Movimentos do corpo na arte- discurso, representação, presença e transgressão

23
35 INTERSEMIOSE • Revista Digital • ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Movimentos do corpo na arte: discurso, representação, presença e transgressão Conrado Vito Rodrigues Falbo (Doutorando em Letras) Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Resumo: Neste ensaio, procuramos traçar em linhas gerais alguns dos caminhos percorridos pelo corpo na arte ocidental. O objetivo principal foi articular o pensamento sobre o corpo na filosofia, linguística, estudos culturais, antropologia etc. à produção artística observada sobretudo nos campos da literatura e das artes visuais. Nosso foco analítico recaiu sobre perspectivas teóricas e práticas criativas que desafiam classificações disciplinares, como a performance e os campos de pesquisa acadêmica a ela relacionados direta ou indiretamente. Nesta perspectiva, destacamos algumas manifestações artísticas que lidam com a questão do corpo submetido a situações de risco e/ou violência explícita. Estas manifestações parecem ser reveladoras de profundas tensões sociais e existenciais elaboradas por um número significativo de artistas em suas obras, sobretudo nos anos 1960-70, com influências que ainda podem ser percebidas como aspecto relevante em muitas criações contemporâneas. Palavras-chave: Corpo; Performance; Intersemiose. Abstract: In this essay with seek to draw in general lines some of the path of the body in Western art. The main goal was to articulate the thinking about the body in philosophy, linguistics, cultural studies, anthropology etc with the art production, primarily in literature and visual arts. Our analytical focus has been placed in theoretical perspectives and inventive practices that challenge disciplinary labeling, such as the Performance and the academic research related to it, directly or indirectly. Following this standpoint, we highlight some artistic actions dealing with the issues of the Body subjected to dhazardous situations and/or graphic violence. These actions seem to unveil profound social and existential tensions, especially in the years 1960-70, leaving influences that can still be perceive as relevant features in several contemporary works. Keywords: Body, Performance, Intersemiosis. Prelúdio: pensando (com) o corpo O antropólogo David Le Breton chama atenção para “uma tradição de suspeita do corpo [que] percorre o mundo ocidental desde os pré-socráticos” (2009: 13). A conhecida imagem platônica do corpo como prisão da alma foi em grande parte responsável por fundamentar uma tradição de pensamento dualista segundo a qual o corpo era encarado como parte a parte menos nobre e reverenciada da totalidade do ser humano: a outra parte seria a alma. No universo das religiosidades gnósticas encontramos o dualismo entre corpo e alma consolidado e aprofundado em sua simbologia: o corpo identificado com a decadência, a corrupção, os apetites instintivos, a morte e o Mal, enquanto a alma estaria relacionada à permanência, à plenitude, ao conhecimento e ao Bem. O racionalismo

description

alguns dos caminhos percorridos pelo corpo na arte ocidental

Transcript of Movimentos do corpo na arte- discurso, representação, presença e transgressão

INTERSEMIOSE Revista Digital 35 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Movimentos do corpo na arte: discurso, representao, presena e transgresso Conrado Vito Rodrigues Falbo (Doutorando em Letras) Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Resumo: Nesteensaio,procuramostraaremlinhasgeraisalgunsdoscaminhospercorridospelocorpona arteocidental.Oobjetivoprincipalfoiarticularopensamentosobreocorponafilosofia, lingustica,estudosculturais,antropologiaetc.produoartsticaobservadasobretudonos camposdaliteraturaedasartesvisuais.Nossofocoanalticorecaiusobreperspectivastericase prticascriativasquedesafiamclassificaesdisciplinares,comoaperformanceeoscamposde pesquisaacadmicaaelarelacionadosdiretaouindiretamente.Nestaperspectiva,destacamos algumas manifestaesartsticas que lidam com a questo do corpo submetido a situaes de risco e/ou violncia explcita. Estas manifestaes parecem ser reveladoras de profundas tenses sociais e existenciaiselaboradasporumnmerosignificativodeartistasemsuasobras,sobretudonosanos 1960-70,cominflunciasqueaindapodemserpercebidascomoaspectorelevanteemmuitas criaes contemporneas. Palavras-chave: Corpo; Performance; Intersemiose. Abstract: InthisessaywithseektodrawingenerallinessomeofthepathofthebodyinWesternart.The main goal was to articulate the thinking about the body in philosophy, linguistics, cultural studies, anthropologyetcwiththeartproduction,primarilyinliteratureandvisualarts.Ouranalytical focus has been placed in theoretical perspectives and inventive practices that challenge disciplinary labeling,suchasthePerformanceandtheacademicresearchrelatedtoit,directlyorindirectly. Followingthisstandpoint,wehighlightsomeartisticactionsdealingwiththeissuesoftheBody subjectedtodhazardoussituationsand/orgraphicviolence.Theseactionsseemtounveilprofound socialandexistentialtensions,especiallyintheyears1960-70,leavinginfluencesthatcanstillbe perceive as relevant features in several contemporary works. Keywords: Body, Performance, Intersemiosis. Preldio: pensando (com) o corpo OantroplogoDavidLeBretonchamaatenoparaumatradiodesuspeitado corpo[que]percorreo mundoocidental desdeospr-socrticos(2009:13).Aconhecida imagemplatnicadocorpocomoprisodaalmafoiemgrandeparteresponsvelpor fundamentarumatradiodepensamentodualistasegundoaqualocorpoeraencarado comoparteapartemenosnobreereverenciadadatotalidadedoserhumano:aoutra parte seria a alma.No universo das religiosidades gnsticas encontramos o dualismo entre corpoealmaconsolidadoeaprofundadoemsuasimbologia:ocorpoidentificadocoma decadncia,acorrupo,osapetitesinstintivos,amorteeoMal,enquantoaalmaestaria relacionadapermanncia,plenitude,aoconhecimentoeaoBem.Oracionalismo HUMANIDADES MDICAS 36INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 cartesianocomparaocorpoaumamquina,comumaclarasuperaodoprimeiropela segunda, afinal, ainda que o corpo seja considerado um mecanismo engenhoso e complexo, no pode vencer a constncia e a confiabilidade da mquina. Afenomenologiaparececonsolidarumnovoolharsobreocorponopensamento filosfico.NasobrasdeMauriceMerleau-PontyeHenriBergson,paracitarapenasdois exemplos,ocorpoaparececomdestaqueemsuaspreocupaes,enfatizandosua dinamicidade e importncia no processo de percepo. Reportando-se diretamente s ideias de Descartes, o britnico Gilbert Ryle escreveu que a verdadeira questo no era dividir o ser humano em corpo e mente (o equivalente cartesiano da alma platnica), pois a diviso era ilusria e fundamentada em uma confuso de categorias, mas sim pensar de que formas opensamentotorna-seao(1949).AcrticadeRyle,queevocavaemmuitossentidos algumasideiasdeSpinoza,tornou-seclebrepelaexpressocriada,nosemumanotade ironia,parafazerrefernciaaodualismocartesianoentrecorpoemente:ofantasmana mquina. Outraimportanterupturanatradiofilosficaocidentalsobreocorpofoi introduzidapelopensamentodeFriedrichNiezstcheeAntoninArtaud,comoaponta Christine Greiner: Comeava uma mudana radical cujo foco cognitivo estaria sempre na fissura, nas fendas, nos entremeios e no nas partes organizadas de um todo monoltico [] EmNiezstche,assimcomoemArtaud,colocadaemchequeasoberaniadosujeitoede qualqueroutropodercentralizador,incluindodeus(2006:24-25).importanteressaltar queArtaudfoiresponsvelporcunharotermocorposemrgos,espciedeanti-conceitoquesimbolizaumcorpofragmentadoereorganizadoconformecritriosno absolutos e em constante transformao. Mais recentemente, o corpo vem sendo considerado espao privilegiado a partir do qualsoarticuladasrelaesentreavidaprivadaeasrelaesscio-polticas.Nesse sentido,osmovimentosfeministasforamparadigmticosaoinsistirnomotedequeo pessoalpoltico"(Hanisch,1969).Anfasenocorpo(nadapoderiasermaispessoal) apareceaquicomosignodiferencialquemarcaaindividualidadeebuscadesmascarara caracterstica ideolgica e opressora de comportamentos aceitos como naturais e universais nasrelaessociais.ElizabethGroszpercebeumsintomaclarodestasquestesquando acusaafilosofiaocidentaldeumaprofundasomatofobia(1994).Antesdaexplosodo feminismo nos Estados Unidos como movimento poltico organizado, Simone de Beauvoir j havia alertado para os perigos da viso reducionista que iguala sexo e gnero: on ne nat pasunefemme,onledevientNosenascemulher,torna-se(1949).Estaideiaseria aprofundada e matizada por pensadoras contemporneas como Judith Butler, ao propor uma viso performativa do corpo segundo a qual o gnero no um dado, mas uma identidade constituda de forma tnue atravs do tempo uma identidade instituda por meio de uma repetioestilizadadeatos.Indoalm,ogneroinstitudopormeiodaestilizaodo corpoe,portanto,precisasercompreendidocomoamaneiramundananaqualgestos corporais,movimentoserepresentaesdevriostiposconstituemailusodeuma identidade de gnero duradoura (1988: 519. Grifos meus)3. Butler ressalta ainda a potncia subversivadocorpoemrelaoaomodelonormativoqueigualasexoegnero:ocorpo torna-se, assim, elemento estratgico nas chamadas polticas de identidade que dominaram a cena do pensamento poltico e filosfico ocidental sobretudo a partir dos anos 1980 e cuja fora ainda pode ser sentida de forma clara contemporaneamente. Mantendo o corpo como ponto articulador das reflexes sobre relaes individuais e scio-polticas, no poderamos deixar de citar os pensadores ligados ao ps-estruturalismo. 