Movimentos na Terra Unidade 1. Movimentos na Terra Unidade 1 1.4 Velocidade e movimentos.
Movimentos do corpo na arte- discurso, representação, presença e transgressão
-
Upload
jose-leite -
Category
Documents
-
view
217 -
download
1
description
Transcript of Movimentos do corpo na arte- discurso, representação, presença e transgressão
INTERSEMIOSE Revista Digital 35 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Movimentos do corpo na arte: discurso, representao, presena e transgresso Conrado Vito Rodrigues Falbo (Doutorando em Letras) Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Resumo: Nesteensaio,procuramostraaremlinhasgeraisalgunsdoscaminhospercorridospelocorpona arteocidental.Oobjetivoprincipalfoiarticularopensamentosobreocorponafilosofia, lingustica,estudosculturais,antropologiaetc.produoartsticaobservadasobretudonos camposdaliteraturaedasartesvisuais.Nossofocoanalticorecaiusobreperspectivastericase prticascriativasquedesafiamclassificaesdisciplinares,comoaperformanceeoscamposde pesquisaacadmicaaelarelacionadosdiretaouindiretamente.Nestaperspectiva,destacamos algumas manifestaesartsticas que lidam com a questo do corpo submetido a situaes de risco e/ou violncia explcita. Estas manifestaes parecem ser reveladoras de profundas tenses sociais e existenciaiselaboradasporumnmerosignificativodeartistasemsuasobras,sobretudonosanos 1960-70,cominflunciasqueaindapodemserpercebidascomoaspectorelevanteemmuitas criaes contemporneas. Palavras-chave: Corpo; Performance; Intersemiose. Abstract: InthisessaywithseektodrawingenerallinessomeofthepathofthebodyinWesternart.The main goal was to articulate the thinking about the body in philosophy, linguistics, cultural studies, anthropologyetcwiththeartproduction,primarilyinliteratureandvisualarts.Ouranalytical focus has been placed in theoretical perspectives and inventive practices that challenge disciplinary labeling,suchasthePerformanceandtheacademicresearchrelatedtoit,directlyorindirectly. Followingthisstandpoint,wehighlightsomeartisticactionsdealingwiththeissuesoftheBody subjectedtodhazardoussituationsand/orgraphicviolence.Theseactionsseemtounveilprofound socialandexistentialtensions,especiallyintheyears1960-70,leavinginfluencesthatcanstillbe perceive as relevant features in several contemporary works. Keywords: Body, Performance, Intersemiosis. Preldio: pensando (com) o corpo OantroplogoDavidLeBretonchamaatenoparaumatradiodesuspeitado corpo[que]percorreo mundoocidental desdeospr-socrticos(2009:13).Aconhecida imagemplatnicadocorpocomoprisodaalmafoiemgrandeparteresponsvelpor fundamentarumatradiodepensamentodualistasegundoaqualocorpoeraencarado comoparteapartemenosnobreereverenciadadatotalidadedoserhumano:aoutra parte seria a alma.No universo das religiosidades gnsticas encontramos o dualismo entre corpoealmaconsolidadoeaprofundadoemsuasimbologia:ocorpoidentificadocoma decadncia,acorrupo,osapetitesinstintivos,amorteeoMal,enquantoaalmaestaria relacionadapermanncia,plenitude,aoconhecimentoeaoBem.Oracionalismo HUMANIDADES MDICAS 36INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 cartesianocomparaocorpoaumamquina,comumaclarasuperaodoprimeiropela segunda, afinal, ainda que o corpo seja considerado um mecanismo engenhoso e complexo, no pode vencer a constncia e a confiabilidade da mquina. Afenomenologiaparececonsolidarumnovoolharsobreocorponopensamento filosfico.NasobrasdeMauriceMerleau-PontyeHenriBergson,paracitarapenasdois exemplos,ocorpoaparececomdestaqueemsuaspreocupaes,enfatizandosua dinamicidade e importncia no processo de percepo. Reportando-se diretamente s ideias de Descartes, o britnico Gilbert Ryle escreveu que a verdadeira questo no era dividir o ser humano em corpo e mente (o equivalente cartesiano da alma platnica), pois a diviso era ilusria e fundamentada em uma confuso de categorias, mas sim pensar de que formas opensamentotorna-seao(1949).AcrticadeRyle,queevocavaemmuitossentidos algumasideiasdeSpinoza,tornou-seclebrepelaexpressocriada,nosemumanotade ironia,parafazerrefernciaaodualismocartesianoentrecorpoemente:ofantasmana mquina. Outraimportanterupturanatradiofilosficaocidentalsobreocorpofoi introduzidapelopensamentodeFriedrichNiezstcheeAntoninArtaud,comoaponta Christine Greiner: Comeava uma mudana radical cujo foco cognitivo estaria sempre na fissura, nas fendas, nos entremeios e no nas partes organizadas de um todo monoltico [] EmNiezstche,assimcomoemArtaud,colocadaemchequeasoberaniadosujeitoede qualqueroutropodercentralizador,incluindodeus(2006:24-25).importanteressaltar queArtaudfoiresponsvelporcunharotermocorposemrgos,espciedeanti-conceitoquesimbolizaumcorpofragmentadoereorganizadoconformecritriosno absolutos e em constante transformao. Mais recentemente, o corpo vem sendo considerado espao privilegiado a partir do qualsoarticuladasrelaesentreavidaprivadaeasrelaesscio-polticas.Nesse sentido,osmovimentosfeministasforamparadigmticosaoinsistirnomotedequeo pessoalpoltico"(Hanisch,1969).Anfasenocorpo(nadapoderiasermaispessoal) apareceaquicomosignodiferencialquemarcaaindividualidadeebuscadesmascarara caracterstica ideolgica e opressora de comportamentos aceitos como naturais e universais nasrelaessociais.ElizabethGroszpercebeumsintomaclarodestasquestesquando acusaafilosofiaocidentaldeumaprofundasomatofobia(1994).Antesdaexplosodo feminismo nos Estados Unidos como movimento poltico organizado, Simone de Beauvoir j havia alertado para os perigos da viso reducionista que iguala sexo e gnero: on ne nat pasunefemme,onledevientNosenascemulher,torna-se(1949).Estaideiaseria aprofundada e matizada por pensadoras contemporneas como Judith Butler, ao propor uma viso performativa do corpo segundo a qual o gnero no um dado, mas uma identidade constituda de forma tnue atravs do tempo uma identidade instituda por meio de uma repetioestilizadadeatos.Indoalm,ogneroinstitudopormeiodaestilizaodo corpoe,portanto,precisasercompreendidocomoamaneiramundananaqualgestos corporais,movimentoserepresentaesdevriostiposconstituemailusodeuma identidade de gnero duradoura (1988: 519. Grifos meus)3. Butler ressalta ainda a potncia subversivadocorpoemrelaoaomodelonormativoqueigualasexoegnero:ocorpo torna-se, assim, elemento estratgico nas chamadas polticas de identidade que dominaram a cena do pensamento poltico e filosfico ocidental sobretudo a partir dos anos 1980 e cuja fora ainda pode ser sentida de forma clara contemporaneamente. Mantendo o corpo como ponto articulador das reflexes sobre relaes individuais e scio-polticas, no poderamos deixar de citar os pensadores ligados ao ps-estruturalismo. 3 Exceto nos casos indicados nas referncias, todas as tradues so de minha responsabilidade. INTERSEMIOSE Revista Digital 37 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Apreocupaocomasrelaesdepoderemjogonalinguagemeainflunciada psicanlise lacaniana foram de grande valia para a histria ocidental do pensamento sobre o corponasobrasdeJuliaKristeva,JacquesDerridaeMichelFoucault,paracitarapenas alguns exemplos. Destacamos o passeio do esquizo tal como descrito por Gilles Deleuze eFlixGuattarinocontextodesuacrticaaocapitalismoeaparenteinsuficinciada psicanlisefreudianaemlidarcomasquestessurgidasnointeriordestesistema:emum mundo no qual a natureza vivida no como natureza, mas como processo de produo (1976:16),osautoresnosfalamdemquinasdesejantesenomaisdesujeitoscomo elementos centrais no projeto que batizaram de esquizoanlise. A ps-modernidade levou as questes do corpo a extremos at ento inconcebveis. A consolidao e desenvolvimento do capitalismo, assim como o rpido avano e crescente acessibilidadedenovastecnologiasfizeramcomqueJean-FranoisLyotard,emumlivro intituladosugestivamenteOinumano,questionassecomotornarpossvelopensamento semocorpo(1991:13),concluindoqueapenasumaquestodetempoatquea tecnologia nos oferea uma resposta vivel e satisfatria. Cabeas rolaram por bem menos aolongodahistriadopensamentoocidental,masseaperguntadeLyotardaindapode soarescandalosa(eathertica)ssensibilidadescontemporneas,bemverdadeque muita coisa j mudou em relao ao modo como encaramos nossos prprios corpos, seja no campo do comportamento, da filosofia ou das artes. Todoestepercursoparececulminaremumavisopluraldocorpo,oumelhor,na necessidadedeconsiderarcorporeidadesemvezdeencararocorpocomocategoria universal e fixa. Le Breton tambm chama ateno para o fato de que Esquecemoscomfrequnciaoquoabsurdonomearocorpocomosefosseum fetiche, isto , omitindo o homem que o encarna [] O corpo no uma natureza. Ele nemexiste.Nuncaseviuumcorpo:oquesevsohomensemulheres.Nosev corpos. Nessas condies o corpo corre o risco de nem mesmo ser um universal (2010: 24). Asimplicaesdestaposturapodemserpercebidasnaprpriaformadefazer refernciaaocorpopormeiodalinguagem,razopelaqualomovimentoseguintedeste ensaiodedicadorelaoentrecorpoediscurso.Estepreldionopretendeuser exaustivonemconclusivoemsua(brevssimaenecessariamentegrosseira)exposiode abordagensfilosficasdocorpo,muitoaocontrrio,seuobjetivofoideixarfiossoltose ideiasinconclusas,antecipandoaaberturaeaindefinioquejulgamosnecessriasno tratamento dos temas aqui abordados. 