Dicionário Bíblico - Versão Almeida Corrigida Fiel - Almeida
M+írio Aroso de Almeida
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Mário Aroso de Almeida
SUMÁRIOS DE
DIREITO PROCESSUAL ADMINISTRATIVO
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Ano Lectivo de 2008/2009
Abreviaturas
CCP – Código dos Contratos Públicos
CPA – Código do Procedimento Administrativo
CPC – Código de Processo Civil
CPTA – Código de Processo nos Tribunais Administrativos
CRP – Constituição da República Portuguesa
ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
LPTA – Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
Introdução
Conceitos fundamentais: processo e disciplinas afins; tutela declarativa, cautelar e
executiva; relação processual e sujeitos do processo declarativo; a forma do processo:
constituição, desenvolvimento e extinção da instância; objecto do processo declarativo; con-
dições de existência, admissibilidade e procedência da acção declarativa; decisões de mérito
e de absolvição da instância declarativa
1. Processo e disciplinas afins
1. O termo processo é utilizado, em Direito, em diferentes acepções:
a) Desde logo, como o conjunto sequencial dos actos jurídicos que são praticados na
propositura e desenvolvimento de uma acção perante o Poder Judicial. Nesta acepção,
contrapõe-se, designadamente, o conceito de processo – atinente a uma sequência encadeada
de actos jurídicos relativos ao exercício da função judicial – ao conceito de procedimento, que
se optou por reservar para designar as sequências encadeadas de actos jurídicos relativos ao
exercício das demais funções do Estado, designadamente pela função administrativa — neste
sentido, o artigo 1º, nº 1, do CPA define, com efeito, o procedimento administrativo como “a
sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade
da Administração Pública ou à sua execução”.
b) Depois, como o conjunto das peças escritas que corporizam os actos jurídicos que são
produzidos pelos diferentes sujeitos processuais à medida que se desenvolve o processo (na
acepção indicada na alínea anterior) e que são reunidas num ou mais volumes encadernados.
Nesta acepção, o conceito também é utilizado, no entanto, fora do âmbito do exercício da
função judicial, designadamente no âmbito do exercício da função administrativa (cfr. artigo
1º, nº 2, do CPA).
c) Ainda como o ramo do Direito que estabelece as regras de conduta a observar pelos
sujeitos processuais, tanto na propositura da acção, como na actividade que lhes cumpre
desenvolver ao longo do desenvolvimento subsequente do processo, na acepção indicada na
alínea a). Nesta acepção, o conceito tende a ser utilizado para designar os diferentes ramos do
Direito nos quais o Processo, enquanto ramo de Direito, se desdobra. Neste sentido, fala-se,
assim, por exemplo, em Processo Civil, em Processo Penal, em Processo do Trabalho ou em
Processo Administrativo para referir o Direito Processual Civil, o Direito Processual Penal, o
Direito Processual Laboral ou o Direito Processual Administrativo – ou seja, os diferentes ramos
nos quais se desdobra o Direito Processual.
d) Enfim, como a disciplina que, no âmbito da ciência jurídica, procede ao estudo
sistemático de cada um dos referidos ramos do Direito. Nesta acepção, pode, pois, dizer-se
que se estuda Processo e, mais concretamente, que, por exemplo, se estuda Processo Civil,
Processo Penal, Processo do Trabalho ou Processo Administrativo.
Pela riqueza de conteúdos que o termo Processo carrega consigo, é, pois, a nosso ver,
adequado erigi-lo no conceito nuclear em torno do qual deve gravitar o objecto do nosso
estudo.
Neste sentido, propomo-nos aqui estudar Processo Administrativo, na medida em que o
nosso propósito é o de introduzir o leitor no estudo sistemático do Direito Processual
Administrativo.
2. A análise incidirá, naturalmente, sobre os termos em que o Direito Processual
Administrativo regula os processos administrativos, na primeira das acepções atrás indicadas.
E, nessa perspectiva, veremos quais são os actos jurídicos que devem ser praticados na
propositura e desenvolvimento das acções perante os tribunais administrativos e por que
forma o Direito Processual Administrativo estabelece a sequência encadeada pela qual esses
actos jurídicos devem ser praticados — o que se costuma designar por tramitação do processo.
Mas não apenas isso. A adequada compreensão do regime do processo administrativo
exige incursões muito relevantes em domínios conexos com outros ramos do Direito — em
particular, o Direito da Organização Judiciária, por um lado; e o Direito Administrativo, pelo
outro.
No que toca ao Direito da Organização Judiciária, não poderemos deixar de começar, na
verdade, por ver em que termos se encontra constitucionalmente instituída e legalmente
estruturada a jurisdição administrativa. Com efeito, existe uma óbvia relação de precedência
lógica entre a existência da jurisdição administrativa e o processo administrativo, que não exis-
tiria se ela não existisse. Desde logo por evidentes razões de ordem pedagógica, justifica-se,
por isso, que a aproximação ao estudo do processo administrativo parta do reconhecimento
de que, se esse conceito existe hoje em Portugal, é porque, na nossa ordem jurídico-
constitucional, existe uma dualidade de jurisdições, da qual decorre a existência de tribunais
administrativos, com o âmbito de jurisdição, por um lado, e a organização e competências,
pelo outro, que a CRP e o ETAF lhe conferem.
Por outro lado, e no que respeita ao Direito Administrativo, cumpre ter presente que o
processo não é um fim em si mesmo, mas antes se destina a servir a tutela de situações subs-
tantivas. Nisto se traduz a sua essencial instrumentalidade, enquanto meio primacialmente
dirigido a possibilitar o exercício de direitos e outras situações jurídicas substantivas. Ora,
como assinala Miguel Teixeira de Sousa, “a compreensão da instrumentalidade processual
requer a explicitação do objecto para o qual o processo serve de meio de exercício e de tutela
e o conhecimento da posição das partes em juízo” (1). Com efeito, a específica configuração
que, muitas vezes, assumem as situações materiais a submeter à apreciação dos tribunais
exige que o Direito Processual preveja formas específicas de processo que se lhes adequem. O
modo como se encontra regulado o processo administrativo não é, portanto, indiferente às
especificidades das questões de Direito Administrativo que através dele devem ser apreciadas
e decididas pelos tribunais administrativos. Compreende-se, assim, que a exposição do regime
do processo administrativo envolva importantes incursões pelo Direito Administrativo,
necessárias para a adequada compreensão das soluções processuais.
1() Cfr. “Aspectos metodológicos e didácticos do Direito Processual Civil”, in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXXV, p. 387.
É no Título Primeiro da Primeira Parte, respeitante, a título ainda introdutório, aos
elementos essenciais do processo administrativo – sujeitos, por um lado, e objecto do
processo administrativo, pelo outro –, que a exposição incidirá sobre estes aspectos, com a
vantagem de, uma vez adquiridos os pressupostos a reter a respeito de cada um deles, se
poder depois avançar, como foi dito, para o estudo dos termos em que o Direito Processual
Administrativo regula os processos administrativos no ordenamento jurídico vigente em
Portugal.
2. Tutela declarativa, cautelar e executiva
3. Tal como em processo civil, o ponto de partida para o estudo do processo
administrativo reside na distinção fundamental que separa, por um lado, os processos
declarativos dos processos executivos e, por outro lado, os processos principais dos processos
cautelares.
a) No que se refere à primeira das distinções, os processos declarativos dirigem-se à
declaração do Direito, à resolução dos litígios através da proclamação, pelo tribunal, da
solução que o Direito estabelece para as situações concretas que são submetidas a
julgamento. Em princípio (e, portanto, sem prejuízo da previsão legal da existência de outros
títulos executivos para além das decisões proferidas pelos tribunais), os processos executivos
existem, por seu turno, para obter do tribunal a adopção das providências materiais que con-
cretizem, no plano dos factos, aquilo que foi juridicamente declarado pelo tribunal no proces-
so declarativo (ou que, em todo o caso, consta de outro título que a lei reconhece como
executivo), adequando os factos ao Direito, a situação que existe àquela que, segundo as
normas, deve existir.
O processo declarativo é, portanto, desencadeado para que o tribunal diga o Direito, atra-
vés da emissão de uma sentença; o processo executivo é desencadeado para que o tribunal
execute o Direito, através da adopção, pelo próprio juiz, por funcionários judiciais ou por
outras entidades colocadas ao serviço do tribunal, de providências concretas que coloquem a
situação de facto que existe em conformidade com o Direito que foi declarado. No processo
declarativo, o tribunal profere uma decisão; no processo executivo, o tribunal adopta provi-
dências que dão execução coactiva à decisão ou que constrangem o obrigado a cumprir o que
foi determinado por sentença (ou por outro título com força executiva).
No processo administrativo, a distinção é claramente assumida na medida em que, após
ter regulado os processos declarativos (em primeira instância, nos artigos 35º a 111º) e os
processos cautelares (nos artigos 112º a 134º), o CPTA dedica um Título específico, o Título VIII
(artigos 157º a 179º), aos processos executivos.
b) No que se refere à segunda das distinções enunciadas, entre processos principais e
processos cautelares, ela pode ser genericamente traçada da seguinte forma. Uma coisa é um
processo declarativo principal, em que o autor exerce o seu direito de acção, com vista a obter
uma pronúncia que, dizendo o Direito, proporcione a tutela declarativa adequada à situação
jurídica que o levou a dirigir-se ao tribunal, e outra diferente é o processo cautelar, em que o
autor pede ao tribunal uma providência destinada a impedir que, durante a pendência do
processo principal, a situação de facto se altere em termos passíveis de pôr em perigo a uti-
lidade da decisão que naquele processo se pretende ver proferida.
O processo cautelar não possui autonomia, funcionando como um momento preliminar
ou como um incidente do processo principal, cujo efeito útil visa assegurar e, portanto, ao
serviço do qual se encontra. Desde logo por este motivo, a tramitação dos processos caute-
lares obedece a um modelo específico que a lei regula em separado, por confronto com as
formas de processo que estabelece para os processos principais. Por outro lado, os processos
cautelares tendem a obedecer a uma estrutura simplificada, que os adeque à urgência com
que devem ser decididos.
Isto mesmo sucede no processo administrativo. Com efeito, o CPTA dedica um Título
autónomo, o Título V (artigos 112º e seguintes), aos processos cautelares, que configura como
urgentes (cfr. artigo 36º, nº 1, alínea d)).
Ao contrário do que, entre nós, tradicionalmente se faz no processo civil, o CPTA não fala,
entretanto, em procedimentos cautelares, mas em processos cautelares. Pelo menos no domí-
nio específico do processo administrativo, a solução justifica-se desde logo pela conveniência
em reservar a expressão procedimento para o procedimento administrativo, conceito que,
como vimos (cfr. nº 1), se faz corresponder à tramitação das decisões administrativas, regulada
por normas de Direito Administrativo, e não à tramitação de decisões judiciais, regulada por
normas de Direito Processual. Isto, naturalmente, sem se deixar de reconhecer que os
processos dirigidos à adopção de providências cautelares têm características particulares, que,
como foi dito, os distinguem dos processos principais.
Como resulta dos termos da distinção enunciada, os processos declarativos têm
precedência lógica sobre os processos executivos. Com efeito, na maioria das situações, o
processo executivo é desencadeado na sequência de um processo declarativo, com vista a
tentar obter a concretização, no plano dos factos, do que, no processo declarativo, o juiz deci-
diu no plano do Direito. Justifica-se, por isso, que o estudo dos processos declarativos preceda
o dos processos executivos e, portanto, que se deixe para uma fase mais avançada da
exposição a análise dos termos em que estes últimos são regulados no CPTA. Como já vimos, a
mesma precedência lógica é, aliás, reflectida na estrutura do CPTA.
Por outro lado, a falta de autonomia e, portanto, a instrumentalidade dos processos
cautelares em relação aos processos (declarativos) principais também justifica que o seu
estudo seja remetido para um segundo momento, em relação à análise dos processos
(declarativos principais) por referência aos quais eles se definem. Como já vimos, a mesma
precedência lógica é também reflectida na estrutura do CPTA. O estudo dos termos em que os
processos cautelares são regulados no CPTA também será, por isso, objecto de análise numa
fase mais avançada da exposição, imediatamente após o estudo dos processos declarativos e
antes do dos processos executivos.
Por este motivo, os conceitos fundamentais de teoria geral do processo que, a título
introdutório, se procurarão sistematizar de seguida dizem apenas respeito ao processo
declarativo (principal), em que, como foi dito, o autor exerce o seu direito de acção, com vista
a obter uma pronúncia que, dizendo o Direito, proporcione a tutela declarativa adequada à
situação jurídica que o levou a dirigir-se ao tribunal.
3. Relação processual e sujeitos do processo declarativo (2)
4. O processo declarativo tem o seu início com a propositura da acção pelo autor,
mediante a entrega ou envio da petição inicial, na qual o autor solicita ao tribunal uma
providência que alega ser necessária para tutelar os seus direitos ou interesses. Com a
2() Adopta-se como ponto de referência, tanto no presente ponto como nos três imediatamente subsequentes, a exposição de JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 1996, cujo conteúdo, em diversos segmentos, se acompanha de perto.
apresentação da petição inicial, o autor dá o impulso sem o qual não pode existir o processo, já
que os tribunais são órgãos passivos, que só actuam por iniciativa de quem a eles se dirige,
solicitando a adopção de providências que lhes proporcionem a tutela jurisdicional a que
alegam ter direito.
Com a propositura da acção pelo autor constitui-se a instância, ou seja, a relação jurídica
processual que se vai desenvolver entre as partes e o tribunal ao longo de toda a pendência da
causa – relação dinâmica que, nesse primeiro momento, ainda se estabelece apenas entre o
autor, que propõe a acção, e o tribunal ao qual o autor solicita a adopção da providência a que
alega ter direito.
Na petição inicial, o autor identifica, contudo, o sujeito ou sujeitos que deverão sofrer os
efeitos da providência que é requerida ao tribunal. Estes são os sujeitos contra os quais a
acção é proposta e que nela hão-de figurar, portanto, perante o tribunal, como demandados,
em posição contraposta à do autor. A partir do momento em que a secretaria do tribunal
procede à citação do demandado ou dos demandados, dando-lhes conhecimento de que a
acção foi proposta contra eles e de que, por isso, dispõem de um prazo para, querendo, a
contestarem, a relação processual estende-se, pois, ao demandado ou aos demandados,
passando a intercorrer, quer entre as partes (autor, por um lado, e demandado ou
demandados, pelo outro), quer entre cada uma delas e o tribunal.
Partes e tribunal são, assim, os sujeitos do processo declarativo, os intérpretes que vão dar
corpo à sucessão de actos e formalidades em que o processo se vai concretizar durante a
pendência da causa, até que ocorra alguma das circunstâncias que determinam a extinção da
instância.
4. A forma do processo declarativo: constituição, desenvolvimento e extinção da
instância
5. A instância declarativa constitui-se, pois, com a propositura da acção pelo autor,
mediante a entrega ou envio da petição inicial, e com a citação do demandado ou dos de-
mandados para contestarem, com o que se completa o triângulo da relação processual
intercorrente entre as partes (autor, por um lado, e demandado ou demandados, pelo outro) e
o tribunal.
De acordo com o princípio da tipicidade legal das formas de processo, a lei estabelece os
modelos de tramitação que devem seguir os diferentes processos, desde o momento em que a
acção é proposta perante o tribunal até ao momento em que este vem a proferir a
correspondente decisão. A partir do momento em que se constitui a instância, o processo
segue, pois, os seus termos, de acordo com o modelo de tramitação legalmente previsto.
A este modelo dá-se o nome de forma do processo. O conceito de forma do processo
designa, portanto, o conjunto ordenado de actos e formalidades que devem ser observados na
propositura e desenvolvimento da acção em tribunal. A previsão legal de diferentes formas de
processo resulta da opção do legislador no sentido de que os processos não devem ter todos a
mesma tramitação, mas devem ser, pelo contrário, reconduzidos a tipos diferenciados, e de
que a tramitação dos processos correspondentes a cada tipo deve obedecer a uma sequência
específica de actos e formalidades. E são vários os critérios que podem levar o legislador a pre-
ver múltiplas formas de processo, assim como a dividir os processos por tipos, determinando a
que formas de processo devem corresponder os diferentes tipos legalmente previstos e
delimitados.
Em termos genéricos e tendenciais, pode, em todo o caso, dizer-se que a primeira fase da
instância é a dos articulados, isto é, dos documentos escritos (petição inicial do autor, contes-
tação dos demandados e eventuais articulados adicionais) em que cada uma das partes
apresenta as suas alegações sobre a matéria de facto e a matéria de direito envolvidas na
controvérsia submetida à apreciação do tribunal.
Segue-se a fase do saneamento e condensação do processo, em que, em princípio, os
articulados chegam pela primeira vez ao contacto do juiz, ao qual incumbe verificar a
regularidade da constituição da instância, providenciando, quando seja caso disso, pelo
suprimento de eventuais irregularidades que possam ser sanadas. O processo pode terminar
nesta fase, se houver lugar a absolvição da instância ou ao julgamento antecipado da causa.
Caso contrário, cabe ao juiz determinar que o processo avance para uma fase de produção de
prova, na qual as questões de facto controvertidas, relevantes para a decisão da causa, serão
objecto de prova em juízo.
Na fase da produção de prova, são realizadas as diligências e cumpridos os actos julgados
necessários ao esclarecimento dos factos controvertidos relevantes para a tomada da decisão,
tais como relatórios periciais, audição de peritos, inquirição de testemunhas, etc. A instância
pode, entretanto, ser suspensa ou extinguir-se sem o decurso de todas estas fases, nos casos
legalmente previstos.
5. Objecto do processo declarativo
6. O processo declarativo tem um objecto, que é a matéria sobre a qual o tribunal é
chamado a pronunciar-se. O tribunal só pode pronunciar-se sobre o objecto do processo, tal
como ele foi determinado pelas partes.
Como foi dito (cfr. nº 4), o processo declarativo tem o seu início com a entrega ou envio
ao tribunal da petição inicial, na qual o autor dirige um pedido ao tribunal, solicitando-lhe que
emita uma sentença com um determinado conteúdo.
O pedido dirige-se, assim, antes de mais, à providência a conceder pelo juiz, à sentença
que o autor solicita ao tribunal, através da qual vai ser actuada a tutela jurídica pretendida: por
exemplo, a condenação de A a pagar a quantia de X. Mas o pedido também exprime a
formulação de uma pretensão por parte do autor, que se dirige à produção de um efeito
jurídico, o efeito jurídico que há-de resultar da sentença e que, consoante os casos, se pode
traduzir no reconhecimento, por parte do tribunal, da existência ou inexistência de uma
situação, de um efeito ou de um facto jurídico, individualizado em função dos respectivos
factos ou elementos constitutivos: a chamada causa petendi ou causa de pedir.
Neste sentido, parece poder dizer-se que, à partida – isto é, tomando por referência o mo-
mento da citação do demandado ou dos demandados, em que se completa a constituição da
relação processual –, o objecto do processo declarativo se define por referência à pretensão
formulada pelo autor. É, com efeito, sobre o bem ou mal fundado da pretensão do autor,
dirigida ao reconhecimento, como foi dito, da existência ou inexistência de uma situação, de
um efeito ou de um facto jurídico, que, em primeira linha, vai incidir a discussão (o litígio) que,
ao longo do processo, se estabelece entre as partes e, por fim, a própria apreciação a realizar
pelo tribunal.
O objecto do processo identifica-se, portanto, à partida, pelo pedido e pela causa de pedir,
tal como deduzidos pelo autor. Isto, naturalmente, sem prejuízo da possibilidade de o objecto
inicial do processo vir a ser ampliado ou restringido durante a pendência da causa, por
iniciativa do autor ou dos demandados, de acordo com os (generosos) termos em que tal
possibilidade é legalmente admitida.
A determinação precisa do objecto do processo declarativo é, designadamente,
determinante para a correcta delimitação da força de caso julgado material da sentença que,
no âmbito desse processo, venha a ser proferida pelo tribunal sobre a questão material que foi
submetida ao seu julgamento. Com efeito, se, por hipótese, A for absolvido de (ou condenado
a) pagar a B a quantia de X porque a tanto se obrigou por contrato celebrado com B na data Y,
o que impede que, em novo processo, A venha a ser (porventura, de novo) condenado a pagar
a B a mesma quantia com fundamento no mesmo contrato é o efeito de caso julgado material
que, no processo em que a sentença de condenação foi proferida, se formou por referência ao
objecto desse processo, atinente ao débito de X fundado no contrato datado de Y. A referida
absolvição (ou condenação) não impede, portanto, B de propor nova acção contra A, de novo
dirigida a obter a condenação ao pagamento da mesma quantia X, mas agora, por hipótese,
com fundamento noutro contrato, celebrado na data Z, ou em responsabilidade civil extra-
contratual emergente de facto ilícito e culposo cometido por A na data W, etc.
6. Condições de existência, admissibilidade e procedência da acção declarativa; decisões
de mérito e de absolvição da instância
7. A apresentação de uma petição inicial perante um tribunal exprime o exercício do
direito de acção, direito fundamental à jurisdição, que a CRP – no artigo 20º, em termos gerais,
e no artigo 268º, nºs 4 e 5, no domínio específico do processo administrativo – a todos
reconhece, de se dirigirem aos tribunais para deles solicitarem a adopção das providências de
que aleguem ter necessidade para tutela dos seus direitos ou interesses. Desde que a petição
inicial satisfaça os requisitos formais mínimos de que depende a sua admissão pela secretaria,
ela faz nascer um processo e dá lugar à emissão de uma decisão por parte do tribunal
requerido.
Questão distinta é a de saber se todos os que se dirigem aos tribunais alegando a
necessidade de uma providência jurisdicional têm direito a obtê-la. O direito de acção é um
direito subjectivo público que se esgota na possibilidade de quem quer que seja accionar os
tribunais com base na afirmação da titularidade de uma situação jurídica digna de tutela.
Tanto basta para que o autor faça nascer um processo e lhe assista o direito a obter uma
decisão da parte do tribunal ao qual se dirigiu. Diferente questão é, depois, a de saber se essa
decisão vai ser favorável à pretensão do autor, julgando procedente a acção por si proposta.
Pois isso depende do preenchimento de um conjunto de requisitos, tanto de natureza
substantiva, como de natureza processual.
Para que o autor obtenha uma sentença de procedência, que lhe reconheça razão e lhe
atribua a providência solicitada, é, na verdade, e antes de mais, necessário que a instância, a
relação processual entre as partes e o tribunal, tenha sido regularmente constituída – ou que,
no caso de o não ter sido, seja possível sanar a irregularidade ocorrida.
A regularidade da constituição da instância depende da observância de um conjunto de
requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito da causa, a que é correntemente dado
o nome de pressupostos processuais.
A falta de pressupostos processuais é tendencialmente sanável, cabendo, aliás, ao juiz
providenciar pelo suprimento da falta dos pressupostos processuais que sejam susceptíveis de
sanação. Nos casos, porém, em que não haja lugar a sanação, a falta de pressupostos
processuais constitui uma excepção dilatória, que conduz à emissão de uma decisão de
absolvição da instância, pela qual a instância se extingue sem que o tribunal se pronuncie
sobre o mérito da causa, isto é, sobre o objecto do processo, as questões substantivas que ele
tinha sido chamado a resolver.
Como a decisão de absolvição da instância não julga o mérito da causa, ela não adquire
força de caso julgado material, mas apenas de caso julgado formal, efeito que se esgota dentro
do processo em que a decisão foi proferida, sem se impor fora desse processo. A menos que,
por exemplo, já tenha expirado o prazo dentro do qual a acção podia ser proposta, a
absolvição da instância, por regra, não impede, portanto, a propositura de nova acção com o
mesmo objecto, como também não impede o julgamento quanto ao mérito dessa nova acção,
caso a excepção dilatória anteriormente verificada tenha, entretanto, cessado ou seja, dessa
feita, sanada.
Sempre que não haja lugar à absolvição da instância, mas ao julgamento sobre o mérito da
causa, a emissão de uma sentença favorável à pretensão do autor, que julgue procedente a
acção proposta, depende, entretanto, naturalmente, do preenchimento dos pressupostos de
direito substantivo que, em cada caso, sejam necessários para que, no julgamento do mérito
da causa, o tribunal reconheça razão ao autor e, por isso, lhe atribua a providência por ele
solicitada. As condições de procedência da acção são, assim, os pressupostos de que, de
acordo com as normas de direito substantivo aplicáveis em cada caso, depende o
reconhecimento, por parte do tribunal, do bem fundado da pretensão formulada pelo autor.
Não dizem, pois, respeito ao Direito Processual, mas ao direito substantivo.
Primeira Parte
Elementos essenciais e Pressupostos do Processo Administrativo
Título Primeiro
Elementos essenciais do Processo Administrativo
Capítulo I
Sujeitos do Processo Administrativo
I – O Tribunal Administrativo: a consagração constitucional das diferentes jurisdições
(arts. 209º segs. da CRP); a jurisdição administrativa e fiscal (art. 212º da CRP e art. 8º do
ETAF); identidade e razão de ser do contencioso administrativo; poderes dos juízes
administrativos (art. 3º do CPTA).
8. De acordo com o artigo 209º da CRP, além do Tribunal Constitucional, existem, na
vigente ordem jurídico-constitucional portuguesa, as seguintes categorias de tribunais: o
Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; o
Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; e o Tribunal
de Contas.
Descontando, portanto, o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas, a CRP consagra,
assim, a existência, na ordem jurídica portuguesa, de uma dualidade de jurisdições. Existem,
com efeito, na nossa ordem jurídica, duas ordens de tribunais: os tribunais judiciais, cujo órgão
de cúpula é o Supremo Tribunal de Justiça; e os tribunais administrativos e fiscais, cujo órgão
de cúpula é o Supremo Tribunal Administrativo.
Isto mesmo é confirmado pela simetria com que, nos seus artigos 210º (e 211º) e 212º,
respectivamente, a CRP regula, em seguida, cada uma das jurisdições e, em particular, pelo
modo como, por um lado, no artigo 210º, nº 1, a CRP estabelece que “o Supremo Tribunal de
Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência
própria do Tribunal Constitucional”; e, por outro lado, no artigo 212º, nº 1, estabelece que “o
Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais
administrativos e fiscais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional”.
Acrescenta, entretanto, o artigo 217º, no seu nº 1, que “a nomeação, a colocação, a
transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar
competem ao Conselho Superior da Magistratura” e, no seu nº 2, que “a nomeação, a
colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, bem
como o exercício da acção disciplinar, competem ao respectivo conselho superior, nos termos
da lei”.
Por outro lado, quando o artigo 215º da CRP se refere à “magistratura dos tribunais
judiciais”, ele está apenas a referir-se aos tribunais judiciais, a que se reportam os artigos 210º
e 211º, e não aos tribunais administrativos e fiscais. Evidencia-o o conteúdo dos nºs 2, 3 e 4 do
artigo 215º, que se referem aos mesmos três degraus da hierarquia dos tribunais judiciais
(tribunais de primeira instância, tribunais de segunda instância e Supremo Tribunal de Justiça)
que são mencionados no artigo 209º, nº 1, alínea a), e no artigo 210º. Quando, portanto, nesse
contexto, o artigo 215º, nº 1, da CRP estabelece que “os juízes dos tribunais judiciais formam
um corpo único e regem-se por um só estatuto”, o preceito tem exclusivamente em vista os
juízes dos tribunais judiciais, a que se referem os artigos 210º e 211º, e não os juízes dos
tribunais administrativos e fiscais.
Isto explica o disposto no artigo 57º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de
Fevereiro, que reza o seguinte: “Os juízes da jurisdição administrativa e fiscal formam um
corpo único e regem-se pelo disposto na Constituição da República Portuguesa, por este
Estatuto e demais legislação aplicável e, subsidiariamente, pelo Estatuto dos Magistrados Judi-
ciais, com as necessárias adaptações”.
9. Segundo dispõe o artigo 212º, nº 3, da CRP, cujo sentido e alcance adiante haverá
oportunidade de analisar, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das
acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de
relações jurídicas administrativas e fiscais” – isto é, no essencial, administrar a justiça em nome
do povo nos litígios cuja resolução dependa da aplicação de normas de Direito Administrativo
ou de Direito Fiscal.
A existência, entre nós, da jurisdição administrativa e fiscal tem razões históricas que a ex-
plicam, mas justifica-se, hoje, no quadro jurídico-constitucional do Portugal democrático — tal
como, aliás, também sucede na maioria dos países europeus —, por razões que se prendem
com a vastidão e complexidade do universo das relações jurídicas que são disciplinadas pelo
Direito Administrativo e pelo Direito Fiscal.
Nas sociedades modernas, é, na verdade, cada vez mais complexa e intrincada a rede de
relações jurídicas que resulta da interpenetração dos domínios do público e do privado. E mais
intensa a litigiosidade que se gera em torno do exercício de poderes públicos. É a
consequência da forte intervenção dos poderes públicos na vida social, designadamente nos
planos autorizativo e de fiscalização, dirigido à prevenção de riscos, e da regulação da
actividade desenvolvida pelos agentes económicos. Imbrincada com o cada vez mais forte
reconhecimento de que, num Estado de Direito democrático, os sujeitos privados são titulares
de direitos e interesses dignos de tutela jurídica perante os poderes públicos. Daqui resulta
uma enorme pressão da sociedade sobre a Justiça, a quem é exigida uma tutela cada vez mais
eficaz contra as actuações ilegítimas dos poderes públicos.
Mas, do mesmo passo, existe a consciência de que a intervenção dos tribunais, neste
domínio, não deve ultrapassar os limites que decorrem da vontade expressa pelos órgãos
democraticamente legitimados para o efeito. E, neste sentido, estabelece o artigo 3º, nº 1, do
CPTA que aos tribunais administrativos apenas compete julgar, “no respeito pelo princípio da
separação e interdependência dos poderes, […] do cumprimento pela Administração das
normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua
actuação”.
Não se trata, pois, de pretender que os tribunais administrem, sobrepondo os seus
próprios juízos subjectivos aos daqueles que exercem a função administrativa, mas de
pretender que os tribunais julguem da conformidade da actuação dos poderes públicos com as
regras e os princípios de Direito a que eles se encontram obrigados — e que, no exercício da
função jurisdicional que lhes incumbe, profiram as sentenças e demais providências, tanto no
plano executivo, como no plano cautelar, adequadas para fazer prevalecer o Direito sobre as
eventuais condutas ilegítimas dos poderes públicos.
Como se compreende, esta é uma incumbência que, pela delicadeza que envolve, se
reveste, em qualquer ordenamento jurídico, da maior importância, mas também da maior
complexidade, pelo que bem justifica o mais elevado grau de especialização dos magistrados
chamados a desempenhá-la.
10. Como demonstra o exemplo de alguns países europeus, a começar pela Espanha, a es-
pecialização em matéria administrativa e fiscal não exige, em todo o caso, a necessária
instituição de uma dualidade de jurisdições, podendo ser, teoricamente, assegurada pela
criação de tribunais especializados no seio dos próprios tribunais judiciais de primeira instân-
cia, assim como de secções especializadas nos tribunais judiciais de segunda instância e no Su-
premo Tribunal de Justiça.
A necessidade de assegurar a efectiva especialização dos juízes administrativos e fiscais
desaconselha, contudo, essa solução, na medida em que ela envolveria o risco da diluição
destes juízes, que são em reduzido número, no universo dos juízes dos tribunais judiciais, cuja
carreira não contempla, presentemente, qualquer espécie de especialização. Facilmente
sucederia, portanto, que, senão mesmo mercê da livre circulação de juízes entre tribunais
especializados e não especializados, pelo menos por ocasião da sua transição dos tribunais de
primeira instância para os de segunda instância, ou destes para o Supremo, juízes sem
qualquer formação específica e que nunca antes julgaram matéria administrativa ou fiscal
passassem a fazê-lo – e, para mais, quando em instâncias superiores, com responsabilidades
acrescidas.
11. Tal como sucede com os tribunais judiciais, também os tribunais administrativos e
fiscais se encontram organizados em três níveis: os tribunais de primeira instância, os tribunais
de segunda instância e o Supremo Tribunal Administrativo.
Os tribunais administrativos e fiscais de segunda instância são presentemente dois,
tomam a designação de tribunais centrais administrativos Norte e Sul e têm sede,
respectivamente, no Porto e em Lisboa.
O ETAF regula, em separado, os tribunais de primeira instância que julgam em matéria
administrativa, que designa por tribunais administrativos de círculo, e os que julgam em
matéria fiscal, que designa por tribunais tributários (cfr. artigos 8º, nº 1, e 39º a 50º do ETAF).
Sucede, porém, que, conforme previsto no artigo 8º, nº 3, do ETAF, cada tribunal
administrativo de primeira instância foi agregado, por determinação do Ministro da Justiça
(Portaria nº 1418/2003, de 30 de Dezembro), a um tribunal tributário de primeira instância,
com o que cada um dos tribunais agregados (administrativo e tributário) passaram, assim, a
corresponder a uma secção especializada em matéria administrativa e em matéria fiscal de um
único tribunal, que adopta a designação de tribunal administrativo e fiscal.
Conforme foi estabelecido pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 325/2003, de 29 de Dezembro,
existem, hoje, em Portugal tribunais administrativos e fiscais de primeira instância com sede
em Almada, Beja, Castelo Branco, Coimbra, Funchal, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Mirandela,
Penafiel, Ponta Delgada, Porto, Sintra e Viseu. A área de jurisdição de cada um deles encontra-
se estabelecida no mapa anexo a este Decreto-Lei.
12. A agregação dos tribunais administrativos e fiscais em tribunais de competência mista,
com secções especializadas em matéria administrativa e em matéria fiscal, tanto na primeira
instância (nos referidos tribunais administrativos e fiscais), como nos tribunais superiores (nos
tribunais centrais administrativos e no Supremo Tribunal Administrativo: cfr. artigos 12º, nº 2,
e 32º, nº 1), não compromete a identidade própria de cada um dos dois ramos desta
jurisdição.
Cada secção tem, com efeito, os seus próprios juízes e funcionários. E o processo
administrativo e o processo tributário regem-se por regimes distintos, que prevêem meios
diferenciados de acesso à justiça. No processo administrativo, esse regime está
fundamentalmente definido no CPTA. No processo tributário, esse regime está fundamental-
mente definido na parte do Código de Procedimento e Processo Tributário que trata da
matéria, que não será aqui estudada.
II – As Partes: os particulares e a dimensão constitucional de tutela subjectiva do
contencioso administrativo (arts. 20º e 268º, nºs 4 e 5, da CRP e 2º do CPTA); as dimensões
complementares de tutela (pública, colectiva e difusa) do contencioso administrativo; as
entidades públicas e os seus órgãos; os particulares demandados.
13. Como já vimos (cfr. nº 4), partes num processo declarativo são os sujeitos jurídicos que
nele figuram como autor e como demandados e, portanto, o autor que desencadeou o
processo, formulando a pretensão perante o tribunal, e aquele ou aqueles contra quem a
acção foi proposta e que foram citados como demandados para contestar a petição do autor.
Em primeiro lugar, portanto, o autor.
14. Por regra, os processos administrativos são desencadeados por particulares — pessoas
privadas, singulares ou colectivas, que se dirigem aos tribunais administrativos alegando a
ofensa de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido por parte de uma
entidade pública.
Esta é apenas uma das dimensões da litigiosidade administrativa — mas é, indiscutivel-
mente, a mais relevante, tanto do ponto de vista quantitativo, como do ponto de vista
qualitativo: do ponto de vista quantitativo, na medida em que, estatisticamente, corresponde
à esmagadora maioria das situações; e do ponto de vista qualitativo, por ser aquela que se
reveste de maior importância, na medida em que envolve o exercício, por parte dos alegados
lesados, do seu direito fundamental de acesso à justiça administrativa.
Complementando as disposições, de âmbito genérico, do artigo 20º, a CRP consagra, aliás,
no artigo 268º, nºs 4 e 5, como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, o direito fundamental que a todos assiste de recorrerem à justiça
administrativa em defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, explicitando as
principais dimensões em que esse direito fundamental se concretiza, tanto no plano da tutela
declarativa, como no plano da tutela cautelar.
De referir que a fórmula que, neste como em muitos outros casos, é geralmente utilizada,
dos “direitos ou interesses legalmente protegidos”, tem o propósito e, a nosso ver, o alcance
de cobrir, não apenas as situações em que o quadro normativo aplicável assegura ao
interessado a satisfação plena do seu interesse dirigido a um bem da vida, como também as
situações em que, embora não lhe assegure essa satisfação plena, o quadro normativo
aplicável permite ao interessado aspirar à satisfação desse interesse, exigindo a observância,
por parte das entidades públicas envolvidas, das normas ou princípios pelas quais pode passar
a satisfação desse interesse. Pense-se, desde logo, no exemplo do titular de um interesse
pretensivo dirigido à obtenção de uma licença cuja atribuição depende da formulação de juízos
discricionários, naturalmente parametrizados pela observância de certas regras ou princípios
jurídicos.
15. Cumpre, porém, advertir que nem sempre a autoria, no processo administrativo,
corresponde ao paradigma que acaba de ser referido. O que bem se compreende, na medida
em que, como, no essencial, os processos administrativos se dirigem a fiscalizar a legalidade
administrativa e o respeito pela legalidade administrativa é, em si mesmo, um interesse
público, as leis do processo administrativo são generosas no reconhecimento de legitimidade
para a propositura de acções junto dos tribunais administrativos. Sem prejuízo dos
desenvolvimentos de que cada um deles será objecto no momento próprio, cumpre, pois, de
momento, inventariar os principais tipos de situações em referência.
a) Como a seu tempo se verá, as acções de impugnação de actos administrativos podem
ser intentadas, não só por quem alegue a ofensa de um direito ou um interesse legalmente
protegido, no sentido explicitado no nº precedente (cfr., desde logo, o artigo 51º, nº 1, do
CPTA), mas, de um modo geral, por quem apenas alegue a titularidade de um interesse directo
e pessoal (cfr. artigo 55º, nº 1, alínea a), do CPTA). Por outro lado, também pessoas colectivas,
designadamente sindicatos e associações profissionais, podem propor acções relacionadas
com interesses que lhes cumpra defender (cfr., designadamente, o artigo 55º, nº 1, alínea c),
do CPTA).
b) Existe, entretanto, a chamada acção pública, que é exercida por entidades públicas, no
exercício de um dever de ofício, e não por particulares, em defesa dos seus direitos ou
interesses.
O caso mais relevante diz respeito ao Ministério Público, a quem o CPTA reconhece
amplos poderes para propor acções junto dos tribunais administrativos, em defesa da
legalidade, do interesse público, de interesses difusos e de direitos fundamentais (cfr. artigos
9º, nº 2, 40º, nº 1, alínea b), e nº 2, alínea c), 55º, nº 1, alínea b), 68º, nº 1, alínea c), 73º, nº 3,
77º, nº 1, e 104º, nº 2, do CPTA). No exercício da acção pública, o Ministério Público também
pode dar, aliás, continuidade a certos tipos de acções intentadas por particulares, em caso de
desistência ou outra causa de extinção dessas acções (cfr. artigo 62º do CPTA), e possui
legitimidade irrestrita para recorrer de toda e qualquer decisão proferida pelos tribunais admi-
nistrativos (cfr. artigos 141º, nº 1, 152º, nº 1, e 155º, nº 1, do CPTA).