3 Exceto nos casos indicados nas referncias, todas as tradues so de minha responsabilidade. INTERSEMIOSE Revista Digital 37 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Apreocupaocomasrelaesdepoderemjogonalinguagemeainflunciada psicanlise lacaniana foram de grande valia para a histria ocidental do pensamento sobre o corponasobrasdeJuliaKristeva,JacquesDerridaeMichelFoucault,paracitarapenas alguns exemplos. Destacamos o passeio do esquizo tal como descrito por Gilles Deleuze eFlixGuattarinocontextodesuacrticaaocapitalismoeaparenteinsuficinciada psicanlisefreudianaemlidarcomasquestessurgidasnointeriordestesistema:emum mundo no qual a natureza vivida no como natureza, mas como processo de produo (1976:16),osautoresnosfalamdemquinasdesejantesenomaisdesujeitoscomo elementos centrais no projeto que batizaram de esquizoanlise. A ps-modernidade levou as questes do corpo a extremos at ento inconcebveis. A consolidao e desenvolvimento do capitalismo, assim como o rpido avano e crescente acessibilidadedenovastecnologiasfizeramcomqueJean-FranoisLyotard,emumlivro intituladosugestivamenteOinumano,questionassecomotornarpossvelopensamento semocorpo(1991:13),concluindoqueapenasumaquestodetempoatquea tecnologia nos oferea uma resposta vivel e satisfatria. Cabeas rolaram por bem menos aolongodahistriadopensamentoocidental,masseaperguntadeLyotardaindapode soarescandalosa(eathertica)ssensibilidadescontemporneas,bemverdadeque muita coisa j mudou em relao ao modo como encaramos nossos prprios corpos, seja no campo do comportamento, da filosofia ou das artes. Todoestepercursoparececulminaremumavisopluraldocorpo,oumelhor,na necessidadedeconsiderarcorporeidadesemvezdeencararocorpocomocategoria universal e fixa. Le Breton tambm chama ateno para o fato de que Esquecemoscomfrequnciaoquoabsurdonomearocorpocomosefosseum fetiche, isto , omitindo o homem que o encarna [] O corpo no uma natureza. Ele nemexiste.Nuncaseviuumcorpo:oquesevsohomensemulheres.Nosev corpos. Nessas condies o corpo corre o risco de nem mesmo ser um universal (2010: 24). Asimplicaesdestaposturapodemserpercebidasnaprpriaformadefazer refernciaaocorpopormeiodalinguagem,razopelaqualomovimentoseguintedeste ensaiodedicadorelaoentrecorpoediscurso.Estepreldionopretendeuser exaustivonemconclusivoemsua(brevssimaenecessariamentegrosseira)exposiode abordagensfilosficasdocorpo,muitoaocontrrio,seuobjetivofoideixarfiossoltose ideiasinconclusas,antecipandoaaberturaeaindefinioquejulgamosnecessriasno tratamento dos temas aqui abordados. 1 movimento: corpo e discurso da abstrao ao performativo Jnaprimeirapartedoseucursodelingusticageral,Saussuresepara conceitualmentelinguagem(faculdadehumana,multiformeeenglobante),lngua (relacionando-secomalinguagemcomoseuprodutosocialeconjuntodeconvenes necessriasadotadassocialmenteparapermitiroexercciodestafaculdade)efala(ato individual de vontade e inteligncia na utilizao do cdigo lingustico) (1916: 23-32). Por sua identificao com a agncia e o arbtrio individual, o corpo parece estar mais do lado da falaquedalngua.Almdisso,afalapressupeautilizaodocorpocomoinstrumento atravsdoqualalnguairdesempenharsuasfunes.ParaSaussure,alnguaum princpiodeclassificao(p.25)enoumafunodosujeitofalante,elaoproduto queoindivduoregistrapassivamente(p.30).primeiravista,teramosaquiuma HUMANIDADES MDICAS 38INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 reproduodomecanicismocartesianonaimagemdeumamquinafalante",masbem verdadeque,seSaussureparecenoreconheceraagnciahumananalngua,eledeixa claroqueestaagnciaexisteemsuautilizao(fala),aindaquebemenquadradapelas convenes da lngua - convenes do corpo social e no do corpo individual do falante. Obviamenteestaseparaoconceitualdmargemaquestionamentos,sobretudo quando examinamos um elemento de suma importncia nas relaes entre corpo e discurso: avoz.conhecidaacentralidadeatribudaporSaussurecaractersticasonorada linguagem.Entretanto,opensadoreslovenoMladenDolarchamaatenoparaofatode que,comaviradasaussuriana,afontica(descriodecomoossonsdalnguaso produzidos,apartirdeobservaoemprica)foisubstitudapelafonologia(reduoda lngua a estruturas formais abstratas e puramente relacionais), com consequncias drsticas para o lugar do corpo na linguagem: Osossos,carneesanguedavozforamdivididos,semdeixarrestos,emumateiade traosestruturais,umalistadepresenaseausncias.Ogestoinauguraldafonologia foi, dessa maneira, a total reduo da voz como substncia da linguagem. A fonologia, fielsuaetimologiaapcrifa,tratavademataravozemsuaorigemhogrego phon, voz, mas tambm possvel ouvir,muito apropriadamente, phonos, assassinato (1996: 9). A questo parece especialmente grave se lembramos da voz como agente mediador entre corpo e linguagem: avoz mediao, no somente para o prprio sujeito entre seu corpoealngua,mascomavozdooutro[]afalalevadapelavozdiferentedo pensamento,poisoresultadodeumadescargamotora(CASTARDE,2004:134). Barthescriouaexpresso grodavozemsua anlisedarelaoentreouvinteecantor, descrevendo-ocomoocorponavozquecanta(1982:243).Parecevlidoproporuma analogia entre a voz como reveladora do corpo e da subjetividade e as teorias psicanalticas de Jacques Lacan e Franoise Dolto sobre o corpo (ou, mais precisamente, sobre a imagem do corpo) como elemento fundamental na consolidao da subjetividade, sobretudo durante a infncia (ver NASIO, 2009). Como ento entender a fala de maneira dissociada do corpo? Nocaminhodereintegraoentreosconceitossaussurianosdelnguaefala, podemos citar como divisor de guas o pensamento de J. L. Austin observado sobretudo em seu conceito de atos de fala (speech acts). Para Austin, em determinadas circunstncias, a lnguanodesempenhafunoapenasdeclarativa,masperformativa,ouseja,existem algunscasosemquedizeralgumacoisafazeralgumacoisa(1975:12).Entreestas elocues (utterances) classificadas como performativas, Austin cita a frase eu aceito dita pelos noivos na ocasio do matrimnio: a frase no apenas declara uma inteno, pois, ao pronunci-la,osnoivoscontraemmatrimnio.Porsuanfasenossujeitosfalanteseno contextoemquefalam, asideiasdeAustincontriburamparaqueaabstraosaussuriana fosse repensada em termos mais concretos. Paralelamente lingustica, o campo dos estudos literrios sofreu grande influncia deumavisodaliteraturaexcessivamentefocadanaescrita,naimprensaenaleitura individual e silenciosa de livros, alimentando oposies ilusrias entre escrita e oralidade e afastandooscorpos(deescritoreseleitores)dasdiscusses.Emestudopioneirosobreas relaesentreoralidadeeescrita,WalterOnglembraqueograndedespertarparao contrasteentreosmodosoraisdepensamentoeexpressoeosmodosescritosaconteceu nonalingustica,descritivaoucultural,masnosestudosliterrios,iniciandoclaramente com o trabalho de Milman Parry (1902-35) sobre o texto da Ilada e da Odisseia (1982: 6). Ao privilegiar o contraste entre estas formas de pensamento e expresso, o pensamento de Ongchamouaatenodosestudiososparaumcampoatentopoucoexplorado,mas INTERSEMIOSE Revista Digital 39 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 manteveumpensamentodualistaquefoiposteriormenterepensadosobretudopelos trabalhos da antroploga Ruth Finnegan sobre poesia oral (1992) e de Paul Zumthor sobre a literatura medieval (1993)4. AimportnciadaspesquisasdePaulZumthorvaialmdombitodosestudos literrios ao contextualizar historicamente as manifestaes da vocalidade (expresso que utilizava em substituio a oralidade) em torno da ideia de performance. Seu pensamento recoloca o corpo no centro das discusses sobre o trabalho artstico com a linguagem: Introduzir nos estudos literrios a considerao das percepes sensoriais, portanto, de umcorpovivo,colocatantoumproblemademtodocomodeelocuocrtica.De sada,necessrio,comefeito,entreabrirconceitosexageradamentevoltadossobre elesmesmosemnossatradio,permitindoassimaampliaodeseucampode referncia (2007: 27). Suasideiastiveraminflunciadospensadoresidentificadoscomacorrenteterica conhecidacomoEstticadaRecepoouReader-ResponseCriticism,comfocona recepodaobraliterriaporpartedeseusleitorescomoreaoscorrentesformalistas. Zumthorpreferiufalaremgrausdeperformaticidadeemvezdeelaborarumconceito fechadodeperformance5.Opontocentraldeseupensamentoainteraoentreobrae pblico, ambos encarados em sentido amplssimo e sem oposio entre oralidade, escrita e suas variadas formas de mediao tecnolgica. Esta viso tem implicaes importantes, sobretudoemumpascomooBrasil,noqualvriasmodalidadesdeperformance coexistiramhistoricamentecomasformasescritas.Agrandedistnciaexistenteentrea culturaditaletradaeaculturapopularfezcomqueasformasdeexpressooral continuassemasedesenvolverparalelamentesformaspredominantementeescritasda culturaerudita.Amsicapopular,porexemplo,desempenhaumpapelimportanteno sentidodeaproximaracriaopoticaescritadasformasoraispopulares,transformando poemasemletrasdecanesedespertandoointeressedosouvintesparaoutras modalidadesdepoesia.Estacoexistnciapacficaefrutferaentreoralidadepopulare cultura letrada faz com que a relao entre a letra (escrita/morta) e a voz (falada/viva) seja encaradamuitomaisnosentidodacomplementaridadequedaoposio.Opesquisadore poeta Philadelpho Menezes, ao escrever sobre a poesia sonora na Europa, percebe que no houve no Brasil a poesia experimental dos sons, paralelamente poesia visual, esta simcomlargatradionaliteraturabrasileiradops-guerra.Ainexistnciadapoesia sonoraentrenspodetermuitasexplicaes:opesosignificativamentemenorda escrita na nossa cultura, isto , a falta do inimigo; as falas locais e a oralidade errtica popularquepenetramconstantementeasescriturasdaaltaliteratura;afortepresena da msica popular de razovel grau construtivo (1992: 16). ApesardereconhecerqueachamadapoesiasonoranoencontrounoBrasilum terreno frtil para seu desenvolvimento como proposta esttica das vanguardas europeias, o pesquisadorenumeraumasriedeaspectosqueprivilegiamaexistnciadepoticas 4 ApalavraliteraturaerautilizadaporZumthorentreparntesespoiseleacreditavaque,porinclurema msicaeateatralidadecomoelementoscentrais,aspoticasmedievaisnocabiamnoconceitoocidental contemporneo de literatura. 