1 movimento: corpo e discurso da abstrao ao performativo Jnaprimeirapartedoseucursodelingusticageral,Saussuresepara conceitualmentelinguagem(faculdadehumana,multiformeeenglobante),lngua (relacionando-secomalinguagemcomoseuprodutosocialeconjuntodeconvenes necessriasadotadassocialmenteparapermitiroexercciodestafaculdade)efala(ato individual de vontade e inteligncia na utilizao do cdigo lingustico) (1916: 23-32). Por sua identificao com a agncia e o arbtrio individual, o corpo parece estar mais do lado da falaquedalngua.Almdisso,afalapressupeautilizaodocorpocomoinstrumento atravsdoqualalnguairdesempenharsuasfunes.ParaSaussure,alnguaum princpiodeclassificao(p.25)enoumafunodosujeitofalante,elaoproduto queoindivduoregistrapassivamente(p.30).primeiravista,teramosaquiuma HUMANIDADES MDICAS 38INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 reproduodomecanicismocartesianonaimagemdeumamquinafalante",masbem verdadeque,seSaussureparecenoreconheceraagnciahumananalngua,eledeixa claroqueestaagnciaexisteemsuautilizao(fala),aindaquebemenquadradapelas convenes da lngua - convenes do corpo social e no do corpo individual do falante. Obviamenteestaseparaoconceitualdmargemaquestionamentos,sobretudo quando examinamos um elemento de suma importncia nas relaes entre corpo e discurso: avoz.conhecidaacentralidadeatribudaporSaussurecaractersticasonorada linguagem.Entretanto,opensadoreslovenoMladenDolarchamaatenoparaofatode que,comaviradasaussuriana,afontica(descriodecomoossonsdalnguaso produzidos,apartirdeobservaoemprica)foisubstitudapelafonologia(reduoda lngua a estruturas formais abstratas e puramente relacionais), com consequncias drsticas para o lugar do corpo na linguagem: Osossos,carneesanguedavozforamdivididos,semdeixarrestos,emumateiade traosestruturais,umalistadepresenaseausncias.Ogestoinauguraldafonologia foi, dessa maneira, a total reduo da voz como substncia da linguagem. A fonologia, fielsuaetimologiaapcrifa,tratavademataravozemsuaorigemhogrego phon, voz, mas tambm possvel ouvir,muito apropriadamente, phonos, assassinato (1996: 9). A questo parece especialmente grave se lembramos da voz como agente mediador entre corpo e linguagem: avoz mediao, no somente para o prprio sujeito entre seu corpoealngua,mascomavozdooutro[]afalalevadapelavozdiferentedo pensamento,poisoresultadodeumadescargamotora(CASTARDE,2004:134). Barthescriouaexpresso grodavozemsua anlisedarelaoentreouvinteecantor, descrevendo-ocomoocorponavozquecanta(1982:243).Parecevlidoproporuma analogia entre a voz como reveladora do corpo e da subjetividade e as teorias psicanalticas de Jacques Lacan e Franoise Dolto sobre o corpo (ou, mais precisamente, sobre a imagem do corpo) como elemento fundamental na consolidao da subjetividade, sobretudo durante a infncia (ver NASIO, 2009). Como ento entender a fala de maneira dissociada do corpo? Nocaminhodereintegraoentreosconceitossaussurianosdelnguaefala, podemos citar como divisor de guas o pensamento de J. L. Austin observado sobretudo em seu conceito de atos de fala (speech acts). Para Austin, em determinadas circunstncias, a lnguanodesempenhafunoapenasdeclarativa,masperformativa,ouseja,existem algunscasosemquedizeralgumacoisafazeralgumacoisa(1975:12).Entreestas elocues (utterances) classificadas como performativas, Austin cita a frase eu aceito dita pelos noivos na ocasio do matrimnio: a frase no apenas declara uma inteno, pois, ao pronunci-la,osnoivoscontraemmatrimnio.Porsuanfasenossujeitosfalanteseno contextoemquefalam, asideiasdeAustincontriburamparaqueaabstraosaussuriana fosse repensada em termos mais concretos. Paralelamente lingustica, o campo dos estudos literrios sofreu grande influncia deumavisodaliteraturaexcessivamentefocadanaescrita,naimprensaenaleitura individual e silenciosa de livros, alimentando oposies ilusrias entre escrita e oralidade e afastandooscorpos(deescritoreseleitores)dasdiscusses.Emestudopioneirosobreas relaesentreoralidadeeescrita,WalterOnglembraqueograndedespertarparao contrasteentreosmodosoraisdepensamentoeexpressoeosmodosescritosaconteceu nonalingustica,descritivaoucultural,masnosestudosliterrios,iniciandoclaramente com o trabalho de Milman Parry (1902-35) sobre o texto da Ilada e da Odisseia (1982: 6). Ao privilegiar o contraste entre estas formas de pensamento e expresso, o pensamento de Ongchamouaatenodosestudiososparaumcampoatentopoucoexplorado,mas INTERSEMIOSE Revista Digital 39 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 manteveumpensamentodualistaquefoiposteriormenterepensadosobretudopelos trabalhos da antroploga Ruth Finnegan sobre poesia oral (1992) e de Paul Zumthor sobre a literatura medieval (1993)4. AimportnciadaspesquisasdePaulZumthorvaialmdombitodosestudos literrios ao contextualizar historicamente as manifestaes da vocalidade (expresso que utilizava em substituio a oralidade) em torno da ideia de performance. Seu pensamento recoloca o corpo no centro das discusses sobre o trabalho artstico com a linguagem: Introduzir nos estudos literrios a considerao das percepes sensoriais, portanto, de umcorpovivo,colocatantoumproblemademtodocomodeelocuocrtica.De sada,necessrio,comefeito,entreabrirconceitosexageradamentevoltadossobre elesmesmosemnossatradio,permitindoassimaampliaodeseucampode referncia (2007: 27). Suasideiastiveraminflunciadospensadoresidentificadoscomacorrenteterica conhecidacomoEstticadaRecepoouReader-ResponseCriticism,comfocona recepodaobraliterriaporpartedeseusleitorescomoreaoscorrentesformalistas. Zumthorpreferiufalaremgrausdeperformaticidadeemvezdeelaborarumconceito fechadodeperformance5.Opontocentraldeseupensamentoainteraoentreobrae pblico, ambos encarados em sentido amplssimo e sem oposio entre oralidade, escrita e suas variadas formas de mediao tecnolgica. Esta viso tem implicaes importantes, sobretudoemumpascomooBrasil,noqualvriasmodalidadesdeperformance coexistiramhistoricamentecomasformasescritas.Agrandedistnciaexistenteentrea culturaditaletradaeaculturapopularfezcomqueasformasdeexpressooral continuassemasedesenvolverparalelamentesformaspredominantementeescritasda culturaerudita.Amsicapopular,porexemplo,desempenhaumpapelimportanteno sentidodeaproximaracriaopoticaescritadasformasoraispopulares,transformando poemasemletrasdecanesedespertandoointeressedosouvintesparaoutras modalidadesdepoesia.Estacoexistnciapacficaefrutferaentreoralidadepopulare cultura letrada faz com que a relao entre a letra (escrita/morta) e a voz (falada/viva) seja encaradamuitomaisnosentidodacomplementaridadequedaoposio.Opesquisadore poeta Philadelpho Menezes, ao escrever sobre a poesia sonora na Europa, percebe que no houve no Brasil a poesia experimental dos sons, paralelamente poesia visual, esta simcomlargatradionaliteraturabrasileiradops-guerra.Ainexistnciadapoesia sonoraentrenspodetermuitasexplicaes:opesosignificativamentemenorda escrita na nossa cultura, isto , a falta do inimigo; as falas locais e a oralidade errtica popularquepenetramconstantementeasescriturasdaaltaliteratura;afortepresena da msica popular de razovel grau construtivo (1992: 16). ApesardereconhecerqueachamadapoesiasonoranoencontrounoBrasilum terreno frtil para seu desenvolvimento como proposta esttica das vanguardas europeias, o pesquisadorenumeraumasriedeaspectosqueprivilegiamaexistnciadepoticas 4 ApalavraliteraturaerautilizadaporZumthorentreparntesespoiseleacreditavaque,porinclurema msicaeateatralidadecomoelementoscentrais,aspoticasmedievaisnocabiamnoconceitoocidental contemporneo de literatura. 5 Conforme Zumthor, a leitura silenciosa e individual de um livro corresponderia situao na qual se verifica o menor grau de performaticidade, enquanto a performance presencial corresponderia ao grau mximo. O que ele chama de performance mediatizada (por exemplo, assistir a uma gravao em vdeo ou ouvir um disco) seria um exemplo dos graus intermedirios HUMANIDADES MDICAS 40INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 performticas ligadas sobretudo linguagem viva mediada pelo corpo, com especial nfase na voz. As vises da performance (e, consequentemente, do corpo) nos estudos literrios nos servemdeintroduoaoprximomovimento,quetemcomotemaouniversodacriao literria propriamente dita. 2 movimento: corpo e literatura mito e modernidade, unidade e fragmentao Ocorpo,aomesmotempo,unidadeepluralidade.Tantopodefuncionarcomo smbolodecompletudeeauto-suficinciacomoserencaradodeformaarealarsua complexa composio, um emaranhado de estruturas to singulares que bem poderiam ser encaradascomocorposemumsentidomenosespecfico.Ariquezadepossibilidadesde utilizaosimblicadocorponostextosliterriosfazcomqueelesetorneumamarca recorrenteesignificativanaliteraturaocidental.Asdiferentesformasliterriasassumidas porestaimagemaolongodotempopodemnosrevelarligaesentreosmecanismos estticos utilizados na criao literria e os contextos histricos nos quais so originados. Ao falar do mito como uma das categorias que batizou de Formas Simples, Andr Jolles rejeita a viso segundo a qual este seria um estgio preliminar dos discursos histrico e filosfico, tratando dos mitos a partir de um processo que tem origem na interao do ser humano com a natureza. Acontemplaoconverteu-seemespanto,eoespantoeminterrogao[...]Uma respostachegaentoaointerrogador;eestaperguntadetalnaturezaqueno possvelformularoutrapergunta;aperguntaanula-senomesmoinstanteemque formulada;arespostadecisiva[...]Quemfazapergunta?Ohomem[...]Ohomem pedeaouniversoeaosseusfenmenosqueselhetornemconhecidos[...]Quandoo universo secria assim para o homem, porperguntae resposta, tem lugara Forma que chamamos mito (1976: 87-88). OmovimentosugeridoporJolles-dainquietaoperguntae,finalmente, obtenodaresposta-umcrculoperfeitonoqualserhumanoenaturezaesto plenamenteintegradosnumarelaocomplexapormharmnica:umarelaoorgnica. Mas a perfeita completude