Mas o CPTA também admite outros casos de acção pública, a cargo de outras entidades,
designadamente no âmbito dos processos de impugnação de actos administrativos (cfr. artigo
55º, nº 1, alínea e), do CPTA).
c) Avulta ainda a chamada acção popular, que o CPTA configura em duas modalidades
bem distintas entre si, embora ambas tenham em comum a circunstância de corresponderem
a acções propostas por cidadãos, individualmente ou em grupo, no gozo dos seus direitos civis
e políticos, em defesa de valores que interessam ao conjunto da comunidade, sem terem
necessariamente de respeitar individualizadamente aos autores.
É o que sucede, nos termos do artigo 9º, nº 2, do CPTA, com as acções intentadas em
defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o
urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens
do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais — no que constitui uma
concretização do direito de acção popular que a CRP consagra como um direito, liberdade e
garantia de participação política no seu artigo 52º, nº 3; e, no específico âmbito autárquico,
com a acção popular de impugnação de actos autárquicos que se encontra prevista no artigo
55º, nº 2, do CPTA.
d) Muitas vezes, os processos administrativos são desencadeados por entidades públicas
contra outras entidades públicas, no âmbito dos chamados litígios interadministrativos, em
que se confrontam entre si interesses estatutariamente atribuídos a diferentes entidades
públicas. Pense-se, por exemplo, em litígios entre autarquias locais e o Estado, como aqueles
em que uma autarquia local impugne uma decisão do Ministério da Cultura que recuse parecer
favorável à realização de um empreendimento de interesse local.
De igual modo, um órgão de uma entidade pública é hoje admitido, em certas cir-
cunstâncias, a impugnar uma decisão tomada por outro órgão da mesma entidade pública (cfr.
artigo 55º, nº 1, alínea d), do CPTA). Pense-se no exemplo da Câmara Municipal que reage
contra uma recusa de autorização da Assembleia Municipal para a contracção de um
empréstimo ou para a celebração de um contrato. Para além dos litígios interadministrativos,
os tribunais administrativos também são, pois, hoje palco de litígios intra-administrativos,
gerados no seio de uma mesma entidade pública.
16. Já vimos, a título preliminar, e a seu tempo veremos com maior detenção que o
critério de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa não é um critério estatutário,
mediante o qual se atribua aos tribunais administrativos a competência para julgar as acções
intentadas contra entidades públicas. O critério geral é, pelo contrário, o de que, por regra, os
tribunais administrativos são competentes para dirimir os litígios de natureza administrativa,
cujo julgamento depende da aplicação do Direito Administrativo.
Ora, daqui decorrem duas importantes consequências, quanto a saber quem pode figurar
como demandado no processo administrativo.
(i) Por regra, as acções do processo administrativo são intentadas contra entidades
públicas, na medida em que, na esmagadora maioria dos casos, essas acções dirigem-se a
reagir contra – ou procurar impedir – decisões ou providências adoptadas – ou a adoptar – por
essas entidades, no exercício das funções que o Direito Administrativo lhes confere. Mas nem
todas as acções dirigidas contra entidades públicas são necessariamente propostas nos
tribunais administrativos: como a seu tempo melhor se verá, isso depende da aplicação dos
critérios materiais de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa.
(ii) Nem todas as acções intentadas nos tribunais administrativos são, entretanto,
propostas contra entidades públicas.
Cumpre, desde logo, sublinhar que à conduta da entidade pública demandada estão
frequentemente associados particulares que também têm de figurar, ao lado daquela, como
demandados no processo. É assim quando há particulares que são beneficiários da decisão
tomada pela entidade pública, cujos interesses se opõem aos do autor que se insurge contra
essa decisão; ou que, em todo o caso, viram a sua situação jurídica definida pela decisão, pelo
que esta só pode ser posta em causa num processo em que lhes seja reconhecida a
possibilidade de participarem. Nestes casos, demandados têm de ser, tanto a entidade pública,
como os interessados particulares, que a lei designa como contra-interessados (cfr. artigos 10º,
nº 1, 57º e 68º, nº 2, do CPTA).
Por outro lado, demandado exclusivo é, desde logo, um particular nos casos em que a
acção é proposta por uma entidade pública, quando o demandado esteja constituído, para
com essa entidade, em deveres emergentes de relações jurídicas reguladas pelo Direito Admi-
nistrativo e a entidade pública não possa fazer valer os correspondentes direitos a não ser pela
via judicial.
O processo administrativo pode mesmo ter apenas sujeitos privados como partes. Seja
porque se trata de um particular que reage contra a conduta de outro particular a quem foi
confiado o exercício de poderes públicos e que, por isso, pratica actos que a lei equipara a
actos administrativos (cfr., designadamente, os artigos 51º, nº 2, e 100º, nº 3, do CPTA). Seja
porque se trata de um particular que reage contra a violação ou a ameaça de violação, por
parte de outro particular, de deveres que para ele resultavam de normas, actos ou contratos
administrativos, sem que as autoridades administrativas competentes, solicitadas a intervir,
tenham adoptado as providências adequadas para impedir ou pôr cobro a tal situação (cfr.
artigos 37º, nº 3, e 109º, nº 2, do CPTA).
A isto acresce que, como é sabido, a lei substantiva tende, hoje, por uma razão ou por
outra, a equiparar, para certos efeitos, às pessoas colectivas de direito público certas pessoas
colectivas de direito privado, estendendo-lhes a aplicabilidade de regimes de Direito
Administrativo que, de outro modo, não lhes seriam aplicáveis. Daqui resulta que muitas
acções contra pessoas colectivas de direito privado têm de ser propostas nos tribunais
administrativos. Este é um ponto que, a justo título, será objecto autónomo de atenção a
propósito da questão da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa.
III – O Ministério Público: os diferentes papéis do Ministério Público no processo
administrativo: a acção pública; a representação do Estado; a intervenção nos processos em
que não é parte.
17. Ao contrário dos sujeitos auxiliares do processo, como os peritos ou as testemunhas,
que, naturalmente, também intervêm nos processos administrativos, mas em moldes que não
se diferenciam do processo civil, pelo que aqui não merecem referência especial, uma palavra
deve ser dedicada ao Ministério Público, em virtude do conjunto específico de papéis que ele
pode desempenhar nos tribunais administrativos.
Como já foi referido, o Ministério Público pode ser autor em processos administrativos,
quando propõe acções no exercício da chamada acção pública (cfr. nº 15).
Mas, como prevê o artigo 11º, nº 1, do CPTA, o Ministério Público também representa o
Estado, fazendo as vezes de seu advogado, nas acções administrativas comuns que sejam
propostas contra o Estado em matéria de responsabilidade civil ou respeitante a contratos.
Para além disto, o artigo 85º do CPTA confere ao Ministério Público o poder de intervir
nos processos administrativos em que não seja parte e que sigam a forma da acção
administrativa especial, quando entenda que tal se justifica em função da matéria que esteja
em causa, “em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos
especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº 2 do artigo 9º”.
Essa intervenção visa contribuir para o melhor esclarecimento dos factos ou a melhor
aplicação do direito e, por isso, pode traduzir-se num requerimento dirigido a solicitar a
realização de diligências instrutórias ou num parecer sobre o mérito da causa, que exprime
uma opinião sobre o sentido em que o caso deve ser decidido pelo tribunal.
Esta previsão do artigo 85º do CPTA é o que hoje resta dos amplos poderes de intervenção
que, no regime precedente, eram reconhecidos ao Ministério Público nos processos em que
não era parte, e que se consubstanciavam na previsão legal de dois momentos de intervenção
necessária em todos os processos, para emissão do visto inicial e do visto final, em que o
Ministério Público tinha, inclusivamente, a possibilidade de suscitar questões de índole
processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa por parte do tribunal. Hoje,
como se vê, a intervenção não é obrigatória nem ocorre mais de uma vez em cada processo:
tem lugar uma única vez, na fase processual em que o artigo 85º do CPTA a prevê, e só quando
o Ministério Público considere que ela se justifica, em função da relevância da matéria em
causa; e não pode versar sobre questões de índole processual, mas apenas sobre questões de
carácter substantivo.
Capítulo II
Objecto do Processo Administrativo:
principais tipos de pretensões dedutíveis
18. Como já foi recordado (cfr. supra, nº 6), todo o processo declarativo tem um objecto,
que é a matéria sobre a qual o tribunal é chamado a pronunciar-se no âmbito desse processo.
O tribunal só pode pronunciar-se sobre o objecto do processo, tal como ele foi determinado
pelas partes. Sem prejuízo das vicissitudes por que pode passar ao longo do desenvolvimento
da instância, mercê das ampliações ou restrições a que possa ser submetido, nos termos da lei
processual, o objecto do processo é, entretanto, identificado, à partida, por referência à pre-
tensão formulada pelo autor, que se dirige, por um lado, à providência a conceder pelo juiz, à
sentença que o autor solicita ao tribunal, através da qual vai ser actuada a tutela jurídica
pretendida, e, por outro lado, à produção de um efeito jurídico, o efeito jurídico que há-de
resultar da sentença e que, consoante os casos, se pode traduzir no reconhecimento, por parte
do tribunal, da existência ou inexistência de uma situação, de um efeito ou de um facto
jurídico, individualizado em função dos respectivos factos ou elementos constitutivos: a cha-
mada causa petendi ou causa de pedir. Neste sentido, pode dizer-se que, à partida, o objecto
do processo se define por referência à pretensão formulada pelo autor, identificada pelo
pedido e pela causa de pedir que por ele foram deduzidos.
É ao nível do objecto do processo que se estabelece a conexão entre o processo e o
Direito substantivo. O objecto de cada processo identifica-se, com efeito, por referência aos
factos a que se reportam as questões submetidas ao julgamento do tribunal e à qualificação
que desses factos fazem as normas de Direito substantivo a aplicar à resolução dessas
questões: num primeiro momento, ainda por referência às alegações iniciais produzidas pelo
autor na petição inicial; depois, também por referência às alegações produzidas pelos
demandados; a final, por referência à própria realidade substantiva a que se reporta o
processo, tal como o tribunal a apreenda e reflicta na sentença que julgue o mérito da causa.
No presente capítulo, pretende-se dar conta, numa perspectiva de conjunto, dos
principais tipos de questões substantivas que podem constituir objecto de processos
administrativos e, portanto, identificar o que se pode qualificar como o objecto do processo
administrativo no seu conjunto, que de algum modo corresponde à soma dos objectos possí-
veis dos processos que podem ser intentados junto dos tribunais administrativos.
Tal abordagem afigura-se, desde logo, extremamente útil por fornecer uma visão de
conjunto da realidade da litigiosidade que é submetida à apreciação dos tribunais
administrativos. Mas também, e sobretudo, porque, como já foi referido na Introdução (cfr. nº
2), permite abordar, nesta fase introdutória, toda uma série de questões de Direito
substantivo a que soluções processuais consagradas no CPTA se reportam e que, por isso, se
afigura útil abordar a título prévio em relação
ao estudo a que nos propomos do Direito Processual Administrativo vigente.
19. Refira-se, desde logo, que, ao contrário do que sucedeu no passado, não vigora, hoje,
no nosso ordenamento jurídico um regime de tipicidade ou numerus clausus quanto aos tipos
de pretensões que podem ser deduzidos perante os tribunais administrativos. Desde que se
inscrevam no âmbito da jurisdição destes tribunais, todo o tipo de pretensões pode ser
deduzido e, como proclama o artigo 2º, nº 1, do CPTA, todas as pretensões regularmente
deduzidas em juízo (3) encontram a via processual que lhes permitirá obter a decisão judicial
que as aprecie com força de caso julgado.
Daqui resulta, naturalmente, que previsões como as do artigo 2º, nº 2, ou do artigo 37º,
nº 2, do CPTA mais não pretendem do que ilustrar, a título meramente exemplificativo, os
principais tipos de pretensões que podem ser objecto de processos administrativos. Não se
trata, pois, de elencos fechados, mas meramente exemplificativos. Como se verá ao longo do
presente capítulo, os respectivos enunciados são, em todo o caso, úteis para a melhor
compreensão dos principais tipos de questões que podem ser submetidos à apreciação dos
tribunais administrativos.
20. Como já foi recordado (cfr. nº 5), a lei estabelece, entretanto, os modelos de
tramitação que devem seguir os diferentes processos, desde o momento em que a acção é
proposta perante o tribunal até ao momento em que este vem a proferir a correspondente
decisão. Ao modelo de tramitação do processo dá-se o nome da forma do processo,
3() Veja-se, a propósito, o que ficou dito supra, sub nº 4, sobre as condições de existência, de admissibilidade e de procedência do processo declarativo.
designação que, desse modo, corresponde ao conjunto ordenado de actos e formalidades que
devem ser observados na propositura e desenvolvimento da acção em tribunal.
A previsão legal de diferentes formas de processo resulta da opção do legislador no
sentido de que os processos não devem ter todos a mesma tramitação, mas devem ser
reconduzidos a tipos diferenciados, e de que a tramitação dos processos correspondentes a
cada tipo deve obedecer a uma sequência específica de actos e formalidades. O campo de
aplicação de cada forma de processo é estabelecido pela lei por referência aos diferentes tipos
de pretensões que podem ser deduzidos em juízo. São, portanto, as especificidades
características de certos tipos de pretensões que podem levar o legislador a diferenciar os
processos por tipos, determinando a forma de processo que deve corresponder a cada um dos
tipos legalmente previstos e delimitados.
É assim que o CPTA faz corresponder a certos tipos de pretensões certas formas de
processo, dizendo qual o modelo de tramitação que deve ser seguido em cada processo,
consoante o tipo de pretensões que nele seja deduzido.
Ora, a nosso ver, o enquadramento que o CPTA dá aos diferentes tipos de pretensões que
podem ser deduzidos perante a jurisdição administrativa, do ponto de vista das opções
efectuadas quanto à estruturação das formas do processo declarativo, assenta num critério
material diferenciador de dois grandes grupos de pretensões que se justifica adoptar como
ponto de referência para a identificação, a que no presente capítulo nos propomos, dos
principais tipos de pretensões que podem ser objecto do processo administrativo. Embora,
nesta fase preliminar, ainda de modo muito sumário, justifica-se, por isso, atentar nos moldes
em que o CPTA regula a matéria.
21. O tema das formas do processo declarativo é objecto da Secção II do Capítulo V da
Parte Geral do CPTA, que é constituída apenas por dois artigos, o artigo 35º e o artigo 36º. Esta
Secção e, em especial, o artigo 35º desempenham um papel fundamental na determinação da
estrutura do Código. Com efeito, aí se diz quais são as formas, os modelos de tramitação, a
que devem obedecer os processos declarativos e, como expressamente aí se refere, a es-
trutura do Código é determinada, nos subsequentes Títulos II, III e IV, em função das formas de
processo que, nessa sede, são identificadas (4).
4() Sem prejuízo da ulterior abordagem do tema no momento próprio, cumpre, em todo o caso, notar que, ao contrário do que sucedia no regime anterior ao CPTA, este veio, entretanto, admitir a cumulação, num mesmo processo, de pretensões que, à partida, corresponderiam, se fossem deduzidas em separado, a dife-
Como resulta do esquema genericamente traçado no artigo 35º e da subsequente estrutu-
ra do Código, nos Títulos II, III e IV, e sem prejuízo de outros que possam ser consagrados em
legislação especial, o regime das formas do processo administrativo declarativo concretiza-se
na previsão de duas formas de processo que poderíamos qualificar como não-urgentes – as
formas de processo que o Código designa como acção administrativa comum (cfr. artigo 35º,
nº 1, e Título II: artigos 37º e seguintes) e como acção administrativa especial (cfr. artigo 35º,
nº 2, e Título III: artigos 46º e seguintes) – e de quatro formas de processo que o próprio Códi-
go qualifica como urgentes (cfr. artigos 35º, nº 2, e 36º, nº 1, alíneas a) a d)) e regula no Título
IV (artigos 97º e seguintes).
Sem prejuízo da existência de processos urgentes, o CPTA estrutura, portanto, os proces-
sos declarativos não-urgentes em torno de um modelo dualista, assente na contraposição
entre duas formas de processo, a que dá o nome de acção administrativa comum e de acção
administrativa especial. Ora, a opção por este modelo dualista reconduz-se à matriz que —
sem prejuízo da previsão de processos urgentes e acessórios — já no regime anterior ao CPTA
presidia à contraposição entre dois modelos de tramitação dos processos que corriam perante
os tribunais administrativos: o modelo do contencioso das acções (de responsabilidade civil e
sobre contratos), tradicionalmente subordinado à forma do processo de declaração do CPC
(cfr. artigo 72º, nº 1, da LPTA), e o modelo do recurso contencioso, submetido a um modelo de
tramitação especificamente regulado pelas normas do contencioso administrativo (cfr. artigo
24º da LPTA) e que era primacialmente aplicado no domínio da impugnação de actos
administrativos e de normas regulamentares (cfr. artigos 64º e 67º da LPTA) (5).
Pode, na verdade, dizer-se, em termos genéricos, que a contraposição que o CPTA
estabelece entre as formas da acção administrativa comum e da acção administrativa especial
permanece fiel a essa matriz e que, no essencial (6), ela assenta no mesmo critério, de saber se
o processo se reporta ou não a actos administrativos e normas regulamentares. No essencial
rentes formas de processo. É o que resulta do artigo 4º, nº 1, do CPTA, sendo que o artigo 5º e o artigo 21º asseguram, por outro lado, que o princípio da livre cumulabilidade de pedidos não sofra entorses ou restrições: assim, mesmo que o CPTA faça corresponder diferentes formas de processo aos pedidos cumulados, estabelecendo que os correspondentes processos deveriam seguir tramitações diferenciadas, ou atribua a competência territorial para a respectiva apreciação a tribunais diferentes, isso não constitui obstáculo à cumulação. Este é um aspecto da maior importância, que nesta sede cumpre assinalar para ter, desde já, presente a necessidade de relativizar o verdadeiro alcance das soluções que presidem à estru-turação das formas do processo, tal como ela, à partida, resulta do artigo 35º do CPTA.5() Embora, com a LPTA, também passasse a ser aplicado no domínio (residual) das acções para reconhecimento de direitos ou interesses (cfr. artigo 70º da LPTA).6() Cumpre, em todo o caso, reconhecer que o critério, embora tendencial, não é absoluto. É assim que, de acordo com o artigo 37º, nº 2, alínea c), seguem a forma da acção administrativa comum os processos em que se requeira a condenação da Administração à não emissão de um acto administrativo, matéria que diz respeito ao (não) exercício de um poder de autoridade através da prática de um acto administrativo.
das situações em que é esse o caso, o processo segue a forma da acção administrativa
especial. Com efeito, estabelece o artigo 46º que seguem a forma da acção administrativa
especial os processos de impugnação de actos administrativos e normas regulamentares e os
processos dirigidos à condenação da Administração à emissão desse tipo de actos, em caso de
recusa ou omissão. Nos restantes casos, ou seja, sempre que nele não sejam deduzidas
pretensões relacionadas com esses tipos específicos de actos, o processo deve ser tramitado
segundo a forma da acção administrativa comum (cfr. artigo 37º).
22. À luz do enquadramento que resulta, nos moldes que acabam de ser descritos, das
opções do CPTA quanto ao modo de estruturação das formas do processo declarativo, afigura-
se, pois, que, para o efeito que nos ocupa no presente capítulo, de apresentar os principais
tipos de pretensões que podem ser deduzidos perante a jurisdição administrativa, se mostra
adequado agrupá-los em dois grandes blocos: o primeiro corresponde, no essencial, aos tipos
de pretensões que o CPTA faz corresponder à forma da acção administrativa especial; o
segundo, corresponde, por seu turno, ao essencial dos tipos de pretensões que o CPTA faz
corresponder à forma da acção administrativa comum (7).
Tal como sucede em processo civil, também em processo administrativo pode, entretanto,
afirmar-se que, consoante o fim a que se dirigem, as acções declarativas podem ser de três
espécies: de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. O CPTA não dá relevância
expressa ao facto, não contendo, assim, preceito correspondente ao do artigo 4º, nº 2, do CPC.
Não há, no entanto, por que não considerar aplicável em processo administrativo o que no
artigo 4º do CPC se dispõe sobre a matéria, por aplicação da previsão genérica do artigo 1º do
CPTA.
Tal como sucede em processo civil, também as acções declarativas que são propostas nos
tribunais administrativos podem ter, por isso, em função do respectivo objecto, uma das três
seguintes finalidades:
7() Isto, sem prejuízo do âmbito de incidência específico dos processos urgentes, que, como foi referido e a seu tempo melhor se verá, se sobrepõem, em domínios circunscritos, quer ao âmbito de aplicação da forma processual da acção administrativa especial, quer da acção administrativa comum: é assim que há impugnações urgentes quanto a certos tipos de actos administrativos e regulamentos em matéria eleitoral e pré-contratual (cfr. arts. 97º segs.. do CPTA) e processos condenatórios sumários, as chamadas intimações, dirigidas à realização de prestações necessárias à tutela urgente de direitos, liberdades e garantias e à prestação de informações, consulta de processos administrativos e passagem de certidões (cfr. arts. 104º e segs. do CPTA).
a) Obter a declaração jurisdicional da existência ou inexistência de um direito ou de um
facto (cfr. artigo 4º, nº 2, alínea a), do CPC). São as acções dirigidas à obtenção das chamadas
sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação, em que o efeito jurídico a
resultar da sentença, a que se dirige a pretensão do autor, se resume ao reconhecimento, por
parte do tribunal, da existência ou inexistência do direito ou do facto. A existência de
processos administrativos dirigidos à emissão de sentenças meramente declarativas ou de
simples apreciação é expressamente reconhecida pelo CPTA, no seu artigo 39º, e decorre,
incidentalmente, de previsões como as dos artigos 2º, nº 2, alíneas a), b) e g), e 37º, nº 2,
alíneas a), b) e h), assim como do artigo 50º, nº 1, na parte em que se refere à declaração de
nulidade dos actos administrativos impugnados.
b) Exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de
um direito (ou interesse legalmente protegido) (cfr. artigo 4º, nº 2, alínea b), do CPC). São as
acções dirigidas à obtenção de sentenças de condenação, em que o efeito jurídico a resultar da
sentença, a que se dirige a pretensão do autor, é o reconhecimento de uma situação jurídica, o
direito (ou interesse dirigido) à prestação da coisa ou do facto, com o alcance constitutivo de
submeter o devedor que é objecto da condenação à possibilidade de vir a ser executado se
não cumprir o disposto na sentença. A existência de processos administrativos dirigidos à
emissão de sentenças de condenação é expressamente reconhecida em numerosas
disposições do CPTA, sendo de realçar as previsões dos artigos 2º, nº 2, alíneas e), f), i) e j), 3º,
nº 2, 37º, nº 2, alíneas c), d), e), f) e g), 37º, nº 3, 44º e 66º.
c) Introduzir uma modificação na ordem jurídica existente. São as acções dirigidas à
obtenção de sentenças constitutivas, em que o efeito jurídico a resultar da sentença, a que se
dirige a pretensão do autor, é o reconhecimento do novo efeito decorrente do alcance
constitutivo da sentença, assim como dos factos constitutivos em que ele assenta. Como, por
regra, as autoridades públicas exercem os seus poderes através da emissão de actos jurídicos
unilaterais, passíveis de impugnação junto dos tribunais administrativos, revestem-se de
especial importância, em processo administrativo, aqueles que se dirigem à obtenção de
sentenças constitutivas, dirigidas à anulação de actos administrativos ou à declaração de
ilegalidade de normas regulamentares — embora a impugnação de actos administrativos,
quando sejam nulos, não se dirija à obtenção de uma sentença constitutiva, de anulação, mas
a uma sentença meramente declarativa ou de simples apreciação da respectiva nulidade (cfr.
artigos 50º, nº 1, e 72º, nº 1, do CPTA).
Justifica-se, por isso, que, no enunciado que de seguida se propõe dos principais tipos de
pretensões que podem ser deduzidos perante os tribunais administrativos, agrupado, como foi
dito, nos dois grandes blocos já referenciados, se atenda ao critério classificatório que agora
acaba de ser exposto, procedendo-se assim à identificação dos tipos de pretensões que, no
âmbito de cada um dos dois grandes blocos, se dirigem à emissão de sentenças meramente
declarativas ou de simples apreciação, de sentenças de comdenação e de sentenças
constitutivas.
I – Pretensões respeitantes a actos administrativos e regulamentos
§ 1º - Pretensões respeitantes a actos administrativos
23. São cinco os tipos de pretensões que podem ser deduzidos por referência a actos
administrativos (8).
Três desses tipos de pretensões têm que ver com o que o CPTA genericamente enquadra
no conceito da impugnação de actos administrativos (cfr. art. 4º, nº 1, als. b), c), d) e e), 1ª
parte, do ETAF e arts. 50º segs. do CPTA): referimo-nos à anulação, à declaração de nulidade e
à declaração de inexistência de actos administrativos de conteúdo positivo. Sendo que, destas,
as acções de anulação dirigem-se à emissão de uma sentença constitutiva, enquanto as
restantes se dirigem à emissão de uma sentença meramente declarativa ou de simples
8() Como a seu tempo se verá, o CPTA estende o regime da impugnação de actos administrativos a actos equiparados a actos administrativos, designadamente actos praticados por entidades privadas ou por órgãos públicos não administrativos.
apreciação. Os outros dois tipos de pretensões dirigem-se à emissão de sentenças de conde-
nação: respectivamente, de condenção à emissão e de condenação à abstenção da prática de
actos administrativos.
Dos cinco tipos de pretensões enunciados, o CPTA só não faz corresponder o quinto e
último tipo de pretensão, dirigido à abstenção da prática de actos administrativos, à forma da
acção administrativa especial (cfr. artigos 46º, nº 2, e 37, nº 1, alínea c)).
1. A impugnação de actos administrativos
24. De modo genérico, pode dizer-se que este tipo de pretensão corresponde às situações
em que se trata de reagir contra a tomada de decisões unilaterais e concretas por parte de
órgãos da Administração Pública: o que o artigo 120º do CPA qualifica como actos
administrativos.
Cumpre, em todo o caso, referir que, para efeitos de permitir a sua impugnação junto dos
tribunais administrativos, o CPTA, nos artigos 51º, nº 2, e 100º, nº 3, equipara a actos
administrativos as decisões materialmente administrativas proferidas por autoridades não
integradas na Administração Pública e por entidades privadas que actuem ao abrigo de normas
de direito administrativo. A primeira das modalidades de actos equiparados corresponde aos
“actos em matéria administrativa” de órgãos como o Presidente da República, a Assembleia da
República e o seu Presidente, os Presidentes do Tribunal Constitucional, dos Supremos
Tribunais e do Tribunal de Contas, a que já anteriormente se referia o artigo 26º, nº 1, alínea
c), do ETAF de 1984 e cuja apreciação em primeira instância (e em via de recurso) o novo ETAF
continua a reservar, no artigo 24º, nº 1, para a Secção de Contencioso Administrativo do
Supremo Tribunal Administrativo.
1.1. Modalidades de impugnação de actos administrativos
a) A declaração de inexistência de acto administrativo – Como foi dito, a impugnação de
actos administrativos, tal como o CPTA a configura, dirige-se à anulação ou à declaração de
nulidade ou inexistência de actos administrativos de conteúdo positivo (cfr. artigos 50º, nº 1, e
51º, nº 4, do CPTA). No plano substantivo, afigura-se, contudo, forçoso distinguir de forma
clara a situação de declaração de inexistência de acto administrativo das situações de
invalidade de actos administrativos, dirigidas à anulação ou à declaração de nulidade de tais
actos. Com efeito, só nas situações de invalidade estamos na presença de um acto
administrativo que veio pôr em causa uma situação jurídica estática detida pelo impugnante,
tratando-se, por isso, de aferir da legalidade de tal acto. Pelo contrário, a declaração de
inexistência de acto administrativo dirige-se ao reconhecimento, por parte do tribunal, de que,
em determinadas circunstâncias, apenas existe a aparência de um acto administrativo que, na
realidade, não foi produzido e, portanto, o reconhecimento jurisdicional de que, no caso
concreto, não existe qualquer acto administrativo.
Cumpre, na verdade, recordar que, tanto o conceito de existência, como o conceito de
validade do acto administrativo estão relacionados com o preenchimento de exigências que ao
acto administrativo são impostas pela ordem jurídica. A distinção entre os conceitos
pressupõe, por isso, a distinção entre os requisitos a que cada um deles está ligado. Como as
normas estabelecem requisitos de existência e requisitos de validade, um acto administrativo
só existe se preencher os requisitos de existência e só é válido se, para além dos requisitos de
existência, também preencher os requisitos de validade. São requisitos de existência de um
acto administrativo os elementos constitutivos do conceito de acto administrativo, tal como o
artigo 120º do CPA os configura. Para que uma determinada declaração possa, portanto, ser
qualificada como acto administrativo, é necessário que apresente um conjunto de
características que correspondam às exigências que, no referido preceito, o ordenamento
jurídico coloca para a existência de um acto administrativo. De outro modo, não teremos um
acto administrativo, mas estaremos perante uma situação de inexistência de acto administra-
tivo.
Cumpre, pois, sublinhar, para evitar equívocos, que as declarações que não reunem as
características próprias do acto administrativo não devem ser qualificadas como actos
administrativos inexistentes, na medida em que essa expressão é uma contradição nos
próprios termos: com efeito, ou bem que estamos perante um acto administrativo, e ele
existe, ou bem que não existe acto administrativo, e então não podemos dizer que estamos
perante um acto administrativo que se caracteriza pela inexistência. Deve apenas dizer-se,
perante cada manifestação que não é um acto administrativo, que não existe um acto adminis-
trativo nesse caso e, por isso, falar-se, a esse propósito, da inexistência de qualquer acto
administrativo. Com efeito, a inexistência não é uma forma de invalidade que possa afectar um
acto administrativo, pela simples razão de que o primeiro e indispensável requisito para que se
possa falar da invalidade de um acto administrativo é que estejamos perante um acto
administrativo e, portanto, que ele exista — ou seja, que estejamos perante uma manifestação
que possa ser qualificada como um acto administrativo.
É, pois, a esta luz que devem ser interpretadas as situações em que, por razões de
segurança jurídica, um interessado se dirige a um tribunal administrativo para pedir que este
declare que determinada pronúncia que, pelo menos aparentemente, foi emitida por um
órgão da Administração Pública não é um acto administrativo porque não preenche os
requisitos necessários para poder ser qualificada como um acto administrativo. Nestas
situações, em que se pede a declaração de inexistência de acto administrativo, o que, na
realidade, o interessado solicita ao tribunal é que ele reconheça que, na situação em causa,
não existe, não foi praticado um acto administrativo — independentemente de, na prática e na
própria lei, por vezes se falar, sem rigor e apenas por mera facilidade de expressão, de actos
administrativos inexistentes, de actos que foram declarados inexistentes (9).
b) A declaração de nulidade de actos administrativos – São requisitos de validade dos
actos administrativos aqueles que a lei põe como condição de cuja observância depende que
eles devam ser aceites como instrumentos incontestáveis de modificação da ordem jurídica. Se
um acto administrativo for praticado sem observar determinado requisito de validade, ele é
inválido e isto significa que ele pode ser contestado, pode ser atacado, perante a própria
Administração e perante os tribunais. Se a invalidade do acto for reconhecida, ele é destruído,
desaparece da ordem jurídica e tudo deve ser feito para reconstituir a situação que deveria
existir se ele nunca tivesse sido praticado e tudo tivesse, por isso, acontecido sem ele.
As duas formas que pode assumir a invalidade dos actos administrativos são a nulidade e a
anulabilidade.
Do regime da nulidade, tal como está definido no artigo 134º do CPA, decorrem as
seguintes consequências. O acto é ineficaz desde o início, pelo que não pode ser objecto de
actos de segundo grau; a nulidade pode ser invocada a todo o tempo, a título principal ou
incidental, por qualquer interessado; existe o direito de resistência passiva contra as
determinações contidas no acto nulo. Tal como a declaração de inexistência de acto
administrativo, a declaração da nulidade é uma sentença meramente declarativa ou de simples
apreciação, que se limita a reconhecer que o acto impugnado é nulo, pelo que nunca produziu 9() Para a síntese, em termos particularmente rigorosos, da diferenciação enunciada no texto, pode ver-se, por todos, ALDO MARIA SANDULLI, Il procedimento amministrativo, Milão, 1940, pp. 313-317.
efeitos jurídicos. Não existe, por isso, o ónus de se proceder à impugnação do acto nulo
perante os tribunais administrativos.
Normalmente, existe, contudo, interesse em pedir a declaração da nulidade para tornar
claro, perante a Administração e eventuais terceiros, que não podem ser extraídas quaisquer
consequências do acto e, no caso de ele ser objecto de execução material, para que sejam
adoptadas as medidas necessárias ao restabelecimento de uma situação que, tanto quanto
possível, se aproxime daquela que deveria existir se o acto nulo nunca tivesse sido executado –
valendo, neste último domínio, o regime aplicável às situações em que houve execução de
actos que vieram a ser anulados.
c) A anulação de actos administrativos – Embora a epígrafe do seu artigo 136º sugira o
contrário, o CPA não define o regime da anulabilidade dos actos administrativos, que, no
entanto, se concretiza nas seguintes características. A anulabilidade de um acto jurídico
significa que esse acto pode ser anulado, está sujeito ao risco de vir a ser anulado. A anulabi-
lidade não faz com que o acto não produza efeitos. O acto produz, portanto, efeitos, devendo
ser cumprido por quem, em circunstâncias normais, seria obrigado a fazê-lo. Os efeitos do acto
são, no entanto, produzidos a título precário, na medida em que podem ser destruídos desde o
início, se o acto vier a ser anulado. O acto será anulado se for praticado um outro acto, que
pode ser um acto administrativo de revogação (a chamada revogação anulatória) ou uma sen-
tença de anulação. A revogação anulatória ou a sentença de anulação decretam a anulação do
acto, o que significa que não só reconhecem e declaram que ele é anulável, mas extraem logo
daí a devida consequência, eliminando o acto, destruindo-o, fazendo com que ele desapareça
da ordem jurídica, como se nunca tivesse sido praticado.
A anulabilidade dos actos administrativos pode ser invocada por um amplo conjunto de
entidades e, de um modo geral, por qualquer interessado que possa retirar uma vantagem da
anulação. De um modo geral, recai sobre os interessados o ónus de procederem à impugnação
tempestiva dos actos administrativos anuláveis. Tais actos só podem ser impugnados perante a
própria Administração ou perante o tribunal administrativo competente, e só dentro do prazo
legal, que é de um ano para o Ministério Público e de três meses para os eventuais interessa-
dos (cfr. artigo 58º do CPTA). Ao fim de um ano, o acto anulável não só deixa de poder ser im-
pugnado, como a própria Administração deixa de poder proceder à respectiva revogação
anulatória (cfr. artigo 141º do CPA).
A sentença de anulação é uma sentença constitutiva, que tem o alcance de destruir
retroactivamente o acto anulado, constituindo a Administração no dever de restabelecer uma
situação que, tanto quanto possível, se aproxime daquela que deveria existir se o acto nunca
tivesse sido praticado (cfr. artigo 173º do CPTA).
1.2. Objecto dos processos de impugnação de actos administrativos
25. O objecto do processo impugnatório define-se, em primeira linha, por referência à pre-
tensão anulatória que é deduzida em juízo. É, na verdade, essa pretensão que, em primeira li-
nha, o autor (impugnante) pede ao tribunal que reconheça ser fundada, para o efeito de
determinar a anulação (ou declarar a nulidade) do acto impugnado.
É, entretanto, pacificamente reconhecido que o caso julgado material formado pela
sentença de anulação ou de declaração de nulidade de actos administrativos não se limita ao
reconhecimento da invalidade do acto anulado ou declaro nulo, mas também se estende à
definição, em maior ou menor medida, dos termos em que (não) se deve processar o exercício
futuro do poder manifestado através desses actos, com a consequente proibição da reinci-
dência, por parte da Administração, nas ilegalidades cometidas com a prática do acto anulado
ou declarado nulo (10).
Isto significa que o objecto dos processos de anulação ou declaração de nulidade de actos
administrativos possui um objecto compósito, na medida em que se deve entender que a
pretensão que neles é deduzida pelo autor tem uma dupla dimensão: por um lado, dirige-se à
concreta anulação ou declaração de nulidade do acto impugnado, fundada no reconhecimento
da sua invalidade; mas, por outro lado, também se dirige ao reconhecimento, por parte do
tribunal, de que a posição que a Administração assumiu com o acto impugnado não era
fundada, seja porque não se encontravam reunidos os elementos constitutivos (pressupostos)
do poder que foi exercido com a prática do acto impugnado, seja por se terem verificado
factos impeditivos ou extintivos que obstavam ao exercício desse poder (vícios de procedi-
mento, de forma ou no exercício de poderes discricionários) (11).
10() Cfr., por todos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1994, pp. 117 segs.11() Cfr., a propósito, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, Coimbra, 2002, pp. 188 segs.
Na verdade, a anulação ou a declaração de nulidade do acto administrativo assenta na
negação do poder da Administração que praticou esse acto, pelo menos nas circunstâncias
concretas em que ela exerceu esse poder. Do que se trata é, portanto, de cobrir com a
autoridade do caso julgado da sentença o reconhecimento dessa negação do poder da
Administração — com o que se restabelece o equilíbrio entre as partes, que a titularidade de
poderes de autoridade por parte da Administração tinha quebrado no plano extra-judicial.
Com efeito, mais não se trata do que de aproximar a situação em presença daquela que
existiria se a Administração não dispusesse de poderes de autoridade e tivesse de ter sido ela a
dirigir-se ao tribunal, fazendo valer por via judicial a sua posição perante o interessado — e
não tivesse tido ganho de causa em tribunal.
Para que este efeito preclusivo funcione em plenitude, importa, entretanto, que se reco-
nheça que a pretensão impugnatória se reporta ao acto impugnado na globalidade das causas
de invalidade que contra ele possam ser deduzidas, sem que a identificação em juízo de
qualquer delas envolva, por isso, uma ampliação do objecto do processo. Todas as possíveis
causas de invalidade de que padeça o acto impugnado integram, pois, a mesma causa de pe-
dir, que consiste, genericamente, na invalidade do acto, pelo que a identificação, pelo tribunal,
de qualquer delas, ainda que não tenha sido invocada pelo autor, como prevê o artigo 95º, nº
2, do CPTA, não o afasta do objecto do processo — com o consequente alargamento dos
poderes inquisitórios que o artigo 90º, nº 1, confere ao juiz, uma vez que a procura da verdade
material pelo juiz só tem como fronteira os limites do processo.
2. A condenação à prática de actos administrativos (art. 4º, nº 1, alínea a), do ETAF e
arts. 66º segs. do CPTA)
26. Dando cumprimento ao imperativo decorrente do artigo 268º, nº 4, da CRP, o CPTA
confere aos tribunais administrativos o poder de procederem à determinação da prática de ac-
tos administrativos legalmente devidos — mais precisamente, à condenação à prática desses
actos.