5 Conforme Zumthor, a leitura silenciosa e individual de um livro corresponderia situao na qual se verifica o menor grau de performaticidade, enquanto a performance presencial corresponderia ao grau mximo. O que ele chama de performance mediatizada (por exemplo, assistir a uma gravao em vdeo ou ouvir um disco) seria um exemplo dos graus intermedirios HUMANIDADES MDICAS 40INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 performticas ligadas sobretudo linguagem viva mediada pelo corpo, com especial nfase na voz. As vises da performance (e, consequentemente, do corpo) nos estudos literrios nos servemdeintroduoaoprximomovimento,quetemcomotemaouniversodacriao literria propriamente dita. 2 movimento: corpo e literatura mito e modernidade, unidade e fragmentao Ocorpo,aomesmotempo,unidadeepluralidade.Tantopodefuncionarcomo smbolodecompletudeeauto-suficinciacomoserencaradodeformaarealarsua complexa composio, um emaranhado de estruturas to singulares que bem poderiam ser encaradascomocorposemumsentidomenosespecfico.Ariquezadepossibilidadesde utilizaosimblicadocorponostextosliterriosfazcomqueelesetorneumamarca recorrenteesignificativanaliteraturaocidental.Asdiferentesformasliterriasassumidas porestaimagemaolongodotempopodemnosrevelarligaesentreosmecanismos estticos utilizados na criao literria e os contextos histricos nos quais so originados. Ao falar do mito como uma das categorias que batizou de Formas Simples, Andr Jolles rejeita a viso segundo a qual este seria um estgio preliminar dos discursos histrico e filosfico, tratando dos mitos a partir de um processo que tem origem na interao do ser humano com a natureza. Acontemplaoconverteu-seemespanto,eoespantoeminterrogao[...]Uma respostachegaentoaointerrogador;eestaperguntadetalnaturezaqueno possvelformularoutrapergunta;aperguntaanula-senomesmoinstanteemque formulada;arespostadecisiva[...]Quemfazapergunta?Ohomem[...]Ohomem pedeaouniversoeaosseusfenmenosqueselhetornemconhecidos[...]Quandoo universo secria assim para o homem, porperguntae resposta, tem lugara Forma que chamamos mito (1976: 87-88). OmovimentosugeridoporJolles-dainquietaoperguntae,finalmente, obtenodaresposta-umcrculoperfeitonoqualserhumanoenaturezaesto plenamenteintegradosnumarelaocomplexapormharmnica:umarelaoorgnica. Mas a perfeita completude deste ciclo s possvel devido ao que ele chama de disposio mentalespecficadoserhumanoquepermitequeasindagaesformuladassejam inteiramente satisfeitas por meio deste procedimento. O ser humano cria o prprio universo enquanto discurso atravs do mito. A ideia de completude e inteireza revelada tanto pela constncia desta maneira de lidar com o mundo (formulandoperguntasnaturezaeobtendodelarespostasdefinitivas)comopelaauto-suficincia deste sistema e de sua metfora perfeita: um corpo funcional (composto por ser humano e natureza) que gera respostas para as prprias perguntas que formula. NoterceiroensaiodolivroAnatomiadaCrtica,ocrticocanadenseNorthropFrye apresentaosfundamentosdaquiloquechamoudeCrticaArquetpicaouTeoriados Mitos. Um dos primeiros exemplos comentados por Frye, refere-se a um episdio de uma lenda egpcia no qual o deus Ra invocado para proteger o protagonista, fazendo aparecer um lago cheio de crocodilos que funciona como obstculo para seu perseguidor. Conforme Frye,nestapassagemabriu-semodequalqueranalogiacomarealidade,podendoser observada uma qualidade abstratamente literria; e j que o contador de histrias poderia terresolvidoestepequenoproblemadeumamaneiramaisrealista,pareceque aliteratura no Egito, assim como outras artes, preferiu um certo grau de estilizao (2000: 135). Em INTERSEMIOSE Revista Digital 41 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 seguida,ocrticocontinuacomalgunsexemplosdestaabstraoartsticaobservadosna arte crist medieval.interessantenotarqueoprimeiroexemplocitadoporAndrJollesparailustraro mitocomoFormaSimplessejaumapassagembblicadolivrodoGnesis(1976:87). Tanto Jolles quanto Frye analisam estes (e outros) exemplos de narrativas mticas do ponto devistadotrabalhocomalinguagem,apontandoelementosformaisdotextoque funcionariamcomondicesdealgumascaractersticasmitolgicasdestasnarrativas. Ambosnofazemcomentriossobreaprofundainflunciadareligiosidadesobreestes discursos, tanto na sociedade egpcia quanto na crist medieval.Aoconsideraromundodosmitoscomofeitodepurametfora,noafetadopor cnonesdeadaptaesplausveisdeexperinciasfamiliares,Fryeassimserefereaeste universo literrio: Omundodasimagensmticasgeralmenterepresentadopelaconcepodecuou parasonareligio,eapocalpticonosentidodestapalavrapreviamenteexplicado6, ummundodetotalmetfora,noqualtudopotencialmenteidnticoatodooresto, como se tudo estivesse contido num nico corpo infinito (2000: 136). A viso do universo como um nico corpo que contm elementos distintos, e mesmo opostos, sem perder sua unidade apenas parece tornar-se completa quando consideramos a profundaligaodosmitoscomodiscursoreligioso.ApontodeFryeconsiderarolivro bblicodoApocalipsecomoagramticadasimagensapocalpticas(p.141).Logoem seguida,oautorenumeraumasriedeimagensarquetpicasqueconsiderarecorrentesna Bblia:UmDeus,UmCordeiro,UmHomem,Umarvore,UmTemplo.Todasestas imagens exprimem a idia de unidade, de corpos-unos, inteiros, completos em si mesmos. FryeacrescentaqueaconcepodoCristo(metforamxima)unificatodasasoutras imagens em identidade, por ser ao mesmo tempo todas elas.Ainda conforme Frye, a imagem da Santssima Trindade- o Deus que trs pessoas, mas ainda assim, um nico Deus - funcionaria como fundamento para outras metforas do corpopresentestambmemvriasteoriaspolticasocidentais:Milton,PlatoeHobbes utilizaram a metfora de um grupo de seres-humanos como sendo um s corpo. Omesmo paralelopodeserfeitocomrelaometforadedoiscorpostornadosumsatravsdo amor.AmpliandoascategoriassugeridaspelasimagensarquetpicaslistadasporFrye, temosacategoriahumanaeaanimal(oCordeiro)sefundindonaimagemancestraldo pastoreseurebanho,assimcomoomundovegetal(arvoreouJardim)eohumano tornando-seumscorponasimagenspastoraisdoarcadismo.Oselosentreestes mundos estariamrepresentadosnasimagensdoFogo,eloentreoHomemeomundosuperiorda Divindade,eagua,unindoomundohumanosprofundezasdaTerra(pp.144-146). Nestas imagens apocalpticas, o prprio universo considerado um imenso corpo dentro do qual tm existncia os seres-humanos e demais entidades naturais.Do ponto de vista formal, alm deste repertrio de imagens, Frye tambm explora de maneiramaisamplaaideiadeunidadepresentenaprpriaestruturadasnarrativas ficcionaisemgeral.Segundoelenamaioriadasobrasdefico,percebemos imediatamente que o mythos, ou a sequncia de acontecimentos que prende nossa ateno, est sendo moldado como uma unidade. Estamos continuamente, embora quase sempre de modo inconsciente, tentando construir um padro maior de significao simultnea a partir 6OtermoapocalpticodefinidoporFryenoGlossriodolivrocomosendootermotemtico correspondente a mito naliteratura ficcional:metfora como identificao pura e potencialmente total, sem considerao plausibilidade ou experincia comum (2000: 365). HUMANIDADES MDICAS 42INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 doquelemosouvimosataquele momento(2000a:32).Maisadiante,eleafirmaqueo mito fornece os principais contornos e a circunferncia de um universo verbal que , mais tarde,ocupadotambmpelaliteratura(p.41).Nessesentido,aprpriaconcepode literatura do autor pode ser comparada a um corpo-uno, j que encarada como um sistema complexo,pormharmnico,noqualcoexistemaproduoliterriamaisrecenteesuas matrizes mitolgicas, ambas regidas pelo mesmo padro de imagens e estruturas narrativas. A partir do sculo XVIII, o mundo ocidental comea a sofrer um ciclo de profundas transformaesqueafetariamdecisivamenteosmodosdeviver,pensarefazerarte:a burguesiadestronaoAntigoRegimeabsolutistanasangrentaRevoluoFrancesa;novos padresdetrabalhosodefinidospelaRevoluoIndustrial;rapidamentecrescemos centros urbanos e reconfigura-se o estilo de vida de toda a populao. Diante de tantas e to radicais mudanas, no de se estranhar que o papel da arte comeasse a ser questionado a partirdesuasprpriasbases.Oquecostumaserchamadogenericamentedecriseda modernidade,parececoincidircomummomentohistricodereflexo,noqual paradigmasfundamentaisparaaHumanidadeforamrepensadosdentrodestenovo panoramapoltico,econmicoesocial.Avisoorgnicadomundocomosistema complexo e harmnico formado por ser humano e natureza seria irreversivelmente abalada. Eaarterefletiriaestacisodemaneiraveemente,numsentimentoambivalenteque misturava espanto, ceticismo e esperana.CharlesBaudelaire,umdosgrandesmarcosdaproduoliterriaditamodernistae sensibilidade fundadora da prpria ideia de modernidade, afirmou que a modernidade o transitrio, o efmero, o contingente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutvel(1863:11).EstasegundametademencionadaporBaudelairerepresenta justamenteosantigosvalores(estticosesociais)deeternidadeeimutabilidadequese perderamouforamcompletamentetransfiguradospelasmudanasdamodernidade.O corpo-unodopassadodlugaracorposincompletos,fragmentados,dilaceradospela violncia das transformaes: a harmonia quebrada por um movimento de destruio que afeta no apenas instituies polticas e sociais, mas tambm a produo artstica. Voltando umpoucomaisnotempo,temosnaRevoluoFrancesaumdivisordeguasdeste processodedestruiorenovadora.ComoobservaapesquisadoraLindaNochlinao analisaraproduodepintoresdesteperodo,osentimentogeraldapocapoderiaser traduzido como uma espcie de luto por uma terrvel perda. A perda de um estado de felicidade e totalidade que precisa agora ser inevitavelmente deslocado para o passado ou futuro: nostalgia ou Utopia [...] aperdadotodomaisqueumatragdia.Apartirdestaperdaconstrudooprprio Moderno[...]Ofragmento,paraaRevoluoeseusartistas,emvezdesimbolizar nostalgiadopassado,atuacomoadestruiodeliberadadopassado,ou,aomenos,a pulverizao do que era percebido como suas tradies repressivas (1994: 8). A iconografia da Revoluo Francesa est repleta de guilhotinas, cabeas cortadas de membrosdanobrezaeoutrossmbolosdeviolnciaopressoraetransgressopoltica.A cruezadas imagensdecorposdespedaadoseamputadosdumaidiadaradicalidadedo movimentorevolucionriode1789,masociclodetransformaesiniciadocoma derrubada do Antigo Regime estava apenas comeando. A ascenso da burguesia lanou as bases para uma revoluo muito mais profunda e duradoura no modo de vida da sociedade ocidentalqueenvolveasinovaestcnicasligadasindstriaeaposterior consolidao do modo de produo capitalista. Aurbanizaodesempenhaumpapelfundamentalnopanoramadestasmudanas econmicasesociais,afetandodemaneiramarcanteaproduoartsticaemgeral. INTERSEMIOSE Revista Digital 43 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Baudelaire fala da opresso das multides annimas da cidade e de sua paisagem saturada deimagenserudos,sendooflneuropersonagemquemelhortraduziriaestenovo ambiente: Paraoperfeitoflneur,paraoobservadorapaixonado,umimensojbilofixar residncianonumeroso,noondulante,nomovimento,nofugidioenoinfinito.Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo [...] um eu insacivel do no-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a prpria vida, sempre instvel e fugidia (1863: 9). Nacoloridaebarulhentaconfusourbana,aspessoassotragadaspelasmultides fugidiaseondulantes.Amultidobempodeserencaradacomoumenormeecatico corpoquecontmtodoomovimentoirrefreveledesordenadodacidade:oscorposdas pessoas,destitudosdeindividualidade,sedissolvemnestefluxo.Talsituao,pormais sedutora que seja, no esconde as inquietaes que provoca no homem moderno. A posio do flneur, tal como descrita por Baudelaire, reveladora destas ambiguidades: ele est no meio da multido, mas no se sente parte dela; permanece buscando o eterno e duradouro nomundodofugidioedoinstvel;afirmasuaindividualidadeenquantoperde-seno turbilhodacidade.ConformeocrticoMichaelHamburguer,paraquemBaudelaireo prottipodopoetamodernocujavisoaomesmotempoagudaelimitadaporumalto grau de conscincia crtica de si mesmo, a forma como o poeta trabalhou em sua obra as transformaes da modernidade apenas podem ser entendidas atravs do que nele existe de contraditrio,contingenteemesmoparadoxal,jqueaverdadequeencerraaobrade Baudelairenopodeserextradadessaoudaquelaconfisso,nemdetalouqualverso evidente, mas apenas das tenses, para as quais a chave mais segura so suas contradies (2008: 08-12). Esta realidade - nova e instigante, mas tambm ameaadora e incontrolvel - exerceria uma influncia profunda na literatura, que sentida at os nossos dias.Ocapitalismocomonovomododevidajsehaviaimpostonocotidianoda sociedade quando irrompe mais um ciclo de conflitos blicos na Europa. Os seres humanos, reduzidosaumamassaannimaquenotinhaoutropapelalmdeservircomoforade trabalho nas fbricas, sofreriam uma degradao ainda maior com a violncia da guerra. O corpo,jreduzidoaumsimplesobjeto,destitudodepersonalidadeedignidade,agora novamente massacrado pela insanidade dos confrontos armados. Os efeitos do terror seriam claramentesentidosnaproduoartsticadapoca,voltadaparaaexploraodenovos caminhos para a arte, em meio a um mundo destroado e desesperanado.AsvanguardasartsticasdoinciodosculoXXsoparadigmticasnosentidode repensarafunodaarteeapontardireesatentoinexploradasdopontodevistada criaoartsticaemtodasassuasmodalidades.ElianeRobertMoraesapontacomotrao comumaosvriosmovimentosvanguardistasligadosrepresentaodocorpohumanoa atitude de decomposio da figura humana, numa srie de deformaes ou transfiguraes que teria sido desencadeada justamente pelos horrores da guerra: Despossudodetudo,oserhumanosetornaenfimumapresenasilenciosaque nenhum poder pode suprimir: o que essa presena traz, por si mesma e como afirmao ltima o sentimento de pertencer espcie [...] Se no h limites para a destruio do Homem,entoasuadesfiguraospoderealizar-seenquantoumprocesso interminvel, sem jamais alcanar um estado definitivo e absoluto (2002: 152-153). HUMANIDADES MDICAS 44INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 Aparentementedestruidor,oprocessodedecomposiodafigurahumana empreendidopelosartistasdaschamadasvanguardashistricasestligadoaumabusca pela sobrevivncia do ser humano em meio aniquilao geral causada pela guerra. uma forma de resistncia violncia e insanidade do massacre, uma atitude por vezes utpica de encararasituaoatualeprojetarumcaminhofuturoqueofereaalgumaperspectivaao vaziodopresente.ParaAndrBreton,umdosfundadoresdosurrealismo,dianteda falncia incontestvel do racionalismo, falncia que previmos e anunciamos, a soluo vital noestemrecuar,massimemavanarnadireonovosterritrios(apudMORAES, 2002: 157).Estes atos de resistncia artstica, entretanto, tambm eram marcados pela violncia e incluamumcertofascnioambguoporimagensmonstruosasesangrentas.Estefascnio fez com que os artistas da poca se voltassem para a explorao do lado obscuro do ser humano,numapercepodequeasrazesdoMalresidiamnoprprioserhumano.Tal explorao das perverses e vcios marcante, por exemplo, na obra ficcional de Georges Bataille,queassumiaainflunciadoMarqusdeSadenotocanteaessatemtica.O surrealismodemaneirageralocupoulugardedestaquenopanoramadasquestes levantadaspelasvanguardasaoampliarombitodadiscussoparaalmdopropriamente artstico:estreitaarelaodosartistasidentificadoscomestegrupoeopensamentode SigmundFreudsobreoinconsciente,paracitarapenasumexemplo.OcrticoCludio Willer, ao apontar o exagero da fetichizao do novo como valor em si mesmo entre os movimentos vanguardistas, destaca a posio diferenciada do surrealismo: ApreocupaodeBretoneseuscompanheirossemprefoi,muitomaisqueinovar,de recuperar a tradio, reescrever a histria, e olhar o passado sob uma outra perspectiva [...] a valorizao de Lautramont um dos aspectos dessa releitura da histria. E dela tambmfazemparteoestudoearetomadadatradiohermticapropriamentedita, incluindoaalquimiaeaastrologia,comoexpressesdeumimaginriopoticoe metforasdaprpriacriaoedarecuperaodoserhumanoemsuatotalidade(In BRETON, 1985: 15). Afragmentaoetransfiguraodocorpohumanonasimagenssurrealistas corresponde a uma busca mais complexa desses artistas por uma conscincia ampla do ser humano, afastando-se de idealizaes e voltando a ateno para o inconsciente, o delrio, os vcioseperversesincontrolveisqueatentohaviamsidomarginalizadospelacriao artstica.Estemovimentocorresponderiaaumaaproximaodoserhumanocomseu corpo, em um aprofundamento da percepo de sua identidade e em um resgate da prpria condio humana, j to abalada pela guerra. Michel Leiris acreditava que o masoquismo, osadismoe,enfim,quasetodososvcios,someiosdesentir-semaishumano(apud MORAES, 2002: 161). A fragmentao do corpo na modernidade , na verdade, um processo de tentativa de resgate de uma unidade perdida. Uma unidade que transcende o sentido puramente concreto da vida, materializado nas rupturas sociais, polticas e econmicas do perodo, e remonta antigaunidadedoserhumanocomodivinonombitoreligioso.Noporacasoque autorescomoojcitadoBataillerelacionavammorte,sacrifcioesexo-todoselementos diretamente relacionados s experincia sensuais do corpo- com a religio. Comentando a obraLesLarmesdEros,deBataille,ocubanoSeveroSarduypercebeestaligao: Criando a culpabilidade, a proibio, a religio confina a sexualidade zona do secreto, a essazonaondeaproibiodaoatoproibidoumaclaridadeopaca,aomesmotempo sinistra e divina, claridade lgubre que a da obscenidade e do crime, e tambm a da religio (1979: 19). Sentir-se mais humano a partir de uma relao visceral com o prprio INTERSEMIOSE Revista Digital 45 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 corpo tambm uma forma de resgatar a unidade primordial com o sagrado. Retomaremos estasideaisno4movimentodesteensaio,quandoserodiscutidasalgumasquestes relativas ao corpo na arte performtica. 3 movimento: corpo e artes visuais do objeto presena Nocampodasartesvisuais,amodernidadepareceterdeixadocomoheranaa tradiodonovo,naclebreexpressodocrticoamericanoHaroldRosenberg.Emum dosseustextosmaisconhecidos,RosenbergescrevesobreopintorJacksonPollockesua action painting (pintura de ao), cuja inovao consistia em dispensar a representao de um estado em favor de encen-lo no movimento fsico. A ao na tela tornou-se sua prpria representao(1959:27.Grifosdoautor).Pollockentrariaparaahistriadaarte contemporneacomoumdivisordeguas.Entretanto,suaobraocupaumaposio ambivalente:costumaserassociadaaochamadoexpressionismoabstrato(identificado diretamente com os movimentos da pintura modernista europeia e americana), mas tambm vistacomoprecursoradeumamploediversificadomovimentoqueenglobariadiversas expresses artsticas posteriores vagamente classificadas como arte conceitual, sobretudo a performance. LucyLippard,contextualizaasmanifestaesconceituaisnaartenorte-americana entreosanos1960e1970apartirdequestespolticaseideolgicas:Aeradaarte conceitual que foi tambm a era do movimento pelos direitos civis, [guerra do] Vietn, o movimento de liberao das mulheres, e a contracultura foi realmente livre-para-todos, e asimplicaesdemocrticasdestafrasesototalmenteapropriadas,mesmoquenunca realizadas (1973:vii).Lippard nos fala de uma sndrome da moldura e do pedestal que acometia o mundo da arte em meados dos anos 1960 e da qual os artistas ditos conceituais procuravamescapar.Eisumadasgrandestransformaesporquepassaramasquestes relativasaocorponocampodasartesvisuais:abuscadetranscenderamaterialidade (simbolizadapeloquadro/molduraepelaescultura/pedestal)atravsdasuposta imaterialidadedeexpressescomoperformances,eaes.Almdarelaocom movimentos polticos mais abrangentes, a arte conceitual estava diretamente ligada crtica datransformaodasobrasdearteemmercadorias.Almdeconstituirumimportante movimento de experimentao com novas linguagens e suportes, a imaterialidade buscada por muitos artistas deste perodo buscava impedir ou