados [...]” (FRISCHEISEN, Luiza CristinaFonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o MinistérioPúblico. Ob. cit., p. 93).

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jurisdicionais competentes, pode – e deve – o Judiciário, de forma

legítima, impor adoção de políticas e medidas administrativas a

órgãos executivos. Isso sobremodo se justifica quando se constata

crônico desprezo por parte de autoridades estaduais a direitos

fundamentais de extração constitucional e a mandamentos legais

que impõem padrões mínimos de salubridade em instalações

prisionais.

III. CONCLUSÃO

As condições do Albergue Estadual de Uruguaiana não

diferem de grande parte do contexto nacional. Informam os autos

que o estabelecimento não atende a requisitos básicos de

habitabilidade e salubridade, o que levou à situação extrema de

morte de um detentos por eletrocussão. O princípio da dignidade

do ser humano e o direito dos presos ao respeito à integridade

física e moral não são minimamente garantidos pelo Estado do

Rio Grande do Sul.

Justifica-se, portanto, intervenção do Poder Judiciário. É

evidente que o núcleo essencial do direito fundamental dos presos

ao respeito à integridade física e moral é objeto de crônica e

continuada violação.

Constatado desrespeito ao mínimo essencial de direitos

fundamentais diretamente ligados à preservação da vida, da

integridade física e da dignidade, não há espaço para acatar a tese a

defesa de cunho orçamentário manifestada pelo ente federativo.

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Cabe aos entes e órgãos estatais garantir eficácia mínima dos

direitos fundamentais, em respeito à força normativa da

Constituição e ao princípio da dignidade do ser humano.

Nesse contexto, não há discricionariedade dos Poderes

Executivo e Legislativo, de forma que, na ausência de observância

das garantias fundamentais pelo Estado, deve o Poder Judiciário e,

sobretudo, o Supremo Tribunal Federal, garantir respeito à

Constituição do Brasil, no interesse da própria sociedade em que

esse componente essencial do sistema de segurança funcione a

contento.

Ante todo o exposto, o recurso extraordinário deve ser

totalmente provido.

Brasília (DF), 4 de fevereiro de 2015.

Rodrigo Janot Monteiro de Barros

Procurador-Geral da República

RJMB/WS/OBF/CCC-Par.PGR/1.872/2014

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