Ultrapassa-se, deste modo, uma tradicional limitação do contencioso administrativo de
tipo francês, apenas explicável por razões históricas radicadas no lastro cultural herdado do
modelo de Administração autoritária edificado durante o período do absolutismo. Com efeito,
se, com a instituição do Estado de Direito liberal, o Poder Administrativo aceitou submeter-se
a regras jurídicas e à fiscalização do cumprimento dessas regras, é bem sabido que essa
aceitação não se deu sem reservas nem limites. O Poder Administrativo aceitou submeter-se a
algumas regras, que só com o decurso do tempo se foram alargando, e só aceitou submeter-se
à fiscalização de órgãos que não eram verdadeiros tribunais, integrados no Poder Judicial, nem
tinham poderes de plena jurisdição, pois, no domínio do exercício dos poderes de autoridade
da Administração, só eram autorizados a emitir sentenças de anulação, sem que lhes fosse
permitido proferir sentenças de condenação à prática de actos administrativos (muito menos,
de normas regulamentares…).
Uma vez assegurada, no termo de uma evolução histórica longa e conturbada, a integral
subordinação da Administração a regras jurídicas e a atribuição da fiscalização do cumpri-
mento dessas regras a verdadeiros tribunais, trata-se agora de fechar o círculo e conferir aos
tribunais administrativos os poderes de plena jurisdição que são próprios do Poder Judicial.
Como resulta do artigo 66º, nº 1, não está aqui apenas em causa a condenação da Admi-
nistração à prática de actos administrativos, mas também a fixação de um prazo determinado,
dentro do qual esses actos devem ser praticados. Quando, no caso concreto, se verifiquem
circunstâncias que permitam suspeitar de que o titular do órgão competente oporá resistência
ao cumprimento da decisão e exista, por isso, um fundado receio de incumprimento, o tribunal
pode considerar justificada a imposição ao referido titular, logo na sentença de condenação,
de uma sanção pecuniária compulsória (artigo 66º, nº 3). O titular obrigado ficará, nesse caso,
pessoalmente obrigado ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso que
se venha a verificar no cumprimento da sentença, para além do prazo que nela tiver sido
estabelecido (cfr. artigo 169º, nº 1).
27. O objecto do processo de condenação à prática de actos administrativos não se con-
funde com o de um processo de impugnação de actos administrativos e, em particular, com o
do tradicional recurso contencioso de anulação de actos de indeferimento (expressos ou
tácitos), pois não é delimitado por referência aos concretos fundamentos em que se possa ter
baseado o acto de indeferimento eventualmente proferido.
Como se estabelece no artigo 66º, nº 2, “ainda que a prática do acto devido tenha sido
expressamente recusada, o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de
indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia conde-
natória”. E também no artigo 71º se determina que, quando chamado a condenar a
Administração a praticar um acto devido, o tribunal não se pode limitar a devolver a questão
ao órgão administrativo competente, mas antes se deve pronunciar “sobre a pretensão mate-
rial do interessado”.
Qualquer destes preceitos faz apelo à ideia de que, mesmo quando confrontado com um
acto administrativo de indeferimento (porventura, de recusa da própria apreciação de um
requerimento), o titular de uma posição subjectiva de conteúdo pretensivo que deduza um
pedido de condenação à prática de um acto administrativo não vai discutir em juízo o acto de
recusa, por referência aos estritos termos em que ele se possa ter baseado, mas vai fazer valer
a sua própria posição pretensiva, em todas as dimensões em que ela se desdobra. O processo
de condenação é um processo em que o autor faz valer a posição subjectiva de conteúdo
pretensivo de que é titular, pedindo o seu cabal reconhecimento e dela fazendo, portanto, o
objecto do processo.
Esta é uma transformação profunda em relação ao modelo tradicional do recurso conten-
cioso de anulação de actos de indeferimento, em que o objecto do processo se definia por
referência ao acto impugnado e era, portanto, logo à partida pré-delimitado pela Adminis-
tração. Se, num caso concreto, a recusa se tiver (infundadamente) baseado na falta do pre-
enchimento de um requisito prévio, sem que, portanto, a Administração tenha sequer che-
gado a apreciar o mérito da pretensão do requerente, a circunstância de estarmos perante um
processo de condenação, dotado de um objecto alargado, permite que a questão prévia em
que o acto de indeferimento se tinha baseado, se for julgada improcedente, seja ultrapassada
e, por via disso, que a discussão em juízo se centre na questão de fundo, que aquele acto nem
sequer tinha considerado (12).
Uma consequência de o objecto do processo ser definido deste modo é a de que ele não
cristaliza no tempo, por referência ao momento em que o eventual acto de indeferimento
tenha sido praticado, sendo, por isso, de reconhecer a relevância das eventuais super-
veniências que sejam juridicamente atendíveis, do ponto de vista do direito material aplicável
(13). Com o que se produz uma sentença que, pretendendo efectivamente disciplinar a ulterior 12() Não existe, entretanto, o risco de, deste modo, se proceder a um condicionamento ilegítimo ao poder discricionário de que a Administração eventualmente disponha, na medida em que a pronúncia judicial não tocará os aspectos que envolvam exercício de poderes discricionários, limitando-se a declarar os as-pectos vinculados do exercício da função. 13() Ou seja: não se opõem obstáculos de natureza processual à eventual relevância de tais superveniên-cias. Outra questão (complexa) é, entretanto, a de saber quando é que estamos perante superveniências relevantes do ponto de vista substantivo: para os termos em que esta última questão se coloca, cfr. M.
conduta das partes, não se reporta ao passado, mas ao momento em que vem a ser proferida
e, portanto, às circunstâncias de facto e de direito que, nesse momento, devem ser considera-
das juridicamente relevantes para a resolução do caso.
Outra consequência projecta-se no plano da prova. Como o interessado faz valer em juízo
a posição subjectiva de conteúdo pretensivo de que é titular, é natural que sobre ele recaia o
ónus de demonstrar o bem fundado da sua pretensão, o preenchimento dos respectivos ele-
mentos constitutivos, ao que a Administração caberá comtrapor a demonstração dos even-
tuais factos impeditivos ou extintivos que lhe possam ser oponíveis. No momento em que
venha a ser proferida, a sentença definirá a posição do interessado e os termos da conduta a
adoptar pelas partes, com o alcance de precludir a possibilidade de a Administração ainda vir
depois a invocar novos argumentos em novo acto de indeferimento, subsequente ao trânsito
em julgado da sentença.
28. Questão decisiva para a exacta compreensão do alcance dos processos de condenação
à prática de actos administrativos, previstos e regulados nos artigos 66º e seguintes, é a de
saber qual a extensão dos poderes de pronúncia de que dispõe o tribunal neste domínio. Com
efeito, estamos num dos domínios em que de forma mais delicada se coloca a questão, a que
já oportunamente nos referimos (cfr. nº 9), da fronteira entre o domínio do administrar, que
não se pretende dos tribunais, sobrepondo os seus próprios juízos subjectivos aos daqueles
que exercem a função administrativa, e o domínio do julgar, em que do que se trata é de
verificar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e os princípios de
Direito a que eles se encontram obrigados e, por isso, de determinar, no exercício da função
jurisdicional, em que moldes se deve processar o exercício legítimo dos poderes públicos.
Ponto de partida é o postulado de que o tribunal não se pode intrometer no espaço pró-
prio que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração. Só
deste modo se assegura o respeito pelo princípio da separação e interdependência de po-
deres, por força do qual aos tribunais administrativos só cumpre dizer e aplicar o Direito, tal
como ele resulta das normas e princípios jurídicos que vinculam a Administração (cfr. artigo 3º,
nº 1). Do mesmo postulado resulta, entretanto, o imperativo de que o tribunal deve dizer e
aplicar o Direito, em toda a extensão com que as normas e os princípios jurídicos sejam cha-
mados a intervir para dirimir os litígios jurídico-administrativos e, portanto, que ao tribunal
AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 706 segs.
cumpre determinar todas “as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto
devido”. Este é o sentido genérico do disposto no artigo 71º.
A identificação das possíveis aplicações do regime estabelecido neste artigo exige, entre-
tanto, que se distingam diferentes tipos de situações possíveis, consoante o grau de concre-
tização com que o dever de actuar da Administração — e, portanto, o quadro da relação ju-
rídica relacionada com a prática ou omissão do acto em causa — resulte das normas jurídicas
aplicáveis. Trata-se, afinal, de averiguar o que deve o tribunal considerar devido, em cada caso
concreto. Sem pretensão de exaustividade, afigura-se útil assentar, para o efeito, nos
seguintes parâmetros orientadores.
a) Em primeiro lugar, a “condenação à prática de acto devido” dirige-se à prática de um
acto administrativo ilegalmente recusado ou omitido. Para que haja, portanto, condenação é
necessário que a recusa ou omissão do acto tenha sido efectivamente ilegal. Ou seja, que exis-
ta vinculação quanto à oportunidade da prática do acto, em termos de se poder afirmar que,
no caso concreto, a Administração agiu ilegalmente pelo facto de não ter agido ou se ter
mesmo recusado a agir.
A condenação será proferida quando a lei for clara no sentido de impor o dever de agir (si-
tuações de vinculação quanto à oportunidade da actuação) ou quando o tribunal considere,
atendendo às circunstâncias concretas do caso, que a Administração não tem outra alternativa
do que agir e que o autor está constituído no poder de exigir essa actuação (situações de
redução da discricionariedade quanto à oportunidade da actuação).
b) Em segundo lugar, “condenação à prática de acto devido” não é necessariamente
condenação à prática de um acto cujo conteúdo esteja legalmente pré-determinado, resul-
tando estritamente vinculado do quadro normativo aplicável. Também é possível a
condenação da Administração à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário,
desde que a emissão desses actos seja devida.
Tal como sucede, no direito alemão, no âmbito da Verpflichtungsklage, a “condenação à
prática de acto devido” não intervém, pois, apenas quando esteja em causa a adopção de
actos de conteúdo estritamente vinculado. Também quando a prática do acto administrativo
ilegalmente recusado ou omitido envolva o exercício de poderes discricionários, o tribunal
pode condenar a Administração a praticá-lo, traçando, em maior ou menor medida, o quadro,
de facto e de direito, dentro do qual esses poderes discricionários deverão ser (re)exercidos
(14).
Neste sentido, determina o artigo 71º, nº 2, que, quando a emissão do acto devido
envolva a formulação de juízos discricionários, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto
a praticar sempre que a apreciação do caso concreto “permita identificar apenas uma solução
como legalmente possível” (situações de redução da discricionariedade a zero). Nos demais ca-
sos, deve “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”,
sem precisar o sentido da decisão a tomar. Só em último caso será, pois, de admitir que o
tribunal se limite a condenar genericamente a Administração a decidir, sem mais precisões,
por não dispor de elementos que lhe permitam estabelecer quaisquer parâmetros quanto aos
termos em que o poder deverá ser exercido.
c) Do que acaba de ser dito resulta que os processos de condenação à prática de actos
administrativos são processos de geometria variável, no sentido em que não têm todos a
mesma configuração, nem conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico
alcance.
(i) Em certos casos, podem dirigir-se apenas à condenação da Administração a praticar um
qualquer acto administrativo, sem conter quaisquer especificações quanto ao conteúdo do
acto a praticar. É o que sucede quando esteja em causa o exercício de um poder de decisão
que, embora seja vinculado quanto à oportunidade, não seja vinculado quanto ao conteúdo,
porque a lei dá poderes discricionários à Administração quanto à determinação do conteúdo e
as circunstâncias objectivas concretamente existentes não são de molde a permitir identificar
uma situação de redução dessa discricionariedade.
Isto pode acontecer em dois tipos de casos. Desde logo, nas situações de inércia ou omis-
são, em que a Administração não deu qualquer contributo para que a questão pudesse ser
colocada em juízo em termos mais concretizados do que aqueles em que ela, à partida, surge
abstractamente configurada nas normas e, portanto, não forneceu elementos que permitam
ao tribunal densificar parâmetros a observar no exercício (que não será reexercício) do poder.
Por outro lado, em situações em que a Administração tenha invocado infundadamente a
existência de questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão que perante ela tinha
14() Já neste sentido, cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Pronúncias judiciais e sua execução na reforma do contencioso administrativo”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 22, p. 77; SÉRVULO CORREIA, “O recurso contencioso no projecto da reforma: tópicos esparsos”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 20, pp. 13-14.
sido formulada. Neste tipo de situações, o tribunal só pode verificar que as questões prévias
não existiam e, com base nessa verificação, condenar a Administração a pronunciar-se sobre o
mérito da pretensão. Como, também nesta hipótese, a Administração não exerceu (não
chegou a exercer) os poderes de valoração quanto ao mérito da pretensão que a lei lhe
conferia, o tribunal não se pode pronunciar sobre os termos em que se processou esse
exercício, para o efeito de estabelecer parâmetros a esse propósito.
Repare-se que, do ponto de vista formal, os poderes do tribunal não se encontram neces-
sariamente limitados pelo facto de a Administração poder ter permanecido omissa, não dando
sequer resposta à pretensão do interessado, ou pelo facto de a Administração se ter recusado
a apreciar o requerimento apresentado. Mesmo nestes casos, o pedido é de condenação e o
tribunal deve verificar se a omissão ou a recusa foram ilegais e, se for caso disso, condenar a
Administração a praticar o acto devido (cfr. artigo 71º, nº 1). Mas é natural que a tarefa do juiz
se encontre mais facilitada quando tenha havido um procedimento e uma decisão formal
sobre o mérito da pretensão formulada pelo interessado, pois, em princípio, ele disporá, nesse
caso, de elementos que lhe permitirão precisar melhor os contornos da situação e, portanto,
proferir uma decisão de conteúdo mais densificado. Caso contrário, sobretudo quando a
instrução do procedimento envolva a formulação de apreciações a cargo de organismos
especializados da Administração Pública a que o tribunal nem através do recurso a peritos se
possa substituir, ele não poderá ir longe na determinação dos parâmetros a observar na
emissão do acto devido.
(ii) A sentença de condenação à prática do acto devido especifica, naturalmente, o conteú-
do do acto a praticar na situação, simétrica da anterior, em que a lei confere ao autor o direito
a um acto administrativo com um determinado conteúdo ou, pelo menos, constitui a
Administração no dever estrito de praticar um acto com um conteúdo determinado —
situações, portanto, de estrita vinculação da Administração quanto ao conteúdo.
(iii) Como claramente assume o artigo 71º, não é, porém, só nos casos de estrita vincula-
ção legal que o processo se pode dirigir (e pode efectivamente conduzir) à condenação da Ad-
ministração à prática de actos administrativos com um conteúdo determinado. Essa conde-
nação também pode ter lugar nas situações em que, embora a lei confira, em abstracto, à Ad-
ministração certos poderes de conformação do conteúdo do acto, a verdade é que, no caso
concreto, se deve, objectivamente, reconhecer que só lhe resta praticar um acto com um
determinado conteúdo.
A verificação da existência de ilegalidades num acto de recusa praticado no exercício de
poderes discricionários permite ao tribunal especificar os aspectos vinculados a observar pela
Administração, condenando-a a substituir o acto ilegal por outro que não reincida nas ilega-
lidades cometidas e, portanto, a que observe as normas e princípios anteriormente violados.
Em princípio, a especificação dos limites que o dever de não reincidir nas eventuais ilega-
lidades cometidas projecta sobre o reexercício do poder possui, naturalmente, um alcance ne-
gativo, estabelecendo apenas as modalidades de actuação que à Administração ficam vedadas
e que o tribunal deverá precisar, tanto quanto as circunstâncias do caso lho permitam. Mas ela
pode ter um alcance positivo, quando as circunstâncias concretas em presença permitam afir-
mar que houve uma redução da discricionariedade a zero, na medida em que o respeito pelas
normas ou princípios violados apenas consinta que a Administração adopte um determinado
tipo de decisão.
Em bom rigor, sempre que esteja em causa o exercício de poderes discricionários da Ad-
ministração, a densificação do conteúdo da sentença condenatória passa, em maior ou menor
medida, pela identificação e afirmação das ilegalidades de que enfermava o acto de recusa. É
esse accertamento judicial que projecta um efeito preclusivo mais ou menos amplo sobre o
subsequente reexercício do poder por parte da Administração.
Como o objecto do processo é mais amplo do que o do recurso contencioso de anulação
do acto de indeferimento e, por isso, podem ser mais numerosas as questões apreciadas pelo
tribunal, é naturalmente mais amplo o efeito preclusivo operado pela sentença. Mas, do ponto
de vista qualitativo, continua a tratar-se de um efeito preclusivo, com a mesma natureza da-
quele que, no modelo tradicional do contencioso de tipo francês, já era reconhecido às senten-
ças de anulação de actos administrativos de conteúdo negativo. Continua, por isso, a ser útil
lançar mão, neste domínio, da elaboração jurisprudencial e doutrinal acumulada, ao longo dos
anos, a propósito do efeito preclusivo das sentenças de anulação de actos negativos. Trata-se,
na verdade, de traduzir para positivo as vinculações que, pela negativa, eram deduzidas das
tradicionais sentenças de anulação de actos negativos (15).
3. A condenação à abstenção da prática de actos administrativos
15() Sobre o princípio preclusivo em referência no texto, seu sentido e alcance, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Sobre a autoridade…, pp. 138 segs. e 164 segs.
29. O CPTA prevê, no âmbito da acção administrativa comum (cfr. artigo 37º), a
possibilidade da dedução, em processo administrativo, de pretensões preventivas, dirigidas à
condenação à omissão de perturbações ilegais ainda não ocorridas (Unterlassungsanspruch) e,
portanto, à imposição de deveres de abstenção. Estas pretensões tanto podem ser accionadas
contra a Administração, como contra particulares — desde que esteja em causa a violação de
deveres ou obrigações de natureza jurídico-administrativa — e, no caso da Administração,
tanto podem conduzir à condenação à abstenção de realizar operações materiais, como de
praticar actos administrativos. Dirigem-se à obtenção de uma tutela inibitória, primacialmente
vocacionada para a protecção da integridade de direitos absolutos e de personalidade em si-
tuações de ameaça de agressões ilegítimas.
Pelo seu particular significado, avulta, neste contexto, a previsão, no artigo 37º, nº 2,
alínea c), do CPTA, da possibilidade da condenação da Administração à não emissão de actos
administrativos (16). Com efeito, o CPTA introduz, desse modo, um instrumento inovador de tu-
tela preventiva contra actos administrativos, que até aqui não existia, e a propósito do qual se
colocam questões que aqui cumpre analisar.
A nosso ver, esta previsão do CPTA deve ser interpretada à luz do princípio constitucional
da tutela jurisdicional efectiva e, portanto, numa perspectiva aberta e flexível, que lhe permita
funcionar como uma válvula de segurança do sistema de tutela jurisdicional, nas situações em
que a utilização dos mecanismos tradicionais de tutela reactiva contra a emissão de actos
administrativos de conteúdo positivo não se mostre apta a proporcionar uma tutela
jurisdicional efectiva.
Não se deixa, deste modo, de partir de um modelo de tutela reactiva e, portanto, de
atribuir prioridade à tradicional via da impugnação de actos administrativos ilegais,
complementada pela ampla previsão de instrumentos de tutela cautelar, a começar pela
suspensão da eficácia dos actos impugnados. O que bem se compreende. Cumpre ter, na
verdade, presente que o acto administrativo é um instrumento que o direito substantivo
coloca à disposição da Administração porque o legislador considera indispensável à mais eficaz
prossecução dos interesses públicos que a Administração disponha, em múltiplos domínios, da
possibilidade de definir o Direito através da emissão de declarações jurídicas capazes de se
projectarem unilateralmente na esfera jurídica dos seus destinatários independentemente da
16() Corresponde à vorbeugende Unterlassungsklage, existente no direito processual administrativo alemão. Tal como, entre nós, é configurada como um subtipo da acção administrativa comum, também no direito alemão esta acção é configurada como um subtipo da allgemeine Leistungsklage: cfr., por todos, FRIEDHELM HUFEN, Verwaltungsprozeßrecht, 4ª ed., Munique, 2000, pp. 331-332; CARL-HERMAN ULE, Verwaltungs Archiv, vol. 65 (1974), pp. 291 segs.
vontade destes, de produzirem de imediato os efeitos jurídicos a que se dirigem e de se conso-
lidarem na ordem jurídica se não forem impugnadas dentro de prazos relativamente curtos. É
neste quadro de ideias que se inscreve e compreende o regime da impugnação dos actos ad-
ministrativos ilegais, tal como o CPTA o estabelece.
Ora, à face disto, afigura-se que, tal como sucede no direito alemão, também entre nós se
deve aceitar que a via normal de tutela dos particulares perante o exercício dos poderes da
Administração continua a ser a via reactiva, da impugnação dos actos administrativos, e não a
via preventiva, dirigida a atalhar, a priori, ao próprio exercício desses poderes, através da
condenação da Administração a nem sequer emitir um acto administrativo. É, com efeito, essa
a solução que melhor se compagina com o reconhecimento (claramente subjacente ao
sistema) da necessidade de, à partida, proporcionar à Administração os meios necessários à
mais eficaz prossecução dos interesses que tem a seu cargo.
A via reactiva só deve, naturalmente, ceder a prioridade à via preventiva nas situações em
que o princípio da tutela jurisdicional efectiva o exija — isto é, quando, no caso concreto,
exista uma situação de carência de tutela que efectivamente justifique a intervenção preventi-
va do tribunal, por se dever considerar que a via impugnatória não assegura ao interessado
uma tutela jurisdicional efectiva. Como tem sido defendido na doutrina alemã, a condenação
da Administração a não praticar um acto administrativo deve, assim, depender da titularidade,
por parte do autor, de um interesse processual qualificado (17).
Cumpre, na verdade, ter presente que um dos tipos paradigmáticos de situações em que a
autonomia do pressuposto processual do interesse processual se perfila com maior nitidez é
aquele em que o recurso à via jurisdicional é determinado pelo propósito de impedir, a título
preventivo, a ocorrência de factos lesivos que ainda não ocorreram. Com efeito, nessas
situações, a necessidade de tutela não é evidente, como seria se já se tivesse consumado uma
lesão na esfera jurídica do autor. Exige-se, por isso, que o autor demonstre a existência de uma
situação de risco, de fundado receio, justificativa da existência de uma situação de necessidade
de tutela, por forma a convencer o tribunal de que a probabilidade da ocorrência de danos é
suficientemente forte para justificar uma actuação preventiva, destinada a evitá-los. Disso
depende a existência do necessário interesse processual.
Pela nossa parte, o interesse processual qualificado exigível tenderá a existir em situações
em que o acto administrativo em perspectiva seja de molde a causar, logo que praticado,
17() Cfr., por exemplo, SCHMITT GLAESER, Verwaltungsprozeßrecht, 14ª ed., Stuttgart etc., 1997, p. 198; F. HUFEN, Verwaltungsprozeßrecht, pp. 335-336.
danos irreversíveis, que uma eventual reacção apenas a posteriori, pela via da impugnação,
ainda que acompanhada do eventual recurso à tutela cautelar, só dificilmente se apresente
capaz de remover completamente. Isto pode suceder com actos administrativos cujos efeitos,
por natureza, se esgotem num prazo curto, como sucede com o acto que proíba a realização
de um evento que não esteja dependente de autorização administrativa. Também pode
suceder com actos em relação aos quais exista o risco (ou a certeza) de que serão objecto de
execução material imediata — seja porque isso desde logo resulta do próprio tipo legal do acto
(pense-se em actos cuja própria regulação normativa os associa à operação material pela qual
são executados, em termos de se dever mesmo, em certos casos, considerar que a lei
configura o acto como uma manifestação que está ínsita na operação de execução), quer
porque, embora isso não resulte do tipo legal, se procede normalmente à execução imediata
daquele tipo de acto por razões de urgência.
A condenação da Administração a não praticar um acto administrativo também deve
poder ter lugar quando a Administração tenha manifestado a intenção de praticar um acto
administrativo, mas protele a concretização desse propósito, sem desencadear um procedi-
mento (ou sem lhe dar seguimento), nem assumir que desistiu da ideia. Se, neste tipo de
situação, a intenção em causa for ilegal e a sua concretização for lesiva da esfera jurídica do
interessado, deve ser-lhe reconhecida a possibilidade de agir judicialmente para pôr cobro à
situação de incerteza (18).
§ 2º - Pretensões respeitantes a regulamentos
1. A impugnação de regulamentos (art. 4º, nº 1, als. b) e d) do ETAF e arts. 72º segs. do
CPTA)
30. Em princípio, quando um particular é objecto de uma decisão concreta que lhe aplica
uma norma regulamentar que considera ilegal, ele pode e deve reagir contra essa decisão 18() Cfr., por todos, WOLF-RÜDIGER SCHENKE, Verwaltungsprozeßrecht, 6ª ed., Heidelberg, 1998, pp. 108-109.
concreta, suscitando o incidente da ilegalidade da norma regulamentar aplicada. Se o tribunal
julgar procedente o incidente, recusa-se a aplicar a norma regulamentar que considera ilegal e,
com esse fundamento, anula ou declara nula a decisão impugnada. Deste modo se evitam as
consequências da norma regulamentar ilegal.
Há casos, porém, em que a norma regulamentar lesa directamente os destinatários sem
que haja lugar à adopção de actos concretos de aplicação. Pense-se, desde logo, no exemplo
das normas que impõem a proibição de uma conduta. Para estes casos, o CPTA prevê a
possibilidade da impugnação directa da norma regulamentar, embora dirigida apenas a obter,
da parte do tribunal, uma recusa de aplicação da norma a título principal. Como a questão da
ilegalidade da norma não é suscitada a título incidental, para sustentar a invalidade do acto
concreto de aplicação, em processo dirigido contra este acto, mas é colocada directamente, a
título principal, contra a própria norma, que é impugnada, o tribunal pronuncia-se sobre ela a
título principal. Mas não a elimina da ordem jurídica, limitando-se, na mesma, a declarar a sua
ilegalidade apenas com efeitos circunscritos ao caso concreto (cfr. artigo 73º, nº 2, do CPTA).
A declaração de ilegalidade de normas regulamentares com força obrigatória geral, que
implica a sua eliminação da ordem jurídica, em princípio com efeitos retroactivos e
repristinatórios (cfr. artigo 76º do CPTA), só pode ser pedida pelo Ministério Público, ou se já
tiverem existido três casos concretos de recusa de aplicação, a título incidental ou principal
(cfr. artigo 73º, nº 1 e nº 3).
No que se refere aos fundamentos em que se pode basear o pedido de declaração de ile-
galidade com força obrigatória geral, não são invocáveis perante os tribunais administrativos
“os fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa”
(cfr. artigo 72º, nº 2). Só ao Tribunal Constitucional compete, com efeito, declarar, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas e, portanto, também das
normas ditadas pela Administração.
O juiz não está limitado, na sua apreciação, pelos argumentos que possam ser invocados
contra a norma ou normas impugnadas, podendo decidir “com fundamento na ofensa de
princípios ou normas jurídicas diversos daqueles cuja violação haja sido invocada” (artigo 75º).
O âmbito da eficácia da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, estabele-
cido no artigo 76º, é inspirado no regime do artigo 282º da CRP, respeitante aos efeitos das
declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral que são
proferidas pelo Tribunal Constitucional.
Em princípio, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral produz, portanto,
efeitos retroactivos (artigo 76º, nº 1). Ficam, no entanto, ressalvadas (pelo artigo 76º, nº 3, pri-
meira parte) as situações consolidadas, que o Código identifica com os casos julgados e tam-
bém com os actos administrativos que já não possam ser impugnados — nem, por isso (cfr.
artigo 141º do CPA), revogados com fundamento na ilegalidade da norma em que se ba-
searam. Deste modo se parece salvaguardar na justa medida o valor da segurança jurídica,
que, até aqui, se procurava assegurar através da regra da eficácia ex nunc da declaração.
Os casos julgados e os actos administrativos consolidados cedem, em todo o caso, perante
o princípio da aplicação retroactiva da norma sancionatória mais favorável, tal como ele se
encontra consagrado no artigo 282º, nº 3, da CRP (artigo 76º, nº 3, parte final). Por outro lado,
o juiz ainda pode decidir, segundo critérios de proporcionalidade, que a retroactividade seja
afastada ou, pelo menos, limitada por decisão do juiz, “quando razões de segurança jurídica,
de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentadas, o
justifiquem” (artigo 76º, nº 2).
A eventual limitação de efeitos da declaração por parte do juiz, ao abrigo do artigo 76º, nº
2, não tem o alcance de tornar válida a norma em causa, para o efeito de impedir os eventuais
interessados de impugnar os eventuais actos administrativos que tenham sido praticados ao
seu abrigo e ainda estejam em tempo de ser impugnados, mesmo em momento ulterior ao da
declaração. Como é evidente, a desaplicação incidental de normas ilegais, para o efeito da
invalidação dos actos que nelas se basearam, não depende da declaração de ilegalidade dessas
normas com força obrigatória geral. Por conseguinte, não faz sentido que essa desaplicação
fique inviabilizada pelo facto de um tribunal já ter reconhecido, com força obrigatória geral, a
ilegalidade das normas em causa, embora com a ressalva de que essa declaração apenas
valeria para o futuro. Com essa ressalva, o tribunal não pretendeu, nem poderia pretender,
tornar válidas para o passado as normas em causa. Ele apenas pretendeu que, com alcance
geral, elas só fossem eliminadas da ordem jurídica para o futuro — sem prejuízo,
naturalmente, da possibilidade da sua desaplicação nos processos em que a sua invalidade
possa vir a ser incidentalmente suscitada.
Cumpre, entretanto, referir que o tribunal pode limitar os efeitos da sua pronúncia quanto
ao passado, lançando mão do mecanismo previsto no artigo 76º, nº 2, quando um pedido de
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral tiver sido deduzido por um interessado
lesado por norma directamente aplicável, mas já incidentalmente julgada ilegal por três vezes.
Se o fizer, haverá responsabilidade da Administração pelos danos causados ao lesado — e,
quanto a nós, responsabilidade por facto ilícito, pelas razões que acabam de ser enunciadas
(19). Em todo o caso, cumpre notar que o interessado colocado na situação descrita não está,
naturalmente, obrigado a pedir a declaração de ilegalidade da norma que directamente o
lesou com força obrigatória geral, sujeitando-se, assim, aos riscos que advêm das possíveis
implicações de uma tal declaração, mas pode pedir, como de seguida se verá, a declaração de
ilegalidade da norma com efeitos circunscritos ao seu caso, para o efeito de obter apenas a sua
desaplicação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 2.
2. A condenação à emissão de regulamentos (art. 4º, nº 1, alínea a), do ETAF e art. 77º
do CPTA)
31. O artigo 77º do CPTA permite reagir contra a omissão ilegal de normas administrativas
cuja adopção “seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de
regulamentação”.
Na epígrafe do preceito fala-se em “declaração de ilegalidade por omissão”. A grande
questão que, no entanto, se coloca é a da natureza das pronúncias judiciais que, nesta sede,
podem ser emitidas.
Com efeito, a figura é em grande medida inspirada na declaração de inconstitucionalidade
por omissão que a CRP institui e regula no seu artigo 283º. Mas o regime do artigo 77º, nº 2,
do CPTA distancia-se daquele que estabelece aquele preceito constitucional, na medida em
que não se limita a conferir ao tribunal o poder de dar conhecimento da situação de omissão
ao órgão competente, mas vai mais longe, atribuindo-lhe também o poder de fixar o prazo,
não inferior a seis meses, dentro do qual a omissão deverá ser suprida.
19() Ao contrário de CARLA AMADO GOMES, “Suspensão da eficácia de regulamentos imediatamente exequíveis”, Revista Jurídica (da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa) nº 21, p. 298, nota 135, não nos parece, na verdade, que a responsabilidade neste domínio possa ser por facto lícito porque o tribunal teria “como que ratificado” os efeitos passados. A responsabilidade é por facto ilícito pois ainda que por razões de segurança jurídica os efeitos da declaração de ilegalidade sejam limitados no tempo, isso não faz, como foi dito no texto, com que a norma não seja ilegal desde o início e, portanto, com que ela não possa e deva ser incidentalmente reconhecida como tal.
Pode dizer-se que o Código procurou, neste domínio, uma via intermédia entre a solução,
de alcance mais limitado, de atribuir ao juiz um mero poder de declaração da omissão (20) e a
solução, de alcance mais forte, de lhe atribuir o poder de condenar a Administração à emissão
do regulamento devido. Enveredou, por isso, pelo caminho de instituir uma pronúncia
declarativa de conteúdo impositivo, do tipo da declaração de actos devidos que, no âmbito do
processo de execução de julgados, se encontrava prevista no artigo 9º do Decreto-Lei nº 256-
A/77, de 17 de Junho.
Para isso contribuiu o entendimento de que o poder normativo da Administração não
deveria ser objecto de tratamento idêntico ao que é dispensado ao seu poder de decisão
concreta — e daí a falta de sintonia quanto aos poderes de pronúncia que são atribuídos ao
juiz no artigo 77º, para as situações de omissão de normas, e nos artigos 66º e seguintes, para
as situações de omissão ou recusa de actos administrativos. Mas, ao mesmo tempo, o reco-
nhecimento de que o que aqui está em causa não é o (in)exercício da função legislativa (como
sucede no artigo 283º da CRP), mas o mero (in)exercício de um poder administrativo vinculado
quanto ao an, uma vez que se trata do (in)cumprimento, por parte da Administração, do dever
de dar exequibilidade, por via regulamentar, a determinações contidas em actos legislativos —
e daí o ter-se ido mais longe, no artigo 77º, nº 2, parte final, do que a CRP, no correspondente
artigo 283º, nº 2.
Pese embora a ambiguidade da natureza da pronúncia judicial prevista no artigo 77º, nº 2,
ela parece estar mais próxima de uma sentença de condenação do que de uma sentença
meramente declarativa ou de simples apreciação. Com efeito, ela reconhece a existência de
um dever e estabelece um prazo para o seu cumprimento. A eventual inobservância deste pra-
zo não pode deixar, por isso, de ser qualificada como um acto de desobediência em relação à
sentença, para o efeito de habilitar o beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de
execução adequados, em ordem a obter a fixação de um prazo limite, com imposição de uma
sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão (cfr. artigos
164º, nº 4, alínea d), 168º e 169º).
Se o considerar justificado, atendendo às circunstâncias concretas em presença, afigura-
se, aliás, que o tribunal pode proceder desde logo à imposição de sanções pecuniárias
compulsórias, ao abrigo da previsão genérica do artigo 3º, nº 2, no próprio momento em que
20() Como a epígrafe do artigo 77º parece sugerir e tinha sido, de resto, proposto, no âmbito da discussão pública sobre a reforma do contencioso administrativo, por PAULO OTERO, “A impugnação de normas no anteprojecto de Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, in O Debate Universitário, p. 141, e Cadernos de Justiça Administrativa nº 22, p. 48.
reconheça a ilegitimidade da situação de omissão e, por isso, fixe o prazo dentro do qual a
omissão deve ser suprida.
II – Tipos de pretensões não respeitantes a actos administrativos e regulamentos
32. Como foi referido, o segundo grande bloco de tipos de pretensões que podem
constituir objecto do processo administrativo corresponde ao universo das situações que, por
exclusão de partes, o CPTA reconduz à forma processual da acção administrativa comum.
Como de algum modo resulta do artigo 37º do CPTA, que define o âmbito de aplicação da
acção administrativa comum, trata-se, como é natural, de um conjunto muito heterogéneo de
situações, agregado por dois critérios conjugados, de sentidos simétricos: pela positiva, o de
terem por objecto questões pertencentes ao âmbito da jurisdição administrativa, o que, como
a seu tempo se verá, resulta, no essencial, de se tratar de questões de natureza administrativa;
e, pela negativa, de não dizerem respeito à emissão de actos administrativos e regulamentos.
§ 1º - Pretensões de conteúdo meramente declarativo ou de simples apreciação: o
reconhecimento de situações jurídicas (art. 4º, nº 1, al. a) do ETAF e art. 37º, nº 2, als. a) e b)
do CPTA) e a declaração de nulidade e a interpretação de contratos (arts. 4º, nº 1, als. b), e) e
f) do ETAF e 37º, nº 2, alínea h), do CPTA).
33. Como é natural, uma parcela reduzida das pretensões que aqui se enquadram é
dirigida à emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. Trata-se, na
verdade, de obter apenas o reconhecimento da existência ou inexistência de direitos ou factos,
o que, tal como sucede em processo civil, por regra, só em situações excepcionais se justifica,
do ponto de vista da existência do necessário interesse processual (21). São, na verdade, as pre-21() Cumpre, na verdade, ter presente que as situações mais frequentes e relevantes de emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação em processo administrativo correspondem a
tensões deste tipo que o artigo 39º directamente tem em vista ao exigir um interesse proces-
sual específico, que se pode fundar na existência de uma situação de incerteza, na conveniên-
cia em pôr cobro a afirmações ilegítimas por parte da Administração ou mesmo na neces-
sidade de evitar futuras condutas lesivas da sua parte.
Pertencem a este tipo as pretensões correspondentes à previsão das alíneas a) e b) do nº
2 do artigo 37º do CPTA, dirigidas à obtenção do reconhecimento de situações jurídicas
subjectivas (ou seja, de direitos ou interesses legalmente protegidos), de qualidades ou do pre-
enchimento de condições. Também aqui se enquadram, entretanto, as acções dirigidas à
declaração de nulidade dos contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição
administrativa, assim como as acções em que haja que obter do tribunal o esclarecimento do
sentido controvertido de cláusulas inseridas em tais contratos. Estas acções tanto podem ter
de ser propostas por contraentes privados, como por contraentes públicos, na medida em que,
tanto num, como no outro caso, se trata de domínios em que os contraentes públicos não po-
dem determinar o Direito aplicável através da emissão de acto administrativo (cfr. artigo 307º,
nº 1, do CCP), pelo que, em caso de litígio, têm de recorrer à via jurisdicional.
§ 2º - Pretensões de conteúdo constitutivo: impugnação anulatória de contratos (arts. 4º,
nº 1, als. b), e) e f) do ETAF e 37º, nº 2, alínea h), do CPTA).
34. Tal como sucede em processo civil, é natural que, no domínio da acção administrativa
comum, em que está afastado todo o contencioso da impugnação de actos administrativos e
normas regulamentares, escasseiem as pretensões dirigidas à emissão de sentenças
constitutivas. Têm, em todo o caso, conteúdo constitutivo as sentenças de anulação dos
contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição administrativa, acções que tanto
podem ter de ser propostas por contraentes privados, como por contraentes públicos, na
medida em que os contraentes públicos não podem decretar unilateralmente a anulação dos
seus contratos através da emissão de acto administrativo (cfr. artigo 307º, nº 1, do CCP), pelo
que, em caso de litígio, têm de recorrer à via jurisdicional.
casos que não se enquadram no âmbito da acção administrativa comum, mas da acção administrativa especial, nos processos impugnatórios de actos administrativos dirigidos à declaração de nulidade ou de inexistência desses actos.
§ 3º - Pretensões de conteúdo condenatório
35. Tal como sucede em processo civil, é natural que, no domínio da acção administrativa
comum, em que está afastado todo o contencioso da impugnação de actos administrativos e
normas regulamentares, a esmagadora maioria das pretensões accionáveis se dirijam à
emissão de sentenças de condenação. A condenação tanto pode ser, entretanto, dirigida
contra entidades públicas, como contra particulares.