deste ciclo s possvel devido ao que ele chama de disposio mentalespecficadoserhumanoquepermitequeasindagaesformuladassejam inteiramente satisfeitas por meio deste procedimento. O ser humano cria o prprio universo enquanto discurso atravs do mito. A ideia de completude e inteireza revelada tanto pela constncia desta maneira de lidar com o mundo (formulandoperguntasnaturezaeobtendodelarespostasdefinitivas)comopelaauto-suficincia deste sistema e de sua metfora perfeita: um corpo funcional (composto por ser humano e natureza) que gera respostas para as prprias perguntas que formula. NoterceiroensaiodolivroAnatomiadaCrtica,ocrticocanadenseNorthropFrye apresentaosfundamentosdaquiloquechamoudeCrticaArquetpicaouTeoriados Mitos. Um dos primeiros exemplos comentados por Frye, refere-se a um episdio de uma lenda egpcia no qual o deus Ra invocado para proteger o protagonista, fazendo aparecer um lago cheio de crocodilos que funciona como obstculo para seu perseguidor. Conforme Frye,nestapassagemabriu-semodequalqueranalogiacomarealidade,podendoser observada uma qualidade abstratamente literria; e j que o contador de histrias poderia terresolvidoestepequenoproblemadeumamaneiramaisrealista,pareceque aliteratura no Egito, assim como outras artes, preferiu um certo grau de estilizao (2000: 135). Em INTERSEMIOSE Revista Digital 41 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 seguida,ocrticocontinuacomalgunsexemplosdestaabstraoartsticaobservadosna arte crist medieval.interessantenotarqueoprimeiroexemplocitadoporAndrJollesparailustraro mitocomoFormaSimplessejaumapassagembblicadolivrodoGnesis(1976:87). Tanto Jolles quanto Frye analisam estes (e outros) exemplos de narrativas mticas do ponto devistadotrabalhocomalinguagem,apontandoelementosformaisdotextoque funcionariamcomondicesdealgumascaractersticasmitolgicasdestasnarrativas. Ambosnofazemcomentriossobreaprofundainflunciadareligiosidadesobreestes discursos, tanto na sociedade egpcia quanto na crist medieval.Aoconsideraromundodosmitoscomofeitodepurametfora,noafetadopor cnonesdeadaptaesplausveisdeexperinciasfamiliares,Fryeassimserefereaeste universo literrio: Omundodasimagensmticasgeralmenterepresentadopelaconcepodecuou parasonareligio,eapocalpticonosentidodestapalavrapreviamenteexplicado6, ummundodetotalmetfora,noqualtudopotencialmenteidnticoatodooresto, como se tudo estivesse contido num nico corpo infinito (2000: 136). A viso do universo como um nico corpo que contm elementos distintos, e mesmo opostos, sem perder sua unidade apenas parece tornar-se completa quando consideramos a profundaligaodosmitoscomodiscursoreligioso.ApontodeFryeconsiderarolivro bblicodoApocalipsecomoagramticadasimagensapocalpticas(p.141).Logoem seguida,oautorenumeraumasriedeimagensarquetpicasqueconsiderarecorrentesna Bblia:UmDeus,UmCordeiro,UmHomem,Umarvore,UmTemplo.Todasestas imagens exprimem a idia de unidade, de corpos-unos, inteiros, completos em si mesmos. FryeacrescentaqueaconcepodoCristo(metforamxima)unificatodasasoutras imagens em identidade, por ser ao mesmo tempo todas elas.Ainda conforme Frye, a imagem da Santssima Trindade- o Deus que trs pessoas, mas ainda assim, um nico Deus - funcionaria como fundamento para outras metforas do corpopresentestambmemvriasteoriaspolticasocidentais:Milton,PlatoeHobbes utilizaram a metfora de um grupo de seres-humanos como sendo um s corpo. Omesmo paralelopodeserfeitocomrelaometforadedoiscorpostornadosumsatravsdo amor.AmpliandoascategoriassugeridaspelasimagensarquetpicaslistadasporFrye, temosacategoriahumanaeaanimal(oCordeiro)sefundindonaimagemancestraldo pastoreseurebanho,assimcomoomundovegetal(arvoreouJardim)eohumano tornando-seumscorponasimagenspastoraisdoarcadismo.Oselosentreestes mundos estariamrepresentadosnasimagensdoFogo,eloentreoHomemeomundosuperiorda Divindade,eagua,unindoomundohumanosprofundezasdaTerra(pp.144-146). Nestas imagens apocalpticas, o prprio universo considerado um imenso corpo dentro do qual tm existncia os seres-humanos e demais entidades naturais.Do ponto de vista formal, alm deste repertrio de imagens, Frye tambm explora de maneiramaisamplaaideiadeunidadepresentenaprpriaestruturadasnarrativas ficcionaisemgeral.Segundoelenamaioriadasobrasdefico,percebemos imediatamente que o mythos, ou a sequncia de acontecimentos que prende nossa ateno, est sendo moldado como uma unidade. Estamos continuamente, embora quase sempre de modo inconsciente, tentando construir um padro maior de significao simultnea a partir 6OtermoapocalpticodefinidoporFryenoGlossriodolivrocomosendootermotemtico correspondente a mito naliteratura ficcional:metfora como identificao pura e potencialmente total, sem considerao plausibilidade ou experincia comum (2000: 365). HUMANIDADES MDICAS 42INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 doquelemosouvimosataquele momento(2000a:32).Maisadiante,eleafirmaqueo mito fornece os principais contornos e a circunferncia de um universo verbal que , mais tarde,ocupadotambmpelaliteratura(p.41).Nessesentido,aprpriaconcepode literatura do autor pode ser comparada a um corpo-uno, j que encarada como um sistema complexo,pormharmnico,noqualcoexistemaproduoliterriamaisrecenteesuas matrizes mitolgicas, ambas regidas pelo mesmo padro de imagens e estruturas narrativas. A partir do sculo XVIII, o mundo ocidental comea a sofrer um ciclo de profundas transformaesqueafetariamdecisivamenteosmodosdeviver,pensarefazerarte:a burguesiadestronaoAntigoRegimeabsolutistanasangrentaRevoluoFrancesa;novos padresdetrabalhosodefinidospelaRevoluoIndustrial;rapidamentecrescemos centros urbanos e reconfigura-se o estilo de vida de toda a populao. Diante de tantas e to radicais mudanas, no de se estranhar que o papel da arte comeasse a ser questionado a partirdesuasprpriasbases.Oquecostumaserchamadogenericamentedecriseda modernidade,parececoincidircomummomentohistricodereflexo,noqual paradigmasfundamentaisparaaHumanidadeforamrepensadosdentrodestenovo panoramapoltico,econmicoesocial.Avisoorgnicadomundocomosistema complexo e harmnico formado por ser humano e natureza seria irreversivelmente abalada. Eaarterefletiriaestacisodemaneiraveemente,numsentimentoambivalenteque misturava espanto, ceticismo e esperana.CharlesBaudelaire,umdosgrandesmarcosdaproduoliterriaditamodernistae sensibilidade fundadora da prpria ideia de modernidade, afirmou que a modernidade o transitrio, o efmero, o contingente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutvel(1863:11).EstasegundametademencionadaporBaudelairerepresenta justamenteosantigosvalores(estticosesociais)deeternidadeeimutabilidadequese perderamouforamcompletamentetransfiguradospelasmudanasdamodernidade.O corpo-unodopassadodlugaracorposincompletos,fragmentados,dilaceradospela violncia das transformaes: a harmonia quebrada por um movimento de destruio que afeta no apenas instituies polticas e sociais, mas tambm a produo artstica. Voltando umpoucomaisnotempo,temosnaRevoluoFrancesaumdivisordeguasdeste processodedestruiorenovadora.ComoobservaapesquisadoraLindaNochlinao analisaraproduodepintoresdesteperodo,osentimentogeraldapocapoderiaser traduzido como uma espcie de luto por uma terrvel perda. A perda de um estado de felicidade e totalidade que precisa agora ser inevitavelmente deslocado para o passado ou futuro: nostalgia ou Utopia [...] aperdadotodomaisqueumatragdia.Apartirdestaperdaconstrudooprprio Moderno[...]Ofragmento,paraaRevoluoeseusartistas,emvezdesimbolizar nostalgiadopassado,atuacomoadestruiodeliberadadopassado,ou,aomenos,a pulverizao do que era percebido como suas tradies repressivas (1994: 8). A iconografia da Revoluo Francesa est repleta de guilhotinas, cabeas cortadas de membrosdanobrezaeoutrossmbolosdeviolnciaopressoraetransgressopoltica.A cruezadas imagensdecorposdespedaadoseamputadosdumaidiadaradicalidadedo movimentorevolucionriode1789,masociclodetransformaesiniciadocoma derrubada do Antigo Regime estava apenas comeando. A ascenso da burguesia lanou as bases para uma revoluo muito mais profunda e duradoura no modo de vida da sociedade ocidentalqueenvolveasinovaestcnicasligadasindstriaeaposterior consolidao do modo de produo capitalista. Aurbanizaodesempenhaumpapelfundamentalnopanoramadestasmudanas econmicasesociais,afetandodemaneiramarcanteaproduoartsticaemgeral. INTERSEMIOSE Revista Digital 43 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 Baudelaire fala da opresso das multides annimas da cidade e de sua paisagem saturada deimagenserudos,sendooflneuropersonagemquemelhortraduziriaestenovo ambiente: Paraoperfeitoflneur,paraoobservadorapaixonado,umimensojbilofixar residncianonumeroso,noondulante,nomovimento,nofugidioenoinfinito.Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo [...] um eu insacivel do no-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a prpria vida, sempre instvel e fugidia (1863: 9). Nacoloridaebarulhentaconfusourbana,aspessoassotragadaspelasmultides fugidiaseondulantes.Amultidobempodeserencaradacomoumenormeecatico corpoquecontmtodoomovimentoirrefreveledesordenadodacidade:oscorposdas pessoas,destitudosdeindividualidade,sedissolvemnestefluxo.Talsituao,pormais sedutora que seja, no esconde as inquietaes que provoca no homem moderno. A posio do flneur, tal como descrita por Baudelaire, reveladora destas ambiguidades: ele est no meio da multido, mas no se sente parte dela; permanece buscando o eterno e duradouro nomundodofugidioedoinstvel;afirmasuaindividualidadeenquantoperde-seno turbilhodacidade.ConformeocrticoMichaelHamburguer,paraquemBaudelaireo prottipodopoetamodernocujavisoaomesmotempoagudaelimitadaporumalto grau de conscincia crtica de si mesmo, a forma como o poeta trabalhou em sua obra as transformaes da modernidade apenas podem ser entendidas atravs do que nele existe de contraditrio,contingenteemesmoparadoxal,jqueaverdadequeencerraaobrade Baudelairenopodeserextradadessaoudaquelaconfisso,nemdetalouqualverso evidente, mas apenas das tenses, para as quais a chave mais segura so suas contradies (2008: 08-12). Esta realidade - nova e instigante, mas tambm ameaadora e incontrolvel - exerceria uma influncia profunda na literatura, que sentida at os nossos dias.Ocapitalismocomonovomododevidajsehaviaimpostonocotidianoda sociedade quando irrompe mais um ciclo de conflitos blicos na Europa. Os seres humanos, reduzidosaumamassaannimaquenotinhaoutropapelalmdeservircomoforade trabalho nas fbricas, sofreriam uma degradao ainda maior com a violncia da guerra. O corpo,jreduzidoaumsimplesobjeto,destitudodepersonalidadeedignidade,agora novamente massacrado pela insanidade dos confrontos armados. Os efeitos do terror seriam claramentesentidosnaproduoartsticadapoca,voltadaparaaexploraodenovos caminhos para a arte, em meio a um mundo destroado e desesperanado.AsvanguardasartsticasdoinciodosculoXXsoparadigmticasnosentidode repensarafunodaarteeapontardireesatentoinexploradasdopontodevistada criaoartsticaemtodasassuasmodalidades.ElianeRobertMoraesapontacomotrao comumaosvriosmovimentosvanguardistasligadosrepresentaodocorpohumanoa atitude de decomposio da figura humana, numa srie de deformaes ou transfiguraes que teria sido desencadeada justamente pelos horrores da guerra: Despossudodetudo,oserhumanosetornaenfimumapresenasilenciosaque nenhum poder pode suprimir: o que essa presena traz, por si mesma e como afirmao ltima o sentimento de pertencer espcie [...] Se no h limites para a destruio do Homem,entoasuadesfiguraospoderealizar-seenquantoumprocesso interminvel, sem jamais alcanar um estado definitivo e absoluto (2002: 152-153). HUMANIDADES MDICAS 44INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 Aparentementedestruidor,oprocessodedecomposiodafigurahumana empreendidopelosartistasdaschamadasvanguardashistricasestligadoaumabusca pela sobrevivncia do ser humano em meio aniquilao geral causada pela guerra. uma forma de resistncia violncia e insanidade do massacre, uma atitude por vezes utpica de encararasituaoatualeprojetarumcaminhofuturoqueofereaalgumaperspectivaao vaziodopresente.ParaAndrBreton,umdosfundadoresdosurrealismo,dianteda falncia incontestvel do racionalismo, falncia que previmos e anunciamos, a soluo vital noestemrecuar,massimemavanarnadireonovosterritrios(apudMORAES, 2002: 157).Estes atos de resistncia artstica, entretanto, tambm eram marcados pela violncia e incluamumcertofascnioambguoporimagensmonstruosasesangrentas.Estefascnio fez com que os artistas da poca se voltassem para a explorao do lado obscuro do ser humano,numapercepodequeasrazesdoMalresidiamnoprprioserhumano.Tal explorao das perverses e vcios marcante, por exemplo, na obra ficcional de Georges Bataille,queassumiaainflunciadoMarqusdeSadenotocanteaessatemtica.O surrealismodemaneirageralocupoulugardedestaquenopanoramadasquestes levantadaspelasvanguardasaoampliarombitodadiscussoparaalmdopropriamente artstico:estreitaarelaodosartistasidentificadoscomestegrupoeopensamentode SigmundFreudsobreoinconsciente,paracitarapenasumexemplo.OcrticoCludio Willer, ao apontar o exagero da fetichizao do novo como valor em si mesmo entre os movimentos vanguardistas, destaca a posio diferenciada do surrealismo: ApreocupaodeBretoneseuscompanheirossemprefoi,muitomaisqueinovar,de recuperar a tradio, reescrever a histria, e olhar o passado sob uma outra perspectiva [...] a valorizao de Lautramont um dos aspectos dessa releitura da histria. E dela tambmfazemparteoestudoearetomadadatradiohermticapropriamentedita, incluindoaalquimiaeaastrologia,comoexpressesdeumimaginriopoticoe metforasdaprpriacriaoedarecuperaodoserhumanoemsuatotalidade(In BRETON, 1985: 15). Afragmentaoetransfiguraodocorpohumanonasimagenssurrealistas corresponde a uma busca mais complexa desses artistas por uma conscincia ampla do ser humano, afastando-se de idealizaes e voltando a ateno para o inconsciente, o delrio, os vcioseperversesincontrolveisqueatentohaviamsidomarginalizadospelacriao artstica.Estemovimentocorresponderiaaumaaproximaodoserhumanocomseu corpo, em um aprofundamento da percepo de sua identidade e em um resgate da prpria condio humana, j to abalada pela guerra. Michel Leiris acreditava que o masoquismo, osadismoe,enfim,quasetodososvcios,someiosdesentir-semaishumano(apud MORAES, 2002: 161). A fragmentao do corpo na modernidade , na verdade, um processo de tentativa de resgate de uma unidade perdida. Uma unidade que transcende o sentido puramente concreto da vida, materializado nas rupturas sociais, polticas e econmicas do perodo, e remonta antigaunidadedoserhumanocomodivinonombitoreligioso.Noporacasoque autorescomoojcitadoBataillerelacionavammorte,sacrifcioesexo-todoselementos diretamente relacionados s experincia sensuais do corpo- com a religio. Comentando a obraLesLarmesdEros,deBataille,ocubanoSeveroSarduypercebeestaligao: Criando a culpabilidade, a proibio, a religio confina a sexualidade zona do secreto, a essazonaondeaproibiodaoatoproibidoumaclaridadeopaca,aomesmotempo sinistra e divina, claridade lgubre que a da obscenidade e do crime, e tambm a da religio (1979: 19). Sentir-se mais humano a partir de uma relao visceral com o prprio INTERSEMIOSE Revista Digital 45 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 corpo tambm uma forma de resgatar a unidade primordial com o sagrado. Retomaremos estasideaisno4movimentodesteensaio,quandoserodiscutidasalgumasquestes relativas ao corpo na arte performtica. 3 movimento: corpo e artes visuais do objeto presena Nocampodasartesvisuais,amodernidadepareceterdeixadocomoheranaa tradiodonovo,naclebreexpressodocrticoamericanoHaroldRosenberg.Emum dosseustextosmaisconhecidos,RosenbergescrevesobreopintorJacksonPollockesua action painting (pintura de ao), cuja inovao consistia em dispensar a representao de um estado em favor de encen-lo no movimento fsico. A ao na tela tornou-se sua prpria representao(1959:27.Grifosdoautor).Pollockentrariaparaahistriadaarte contemporneacomoumdivisordeguas.Entretanto,suaobraocupaumaposio ambivalente:costumaserassociadaaochamadoexpressionismoabstrato(identificado diretamente com os movimentos da pintura modernista europeia e americana), mas tambm vistacomoprecursoradeumamploediversificadomovimentoqueenglobariadiversas expresses artsticas posteriores vagamente classificadas como arte conceitual, sobretudo a performance. LucyLippard,contextualizaasmanifestaesconceituaisnaartenorte-americana entreosanos1960e1970apartirdequestespolticaseideolgicas:Aeradaarte conceitual que foi tambm a era do movimento pelos direitos civis, [guerra do] Vietn, o movimento de liberao das mulheres, e a contracultura foi realmente livre-para-todos, e asimplicaesdemocrticasdestafrasesototalmenteapropriadas,mesmoquenunca realizadas (1973:vii).Lippard nos fala de uma sndrome da moldura e do pedestal que acometia o mundo da arte em meados dos anos 1960 e da qual os artistas ditos conceituais procuravamescapar.Eisumadasgrandestransformaesporquepassaramasquestes relativasaocorponocampodasartesvisuais:abuscadetranscenderamaterialidade (simbolizadapeloquadro/molduraepelaescultura/pedestal)atravsdasuposta imaterialidadedeexpressescomoperformances,eaes.Almdarelaocom movimentos polticos mais abrangentes, a arte conceitual estava diretamente ligada crtica datransformaodasobrasdearteemmercadorias.Almdeconstituirumimportante movimento de experimentao com novas linguagens e suportes, a imaterialidade buscada por muitos artistas deste perodo buscava impedir ou pelo menos dificultar a circulao das obras como valores de compra e venda no mundo da arte. Conforme CristinaFreire, estas questes,longedeteremesgotadosuaspossibilidades,parecemestarmuitovivasna produo de vrios artistas contemporneos. Questes levantadas desde o final dos anos 60 e ao longo da dcada seguinte, perodo abrangidopelaArteConceitual,soaindapertinentesemobilizamacrticada produo,recepoecirculaoartsticasnopanoramaatual.Porisso,estepodeser consideradoumprogramainconcluso.AdistinoentreArteConceitualcomo movimentonotadamenteinternacionalcomduraodefinidanahistriadaarte contemporneaeconceitualismotendnciacrticaarteobjetualqueabarca diferentespropostas,comoartepostal,performance,instalao,landart,videoarte, livro de artista etc. - muitas vezes difusa (2006: 8). Dopontodevistaesttico,omovimentodedesmaterializaodaartesignificou tambmumaimportanteviradanotratamentodocorpo,quepassaaserencaradoemsua concretude-ocorpoliteral,muitasvezesocorpodoprprioartista,realizandoaobra HUMANIDADES MDICAS 46INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 diantedopblicoousendoaprpriaobraenomaiscomoobjetoaserrepresentado. Almdisso,abriu-secaminhoparaumafrutferadiscussosobrearelaoentreartistae pblico, com enfoque na participao como meio de diluir estas fronteiras at ento muito marcadas. Inmerosartistasbrasileirosproduziramobrasmarcantesnestecontexto.Podemos citarcomoexemplosparadigmticosHlioOiticicaeLygiaClark,comsuanfasena participaodopblicocomoco-autordasobras.ParaClaireBishop,odilogoentreos