pelo menos dificultar a circulao das obras como valores de compra e venda no mundo da arte. Conforme CristinaFreire, estas questes,longedeteremesgotadosuaspossibilidades,parecemestarmuitovivasna produo de vrios artistas contemporneos. Questes levantadas desde o final dos anos 60 e ao longo da dcada seguinte, perodo abrangidopelaArteConceitual,soaindapertinentesemobilizamacrticada produo,recepoecirculaoartsticasnopanoramaatual.Porisso,estepodeser consideradoumprogramainconcluso.AdistinoentreArteConceitualcomo movimentonotadamenteinternacionalcomduraodefinidanahistriadaarte contemporneaeconceitualismotendnciacrticaarteobjetualqueabarca diferentespropostas,comoartepostal,performance,instalao,landart,videoarte, livro de artista etc. - muitas vezes difusa (2006: 8). Dopontodevistaesttico,omovimentodedesmaterializaodaartesignificou tambmumaimportanteviradanotratamentodocorpo,quepassaaserencaradoemsua concretude-ocorpoliteral,muitasvezesocorpodoprprioartista,realizandoaobra HUMANIDADES MDICAS 46INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 diantedopblicoousendoaprpriaobraenomaiscomoobjetoaserrepresentado. Almdisso,abriu-secaminhoparaumafrutferadiscussosobrearelaoentreartistae pblico, com enfoque na participao como meio de diluir estas fronteiras at ento muito marcadas. Inmerosartistasbrasileirosproduziramobrasmarcantesnestecontexto.Podemos citarcomoexemplosparadigmticosHlioOiticicaeLygiaClark,comsuanfasena participaodopblicocomoco-autordasobras.ParaClaireBishop,odilogoentreos artistas(disponvelnavastacorrespondnciaquedeixaram),revelaumaevoluodeseu pensamentodeobjetosesculturaisinterativosparaeventosdegrupoqueabordavam relaesexternas(Oiticica)eestadospsicolgicosinteriores(Clark).Paraambosos artistas,umtermochaveeravivncia:apresenasensriadocorpoamplificadacomo autntica,imediataeresistentecapturaideolgica(2006:110).Emcartaescritapara Hlio Oiticica, Lygia Clark no apenas corrobora este entendimento como situa sua obra no jcomentadomovimentodedesmaterializaodaarteedabuscapela(particip)aoem detrimento da representao do corpo. Paramimoobjeto,desdeCaminhando7,perdeuosignificado,eseaindaoutilizo para que ele seja o mediador para participao. As luvas sensoriais8 por exemplo para daramedidadoatoetambmomilagredogestonasuaespontaneidadequeparece esquecida. Em tudo que fao h realmente necessidade do corpo humano, para que ele se expresse ou para revel-lo como se fosse uma experincia primeira (1996: 61). de suma importncia a viso partilhada por Clark e Oiticica sobre a relao entre artistaepblico:ostermospropositoreparticipadoreramutilizadosdemodoa enfatizar uma relao de co-autoria e no somente de contemplao passiva. O participador toimportantequantooartistajque, semele,noexisteobra:veja-seoexemplosdas duasobrasqueLygiaClarkcitaemsua carta,almdosclebres parangols criadospor Oiticica,quetambmnecessitavamdopblicoparaquepudessemconcretizar-secomo obras(verOITICICA,1964).AsideiasdeClarkeOiticicasobrearelaoentreartistae pblico so talvez as experincias mais radicais j realizadas em termosde questionamento daautoriaepossibilidadesdeparticipao,permanecendosemparalelonombitodaarte contempornea.Atendnciamarcantedaperformancecomoexpressocapitaldegrande partedosartistasapartirdefinsdosanos1960parecetercaminhadoemoutrosentido, enfatizandoaritualizaodocotidianoeaspolticasdeidentidade,comoveremosno prximo movimento deste ensaio. Porfim,importantelembrarqueotrajetodocorponasartesvisuaisdoocidente teminciomuitoantesdastransformaesdasdcadasde1960-70emesmodos experimentos das chamadas vanguardas histricas, remontando ao universo da antiguidade clssica, conforme nos lembra Vivane Matesco: 7SobreaobraCaminhando(1964)Clarkescreveu:FaavocmesmoumCaminhando:pegueumadessas tiras de papel que envolvem um livro, corte-a em sua largura, tora-a e cole-a de maneira que obtenha a fita de Moebius.Emseguidatomeumatesoura,craveapontanasuperfcieecortecontinuamentenosentidodo comprimento.Presteatenoparanorecairnocortejfeitooqueseparariaafaixaemdoispedaos. QuandovoctiverdadoavoltanafitadeMoebius,escolhaentrecortardireitaouesquerdadocortej feito (1980: 25). 8ClarksobreasLuvasSensoriais(1968):Otrabalhoconsistianapessoausarluvasdediversosmateriais, tamanhosetiposparatentarpegarbolasdedimensesetexturasdiversas.Apscombinartodasas possibilidades, utilizando-se inclusive luvas grandes para pegar bolas pequenas, ela retirava a luva e segurava asbolasnormalmente.Este'renascimentodotato'sentidocomoumaalegria,comoseapessoaestivesse 'vivendo novamente' a descoberta do prprio tato (1980: 29). INTERSEMIOSE Revista Digital 47 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 NasegundametadedosculoXXocorpofocalizadoemhappenings,aes, performances,experinciassensoriais,fragmentosorgnicos,oqueafirmariaanoo deumcorpoliteralcomosingularidadedaartecontempornea.Estanoofoi desenvolvidapelaproduoepelodiscursocrticodaarteemcontraposioaocorpo idealizadoexpressononu.Gneroartstico-metafsicoporexcelncia,onufoicriado naGrciaemummomentonoqualaprpriaimagemdocorpopdeserrepensada. Isso quer dizer que a concepo de corpo na cultura ocidental est intimamente ligada questodaimagemedarepresentao.SenoinciodosculoXXaartemoderna subverteatradiodonu,atravsdafragmentaoedadeformaodocorpo,na segundametadedosculoessacrisedaoutroraequilibradavisoantropocntrica aindamaisacentuadaumavezqueamatria,aanimalidadeeacruezapassamaser exploradas.Dessamaneira,aartecontemporneaprofanaaantigaimagemdeum corpoidealizadoporintermdiodoreconhecimentodacorporalidadehumana,seja atravsdeumaaooupelanfasedasexualidade,autilizaodefluidoseodores (2009: 7-8). Temosaquiosdoisextremoshistricos,ideolgicoseestticosdotratamentodo corponasartesvisuaisocidentais:dosnusidealizadosdaGrcia corporalidade explcita do final do sculo XX. Este caminho da representao ao, perceptvel nas artes visuais, passouporlentasecomplexastransformaesparachegarsuaconfigurao contempornea. O papel desempenhado pela religiosidade judaico-crist foi decisivo nesse sentido,aoforarosartistasalidarcomaproibiodeadorarimagensecomaprpria caractersticaparadoxaldoserhumano,feitoimagemesemelhanadeDeus, queest almde todaimagem.Esteconflito,semdvidaafetouos modosde abordagemdocorpo no apenas por parte dos artistas, mas de toda a sociedade. 4 movimento: corpo e(m) performance ritual, violncia e erotismo Oquehojechamamosdeperformanceconsolidou-secomoformadeexpresso artsticanosanos1970,sobretudonosEstadosUnidoseEuropa.Ahistriadosartistas geralmenterelacionadosaestetipodeexpressoeseusprojetosestticos/polticos altamentecomplexaecontrovertida,acomearpelaprpriadefiniodoqueseria performance.Sobrea(im)possibilidadededefiniraperformance,escreveRoseLee Goldberg: Porsuaprprianatureza,aperformancedesafiadefiniesfceiseprecisasalmda simplesdeclaraodequearteaovivofeitaporartistas.Qualquerdefiniomais estritaimediatamentenegariaapossibilidadedaprpriaperformance.Poiselabusca material livremente em qualquer variedade de disciplinas ou mdias - literatura, poesia, teatro,msica,dana,arquiteturaepintura,assimcomovdeo,cinema,slidese narrativa-empregado-asemqualquercombinao.Defato,nenhumaformade expressoartsticapossuiummanifestotosemfronteiras,jquecadaperformerfaz sua prpria definio no prprio processo e maneira de execuo (2001: 9). Doispontostinhamdestaquenosprojetosdemuitosartistasquedesenvolveram trabalhosrelacionadoscomaperformancenosanos1970:oprimeirodelesdeordem (anti)disciplinaredizrespeitoaoquestionamentodasprpriasdivisesentreas modalidades de expresso artstica, tanto do ponto de vista acadmico quanto criativo; jo segundoaspectodeordemmercadolgicaedizrespeitoaumainquietaofrenteaj mencionada comodificao da arte observada no tratamento das obras como mercadorias e dos artistas como marcas. Nesse sentido, a performance poderia ser relacionada aoprojeto HUMANIDADES MDICAS 48INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 daarteconceitual,buscandoenfatizarforma/processo/ideiassobre contedo/produto/objeto.MarcelDuchamp,frequentementereputadocomopaidaarte conceitual por sua adoo do ready-made como proposta esttica, supostamente influenciou muitos artistas da performance que atuaram nos anos 1970. Como aponta Marvin Carlson, certosartistascomo[Allan]KaprownosEstadosUnidos,GilbertandGeorgena Inglaterra,eJosephBeuysnaAlemanhacomearamaseguirDuchampestendendo esteinteressenoprocesso,napercepoenarevelaodematerialjexistentes atividadesdocorpohumanocomopartedoambienteencontradoouconstrudo.O corpo,frequentementeocorpodoprprioartista,eramanipuladoetrabalhadocomo um material artstico. Na metade dos anos 1960 este trabalho passou a ser considerado no simplesmente um tipo de arte conceitual, mas uma abordagem em si mesma, qual os termos body art e performance art comearam a ser empregados (2004: 111). Carlson ainda chama ateno para o fato de que quase toda forma de atividade fsica foi explorada pelos artistas corporais dos anos 1970 [...] Entretanto, certamente a parte que atraamaisatenodamdiaedopblicoemgeraleramaspeasqueiamalmdas atividades cotidianas para forar o corpo a extremos ou mesmo submet-lo a considervel riscooudor(p.112).Estacaractersticadaviolnciaempregadanotratamentodocorpo porpartedemuitosartistasdaperformanceumtemaaoqualdaremosdestaqueneste movimento. Propomosumaabordagemdestaviolncianostrabalhosdealgunsartistas comumenterelacionadosperformanceebodyart,partindodeumacombinaodas ideias de Georges Bataille sobre o erotismo e do antroplogo Victor Turner sobre o estado de liminaridade observado em ritos de passagem realizados em determinadas comunidades. Nossos estudos de caso sero a francesa Orlan e o norte-americano Chris Burden. Quandofalamosdocorpoexpostoasituaesderisconaperformanceartstica,os chamadosAcionistasVienensessoummarcohistricoimpossveldeserignorado.O grupoformado,atuanteapartirdofinaldadcadade1960,executoudiversasaesque