1. As acções de responsabilidade civil extracontratual (art. 4º, nº 1, al. g) do ETAF e art.
37º, nº 2, al. f) do CPTA)
36. Seguem a forma da acção administrativa comum as pretensões em matéria de respon-
sabilidade civil extracontratual cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição
administrativa, que, por isso mesmo, constam, na alínea h), do elenco dos tipos de pretensões
exemplificativamente enunciados no nº 2 do artigo 37º.
Justifica-se, entretanto, a este propósito, uma referência ao disposto no artigo 38º, que,
embora não seja apenas aplicável às acções de responsabilidade civil extracontratual movidas
contra a Administração Pública, tem, em todo o caso, no que a estas acções diz respeito, o al-
cance de tornar claro que a impugnação dos actos administrativos ilegais não constitui um
pressuposto processual do qual dependa a actuação em juízo das eventuais pretensões
dirigidas à reparação dos danos por eles causados. Como claramente refere o artigo 38º, nº 1,
a existência ou não, em processos não-impugnatórios, da possibilidade, e em maior ou menor
extensão, de o tribunal conhecer, a título incidental, da ilegalidade de actos administrativos
depende da opção que, nessa matéria, for feita pela lei substantiva (22).
22() Para a crítica, nesta perspectiva, da tradicional abordagem do problema, no plano processual, da óptica da falta de autonomia das acções sobre responsabilidade em relação ao clássicio recurso contencioso de anulação, cfr. MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado, Coimbra, 2000, pp. 159 segs. e 248 segs.
Desse ponto de vista, ao assumir expressamente que o domínio por excelência em que a
lei substantiva admite que os tribunais podem conhecer, a título incidental, da ilegalidade de
actos administrativos ilegais que não tenham sido tempestivamente impugnados é o da res-
ponsabilidade pelos danos causados por esses actos, o artigo 38º, nº 1, vem reforçar o
entendimento da mais recente doutrina e jurisprudência no sentido de que a não utilização da
via processual adequada à remoção da ordem jurídica dos actos administrativos ilegais não
tem um efeito preclusivo automático sobre o direito à reparação dos danos por eles causados,
mas a ponderação desse facto, do ponto de vista do concurso de culpa do lesado, pode condu-
zir à redução ou mesmo à exclusão daquele direito (23).
Refira-se, no entanto, que, de acordo com o artigo 41º, nº 3, a impugnação de um acto ad-
ministrativo “exprime a intenção, por parte do autor, de exercer o direito à reparação dos da-
nos que tenha sofrido, para o efeito de interromper a prescrição deste direito, nos termos
gerais” (do artigo 323º do Código Civil). Embora assuma que a impugnação do acto administra-
tivo lesivo não constitui um pressuposto processual da actuação do direito à reparação dos
danos causados por esse acto, o CPTA não deixa, deste modo, de reconhecer que a
impugnação do acto lesivo é um instrumento dirigido a fazer cessar a situação lesiva e, assim, a
evitar a produção de novos danos, que deve ser utilizado no quadro das providências a
adoptar pelo lesado para ver restabelecida a sua situação jurídica (24). Por conseguinte,
entende que a impugnação do acto lesivo exprime a intenção de exercer o direito à reparação
dos danos, para o efeito de interromper a prescrição deste direito.
Note-se, em todo o caso, que a previsão do artigo 41º, nº 3, perde algum do seu alcance
na medida em que é hoje possível cumular no processo impugnatório o pedido dirigido à
reparação dos danos causados pelo acto impugnado. Com efeito, num tal contexto, tenderão a
ser muito menos numerosos do que sucedia no regime anterior ao CPTA os casos em que o in-
teressado começa por impugnar o acto ilegal para só mais tarde, uma vez obtida a decisão de
anulação ou declaração de nulidade do acto, propor a acção de responsabilidade por danos.
2. As acções relativas à execução de contratos (arts. 4º, nº 1, als. e) e f) do ETAF e 37º, nº
2, alínea h), do CPTA)
23() Cfr. ainda MARGARIDA CORTEZ, op. cit., pp. 274 segs. 24() Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, p. 455.
37. Também seguem a forma da acção administrativa comum uma parte das acções
relativas a aspectos relacionados com a execução dos contratos cuja apreciação se encontra
submetida à jurisdição administrativa. Essas acções podem dirigir-se, tanto a exigir o
cumprimento do contrato, como a fazer valer a responsabilidade contratual decorrente do seu
incumprimento, e tanto podem ter de ser propostas por contraentes privados, como por
contraentes públicos, na medida em que os contraentes públicos não possam definir
unilateralmente o Direito aplicável ao caso através da emissão de acto administrativo.
Cumpre ter, porém, presente que, nos seus artigos 302º e segs., o novo CCP confere aos
contraentes públicos muito amplos poderes de definição unilateral do Direito através da
emissão de actos administrativos no âmbito da execução dos contratos que o mesmo Código
qualifica como administrativos (no artigo 1º, nº 6, conjugado com os artigos 3º e 8º).
Isto implica que, em todos os domínios em que, nos termos do nº 2 do artigo 307º do CCP,
o contraente público dispõe do poder de emitir um acto administrativo relativo à execução do
contrato, ele fica dispensado de propor uma acção administrativa comum no âmbito da qual
teria o ónus de fazer valer a sua posição perante o tribunal e é, pelo contrário, o contraente
privado quem fica constituído no ónus de recorrer à tutela jurisdicional, para propor a
necessária acção administrativa especial de impugnação do acto administrativo. Neste sentido,
veja-se, aliás, a referência, nos artigos 4º, nº 2, al. g), e 47º, nº 2, al. d), do CPTA, à
possibilidade de o contraente privado cumular numa mesma acção qualquer pedido
relacionado com questões de interpretação, validade ou execução do contrato com a
impugnação de eventual acto administrativo praticado pelo contraente público no âmbito da
relação contratual.
3. A condenação da Administração à realização de prestações de facto, de coisa ou de
quantia (art. 4º, nº 1, als. a), g) e l) do ETAF e art. 37º, nº 2, als. c), d), e), f), g) e i) do CPTA)
3.1. Caracterização geral
38. Os demais casos em que pode haver condenação da Administração dizem, de um
modo geral, respeito à realização de todo o tipo de prestações, que tanto podem ter por
objecto o pagamento de quantias, como a entrega de coisas ou a prestação de factos e que
têm em comum o facto de não dependerem da prática de um acto administrativo, pois de
outro modo o caminho a seguir seria o de pedir a condenação à prática do necessário acto
administrativo através da propositura da correspondente acção administrativa especial. E isto,
ou porque o necessário acto administrativo já foi praticado (pense-se no exemplo do direito ao
pagamento de uma pensão que já foi atribuída por acto administrativo mas não tem sido
efectivamente paga), ou porque não tem por que o ser (pense-se, desde logo, no exemplo do
direito do funcionário público ao pagamento do seu vencimento mensal, que corresponde a
um verdadeiro direito de crédito, pelo que não depende da emissão, em cada mês, de um acto
administrativo mediante o qual a entidade patronal decida atribuir-lhe o direito a recebê-lo).
Este tipo de situações é objecto de previsão genérica no artigo 37º, nº 2, alínea e), do
CPTA e, na verdade, reveste-se do maior interesse, pois aqui reside a pedra de toque da
delimitação do campo de intervenção da forma da acção administrativa comum perante a
acção administrativa especial (de condenação à prática de acto administrativo). Com efeito, a
opção realizada pelo Código no que respeita ao critério de delimitação do âmbito de aplicação
das formas processuais da acção administrativa comum e da acção administrativa especial
implica que, dentro das acções de condenação dirigidas contra a Administração, se reveste de
especial importância distinguir, consoante se pretende ou não a emissão de um acto
administrativo: na verdade, só no segundo caso deve ser utilizada a acção administrativa
comum; no processo, o processo deve seguir a forma da acção administrativa especial.
O CPTA adopta, assim, um critério semelhante ao que, no direito alemão, preside à
delimitação recíproca do âmbito de aplicação da Verpflichtungsklage e da allgemeine
Leistungsklage.
Isto resulta com clareza, no plano da regulação da acção administrativa comum,
precisamente do disposto no mencionado artigo 37º, nº 2, alínea e), nos termos do qual se-
guem, como vimos, esta forma de processo as causas que tenham por objecto a “condenação
da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que directamente decorram de
normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um acto administrativo
impugnável, ou que tenham sido constituídos por actos jurídicos praticados ao abrigo de
disposições de direito administrativo, e que podem ter por objecto o pagamento de uma
quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto”.
Com efeito, em qualquer dos casos a que este preceito se refere, não está em causa a
prática de actos administrativos, mas a realização de simples actuações ou actos reais, para
utilizar a terminologia alemã — isto é, a realização de prestações a que a Administração se
encontra obrigada, sem dispor do poder de as recusar através de uma pronúncia susceptível
de ser qualificada como um acto administrativo de indeferimento.
Como temos vindo a assinalar, a distinção entre actos administrativos, contra os quais se
impõe reagir dentro de prazos relativamente curtos, e simples actuações sem o valor de actos
administrativos, que não impõem esse tipo de condicionalismos, reveste-se de uma
importância fundamental e deve ser explorada pela jurisprudência e pela doutrina
administrativas (25). O CPTA dá maior ênfase à necessidade da relativização do papel que ao
acto administrativo deve corresponder no âmbito do contencioso e, por via disso, da própria
dogmática do direito administrativo, através do reconhecimento de que nem todas as pre-
tensões que os particulares apresentam à Administração se dirigem à emissão de actos ad-
ministrativos contra cuja recusa se justifique a imposição do pesado ónus de reagir dentro de
prazos curtos, sob pena de consolidação.
Como já sucedia no âmbito da acção para reconhecimento de direitos ou interesses, só
haverá, com efeito, lugar, no âmbito da acção administrativa comum, para pronúncias de
condenação como aquelas a que o CPTA se refere no artigo 37º, nº 2, alínea e), na medida em
que se reconheça que a pretensão do particular que pretende a entrega de uma coisa, de uma
quantia ou de uma prestação de facto que lhe seja devida não se dirige à emissão de um acto
administrativo definidor da sua situação jurídica, mas apenas ao estrito cumprimento de um
dever de prestar, pelo que a eventual recusa da Administração em entregar a coisa ou a quan-
tia a que está obrigada, ou a prestar o facto, não corporiza um acto administrativo de indeferi-
mento, contra o qual se imponha reagir dentro de um prazo limitado, pela via da acção admi-
nistrativa especial (26).
Como claramente demonstra a lição do direito comparado, o que, nesta matéria, cumpre
fazer, é, portanto, identificar os tipos de situações das quais a lei directa ou imediatamente faz
derivar vínculos obrigacionais que oneram a Administração. É assim que, recorrendo ao
modelo alemão, se poderá afirmar que constituem meras actuações da Administração, tanto
25() Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 89 segs., e “Implica-ções de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo”, Cadernos de Justiça Administrati-va nº 34, pp. 74-76.26() No mesmo sentido se pronunciava, a propósito da acção para reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos que continuava a ser proposta nos Anteprojectos submetidos a discussão pública ao longo do ano 2000, ROSENDO DIAS JOSÉ, O Debate Universitário, p. 32, nos seguintes termos: “Esta acção é moldada pela ideia de que os particulares se apresentam perante a Administração não apenas à espera da luz do acto administrativo, mas também com direitos próprios, desde logo direitos de personali-dade e direitos fundamentais. Depois, também, direitos a prestações, factos e comportamentos, bem como direitos sobre coisas. E ainda, detendo uma qualidade ou preenchendo certas condições, com base nelas, os particulares hão-de poder reclamar não apenas um direito substantivo, mas também o prosseguimento da apreciação de outros requisitos de certa pretensão no procedimento adequado”.
as suas actuações materiais de gestão pública (operações jurídicas ou actos reais em sentido
próprio), como as suas pronúncias jurídicas que não se consubstanciem em actos admi-
nistrativos com "conteúdo de regra jurídica", "conteúdo jurídico material". Aqui se enquadram
actos e operações como prestações aos particulares — pagamento de vencimentos, remune-
rações, pensões, benefícios da segurança social, restituições, prestação de cuidados de saúde
ou de educação, prestação de informações, etc. —, actuações porventura lesivas ou destinadas
a remover efeitos de actuações lesivas — como a remoção de viaturas da via pública, inter-
venções policiais, a emanação de ruídos, vibrações, cheiros ou gases, etc. — e pronúncias que
apenas contêm uma comunicação ou uma apreciação subjectiva e que, por conseguinte, não
são destinadas a produzir efeitos jurídicos ou que, em todo o caso, mesmo sendo declarações
jurídicas, não têm a capacidade de definir unilateralmente a situação do destinatário, como é o
caso de uma declaração de compensação, da fixação de um prazo, da actualização da exigência
de um pagamento no quadro de obrigações pecuniárias de natureza jurídico-administrativa, do
exercício de um direito de retenção.
3.2. Pretensões dirigidas à abstenção de condutas
39. De entre o universo das pretensões dedutíveis neste domínio, destacam-se aquelas
que se dirigem à abstenção de condutas, no domínio da chamada tutela inibitória, de que já
falámos a propósito da condenação à abstenção da prática de actos administrativos, que visa
prevenir lesões, agindo contra agressões que ainda não se concretizaram, mas apenas se
perfilam sob a forma de ameaça. Está, pois, em causa a dedução de pretensões preventivas, di-
rigidas à condenação à omissão de perturbações ilegais ainda não ocorridas (Unterlassungs-
anspruch) e, portanto, à imposição de deveres de abstenção. Estas pretensões tanto podem
ser accionadas contra a Administração, como contra particulares — desde que esteja em causa
a violação de deveres ou obrigações de natureza jurídico-administrativa — e, no caso da Admi-
nistração, tanto podem conduzir à condenação à abstenção de realizar operações materiais,
como de praticar actos administrativos. Dirigem-se à obtenção de uma tutela inibitória,
primacialmente vocacionada para a protecção da integridade de direitos absolutos e de
personalidade em situações de ameaça de agressões ilegítimas.
Embora o artigo 39º do CPTA não se lhes refira expressamente, parece de entender que
ele também tem em vista este tipo de situações quando se refere ao “fundado receio de que a
Administração possa vir a adoptar uma conduta lesiva”. E, com efeito, afigura-se de exigir um
especial cuidado na verificação da existência de interesse em agir sempre que o autor se dirija
a tribunal com intuitos preventivos, alegando o propósito de evitar lesões que ainda não se
concretizaram.
3.3. Pretensões dirigidas ao restabelecimento de direitos ou interesses violados
40. O artigo 37º, nº 2, alínea d), autonomiza, nas suas previsões exemplificativas, as
pretensões dirigidas à “condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao
restabelecimento de direitos ou interesses violados”. Estas pretensões têm carácter restitutivo
ou dirigem-se à cessação e remoção de consequências de actuações ilegais da Administração
(27), que tanto se podem ter consubstanciado em actos jurídicos (paradigmaticamente, actos
administrativos ilegais), como em operações materiais (paradigmaticamente, actuações desen-
volvidas em via de facto, sem o necessário fundamento num acto jurídico que as legitimasse).
A exemplo do que sucede no direito alemão (28), a autonomização deste tipo de pretensão
justifica-se porque as pretensões que, para as pessoas e entidades afectadas, resultam das ac-
tuações ilegais da Administração não se definem propriamente por referência à adopção de
determinados actos jurídicos ou de certas operações materiais, mas à ideia do restabeleci-
mento da situação jurídica violada — conceito a que, entre nós, tem sido dado o nome de re-
constituição da situação actual hipotética. É isto que o interessado exige da Administração, ca-
bendo a esta concretizar o cumprimento do dever, que sobre ela impende, de remover as con-
sequências da sua actuação ilegal através da adopção de todos os actos jurídicos e operações
materiais que se revelem necessários. Não existe, pois, neste contexto, um específico dever de
prestar. Como se diz no artigo 2º, nº 2, alínea j), o que está genericamente em causa é “a con-
denação da Administração à prática dos actos e operações [que forem, que se revelem] neces-
sários ao restabelecimento de situações jurídicas subjectivas” (29).
27() Para a caracterização destas pretensões, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 470 segs. 28() A propósito da Folgenbeseitigungsanspruch. Sobre esta figura, cfr., por todos, PIETZKO, Der materiell-rechtliche Folgenbeseitigungsanspruch, Berlim, 1994; SCHNEIDER, Folgenbeseitigung um Verwaltungsrecht, Baden-Baden, 1994. Na doutrina portuguesa, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 433 segs. 29() Cfr., a propósito, M. AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, p. 499.
Embora a letra do artigo 95º, nº 3, tenha claramente em vista apenas as situações em que
a pretensão a que nos estamos a referir seja cumulada num processo dirigido, em primeira
linha, à anulação ou à declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo (e por
isso submetido à forma da acção administrativa especial: cfr. artigo 5º, nº 1), nada justifica que
a doutrina nele assumida não deva valer também para os casos em que a pretensão seja auto-
nomamente deduzida segundo a forma da acção administrativa comum. A razão pela qual o
preceito apenas teve em vista aquelas situações deve-se ao facto de o artigo 95º se inserir na
regulação (do Capítulo III do Título III: artigos 78º e seguintes) dos processos que seguem a
forma da acção administrativa especial e este tipo de pretensões só fica submetido a essa
forma de processo naquelas situações de cumulação. Pelo contrário, o Código não se refere
concretizadamente aos poderes de pronúncia do tribunal a propósito das pretensões
autonomamente deduzidas segundo a forma da acção administrativa comum, cuja regulação
remete, sem mais, para o CPC.
Até porque as pretensões de restabelecimento podem não emergir da prática de actos ad-
ministrativos, mas também da adopção de operações materiais por parte da Administração,
nada justifica, pois, que os parâmetros estabelecidos no artigo 95º, nº 3, não sejam reconheci-
dos como possuindo validade geral, para o efeito de se admitir que o preceito pode e deve ser
aplicado pelo juiz em processos submetidos à forma da acção administrativa comum, quando
essas pretensões sejam autonomamente deduzidas por essa via.
E o mesmo se diga quanto ao disposto no artigo 95º, nº 4, que é indissociável do anterior
e que se afigura da maior importância para a adequada resolução de dificuldades práticas que,
com frequência, se poderão colocar nos processos em que seja pedido ao tribunal que especi-
fique o que a Administração deve fazer para colocar a situação de facto em conformidade com
o quadro normativo — dificuldades que, como é evidente, tanto se poderão colocar em
processos em que, por ser cumulado num processo impugnatório, o pedido deva ser apreciado
segundo os termos da acção administrativa especial e, por isso, haja lugar à aplicação directa
do artigo 95º, como em processos em que, por ser deduzido autonomamente, o pedido deva
ser apreciado segundo os termos da acção administrativa comum e, por isso, se deva proceder
a uma extensão do campo de aplicação directa do artigo 95º.
3.4. Pretensões dirigidas ao pagamento de indemnizações devidas pela imposição de
sacrifícios
41. Justifica-se uma referência autónoma à previsão do artigo 37º, nº 2, alínea g), à “con-
denação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões
de interesse público”. Com efeito, este preceito não se refere à dedução de pretensões
dirigidas à reparação de danos, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual,
mas de pretensões dirigidas à prestação da indemnização devida pela imposição de sacrifícios,
o que é coisa diferente (30). Sendo desde já de assinalar, a este propósito, que, como em
devido tempo melhor se verá, a jurisdição administrativa é a sede naturalmente competente
para atribuir as indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse
público. É, pois, esta a regra que o ETAF e o CPTA instituem, sem prejuízo das importantes ex-
cepções previstas em lei especial, de entre as quais, naturalmente, avulta as que decorrem do
Código das Expropriações, que confere aos tribunais judiciais a competência para a atribuição
das indemnizações devidas por expropriação, assim como pelas demais modalidades de
imposição de sacrifícios a que o mesmo Código é aplicável.
3.5. Pretensões fundadas em enriquecimento sem causa
42. A previsão da alínea i) do nº 2 do artigo 37º do CPTA tem o alcance de confirmar, no
plano substantivo, que existem relações jurídico-administrativas de enriquecimento sem causa
e, no plano processual, que as correspondentes pretensões devem ser deduzidas perante os
tribunais administrativos sob a forma da acção administrativa comum (31).
4. A condenação de particulares à realização de prestações de facto, de coisa ou de
quantia (art. 4º, nº 1, al. h) e i) do ETAF e art. 37º, nº 1, nº 2, al. f), e nº 3, do CPTA).
43. De recordar (cfr. supra, nº 16) que os particulares podem ser demandados nos
tribunais administrativos, seja pela Administração, quando esta não disponha de poderes de
auto-tutela que lhe permitam prescindir do recurso à via judicial, seja por outros particulares,
30() Para a distinção, na doutrina portuguesa, cfr. MANUEL AFONSO VAZ, A Responsabilidade civil do Estado. Considerações sobre o seu estatuto constitucional, Porto, 1995, pp. 12-13; MARIA LÚCIA AMARAL PINTO CORREIA, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, designadamente a pp. 411 segs.31() Em geral sobre o tema, ALEXANDRA LEITÃO, O enriquecimento sem causa da Administração Pública, Lisboa, 1998.
e isto não só nos casos em que o particular demandado exerce poderes de autoridade pública,
mas também sempre que, em qualquer caso, ele não tenha observado ou ameace não
observar as vinculações jurídico-administrativas a que se encontre obrigado, sem que as
autoridades administrativas competentes tenham adoptado as medidas adequadas para
impedir ou pôr cobro à situação de violação.
Inovação importante a referir a este propósito é, na verdade, o facto de o artigo 37º, nº 3,
admitir que os particulares cujos direitos ou interesses sejam directamente ofendidos possam
demandar, perante os tribunais administrativos, outros particulares, que não têm de ser ne-
cessariamente concessionários, por estes estarem a violar normas de direito administrativo ou
obrigações jurídico-administrativas contratualmente assumidas ou darem indícios que
justifiquem o fundado receio de as poderem vir a violar, pedindo que eles sejam condenados a
adoptar ou a abster-se de certo comportamento, por forma a assegurar o cumprimento das
normas ou obrigações em causa. Pressuposto para a utilização desta possibilidade é que os
interessados tenham previamente solicitado às autoridades competentes que adoptassem as
medidas adequadas, sem que estas o tenham feito.
É o que, por exemplo, sucede quando determinada actividade desenvolvida por um parti-
cular viole normas de direito administrativo dirigidas a proteger o direito dos outros a viver
num ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Se a actividade lesiva
desenvolvida pelo privado em violação de normas de direito administrativo não tinha de ser
iniciada ao abrigo de uma decisão formal da Administração ou tiver sido, em todo o caso,
desencadeada sem que essa decisão tivesse sido emitida, ou se ela tiver sido desenvolvida em
desconformidade com o título ao abrigo do qual ela se tinha iniciado, a Administração tem o
dever de intervir para pôr cobro à situação. Os lesados têm, por isso, o poder de exigir essa in-
tervenção e, se ela for omitida, de exigir do próprio lesante que ponha termo à sua actividade
lesiva. Em qualquer destas situações, a questão tem natureza jurídico-administrativa, devendo
ser, por isso, suscitada perante os tribunais administrativos pela via da acção administrativa
comum.
Esta inovação do CPTA permite, pois, obter, a título principal, através da acção ad-
ministrativa comum, a condenação de particulares à adopção (ou abstenção) de com-
portamentos impostos (ou proibidos) por normas, actos ou contratos de direito administrativo.
44. Configurada, como foi dito, como o processo comum do contencioso administrativo,
ao qual se reconduzem todos os litígios cuja tramitação não deva corresponder a uma forma
especial de processo, também revestem a forma da acção administrativa comum os processos
intentados por entidades públicas para demandar particulares, em ordem a obter a respectiva
condenação à adopção ou abstenção de comportamentos (cfr. artigo 37º, nº 2, alínea c)) (32).
Pelo modo como se encontra redigido o artigo 37º, nº 3, não parece que a dedução de
pretensões da Administração contra particulares se enquadre nesse preceito. A nosso ver, ela
encontra antes cobertura na cláusula geral do nº 1 e, especificamente, na alínea c) do nº 2. A
tutela cautelar adequada nos processos em que a Administração demande um particular é,
entretanto, a intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta, prevista no artigo 112º,
nº 2, alínea f).
5. Litígios interadministrativos
45. Última referência para recordar (cfr. supra, nº 16) que, hoje em dia, muitos processos
administrativos são desencadeados por entidades públicas contra outras entidades públicas,
no âmbito dos chamados litígios interadministrativos, em que se confrontam entre si
interesses estatutariamente atribuídos a diferentes entidades públicas. Daí a referência
incluída no elenco exemplificativo do artigo 37º, nº 2, alínea j). Como é evidente, esta
referência deve, no entanto, ser lida com a seguinte ressalva: só se inscrevem no âmbito de
aplicação da acção administrativa comum os “litígios relativos a relações jurídicas entre
entidades administrativas” na estrita medida em que o CPTA exclua tais litígios do âmbito de
incidência típica das outras formas de processo.
Não se têm, pois, aqui em vista os litígios que tenham por objecto algum dos tipos de
pretensões a que o artigo 46º faz corresponder a forma da acção administrativa especial, por
dizerem respeito a actos administrativos ou regulamentos, como, por exemplo, aqueles em
32() Como fez notar, no âmbito da discussão pública sobre a reforma do contencioso administrativo, RO-SENDO DIAS JOSÉ, O Debate Universitário, p. 31, há, a este propósito, que pensar “em litígios entre pessoas colectivas diferentes, e também na necessidade de a Administração obter a apreciação juris-dicional da verificação de certos factos constitutivos do seu direito a uma quantia ou ou tra prestação, para a qual não está em condições de obter título válido pelos meios de decisão e execução que lhe são próprios (artº 155º do CPA), designadamente porque a quantia a que se julga com direito no âmbito de uma relação de direito público tem a natureza de indemnização, matéria para a qual o acto administrativo se mostra inadequado”.
que um órgão de uma entidade pública é admitido a impugnar decisões tomadas por outro
órgão da mesma entidade pública (cfr. artigo 55º, nº 1, alínea d), do CPTA).
Título Segundo
Pressupostos do Processo Administrativo
Capítulo I
Pressupostos relativos ao Tribunal
I - A competência em razão da jurisdição – a questão da delimitação do âmbito da
jurisdição administrativa
1. Orientação metodológica
49. A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é regulada pelo ETAF
nos seus artigos 1º, nº 1, e 4º, sofrendo, entretanto, múltiplas derrogações resultantes de
legislação especial, sempre que, num ou noutro diploma, o legislador entende pronunciar-se
expressamente no sentido de atribuir a apreciação de certos litígios aos tribunais administrati-
vos ou aos tribunais judiciais. Na ausência de determinação expressa em lei avulsa, valem, no
entanto, os critérios do ETAF.
A primeira dificuldade que os referidos artigos 1º, nº 1, e 4º colocam é a de saber como
articular o regime dos dois artigos. Com efeito, o artigo 1º, nº 1, reitera o princípio constitu-
cional (consagrado no artigo 212º, nº 3, da CRP) de que os tribunais administrativos e fiscais
são os competentes para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais. Mas o artigo 4º continua a seguir o modelo do artigo 4º do anterior ETAF, enunciando
listas de matérias cuja apreciação se encontra incluída (artigo 4º, nº 1) ou excluída (artigo 4º,
nºs 2 e 3) do âmbito da jurisdição administrativa.
Cumpre notar que algumas das matérias elencadas no artigo 4º já pertenceriam à
jurisdição administrativa — ou já estariam excluídas do seu âmbito — mesmo que esse artigo
não existisse, por mera aplicação do artigo 1º. Em relação a essas matérias, não se coloca,
portanto, qualquer problema de articulação, podendo dizer-se que o artigo 4º se limita, nessa
parte, a explicitar o alcance do artigo 1º. É, a nosso ver, o que sucede com as matérias
enunciadas no nº 1, alíneas a), b) (primeira parte), c), d), e) (primeira parte), f), h), i), j), m) e n),
assim como em todas as alíneas do nº 2 e na alínea d) do nº 3 do artigo 4º. Com efeito, afigura-
se que, em todos esses casos, mais não se trata do que de aplicar o critério da existência de
um litígio sobre uma relação jurídica administrativa.
Já no que respeita às situações em que há colisão entre certos preceitos do artigo 4º e o
princípio do artigo 1º, nº 1, a articulação entre os dois artigos deve, a nosso ver, assentar no
seguinte critério: tal como sucede com as múltiplas normas que, sobre a matéria, existem em
legislação avulsa, também as normas do artigo 4º — sempre que afastem o regime do artigo
1º, nº 1 — devem ser vistas como normas especiais em relação àquele preceito, dirigidas a
derrogá-lo, prevalecendo sobre ele, para o efeito de ampliar ou restringir o âmbito da
jurisdição administrativa. Significa isto que, de um modo geral, pertence ao âmbito da
jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico-
administrativa e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à
competência dos tribunais judiciais.
Pode ser colocada, entretanto, a questão de saber se (pelo menos) alguns dos preceitos
do artigo 4º não deverão ser objecto de uma interpretação restritiva, à luz do artigo 1º, por
forma a evitar que conduzam a uma ampliação porventura desproporcionada do âmbito da
jurisdição administrativa. A nosso ver, afigura-se, porém, ser esse um mau princípio, que não
contribui para uma articulação harmoniosa do regime que decorre dos dois artigos. Com
efeito, não se pode deixar de assumir que, ao redigir o artigo 4º, o legislador teve presente o
artigo 1º, nº 1, e, de resto, o princípio constitucional que ele se limita a reafirmar. Ao
introduzir, portanto, nesse artigo, preceitos com um alcance mais amplo do que aquele que
resultaria do artigo 1º, nº 1, o legislador não pode ter deixado de pretender ampliar o âmbito
da jurisdição. É o que resulta da letra dos preceitos, como também do seu espírito, que, em
alguns casos, os trabalhos preparatórios claramente ilustram.
50. Uma vez traçados estes critérios gerais de interpretação, passaremos de seguida a
enunciar os principais tipos de litígios cuja apreciação está, por força do regime geral do ETAF,
incluída — e excluída — do âmbito da jurisdição administrativa.
Decorre, entretanto, do que ficou dito no nº precente que, em termos metodológicos, o
ponto de partida a adoptar para proceder à operação de determinar, perante um caso
concreto, se ele deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos ou dos
tribunais judiciais, não reside, a nosso ver, no artigo 1º, nº 1, do ETAF e, portanto, no critério
constitucional da relação jurídica administrativa. O que, em primeiro lugar, cumpre indagar é,
na verdade, se, sobre a específica matéria em causa, existe disposição legal que,
independentemente daquele critério, dê resposta expressa à questão da jurisdição
competente. Essa disposição legal, tanto pode constar de lei especial aplicável ao caso, como
do próprio artigo 4º do ETAF. É só em relação às matérias que, nem em lei especial, nem no
artigo 4º do ETAF, são objecto de específica atenção do legislador que cumpre, pois, lançar
mão do artigo 1º, nº 1, do ETAF. Isto, na prática, significa que só em relação a um universo
residual de situações se torna necessário resolver a questão da delimitação do âmbito da
jurisdição aplicando directamente o disposto no artigo 1º, nº 1, do ETAF.
Justifica-se, por isso, que comecemos por nos referirmos aos principais tipos de situações
que são objecto de solução legal expressa, para, a final, nos referirmos ao universo das
situações em que cumpre proceder à aplicação residual do artigo 1º, nº 1, do ETAF. O que não
significa que, para a adequada interpretação do sentido e alcance das soluções consagradas
em lei expressa, fique liminarmente excluída a eventual necessidade de recorrer ao critério
material enunciado naquele artigo. Isso será, na verdade, necessário em relação a disposições
de conteúdo aberto, que, de um modo ou de outro, se limitem a remeter para esse critério.
Como já de seguida se verá, é o que, desde logo, precisamente sucede, a nosso ver, com a
previsão da alínea a) do nº 1 do artigo 4º do ETAF.
2. Litígios incluídos no âmbito da jurisdição administrativa
2.1. Em geral, os direitos e interesses de natureza administrativa
51. O artigo 4º, nº 1, do ETAF prevê, antes de mais, que pertence ao âmbito da jurisdição
administrativa a apreciação dos litigios em que esteja em causa a protecção de direitos
fundamentais ou de outros direitos ou interesses legalmente protegidos, no âmbito de
relações jurídico-administrativas (artigo 4º, nº 1, alínea a)). A nosso ver, esta alínea estabelece
uma clara articulação entre a referência inicial à “tutela de direitos fundamentais” e a
subsequente referência a outras situações jurídicas subjectivas fundadas “em normas de
direito administrativo”, para o efeito de se dever entender que também a “tutela de direitos
fundamentais” aqui em causa há-de dizer respeito a situações em que esses direitos se vejam
envolvidos no âmbito de relações jurídico-administrativas. O preceito remete, assim, para o
critério material do artigo 1º, nº 1, do ETAF, ou seja, para a natureza administrativa das rela-
ções jurídicas em que se inscrevem as situações jurídicas em causa, tendo, portanto, em vista
situações em que haja lugar à aplicação de normas de direito administrativo.
2.2. O contencioso dos actos administrativos e regulamentos
52. O artigo 4º, nº 1, do ETAF prevê, em seguida, que pertence ao âmbito da jurisdição
administrativa a apreciação dos litigios que tenham por objecto a fiscalização da legalidade de
actos jurídicos emanados pela Administração no exercício da função administrativa (artigo 4º,
nº 1, alínea b), primeira parte), assim como de actos materialmente administrativos praticados
por órgãos públicos não pertencentes à Administração Pública (artigo 4º, nº 1, alínea c)) ou por
particulares (artigo 4º, nº 1, alínea d)).
Tem-se aqui em vista, antes de mais, o núcleo duro da jurisdição administrativa, que o
CPTA faz corresponder à forma processual da acção administrativa especial e que tem por
objecto a fiscalização dos actos administrativos e regulamentos dos órgãos da Administração
Pública.
Tal como já sucedia no regime precedente, a estes actos são, entretanto, assimilados os
actos materialmente administrativos praticados por órgãos públicos não pertencentes à
Administração Pública, que correspondem aos “actos em matéria administrativa” praticados
pelo Presidente da República, pela Assembleia da República e seu Presidente, pelos
Presidentes do Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas,
pelo Conselho Superior de Defesa Nacional e pelo Procurador-Geral da República, a que já
anteriormente se referia o artigo 26º, nº 1, alínea c), do ETAF de 1984, e que o CPTA também
submete ao regime de impugnação dos actos administrativos pela forma da acção
administrativa especial (cfr. artigo 51º, nº 2, do CPTA).
Também são assimilados actos praticados por particulares: os “actos praticados por
particulares ao abrigo de normas de Direito Administrativo”, a que também se refere o artigo
51º, nº 2, do CPTA, o que compreende os actos jurídicos (concretos e regulamentares)
praticados em regime de concessão e, em geral, todos os actos que sejam praticados por
particulares ao abrigo de normas de Direito Administrativo.
2.3. O contencioso dos contratos
53. Em matéria de contratos, o artigo 4º, nº 1, do ETAF prevê, desde logo, que pertence ao
âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios relativos a contratos
administrativos, tal como, hoje, a figura se encontra delimitada nos artigos 1º, nº 6, 3º e 8º do
CCP.
Com efeito, são, desde logo, contratos administrativos, de acordo com aqueles preceitos
do CCP, os contratos que apresentam alguma das três notas de administratividade a que se
reporta o artigo 4º, nº 1, alínea f), do ETAF:
a) contratos que determinem a (ou se comprometam à futura) produção de efeitos
correspondentes à prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo
unilateral (“contratos com objecto passível de acto administrativo” ou relativos ao “exercício
de poderes públicos”);
b) contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes esteja total ou
parcialmente regulado por normas de Direito Administrativo (contratos administrativos típicos,
como tal previstos e regulados por normas específicas de Direito Administrativo, contidas na
Parte III do CCP ou em legislação especial);
c) contratos que confiram ao contraente privado direitos especiais sobre coisas públicas
ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;
d) contratos que as partes tenham expressamente optado por qualificar como contratos
administrativos ou por submeter a um regime substantivo de Direito Administrativo, seja ele o
regime geral da Parte III do CCP ou um regime previsto em legislação especial para qualquer
tipo específico de contrato administrativo.
Por outro lado, também são contratos administrativos, de acordo com a alínea d) do nº 6
do artigo 1º do CCP, os “contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a
um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação
do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das
atribuições do contraente público”. Ora, estes contratos enquadram-se na previsão da alínea
e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, que, sem diferenciar, atribui à jurisdição administrativa a
competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou
admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de
direito público.
54. Para além dos litígios relativos a contratos administrativos, o artigo 4º, nº 1, do ETAF
estabelece que a jurisdição administrativa ainda é competente para dirimir litígios em matéria
de contratos em dois tipos adicionais de situações – com o que amplia o âmbito da jurisdição
administrativa, por referência ao que sucedia no regime precedente e, à partida, resultaria da
estrita aplicação do critério material consagrado no seu artigo 1º, nº 1, do ETAF. Os dois tipos
adicionais de situações correspondem aos seguintes litígios:
a) Litígios relativos à verificação da invalidade de qualquer tipo de contrato (o que inclui
contratos de direito privado), desde que se trate de uma invalidade resultante da invalidade de
um acto administrativo pré-contratual no qual se tenha fundado a celebração do contrato
(artigo 4º, nº 1, alínea b), segunda parte, do ETAF). Trata-se de verificar a invalidade
consequente do contrato, directamente determinada por razões que se prendem com a
entidade pública contratante e, mais concretamente, com o facto de esta não ter observado as
normas de Direito Administrativo de que dependia a validade da sua actuação.
Independentemente da natureza do contrato, a questão é, portanto, uma questão de Direito
Administrativo, que, como tal, deve ser apreciada pelos tribunais administrativos, com a
vantagem de, através da cumulação de pedidos, permitir a apreciação, no âmbito da mesma
acção perante o mesmo tribunal, da questão da invalidade do acto pré-contratual e da questão
da invalidade consequente do contrato.
b) Litígios relativos à interpretação, validade e execução de qualquer tipo de contratos,
desde que haja lei especial que diga que esse tipo específico de contrato (ou que um contrato
com esse objecto) deve ser obrigatoriamente precedido (ou pode sê-lo) de um procedimento
pré-contratual (concurso público, concurso limitado, negociação ou ajuste directo) regulado
por normas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea e), segunda parte, do ETAF).
Como foi referido no nº precedente, atento o teor da previsão mais restritiva da alínea d)
do nº 6 do artigo 1º do CCP, esta previsão compreende claramente litígios respeitantes a
contratos de direito privado, e tanto contratos celebrados por pessoas colectivas de direito
público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando, por imposição do Direito
Comunitário, tais entidades também estão sujeitas a regras de direito público em matéria de
procedimentos pré-contratuais sem que o contrato seja, em si mesmo, um contrato adminis-
trativo (a menos, naturalmente, que as partes optem por administrativizar o contrato,
qualificando-o como administrativo ou submetendo-o a um regime substantivo de direito
público: cfr. artigos 3º e 8º do CCP).