artistas(disponvelnavastacorrespondnciaquedeixaram),revelaumaevoluodeseu pensamentodeobjetosesculturaisinterativosparaeventosdegrupoqueabordavam relaesexternas(Oiticica)eestadospsicolgicosinteriores(Clark).Paraambosos artistas,umtermochaveeravivncia:apresenasensriadocorpoamplificadacomo autntica,imediataeresistentecapturaideolgica(2006:110).Emcartaescritapara Hlio Oiticica, Lygia Clark no apenas corrobora este entendimento como situa sua obra no jcomentadomovimentodedesmaterializaodaarteedabuscapela(particip)aoem detrimento da representao do corpo. Paramimoobjeto,desdeCaminhando7,perdeuosignificado,eseaindaoutilizo para que ele seja o mediador para participao. As luvas sensoriais8 por exemplo para daramedidadoatoetambmomilagredogestonasuaespontaneidadequeparece esquecida. Em tudo que fao h realmente necessidade do corpo humano, para que ele se expresse ou para revel-lo como se fosse uma experincia primeira (1996: 61). de suma importncia a viso partilhada por Clark e Oiticica sobre a relao entre artistaepblico:ostermospropositoreparticipadoreramutilizadosdemodoa enfatizar uma relao de co-autoria e no somente de contemplao passiva. O participador toimportantequantooartistajque, semele,noexisteobra:veja-seoexemplosdas duasobrasqueLygiaClarkcitaemsua carta,almdosclebres parangols criadospor Oiticica,quetambmnecessitavamdopblicoparaquepudessemconcretizar-secomo obras(verOITICICA,1964).AsideiasdeClarkeOiticicasobrearelaoentreartistae pblico so talvez as experincias mais radicais j realizadas em termosde questionamento daautoriaepossibilidadesdeparticipao,permanecendosemparalelonombitodaarte contempornea.Atendnciamarcantedaperformancecomoexpressocapitaldegrande partedosartistasapartirdefinsdosanos1960parecetercaminhadoemoutrosentido, enfatizandoaritualizaodocotidianoeaspolticasdeidentidade,comoveremosno prximo movimento deste ensaio. Porfim,importantelembrarqueotrajetodocorponasartesvisuaisdoocidente teminciomuitoantesdastransformaesdasdcadasde1960-70emesmodos experimentos das chamadas vanguardas histricas, remontando ao universo da antiguidade clssica, conforme nos lembra Vivane Matesco: 7SobreaobraCaminhando(1964)Clarkescreveu:FaavocmesmoumCaminhando:pegueumadessas tiras de papel que envolvem um livro, corte-a em sua largura, tora-a e cole-a de maneira que obtenha a fita de Moebius.Emseguidatomeumatesoura,craveapontanasuperfcieecortecontinuamentenosentidodo comprimento.Presteatenoparanorecairnocortejfeitooqueseparariaafaixaemdoispedaos. QuandovoctiverdadoavoltanafitadeMoebius,escolhaentrecortardireitaouesquerdadocortej feito (1980: 25). 8ClarksobreasLuvasSensoriais(1968):Otrabalhoconsistianapessoausarluvasdediversosmateriais, tamanhosetiposparatentarpegarbolasdedimensesetexturasdiversas.Apscombinartodasas possibilidades, utilizando-se inclusive luvas grandes para pegar bolas pequenas, ela retirava a luva e segurava asbolasnormalmente.Este'renascimentodotato'sentidocomoumaalegria,comoseapessoaestivesse 'vivendo novamente' a descoberta do prprio tato (1980: 29). INTERSEMIOSE Revista Digital 47 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 NasegundametadedosculoXXocorpofocalizadoemhappenings,aes, performances,experinciassensoriais,fragmentosorgnicos,oqueafirmariaanoo deumcorpoliteralcomosingularidadedaartecontempornea.Estanoofoi desenvolvidapelaproduoepelodiscursocrticodaarteemcontraposioaocorpo idealizadoexpressononu.Gneroartstico-metafsicoporexcelncia,onufoicriado naGrciaemummomentonoqualaprpriaimagemdocorpopdeserrepensada. Isso quer dizer que a concepo de corpo na cultura ocidental est intimamente ligada questodaimagemedarepresentao.SenoinciodosculoXXaartemoderna subverteatradiodonu,atravsdafragmentaoedadeformaodocorpo,na segundametadedosculoessacrisedaoutroraequilibradavisoantropocntrica aindamaisacentuadaumavezqueamatria,aanimalidadeeacruezapassamaser exploradas.Dessamaneira,aartecontemporneaprofanaaantigaimagemdeum corpoidealizadoporintermdiodoreconhecimentodacorporalidadehumana,seja atravsdeumaaooupelanfasedasexualidade,autilizaodefluidoseodores (2009: 7-8). Temosaquiosdoisextremoshistricos,ideolgicoseestticosdotratamentodo corponasartesvisuaisocidentais:dosnusidealizadosdaGrcia corporalidade explcita do final do sculo XX. Este caminho da representao ao, perceptvel nas artes visuais, passouporlentasecomplexastransformaesparachegarsuaconfigurao contempornea. O papel desempenhado pela religiosidade judaico-crist foi decisivo nesse sentido,aoforarosartistasalidarcomaproibiodeadorarimagensecomaprpria caractersticaparadoxaldoserhumano,feitoimagemesemelhanadeDeus, queest almde todaimagem.Esteconflito,semdvidaafetouos modosde abordagemdocorpo no apenas por parte dos artistas, mas de toda a sociedade. 4 movimento: corpo e(m) performance ritual, violncia e erotismo Oquehojechamamosdeperformanceconsolidou-secomoformadeexpresso artsticanosanos1970,sobretudonosEstadosUnidoseEuropa.Ahistriadosartistas geralmenterelacionadosaestetipodeexpressoeseusprojetosestticos/polticos altamentecomplexaecontrovertida,acomearpelaprpriadefiniodoqueseria performance.Sobrea(im)possibilidadededefiniraperformance,escreveRoseLee Goldberg: Porsuaprprianatureza,aperformancedesafiadefiniesfceiseprecisasalmda simplesdeclaraodequearteaovivofeitaporartistas.Qualquerdefiniomais estritaimediatamentenegariaapossibilidadedaprpriaperformance.Poiselabusca material livremente em qualquer variedade de disciplinas ou mdias - literatura, poesia, teatro,msica,dana,arquiteturaepintura,assimcomovdeo,cinema,slidese narrativa-empregado-asemqualquercombinao.Defato,nenhumaformade expressoartsticapossuiummanifestotosemfronteiras,jquecadaperformerfaz sua prpria definio no prprio processo e maneira de execuo (2001: 9). Doispontostinhamdestaquenosprojetosdemuitosartistasquedesenvolveram trabalhosrelacionadoscomaperformancenosanos1970:oprimeirodelesdeordem (anti)disciplinaredizrespeitoaoquestionamentodasprpriasdivisesentreas modalidades de expresso artstica, tanto do ponto de vista acadmico quanto criativo; jo segundoaspectodeordemmercadolgicaedizrespeitoaumainquietaofrenteaj mencionada comodificao da arte observada no tratamento das obras como mercadorias e dos artistas como marcas. Nesse sentido, a performance poderia ser relacionada aoprojeto HUMANIDADES MDICAS 48INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 daarteconceitual,buscandoenfatizarforma/processo/ideiassobre contedo/produto/objeto.MarcelDuchamp,frequentementereputadocomopaidaarte conceitual por sua adoo do ready-made como proposta esttica, supostamente influenciou muitos artistas da performance que atuaram nos anos 1970. Como aponta Marvin Carlson, certosartistascomo[Allan]KaprownosEstadosUnidos,GilbertandGeorgena Inglaterra,eJosephBeuysnaAlemanhacomearamaseguirDuchampestendendo esteinteressenoprocesso,napercepoenarevelaodematerialjexistentes atividadesdocorpohumanocomopartedoambienteencontradoouconstrudo.O corpo,frequentementeocorpodoprprioartista,eramanipuladoetrabalhadocomo um material artstico. Na metade dos anos 1960 este trabalho passou a ser considerado no simplesmente um tipo de arte conceitual, mas uma abordagem em si mesma, qual os termos body art e performance art comearam a ser empregados (2004: 111). Carlson ainda chama ateno para o fato de que quase toda forma de atividade fsica foi explorada pelos artistas corporais dos anos 1970 [...] Entretanto, certamente a parte que atraamaisatenodamdiaedopblicoemgeraleramaspeasqueiamalmdas atividades cotidianas para forar o corpo a extremos ou mesmo submet-lo a considervel riscooudor(p.112).Estacaractersticadaviolnciaempregadanotratamentodocorpo porpartedemuitosartistasdaperformanceumtemaaoqualdaremosdestaqueneste movimento. Propomosumaabordagemdestaviolncianostrabalhosdealgunsartistas comumenterelacionadosperformanceebodyart,partindodeumacombinaodas ideias de Georges Bataille sobre o erotismo e do antroplogo Victor Turner sobre o estado de liminaridade observado em ritos de passagem realizados em determinadas comunidades. Nossos estudos de caso sero a francesa Orlan e o norte-americano Chris Burden. Quandofalamosdocorpoexpostoasituaesderisconaperformanceartstica,os chamadosAcionistasVienensessoummarcohistricoimpossveldeserignorado.O grupoformado,atuanteapartirdofinaldadcadade1960,executoudiversasaesque causarampolmicaporseucontedoviolento,explicitamentesexualouescatolgico. Conforme Franois Pluchart, Exceto por algumas provocaes dadastas [] os primeiros artistasqueexpuseramseuscorpossujeirapblicaeagressividadeforamquatro Vienenses Hermann Nitsch, Otto Muehl, Gnter Brus e Rudolph Schwarzkogler: Muehl, comsuasaespolticas,Nitschcomaesrituais,Schwarzkoglercomdesalienao sexual,e,aindamais,Brus,comaesqueenvolviamdefecaoeingestodeurina (1984:71).Tambmcomumemvriosautoresdestacarosefeitosdestasaesna sociedadedapoca:levandoognerodaperformanceaseusextremos,osAcionistas Vienenses[]fizeramdohorroredaobscenidadeoselementoscentraisdesuas apresentaes.Produzindofilmespornogrficoshard-coreerealizandoempblicouma srie de situaes tabu, os integrantes do grupo eram perseguidos e eventualmente detidos pelapolcia(SILVA,2008).Apesardascontrovrsiaslevantadaspelogrupo,suasobras sofrequentementecitadasnosprincipaiscompndiosacadmicossobrehistriadaarte, mostrando que o cnone esttico ocidental capaz de absorver tambm a controvrsia e o contedo potencialmente subversivo e questionador de um trabalho como este. Relacionar a performance violncia e ao risco no apenas uma questo de seguir