causarampolmicaporseucontedoviolento,explicitamentesexualouescatolgico. Conforme Franois Pluchart, Exceto por algumas provocaes dadastas [] os primeiros artistasqueexpuseramseuscorpossujeirapblicaeagressividadeforamquatro Vienenses Hermann Nitsch, Otto Muehl, Gnter Brus e Rudolph Schwarzkogler: Muehl, comsuasaespolticas,Nitschcomaesrituais,Schwarzkoglercomdesalienao sexual,e,aindamais,Brus,comaesqueenvolviamdefecaoeingestodeurina (1984:71).Tambmcomumemvriosautoresdestacarosefeitosdestasaesna sociedadedapoca:levandoognerodaperformanceaseusextremos,osAcionistas Vienenses[]fizeramdohorroredaobscenidadeoselementoscentraisdesuas apresentaes.Produzindofilmespornogrficoshard-coreerealizandoempblicouma srie de situaes tabu, os integrantes do grupo eram perseguidos e eventualmente detidos pelapolcia(SILVA,2008).Apesardascontrovrsiaslevantadaspelogrupo,suasobras sofrequentementecitadasnosprincipaiscompndiosacadmicossobrehistriadaarte, mostrando que o cnone esttico ocidental capaz de absorver tambm a controvrsia e o contedo potencialmente subversivo e questionador de um trabalho como este. Relacionar a performance violncia e ao risco no apenas uma questo de seguir apetitesmiditicosousensacionalistasdosquaisahistriadaarteeacademianoesto isentas de influncia, bom que sediga. Obviamente, o contexto histrico contemporneo fazcomqueestessejamassuntosexploradoseenfatizadosemdetrimentodeoutros aspectosrelevantesobservadosnasobras,masofatoqueabuscadatransgressoedo questionamentoatravsdaexposiodoprpriocorpoasituaesarriscadasumtrao INTERSEMIOSE Revista Digital 49 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 frequentenahistriadaperformance,sobretudonofinaldadcadade1960einciodos anos 1970, com reflexos que ainda podem ser percebidos na arte contempornea. Este fato dignodeinvestigao,independentementedosjuzosdevalorquefatalmentesero extradosdestasanlises.Alis,nosopoucososestudiososeartistasqueseopem abertamenteaestasprticas,argumentandoqueaespetacularizaodadormuitasvezes afasta-sedoquestionamentopolticoedouniversodacriaoesttica.Aocomentaro choquedosespectadoresapspresenciaremumaperformanceespecialmentearriscada (para o performer), Jean-Pierre Sag escreve que o trauma, pelo rompimento psquico que provoca,simplesmenteanti-esttico;otraumaanestesiatodaveleidadedesentimento esttico (2010: 203). Passemos s anlises de casos concretos, na esperana de que possam nos oferecer pistas para o aprofundamento destas questes. Noinciodosanos1970,oartistanorte-americanoChrisBurdenrealizouumasrie deperformancesnasquaissesubmetiaasituaesderiscocomopassarcincodias ininterruptos preso em um armrio escolar (Five-Day Locker Piece, 1971), levar um tiro de espingardanoprpriobrao(Shoot,1971),crucificar-seemumfusca(Trans-fixed,1974) ouengatinharsobrevidroestilhaadopor15metros(ThroughtheNightSoflty,1974). Apesardassituaesenvolveremperigoconcretoemuitasvezeslesesfsicas,oprprio artista afirma que Aparteimportanteaserlembradaqueeuarmeitudoisso.Eupodiapreverofim tambm (no se tratava de uma situao incerta, que o que parcialmente cria o medo) []Nuncasintoqueestoumearriscando.Aspeasdizemrespeitoaoquevai acontecer.Operigoeadorsocatalisadoresparapromoverascoisas.Isto importante. O objetivo ver como vou lidar com isso. O medo muito pior que o feito propriamente dito (1975: 121-122). Nomesmotexto,Burdenfaladevriasdesuasobras,enfatizandoadetalhada preparaodetodaselas.Estaatitudepodeserinterpretadacomoumadesmistificaoda tensogeralmentecausadanosespectadoresdevidoaoriscoenvolvidoemcadaao.Jan Butterfield corrobora a viso do artista ao descrev-lo como extremamente sereno, de fala mansaeprtico.Seuvocabulrioraramenteincluipalavrascarregadastaiscomopnico, terror e histeria. Ao discutir seus trabalhos, ele permanece sem emoes, exibindo o quieto senso de controle que se tornou uma forte marca de suas obras (p. 120). Neste depoimento deBurdenofococonceitualdasobrasaparecedeslocadodaquestomaisevidentedo perigo/dor/violnciaparaasreaesdespertadasnopblicocomoobjetivoprincipaldo artista em suas aes. AparticipaodopblicorealmentefoiestimuladaporBurdenemvriasdesuas aes,fosseprovocandodiretamenteosespectadoresoucolocando-seemumasituao passivaqueexigiadopblicoalgumaatitude,mesmoqueomissiva.Doisexemplosde aes, ambas realizadas em 1971, servem para ilustrar este vis de sua obra.A primeira ShoutPiece,naqualosconvidados,logoapsterementradonagaleria,foram bombardeadospelavozdoartistaamplificadaporumsistemadesomgritandorepetidas vezes e a plenos pulmes caiam fora daqui imediatamente! (p. 121). A segunda Prelude to 220, na qual o artista ficou preso ao cho da galeria por ganchos de cobre e posicionado muito prximo a dois baldes cheios de gua com fios de 110 volts submersos: caso algum espectador,pordecisooudescuido,derrubasseosbaldes,Burdenseriaeletrocutado. Entretanto, a reao de todos foi a apreenso e o distanciamento do pblico durante a ao (p. 122). Severdadeque,nestasobras,oriscoaparececuidadosamentecontrolado,a ponto de anular qualquer noo de perigo real, o mesmo no pode ser dito de aes como Shoot,Trans-fixedeThroughtheNightSoftly,nasquaisnohrisco,masaviolncia HUMANIDADES MDICAS 50INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 dirigidadiretamentecontraseucorpo,resultandoemferimentoselesesgraves.Aoque parece,nestescasosofocoseriaoutro,identificadocomoprojeto(poltico)demuitos artistasematividadenamesmapoca:afastar-sedofazdecontadarepresentaopara realizaraesverdadeiras,anulandoasfronteirasentrearteevida.Butterfieldafirmaque oelementoaparentementemasoquistaomaismal-interpretado.OcontroledeBurden sobresuamentee corporigidamenteasctico(p.121).Acrticade arteAmeliaJones, conheciaporseuvisfeminista,prope umaleiturainteressantedostrabalhosde Burden, relacionando assituaessquaiso artistasesubmetenoapenasaomasoquismo,mas ideiadomartrio(relacionadosantidade)comoestratgiautilizadapeloartista (deliberadamenteouno)parareiteraroscdigosnormativosdasubjetividadeartstica masculina(1998:130).JonestambmaproximaBurdendosAcionistasVienensespor evocaremacrucificaodeCristoeomartriodossantosposicionandoBurden metaforicamentenasfileirasdodivinosacrifcioartsticoalcanadopelosuicidaJackson Pollock (p. 131)9. AleituradeJones,focadanasrelaesdegneroobservadasnasobrasdeartistas ligadosperformanceebodyart,esuarefernciasantidadedomartrio,noslevaa pensarnaobradaartistafrancesaOrlan,quealcanounotoriedademundialquando comeouoprojetointituladoAreencarnaodeSantaOrlan,noinciodos anos 1990.O projetoconsistiaemumasriedecirurgiasplsticas(conduzidaspelaartistacomo elaboradssimas performances) nas quais submetia o prprio corpo a transformaes fsicas quebuscavamreproduzirumasriedeelementosanatmicospresentesempinturas clssicas que so considerados cones em relao aos padres de beleza ocidentais: a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o queixo da Vnus de Botticelli etc. Conforme Alyda Faber, Orlan diz que seu trabalho 'blasfemo'. Ela deliberadamente criaecorporificapardiasvisuaisdomartriocristoaoposicionar-sedemaneira cruciformenamesadeoperao.Estasimagensreforamsuaexcessivaapropriaoe corporificaodosrituaisdebelezafemininaquepressionamasmulheresabuscaruma perfeiofsicainatingvel(2008:119).EmumparalelocomaobradeChrisBurden, podemosdizerqueoobjetivodeprovocarreaesnosespetadorestambmaparececomo elemento central na obra de Orlan: a cirurgia plstica encarada como ritual violento busca aomesmotempodesconcertaropblicopelochoqueelegitimarasideiaspolticasda artista.EmcontrastecomBurden,podemosperceberumaposturadiferenteemrelao dor e ao sofrimento, na apologia da artista anestesia peridural. Em seuManifesto da arte carnal,Orlanescreve:Agorapossoobservarmeuprpriocorpoabertosemsofrercom isso! Possover at o fundo das entranhas, novo estdio do espelho10. Mais frente, a artistaescrevequeAartecarnalafirmaaindependnciaindividualdoartistaenesse sentido luta tambm contra os a priori e os ditados; por isto que se inscreve no social, nas mdias (onde desfaz ideias pr-concebidas e causa escndalo) (1999: 50). A postura crtica daartistafrentesociedadedeconsumoeseuspadresestticosnormativosevidente, masrevelasriasambiguidadesemumexamemaisdetido.ApesardeOrlanpregara 9JonesconsideraPollockumafiguraestratgicaparaaideologiaquepautouomodernismoeperodos anterioresdocnoneartsticoocidental.Estaideologiaeracaracterizada,entreoutroselementos,porum pretensodistanciamentoeimparcialidadenaatitudedeartistasecrticos.Estaatitude(mal)escondiauma posturamachistaeexcludentequeprocuravamanteravisodoartistacomosujeitomasculino,brancoede classemdia.AposioambguadePollocknahistriadaarteocidental(comentadarapidamenteno3 movimento deste ensaio) amplamente discutida por Jones no captulo The 'Pollockian performative' and the revision of the modernist subject (1998: 53-102). 