O legislador partiu do entendimento de que as razões que, por impulso do direito comuni-
tário, levaram o nosso ordenamento jurídico a fazer depender a celebração de certos tipos de
contratos, por certas entidades (públicas ou equiparadas), da prévia realização de um
procedimento especificamente regulado por normas de direito público justificam a atribuição
à jurisdição administrativa da competência para dirimir os litígios que possam surgir no âmbito
das correspondentes relações contratuais. O legislador não quis, portanto, estender a
jurisdição administrativa a todos os contratos celebrados pela Administração Pública, mas
apenas aos tipos contratuais em relação aos quais há leis específicas que submetem a
respectiva celebração, por certas entidades (públicas ou equiparadas), à observância de
determinados procedimentos pré-contratuais.
2.4. O contencioso da responsabilidade civil extracontratual
55. No que se refere às questões respeitantes a matéria de responsabilidade civil extra-
contratual que podem e devem ser submetidas à apreciação dos tribunais administrativos,
decorrem do artigo 4º, nº 1, alíneas g), h) e i), do ETAF as seguintes soluções:
a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabili-
dade civil extracontratual emergente da conduta de pessoas colectivas de direito público. É o
que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF, que, sem distinguir, confere aos
tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar todas as questões de res-
ponsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
O preceito faz referência expressa às funções legislativa e jurisdicional para estender o
âmbito da jurisdição administrativa aos danos emergentes do exercício dessas funções. No que
respeita à responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional, está, contudo, excluída do
âmbito da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios relativos à apreciação de acções
de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens
de jurisdição, assim como das correspondentes acções de regresso (artigo 4º, nº 3, alínea a),
do ETAF).
No que diz respeito aos danos emergentes da actuação da Administração Pública, o
preceito não distingue, entretanto, consoante essa actuação seja ou não desenvolvida no
exercício da função administrativa, na imediata prossecução de fins públicos, ao abrigo de
disposições de direito administrativo, etc. Todos os litígios emergentes de actuações da Admi-
nistração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade
civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos, o que
inclui a responsabilidade, quer por actos de gestão pública, quer por actos de gestão privada
da Administração Pública.
Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilida-
de civil extracontratual dos órgãos da Administração Pública, independentemente da questão
de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma
actuação de gestão privada: a distinção deixa, pois, de ter relevância processual, para o efeito
de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição admi-
nistrativa. Isto não significa, no entanto, que, no quadro normativo vigente, a distinção não
conserve relevância substantiva, como nos parece continuar a resultar do artigo 1º do novo
regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas,
introduzido pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro. Com efeito, o ETAF não fez qualquer
opção de natureza substantiva, dirigida a afastar a existência, no plano substantivo, de regimes
diferenciados de responsabilidade da Administração, consoante essa responsabilidade decorre
de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada da Administração. O ETAF limita-se
apenas a abandonar a distinção, renunciando a utilizá-la como critério de delimitação do
âmbito das jurisdições. Quanto ao resto, a questão já não é processual, mas de direito substan-
tivo.
Pelas razões expostas, está, naturalmente, abrangida pela jurisdição administrativa a apre-
ciação das questões de responsabilidade emergentes de actuações materialmente
administrativas de órgãos que não pertencem à Administração Pública. Essas situações estão,
na verdade, claramente compreendidas na fórmula genérica do artigo 4º, nº 1, alínea g) —
com as seguintes ressalvas, contudo: está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a
apreciação dos litígios relativos à fiscalização da legalidade dos actos materialmente
administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 4º, nº 3,
alínea b)) e pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu Presidente (artigo 4º, nº 3,
alínea c)).
b) Embora com a ressalva introduzida pelo artigo 4º, nº 3, alínea a), os tribunais
administrativos também julgam, segundo o disposto no artigo 4º, nº 1, alínea h), as acções de
responsabilidade movidas contra “titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais
servidores públicos” (no exercício das suas funções e por causa delas, como é óbvio), o que
compreende as acções de regresso que contra elas sejam intentadas pelas pessoas colectivas
de direito público ao serviço das quais desenvolvam a sua actividade.
c) O artigo 4º, nº 1, alínea i), ainda prevê a competência da jurisdição administrativa para
apreciar questões de responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas e respectivos
trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, nos casos em
que o nº 5 do artigo 1º do novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entidades públicas, introduzido pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, as veio
submeter à aplicação desse regime, ou seja, quando a respectiva responsabilidade resulte de
acções ou omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas
por disposições ou princípios de direito administrativo.
2.5. Outros tipos de situações expressamente incluídas no âmbito da jurisdição
56. O nº 1 do artigo 4º do ETAF ainda faz referência aos seguintes tipos de litígios, que
expressamente inclui no âmbito da jurisdição administrativa:
a) Litígios dirigidos a promover a prevenção, cessação e reparação de todo o tipo de
violações que resultem da actuação de entidades públicas (o que compreende actuações de
gestão privada da Administração Pública) (33) contra a saúde pública, ambiente, urbanismo,
ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado (artigo 4º,
nº 1, alínea l)).
Inspirado pelo mesmo propósito de simplificação de critérios que preside à solução
consagrada na alínea g), no domínio da responsabilidade civil extracontratual da Adminis-
tração, a previsão da alínea l) do nº 1 do artigo 4º do ETAF prescinde da adopção de um
critério material ou qualitativo de delimitação, para adoptar o critério (objectivo) da natureza
da entidade demandada: desde que esteja em causa a actuação de uma entidade pública, o
litígio deve ser suscitado perante os tribunais administrativos (34). Com o que alarga o âmbito
das questões que, no domínio dos litígios em matéria ambiental, passam a dever ser deduzidas
perante a jurisdição administrativa em relação ao regime precedente e ao que, à partida,
resultaria da estrita aplicação do critério material do artigo 1º, nº 1, do ETAF.
b) Litígios relativos a relações jurídico-administrativas entre pessoas colectivas públicas ou
entre órgãos públicos (artigo 4º, nº 1, alínea j)). Como é evidente, as pessoas colectivas só
podem actuar, por força do princípio da especialidade, no âmbito dos interesses a seu cargo.
Parece, por isso, de entender que, com a referência específica aos “interesses que lhes cumpre
prosseguir”, o artigo 4º, nº 1, alínea j), terá em vista interesses públicos, envolvidos no âmbito
de relações jurídico-administrativas.
c) Litígios relativos ao contencioso eleitoral cuja apreciação não seja atribuída à jurisdição
de outros tribunais (artigo 4º, nº 1, alínea m)).
2.6. As situações não expressamente previstas: o critério do artigo 1º, nº 1, do ETAF
57. Como já foi referido, atento o elevado número de disposições legais sobre a matéria, a
começar por aquelas que o próprio ETAF contém no seu artigo 4º, na prática, é só em relação a
33() Colocando-se a questão de saber se, por entidades públicas, para este efeito, se devem considerar também as empresas públicas.34() O que não significa, naturalmente, que a jurisdição administrativa não seja a sede própria para reagir também contra muitos atentados àqueles valores perpetrados por particulares com a anuência da Administração – desde logo, no domínio da impugnação das licenças ilegais.
um universo residual de situações que se torna necessário resolver a questão da delimitação
do âmbito da jurisdição aplicando directamente o disposto no artigo 1º, nº 1, do ETAF.
Vejamos, no entanto, em que termos se concretiza, a nosso ver, a aplicação deste preceito.
Na senda do artigo 212º, nº 3, da CRP, o artigo 1º, nº 1, do ETAF estabelece que, de um
modo geral, pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios
que versem sobre matéria jurídico-administrativa e fiscal.
O preceito faz, deste modo, apelo a um critério material, o critério de o litígio versar sobre
uma relação jurídica administrativa, colocando, desse modo, o acento tónico na questão de
saber quando se deve entender que uma relação jurídica é administrativa. Ora, uma relação é
jurídica quanto o Direito lhe atribui relevância, estabelecendo o respectivo regime regulador. E
será, por conseguinte, jurídico-administrativa quando essa relevância lhe seja atribuída pelo
Direito Administrativo, sendo, portanto, de normas de Direito Administrativo que decorre o
respectivo regime regulador.
Como tem reconhecido a doutrina, a questão reconduz-se, portanto, à do próprio
conceito do Direito Administrativo e da sua delimitação perante os demais ramos do orde-
namento jurídico – e, portanto, em última análise, à questão da própria fronteira entre Direito
público e Direito privado, uma vez que, de entre os diferentes ramos do Direito público, é o
Direito Administrativo aquele que mais próximo se encontra do Direito privado e, portanto,
aquele por cujas fronteiras passa a delimitação em relação ao Direito privado. É, na verdade, o
facto de, na hipótese de figurarmos o Direito público e o Direito privado como territórios
confinantes, pertencer ao Direito Administrativo, do lado do Direito público, a parcela
territorial fronteiriça que explica as dificuldades que tradicionalmente coloca a aplicação do
critério material de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e justifica algumas das
derrogações pontuais que, como adiante se verá, o legislador opta por introduzir a esse
critério.
Em nossa opinião, uma relação jurídica é regulada por normas de direito administrativo e
deve ser, por isso, qualificada como uma relação jurídica administrativa quando lhe sejam
aplicáveis normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições
ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público,
que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada. Subscrevemos, deste
modo, o entendimento segundo o qual a atribuição de prerrogativas de autoridade ou a
imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público são os
traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas
de relações jurídico-administrativas (35).
58. De entre os tipos de situações cuja inclusão no âmbito da jurisdição resulta do
disposto no artigo 1º, nº 1, do ETAF, salientaremos as seguintes:
a) Em primeiro lugar, aquelas que dizem respeito à atribuição de indemnizações devidas
em virtude da imposição de sacrifícios por razões de interesse público, a que, como vimos
oportunamente, o artigo 37º, nº 2, alínea g), do CPTA, a título exemplificativo, faz referência
expressa a propósito do âmbito de aplicação da forma processual da acção administrativa
comum.
Com efeito, embora o ETAF não se refira expressamente, no artigo 4º, à competência dos
tribunais administrativos para outorgar as indemnizações resultantes da imposição de sacrifí-
cios por parte dos poderes públicos, é indiscutível a natureza jurídico-administrativo da obri-
gação em causa, para o efeito de dever ser reconduzida à previsão genérica do artigo 1º, nº 1,
do ETAF. A jurisdição administrativa é, pois, a sede naturalmente competente para atribuir as
indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público. É esta
a regra que o ETAF e o CPTA instituem.
Esta regra, como regra geral que é, é, no entanto, derrogada por disposições especiais,
designadamente do Código das Expropriações, que, de acordo com uma velha tradição, con-
fere aos tribunais judiciais a competência para atribuir as indemnizações devidas por
expropriações, servidões e requisições administrativas. Estas disposições — tal como outras
que existam em legislação avulsa que atribua competência aos tribunais judiciais para atribuir
indemnizações por sacrifício — devem ser, pois, qualificadas como normas especiais que, co-
mo tais, prevalecem sobre o regime geral. Se ou enquanto o Código das Expropriações não for
revisto (ou substituído) num sentido que altere a solução tradicional, o sector das
indemnizações por expropriação continua, assim, excluído do âmbito das competências dos
tribunais administrativos — embora o âmbito da jurisdição administrativa se estenda, hoje, ao
poder de proceder à adjudicação de bens expropriados, quando haja lugar à respectiva rever-
35() Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2006, págs. 148-149 e 161.
são: a inovação resultou de alteração introduzida pelo artigo 5º da Lei nº 13/2002 na redacção
dos artigos 74º e 77º do Código das Expropriações.
b) Em segundo lugar, as situações respeitantes a litígios entre privados, quando emer-
gentes da violação (ou fundado receio de violação) de vínculos jurídico-administrativos, a que,
como vimos oportunamente, o artigo 37º, nº 3 do CPTA faz referência expressa a propósito do
âmbito de aplicação da forma processual da acção administrativa comum.
Com efeito, prevê aquele preceito que os particulares cujos direitos ou interesses sejam
directamente ofendidos podem demandar, perante os tribunais administrativos, outros parti-
culares, que não têm de ser necessariamente concessionários, por estes estarem a violar nor-
mas de direito administrativo ou obrigações jurídico-administrativas contratualmente assumi-
das ou darem indícios que justifiquem o fundado receio de as poderem vir a violar, pedindo
que eles sejam condenados a adoptar ou a abster-se de certo comportamento, por forma a
assegurar o cumprimento das normas ou obrigações em causa. Pressuposto para a utilização
desta possibilidade é que os interessados tenham previamente solicitado às autoridades com-
petentes que adoptassem as medidas adequadas, sem que estas o tenham feito. E,
naturalmente, que, do ponto de vista substantivo, lhes assista o poder de exigir a adopção
dessas medidas.
É o que, por exemplo, sucede quando determinada actividade desenvolvida por um parti-
cular viole normas de direito administrativo dirigidas a proteger o direito dos outros a viver
num ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Se a actividade lesiva
desenvolvida pelo privado em violação de normas de direito administrativo não tinha de ser
iniciada ao abrigo de uma decisão formal da Administração ou tiver sido, em todo o caso,
desencadeada sem que essa decisão tivesse sido emitida, ou se ela tiver sido desenvolvida em
desconformidade com o título ao abrigo do qual ela se tinha iniciado, a Administração tem o
dever de intervir para pôr cobro à situação. Os lesados têm, por isso, o poder de exigir essa in-
tervenção e, se ela for omitida, de exigir do próprio lesante que ponha termo à sua actividade
lesiva.
Embora o ETAF não se refira expressamente, no artigo 4º, a este tipo de situação, é a sua
natureza jurídico-administrativa, para o efeito de dever ser reconduzida à previsão genérica do
artigo 1º, nº 1, do ETAF, que explica o reconhecimento, no artigo 37º, nº 3, do CPTA, da
competência dos tribunais administrativos para a sua apreciação.
II - A competência em razão da hierarquia – Organização e competências dos tribunais
administrativos
Competências de primeira instância dos tribunais administrativos (arts. 44º e 24º do
ETAF); tangibilidade da distribuição das competências em razão da hierarquia, decorrente do
princípio da livre cumulabilidade dos pedidos, independentemente das regras de
distribuição hierárquica das competências (art. 21º, nº 1, do CPTA)
59. O ETAF atribui a generalidade das competências de primeira instância aos tribunais
administrativos de primeira instância. De acordo com o artigo 44º, compete, com efeito, aos
tribunais de primeira instância, em matéria administrativa, conhecer, em primeira instância, de
todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja
competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores, assim
como da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados.
De acordo com o disposto no artigo 24º, nº 1, alíneas a), c), d) e e), do ETAF, é reservada
ao Supremo Tribunal Administrativo, sem prejuízo de outras cuja apreciação lhe seja deferida
por lei, a competência para conhecer, em primeira instância, dos processos relativos a acções
ou omissões do Presidente da República, da Assembleia da República e do seu presidente, do
Conselho de Ministros, do Primeiro-Ministro, dos Presidentes do Tribunal Constitucional, do
Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Militar, do
Conselho Superior de Defesa Nacional, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais e do seu presidente, do Procurador-Geral da República e do Conselho Superior do Mi-
nistério Público — bem como dos pedidos de adopção de providências cautelares relativos a
estes processos, dos pedidos relativos à execução das decisões que o tribunal neles profira e
dos pedidos que nesses processos sejam cumulados.
Ao Supremo Tribunal Administrativo é ainda reservada a competência para decidir, em
primeira instância, dos processos eleitorais previstos no próprio ETAF e as acções de regresso,
fundadas em responsabilidade por danos resultantes do exercício das suas funções, que sejam
propostas contra juízes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administra-
tivo, bem como de magistrados do Ministério Público que exerçam funções junto destes tribu-
nais: cfr. artigo 24º, nº 1, alíneas b) e f), do ETAF.
Os Tribunais Centrais Administrativos, por seu turno, só são competentes para conhecer,
em primeira instância, das acções de regresso fundadas em responsabilidade por danos
resultantes do exercício das suas funções, que sejam propostas contra juízes dos tribunais
administrativos de círculo e dos tribunais tributários, e dos processos que lei especial
porventura submeta ao seu julgamento de primeira instância: cfr. artigo 37º, alíneas c) e d), do
ETAF.
Faça-se, em todo o caso, notar que as regras de distribuição hierárquica das competências
entre os tribunais administrativos não se opõem ao princípio da livre cumulabilidade dos
pedidos, que opera independentemente dessas regras. Neste sentido, o artigo 21º, nº 1, do
CPTA estabelece, com efeito, que, “nas situações de cumulação [de pedidos] em que a
competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, este
também é competente para conhecer dos demais pedidos”. Na mesma linha, veja-se o
disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 24º do ETAF.
A exemplo do que sucede nos tribunais judiciais, os tribunais superiores da jurisdição
administrativa e fiscal, em matéria administrativa, são, no essencial, tribunais de recurso. Os
Tribunais Centrais Administrativos são, quando a alçada o permita (cfr. artigo 6º do ETAF), a
instância normal de recurso de apelação das decisões dos tribunais de primeira instância e dos
tribunais arbitrais: cfr. artigo 37º, alíneas a) e b), do ETAF. Para o Supremo Tribunal Admi-
nistrativo, é possível recorrer das decisões proferidas em primeira instância pelos Tribunais
Centrais Administrativos (artigo 24º, nº 1, alínea g), do ETAF) e, em certas circunstâncias,
interpor recursos de revista: recurso per saltum das decisões dos tribunais de primeira instân-
cia e recurso das próprias decisões proferidas pelos Tribunais Centrais Administrativos em
recurso de apelação (cfr. artigo 24º, nº 2, do ETAF e artigos 150º e 151º do CPTA).
A Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo funciona
também em Pleno e em Plenário. Segundo o artigo 25º, nº 1, do ETAF, o Pleno da Secção
conhece dos recursos dos acórdãos que tenham sido proferidos pela secção, através das
subsecções, em primeiro grau de jurisdição e também conhece dos recursos para uniformiza-
ção de jurisprudência, que resultam da existência de oposição entre acórdãos (cfr. artigo 152º
do CPTA). Por outro lado, o Pleno pode ser chamado, pelos tribunais administrativos de
círculo, a pronunciar-se, a título prejudicial, sobre o sentido em que devem ser decididas ques-
tões de direito novas, que suscitem dificuldades sérias e possam vir a colocar-se em vários lití-
gios (cfr. artigo 25º, nº 2, do ETAF e artigo 93º do CPTA). O Plenário é, por seu turno,
competente, segundo o disposto no artigo 29º do ETAF, para conhecer dos conflitos de
jurisdição entre tribunais administrativos e tributários ou entre as Secções de Contencioso
Administrativo e de Contencioso Tributário.
III - A competência em razão do território – Âmbito de competência territorial dos
tribunais de primeira instância
60. O regime de distribuição territorial das competências entre os tribunais
administrativos de primeira instância está regulado nos artigos 16º e segs. do CPTA. Os
critérios aí consagrados não obstam, contudo, ao princípio da livre cumulabilidade dos
pedidos, que opera independentemente das regras de distribuição territorial das
competências. Neste sentido, o artigo 21º, nº 2, do CPTA estabelece que, “quando forem
cumulados pedidos para cuja apreciação sejam territorialmente competentes diversos
tribunais, o autor pode escolher qualquer deles para a propositura da acção”. Se, no entanto,
houver um pedido principal e um ou mais pedidos dependentes da procedência daquele, a
acção deve ser proposta no tribunal compentente para apreciar o pedido principal: basta
pensar no exemplo da impugnação de um acto administrativo de conteúdo positivo, cumulada
com o pedido de reparação dos danos causados por esse acto alegadamente ilegal.
Capítulo II – Pressupostos relativos às Partes
§ 1º - O autor: personalidade judiciária e capacidade judiciária, legitimidade processual
e interesse processual
I – Personalidade e capacidade judiciárias
61. A exemplo do que sucede no CPC, o CPTA faz suceder a um primeiro capítulo de
disposições fundamentais, um segundo capítulo dedicado às partes: cfr. artigos 9º e seguintes.
Tal como nos outros domínios, o Código não regula aí, no entanto, os aspectos em relação aos
quais o contencioso administrativo não apresenta especialidades de maior e em que, por isso,
é, sem mais, aplicável o regime do CPC. É o que sucede com os regimes da personalidade e da
capacidade judiciárias.
II – Legitimidade e interesse processual
1. Legitimidade e interesse processual
62. O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto processual e não como uma
condição de procedência da acção, cuja titularidade se afere, portanto, por referência às
alegações produzidas (“…quando alegue ser parte…”).
A autonomização do tratamento da legitimidade processual no âmbito do CPTA justifica-
se pela relevância das especificidades que, a diversos níveis, o contencioso administrativo
apresenta nesse domínio.
A opção, entretanto, de estabelecer, na Parte Geral, um regime geral em matéria de
legitimidade é inovadora e parte do entendimento de que a questão da legitimidade proces-
sual deve ser encarada como um fenómeno eminenemente processual, de âmbito geral,
respeitante à situação das partes no processo, sem que nada justifique que, a respeito da
natureza do instituto, se adopte, no domínio do contencioso administrativo, uma perspectiva
sensivelmente diferente daquela que resulta da teoria geral do processo e que é, desde logo,
adoptada em processo civil.
63. Como fazem notar os processualistas, o pressuposto da legitimidade não se confunde
com o do interesse processual ou interesse em agir. Com efeito, pode não haver qualquer
dúvida quanto à questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material, tal como
o autor a configurou — pense-se apenas no impugnante que alegue ser proprietário de um
prédio, relativamente a actos praticados pela Administração no âmbito do procedimento de
declaração de utilidade pública desse prédio; ou no funcionário que alegue ser arguido num
procedimento disciplinar respeitante a factos por si próprio praticados —, e no entanto pode
questionar-se a existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de
factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial.
2. Regime da legitimidade activa
64. Ao contrário do que é comum e, por exemplo, sucede no artigo 26º do CPC, o CPTA
regula separadamente as questões da legitimidade activa e da legitimidade passiva. É assim
que, na Parte Geral do Código, encontramos o artigo 9º, dedicado à legitimidade activa, e o
artigo 10º, dedicado à legitimidade passiva.
A explicação para o facto radica na circunstância de que, seja no que toca à definição do
regime geral, seja, depois, no que se refere à definição de regimes especiais, são numerosos e
diferenciados os aspectos a regular quanto à legitimidade activa. Como, com efeito, resulta da
ressalva expressa da existência de regimes especiais, contida na parte inicial do artigo 9º, nº 1,
a matéria da legitimidade activa no novo contencioso administrativo não se encontra apenas
regulada no artigo 9º, mas também no artigo 40º, respeitante à legitimidade em acções
relativas a contratos, e nos artigos 55º, 57º, 68º e 73º, referentes às pretensões que se fazem
valer pela via da acção administrativa especial. Em contrapartida, o regime da legitimidade
passiva resulta, praticamente por inteiro, do artigo 10º.
65. A explicação para a existência de um conjunto de regimes especiais, ao lado do regime
comum, em matéria de legitimidade activa decorre da circunstância de a legitimidade ser um
pressuposto processual que se afere em função da concreta relação que se estabelece entre a
parte e o objecto do processo. Compreende-se, por isso, que o CPTA tenha optado por
estabelecer regimes especiais de legitimidade a propósito dos principais tipos de pretensões
dedutíveis perante os tribunais administrativos.
Tónica comum aos regimes especiais é o alargamento da legitimidade activa, para além
dos limites, reportados à (alegada) titularidade da relação material controvertida, em que ela
é, à partida, definida no artigo 9º, nº 1. Este é, na verdade, o plano em que mais se evidencia a
filosofia inspiradora do processo administrativo, de procurar o necessário equilíbrio entre di-
mensão subjectiva e dimensão objectiva, na certeza de que o aperfeiçoamento do sistema no
sentido de proporcionar aos cidadãos a mais efectiva tutela dos seus direitos e interesses em
nada contende com o aproveitamento, em paralelo, das vantagens efectivas associadas aos
aspectos objectivistas tradicionais, que lhe permitem funcionar (também) como um instru-
mento de protecção dos mais relevantes interesses públicos. Pelo contrário, do que se trata é
de assegurar que o contencioso administrativo proporcione a mais efectiva tutela a quem quer
que se lhe dirija — admitindo, entretanto, que não sejam só os indivíduos a poderem dirigir-se
à jurisdição administrativa, em defesa dos seus direitos e interesses particulares, mas que
também se lhe possam dirigir o Ministério Público, as entidades públicas, as associações cívicas
e os próprios cidadãos, uti cives, em defesa de interesses públicos, colectivos e difusos.
É o que, desde logo, sucede no regime especial de legitimidade activa nas acções sobre
contratos. Como, na verdade, se escreveu na Exposição de Motivos do CPTA, tratou-se, nessa
sede, de dar resposta “à necessidade, de há muito sentida, de alargar o âmbito da legitimidade
activa nas acções sobre contratos, para além das partes na relação contratual. Como os
contratos em causa se inserem, designadamente no que diz respeito ao procedimento pré-
contratual, num contexto regido por disposições e princípios de direito administrativo, impos-
tos no interesse público e de terceiros, e o respeito por tais normas é sindicável pelo Mi-
nistério Público e pelos eventuais interessados, justifica-se que estes possam fazer valer as
invalidades de que o contrato possa enfermar por força da violação de tais normas. Por outro
lado, também a execução dos contratos pode ser do interesse público ou de terceiros”.
O alargamento da legitimidade activa quanto à dedução dos quatro tipos de pretensões
que o CPTA faz corresponder à forma da acção administrativa especial explica-se, por seu
turno, porque, como a seu tempo já foi explicado, essas pretensões dizem respeito ao
exercício de poderes de autoridade por parte da Administração, matéria que, embora conten-
da, muitas vezes, com situações jurídicas individuais, se reveste de um significado muito mais
vasto, por envolver a disposição de interesses públicos, no respeito pelo princípio da
legalidade, valor que respeita a toda a comunidade e cuja garantia está institucionalmente a
cargo de um conjunto de entidades públicas.
2.1. Regime comum: artigo 9º do CPTA
2.1.1. Regime comum
66. As soluções consagradas no artigo 9º, nº 1 e nº 2, retomam, no essencial, as que
resultam, respectivamente, dos artigos 26º e 26º-A do CPC.
O regime do artigo 9º, nº 1, corresponde ao que estabelece o artigo 26º, nº 3, do CPC, ao
assumir que, salvo disposição legal em sentido diferente, a regra é a de que a legitimidade
para discutir qualquer relação jurídica controvertida em juízo corresponde a quem alegue ser
parte nessa relação jurídica: por conseguinte, “o autor é considerado parte legítima quando
alegue ser parte na relação material controvertida”.
2.1.2. A legitimidade em defesa de interesses difusos
67. O artigo 9º, nº 2, consagra um regime de extensão da legitimidade, reconhecendo ao
Ministério Público, às autarquias locais, às associações e fundações defensoras dos interesses
em causa e, em geral, a qualquer pessoa singular, enquanto membro da comunidade, o direito
de lançar mão de todo e qualquer meio processual, principal ou cautelar, existente no
contencioso administrativo, para defesa dos valores que enuncia (36). Tal como sucede com o
artigo 26º-A do CPC, e em termos semelhantes, o artigo 9º, nº 2, determina, pois, para os
casos aí previstos, a extensão da legitimidade processual a quem não alegue ser parte numa
relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal.
Embora o preceito não utilize a expressão e se refira a um conjunto mais alargado de
entidades, que compreendem o Ministério Público e as autarquias locais, ele tem designada-
mente em vista o exercício por parte dos cidadãos, no âmbito do contencioso administrativo,
36() Neste sentido, cfr. MÁRIO TORRES, “A protecção do ambiente no ordenamento jurídico português”, in Textos do CEJ — Ambiente e Consumo, vol. II, Lisboa, 1996, p. 20; CARLA AMADO GOMES, Contributo para o estudo das operações materiais da Administração Pública, Coimbra, 1999, p. 377; VASCO PEREIRA DA SILVA, Ventos de mudança no contencioso administrativo, Coimbra, 2000, p. 85.
do direito de acção popular para defesa de “valores e bens constitucionalmente protegidos
como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de
vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias lo-
cais”, direito que a CRP lhes reconhece, como um direito fundamental de participação política,
no artigo 52º, nº 3. Como adiante se verá, esta não é a única forma, mas é uma das formas de
acção popular que são admitidas em processo administrativo — uma forma de acção popular
que se define pela defesa daqueles valores, constitucionalmente protegidos.
O exercício dos poderes de propositura e intervenção previstos no artigo 9º, nº 2, há-de
processar-se, como refere o preceito, “nos termos previstos na lei”. A remissão parece ter em
vista a Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, na parte em que essa lei, nos seus artigos 2º e 3º, densifi-
ca o critério de legitimidade que apenas se encontra genericamente formulado no CPTA e
depois, nos artigos 13º e seguintes, estabelece um conjunto de disposições a aplicar aos pro-
cessos intentados por actores populares que sigam termos perante os tribunais adminis-
trativos (37).
Os processos que sejam intentados nestas circunstâncias, em defesa dos valores men-
cionados, apresentam, com efeito, especificidades que justificam a introdução de adaptações
ao modelo de tramitação normal. Este foi, pelo menos, o entendimento do legislador, que, nos
artigos 13º e seguintes da Lei nº 83/95, entendeu estabelecer um conjunto de soluções
especiais — nos domínios da admissão da petição inicial (artigo 13º), da representação
processual (artigo 14º), da citação dos titulares dos interesses em causa (artigo 15º), da
instrução (artigo 17º), da eficácia dos recursos jurisdicionais (artigo 18º) e dos efeitos do caso
julgado (artigo 19º) —, destinadas a valer neste tipo de processos. Verifica-se, assim, que a Lei
nº 83/95 estabelece um processo especial para estes casos.
Para que não se gerem equívocos, importa, porém, não perder de vista que o regime dos
artigos 13º e seguintes da Lei nº 83/95 apenas se refere a alguns aspectos da tramitação
processual. A incompletude e o carácter disperso e avulso das suas determinações não tem,
por isso, o alcance de submeter os processos em causa a uma forma de processo especial aca-
bada, mas apenas o de introduzir um conjunto de especialidades no modelo normal de trami-
tação a que esses processos estão subordinados. Essas especialidades deverão ser, assim,
enxertadas, em cada caso, no regime que for aplicável segundo as regras gerais.
37() Relação idêntica se estabelece, em processo civil, entre o artigo 26º-A do CPC e a Lei nº 83/95: cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, Lisboa, 1997, p. 36.
Em resumo: qualquer cidadão, no gozo dos seus direitos civis e políticos (artigo 2º, nº 1,
da Lei nº 83/95), tanto pode dirigir-se aos tribunais administrativos, em defesa dos valores
enunciados no artigo 9º, nº 2, para, por exemplo, impugnar um acto administrativo, como para
pedir a condenação da Administração a abster-se de realizar certas operações materiais. O
artigo 9º, nº 2, dá, assim, ao interessado o fundamento para accionar qualquer dessas
pretensões, pelas vias processuais que o CPTA identifica como adequadas e que são
diferenciadas, para cada um dos casos (38). O que, entretanto, resulta da Lei nº 83/95 (ex vi
artigo 9º, nº 2, que para ela remete) é que, na tramitação de qualquer desses processos, ha-
verá que aplicar, para além das regras gerais que lhe são próprias, as regras especiais que
aquela lei estabelece nos seus artigos 13º e seguintes.
É, pois, nesta perspectiva que deve ser lida a remissão do artigo 9º, nº 2, para “os termos
previstos na lei”. Essa remissão significa que os poderes de propositura e intervenção
processual aí previstos serão exercidos nos casos e observando, para além das regras gerais, as
regras específicas de tramitação e sobre a decisão judicial que resultam da Lei nº 83/95
(artigos 2º e 3º, e artigos 13º e seguintes, respectivamente).
2.2. Regimes especiais
2.2.1. Legitimidade activa nas acções sobre contratos (art. 40º do CPTA)
68. Como resulta da ressalva contida na primeira parte do artigo 9º, nº 1, o artigo 40º
reúne um conjunto de disposições que afastam o regime regra consagrado naquele preceito,
prevendo um conjunto de situações de extensão da legitimidade processual a quem não ale-
gue ser parte na relação material que se propõe submeter à apreciação do tribunal.
69. As acções dirigidas à invalidação dos contratos podem, pois, ser propostas, não apenas
pelas partes na relação contratual, como dispõe o artigo 40º, nº 1, alínea a), mas também
pelas pessoas e entidades que se passam a enunciar.
38() A exemplo do que sucede em processo civil, também se pode, assim, dizer, neste contexto, que a acção popular administrativa pode revestir qualquer das formas previstas no CPTA. Para o processo civil, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, p. 36.
a) Em primeiro lugar, pelo Ministério Público, como prevê o artigo 40º, nº 1, alínea b).
Repare-se que, a exemplo do que sucede no artigo 77º, nº 1, no domínio do contencioso da
omissão ilegal de normas regulamentares, o CPTA introduz, neste preceito, a acção pública
sem aparentes restrições, pelo que se deve entender que ela é estendida ao contencioso dos
contratos da Administração com a mesma configuração que tradicionalmente lhe corresponde
no contencioso dos actos administrativos. O Ministério Público é, pois, admitido a impugnar
todo e qualquer contrato, no único propósito de “defender a legalidade democrática e
promover a realização do interesse público” (artigo 51º do ETAF)
b) O artigo 40º, nº 1, alínea b), também estende, entretanto, a legitimidade para fazer
valer a invalidade dos contratos às demais pessoas e entidades que, nos termos do artigo 9º,
nº 2, podem agir em defesa dos valores que esse preceito enuncia.
c) As invalidades decorrentes de ilegalidades cometidas pela Administração em momento
anterior ao da celebração do contrato passam, por outro lado, a poder ser accionadas por
quem tenha sido lesado nos seus direitos ou interesses. É assim que se admite que os contra-
tos celebrados pela Administração possam ser impugnados por quem, tendo tomado parte no
procedimento que precedeu a celebração do contrato (porventura, um concurso público), tiver
impugnado as decisões tomadas no âmbito desse procedimento (artigo 40º, nº 1, alínea d)).
Como é evidente, esta é a situação mais evidente e também será a mais frequente. Pense-
se no candidato que é preterido num concurso e que considera que o concurso está inquinado
de ilegalidades que comprometem a validade do contrato que, na sequência dele, venha a ser
celebrado. Esse candidato não só pode impugnar os actos pré-contratuais que considere
ilegais, como, se tiver efectivamente procedido a tal impugnação (39), também pode impugnar
o contrato, fazendo valer a invalidade (consequente) que para ele resulta das ilegalidades
cometidas durante o procedimento pré-contratual.
Recorde-se que é a jurisdição administrativa a competente para apreciar a invalidade
consequente de todos os contratos celebrados pela Administração Pública, “directamente
resultante da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração”:
cfr. artigo 4º, nº 1, alínea b), do ETAF. Por outro lado, faça-se notar que a impugnação de um
contrato com fundamento na sua invalidade consequente pode ter lugar, a título superve-
39() Como bem assinala CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 34, p. 14, nota 17, um concorrente num procedimento pré-contratual não dispõe de legitimidade para propor uma acção fundada na invalidade consequente do correspondente contrato se não tiver procedido à tempestiva impugnação do acto administrativo cuja ilegalidade compromete a validade do contrato. De outro modo, a acção seria utilizada para obter um efeito que não pode ser obtido sem a anulação do acto pré-contratual, ao que claramente obsta o disposto no artigo 38º, nº 2.
niente, no âmbito do próprio processo de impugnação dos actos pré-contratuais, se o contrato
vier a ser celebrado na pendência desse processo: cfr. artigo 63º.
d) Os participantes no procedimento que precedeu a celebração do contrato — porven-
tura, um concurso — também podem fazer valer a invalidade do contrato por alegada descon-
formidade entre o seu clausulado e os termos da adjudicação (artigo 40º, nº 1, alínea e)). Re-
pare-se que o problema reside, agora, no facto de serem incluídas no contrato cláusulas que
dele não deveriam constar, por não serem compatíveis com os termos em que foi feita a adju-
dicação. Mas ainda aqui estamos perante um instrumento de defesa dos participantes no pro-
cedimento pré-contratual — porventura, dos participantes num concurso —, em nome da
vinculação da Administração às regras que presidiram a esse procedimento.
e) A situação já é um pouco diferente, embora ainda esteja em causa uma situação de
invalidade do contrato resultante da violação, por parte da Administração, das vinculações que
para ela decorriam do procedimento pré-contratual, quando um interessado alegue que o
clausulado do contrato não corresponde aos termos que tinham sido inicialmente estabele-
cidos e que justificadamente o tinham levado a não participar no procedimento pré-contratual,
embora preenchesse os requisitos necessários para o efeito (artigo 40º, nº 1, alínea f)).
Repare-se que, neste caso, não estamos perante um interessado que tenha participado no
procedimento pré-contratual. Estamos, no entanto, perante alguém que faz valer a invalidade
do contrato em defesa do seu interesse em participar — rectius, do interesse que teria tido em
participar — num procedimento dirigido à celebração de um contrato como aquele que foi
ilegalmente celebrado, à revelia do que resultava dos parâmetros inicialmente traçados.
f) Em idêntica situação está o interessado que tenha sido prejudicado pelo facto de não
ter sido, pura e simplesmente, adoptado o procedimento pré-contratual exigido por lei (artigo
40º, nº 1, alínea c)). Paradigmática é a situação do interessado em participar no concurso cuja
realização a lei impunha, quando a Administração não proceda à realização desse concurso,
porventura optando ilegalmente pela conclusão de um ajuste directo.
Também neste caso, a impugnação do contrato passa a estar ao alcance de quem não
participou em qualquer procedimento pré-contratual e, também aqui, em defesa do interesse
que teria tido em participar num procedimento dirigido à celebração de um contrato como
aquele que foi ilegalmente celebrado na ausência do procedimento legalmente devido.
Repare-se que, nas hipóteses previstas pela alínea em apreciação, quem tenha sido preterido
pela realização de um ajuste directo deixa de se ver forçado a impugnar a decisão de contratar
que estaria implícita no contrato, para passar a estar legitimado a impugnar, desde logo, o
próprio contrato.
g) Já num plano claramente distinto, o artigo 40º, nº 1, alínea g), estende, por fim, a legiti-
midade para a propositura de acções de invalidade a quem tenha sido ou possa vir a ser
previsivelmente lesado nos seus direitos ou interesses pela execução do contrato. Esta é uma
previsão de amplo espectro, cujos contornos cumprirá, naturalmente, à jurisprudência
delimitar, mas que parece cobrir situações como a das empresas que desenvolvam a sua
actividade, em regime de concorrência, num sector do mercado onde exista uma concessão de
serviço público atribuída por contrato; ou a dos utentes de um serviço de interesse económico
geral, abrangidos por determinações contratualizadas entre o Estado e a entidade concessio-
nária do serviço (40).
70. O nº 2 do artigo 40º também alarga, entretanto, de forma muito significativa a
legitimidade para a propositura de acções dirigidas a obter a execução de contratos.
a) Como é evidente, as acções dirigidas a obter a execução dos contratos continuam a po-
der ser propostas pelas partes na relação contratual (artigo 40º, nº 2, alínea a)), e cumpre re-
cordar que também as entidades públicas contratantes podem ter, muitas vezes, de lançar
mão da propositura de uma acção perante os tribunais administrativos para obter a execução
de contratos pela contraparte (41).
b) As referidas acções também passam, porém, a poder ser propostas em defesa de direi-
tos ou interesses em função dos quais as cláusulas contratuais tenham sido estabelecidas
(artigo 40º, nº 2, alínea b)). Reveste-se, para este efeito, de especial significado a garantia do
cumprimento, por parte dos concessionários de serviços de interesse económico geral, dos de-
veres consignados no contrato de concessão em que se consubstancia a garantia dos princípios
da igualdade de tratamento dos utentes, da continuidade do serviço e da eficiência na gestão
das redes de serviço público (42).
c) As acções sobre execução de contratos também podem ser propostas pelo Ministério
Público, “quando se trate de cláusulas cujo incumprimento possa afectar um interesse público
especialmente relevante” (artigo 40º, nº 2, alínea c)).