apetitesmiditicosousensacionalistasdosquaisahistriadaarteeacademianoesto isentas de influncia, bom que sediga. Obviamente, o contexto histrico contemporneo fazcomqueestessejamassuntosexploradoseenfatizadosemdetrimentodeoutros aspectosrelevantesobservadosnasobras,masofatoqueabuscadatransgressoedo questionamentoatravsdaexposiodoprpriocorpoasituaesarriscadasumtrao INTERSEMIOSE Revista Digital 49 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 frequentenahistriadaperformance,sobretudonofinaldadcadade1960einciodos anos 1970, com reflexos que ainda podem ser percebidos na arte contempornea. Este fato dignodeinvestigao,independentementedosjuzosdevalorquefatalmentesero extradosdestasanlises.Alis,nosopoucososestudiososeartistasqueseopem abertamenteaestasprticas,argumentandoqueaespetacularizaodadormuitasvezes afasta-sedoquestionamentopolticoedouniversodacriaoesttica.Aocomentaro choquedosespectadoresapspresenciaremumaperformanceespecialmentearriscada (para o performer), Jean-Pierre Sag escreve que o trauma, pelo rompimento psquico que provoca,simplesmenteanti-esttico;otraumaanestesiatodaveleidadedesentimento esttico (2010: 203). Passemos s anlises de casos concretos, na esperana de que possam nos oferecer pistas para o aprofundamento destas questes. Noinciodosanos1970,oartistanorte-americanoChrisBurdenrealizouumasrie deperformancesnasquaissesubmetiaasituaesderiscocomopassarcincodias ininterruptos preso em um armrio escolar (Five-Day Locker Piece, 1971), levar um tiro de espingardanoprpriobrao(Shoot,1971),crucificar-seemumfusca(Trans-fixed,1974) ouengatinharsobrevidroestilhaadopor15metros(ThroughtheNightSoflty,1974). Apesardassituaesenvolveremperigoconcretoemuitasvezeslesesfsicas,oprprio artista afirma que Aparteimportanteaserlembradaqueeuarmeitudoisso.Eupodiapreverofim tambm (no se tratava de uma situao incerta, que o que parcialmente cria o medo) []Nuncasintoqueestoumearriscando.Aspeasdizemrespeitoaoquevai acontecer.Operigoeadorsocatalisadoresparapromoverascoisas.Isto importante. O objetivo ver como vou lidar com isso. O medo muito pior que o feito propriamente dito (1975: 121-122). Nomesmotexto,Burdenfaladevriasdesuasobras,enfatizandoadetalhada preparaodetodaselas.Estaatitudepodeserinterpretadacomoumadesmistificaoda tensogeralmentecausadanosespectadoresdevidoaoriscoenvolvidoemcadaao.Jan Butterfield corrobora a viso do artista ao descrev-lo como extremamente sereno, de fala mansaeprtico.Seuvocabulrioraramenteincluipalavrascarregadastaiscomopnico, terror e histeria. Ao discutir seus trabalhos, ele permanece sem emoes, exibindo o quieto senso de controle que se tornou uma forte marca de suas obras (p. 120). Neste depoimento deBurdenofococonceitualdasobrasaparecedeslocadodaquestomaisevidentedo perigo/dor/violnciaparaasreaesdespertadasnopblicocomoobjetivoprincipaldo artista em suas aes. AparticipaodopblicorealmentefoiestimuladaporBurdenemvriasdesuas aes,fosseprovocandodiretamenteosespectadoresoucolocando-seemumasituao passivaqueexigiadopblicoalgumaatitude,mesmoqueomissiva.Doisexemplosde aes, ambas realizadas em 1971, servem para ilustrar este vis de sua obra.A primeira ShoutPiece,naqualosconvidados,logoapsterementradonagaleria,foram bombardeadospelavozdoartistaamplificadaporumsistemadesomgritandorepetidas vezes e a plenos pulmes caiam fora daqui imediatamente! (p. 121). A segunda Prelude to 220, na qual o artista ficou preso ao cho da galeria por ganchos de cobre e posicionado muito prximo a dois baldes cheios de gua com fios de 110 volts submersos: caso algum espectador,pordecisooudescuido,derrubasseosbaldes,Burdenseriaeletrocutado. Entretanto, a reao de todos foi a apreenso e o distanciamento do pblico durante a ao (p. 122). Severdadeque,nestasobras,oriscoaparececuidadosamentecontrolado,a ponto de anular qualquer noo de perigo real, o mesmo no pode ser dito de aes como Shoot,Trans-fixedeThroughtheNightSoftly,nasquaisnohrisco,masaviolncia HUMANIDADES MDICAS 50INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 dirigidadiretamentecontraseucorpo,resultandoemferimentoselesesgraves.Aoque parece,nestescasosofocoseriaoutro,identificadocomoprojeto(poltico)demuitos artistasematividadenamesmapoca:afastar-sedofazdecontadarepresentaopara realizaraesverdadeiras,anulandoasfronteirasentrearteevida.Butterfieldafirmaque oelementoaparentementemasoquistaomaismal-interpretado.OcontroledeBurden sobresuamentee corporigidamenteasctico(p.121).Acrticade arteAmeliaJones, conheciaporseuvisfeminista,prope umaleiturainteressantedostrabalhosde Burden, relacionando assituaessquaiso artistasesubmetenoapenasaomasoquismo,mas ideiadomartrio(relacionadosantidade)comoestratgiautilizadapeloartista (deliberadamenteouno)parareiteraroscdigosnormativosdasubjetividadeartstica masculina(1998:130).JonestambmaproximaBurdendosAcionistasVienensespor evocaremacrucificaodeCristoeomartriodossantosposicionandoBurden metaforicamentenasfileirasdodivinosacrifcioartsticoalcanadopelosuicidaJackson Pollock (p. 131)9. AleituradeJones,focadanasrelaesdegneroobservadasnasobrasdeartistas ligadosperformanceebodyart,esuarefernciasantidadedomartrio,noslevaa pensarnaobradaartistafrancesaOrlan,quealcanounotoriedademundialquando comeouoprojetointituladoAreencarnaodeSantaOrlan,noinciodos anos 1990.O projetoconsistiaemumasriedecirurgiasplsticas(conduzidaspelaartistacomo elaboradssimas performances) nas quais submetia o prprio corpo a transformaes fsicas quebuscavamreproduzirumasriedeelementosanatmicospresentesempinturas clssicas que so considerados cones em relao aos padres de beleza ocidentais: a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o queixo da Vnus de Botticelli etc. Conforme Alyda Faber, Orlan diz que seu trabalho 'blasfemo'. Ela deliberadamente criaecorporificapardiasvisuaisdomartriocristoaoposicionar-sedemaneira cruciformenamesadeoperao.Estasimagensreforamsuaexcessivaapropriaoe corporificaodosrituaisdebelezafemininaquepressionamasmulheresabuscaruma perfeiofsicainatingvel(2008:119).EmumparalelocomaobradeChrisBurden, podemosdizerqueoobjetivodeprovocarreaesnosespetadorestambmaparececomo elemento central na obra de Orlan: a cirurgia plstica encarada como ritual violento busca aomesmotempodesconcertaropblicopelochoqueelegitimarasideiaspolticasda artista.EmcontrastecomBurden,podemosperceberumaposturadiferenteemrelao dor e ao sofrimento, na apologia da artista anestesia peridural. Em seuManifesto da arte carnal,Orlanescreve:Agorapossoobservarmeuprpriocorpoabertosemsofrercom isso! Possover at o fundo das entranhas, novo estdio do espelho10. Mais frente, a artistaescrevequeAartecarnalafirmaaindependnciaindividualdoartistaenesse sentido luta tambm contra os a priori e os ditados; por isto que se inscreve no social, nas mdias (onde desfaz ideias pr-concebidas e causa escndalo) (1999: 50). A postura crtica daartistafrentesociedadedeconsumoeseuspadresestticosnormativosevidente, masrevelasriasambiguidadesemumexamemaisdetido.ApesardeOrlanpregara 9JonesconsideraPollockumafiguraestratgicaparaaideologiaquepautouomodernismoeperodos anterioresdocnoneartsticoocidental.Estaideologiaeracaracterizada,entreoutroselementos,porum pretensodistanciamentoeimparcialidadenaatitudedeartistasecrticos.Estaatitude(mal)escondiauma posturamachistaeexcludentequeprocuravamanteravisodoartistacomosujeitomasculino,brancoede classemdia.AposioambguadePollocknahistriadaarteocidental(comentadarapidamenteno3 movimento deste ensaio) amplamente discutida por Jones no captulo The 'Pollockian performative' and the revision of the modernist subject (1998: 53-102). 10Estdiodoespelho:expressopropostaporJacquesLacanparadenominarafasedodesenvolvimento subjetivo infantil em que a criana interage com sua imagem especular (ver LACAN, 1966: 93-100 e NASIO, 2009). INTERSEMIOSE Revista Digital 51 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 liberdaderadicaldeescolharelativaaparnciadoprpriocorpo,Hans-ThiesLehmann aponta um paradoxo fundamental em sua obra: Orlan demonstrasua liberdade tendencialmenteabsoluta deescolher a'si', o queseria umapremonioda'sociedademultiopcional',naqualnadamaisserdadopela natureza, de modo que o indivduo ter de arcar com o peso de sua prpria escolha e de sua responsabilidade. Ao mesmo tempo, porm, as performances de Orlan evidenciam com umaclarezaestarrecedora que no fundojseabdicou da'vontade' justamenteali ondeelaparecemaispoderosaecorajosa.Eladecaboarabocondicionadapor normas culturais, ideais de beleza e modelos de representao (2007: 232-233). OquestionamentodeLehmannencontraecoemvrioscomentadoresdaobrade Orlan.Trata-sedeumaquestotopertinentequantocomplexaemsuasimplicaes, reportando-seatodaumagamadeaesextremasrealizadasporartistastendoseus prprios corpos como alvo. Notadamente, a violncia contra o prprio corpo teve um papel preponderantenaexpressodeposicionamentospolticosporpartedemuitosartistas ligados performance, como pudemos observar nos casos de Burden e Orlan. Entretanto, o contedopolticoeideolgicodestasmanifestaesexpressivaspareceapresentaruma caractersticaambgua,quetornaproblemticassuaspossveisinterpretaes.Nossa propostaampliaradiscussodosestudosdecasoutilizandoaquestodarelaoentre erotismoeviolnciapropostaporBatailleerelacionandoestaproposiosideiasde Victor Turner sobre a liminaridade nos ritos de passagem. Arelaoentreerotismoeviolncia(concretizadanatransgresso)propostapor Bataille em seu clssico estudo baseada na dialtica entre dois estados que ele chama de descontinuidadeecontinuidade.Oprimeirorepresentariaaindividualidade,a