10Estdiodoespelho:expressopropostaporJacquesLacanparadenominarafasedodesenvolvimento subjetivo infantil em que a criana interage com sua imagem especular (ver LACAN, 1966: 93-100 e NASIO, 2009). INTERSEMIOSE Revista Digital 51 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 liberdaderadicaldeescolharelativaaparnciadoprpriocorpo,Hans-ThiesLehmann aponta um paradoxo fundamental em sua obra: Orlan demonstrasua liberdade tendencialmenteabsoluta deescolher a'si', o queseria umapremonioda'sociedademultiopcional',naqualnadamaisserdadopela natureza, de modo que o indivduo ter de arcar com o peso de sua prpria escolha e de sua responsabilidade. Ao mesmo tempo, porm, as performances de Orlan evidenciam com umaclarezaestarrecedora que no fundojseabdicou da'vontade' justamenteali ondeelaparecemaispoderosaecorajosa.Eladecaboarabocondicionadapor normas culturais, ideais de beleza e modelos de representao (2007: 232-233). OquestionamentodeLehmannencontraecoemvrioscomentadoresdaobrade Orlan.Trata-sedeumaquestotopertinentequantocomplexaemsuasimplicaes, reportando-seatodaumagamadeaesextremasrealizadasporartistastendoseus prprios corpos como alvo. Notadamente, a violncia contra o prprio corpo teve um papel preponderantenaexpressodeposicionamentospolticosporpartedemuitosartistas ligados performance, como pudemos observar nos casos de Burden e Orlan. Entretanto, o contedopolticoeideolgicodestasmanifestaesexpressivaspareceapresentaruma caractersticaambgua,quetornaproblemticassuaspossveisinterpretaes.Nossa propostaampliaradiscussodosestudosdecasoutilizandoaquestodarelaoentre erotismoeviolnciapropostaporBatailleerelacionandoestaproposiosideiasde Victor Turner sobre a liminaridade nos ritos de passagem. Arelaoentreerotismoeviolncia(concretizadanatransgresso)propostapor Bataille em seu clssico estudo baseada na dialtica entre dois estados que ele chama de descontinuidadeecontinuidade.Oprimeirorepresentariaaindividualidade,a separao (tanto fsica quanto psicolgica/espiritual) de cada indivduo em relao ao resto domundoe,principalmente,atodososoutrosindivduos;adescontinuidadeest fundamentalmenterelacionadaexistnciahumana,condicionandoinclusiveasrelaes interpessoais. Ja continuidadedizrespeitoaoestadodeindiferenciao e(con)fuso,no qualnopossvelfalaremindivduos,masapenasemumatotalidadeindiferenciadae englobante; este estado corresponderia morte ou pr-vida, fases localizadas nos limites da experincia humana, sobre as quais apenas podemos especular. Apassagemdeumestadoaoutroconstanteereflete-seemvriosnveisdavida humana,inclusivenasmaisbsicasinteraescelulares.Batailleassimsituaa descontinuidade em relao ao processo de reproduo: Areproduocolocaemjogoseresdescontnuos.Osseresquesereproduzemso distintos uns dos outros e os seres originados so distintos entre eles como so distintos daquelesdosquaisnasceram.Seunascimento,suamorteeosacontecimentosdesua vida podem interessar aos outros, mas ele o nico diretamente interessado. Ele nasce sozinho.Elemorresozinho.Entreumsereoutroexisteumabismo,existeuma descontinuidade [...] Somente podemos sentir em comum a vertigem deste abismo. Ele pode nos fascinar. Este abismo em certo sentido a morte e a morte vertiginosa, ela fascinante [...] a reproduo leva descontinuidade dos seres, mas ela coloca em jogo sua continuidade, o que quer dizer que ela est intimamente ligada morte (1957: 18-19) AdinmicaapontadaporBataillenoprocessodereproduoestende-sesrelaes erticas em geral j que os amantes buscariam sua continuidade uns nos outros.Conforme opensamentodeBataille,poderamosdizerqueoatosexual,emltimaanlise,uma tentativa de fuso entre os dois amantes, isto , uma tentativa de romper as barreiras que os HUMANIDADES MDICAS 52INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 definemcomodoisindivduos.Estabuscaportransporoabismodadescontinuidadee encontrar a unidade perdida no nascimento apresenta uma ambivalncia fundamental j que a continuidade - ligada que est morte/pr-vida, ou se preferirmos, ao desaparecimento do indivduo enquanto tal - temida com a mesma intensidade com que desejada. Abuscaambivalentepelacontinuidadetambmestligadaaosagrado.Basta examinarmosanoodeexperinciamsticapresenteemmuitastradiesreligiosas:a fuso total do indivduo com o universo equivale ao retorno do indivduo (descontnuo) ao todo(contnuo)queooriginoueaoqualretornarquandomorrer.Entretanto,esta passagemdeum estado aoutrotantopodeequivaler mortecomoaumarelao ertica. ParaBataille:odesenvolvimentodoerotismonoemnadaexterioraodomnioda religio, mas justamente o cristianismo, opondo-se ao erotismo, condenou a maior parte das religies. Em certo sentido, o a religio crist talvez a menos religiosa (p. 38). ComoasrefernciasaopensamentodeLvi-Straussnosdeixamperceber,ocampo daantropologiaconstantementeutilizadoporBataillenaaplicaodesuasideiasaum contextomaiscomplexoderelaessociais.Apresenadadialticaentreosestadosde descontinuidade e continuidade na vida social fica ainda mais evidente quando analisamos o pensamento de Victor Turner, um dos responsveis por lanar as bases do que viria a ser conhecido como antropologia da performance. Turner, na busca de um modelo de anlise antropolgicaquecomplementasseasdeficinciasdeumpensamentoexcessivamente dominadopelofuncionalismoepeloestruturalismo,propsumacategoriaanalticaque batizou de drama social. Nas palavras de Turner, os dramas sociais seriam unidades de processos sociais a-harmnicos ou desarmnicos que afloram em situaes deconflito.Tipicamente,elespossuemquatrofasesprincipaisdeaopblica.Elas so:(1)Rupturaderelaessociaisregularesegovernadaspornormas;(2)Crise, durante a qual existe a tendncia de ampliao da ruptura. Cada crise pblica possui o que eu agora chamo de caractersticas liminares, j que um limiar (limen) entre fases maisoumenosestveisdoprocessosocial,masnosempreumlmensagrado, cercadodetabusemarginalizadoemrelaoaoscentrosdavidapblica.Pelo contrrio, ele assume suainstnciaameaadora no prprio frum, e, como tal, desafia osrepresentantesdaordemacombat-lo;(3)Aoderetificao,variandodo conselho pessoal e mediao ou arbitrao informal a mecanismos formaisjurdicos e legais, e, para resolver alguns tipos de crises ou legitimar outros modos de resoluo, performancedeumritualpblico.Aretificaotambmpossuisuascaractersticas liminares,poisestentre,nomeio,e,comotal,fornecearplicaeacrtica distanciadaos eventos que compem e conduzem crise. Esta rplica pode acontecer noidiomaracionaldoprocessojurdicoounoidiomametafricoesimblicodeum processoritual;(4)Afasefinalpodeconsistiremreintegraodogruposocial perturbado ou no reconhecimento e legitimao de um cisma irreparvel entre as partes opostas (1988: 74-75). AspalavrasdeTurnernosfazemvoltaraBataille,queapontaatransgresso (identificadacomaviolncia)comoelemento-chavenabuscaambivalentepela continuidade. Bataille chega a afirmar que no h interdito que no possa ser transgredido. Muitas vezes a transgresso admitida e mesmo frequentemente prescrita (1957: 71). Sem ointerditoesuatransgresso,noseriapossvelomovimentohumanoemdireo unidadeperdida-representadademaneiraambguaeintercambivelpelafusocomo divino, pelo desaparecimento na morte ou pelo encontro ertico com o ser amado. Do ponto devistadaantropologia,atransgressodaordemfazpartedeumprocessoquegarantea estabilidadedasorganizaessociais,istoficamaisclaroquandoanalisamosas caractersticas do que Turner chama de liminaridade. INTERSEMIOSE Revista Digital 53 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 AcaractersticaliminardequenosfalaTurnerumdadoimportanteparaa compreenso de como a ritualizao do espao-tempo articulada na performance artstica contempornea.Oantroplogodefinealiminaridadeapartirdaestruturadosritosde passagem, nos quais certos indivduos so temporariamente separados da comunidade com vistas a uma posterior reintegrao. Durante este perodo de separao (chamado de liminar egeralmenteacompanhadodoisolamentodosparticipantes)possuicaractersticasmuito especiais em contraste com a organizao social da vida cotidiana. Conforme Turner, Os atributos da liminaridade ou das personae liminares so necessariamente ambguos, jqueestacondioeestaspessoaseludemouescorregamporentrearedede classificaes que normalmentesituaestados e posiesno espao cultural. Entidades liminaresnoestoaquinemali;elasestoentreasposiesdesignadaseordenadas pelalei,costume,convenoecerimonial.Comotais,seusatributosambguose indeterminadossoexpressosatravsdeumaricavariedadedesmbolosnasmuitas sociedadesqueritualizamtransiessociaiseculturais.Destaforma,liminaridade frequentementeligadamorte,aestarnoventre,invisibilidade,escurido, bissexualidade, ao estado selvagem, e ao eclipse do sol e da lua (2007: 89-90) AoestadodeliminaridadecorrespondeoqueTurnerchamoudecommunitas,ou seja,avidadiferenciada,hierarquizadaeorganizadapelasnormassociais.Ambosos estados guardam uma relao dialtica, refletindo os vrios momentos de transio em que osindivduosmodificamaposioqueocupamnasociedade.Oparalelocomo pensamentodeBataillenopoderiasermaisclaro:aliminaridadeseriaumametforada continuidade,doestadodeindiferenciaoeambiguidade,enquantoadescontinuidade seria representada pela vida social diferenciada hierarquicamente e orientada pelas normas e pelo costume. Oartistadaperformanceumritualizadordoinstante-presente,naexpressode Renato Cohen: ao aproximar arte e cotidiano, busca-se a dimenso transformadora da arte. Para Cohen, este movimento dialtico, pois na medida em que, de um lado, se tira a arte de uma posio sacra, inatingvel, vai se buscar, de outro, a ritualizao dos atos comuns da vida (2007: 38). Richard Schechner relaciona certas situaes ligadas ao corpo exploradas por muitos artistas da performance a um movimento que busca eliminar as fronteiras entre arte/vida, artista/pblico, dentro/fora: Asartesdeperformanceocidentaispermanecemempenhadasemmanterperformerse receptoresseparados.Palcossoelevados;cortinasmarcamumlimite;espectadoresso fixadosemseusassentos.Artistasconvencionais,acadmicosecrticosnovem sincronicidade esinestesia combonsolhos.Comer,digesto eexcreonosopensados como espaos corretos de prazer esttico. Estes espaos - parte de shows de rock, raves e partidas esportivas- esto mais no domnio da arte-performance. Nos primeiros tempos da arte-performancehaviamCaroleeSchneemann,AllanKaprow,ShiragaKazuo,Hermann Nitsch,ChrisBurden,Stelarc,PaulMcCarthyeoutros.MaistardevieramMikeKelley, KarenFinley,AnnieSprinkle,RonAtheyeFrankoB.