40() Cfr. CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, p. 14.41() Cfr., a propósito, CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, p. 15, com referência ao disposto no artigo 187º do CPA. 42() Neste preciso sentido, cfr. CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, p. 15.
c) O artigo 40º, nº 2, alínea d), estende, entretanto, a legitimidade para a propositura de
acções dirigidas a obter a execução dos contratos às demais pessoas e entidades que, nos
termos do artigo 9º, nº 2, podem agir em defesa dos valores que esse preceito enuncia.
d) As referidas acções ainda podem ser propostas por quem tenha sido preterido no
procedimento que precedeu a celebração do contrato (artigo 40º, nº 2, alínea e)). Trata-se,
neste caso, de permitir que entidades que tenham sido preteridas — porventura, num concur-
so — por não terem oferecido condições tão vantajosas de execução possam reagir perante si-
tuações, muitas vezes já de antemão previsíveis, de incumprimento, por parte da entidade se-
leccionada, das condições de execução mais vantajosas a que esta se tinha comprometido e
que podem ter mesmo determinado que o contrato lhe tivesse sido adjudicado; e, de uma ma-
neira geral, de evitar que, na sua execução concreta, o contrato venha a sofrer desvios que se
consubstanciem numa alteração das condições objectivas, à luz das quais foram avaliadas as
capacidades dos candidatos à adjudicação (43).
2.2.2. Legitimidade activa nas acções de impugnação de actos administrativos (art. 55º
do CPTA)
71. O tema é regulado no artigo 55º, que se refere a oito categorias de pessoas e
entidades legitimadas a impugnar actos administrativos, pedindo a sua anulação ou a
declaração da sua nulidade ou inexistência.
a) Em primeiro lugar, tem legitimidade para impugnar quem alegue ser titular de um inte-
resse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos: cfr. artigo 55º, nº 1, alínea a).
A utilização da fórmula “interesse directo e pessoal”, em contraposição à ideia de lesão de
direitos ou interesses legalmente protegidos, que é apresentada como um exemplo e, assim,
como uma das suas formas de concretização possível, aponta no sentido de que a legitimidade
individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito
ou interesse legalmente protegido, mas se basta com a circunstância de o acto estar a
provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica
do autor, de modo que a anulação ou a declaração de nulidade desse acto lhe traz,
pessoalmente a ele, uma vantagem directa (ou imediata).
43() Cfr. CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, p. 16.
Como é da tradição do nosso contencioso administrativo (44), a anulação ou a declaração
de nulidade de actos administrativos pode ser, portanto, pedida a um tribunal administrativo
por quem nisso tenha interesse, no sentido em que reivindica para si próprio uma vantagem
jurídica ou económica que há-de resultar dessa anulação ou declaração de nulidade.
No que se refere aos requisitos do carácter “directo” e “pessoal”, deve, quanto a nós, ser
estabelecida uma clara distinção entre um e outro. Na verdade, só o carácter “pessoal” do in-
teresse diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade, na medida
em que se trata de exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou
a declaração de nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique
para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima
porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo.
Já o carácter “directo” do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um
interesse actual em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado.
Admitindo que o impugnante é efectivamente o titular do interesse, trata-se de saber se esse
interesse é actual, no sentido de que existe uma situação efectiva de lesão que justifique a
utilização do meio impugnatório. O requisito do carácter “directo” do interesse já não tem,
pois, que ver com a legitimidade processual, mas com a questão de saber se o alegado titular
do interesse (que, por isso, é parte legítima no processo) tem efectiva necessidade de tutela
judiciária — ou seja, tem que ver com o seu interesse processual ou interesse em agir.
Isto mesmo resulta da referência que o artigo 55º, nº 1, alínea a), faz, a título meramente
ilustrativo, à hipótese de o impugnante “ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou
interesses”. Repare-se que aqui se faz apelo a duas coisas diferentes: terá legitimidade a
pessoa que alegue ser titular do direito ou interesse e o seu interesse processual radica na
alegação de ter sido lesada nesse seu direito ou interesse: o interesse é pessoal (legitimidade
processual) e directo (interesse processual).
É, entretanto, de realçar que, de harmonia com a posição assumida sobre a matéria no
artigo 9º, nº 1, o preenchimento do requisito da legitimidade processual — entendido, recor-
de-se, como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa e não como
uma condição de procedência da acção, necessária à obtenção de uma pronúncia de
provimento — deixa, também neste domínio, de exigir a verificação da efectiva titularidade da
44() Cfr., a propósito, VIEIRA DE ANDRADE, O dever da fundamentação expressa de actos administra-tivos, Coimbra, 1991, pp. 101 segs.; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra, 1987, pp. 291 segs.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 2001, pp. 68-69.
situação jurídica invocada pelo autor, para se bastar com a alegação dessa titularidade. O que,
naturalmente, não impede, mas antes obriga o tribunal, logo que porventura verifique que o
interessado não é titular da situação jurídica alegada, a julgar, por esse facto, improcedente a
impugnação (45).
b) A acção pública continua, entretanto, a ser prevista, sem quaisquer limitações, no artigo
55º, nº 1, alínea b). O Ministério Público tem, portanto, legitimidade para impugnar todo e
qualquer acto administrativo, com o puro propósito de “defender a legalidade democrática e
promover a realização do interesse público” (artigo 51º do ETAF).
c) O CPTA reconhece também legitimidade para impugnar actos administrativos às
pessoas colectivas públicas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (artigo
55º, nº 1, alínea c)). Esta situação não se encontrava, até aqui, expressamente prevista na lei,
embora a jurisprudência viesse reconhecendo que também entidades públicas podiam impug-
nar actos administrativos em defesa de interesses próprios, no âmbito de relações jurídicas
inter-administrativas.
Como é evidente, para que a impugnação se inscreva nas incumbências de uma pessoa
colectiva pública, é necessário que o acto impugnado contenda com os interesses legalmente
estabelecidos como atribuições dessa pessoa colectiva. É o que sucede quando a pessoa
colectiva é destinatária do acto, cujos efeitos se projectam sobre a sua própria esfera jurídica.
Como também sucederá quando esteja em causa um acto praticado no exercício de uma
competência respeitante a uma matéria específica, em relação à qual a entidade pública
interessada em impugnar também tenha poderes de intervenção, quando esse acto ponha em
causa interesses que a essa entidade cumpra defender. Em qualquer dos casos, não é,
naturalmente, necessário que o poder de impugnar esteja expressamente previsto no quadro
das competências de algum dos órgãos da entidade pública em causa.
d) Repare-se que a previsão do artigo 55º, nº 1, alínea c), tem um duplo alcance, na me-
dida em que também reconhece legitimidade para impugnar actos administrativos às pessoas
colectivas privadas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender. Está aqui em
causa a previsão expressa da possibilidade, que já vinha sendo reconhecida pela
jurisprudência, de as associações de qualquer tipo (o que inclui associações políticas, sindicais
45() Já neste sentido, ainda à face da legislação anterior, cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1994, pp. 31-32 e 111-112.
e patronais) agirem em processo, no respeito pelo princípio da especialidade, em defesa dos
direitos e interesses dos seus associados.
e) O CPTA introduz, entretanto, a possibilidade de um órgão administrativo de uma
determinada pessoa colectiva de direito público impugnar actos praticados por outros órgãos
da mesma pessoa colectiva: cfr. artigo 55º, nº 1, alínea d).
Esta possibilidade de impugnação apenas deve ser admitida quando os actos em causa, no
específico contexto das relações inter-orgânicas em que se inscrevam, ponham em causa o di-
reito dos órgãos impugnantes ao exercício, sem interferências ou perturbações ilegais, de
competências independentes que lhes tenham sido atribuídas para a prossecução de
interesses específicos, pelos quais eles sejam directamente responsáveis (46). Nos nossos dias,
a realidade interna das entidades públicas tende, na verdade, a ser crescentemente
caracterizada por fenómenos de conflitualidade que decorrem de opções, ao nível da
distribuição de competências, assentes na atribuição aos diferentes órgãos de esferas de acção
própria e, portanto, na respectiva constituição como “sujeitos de ordenação e de imputação
final (não apenas transitória) de poderes e de deveres”, em posição de antagonismo perante
outros órgãos da mesma entidade pública (47). Por este motivo, o CPTA admite a
impugnabilidade de actos que, no plano intra-administrativo, sejam praticados por órgãos de
uma entidade pública e se dirijam a outros órgãos pertencentes a essa mesma entidade, no
âmbito do que tem sido qualificado como relações inter-orgânicas.
Verifica-se, assim, que, no ordenamento vigente, é possível a impugnação de actos sem
eficácia externa, que não se dirigem a fixar os direitos da Administração ou dos particulares, ou
os respectivos deveres, no âmbito das relações jurídicas que entre uma e outros se estabe-
lecem, e que, portanto, devem ser qualificados como internos (48). Ponto é que eles sejam im-
pugnados por quem, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 55º, possui legitimidade para o
efeito.
f) O artigo 55º, nº 1, alínea e), refere-se genericamente à possibilidade de outras auto-
ridades, para além do Ministério Público, serem legitimadas por lei avulsa a impugnar actos
administrativos em defesa da legalidade administrativa — fazendo, entretanto, menção
expressa a um desses casos, que se encontra previsto no artigo 14º, nº 4, do CPA e se refere à
46() Para mais desenvolvimentos quanto a este ponto, vejam-se as posições no mesmo sentido assumidas por PEDRO GONÇALVES, “A justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 35, pp. 20-23.47() Cfr. PEDRO GONÇALVES, op. cit., pp. 10-12.48() No mesmo sentido, cfr. PEDRO GONÇALVES, op. cit., p. 14.
legitimidade dos presidentes de órgãos colegiais para impugnarem actos praticados por esses
ógãos. O preceito confirma, pois, que só com fundamento em previsão normativa especial
podem os titulares de órgãos administrativos impugnar decisões dos respectivos órgãos.
Assim, por exemplo, o Presidente da Câmara tem legitimidade para impugnar as deliberações
camarárias, com fundamento no referido artigo 14º, nº 4, do CPA, mas já continuam a não a
ter os vereadores, na medida em que nenhuma norma lhes confere, enquanto tais, o poder de
impugnarem essas deliberações.
g) O artigo 55º, nº 1, alínea f), confirma a legitimidade das pessoas e entidades mencio-
nadas no nº 2 do artigo 9º para impugnarem actos administrativos que ponham em causa os
valores referidos nesse preceito. Note-se que a remissão é inócua na parte em que se refere
ao Ministério Público, na medida em que a legitimidade do Ministério Público para impugnar
actos administrativos já resulta do artigo 55º, nº 1, alínea b), e com um âmbito ilimitado e,
portanto, mais alargado do que o que resultaria da previsão do artigo 9º, nº 2.
h) O CPTA prevê, no artigo 55º, nº 2, a clássica acção popular local ou autárquica, de
profundas tradições no domínio do contencioso de impugnação de actos administrativos.
2.2.3. Legitimidade activa nas acções de condenação à prática de actos administrativos
(art. 68º, nº 1, do CPTA)
72. O tema é regulado no artigo 68º, que se refere a cinco categorias de pessoas e
entidades legitimadas a pedir a condenação da Administração à prática de actos
administrativos ilegalmente recusados ou omitidos.
a) Em primeiro lugar, tem legitimidade para pedir essa condenação quem alegue ser ti-
tular de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão do acto ilegalmente
recusado ou omitido: cfr. artigo 68º, nº 1, alínea a).
Repare-se que, ao contrário do que sucede no domínio da impugnação de actos admi-
nistrativos, o CPTA não se basta, para este efeito, com a mera invocação, pelo autor, da
titularidade de um mero interesse directo e pessoal. A dedução do pedido de condenação da
Administração à prática de um acto administrativo só está ao acesso de quem tenha direito ou,
pelo menos, um interesse legalmente protegido à emissão de um acto que foi ilegalmente
recusado ou omitido.
A legitimidade para pedir essa condenação pressupõe, portanto, a própria legitimidade
para requerer a prática do acto. Como claramente resulta do artigo 67º, nº 1, na base da de-
dução do pedido de condenação tem, na verdade, de estar a prévia apresentação de um re-
querimento que tenha constituído a Administração no dever de decidir e, portanto, a legiti-
midade do autor para apresentar esse requerimento. Só nesse caso existe, com efeito, uma
situação de omissão ou recusa juridicamente relevante, para o efeito de permitir, nos termos
daquele preceito, a dedução de um pedido de condenação, dirigido contra a Administração.
Os pedidos de condenação da Administração à prática de actos administrativos têm, pois,
uma carga de tutela subjectiva, de protecção de direitos ou interesses individuais, muito
superior à que corresponde aos pedidos de anulação ou de declaração de nulidade de actos
administrativos, que o CPTA, no seguimento da tradição do contencioso administrativo de tipo
francês, continua a colocar ao acesso de um mais amplo leque de potenciais interessados —
no pressuposto de que os actos administrativos de conteúdo positivo tendem a ser
potencialmente lesivos de um maior número de pessoas e a suscitar necessidades acrescidas
de controlo, do ponto de vista da tutela da própria legalidade objectiva, do que os actos
administrativos de indeferimento, que se limitam a recusar a introdução de certas
modificações na ordem jurídica.
b) A exemplo do que sucede, por força do artigo 55º, nº 1, alínea c), no domínio da im-
pugnação de actos administrativos, o CPTA também reconhece legitimidade para pedir a
condenação à prática de actos administrativos às pessoas colectivas públicas, quanto aos di-
reitos e interesses que lhes cumpra defender: cfr. artigo 68º, nº 1, alínea b).
c) Do mesmo modo, o artigo 68º, nº 1, alínea b), também reconhece legitimidade para
pedir a condenação à prática de actos administrativos às pessoas colectivas privadas, quanto
aos direitos e interesses que lhes cumpra defender. Nada de específico há, agora, a
acrescentar ao que foi dito a propósito do artigo 55º, nº, 1, alínea c). Apenas há, neste
domínio, que esclarecer, em cada caso, se as entidades em causa estão em condições de
invocar a titularidade de um direito ou interesse que as habilite a requerer a emissão de um
acto administrativo, em termos de constituir o órgão competente no dever de decidir, para o
efeito de ficarem habilitadas a exigir, em caso de recusa ou omissão por parte desse órgão, a
condenação à prática do acto ilegalmente recusado ou omitido.
d) O CPTA também reconhece legitimidade ao Ministério Público para pedir a condenação
da Administração à prática de actos administrativos (artigo 68º, nº 1, alínea c)). Ao contrário,
porém, do que sucede no domínio da impugnação de actos administrativos, a acção pública
não intervém neste domínio sem quaisquer limitações, com o genérico propósito de “defender
a legalidade democrática e promover a realização do interesse público” (artigo 51º do ETAF).
Em primeiro lugar, o Código pressupõe que o Ministério Público não possui o poder
genérico de apresentar requerimentos que constituam a Administração no dever de decidir e
não pretende conferir-lhe um tal poder. Por conseguinte, ele circunscreve o âmbito do
exercício da acção pública às situações de omissão ilegal em que o dever de praticar o acto ad-
ministrativo resulte directamente da lei, sem depender da eventual apresentação de um
requerimento para que se constitua na esfera do órgão competente. O exercício da acção
pública neste domínio não está, pois, dependente da prévia apresentação, por parte do
Ministério Público, de um requerimento dirigido ao órgão competente para agir e do
susbequente esgotamento de um prazo.
Por outro lado, o Código não pretende instituir o Ministério Público como guardião contra
toda e qualquer situação de incumprimento ilegal de deveres de actuação jurídica que a lei
imponha aos órgãos da Administração. Por conseguinte, apenas o admite a pedir a
condenação da Administração quando a omissão de actos administrativos legalmente devidos
ofenda direitos fundamentais ou ponha em causa um interesse público especialmente
relevante ou qualquer dos valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º. A actuação do
Ministério Público, no domínio da condenação da Administração à prática de actos adminis-
trativos, não pode, portanto, dirigir-se apenas a assegurar o cumprimento da lei, mas tem de
ter em vista a defesa de valores constitucionalmente protegidos. Com o que se confirma que o
Código não atribui aos mecanismos de reacção contra a omissão ilegal de actos administrativos
a mesma função de tutela da legalidade objectiva que associa à impugnação de actos
administrativos (de conteúdo positivo).
e) O artigo 68º, nº 1, alínea d), confirma, por último, a legitimidade das pessoas e enti-
dades mencionadas no nº 2 do artigo 9º para pedir a condenação da Administração à prática
de actos administrativos cuja recusa ou omissão ponha em causa os valores referidos nesse
preceito. A exemplo do que sucede com o artigo 55º, nº 1, alínea f), também neste caso a
remissão não vale na parte em que se refere ao Ministério Público, na medida em que a
legitimidade do Ministério Público para impugnar actos administrativos já resulta, como se
acaba de ver, do artigo 68º, nº 1, alínea c), e com um âmbito mais alargado, que
expressamente compreende as situações enunciadas no artigo 9º, nº 2, mas não se esgota
nelas.
2.2.4. Legitimidade activa nas acções de impugnação e declaração de ilegalidade por
omissão de regulamentos (arts. 73º e 77º do CPTA)
73. Legitimidade para impugnar regulamentos — O tema é regulado no artigo 73º, que se
refere a quatro categorias de pessoas e entidades legitimadas a pedir a declaração da
ilegalidade de normas emanadas no exercício da função administrativa ou, no dizer da lei, “ao
abrigo de disposições de direito administrativo”.
a) Em primeiro lugar, o artigo 73º, nº 1, reconhece legitimidade para pedir a declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral a quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou
possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma
tenha sido recusada por qualquer tribunal, em três casos concretos, com fundamento na sua
ilegalidade.
b) Por outro lado, o artigo 73º, nº 2, reconhece, desde logo, legitimidade para pedir a de-
claração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto a quem seja directamente
lesado por normas cujos efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de actos con-
cretos de aplicação.
c) O pedido referido na alínea anterior também pode ser deduzido, nos termos do artigo
73º, nº 2, por qualquer das pessoas e entidades mencionadas no artigo 9º, nº 2, para defesa
dos valores mencionados nesse preceito.
d) O artigo 73º, nº 3, confere, por último, ao Ministério Público o poder de pedir a de-
claração de ilegalidade com força obrigatória geral sem necessidade da verificação da recusa
de aplicação em três casos concretos, a que se refere o nº 1. A exemplo do que sucede no
domínio da impugnação de actos administrativos, o CPTA também confere, deste modo, uma
função de protecção da legalidade objectiva à impugnação de regulamentos. O artigo 73º, nº
3, prevê que este pedido possa ser deduzido pelo Ministério Público oficiosamente ou
mediante requerimento apresentado pelas pessoas e entidades mencionadas no artigo 9º, nº
2, para defesa dos valores aí mencionados, às quais assiste a faculdade de se constituirem
como assistentes no processo. De acordo com o artigo 73º, nº 4, a dedução do pedido pelo
Ministério Público é obrigatória se tiverem sido proferidas três sentenças de desaplicação da
norma ou normas em causa.
74. Legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos — O
tema é regulado no artigo 77º, nº 1, que se refere a três categorias de pessoas e entidades
legitimadas a pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares
necessárias para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação.
a) A primeira entidade a ser referida é o Ministério Público. A acção pública é prevista,
neste domínio, sem quaisquer limitações. A exemplo do que, como vimos, sucede nos
domínios da impugnação de actos administrativos (artigo 55º) e de normas (artigo 73º), o
Ministério Público tem, portanto, legitimidade para reagir contra a omissão ilegal de toda e
qualquer norma regulamentar, no puro propósito de “defender a legalidade democrática e
promover a realização do interesse público” (artigo 51º do ETAF).
b) O artigo 77º, nº 1, estende, entretanto, a legitimidade que acaba de ser referida às
demais pessoas e entidades que, nos termos do artigo 9º, nº 2, podem agir em defesa dos
valores que esse preceito enuncia.
c) Tem, por fim, legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade por omissão de nor-
mas regulamentares quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de
omissão.
3. Regime do interesse processual
3.1. Interesse processual nas acções de simples apreciação e inibitórias
75. A exemplo do que sucede com o CPC alemão, o CPTA não consagra, em termos gerais,
o interesse em agir como um pressuposto processual, mas contém uma referência expressa a
este requisito, no artigo 39º, a propósito das situações em que o problema reconhecidamente
se coloca com maior acuidade, e que se prendem com as acções meramente declarativas ou de
simples apreciação, que visam acorrer a lesões efectivas, resultantes da existência de situações
graves de incerteza objectiva, ou a ameaças de lesão, resultantes do fundado receio da verifi-
cação de condutas lesivas num futuro próximo, determinadas por uma incorrecta avaliação da
situação existente (49).
Como, entretanto, resulta do CPC alemão (§ 259), outro domínio, muito próximo deste,
em que se coloca o mesmo problema da existência de interesse em agir é o das acções de con-
denação à prática ou abstenção de condutas no futuro. Embora a letra do preceito não as
contemple, também a estas situações não se pode deixar, por isso, de considerar aplicável o
regime do artigo 39º.
3.2. “Interesse directo” na impugnação de actos administrativos
76. Como já foi referido, no artigo 55º, nº 1, alínea a), misturada com a questão da
legitimidade, surge uma manifestação do requisito do interesse processual na exigência do
carácter “directo” ao interesse individual para impugnar actos administrativos. Com efeito,
quando se exige que o interesse do impugnante seja directo, no sentido, tradicionalmente
construído neste domínio, em que ele deve ser actual, está a fazer-se apelo à ideia de que o
impugnante deve estar constituído numa situação de efectiva necessidade de tutela judiciária.
E o mesmo resulta, como já tinha sido antecipado, da referência que o artigo 55º, nº 1,
alínea a), faz, a título meramente ilustrativo, à hipótese de o impugnante “ter sido lesado pelo
acto nos seus direitos ou interesses”. Também neste plano se faz apelo simultâneo a duas
ideias diferentes: possui legitimidade quem alegue ser titular do direito ou interesse e o seu
interesse processual radica na alegação de ter sido lesado nesse seu direito ou interesse, cir-
cunstância da qual advém o interesse directo (interesse processual) em demandar. Retomando
os exemplos ainda há pouco figurados, não basta, pois, que o impugnante alegue ser proprie-
tário de um prédio em relação ao qual corre um procedimento de declaração de utilidade
pública ou que o funcionário alegue ser arguido num procedimento disciplinar: a admis-
sibilidade da utilização da via impugnatória pressupõe a ocorrência de uma circunstância con-
creta que tenha feito nascer a necessidade de recorrer aos tribunais.
Daqui resulta que muitas das questões que, no domínio da impugnação dos actos adminis-
trativos, são tradicionalmente colocadas, com resultados insatisfatórios, a propósito do pro-
blema da impugnabilidade dos actos administrativos (problema que deve ser exclusivamente
situado no plano — objectivo — da natureza desses actos) devem ser colocadas a propósito
dos problemas da legitimidade e do interesse processual de quem pretende reagir contra eles
49() Para a ilustração de situações cobertas pela previsão do artigo 39º, cfr. CARLOS CADILHA, “Legitimidade processual”, p. 17. O mesmo faz o CPC alemão (ZPO), no § 256.
(problema situado no plano — subjectivo — da utilidade concreta que pode advir, para cada
interessado, da anulação ou da declaração de nulidade de cada um desses actos).
É assim que um mesmo acto administrativo pode ser impugnado por certos interessados e
já não por outros, embora tenha a mesma natureza objectiva. Se um acto administrativo pode
ser impugnado por alguém, ele não pode deixar, objectivamente, de ser qualificado como
impugnável. A questão que, a partir daí, se há-de colocar é, pois, a de apurar, em cada caso
concreto, se quem se propõe impugnar esse acto se apresenta como parte legítima e, por
outro lado, se está efectivamente colocado em situação que, do ponto de vista do interesse
em agir, fundamente a necessidade de recorrer à via judicial.
Situa-se, pois, no plano do interesse processual a questão que, no domínio da impugnação
de actos administrativos, se coloca de saber se as consequências que o acto sob impugnação
alegadamente projecta sobre o impugnante são de molde a justificar que ele lance mão da via
judicial. E repare-se que falamos em consequências na medida em que, ao contrário do que
era tradicional, o CPTA não erige a eficácia dos actos administrativos como conditio sine qua
non para que eles possam ser impugnados, admitindo, no artigo 54º, que mesmo em relação a
actos administrativos ineficazes se possam constituir situações de interesse em agir que
justifiquem a impugnação.
Na verdade, a eficácia dos actos administrativos é tradicionalmente apontada como um
requisito da respectiva impugnabilidade, pelo que só podem ser impugnados os actos
administrativos que produzam efeitos. Este é o ponto de partida das soluções consagradas no
artigo 54º (50). A verdade, porém, é que a eficácia é um elemento extrínseco do acto
administrativo, que não se prende com a sua substância, mas com a sua circunstância. Por
conseguinte, a relevância da eficácia do acto, para efeitos da determinação da sua
impugnabilidade, não tem que ver com a substância do acto, com a questão da natureza
(intrínseca) dos efeitos que ele se destina a introduzir na ordem jurídica, mas com a questão
50() Faça-se, em todo o caso, notar que quando tradicionalmente se diz que a eficácia dos actos administrativos é requisito da respectiva impugnabilidade, o que pretende dizer-se é que os actos administrativos não podem ser impugnados enquanto não se tiverem preenchido os pressupostos de que depende o início da produção dos seus efeitos. Como já sabemos, é, com efeito, possível a impugnação de actos administrativos nulos, com vista à declaração da respectiva nulidade (cfr. artigo 50º, nº 1). Ora, os actos administrativos nulos não produzem quaisquer efeitos jurídicos (cfr. artigo 134º, nº 1, do CPA). Como é evidente, a eficácia não pode ser, por isso, requisito da impugnação de um acto nulo. O que se pretende é evitar a impugnação de actos que, admitindo que sejam válidos e, portanto, abstraindo da questão da sua (in)validade, não preencham os requisitos de que dependa a produção dos seus efeitos. Pense-se apenas nos exemplos do acto que, devendo ser obrigatoriamente publicado, não o tenha sido, ou que esteja sujeito a condição suspensiva ou termo inicial.
(extrínseca) de saber se ele origina consequências que, em determinado momento, justifiquem
a sua impugnação por aquele concreto autor.
A regra da inimpugnabilidade do acto ineficaz assenta no argumento de que o acto
ineficaz (ainda) não introduz qualquer modificação na ordem jurídica que possa ser removida
através da anulação do acto ou origine uma situação de facto que fundamente a necessidade
da declaração da sua nulidade. Pelo contrário, se o acto for objecto de execução, já se
actualiza uma situação de necessidade de tutela que justifica o recurso à via judicial.
Como se vê, a questão resume-se, pois, a saber se existe interesse em agir judicialmente
contra um acto administrativo que não esteja em condições de projectar os seus efeitos na
ordem jurídica. Em princípio, parte-se da presunção de que não existe interesse em impugnar
actos administrativos que (ainda) não estejam em condições de lesar ninguém. Mas admite-se
que a existência de uma situação de lesão efectiva, resultante da execução ilegítima do acto
ineficaz, já faz nascer o interesse em lançar mão da via judicial.
É, pois, nesta perspectiva que devem ser lidas as soluções consagradas no artigo 54º é,
deste modo, um artigo sobre o interesse processual em demandar: no caso, em impugnar
actos administrativos ineficazes. A exemplo do que sucede com o artigo 39º, também ele tem,
na verdade, em vista situações em que o problema da existência de um interesse em agir se
coloca com acuidade, na medida em que se pode dizer que há uma presunção de que não
existe interesse directo, actual em impugnar actos administrativos que ainda não produzem
efeitos na ordem jurídica porque (ainda) não lesaram ninguém. Tal como nas hipóteses do
artigo 39º, têm-se, por isso, em vista, no artigo 54º:
a) Situações de lesão efectiva, resultantes de condutas ilegítimas, destituídas de funda-
mento jurídico — no artigo 39º, as situações de incerteza, porventura decorrentes de afir-
mações ilegítimas da Administração; no artigo 54º, nº 1, alínea a), as situações de execução
ilegítima do acto ineficaz. Excepção tradicionalmente admitida à regra da inimpugnabilidade
dos actos administrativos ineficazes é, na verdade, a de o acto ter sido objecto de execução,
embora sem preencher os requisitos necessários para o efeito (51). Quem for objecto da
execução de um acto administrativo ineficaz, é, assim, admitido a impugnar esse acto —
solução que o artigo 54º retoma, no seu nº 1, alínea a) (cfr. também o artigo 59º, nº 2) (52). O
51() Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10ª ed. (reimpressão), Coimbra, 1986, p. 1333; FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. IV, policop., Lisboa, 1989, pp. 149-150.52() Embora com o cuidado de distinguir, no nº 2, a questão da impugnabilidade do acto ilegalmente exe-cutado da questão da tutela contra a execução ilegítima do acto, que passa a poder ser actuada, como re-fere o preceito, através de “outros meios de tutela”. Na verdade, o facto de, no artigo 54º, nº 1, alínea a),
artigo 59º, nº 7, estende, entretanto, ao Ministério Público a possibilidade de impugnar actos
ineficazes cuja execução já tenha sido desencadeada.
b) Situações de ameaça de lesão, resultantes do fundado receio da verificação, num futuro
próximo, de cirucunstâncias lesivas — no artigo 39º, o receio da adopção de condutas lesivas
sem que tenha sido já praticado um acto administrativo; no artigo 54º, nº 1, alínea b), o receio
das consequências lesivas que resultarão da produção de efeitos e eventual execução do acto
(ainda) ineficaz. O artigo 54º, nº 1, alínea b), estende as situações em que é de admitir a
existência de interesse em agir contra actos ineficazes às situações em que, “segundo um juízo
de normalidade, e de acordo com a experiência da vida, haja fortíssima probabilidade ou
quase certeza” (53) de que o acto irá produzir efeitos e, portanto, exista um fundado receio das
consequências que resultarão da produção de efeitos e eventual execução do acto (ainda)
ineficaz. A solução flexibiliza os critérios a adoptar neste domínio, afastando-os da aplicação
rígida do critério da eficácia ou ineficácia dos actos administrativos, para os reconduzir à veri-
ficação da existência, em cada caso concreto, de uma situação de necessidade de tutela e,
portanto, de interesse em agir em juízo (54).
Resta acrescentar que o ónus da impugnação tempestiva dos actos administrativos só se
constitui uma vez preenchidos os requisitos de que depende a respectiva eficácia, pelo que só
a partir desse momento passam a correr os respectivos prazos de impugnação. É o que resulta
do artigo 54º, nº 1, que apenas configura a impugnação de actos ineficazes como uma possibi-
se admitir a impugnação imediata do acto administrativo ainda ineficaz que seja objecto de execução não contende com o reconhecimento do natural direito de tutela contra a própria inexecução ilegítima. É o que justamente se faz notar no artigo 54º, nº 2. Subjacente ao preceito, na referência que faz a “outros meios de tutela”, está, entretanto, a nova perspectiva do CPTA de abandonar a tradicional tendência para centrar a tutela dos particulares na utilização de vias de impugnação. Como é óbvio, o meio adequado para reagir contra a execução ilegítima de um acto administrativo ineficaz não é necessariamente o processo de im-pugnação de actos administrativos. Se a execução se consubstanciar numa pura operação material, estaremos perante uma situação contra a qual o interessado poderá reagir por outras vias, que poderão consistir na propositura de uma acção inibitória de cessação, segundo a forma da acção administrativa comum (cfr. artigo 37º, nº 2, alínea c)), ou mesmo, se se preencherem os respectivos pressupostos, de um processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (processo sobre o qual cfr. artigo 109º). Nesta nova perspectiva se impõe, pois, a leitura hábil dos conceitos de impugnar e de impugnação que são utilizados no artigo 151º do CPA, quando reportados a operações de execução.53() Para utilizar expressões de MÁRIO TORRES, “Relatórios de síntese”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 28, p. 65.54() No respeito pelo artigo 7º, que impede o juiz administrativo de proceder a uma interpretação restritiva de preceitos como este e, pelo contrário, exige que ele os interprete num sentido que deles permita extrair todas as virtualidades que eles comportam, caberá, pois, à jurisprudência determinar o alcance desta fórmula genérica que, a título meramente exemplificativo, o preceito, no entanto, ilustra por referência à hipótese de “a ineficácia se dever apenas ao facto de o acto se encontrar dependente de termo inicial ou de condição suspensiva cuja verificação seja provável, nomeadamente por depender da vontade do beneficiário” — hipótese porventura mais óbvia, entre outras possíveis: basta pensar no exemplo da decisão de realizar um empreendimento público em que a vontade política da sua rápida concretização seja indiscutível, estando apenas dependente do cumprimento de meras formalidades integrativas de efi-cácia.
lidade, e não como um ónus sujeito a prazo, e, ainda assim, de âmbito circunscrito às hipó-
teses aí previstas.
3.3. O interesse dependente da utilização de eventual impugnação administrativa
necessária
77. Ainda é no plano da existência de interesse processual que fundamente a necessidade
de recorrer à via judicial que, a nosso ver, se coloca a questão de saber se o autor que impugna
um acto administrativo procedeu à prévia impugnação desse acto perante o órgão
administrativo competente, nos casos em que lei especial faça depender o recurso à via
judicial da prévia utilização de mecanismos de impugnação administrativa.
Cumpre começar por esclarecer que o CPTA não exige, em termos gerais, que os actos
administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam
ser objecto de impugnação contenciosa. Das soluções consagradas nos artigos 51º e 59º, nºs 4
e 5, decorre, por isso, a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é
necessária para aceder à via contenciosa. E, portanto, de que não é necessário, para haver
interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o
autor demonstre ter tentado infrutiferamente obter a remoção do acto que considera ilegal
por via extrajudicial. Tal como sucede em processo civil, “são variadas e ponderosas as razões
capazes de justificar o recurso directo à via judiciária e não parece razoável exigir do autor a
explicação determinante da sua opção” (55).
O CPTA não tem, porém, o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas
que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desa-
parecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideram ex-
tintas. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se
que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os
tribunais administrativos, sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação
administrativa. A impugnação de actos administrativos pode estar, no entanto, dependente do
ónus da prévia utilização, pelo impugnante, de vias de impugnação administrativa quando isso
esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do
legislador, nos casos em que este a considere justificada. Nesses casos, a lei faz depender o
reconhecimento de interesse processual ao autor — ou seja, o reconhecimento da sua
55() Cfr. ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, p. 185.
necessidade de tutela judiciária — da utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar
obter a resolução do litígio por via extrajudicial.
Subjacente à posição que se acaba de exprimir está, naturalmente, a rejeição do argumen-
to da inconstitucionalidade da imposição de impugnações administrativas necessárias, que na
doutrina tem sido deduzido da circunstância de, na revisão de 1989, ter sido eliminada do en-
tão artigo 268º, nº 3, da CRP a referência que dele inicialmente constava à definitividade dos
actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa (56). Rejeição fundada no
argumento — subscrito, aliás, tanto pelo Tribunal Constitucional, como pelo Supremo Tribunal
Administrativo — de que não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa
depender a impugnação dos actos administrativos, em termos de se poder afirmar que eles só
são legítimos se forem objecto de expressa previsão constitucional. Questão diferente já se co-
locará se o legislador ordinário impuser requisitos de tal modo excessivos e desproporcionados
que se concretizem num condicionamento ilegítimo ao direito fundamental de acesso à justiça
administrativa.
Ora, se um interessado impugnar um acto administrativo perante os tribunais sem ter fei-
to uso da impugnação administrativa necessária que ao caso a lei expressamente fazia corres-
ponder, a sua pretensão deve ser rejeitada porque a lei não lhe reconhece o interesse pro-
cessual que, no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter tentado infrutiferamente
obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.
Repare-se que o acto, em si mesmo, não mudou de natureza pelo facto de não ter sido
objecto da necessária impugnação administrativa e a própria posição material do interessado
em relação ao acto também não se alterou: se ele era, por hipótese, destinatário do acto, que
na sua esfera jurídica projecta os seus efeitos, essa circunstância também não se alterou. O
problema é exclusivamente um problema de interesse em aceder à Justiça, como bem de-
monstra a circunstância de a imposição de impugnações administrativas necessárias poder ser
motivada, tal como sucede, em termos gerais, com a exigência do requisito do interesse
processual, pelo duplo propósito de “evitar que as pessoas [no caso, as entidades
administrativas] sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, para organizarem, sob co-
minação de uma sanção grave, a defesa dos seus interesses, numa situação em que a situação
da parte contrária [no caso, o impugnante] o não justifica” (recorde-se que a utilização das
impugnações administrativas necessárias suspende os efeitos das decisões impugnadas) e de
56() Para o argumento referido no texto, cfr., por todos, V. PEREIRA DA SILVA, Ventos de mudança…, pp. 11 e 88-89; PAULO OTERO, “As garantias impugnatórias dos particulares no Código do Pro-cedimento Administrativo”, Scientia Ivridica, vol. XLI (nº 235/237), pp. 58 segs.
“não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos tribunais, cujo tempo é
escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção
jurisdicional” (57).
§ 2º - Os demandados: legitimidade passiva
Regime geral da legitimidade passiva (art. 10º do CPTA); em particular, a legitimidade
passiva de órgãos públicos (art. 10º, nº 6); em particular, a legitimidade passiva de
particulares (arts. 10º, nº 7, e 37º, nº 3, do CPTA)
1. Regime geral da legitimidade passiva (art. 10º do CPTA)
78. O regime regra em matéria de legitimidade passiva é o que consta do artigo 10º, nº 1,
que, tal como sucede com o artigo 9º, nº 1, retoma o essencial das soluções consagradas no
artigo 26º do CPC. À partida, a legitimidade passiva corresponde à contraparte na relação
material controvertida, tal como esta é configurada pelo autor. O autor deve, portanto, de-
mandar em juízo quem alegadamente estiver colocado, no âmbito dessa relação, em posição
contraposta à sua.
2. Em particular, a legitimidade passiva de entidades públicas
79. Como já sabemos e é claramente assumido no artigo 10º, nº 7, nem só entidades pú-
blicas podem ser demandadas perante os tribunais administrativos. O CPTA dá, no entanto,
especial atenção às situações em que as acções são propostas contra entidades públicas, o que
se compreende, não propriamente por elas corresponderem à esmagadora maioria dos casos,
57() Cfr. ANTUNES VARELA et alii, op. cit., p. 182.
mas porque o Código procede, no artigo 10º, a uma importante alteração do critério de
determinação da legitimidade passiva que tradicionalmente era adoptado nos processos de
impugnação de actos administrativos (cfr. artigo 26º da LPTA) e que o artigo 70º, nº 1, da LPTA
tinha estendido às acções para reconhecimento de direitos ou interesses legítimos.