separao (tanto fsica quanto psicolgica/espiritual) de cada indivduo em relao ao resto domundoe,principalmente,atodososoutrosindivduos;adescontinuidadeest fundamentalmenterelacionadaexistnciahumana,condicionandoinclusiveasrelaes interpessoais. Ja continuidadedizrespeitoaoestadodeindiferenciao e(con)fuso,no qualnopossvelfalaremindivduos,masapenasemumatotalidadeindiferenciadae englobante; este estado corresponderia morte ou pr-vida, fases localizadas nos limites da experincia humana, sobre as quais apenas podemos especular. Apassagemdeumestadoaoutroconstanteereflete-seemvriosnveisdavida humana,inclusivenasmaisbsicasinteraescelulares.Batailleassimsituaa descontinuidade em relao ao processo de reproduo: Areproduocolocaemjogoseresdescontnuos.Osseresquesereproduzemso distintos uns dos outros e os seres originados so distintos entre eles como so distintos daquelesdosquaisnasceram.Seunascimento,suamorteeosacontecimentosdesua vida podem interessar aos outros, mas ele o nico diretamente interessado. Ele nasce sozinho.Elemorresozinho.Entreumsereoutroexisteumabismo,existeuma descontinuidade [...] Somente podemos sentir em comum a vertigem deste abismo. Ele pode nos fascinar. Este abismo em certo sentido a morte e a morte vertiginosa, ela fascinante [...] a reproduo leva descontinuidade dos seres, mas ela coloca em jogo sua continuidade, o que quer dizer que ela est intimamente ligada morte (1957: 18-19) AdinmicaapontadaporBataillenoprocessodereproduoestende-sesrelaes erticas em geral j que os amantes buscariam sua continuidade uns nos outros.Conforme opensamentodeBataille,poderamosdizerqueoatosexual,emltimaanlise,uma tentativa de fuso entre os dois amantes, isto , uma tentativa de romper as barreiras que os HUMANIDADES MDICAS 52INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 definemcomodoisindivduos.Estabuscaportransporoabismodadescontinuidadee encontrar a unidade perdida no nascimento apresenta uma ambivalncia fundamental j que a continuidade - ligada que est morte/pr-vida, ou se preferirmos, ao desaparecimento do indivduo enquanto tal - temida com a mesma intensidade com que desejada. Abuscaambivalentepelacontinuidadetambmestligadaaosagrado.Basta examinarmosanoodeexperinciamsticapresenteemmuitastradiesreligiosas:a fuso total do indivduo com o universo equivale ao retorno do indivduo (descontnuo) ao todo(contnuo)queooriginoueaoqualretornarquandomorrer.Entretanto,esta passagemdeum estado aoutrotantopodeequivaler mortecomoaumarelao ertica. ParaBataille:odesenvolvimentodoerotismonoemnadaexterioraodomnioda religio, mas justamente o cristianismo, opondo-se ao erotismo, condenou a maior parte das religies. Em certo sentido, o a religio crist talvez a menos religiosa (p. 38). ComoasrefernciasaopensamentodeLvi-Straussnosdeixamperceber,ocampo daantropologiaconstantementeutilizadoporBataillenaaplicaodesuasideiasaum contextomaiscomplexoderelaessociais.Apresenadadialticaentreosestadosde descontinuidade e continuidade na vida social fica ainda mais evidente quando analisamos o pensamento de Victor Turner, um dos responsveis por lanar as bases do que viria a ser conhecido como antropologia da performance. Turner, na busca de um modelo de anlise antropolgicaquecomplementasseasdeficinciasdeumpensamentoexcessivamente dominadopelofuncionalismoepeloestruturalismo,propsumacategoriaanalticaque batizou de drama social. Nas palavras de Turner, os dramas sociais seriam unidades de processos sociais a-harmnicos ou desarmnicos que afloram em situaes deconflito.Tipicamente,elespossuemquatrofasesprincipaisdeaopblica.Elas so:(1)Rupturaderelaessociaisregularesegovernadaspornormas;(2)Crise, durante a qual existe a tendncia de ampliao da ruptura. Cada crise pblica possui o que eu agora chamo de caractersticas liminares, j que um limiar (limen) entre fases maisoumenosestveisdoprocessosocial,masnosempreumlmensagrado, cercadodetabusemarginalizadoemrelaoaoscentrosdavidapblica.Pelo contrrio, ele assume suainstnciaameaadora no prprio frum, e, como tal, desafia osrepresentantesdaordemacombat-lo;(3)Aoderetificao,variandodo conselho pessoal e mediao ou arbitrao informal a mecanismos formaisjurdicos e legais, e, para resolver alguns tipos de crises ou legitimar outros modos de resoluo, performancedeumritualpblico.Aretificaotambmpossuisuascaractersticas liminares,poisestentre,nomeio,e,comotal,fornecearplicaeacrtica distanciadaos eventos que compem e conduzem crise. Esta rplica pode acontecer noidiomaracionaldoprocessojurdicoounoidiomametafricoesimblicodeum processoritual;(4)Afasefinalpodeconsistiremreintegraodogruposocial perturbado ou no reconhecimento e legitimao de um cisma irreparvel entre as partes opostas (1988: 74-75). AspalavrasdeTurnernosfazemvoltaraBataille,queapontaatransgresso (identificadacomaviolncia)comoelemento-chavenabuscaambivalentepela continuidade. Bataille chega a afirmar que no h interdito que no possa ser transgredido. Muitas vezes a transgresso admitida e mesmo frequentemente prescrita (1957: 71). Sem ointerditoesuatransgresso,noseriapossvelomovimentohumanoemdireo unidadeperdida-representadademaneiraambguaeintercambivelpelafusocomo divino, pelo desaparecimento na morte ou pelo encontro ertico com o ser amado. Do ponto devistadaantropologia,atransgressodaordemfazpartedeumprocessoquegarantea estabilidadedasorganizaessociais,istoficamaisclaroquandoanalisamosas caractersticas do que Turner chama de liminaridade. INTERSEMIOSE Revista Digital 53 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 AcaractersticaliminardequenosfalaTurnerumdadoimportanteparaa compreenso de como a ritualizao do espao-tempo articulada na performance artstica contempornea.Oantroplogodefinealiminaridadeapartirdaestruturadosritosde passagem, nos quais certos indivduos so temporariamente separados da comunidade com vistas a uma posterior reintegrao. Durante este perodo de separao (chamado de liminar egeralmenteacompanhadodoisolamentodosparticipantes)possuicaractersticasmuito especiais em contraste com a organizao social da vida cotidiana. Conforme Turner, Os atributos da liminaridade ou das personae liminares so necessariamente ambguos, jqueestacondioeestaspessoaseludemouescorregamporentrearedede classificaes que normalmentesituaestados e posiesno espao cultural. Entidades liminaresnoestoaquinemali;elasestoentreasposiesdesignadaseordenadas pelalei,costume,convenoecerimonial.Comotais,seusatributosambguose indeterminadossoexpressosatravsdeumaricavariedadedesmbolosnasmuitas sociedadesqueritualizamtransiessociaiseculturais.Destaforma,liminaridade frequentementeligadamorte,aestarnoventre,invisibilidade,escurido, bissexualidade, ao estado selvagem, e ao eclipse do sol e da lua (2007: 89-90) AoestadodeliminaridadecorrespondeoqueTurnerchamoudecommunitas,ou seja,avidadiferenciada,hierarquizadaeorganizadapelasnormassociais.Ambosos estados guardam uma relao dialtica, refletindo os vrios momentos de transio em que osindivduosmodificamaposioqueocupamnasociedade.Oparalelocomo pensamentodeBataillenopoderiasermaisclaro:aliminaridadeseriaumametforada continuidade,doestadodeindiferenciaoeambiguidade,enquantoadescontinuidade seria representada pela vida social diferenciada hierarquicamente e orientada pelas normas e pelo costume. Oartistadaperformanceumritualizadordoinstante-presente,naexpressode Renato Cohen: ao aproximar arte e cotidiano, busca-se a dimenso transformadora da arte. Para Cohen, este movimento dialtico, pois na medida em que, de um lado, se tira a arte de uma posio sacra, inatingvel, vai se buscar, de outro, a ritualizao dos atos comuns da vida (2007: 38). Richard Schechner relaciona certas situaes ligadas ao corpo exploradas por muitos artistas da performance a um movimento que busca eliminar as fronteiras entre arte/vida, artista/pblico, dentro/fora: Asartesdeperformanceocidentaispermanecemempenhadasemmanterperformerse receptoresseparados.Palcossoelevados;cortinasmarcamumlimite;espectadoresso fixadosemseusassentos.Artistasconvencionais,acadmicosecrticosnovem sincronicidade esinestesia combonsolhos.Comer,digesto eexcreonosopensados como espaos corretos de prazer esttico. Estes espaos - parte de shows de rock, raves e partidas esportivas- esto mais no domnio da arte-performance. Nos primeiros tempos da arte-performancehaviamCaroleeSchneemann,AllanKaprow,ShiragaKazuo,Hermann Nitsch,ChrisBurden,Stelarc,PaulMcCarthyeoutros.MaistardevieramMikeKelley, KarenFinley,AnnieSprinkle,RonAtheyeFrankoB.