-todosinsistindoemtornaro corpoexplcito.Seutrabalhocomeouaelidirasdiferenasentreointerioreoexterior; enfatizar permeabilidade e porosidade; explorar o sexual, o doente, o excretor, o molhado, omalcheiroso.Performancesutilizavamsangue,smen,saliva,fezes,urina-assimcomo comida, tinta, plstico e outras coisas buscadas no literal em vez do faz de conta (2003: 357-358). Alm da conotao poltica mais evidente, esta busca pelo rompimento de fronteiras, epelaaproximaoentrecriaoartsticaevidacotidiana,podeserrelacionada transgressodelimiteseaodesejodecontinuidadedequenosfalaBataille.Tambmno HUMANIDADES MDICAS 54INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 ritualenosritosdepassagemocorpohumanosubmetidoasituaesextremas(tortura ritual,maustratos,jejum,confinamento,silncioprolongadoetc.)quemetaforizamou induzemoestadoliminarapontadoporTurner.Jean-PierreSagpensaquecertas performances fundadas no risco podem remontar a uma espcie de nostalgia das estruturas iniciticas,representandoumsubstitutotobrutalquantodesesperado(2010:201). Naturalmente, estas aes trazem um risco fundamental: o risco de desaparecer, de perder-se,dedeixarde existir,demorrer.Aexperincia msticade fusocomodivinofascinae ameaaoindivduonoplanoexistencial,oprojetodefundirarteevidapotencialmente revolucionrionoplanointerpessoalpordesafiardefinies,processoscriativos,campos acadmicosesistemaseconmicos,polticosesociais.Asaesviolentasdosartistasda performance,motivadasporquestesindividuaisecoletivasdasmaisdiversasorigens, podemtambmserencaradascomometforasradicaisdeumanecessidadede transcendnciaemumapocamarcadapelovaziodoconsumismo,pelaespetacularidade alienante da mdia e pela onipresena da violncia na sociedade. Coda: pensar, agir, criar, transgredir, arriscar Muitasobrasnasquaispossvelperceberecosdestasaesviolentascontinuama ser realizadas por artistas contemporneos, mas seu alcance expressivo e poltico parece ser cadavezreduzido.Aartecannicaeseuscorolrios(museus,galerias,crticose acadmicos) terminaram por absorver estas manifestaes que, pelo menos em seu projeto inicial, opunham-se a todo este sistema. Conforme Amelia Jones Ofracassodaliveart,performancearte/oubodyartemdestruirestasestruturas[o mercadodaarte,acrticaeaacademia]deumavezportodas,queapontaparasua incomumhabilidadedeabsorverqualquercoisa(atoaovivoouefmero)como mercadoria, no deve desvalorizar o projeto de insistentemente inserir, performar, atuar e/ourepresentarocorpocomocentralparaocampodasartesvisuais.Emvezdisso, deveriatornarmaisimperativoquedisciplinascomohistriadaarteoutrans disciplinascomoosestudosdaperformance,reconheamascomplexidadesdecomo taisprticassolevadasacaboeestoposicionadasculturalmenteeso valoradas/interpretadas discursivamente e institucionalmente (2008: 162). A prpria Jones afirma que as disciplinas acadmicas vm caminhando no sentido de compreender de forma mais abrangente o papel do corpo e da performance nas artes. Muito jfoifeitonessesentidoemuitasmudanasjpodemserobservadasnaorganizaode muitasdisciplinasemuniversidadesmundoafora.Entretanto,senocampodapesquisa acadmicaascoisasparecemcaminharnosentidodeampliareaprofundarantigos questionamentos,novispolticoemercadolgicoosavanosparecemserbemmais tmidos.Ocrescenteabismoentreaproduoartsticacontemporneaeopblico significativo demais para ser ignorado, e parece negar a (j antiga) ideia de aproximar arte e vida atravs da performance. Talvez a questo do risco seja um dos principais aspectos a serem destacados quando falamosdasmetforasradicaisqueartistascomoOrlan,ChrisBurden,osAcionistas Vienenses e tantos outros literalmente sentiram na pele. Talvez uma das grandes lies que as geraes mais jovens possam aprender com estes artistas seja encarar o risco da maneira maisamplapossvelnoatocriativo:oriscocomoprticadopensamento",nafeliz expressodeFranoisPluchart(1984).Afinal,toingnuoquantopensarnestas performancescomoabsolutamenteredentorasourevolucionriasnegarqualquerefeito INTERSEMIOSE Revista Digital 55 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 transformadorquepossamviraexercernasociedade.Napiordashipteses,apolmica pode nos levar reflexo e ao aprofundamento das discusses. Correr riscos no campo da artenosignificaapenassubmeter-seasituaesdeperigorealintegridadefsicaem performancesmuitasvezesidentificadascomumradicalismoquebeiraopatolgico,mas encarar o ato criativo em toda sua potencialidade transgressora. Retomando as metforas de Bataillesobreareproduohumana,podemoscompararacriaoartsticaaoprocesso reprodutivo(envolvendoideiaseaesnolugardasclulas),comtodaaviolnciae incerteza que este movimento necessariamente representa. Referncias bibliogrficas AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1975. BAUDELAIRE, Charles. Le peintre de la vie moderne. Paris: Litteratura, 2010 [1863]. BARTHES, Roland. Le grain de la voix. Lobvie et lobtus. Paris: Seuil, 1982. BATAILLE, Georges. Lrotisme. Paris: Minuit, 1957. BEAUVOIR, Simone de. Le deuxime sexe volume 2. Paris: Gallimard, 1990 [1949]. BISHOP,Claire.ParticipationDocumentsofContemporaryArtSeries.Cambridge:MITPress, 2006. BRETON, Andr. Manifestos do surrealismo. Trad. Luiz Forbes. So Paulo: Brasiliense, 1985. BURDEN,Chris;BUTTERFIELD,Jan.ThroughtheNightSoflty.BATTCOCK,Gregory; NIKLAS, Robert (Org.) The art of performance: a critical anthology. UBU Editions, 2010 [1975]. BUTLER,Judith.PerformativeActsandGenderConstitution:AnEssayinPhenomenologyand Feminist Theory. Theatre Journal, Vol. 40, No. 4, 1988. CARLSON, Marvin. Performance: a critical introduction. Nova York: Routledge, 2004. CASTARDE, Marie-France. La voix et ses sortilges. Paris: Les Belles Lettres, 2004. CLARK, Lygia; OITICICA, Hlio. Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. _____. Lygia Clark Arte Brasileira Contemporna. Rio de Janeiro: MEC-Funarte, 1980. COHEN, Renato. Performance como linguagem. So Paulo: Perspectiva, 2007. DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Flix.Oanti-dipo.Trad.GeorgesLamazire.RiodeJaneiro: Imago, 1976. DOLAR, Mladen.The objectvoice.IEK, Slavoj; SALECL, Renata(Org.)Gaze and voice as love objects. Durham e Londres: Duke University Press, 1996. FABER, Alyda. Saint Orlan: ritual as violent spectacle and cultural criticism. BIAL, Henri (Org.) The Performance Studies Reader. Nova York: Routledge, 2008. HUMANIDADES MDICAS 56INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. FRYE, Northrop. Anatomy of criticism. New Jersey: Princeton Uiversity Press, 2000. _____. Fbulas de identidade: estudos de mitologia potica. Trad. Sandra Vasconcelos. So Paulo: Nova Alexandria, 2000a. GOLDBERG.RoseLee.Performanceart:fromfuturismtothepresent.Londres:Thamesand Hudson, 2001. GREINER, Christine. O corpo pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Annablume, 2006. GROSZ, Elizabeth. Volatile bodies: toward a corporeal feminism. Bloomington: Indiana University Press, 1994. HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia:tenses na poesia modernista desde Baudelaire. Trad. Alpio Correia de Frana Neto. So Paulo: Cosac Naify, 2008. HANISCH,Carol.Thepersonalispolitical.Disponvelem: http://www.carolhanisch.org/CHwritings/PersonalisPol.pdf (acesso em 04/05/2011). JOLLES, Andr. Formas simples. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1976. JONES,Amelia.Liveartinarthistory:aparadox?.DAVIS,TracyC.(Org.)TheCambridge companion to performance studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. _____. Body art: performing the subject. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998. LACAN, Jacques. crits. Paris: Seuil, 1966. LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrpolis: Vozes, 2010. _____. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2009. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro ps-dramtico. Trad. Pedro Sssekind. So Paulo: Cosac e Naify, 2007. LIPPARD,Lucy.Sixyears:thedematerializationoftheartobjectfrom1966to 1972.California: University of California Press, 1997 [1973]. LYOTARD, Jean-Franois. The Inhuman: reflections on time. Trad. Geoffrey Bennington e Rachel Bowlby. Cambridge: Polity Press: 1991. MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MENEZES,Philadelpho.Poesiasonora:poticasexperimentaisdavoznosculoXX.SoPaulo: Educ, 1992. MORAES, Eliane Robert.O corpo impossvel: a decomposio da figura humana de Lautramont a Bataille. So Paulo: FAPESP/Iluminuras, 2002. NASIO, J.-D. Meu corpo e suas imagens. Trad. Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. NOCHLIN, Linda. The body in pieces: the fragment as a metaphor of modernity. Londres: Thames and Hudson, 1994. INTERSEMIOSE Revista Digital 57 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 OITICICA,Hlio.Basesfundamentaisparaumadefiniodo'parangol'.Disponvelem: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=49&tipo=2 (acesso em 10/05/211). ONG, Walter J. Orality and literacy - the technologizing of the word. Londres: Routledge, 1982. ORLAN. Manifeste de l'art charnel. La Voix du Regard, n 12, 1999. OSTROWER, Fayga. Acasos e criao artstica. Rio de Janeiro: Campus, 1999. PLUCHART,Franois.RiskasthePracticeofThought.BATTCOCK,Gregory;NIKLAS, Robert (Org.) The art of performance: a critical anthology. UBU Editions, 2010 [1984]. ROSENBERG, Harold. The tradition of the new. Cambridge: Da Capo Press, 1994 [1959]. RYLE, Gilbert. The concept of mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2002 [1949]. SAG, Jean-Pierre. Corps et reprsentation dans la performance. JIMENEZ, Marc (Org.) Corps et arts. Paris: Klincksieck, 2010. SARDUY,Severo.Escritosobreumcorpo.Trad.LgiaChiappiniMoraesLeiteeLciaTeixeira Wisnik. So Paulo: Perspectiva, 1979. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique gnrale. Paris: Payot, 1995 [1916]. SCHECHNER, Richard. Performance theory. Nova York: Routledge, 2003. SILVA, Priscilla Ramos da. Os acionistas vienenses: revolucionrios ou perversos?. Anais do IV Encontro de Histria da Arte. Campinas: UNICAMP, 2008. TURNER,Victor.Liminalityandcommunitas.BIAL,Henry(Org.)ThePerformancestudies reader. Nova York: Routledge, 2007. _____. The anthropology of performance. Nova York: PAJ Publications, 1988. ZUMTHOR,Paul.Aletraeavoz:aliteraturamedieval.Trad.AmlioPinheiroeJerusaPires Ferreira. So Paulo: Companhia das letras, 1993. _____.Performance,recepo,leitura.Trad.JerusaPiresFerreiraeSuelyFenerich.SoPaulo: Cosac Naify, 2007.