O CPTA consagra, no artigo 10º, nº 2, a regra de que, nos processos em que estejam em
causa acções ou omissões de entidades públicas, “parte demandada é a pessoa colectiva de di-
reito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto impug-
nado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os com-
portamentos pretendidos”.
Resulta, pois, do artigo 10º que, por regra, em todas as acções que, no contencioso ad-
ministrativo, sejam intentadas contra entidades públicas, a legitimidade passiva corresponde à
pessoa colectiva e não a um órgão que dela faça parte. Quando esteja em causa uma conduta,
activa ou omissiva, de um órgão do Estado que esteja integrado num Ministério, a legitimidade
passiva é do Ministério a que o órgão pertence.
Como expressamente determina o artigo 10º, nº 6, só no âmbito de litígios entre órgãos
da mesma pessoa colectiva — pense-se no exemplo de uma Câmara Municipal que pretende
uma autorização ilegalmente recusada pela Assembleia Municipal — é que a legitimidade
pertence a um órgão administrativo e não à pessoa colectiva ou ao Ministério a que esse órgão
pertence. Cumpre ter, em todo o caso, presente que há processos dirigidos contra entidades
públicas em que demandada é a pessoa colectiva ou o Ministério e processos em que é o
órgão.
Porque, entretanto, se afigura justificado que, nos processos em que esteja em causa a
actuação ou omissão de um determinado órgão administrativo, ainda que se trate de um
órgão subordinado a poderes hierárquicos, seja esse órgão a conduzir a defesa da conduta
adoptada, admite-se, no artigo 11º, nº 5, que, nesses casos, possa ser ele a designar o repre-
sentante em juízo da pessoa colectiva ou do Ministério.
Porque a tradição é, no entanto, a da indicação do órgão na petição inicial; porque, em
muitas situações, o autor no processo não terá dificuldade em identificar esse órgão e poderá,
mesmo, preferir fazê-lo; e porque a indicação do órgão na petição pode trazer vantagens, na
medida em que, sendo a citação directamente dirigida ao órgão, poderá ser mais célere o
envio, por parte da entidade demandada, da contestação e demais documentos pertinentes,
os artigos 10º e 78º admitem que, mesmo que a legitimidade passiva corresponda à pessoa
colectiva ou ao Ministério, o autor indique, na petição, o órgão que praticou o acto impugnado
ou aquele perante o qual tinha sido formulada a sua pretensão (cfr. artigos 10º, nº 4, e 78º, nº
2, alínea i), e nº 3).
Se, no exercício desta faculdade, o autor incorrer em erro quanto à identificação do órgão,
levando a que a secretaria proceda à citação do órgão errado, determina o artigo 81º que o
órgão citado dê imediato conhecimento da citação ao órgão que o deveria ter sido e que,
dadas as circunstâncias, beneficia de um prazo suplementar de quinze dias para contestar e
enviar para o tribunal o eventual processo administrativo.
Repare-se que estas últimas vicissitudes só terão, porém, lugar na medida em que não
exista ilegitimidade passiva quanto à petição apresentada — isto é, na medida em que, sendo
a pessoa colectiva ou o Ministério a que pertence o órgão que foi citado parte legítima no pro-
cesso, se deve entender que ela foi citada na medida em que a citação foi dirigida a um dos
seus órgãos, pelo que apenas se impõe remeter a questão, dentro da pessoa colectiva ou do
Ministério, à apreciação do órgão que efectivamente praticou ou devia ter praticado o acto em
causa. Já se, pelo contrário, o erro cometido na petição implicar a citação de um órgão de uma
pessoa colectiva ou de um Ministério que não tem legitimidade passiva no processo, não se
aplica o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 81º.
O regime do artigo 81º, nºs 2 e 3, está, pois, condicionado ao preenchimento do
pressuposto do artigo 78º, nº 3. Ele apenas se destina a intervir quando se possa afirmar que a
pessoa colectiva ou o Ministério a demandar o foi devidamente, por na petição ter sido pedida
a citação de um órgão dessa pessoa colectiva ou desse Ministério — com o que “a citação que
venha a ser dirigida ao órgão se considera feita, nesse caso, à pessoa colectiva ou ao Ministério
a que o órgão pertence” (artigo 78º, nº 3) —, embora tenha havido erro na identificação do
órgão, dentro da pessoa colectiva ou do Ministério a demandar. De outro modo, deverá ser
corrigida a petição, por forma a assegurar o correcto prosseguimento da acção, com a devida
citação da entidade a quem efectivamente corresponde a legitimidade passiva, sem que,
repare-se, haja lugar à formulação de um juízo, por parte do tribunal, sobre a desculpabilidade
do erro (58).
58() Já num sentido generoso, com apoio no direito alemão, quanto à possibilidade de correcção da petição na qual tivesse havido erro quanto à identificação da autoridade recorrida, cfr. SÉRVULO CORREIA, “Errada identificação do autor do acto recorrido; direcção do processo pelo juiz; efectividade da garantia constitucional de recurso contencioso; repressão da violação da legalidade”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 54 (1994), III, pp. 866 segs.
3. Em particular, a legitimidade passiva de particulares (arts. 10º, nº 7, e 37º, nº 3, do
CPTA)
80. O artigo 10º, nº 7, estabelece que “podem ser demandados particulares ou
concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com
entidades públicas ou com outros particulares”.
O sentido mais óbvio e, ao mesmo tempo, mais importante deste preceito é o de tornar
claro, com a maior abrangência possível, algo que já sabemos: que os processos intentados
perante os tribunais administrativos não têm necessariamente de ser dirigidos contra
entidades públicas, mas podem ser dirigidos contra (ou também contra) particulares.
Ao contrapor “particulares” a “concessionários”, o artigo 10º, nº 7, clarifica, entretanto,
dois aspectos. Em primeiro lugar, que os particulares podem ser demandados a título principal
no processo administrativo. Em segundo lugar, que no preceito em análise não se tem apenas
em vista a situação dos particulares que sejam concessionários de bens, serviços ou poderes
públicos, podendo haver também processos dirigidos, a título principal, contra particulares
que não tenham o estatuto de concessionários.
§ 3º - As situações de legitimidade plural
81. O CPTA admite nos mais amplos termos a existência de situações de pluralidade de
partes, seja sob a forma da coligação, seja sob a forma do litisconsórcio, necessário ou
voluntário.
O Código é, na verdade, bastante claro no que toca à definição do regime da coligação,
consagrado no artigo 12º, com âmbito geral para todo o contencioso administrativo.
Por outro lado, resulta da natureza das coisas e da aplicabilidade supletiva do CPC a pos-
sibilidade da existência de situações de litisconsórcio necessário sempre que se preencham os
requisitos genericamente previstos no artigo 28º do CPC; como também é supletivamente
aplicável ao contencioso administrativo o regime do CPC no que se refere ao litisconsórcio
voluntário.
Ao referir-se genericamente à possibilidade de particulares serem demandados “no
âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com
outros particulares”, o artigo 10º, nº 7, tem, aliás, nesse sentido, o alcance de admitir, nos
mais amplos termos, a possibilidade da constituição de situações de litisconsórcio voluntário
passivo ou de pluralidade subjectiva subsidiária do lado passivo (59), quando se discutam
relações jurídicas que digam simultaneamente respeito a entidades públicas e a entidades
privadas, abrindo, desse modo, a porta à aplicação supletiva do disposto nos artigos 27º e 31º-
B do CPC.
82. O artigo 10º, nº 1, tem, entretanto, o cuidado de fazer referência à eventual ne-
cessidade de a acção não ser apenas proposta “contra a outra parte na relação material
controvertida”, mas também, “quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares
de interesses contrapostos aos do autor”. A referência dirige-se claramente aos chamados
contra-interessados, categoria que o CPTA expressamente prevê nos artigos 57º e 68º, nº 2, e
que se pode definir como correspondendo às pessoas cuja esfera jurídica pode ser
directamente afectada pela decisão a proferir no processo.
Não é por acaso que o Código faz referência específica aos contra-interessados nos artigos
57º e 68º, nº 2 — a propósito, portanto, da impugnação de actos administrativos e da con-
denação à prática desse tipo de actos. Trata-se, na verdade, de domínios em que a acção é
proposta contra a Administração, contra a entidade que praticou ou que omitiu ou recusou o
acto administrativo, mas em que há sujeitos que também são partes no litígio, na medida em
que os seus interesses coincidem com os da Administração e podem ser directamente
afectados na sua consistência jurídica com a procedência da acção. Neste ponto reside a
especificidade da situação, que justifica a sua autonomização em relação à previsão genérica,
de âmbito bem mais alargado, como se viu, do artigo 10º, nº 7.
As relações jurídicas relacionadas com o exercício de poderes de autoridade por parte da
Administração são, na verdade, frequentemente complexas, multipolares, envolvendo um con-
junto alargado de pessoas cujos interesses são afectados pela actuação, num sentido ou
noutro, da Administração. Se, num caso concreto, há um interessado que pretende a anulação 59() Em geral sobre o tema, cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, pp. 151 segs.
de um acto administrativo que considera ilegal ou a prática de um acto administrativo que
considera devido, é normal que também existam interessados que, sendo beneficiários do acto
ilegal ou podendo ser afectados pelo acto devido, tenham interesse em que ele não seja anu-
lado e, pelo contrário, se mantenha na ordem jurídica, ou que ele não seja praticado e,
portanto, tudo se mantenha como está.
Basta pensar no exemplo da impugnação de uma licença de construção: ao interesse do
vizinho que pretende a anulação dessa licença, contrapõe-se, pelo menos, o interesse do pro-
prietário em cuja esfera jurídica a licença constituiu o direito de construir. Ou no exemplo da
condenação à emissão de uma ordem de demolição: ao interesse do vizinho que pretende a
demolição, contrapõe-se, pelo menos, o interesse do proprietário do imóvel. E repare-se que
não estamos, neste domínio, perante meros interesses de facto. Em situações como estas, e
muitas outras se poderiam indicar, o titular da licença e o proprietário da construção são
titulares de verdadeiros direitos subjectivos, cuja consistência jurídica é posta em causa nos
processos impugnatório e de condenação.
É certo que o objecto destes processos não se define por referência às situações sub-
jectivas dos contra-interessados, titulares de interesses contrapostos aos do autor, mas à posi-
ção em que a Administração se encontra colocada, no quadro do exercício dos seus poderes de
autoridade. Com efeito, a discussão em juízo centra-se na questão de saber se se anula ou não
o acto administrativo, se se condena ou não a Administração a praticar um acto administrativo.
Esta circunstância não retira, no entanto, aos contra-interessados a sua qualidade de
verdadeiras partes na relação jurídica multipolar e, por isso, no litígio, para o efeito de
deverem ser demandadas em juízo. É o que resulta do inciso final do artigo 10º, nº 1, que, por-
tanto, reconhece aos contra-interessados o estatuto de verdadeiras partes demandadas, em
situação de litisconsórcio necessário passivo — e, importa sublinhá-lo, unitário (60) — com a
entidade pública, com todas as consequências que daí advêm.
Por este motivo, tem o CPTA o cuidado de, tanto no artigo 57º, como no artigo 68º, nº 2,
densificar o conceito de contra-interessados e, em particular, o cuidado de o circunscrever às
pessoas “que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos
documentos contidos no processo administrativo”. Está aqui presente o propósito de ob-
jectivizar a operação de delimitação do universo dos “titulares de interesses contrapostos aos
do autor” que devem ser demandados no processo (artigo 10º, nº 1), atendendo às con-
60() Sobre as figuras do litisconsórcio necessário e do litisconsórcio unitário, assim como sobre o regime aplicável nas situações em que existe litisconsórcio necessário unitário, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, pp. 156 a 174.
sequências gravosas que resultam da sua falta de citação: ilegitimidade passiva que obsta ao
conhecimento da causa (cfr. artigos 78º, nº 2, alínea f), 81º, nº 1, e 89º, nº 1, alínea f)) e
inoponibilidade da decisão judicial que porventura venha a ser proferida à revelia dos contra-
interessados (cfr. artigo 155º, nº 2).
Capítulo III – Pressupostos relativos ao Objecto
83. O Capítulo II do Título III do CPTA estabelece um conjunto de determinações que, na
sua grande maioria, se referem aos pressupostos específicos de que depende a dedução em
juízo das pretensões que o CPTA subordina à forma processual da acção administrativa
especial. O referido capítulo encontra-se dividido em três secções, que regulam os aspectos
respeitantes à impugnação de actos administrativos, à condenação à prática de actos
administrativos e ao contencioso dos regulamentos.
Resulta, em grande medida, das disposições contidas no referido Capítulo do CPTA o
regime dos pressupostos relativos ao objecto a que nos vamos referir de seguida. Com
excepção da disciplina respeitante à legitimidade, que já foi objecto de tratamento autónomo,
percorreremos, por isso, de seguida o referido regime, dando conta dos termos em que o CPTA
regula os pressupostos processuais específicos de que depende a actuação processual das
referidas pretensões.
§ 1º - A impugnação de actos administrativos
1. Pressupostos de âmbito geral
Impugnabilidade do acto administrativo e actos equiparados (arts. 51º segs. do CPTA);
tempestividade da impugnação (arts. 58º segs. do CPTA); não aceitação do acto impugnado
(art. 56º do CPTA).
1.1. Impugnabilidade do acto administrativo e actos equiparados
84. O primeiro dos aspectos do regime particular que o CPTA estabelece a propósito da
actuação processual das pretensões dirigidas à impugnação de actos administrativos prende-se
com a própria noção de acto administrativo impugnável, a que o Código se refere no artigo
51º, nº 1, ao estabelecer que “são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa”.
Numa primeira análise, a noção de acto administrativo impugnável é, deste modo,
reportada a dois elementos: o conceito de acto administrativo e o atributo da eficácia externa
desse acto. A estes elementos, o artigo 51º, nº 4, vem, entretanto, adicionar um terceiro: o do
conteúdo positivo do acto a impugnar.
1.1.1. O conceito de acto administrativo
85. Ao reportar-se, sem mais indicações, ao conceito de acto administrativo, o artigo 51º,
nº 1, do CPTA remete o intérprete para o conceito de acto administrativo que, na ordem
jurídica vigente, é fornecido pelo artigo 120º do CPA, ao estabelecer que, para o efeito daquele
Código, se consideram actos administrativos “as decisões dos órgãos da Administração que ao
abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e
concreta”.
Com efeito, embora o artigo 120º do CPA refira que o conceito aí enunciado apenas vale
para os efeitos daquele Código e não se deva esquecer que a doutrina não se encontra
vinculada por definições legais, a verdade é que o essencial do regime que, ao longo de
décadas, doutrina e jurisprudência foram construindo em torno do conceito de acto
administrativo está, hoje, consagrado no CPA. Como o artigo 120º delimita o âmbito de
aplicação desse regime e a ciência jurídica é uma ciência prática, temos, por conseguinte,
dificuldade em vislumbrar o sentido ou a utilidade de, para fins estritamente doutrinais, se
conceber um conceito de acto administrativo diferente daquele que o CPA utiliza como critério
de aplicabilidade do essencial do regime que corresponde à teoria geral do acto
administrativo.
O acto administrativo impugnável tem, pois, de corresponder, antes de mais, a uma
decisão tomada por um órgão da Administração Pública, no exercício das suas funções, dirigida
a produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
86. Por se tratar de matéria de direito substantivo, e não processual, não nos deteremos
mais do que o necessário em cada um dos elementos constitutivos deste conceito. As
implicações de ordem processual que deles resultam, com reflexos no regime do CPTA,
justificam, no entanto, que se sublinhe que, a nosso ver, o elemento fulcral do conceito de
acto administrativo do artigo 120º do CPA reside no conteúdo decisório: os actos administra-
tivos são decisões (61).
O preceito remete-nos, assim, para uma distinção que separa os actos que, por terem con-
teúdo decisório, devem ser qualificados como actos administrativos, daqueles outros que,
como os pareceres (não vinculativos), as informações ou as propostas, mas também os actos
confirmativos e opin(i)ativos, a doutrina tradicional também enquadrava num conceito amplo
de acto administrativo, mas que, por não terem conteúdo decisório, não devem ser, hoje,
qualificados desse modo (62).
A nosso ver, a imputação ao acto administrativo de um conteúdo decisório tem, pois, o al-
cance de, em contraponto com os actos que apenas exprimem declarações de ciência, juízos
de valor ou opiniões, o configurar como a expressão de uma declaração de vontade, dirigida a
determinar o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar. Inflectindo na li-
nha tradicionalmente seguida entre nós, de partir de um conceito muito amplo de acto admi-
nistrativo, o artigo 120º do CPA parece ter, portanto, optado por um conceito mais restrito,
que não cobre todas as manifestações jurídicas unilaterais e concretas da Administração Pú-
blica.
Assim, e apenas para dar alguns exemplos mais emblemáticos, o artigo 120º do CPA afasta
a impugnabilidade dos pareceres não vinculativos, na medida em que tais actos, por se li-
61() Assinalando o facto, cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso…cit., vol. II, pp. 221-222.62() Para a contraposição, aliás, entre a decisão e eventuais pareceres, informações ou propostas que a precedam, cfr. o disposto no artigo 125º, nº 1, do CPA.
mitarem a exprimir juízos de valor, nem sequer são actos administrativos. Mas já poderão ser,
em princípio, objecto de impugnação, por possuírem conteúdo decisório e serem, por isso,
actos administrativos, os actos que, ao longo de procedimentos administrativos escalonados
ou faseados, contenham verdadeiras pré-decisões, sejam elas decisões prévias (que decidem
em termos definitivos questões prévias àquela que tem de ser decidida no termo do
procedimento) ou decisões parcelares (que decidem em termos definitivos uma parte das
questões a decidir no termo do procedimento) (63).
Já no que se refere aos pareceres vinculativos, pela nossa parte, não temos dúvidas em as-
sumir que tais actos não exprimem o exercício de uma função meramente consultiva, mas são
actos que, prejudicando o exercício dos poderes decisórios dos órgãos a que se destinam, têm
a natureza de actos administrativos, de conteúdo decisório (64). Mas também nos parece, em
tese geral, que os particulares não têm interesse directo na impugnação de actos que, pela na-
tureza dos efeitos que visam produzir, não causem uma desvantagem imediata na respectiva
esfera jurídica — nesse sentido concorrendo, a nosso ver, como afloramento de um critério
geral, a regra da inimpugnabilidade dos actos ineficazes, que decorre do artigo 54º do CPTA.
Como os efeitos dos pareceres vinculativos se esgotam no âmbito das relações que se
desenvolvem entre o órgão que os emite e aquele que por eles se encontra vinculado, quer-
nos, por isso, parecer que, em princípio, o artigo 55º, nº 1, alínea a), do CPTA afasta, por inexis-
tência de interesse directo, a possibilidade da impugnação de tais actos por parte dos reque-
rentes que aguardam a decisão final a proferir no termo dos respectivos procedimentos. Mas
como os pareceres vinculativos decidem em que sentido devem agir os órgãos que por eles se
encontram vinculados, podem ser impugnados pelas entidades a que estes órgãos pertencem
(artigo 55º, nº 1, alínea c), do CPTA) ou pelos próprios órgãos que vinculam, quando estes
pertençam à mesma entidade pública a que pertencem os órgãos que os emitiram (artigo 55º,
nº 1, alínea d), do CPTA) (65).
63() Sobre as figuras mencionadas no texto, cfr. FILIPA URBANO CALVÃO, Os actos precários e os actos provisórios no Direito Administrativo, Coimbra, 1998, pp. 45 segs.; FREITAS DO AMARAL, Curso…cit., vol. II, pp. 262-264. 64() Sobre o tema, cfr. PEDRO GONÇALVES, “Apontamento sobre a função e a natureza dos pareceres vinculantes”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 0, pp. 6 a 11, cujas conclusões se subscrevem. Cfr. também FREITAS DO AMARAL, Curso…cit., vol. II, p. 274, e V. PEREIRA DA SILVA, op. cit., pp. 703-705.65() Na mesma linha, cfr. PEDRO GONÇALVES, “Apontamento sobre a função e a natureza dos pareceres vinculantes”, pp. 9 a 12, a partir do entendimento, que subscrevemos, de que o parecer vinculativo “não é uma decisão operativa numa relação jurídica entre a Administração e um particular”, mas numa relação entre dois órgãos administrativos, pelo que se trata de um acto de conteúdo decisório, de eficácia externa ou interna, consoante “a natureza, externa ou interna, da relação entre o órgão que o emite e o órgão a quem ele se destina”, e que pode ser impugnado pelo órgão destinatário.
87. Em bom rigor, reporta-se ao elemento ora em análise, do conteúdo decisório do acto
administrativo, o regime consagrado no artigo 53º do CPTA.
Com efeito, o artigo 53º consagra a regra tradicional de que não são impugnáveis os actos
que se limitem a confirmar definições jurídicas introduzidas por actos administrativos
anteriores (66). Ora, esta regra vale, em primeira linha, para os actos que se limitem a
reconhecer que sobre determinada questão já anteriormente foi tomada uma decisão e que,
portanto, não envolvam o reexercício do poder de decidir. Não estamos perante verdadeiras
decisões e, portanto, perante actos administrativos (cfr. artigo 120º do CPA), mas perante
meras declarações enunciativas ou representativas da realidade, mediante as quais a
Administração se limita a reconhecer que já foi tomada uma decisão sobre a matéria e
porventura se recusa a reexercer o poder de decidir.
A doutrina também tende, entretanto, a qualificar como inimpugnáveis os actos jurídicos
praticados em execução ou aplicação de outros actos administrativos, recusando que, a pre-
texto destes actos, se possam reabrir litígios ou instaurar tardiamente litígios em torno das de-
finições introduzidas pelos actos que eles se limitam a executar ou aplicar (67). Como fa-
cilmente se verifica, o raciocínio subjacente a esta construção é o mesmo que preside à
construção da inimpugnabilidade dos actos meramente confirmativos. Com efeito, a impug-
nabilidade dos actos de execução ou de aplicação é recusada na medida em que eles reiteram
e, nessa medida, confirmam o que tinha sido decidido através do acto que executam ou
aplicam, sem tomarem uma nova decisão sobre a matéria.
Como já noutra ocasião se fez notar (68), por regra, os actos jurídicos de execução ou de
aplicação de actos administrativos anteriores possuem eficácia externa e exprimem o exercício
de um poder de definição jurídica típico do seu autor, contribuindo, assim, em maior ou menor
medida, para completar a definição jurídica que tinha sido introduzida pelos actos que os
precederam e em que eles se baseiam. Pense-se no acto que vem fixar o prazo final para o
cumprimento de uma obrigação imposta por um acto precedente, sob a ameaça de execução
forçada. Embora este acto surja no seguimento da definição introduzida pelo acto anterior, o
66() Sobre esta categoria de actos, que o Autor qualifica como actos meramente confirmativos, cfr., por todos, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. III, policop., Lisboa, 1989, pp. 230 segs.67() Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO GONÇALVES/JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed., Coimbra, 1998, pp. 723-724.68() Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Suspensão da eficácia de actos administrativos de execução de sentença”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 11, p. 20.
certo é que introduz um efeito jurídico inovador e, portanto, a modificação do quadro jurídico
pré-existente. Este acto não pode deixar de ser qualificado como um acto susceptível de im-
pugnação, pois os eventuais interessados devem poder reagir contra os vícios de que possa
padecer a definição jurídica, de maior ou menor alcance, que ele vem introduzir.
O que estes actos exigem é que, dentro do seu conteúdo, se distinga o componente em
que eles se limitam a pressupor e porventura a reiterar a definição jurídica introduzida pelos
actos que os precederam e em que eles se baseiam, do componente mediante o qual eles
próprios introduzem uma definição jurídica nova, acrescentando novos efeitos jurídicos aos
que resultavam do acto anterior. Na verdade, na parte em que pressupõem e porventura
reiteram a definição jurídica anterior, estes actos não introduzem qualquer definição
inovadora, não exprimem o reexercício do poder de decidir já anteriormente exercido com a
prática do acto a que agora se trata de dar execução ou aplicação. Nessa medida, não contêm
verdadeiras decisões e, portanto, actos administrativos (cfr. artigo 120º do CPA), mas, quando
muito, meras declarações enunciativas ou representativas da realidade, que se limitam a
reconhecer que foi anteriormente tomada uma decisão em determinado sentido sobre a ma-
téria.
É isto que explica que não se possam invocar contra um acto administrativo vícios que já
podiam e deviam ter sido invocados contra actos anteriores. E pode, neste sentido, dizer-se
que a regra do artigo 53º vale, em segunda linha, para os actos de execução ou de aplicação de
actos administrativos, na parte ou na medida em que eles se limitam a reiterar a definição
introduzida pelo acto que executam ou aplicam. Ponto é que não se deixe de reconhecer que
os actos de execução ou de aplicação de actos anteriores podem ser impugnados com funda-
mento em vícios próprios de que possa padecer a inovação, ainda que complementar, que eles
vêm introduzir na ordem jurídica, ou mesmo resultar do facto de se apresentarem em descon-
formidade com o acto que alegadamente visam executar ou aplicar (porventura, por
ultrapassarem os limites traçados por esse acto).
O acto meramente confirmativo não pode ser, portanto, aproveitado para reabrir um
litígio. Por isso, ele não pode ser impugnado, como determina o artigo 53º, alínea a), por quem
tenha impugnado a decisão anterior, que ele se limita a confirmar. Por outro lado, o acto me-
ramente confirmativo também não pode ser impugnado por quem, estando constituído no
ónus de impugnar o acto anterior dentro dos prazos legais, não o tenha feito, na medida em
que, de outro modo, se estaria a permitir que o litígio fosse suscitado sem observância dos
prazos legais. Neste sentido, as alíneas b) e c) do artigo 53º estabelecem que o acto me-
ramente confirmativo não pode ser impugnado se o acto anterior tiver sido notificado ao inte-
ressado ou, em alternativa, se o acto anterior tiver sido publicado, nos casos em que o
interessado não tivesse de ser notificado e, por isso, bastasse a publicação para que ele se lhe
tornasse automaticamente oponível (cfr., a propósito, artigo 59º). Repare-se que, para além
destas situações, discriminadas no artigo 53º, a impugnação de actos meramente
confirmativos é possível. Quem não tenha impugnado um acto não publicado nem dele tenha
sido notificado pode, assim, impugnar os actos que o venham confirmar.
Os números 2 e 3 do artigo 52º estabelecem, entretanto, desvios à regra do artigo 53º.
O artigo 52º, nº 1, reitera o princípio de que a impugnabilidade dos actos administrativos
não depende da forma sob a qual eles tenham sido praticados, princípio consagrado no artigo
268º, nº 4, da CRP, que garante a impugnação dos actos administrativos “independentemente
da sua forma”. Um acto administrativo pode ser, portanto, impugnado, ainda que surja
inserido num acto legislativo (por exemplo, num decreto-lei) ou regulamentar (por exemplo,
num decreto regulamentar) (69).
Porque os eventuais interessados podem, contudo, não se aperceber de que um acto
legislativo ou regulamentar contém uma determinação que deve ser qualificada como um acto
administrativo e, por causa disso, podem deixar expirar inadvertidamente o prazo legal dentro
do qual deveriam proceder à respectiva impugnação, o artigo 52º, nº 2, abre
excepcionalmente a quem não tiver impugnado actos contidos em diplomas legislativos ou
regulamentares a possibilidade de proceder à impugnação dos respectivos actos de execução
ou de aplicação. Esta solução é excepcional, na medida em que dela resulta que, nestes casos,
os actos de execução ou de aplicação nunca podem ser qualificados como actos meramente
confirmativos, para os efeitos do disposto no artigo 53º.
Em idêntico sentido, o artigo 52º, nº 3, estabelece, por seu turno, que “o não exercício do
direito de impugnar um acto que não individualize os seus destinatários não obsta à
impugnação dos seus actos de execução ou aplicação cujos destinatários sejam
individualmente identificados”.
Este preceito visa pôr termo às dificuldades que, no plano prático, o reconhecimento da fi-
gura do acto administrativo geral vinha suscitando, procurando dar resposta às considerações
de ordem prática que favoreciam a qualificação doutrinal de pelo menos certo tipo de decisões
69() Sobre o assunto, cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. IV, policop., Lisboa, 1988, pp. 153 segs.
administrativas concretas, mas gerais, como normas, e não como actos administrativos (70).
Essas considerações prendiam-se com a necessidade de evitar a constituição de situações lesi-
vas que, no caso de se optar pela qualificação dessas decisões como actos administrativos ge-
rais, adviriam para quem, não se apercebendo de que o acto, embora geral, estava sujeito aos
prazos legais de impugnação, não procedesse à respectiva impugnação em tempo útil. E a
solução que o artigo 52º, nº 3, encontra para o problema é a mesma que, como vimos, o artigo
52º, nº 2, faz corresponder à situação (do mesmo tipo) dos actos administrativos contidos em
actos legislativos ou regulamentares.
A confiança dos destinatários dos actos administrativos gerais é, assim, protegida através
da abertura excepcional da possibilidade, a quem não tiver impugnado o acto administrativo
geral, de proceder à impugnação dos seus actos de execução ou de aplicação com carácter
individual. Também aqui, estamos perante uma solução excepcional, da qual resulta que os
actos individuais de execução ou de aplicação de actos administrativos gerais não podem ser
qualificados como actos meramente confirmativos, para os efeitos do disposto no artigo 53º.
1.1.2. O atributo da eficácia externa do acto
88. Note-se, antes de mais, que a referência que, no artigo 51º, nº 1, é feita à eficácia ex-
terna do acto impugnável tem apenas que ver com a natureza (interna ou externa) dos efeitos
que o acto se destina a produzir e não com a questão de saber se, no momento em que é im-
pugnado, o acto está efectivamente a produzir os efeitos a que se dirige. Sobre este outro
aspecto, diferente do primeiro, rege, na verdade, o artigo 54º, que, aliás, admite a impugnação
de actos que ainda não tenham começado a produzir efeitos jurídicos.
Cumpre, entretanto, recordar que o problema da impugnabilidade dos actos
administrativos, problema (prévio) que deve ser colocado exclusivamente no plano — ob-
jectivo — da natureza dos efeitos que esse acto se destina a introduzir na ordem jurídica, não
se confunde com o problema de saber se quem se propõe impugnar um acto administrativo
alega ter sido lesado por esse acto, problema (ulterior) que já se situa no plano — subjectivo
— da titularidade, na esfera do interessado, de uma situação jurídica legitimante que o habilite
a pedir a anulação ou a declaração de nulidade de um acto que seja impugnável e também da
70() Sobre o tema, cfr. FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. III, policop., Lisboa, 1989, pp. 93 segs.
titularidade de um interesse em agir, fundado na existência de uma necessidade efectiva de
tutela jurisdicional.
É assim que um mesmo acto administrativo pode ser impugnado por certos interessados e
já não por outros, embora tenha a mesma natureza objectiva de acto impugnável. Com efeito,
se um acto pode ser impugnado por alguém, ele não pode deixar, objectivamente, de ser qua-
lificado como impugnável. Sucede, porém, que, para saber se uma impugnação pode ser
efectivamente intentada, é necessário mas não é suficiente saber se o acto é, em si mesmo,
impugnável, pois também há que apurar, em cada caso concreto, se quem se propõe impugnar
esse acto alega estar colocado em situação legitimante e tem um interesse actual em agir em
processo.
Como já foi referido, muitas das questões que, no domínio da impugnação dos actos admi-
nistrativos, eram tradicionalmente colocadas a propósito do problema da impugnabilidade dos
actos administrativos devem ser, pois, colocadas, com vantagem, a propósito dos problemas
da legitimidade e do interesse processual de quem pretende reagir contra tais actos.
Procurando ilustrar esta ideia com alguns exemplos, é nosso entendimento que o artigo
55º, nº 1, alínea a), do CPTA afasta, por inexistência de interesse directo, a possibilidade da
impugnação dos actos de admissão de candidatos em concursos por parte dos demais
candidatos admitidos. Mas este acto, atendendo ao seu conteúdo decisório e, portanto, à sua
natureza de acto administrativo, e à sua indiscutível eficácia externa, poderá ser impugnado,
pelo menos, pelo Ministério Público, ao abrigo da ilimitada legitimidade que lhe confere o
artigo 55º, nº 1, alínea b), do CPTA. Já o acto que designe os membros do júri de um concurso
não será impugnável pelos concorrentes, por falta de interesse directo, mas poderá ser
impugnado por quem, tendo direito a integrar o júri, nos termos da lei, tenha sido ilegalmente
preterido, uma vez que o acto em causa é, em si mesmo, um acto administrativo com eficácia
externa, cujos efeitos se projectam na esfera jurídica das pessoas que designa (ou pretere)
para o júri.
Como se vê, um determinado interessado pode não estar, pois, legitimado ou não ter
interesse em impugnar um acto administrativo e esse acto nem por isso deixar de ser
impugnável, na medida em que se destina a produzir efeitos cuja eliminação da ordem jurídica,
pela sua natureza, pode interessar a outros sujeitos jurídicos e, em última análise, ao
Ministério Público, cuja legitimidade para impugnar actos administrativos é ilimitada (cfr.
artigo 55º, nº 1, alínea b), do CPTA).
É a esta luz que, a nosso ver, deve ser encarada a opção do artigo 51º, nº 1, de instituir a
eficácia externa como requisito de impugnabilidade dos actos administrativos. Com efeito,
este foi assumido como o mínimo denominador comum nesta matéria, no sentido em que os
actos que não só não afectam a esfera jurídica de ninguém, como nem sequer se destinam a
produzir efeitos externos, seriam os únicos actos que não poderiam ser impugnados por
ninguém: nem sequer pelo Ministério Público ou por um qualquer cidadão, no exercício do di-
reito de acção popular. Só esses actos não seriam, por isso, à face do artigo 51º, nº 1, actos im-
pugnáveis.
Em conformidade com o que, a nosso ver, resulta do artigo 120º do CPA, o artigo 51º, nº
1, do CPTA reconhece, assim, que existem actos administrativos sem eficácia externa, cujos
efeitos se esgotam no âmbito da esfera jurídica da pessoa colectiva que os produziu: os
chamados actos internos. O artigo 51º, nº 1, assume, contudo, que esses actos administrativos,
por não terem eficácia externa, não poderiam ser objecto de impugnação contenciosa.
Tal assunção afigura-se discutível, devendo a previsão do artigo 51º, nº 1, ser, pelo menos,
objecto de uma interpretação restritiva, que permita harmonizá-la com a previsão da alínea d)
do nº 1 do artigo 55º, na qual é conferida aos órgãos administrativos legitimidade para
impugnarem actos praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva, em termos que
não permitem excluir a possibilidade da impugnação de actos de carácter puramente interno.
Será, assim, de entender que, por regra, só são impugnáveis os actos administrativos com
eficácia externa: é esse, na verdade, o critério em relação à generalidade dos legitimados a
impugnar. Em certas circunstâncias, porém, também um acto administrativo sem eficácia
externa pode ser objecto de impugnação contenciosa. Isso sucederá quando a impugnação se
inscreva no âmbito de relações jurídico-administrativas interorgânicas, preenchidos que
estejam os pressupostos de legitimidade da alínea d) do nº 1 do artigo 55º.
Com o que se verifica que é, afinal, no plano da legitimidade processual que, em bom
rigor, se coloca a questão da eficácia externa ou interna do acto a impugnar. Com efeito, a
questão da eficácia externa, enquanto requisito de impugnabilidade, é indissociável do
estatuto de quem impugna. Trata-se, na verdade, de um requisito que o acto só tem de
preencher para o efeito de poder ser impugnado por quem não se encontre integrado na
estrutura da própria entidade que o emite. Daqui resulta que o requisito não é, em absoluto,
um requisito geral de impugnabilidade dos actos administrativos, mas apenas um requisito da
sua impugnabilidade por pessoas externas àquela no âmbito da qual eles foram emitidos. E,
portanto, que a eficácia externa, embora se reporte à natureza dos efeitos que o acto visa
produzir (71), é um atributo do acto administrativo cuja questão da existência, para efeitos
contenciosos, por se situar no plano da relação que, em concreto, se estabelece entre o acto e
os seus destinatários (poderia dizer-se, portanto, na relação estatuição – objecto), em bom
rigor, se coloca no plano da identificação, em termos de legitimidade processual, dos tipos de
situações em que as diferentes entidades legalmente legitimadas para o efeito podem lançar
mão da impugnação contenciosa (72).
89. O tradicional requisito da definitividade horizontal não integra, entretanto, a noção de
acto administrativo impugnável. É o que resulta da referência inicial, no artigo 51º, nº 1, à
possibilidade de o acto a impugnar poder estar inserido num procedimento administrativo,
como também da previsão do artigo 51º, nº 3, que pressupõe a impugnabilidade de actos pro-
cedimentais. Ponto é que, como resulta do artigo 51º, nº 1, eles sejam, naturalmente, “actos
administrativos com eficácia externa”.
É assim que, e apenas para dar alguns exemplos (73), se justifica a imediata abertura da via
contenciosa contra o acto de aprovação de projecto de arquitectura, relativamente ao vizinho
71() E portanto seja, como bem assinala SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, p. 314, uma qualidade ou atributo do acto, que qualifica a natureza dos efeitos que ele visa produzir.72() Ao argumento fundado na previsão do artigo 55º, nº 1, alínea d), do CPTA, que é apontado no texto e se nos afigura decisivo, acresce o de que o entendimento proposto permite evitar as ambiguidades que, tradicionalmente, rodeiam a prática da qualificação dos actos praticados no âmbito do funcionamento interno das entidades públicas como actos internos ou actos externos, consoante esses actos produzem efeitos lesivos da esfera das pessoas que se encontram envolvidas numa relação jurídica especial com a entidade pública que os emite. Com efeito, é, desde há muito, admitido que as determinações que, no âmbito de uma entidade pública, sejam designadamente impostas aos funcionários e agentes que nela prestem serviço podem ser impug-nadas por estes, sempre que os afectem na respectiva esfera de direitos e interesses. Estamos a referir-nos, paradigmaticamente, a ordens de serviço dirigidas a conduzir a organização e funcionamento dos serviços integrados na entidade pública, no exercício de poderes de auto-organização interna e, portanto, na prossecução de interesses de natureza intra-administrativa, segundo uma lógica interna à entidade em cau-sa. Actos, portanto, cujo regime procedimental de emissão não se confunde com o dos actos reguladores de autoridade, que são produzidos no âmbito de procedimentos cuja relevância externa, decorrente do facto de serem formalmente dirigidos à introdução de definições jurídicas imperativas no ordenamento jurídico geral, transparece do teor das mais relevantes disposições da Parte III do CPA. Mas que nem por isso se deixa, tradicionalmente, de assumir que são impugnáveis a partir do momento em que contendam com a esfera jurídica dos funcionários ou agentes aos quais se dirigem. Pense-se no exemplo da ordem de serviço que, ao redefinir o modo de funcionamento de um serviço, inclui a imposição aos funcionários envolvidos do cumprimento de tarefas incompatíveis com o regime que lhes é estatutariamente aplicável. Ora, quer-nos parecer que, mesmo quando pontualmente contendam com a esfera jurídica dos funcio-nários ou agentes aos quais se dirigem, estes actos não mudam de natureza, para o efeito de se dever as-sumir que deixaram de ser praticados em ordem à prossecução dos interesses inerentes à organização e funcionamento dos serviços que os tinham determinado, em conformidade com a racionalidade que lhes é própria (cfr., a propósito, HARTMUT MAURER, Droit Administratif Allemand, Paris, 1994, pp. 198-199). O que é, portanto, decisivo não é qualificá-los como actos externos, mas saber se, no plano do destinatário, existe um interesse directo e actual em impugnar — ou seja, posto que se trata de actos decisórios, se quem os impugna tem legitimidade, de acordo com a lei processual, para o efeito.73() Sugeridos por MÁRIO TORRES, “Ainda a (in)impugnabilidade …”, p. 44 e nota 9.
que repute ilegal a implantação do prédio já efectivamente em construção, por não respeitar
as distâncias mínimas, sem que se lhe deva exigir que aguarde pela aprovação dos projectos de
especialidades. Como também se justifica a imediata abertura da via contenciosa contra o acto
de abertura de um concurso para a instalação de uma farmácia, relativamente aos titulares de
farmácias já existentes que contestem a própria abertura do concurso, por violar as condições
legais para a instalação de novas farmácias, sem que se lhes deva exigir que aguardem pelo
termo do concurso, quando a verdade é que lhes é absolutamente indiferente saber quem
dele sairá vencedor, uma vez que não são concorrentes. Em ambos os casos, estamos perante
actos que, sem serem o acto final do procedimento, produzem efeitos externos e são, por isso,
impugnáveis, podendo ser, por isso, impugnados por quem tenha interesse na respectiva
remoção da ordem jurídica.