-todosinsistindoemtornaro corpoexplcito.Seutrabalhocomeouaelidirasdiferenasentreointerioreoexterior; enfatizar permeabilidade e porosidade; explorar o sexual, o doente, o excretor, o molhado, omalcheiroso.Performancesutilizavamsangue,smen,saliva,fezes,urina-assimcomo comida, tinta, plstico e outras coisas buscadas no literal em vez do faz de conta (2003: 357-358). Alm da conotao poltica mais evidente, esta busca pelo rompimento de fronteiras, epelaaproximaoentrecriaoartsticaevidacotidiana,podeserrelacionada transgressodelimiteseaodesejodecontinuidadedequenosfalaBataille.Tambmno HUMANIDADES MDICAS 54INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 ritualenosritosdepassagemocorpohumanosubmetidoasituaesextremas(tortura ritual,maustratos,jejum,confinamento,silncioprolongadoetc.)quemetaforizamou induzemoestadoliminarapontadoporTurner.Jean-PierreSagpensaquecertas performances fundadas no risco podem remontar a uma espcie de nostalgia das estruturas iniciticas,representandoumsubstitutotobrutalquantodesesperado(2010:201). Naturalmente, estas aes trazem um risco fundamental: o risco de desaparecer, de perder-se,dedeixarde existir,demorrer.Aexperincia msticade fusocomodivinofascinae ameaaoindivduonoplanoexistencial,oprojetodefundirarteevidapotencialmente revolucionrionoplanointerpessoalpordesafiardefinies,processoscriativos,campos acadmicosesistemaseconmicos,polticosesociais.Asaesviolentasdosartistasda performance,motivadasporquestesindividuaisecoletivasdasmaisdiversasorigens, podemtambmserencaradascomometforasradicaisdeumanecessidadede transcendnciaemumapocamarcadapelovaziodoconsumismo,pelaespetacularidade alienante da mdia e pela onipresena da violncia na sociedade. Coda: pensar, agir, criar, transgredir, arriscar Muitasobrasnasquaispossvelperceberecosdestasaesviolentascontinuama ser realizadas por artistas contemporneos, mas seu alcance expressivo e poltico parece ser cadavezreduzido.Aartecannicaeseuscorolrios(museus,galerias,crticose acadmicos) terminaram por absorver estas manifestaes que, pelo menos em seu projeto inicial, opunham-se a todo este sistema. Conforme Amelia Jones Ofracassodaliveart,performancearte/oubodyartemdestruirestasestruturas[o mercadodaarte,acrticaeaacademia]deumavezportodas,queapontaparasua incomumhabilidadedeabsorverqualquercoisa(atoaovivoouefmero)como mercadoria, no deve desvalorizar o projeto de insistentemente inserir, performar, atuar e/ourepresentarocorpocomocentralparaocampodasartesvisuais.Emvezdisso, deveriatornarmaisimperativoquedisciplinascomohistriadaarteoutrans disciplinascomoosestudosdaperformance,reconheamascomplexidadesdecomo taisprticassolevadasacaboeestoposicionadasculturalmenteeso valoradas/interpretadas discursivamente e institucionalmente (2008: 162). A prpria Jones afirma que as disciplinas acadmicas vm caminhando no sentido de compreender de forma mais abrangente o papel do corpo e da performance nas artes. Muito jfoifeitonessesentidoemuitasmudanasjpodemserobservadasnaorganizaode muitasdisciplinasemuniversidadesmundoafora.Entretanto,senocampodapesquisa acadmicaascoisasparecemcaminharnosentidodeampliareaprofundarantigos questionamentos,novispolticoemercadolgicoosavanosparecemserbemmais tmidos.Ocrescenteabismoentreaproduoartsticacontemporneaeopblico significativo demais para ser ignorado, e parece negar a (j antiga) ideia de aproximar arte e vida atravs da performance. Talvez a questo do risco seja um dos principais aspectos a serem destacados quando falamosdasmetforasradicaisqueartistascomoOrlan,ChrisBurden,osAcionistas Vienenses e tantos outros literalmente sentiram na pele. Talvez uma das grandes lies que as geraes mais jovens possam aprender com estes artistas seja encarar o risco da maneira maisamplapossvelnoatocriativo:oriscocomoprticadopensamento",nafeliz expressodeFranoisPluchart(1984).Afinal,toingnuoquantopensarnestas performancescomoabsolutamenteredentorasourevolucionriasnegarqualquerefeito INTERSEMIOSE Revista Digital 55 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 transformadorquepossamviraexercernasociedade.Napiordashipteses,apolmica pode nos levar reflexo e ao aprofundamento das discusses. Correr riscos no campo da artenosignificaapenassubmeter-seasituaesdeperigorealintegridadefsicaem performancesmuitasvezesidentificadascomumradicalismoquebeiraopatolgico,mas encarar o ato criativo em toda sua potencialidade transgressora. Retomando as metforas de Bataillesobreareproduohumana,podemoscompararacriaoartsticaaoprocesso reprodutivo(envolvendoideiaseaesnolugardasclulas),comtodaaviolnciae incerteza que este movimento necessariamente representa. Referncias bibliogrficas AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1975. BAUDELAIRE, Charles. Le peintre de la vie moderne. Paris: Litteratura, 2010 [1863]. BARTHES, Roland. Le grain de la voix. Lobvie et lobtus. Paris: Seuil, 1982. BATAILLE, Georges. Lrotisme. Paris: Minuit, 1957. BEAUVOIR, Simone de. Le deuxime sexe volume 2. Paris: Gallimard, 1990 [1949]. BISHOP,Claire.ParticipationDocumentsofContemporaryArtSeries.Cambridge:MITPress, 2006. BRETON, Andr. Manifestos do surrealismo. Trad. Luiz Forbes. So Paulo: Brasiliense, 1985. BURDEN,Chris;BUTTERFIELD,Jan.ThroughtheNightSoflty.BATTCOCK,Gregory; NIKLAS, Robert (Org.) The art of performance: a critical anthology. UBU Editions, 2010 [1975]. BUTLER,Judith.PerformativeActsandGenderConstitution:AnEssayinPhenomenologyand Feminist Theory. Theatre Journal, Vol. 40, No. 4, 1988. CARLSON, Marvin. Performance: a critical introduction. Nova York: Routledge, 2004. CASTARDE, Marie-France. La voix et ses sortilges. Paris: Les Belles Lettres, 2004. CLARK, Lygia; OITICICA, Hlio. Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. _____. Lygia Clark Arte Brasileira Contemporna. Rio de Janeiro: MEC-Funarte, 1980. COHEN, Renato. Performance como linguagem. So Paulo: Perspectiva, 2007. DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Flix.Oanti-dipo.Trad.GeorgesLamazire.RiodeJaneiro: Imago, 1976. DOLAR, Mladen.The objectvoice.IEK, Slavoj; SALECL, Renata(Org.)Gaze and voice as love objects. Durham e Londres: Duke University Press, 1996. FABER, Alyda. Saint Orlan: ritual as violent spectacle and cultural criticism. BIAL, Henri (Org.) The Performance Studies Reader. Nova York: Routledge, 2008. HUMANIDADES MDICAS 56INT INTERSEMIOSE Revista Digital, ANO I, vol. 01, n. 01, Jan/Jul 2012, n.1 FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. FRYE, Northrop. Anatomy of criticism. New Jersey: Princeton Uiversity Press, 2000. _____. Fbulas de identidade: estudos de mitologia potica. Trad. Sandra Vasconcelos. So Paulo: Nova Alexandria, 2000a. GOLDBERG.RoseLee.Performanceart:fromfuturismtothepresent.Londres:Thamesand Hudson, 2001. GREINER, Christine. O corpo pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Annablume, 2006. GROSZ, Elizabeth. Volatile bodies: toward a corporeal feminism. Bloomington: Indiana University Press, 1994. HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia:tenses na poesia modernista desde Baudelaire. Trad. Alpio Correia de Frana Neto. So Paulo: Cosac Naify, 2008. HANISCH,Carol.Thepersonalispolitical.Disponvelem: http://www.carolhanisch.org/CHwritings/PersonalisPol.pdf (acesso em 04/05/2011). JOLLES, Andr. Formas simples. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Cultrix, 1976. JONES,Amelia.Liveartinarthistory:aparadox?.DAVIS,TracyC.(Org.)TheCambridge companion to performance studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. _____. Body art: performing the subject. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998. LACAN, Jacques. crits. Paris: Seuil, 1966. LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrpolis: Vozes, 2010. _____. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2009. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro ps-dramtico. Trad. Pedro Sssekind. So Paulo: Cosac e Naify, 2007. LIPPARD,Lucy.Sixyears:thedematerializationoftheartobjectfrom1966to 1972.California: University of California Press, 1997 [1973]. LYOTARD, Jean-Franois. The Inhuman: reflections on time. Trad. Geoffrey Bennington e Rachel Bowlby. Cambridge: Polity Press: 1991. MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MENEZES,Philadelpho.Poesiasonora:poticasexperimentaisdavoznosculoXX.SoPaulo: Educ, 1992. MORAES, Eliane Robert.O corpo impossvel: a decomposio da figura humana de Lautramont a Bataille. So Paulo: FAPESP/Iluminuras, 2002. NASIO, J.-D. Meu corpo e suas imagens. Trad. Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. NOCHLIN, Linda. The body in pieces: the fragment as a metaphor of modernity. Londres: Thames and Hudson, 1994. INTERSEMIOSE Revista Digital 57 INTERSEMIOSE Revista Digital ANO I, vol. 01, n. 01 Jan/Jul 2012 OITICICA,Hlio.Basesfundamentaisparaumadefiniodo'parangol'.Disponvelem: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=49&tipo=2 (acesso em 10/05/211). ONG, Walter J. Orality and literacy - the technologizing of the word. Londres: Routledge, 1982. ORLAN. Manifeste de l'art charnel. La Voix du Regard, n 12, 1999. OSTROWER, Fayga. Acasos e criao artstica. Rio de Janeiro: Campus, 1999. PLUCHART,Franois.RiskasthePracticeofThought.BATTCOCK,Gregory;NIKLAS, Robert (Org.) The art of performance: a critical anthology. UBU Editions, 2010 [1984]. ROSENBERG, Harold. The tradition of the new. Cambridge: Da Capo Press, 1994 [1959]. RYLE, Gilbert. The concept of mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2002 [1949]. SAG, Jean-Pierre. Corps et reprsentation dans la performance. JIMENEZ, Marc (Org.) Corps et arts. Paris: Klincksieck, 2010. SARDUY,Severo.Escritosobreumcorpo.Trad.LgiaChiappiniMoraesLeiteeLciaTeixeira Wisnik. So Paulo: Perspectiva, 1979. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique gnrale. Paris: Payot, 1995 [1916]. SCHECHNER, Richard. Performance theory. Nova York: Routledge, 2003. SILVA, Priscilla Ramos da. Os acionistas vienenses: revolucionrios ou perversos?. Anais do IV Encontro de Histria da Arte. Campinas: UNICAMP, 2008. TURNER,Victor.Liminalityandcommunitas.BIAL,Henry(Org.)ThePerformancestudies reader. Nova York: Routledge, 2007. _____. The anthropology of performance. Nova York: PAJ Publications, 1988. ZUMTHOR,Paul.Aletraeavoz:aliteraturamedieval.Trad.AmlioPinheiroeJerusaPires Ferreira. So Paulo: Companhia das letras, 1993. _____.Performance,recepo,leitura.Trad.JerusaPiresFerreiraeSuelyFenerich.SoPaulo: Cosac Naify, 2007.