Para que, em muitas situações de contornos ambíguos, da regra da impugnabilidade dos
actos que, não sendo o acto final do procedimento, projectem os seus efeitos na ordem
jurídica externa não decorram efeitos perversos (74), o artigo 51º, nº 3, salvaguarda,
entretanto, a possibilidade de se impugnar o acto final do procedimento, mesmo no caso de
não se ter reagido contra actos procedimentais passíveis de impugnação.
O artigo 51º, nº 3, introduz, no entanto, logo à partida, duas importantes restrições a esta
possibilidade. A primeira diz respeito ao acto que tenha determinado a exclusão do interessa-
do do procedimento: este acto, que desde sempre corresponde ao paradigma do acto destacá-
vel, por ser evidente que produz efeitos externos, definindo a situação jurídica do interessado,
tem de ser imediatamente impugnado, sem que o interessado possa vir, mais tarde, a reagir
contra a exclusão ilegal através da impugnação do acto final do procedimento. A segunda res-
trição tem em vista as disposições que, por lei especial, imponham a tempestiva impugnação
de actos procedimentais, sob pena de preclusão: sempre que lei avulsa imponha o ónus pre-
clusivo da impugnação contenciosa de actos procedimentais, em termos tais que dela
claramente resulte que a questão não pode voltar a ser colocada em processo impugnatório
dirigido contra o acto final do procedimento, tal determinação, por ser clara para os eventuais
interessados, prevalece sobre o regime-regra do artigo 51º, nº 3.
1.1.3. O conteúdo positivo do acto impugnável
74() Cfr. ainda MÁRIO TORRES, “Ainda a (in)impugnabilidade …”, p. 45.
90. Os actos administrativos de conteúdo negativo não podem ser objecto de processos
de impugnação, dirigidos à respectiva anulação ou declaração de nulidade.
Neste sentido se inscrevem as soluções consagradas no artigo 67º, nº 1, alíneas b) e c),
que admitem que contra um acto de recusa de um acto administrativo ou da apreciação de re-
querimento dirigido à prática de um acto administrativo, seja deduzido um pedido de conde-
nação à prática do acto, e no artigo 66º, nº 2, onde se estabelece que a eliminação da ordem
jurídica do acto de indeferimento “resulta directamente da pronúncia condenatória” mediante
a qual o tribunal imponha a prática do acto que tinha sido ilegalmente recusado.
Quando seja deduzido pedido de anulação de um acto administrativo de conteúdo
negativo, o tribunal deve, por isso, convidar o autor a substituir a petição, por o pedido
formulado não ser o adequado, podendo haver, depois lugar, se necessário, à substituição das
contestações que tenham sido apresentadas. É o que determina o artigo 51º, nº 4, no que não
passa de um corolário da previsão geral de substituição da petição, consagrada no artigo 89º,
nº 2.
Repare-se, a este propósito, que o artigo 51º, nº 4, tem em vista as situações em que, con-
tra o acto de conteúdo negativo, tenha sido deduzido um pedido de estrita anulação, ou seja,
a anulação e nada mais do que a anulação. É neste caso que a petição deve ser substituída. Se,
pelo contrário, o autor tiver pedido a anulação, mas também a condenação à prática do acto
devido, não há razão para exigir a substituição da petição. O importante é que o pedido de
condenação tenha sido deduzido. Ao lado dele, o pedido de anulação da recusa é irrelevante,
como resulta do artigo 66º, nº 2, já que o tribunal não tem de anular o acto, mas o facto de ter
sido formulado não compromete a viabilidade da petição.
Não são, pois, impugnáveis os actos administrativos de conteúdo negativo. O processo de
impugnação só pode ser dirigido contra actos de conteúdo positivo, cujo conteúdo não se
esgote na mera recusa de introduzir modificações jurídicas requeridas. Contra actos de recusa,
tem necessariamente de ser deduzido um pedido de condenação à prática do acto devido.
91. Tenha-se, em todo o caso, presente que só são actos de conteúdo negativo os actos de
recusa, a que se referem as alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 67º, para o efeito de lhes fazer cor-
responder a dedução autónoma (isto é, não associada ao pedido de anulação ou declaração de
nulidade de um acto administrativo) de pedidos de condenação à prática do acto ilegalmente
recusado. Assim, se, por hipótese, a Administração tiver praticado um acto administrativo de
conteúdo positivo, que modifique a situação jurídica do requerente, mas ele considerar que
esse acto é ilegal e não satisfaz cabalmente os seus interesses, o caminho a seguir já é o de
proceder à impugnação do acto, uma vez que ele tem um conteúdo positivo.
A impugnação do acto pode ser, nesse caso, suficiente, se a posição do interessado se
satisfizer com a mera amputação do acto, designadamente através da eliminação de cláusulas
acessórias que nele tenham sido ilegalmente inseridas (por exemplo, a determinação ilegal do
diferimento da produção de efeitos do acto, porventura através da imposição ilegal de um
termo inicial ou de uma condição suspensiva). Bastará, então, ao interessado impugnar o acto,
pedindo a sua anulação na parte em que este lhe seja desfavorável.
A impugnação do acto pode não ser, contudo, suficiente. Basta pensar na hipótese de o
acto ter determinado que os seus efeitos apenas se produzem para o futuro, quando o inte-
ressado considera que tem direito a que os efeitos se contem desde um momento anterior.
Numa situação deste tipo, deve entender-se que a pretensão foi parcialmente indeferida, para
o efeito de se reconhecer ao interessado a possibilidade de deduzir um pedido de condenação
à prática do acto nos termos em que ele deveria ter sido praticado. Colocando-se, então, a
questão de saber se bastará deduzir o pedido de condenação, ou se ele deverá ser cumulado
com um pedido de anulação do acto praticado.
É, a nosso ver, de admitir que quem pede a condenação da Administração à substituição,
no todo ou em parte, de um acto administrativo, com fundamento na ilegalidade, total ou
parcial, desse acto, está implicitamente a pedir que o tribunal reconheça e declare essa
ilegalidade e, portanto, que anule o acto. Afigura-se, por isso, que o tribunal pode considerar
este pedido implicitamente deduzido no pedido de condenação, para o efeito de proferir
também a correspondente pronúncia constitutiva (75).
Mas ainda que assim não se entenda, não se afigura que a circunstância de o interessado
não ter deduzido o pedido de anulação deva constituir, só por si, obstáculo à admissibilidade
da acção de condenação à substituição desse acto por outro que não incorra nos mesmos
vícios. Com efeito, não se vê por que razão a acção não há-de poder ser, ao menos, encarada
como uma acção dirigida à condenação da Administração à revogação por substituição do acto
já existente sobre a matéria e, como tal, regularmente admitida, desde que se encontrem
preenchidos os correspondentes pressupostos processuais. Esta via de solução comporta,
porém, um risco: o de, no momento em que ao tribunal cumpra pronunciar-se a final, a acção
75() Note-se que, com a solução proposta no texto, não se equipara o acto positivo impugnável ao acto de indeferimento, para o efeito de se admitir que também a sua eliminação da ordem jurídica pode resultar implicitamente da sentença de condenação. Com efeito, não se trata, aqui, de prescindir da pronúncia anulatória, mas apenas de prescindir da explicitação do pedido de anulação.
já não poder ser julgada procedente, por ter entretanto expirado o prazo dentro do qual a Ad-
ministração podia revogar o acto. Esta dificuldade só poderá ser ultrapassada se, como pro-
pomos, o próprio tribunal anular o acto, por considerar que o pedido de anulação se en-
contrava implícito no pedido de condenação à prática do acto devido.
92. Diferente da situação anterior é a dos actos administrativos positivos de conteúdo am-
bivalente, que introduzem modificações jurídicas em favor de terceiro, em detrimento das pre-
tensões do interessado — hipótese da qual constitui exemplo paradigmático o acto adminis-
trativo que, ao adjudicar a celebração de um contrato a um dos participantes num concurso,
frustra as expectativas dos restantes candidatos (76). Com efeito, é evidente que, embora pro-
jectem efeitos negativos, desfavoráveis, na esfera de alguns dos seus destinatários, actos deste
tipo não são actos de indeferimento. O interessado que os considere ilegais deve proceder, por
isso, à impugnação destes actos, pedindo a sua anulação ou declaração de nulidade.
Cumpre, porém, reconhecer que actos deste tipo possuem um conteúdo misto, que, por
um lado, define pela positiva a situação do beneficiário, mas que, do mesmo passo, também
desempenha a função, ainda que implícita no seu conteúdo, de definir pela negativa a situação
de outros sujeitos jurídicos. Por este motivo, é evidente que a satisfação dos interesses do
impugnante não se satisfaz, nestes casos, com a mera remoção da ordem jurídica do acto de
adjudicação: o que ele sobretudo pretende é, na verdade, a substituição desse acto por outro
que, pelo menos, não reincida nas ilegalidades cometidas. Também nestes casos se afigura,
por isso, que o interessado deve ser admitido, à face do disposto no artigo 47º, nº 2, alínea a),
a cumular com o pedido de anulação um pedido de condenação da Administração à substitui-
ção do acto por outro. Só deste modo se permite que ele reaja pela forma adequada, não
apenas contra o componente positivo, mas também contra o componente negativo do
conteúdo do acto.
1.1.4. Separação de campos: questões de interesse processual relacionadas com a
impugnação de actos administrativos
93. Como já foi oportunamente assinalado, os requisitos relativos à eficácia do acto a
impugnar e à eventual utilização de uma impugnação administrativa necessária não dizem
respeito à questão (intrínseca) da impugnabilidade do acto administrativo, em si mesmo, mas
à questão (extrínseca) do interesse processual do autor.76() Sobre esta matéria, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 110-111.
A regra da inimpugnabilidade do acto ineficaz prende-se, na verdade, com a questão de
saber se existe interesse em agir judicialmente contra um acto administrativo que não esteja
em condições de projectar os seus efeitos na ordem jurídica. Em princípio, pressupõe-se que
não existe interesse em impugnar actos administrativos que (ainda) não estejam em condições
de lesar ninguém. Mas admite-se que a existência de uma situação de lesão efectiva,
resultante da execução ilegítima do acto ineficaz, já faz nascer o interesse em lançar mão da
via judicial.
E nesta perspectiva se compreende a opção do artigo 54º, nº 1, alínea b), por abrir a possi-
bilidade de novas excepções à regra, sempre que “seja seguro ou muito provável que o acto irá
produzir efeitos”. O preceito tem o alcance de estender as situações em que é de admitir a
existência de interesse em agir contra actos ineficazes às situações em que, “segundo um juízo
de normalidade, e de acordo com a experiência da vida, haja fortíssima probabilidade ou
quase certeza” (77) de que o acto irá produzir efeitos e, portanto, exista um fundado receio das
consequências que resultarão da produção de efeitos e eventual execução do acto (ainda)
ineficaz. Ou seja, o alcance de flexibilizar os critérios a adoptar neste domínio, afastando-os da
aplicação rígida do critério da eficácia ou ineficácia dos actos administrativos, para os
reconduzir à verificação da existência, em cada caso concreto, de uma situação de necessidade
de tutela e, portanto, de interesse em agir em juízo.
94. Também é no plano da existência de interesse processual que fundamente a necessi-
dade de recorrer à via judicial que, a nosso ver, se coloca a questão de saber se o autor que im-
pugna um acto administrativo procedeu à prévia impugnação desse acto perante o órgão
administrativo competente, nos casos em que lei especial faça depender o recurso à via
judicial da prévia utilização de mecanismos de impugnação administrativa.
Se, na verdade, um interessado impugnar um acto administrativo perante os tribunais sem
ter feito uso da impugnação administrativa necessária que ao caso a lei expressamente fazia
corresponder, a sua pretensão deve ser rejeitada porque a lei não lhe reconhece o interesse
processual que, no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter tentado infrutiferamen-
te obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.
Repare-se que o acto, em si mesmo, não mudou de natureza pelo facto de não ter sido
objecto da necessária impugnação administrativa e a própria posição material do interessado 77() Para utilizar expressões de MÁRIO TORRES, “Relatórios de síntese”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 28, p. 65.
em relação ao acto também não se alterou: se ele era, por hipótese, destinatário do acto, que
na sua esfera jurídica projecta os seus efeitos, essa circunstância também não se alterou. O
problema é um problema de interesse em aceder à Justiça.
1.2. Tempestividade da impugnação
95. De acordo com o disposto no artigo 58º, nº 1, a impugnação de actos nulos ou
inexistentes não está sujeita a prazo.
A impugnação de actos administrativos pelo Ministério Público pode ser deduzida no
prazo de um ano (artigo 58º, nº 2, alínea a)). Este prazo é contado desde a data da prática do
acto ou da sua publicação, quando obrigatória (artigo 59º, nº 6).
Quanto ao prazo-regra aplicável, “salvo disposição em contrário”, nos restantes casos e,
portanto, às impugnações deduzidas por particulares, seja qual for a qualidade em que eles
actuem, esse prazo é de três meses (cfr. artigo 58º, nº 2, alínea b)).
O artigo 58º, nº 4, permite, no entanto, que, desde que ainda não tenha expirado o mais
longo dos prazos de impugnação — que, como vimos, é o prazo de um ano de que dispõe o
Ministério Público —, qualquer das pessoas ou entidades legitimadas a impugnar o possam
fazer, mesmo que já tenha passado o prazo de três meses dentro do qual, em princípio, o
deveriam ter feito. Para o efeito, é necessário que o tribunal, ouvida(s) a(s) outra(s) parte(s) no
processo, considere demonstrada a ocorrência de uma das três circunstâncias, taxativamente
previstas, em que, no entender da lei, “a tempestiva apresentação da petição não era exigível
a um cidadão normalmente diligente”. Essas circunstâncias são as seguintes, enunciadas nas
alíneas a), b) e c) do artigo 58º, nº 4.
a) O interessado não impugnou porque a Administração o induziu em erro, podendo
mesmo ter agido de má fé — pense-se, desde logo, na hipótese de a Administração se ter
comprometido a revogar o acto por reconhecer que o interessado tinha razão, fazendo assim
com que ele não o impugnasse dentro do prazo.
b) O atraso na impugnação é desculpável em virtude da ambiguidade do quadro norma-
tivo ou das dificuldades que colocava a identificação do acto impugnável ou a questão da sua
qualificação como acto administrativo ou como norma (quanto a esta última hipótese, cfr., em
todo o caso, o disposto no já analisado artigo 52º, nº 3).
c) Verificou-se uma situação de justo impedimento. Por determinação expressa do artigo
58º, nº 4, alínea c), o CPTA põe, assim, finalmente cobro às objecções da jurisprudência quanto
à aplicabilidade do regime do justo impedimento ao prazo de impugnação dos actos
administrativos.
Cumpre, a este propósito, assinalar a importância, nesta sede, do dever que o artigo 7º
impõe ao juiz de, em caso de dúvida, interpretar as normas processuais num sentido que
favoreça a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas. Na verdade, o
princípio da promoção do acesso à justiça que se encontra consagrado naquele artigo reveste-
se de especial importância no domínio da aplicação de preceitos que introduzem soluções de
flexibilidade quanto à verificação, em concreto, do preenchimento de pressupostos proces-
suais. No exercício dos poderes de apreciação que a interpretação das três alíneas do artigo
58º, nº 4, lhe confere, o juiz administrativo não deve, pois, esquecer-se de que está vinculado
pelo imperativo do artigo 7º, que o impede de proceder a uma interpretação restritiva da-
queles preceitos e, pelo contrário, exige que ele os interprete num sentido que deles permita
extrair todas as virtualidades que eles comportam.
96. Como resulta do artigo 58º, nº 3, conjugado com o artigo 144º, nº 4, do CPC, os prazos
referidos contam-se de acordo com a regra de continuidade dos prazos que, hoje, o artigo
144º do CPC estabelece. Por conseguinte, os prazos são contínuos, mas suspendem-se durante
as férias judiciais, com excepção do prazo de um ano do Ministério Público, que não se
suspende. O prazo que termine em dia em que os tribunais estiverem encerrados ou houver
tolerência de ponto é prolongado para o primeiro dia útil seguinte.
97. O artigo 59º, nº 1, torna claro — no confronto com o anterior artigo 29º, nº 1, da LPTA,
assim como com o artigo 132º, nº 1, do CPA — que a notificação, garantida no artigo 268º, nº
3, da CRP, é condição absoluta de oponibilidade dos actos administrativos aos destinatários
que deles devam ser notificados (cfr., a propósito, artigos 66º e seguintes do CPA), in-
dependentemente da eventual publicação obrigatória.
De acordo com o artigo 60º, nº 1, só não são, entretanto, oponíveis aos interessados a
notificação ou a publicação incompreensíveis, que não dêem sequer a conhecer o sentido da
decisão. Quando a notificação ou a publicação padecerem de deficiências menores, o que não
inclui apenas a falta de indicação dos fundamentos da decisão, mas a própria ausência de
indicação do autor e da data, o artigo 60º, nº 2, apenas reconhece aos interessados a
faculdade de requererem a notificação das indicações em falta ou a passagem de certidão que
as contenha. A apresentação, no prazo de trinta dias, desse requerimento interrompe o prazo
de impugnação do acto (artigo 60º, nº 3). O prazo de que a Administração dispõe para
responder ao requerimento é de dez dias. É esse o prazo que, em termos gerais, decorre do
artigo 71º do CPA.
Se a Administração indeferir o requerimento ou não der integral satisfação ao pedido no
prazo devido, o interessado pode pedir que ela seja judicialmente intimada a fornecer-lhe as
informações ou a passar a certidão requeridas. O interessado pode lançar mão, para o efeito,
do processo de intimação que se encontra regulado nos artigos 104º e seguintes, processo
esse que, para este efeito, funciona como um processo acessório, dotado de uma função
instrumental em relação à utilização de outros meios de tutela. É o que claramente resulta dos
artigos 60º, nº 3, e 106º, que atribuem efeito interruptivo do prazo de impugnação do acto
administrativo à utilização, neste contexto, do processo de intimação, desde que essa
utilização não tenha sido determinada por propósitos manifestamente dilatórios nem se revele
claramente desnecessária (cfr. artigo 106º, nº 2, que deve ser, no entanto, também ele
interpretado no respeito pelo artigo 7º).
De acordo com o artigo 60º, nº 4, não são também oponíveis ao interessado “eventuais
erros contidos na notificação ou na publicação, no que se refere à indicação do autor, da data,
do sentido ou dos fundamentos da decisão, bem como eventual erro ou omissão quanto à
existência de delegação ou subdelegação de poderes”. Significa isto que o interessado não
perde o prazo de impugnação e deve ser, portanto, admitido a suprir as falhas de que possa
enfermar a petição apresentada, sempre que essas falhas sejam imputáveis a erros ou
omissões cometidos na notificação ou na publicação do acto.
É possível que o suprimento das falhas possa passar apenas pela mera correcção ou subs-
tituição da petição (cfr., a propósito, artigos 88º e 89º). Se o erro ou omissão cometidos
tiverem, porém, induzido o interessado em erro quanto à desnecessidade da utilização de uma
via de impugnação administrativa necessária, a consequência que resulta do regime de
inoponibilidade do erro ou omissão, consagrado no artigo 60º, nº 4, é que o interessado deve
ser admitido a utilizar a via de impugnação administrativa necessária no momento em que o
erro ou a omissão vierem a ser identificados, sem que lhe seja oponível a objecção de que, em
circunstâncias normais, os prazos já teriam expirado.
98. O artigo 59º, nº 4, prevê que a utilização de qualquer meio de impugnação
administrativa tem efeito suspensivo sobre o prazo da impugnação contenciosa dos actos ad-
ministrativos.
Note-se que o artigo 59º, nº 4, não estabelece que a utilização de qualquer meio de im-
pugnação administrativa suspende os efeitos do acto impugnado, mas apenas que ela suspen-
de o prazo de impugnação contenciosa. Por este motivo se garante ao interessado, no nº 5, a
faculdade de, a todo o momento, prescindir desse efeito suspensivo e proceder à impugnação
contenciosa do acto na própria pendência da impugnação administrativa, assim como se lhe
assegura a possibilidade de lançar mão da tutela cautelar, designadamente para o efeito de
obter do tribunal administrativo a suspensão da eficácia do acto, que não resultou da sua im-
pugnação administrativa.
2. Pressupostos específicos em matéria eleitoral e pré-contratual (arts. 98º e 101º do
CPTA)
99. Nos artigos 97º a 103º, o CPTA prevê duas formas especiais de processos, que qualifica
como “impugnações urgentes”. Trata-se de processos especiais de impugnação de actos admi-
nistrativos. Aplica-se-lhes, portanto, o que no Título III se dispõe para os processos não-urgen-
tes de impugnação, que se enquadram na forma da acção administrativa especial, com as
adaptações estabelecidas nos referidos artigos. É o que resulta das remissões contidas nos
artigos 97º, nº 1, 99º, nº 1, 100º, nº 1, e 102º, nº 1.
Por conseguinte, o regime dos pressupostos processuais que estudámos até aqui é
aplicável aos dois tipos de processos especiais urgentes de impugnação previstos nos artigos
97º a 103º, salvo quanto aos aspectos que nesses artigos são objecto de regulação própria.
a) No que respeita à primeira dessas formas de processo, que se refere ao “contencioso
eleitoral”, regulado nos artigos 97º a 99º, a principal diferença diz respeito ao prazo de
impugnação, que é fixado em apenas sete dias, valendo este prazo não apenas para a
anulação, mas também para a própria declaração de nulidade dos actos impugnados.
Por outro lado, os actos anteriores ao acto eleitoral que podem ser objecto de
impugnação autónoma são apenas os actos relativos à exclusão ou omissão da inscrição de
eleitores ou elegíveis nos cadernos ou listas eleitorais (artigo 98º, nº 3), que podem ser
impugnados pelas pessoas cuja inscrição tenha sido omitida (artigo 98º, nº 1). De resto, a
impugnação está ao alcance de quem seja eleitor ou elegível na eleição em causa (artigo 98º,
nº 1).
b) Quanto ao segundo dos processos especiais urgentes de impugnação previstos no
Título IV, que se refere ao chamado “contencioso pré-contratual”, regulado nos artigos 100º a
103º, o primeiro aspecto a assinalar é o de que essa forma de processo não tem por objecto a
impugnação de todo e qualquer acto administrativo praticado no âmbito de procedimentos de
formação de contratos públicos, mas apenas a impugnação de actos relativos à formação dos
contratos especificamente previstos no nº 1 do artigo 100º. Como refere o artigo 100º, nº 1,
trata-se, na verdade, de estabelecer um regime específico para a impugnação contenciosa dos
actos administrativos praticados no âmbito do procedimento de formação de certos e
determinados tipos de contratos públicos: os contratos de empreitada de obras públicas, de
concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens.
A segunda chamada de atenção prende-se com o facto de o artigo 100º estender o âmbito
de aplicação desta forma de processo a actos jurídicos que não são actos administrativos. É o
que sucede com o programa do concurso, o caderno de encargos e os demais documentos
conformadores do procedimento de formação do contrato, que, pelo seu conteúdo genérico,
não devem ser qualificados como actos administrativos (artigo 100º, nº 2). É também o caso
dos actos jurídicos praticados por sujeitos privados, no âmbito de procedimentos pré-
contratuais de direito público (artigo 100º, nº 3). Está, neste último domínio, a pensar-se nos
casos em que pessoas colectivas de direito privado são obrigadas por lei a adoptar — ou, em
todo o caso, optam por adoptar — procedimentos pré-contratuais previstos e regulados por
normas de direito público.
Também em relação a esta forma de processo avulta, entretanto, o regime especial
estabelecido quanto ao prazo de impugnação, que o artigo 101º fixa em um mês, sendo
unânime o entendimento da jurisprudência no sentido de que este prazo vale não apenas para
a anulação, mas também para a própria declaração de nulidade dos actos impugnados.
§ 2º - A condenação à prática de actos administrativos
Omissão ou recusa da Administração (art. 67º do CPTA) e situações em que o
pressuposto deve ser dispensado (arts. 47º, nº 2, al. a), e 68º, nº 1, al. c), do CPTA);
tempestividade da propositura da acção (art. 69º do CPTA); eventual necessidade de
impugnação administrativa.
1. Omissão ou recusa da prática do acto administrativo
100. De acordo com o disposto no artigo 67º, nº 1, a condenação à prática de actos admi-
nistrativos pode ser pedida em três tipos de situações.
1.1. Omissão da prática do acto administrativo
101. O primeiro desses tipos de situações, previsto no artigo 67º, nº 1, alínea a), tem lugar
quando, tendo sido constituída no dever de decidir (cfr., a propósito, o disposto no artigo 9º
do CPA), a Administração tenha permanecido omissa, sem proferir decisão, até expirar o prazo
legalmente estabelecido para decidir. O artigo 67º, nº 2, estabelece, entretanto, que “a falta
de resposta a requerimento dirigido a delegante ou subdelegante é imputada ao delegado ou
subdelegado, mesmo que a este não tenha sido remetido o requerimento”. E o artigo 67º, nº
3, ainda introduz um mecanismo inovador do mesmo tipo, destinado a proteger o interessado
nas situações em que a Administração não dê cumprimento ao disposto no artigo 34º do CPA.
102. A previsão do artigo 67º, nº 1, alínea a), tem por objecto situações de incumprimen-
to, por parte da Administração, do dever de decisão perante requerimentos que lhe sejam
apresentados. Corresponde, portanto, às situações em que, anteriormente, havia lugar à for-
mação de actos tácitos — mais concretamente, de indeferimentos tácitos, interessando, para
este efeito, distinguir claramente a figura do indeferimento tácito, prevista no artigo 109º do
CPA, da figura do deferimento tácito, cujo regime está genericamente regulado no artigo 108º
do mesmo Código, embora a sua existência dependa, em cada caso, de previsão em legislação
avulsa.
a) O deferimento tácito é um acto administrativo que resulta de uma presunção legal. Os
domínios legalmente previstos em que se aceita que o silêncio da Administração equivalha a
um acto positivo, favorável às pretensões dos particulares, são domínios em que a regra, se-
gundo a experiência comum, é a do deferimento. É sobretudo o domínio das autorizações
permissivas, em que a intervenção limitativa da Administração é legalmente configurada com
traços de excepcionalidade, por se tratar de domínios de restrição excepcional da esfera
jurídica dos particulares; e o domínio das aprovações, no que toca às relações entre órgãos da
Administração Pública (cfr., hoje, artigo 108º nº 1 do CPA) — domínios nos quais se tende a
admitir que a tendência normal da Administração vai no sentido de deferir as pretensões que
lhe são apresentadas. É nestes domínios que, por vezes, a lei associa à inércia da Administra-
ção uma presunção de assentimento e, portanto, de concordância com as pretensões que lhe
sejam apresentadas pelos requerentes, prevendo, assim, a formação de deferimentos tácitos.
As situações de deferimento tácito são, por conseguinte, situações em que, nos casos ex-
pressamente previstos na lei (cfr. artigo 108º, nº 3, do CPA), a lei associa ao decurso do prazo
legal para a tomada da decisão a presunção de que a pretensão apresentada pelo requerente
foi julgada conforme às exigências postas pelo ordenamento jurídico, pelo que atribui à
passividade do órgão competente o significado legal tipicizado de deferir a pretensão.
Estamos, pois, perante uma presunção legal através da qual a lei extrai da conduta de inércia
da Administração o efeito jurídico de um deferimento que substitui, para todos os efeitos, o
acto administrativo de sentido positivo que foi omitido.
Em situações de deferimento tácito, não há, portanto, lugar para a propositura de uma
acção de condenação à prática do acto omitido, pelo simples motivo de que a produção desse
acto já resultou da lei. Poderá ser, quando muito, proposta — segundo os termos da acção
administrativa comum e desde que, para o efeito, exista, naturalmente, o necessário interesse
processual (cfr. artigo 39º) — uma acção dirigida ao reconhecimento de que o acto tácito se
produziu ou porventura de condenação da Administração ao reconhecimento de que assim é,
para o efeito de adoptar os actos jurídicos e/ou as operações materiais que sejam devidos por
esse facto.
b) As situações de incumprimento, por parte da Administração, do dever de decidir que lei
especial não qualifique como de deferimento tácito eram tradicionalmente qualificadas como
situações de indeferimento tácito, figura ainda hoje prevista no artigo 109º do CPA. O
indeferimento tácito constituía uma ficção legal, criada porque, no modelo tradicional do
contencioso administrativo de tipo francês, centrado na impugnação mesmo de actos
administrativos de indeferimento, era necessário ficcionar, em situações de inércia ou omissão
que lei especial não qualificasse como de deferimento tácito, a existência de um acto adminis-
trativo de indeferimento que pudesse ser objecto de impugnação.
Desde a entrada em vigor do CPTA e, com ela, desde a introdução da possibilidade da
dedução junto dos tribunais administrativos de pedidos de condenação da Administração à
prática de actos administrativos ilegalmente omitidos, é entendimento unânime na doutrina e
na jurisprudência que o artigo 109º, nº 1, do CPA foi tacitamente revogado na parte em que
reconhecia ao interessado “a faculdade de presumir indeferida [a sua] pretensão, para poder
exercer o respectivo meio legal de impugnação”, devendo passar a ser lido como
estabelecendo apenas que a falta de decisão administrativa dentro do prazo legal confere ao
interessado a possibilidade de lançar mão do meio de tutela adequado: a partir do momento
em que se deixa de fazer depender o acesso à jurisdição administrativa da existência de um
acto administrativo passível de impugnação, deixa de ser, na verdade, necessário ficcionar, nas
situações de pura inércia ou omissão, a existência de um indeferimento tácito que possa ser
objecto de impugnação.
Fora dos casos específicos em que a lei preveja a formação de deferimentos tácitos, o
incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir por parte da Administração passou, assim,
a ser tratado como a omissão pura e simples que efectivamente é, ou seja, como um mero
facto constitutivo do interesse em agir em juízo para obter uma decisão judicial de condenação
à prática do acto ilegalmente omitido. Por esse motivo, o Código tem o cuidado de evitar
utilizar, em qualquer dos seus preceitos, a palavra silêncio a este propósito (cfr. artigos 69º, nº
1, e 79º, nº 5) e quando fala de indeferimentos (por exemplo, nos artigos 69º, nº 2, ou 79º, nº
4), só se refere a verdadeiros actos administrativos (actos expressos, portanto) e nunca a situa-
ções de pura inércia ou omissão, em que não existe um acto de indeferimento.
103. Como resulta do artigo 67º, nº 1, alínea a) (cfr. também artigo 69º, nº 1), existe um
prazo legal para a emissão do acto devido, uma vez expirado o qual o interessado fica
habilitado a fazer valer em juízo o seu direito ao acto ilegalmente omitido. Na ausência de dis-
posição especial, esse prazo continua a ser determinado por aplicação das regras do artigo
109º, nºs 2 e 3, do CPA. Aí se estabelece, com efeito, o prazo-regra de noventa dias, que se
conta em dias úteis, nos termos previstos no artigo 72º do CPA: é, pois, uma vez expirado esse
prazo que o interessado fica dispensado de continuar a aguardar a decisão da Administração e
legitimado a exigir contenciosamente a prática do acto devido.
104. Como foi oportunamente referido, o CPTA não obsta à existência de impugnações
administrativas necessárias e, portanto, não tem, só por si, o alcance de erradicar a figura do
recurso hierárquico necessário. Justifica-se, por isso, uma referência à situação em que fica
colocado o titular de uma posição subjectiva de conteúdo pretensivo que, tendo apresentado
um requerimento a um órgão subordinado, se veja confrontado com uma atitude de omissão
do dever de decidir em situações em que, nos termos da lei, deva haver lugar à interposição de
recurso hierárquico necessário.
A nosso ver, quer haja omissão ou recusa, há lugar à interposição de recurso hierárquico
necessário, quando ele for exigido por lei especial. O recurso não tem por objecto necessaria-
mente um acto do subordinado, mas a sua conduta, ainda que omissiva. Como resulta do que
foi dito no ponto anterior, quando o subordinado tenha, porém, permanecido omisso, o
objecto do recurso hierárquico não é um acto ficto ou presumido, mas a própria conduta
factual de inércia do subordinado.
No silêncio da lei, parece dever ser de um ano, de harmonia com o disposto no artigo 69º,
nº 1, o prazo dentro do qual o interessado deve interpor o recurso hierárquico necessário, no
caso de se ver confrontado com uma atitude de inércia por parte do órgão subordinado
perante o qual apresentou o seu requerimento (78).
Deve, entretanto, entender-se que o artigo 175º, nº 3, do CPA passa a ter o alcance de
determinar que, sempre que, tendo sido interposto recurso hierárquico necessário, não haja
resposta do superior, o recurso hierárquico só se considera tacitamente indeferido para o
efeito de permitir que o interessado requeira ao tribunal administrativo competente a
condenação da Administração (recorde-se: da pessoa colectiva pública ou do Ministério
demandados) à prática do acto administrativo devido. Tal como sucede com a do subordinado,
e pelas mesmas razões, a eventual atitude de inércia ou omissão que o superior venha a
adoptar neste contexto não deve continuar, a nosso ver, a ser qualificada como um acto ju-
78() A necessidade de uma clarificação no CPA quanto a este ponto foi assinalada por MARGARIDA CORTEZ, “A inactividade formal da Administração como causa extintiva do procedimento e as suas con-sequências”, in Stvdia Ivridica nº 61 — Ad Honorem (Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares), Coimbra, 2001, pp. 384-385, sem que as transformações operadas no plano da tutela contenciosa das posições subjectivas dos particulares pareçam comprometer, como se defende no texto, a utilidade da su-gestão.
rídico (que não existe), mas como o mero facto que efectivamente é e cuja ocorrência, decor-
rido o prazo legal, tem o estrito alcance de abrir o acesso à via contenciosa, sem influir sobre
os termos em que deve ser determinado o objecto do processo a intentar perante os tribunais
administrativos — processo que não pode deixar, portanto, de ter por objecto o mesmo reco-
nhecimento judicial do direito do interessado ao acto devido que teria se a acção pudesse ter
sido imediatamente proposta perante a inércia ou a recusa do próprio órgão subordinado (79).
1.2. Indeferimento da pretensão do interessado
105. O segundo tipo de situações em que pode ser pedida a condenação à prática de um
acto administrativo, previsto no artigo 67º, nº 1, alínea b), é aquela em que tenha sido
indeferida a pretensão deduzida pelo interessado, através da recusa expressa da prática do
acto requerido.
106. Como já vimos, a reacção contra actos administrativos de indeferimento não pode
ser objecto de um processo impugnatório, dirigido à mera anulação ou declaração de nulidade
desses actos, mas processa-se através de um processo de condenação, que, portanto, não
funciona apenas como um instrumento de tutela contra situações de inércia ou omissão, mas
pode ser utilizado independentemente da questão de saber se a Administração respondeu ou
não à pretensão que, nesse sentido, lhe foi apresentada pelo interessado.
Como claramente resulta dos artigos 51º, nº 4, e 66º, nº 2, quando se veja, pois, confron-
tado com um acto de indeferimento, o titular de uma posição subjectiva de conteúdo pretensi-
vo deve fazer valer a sua própria posição substantiva, em todas as dimensões em que ela se
desdobra, no âmbito de um processo de condenação da Administração à prática do acto
ilegalmente recusado. O artigo 66º, nº 2, tem, entretanto, o cuidado de esclarecer que a
eliminação do eventual acto de indeferimento da ordem jurídica resulta, só por si, da
pronúncia de condenação mediante a qual o tribunal imponha a sua substituição pelo acto
devido (80).
1.3. Recusa de apreciação do requerimento
79() Como, aliás, no caso de o recurso hierárquico ter sido interposto contra um acto administrativo de conteúdo positivo, também terá por objecto a apreciação das causas de invalidade de que padeça o acto praticado pelo órgão subordinado, a exemplo do que sucederia se a impugnação pudesse ter sido intentada desde logo, sem a necessidade de se aguardar pela (que expirasse o prazo reservado à) pronúncia do supe-rior. 80() Para mais desenvolvimentos sobre este ponto, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pp. 106 segs.
107. O terceiro tipo de situação em que pode ser pedida a condenação à prática de um
acto administrativo, previsto no artigo 67º, nº 1, alínea c), é aquela em que tenha sido recusa-
da a apreciação do requerimento dirigido à prática do acto administrativo.
O pedido de condenação da Administração à prática de actos administrativos devidos
também pode ser, pois, deduzido independentemente da questão de saber se, ao proferir o
acto de indeferimento, a Administração se pronunciou sobre o mérito da pretensão, ou se,
pelo contrário, ela se limitou a recusar liminarmente a sua apreciação.
Esta última situação compreende duas sub-hipóteses, dado que a recusa de apreciação
tanto se pode basear em motivos de ordem formal, como em considerações que envolvam a
formulação de juízos valorativos quanto à oportunidade de decidir (81). Por isso, a recusa tanto
pode ser contestada com fundamento na inexistência de facto dos motivos de ordem formal
ou com a falta de fundamento normativo que permitisse a sua invocação — desde logo,
eventual discordância em relação à interpretação que a Administração faça do artigo 9º, nº 2,
do CPA —, como com base na existência de circunstâncias que, no caso concreto, restrinjam
ou eliminem a discricionariedade de acção que, em abstracto, a lei confira à Administração e
de que ela se arrogue para se recusar a agir.
Cumpre notar que, mesmo neste tipo de situações, em que o autor se viu confrontado
com uma decisão que recusou a própria apreciação do requerimento apresentado, ele leva a
juízo a sua posição subjectiva de conteúdo pretensivo, em todas as dimensões em que ela se
desdobra. Os termos em que se define o objecto do processo de condenação que, neste caso,
ele intenta não diferem, por isso, no essencial, daqueles em que ele se define nos outros
processos de condenação à prática de actos administrativos.
2. Prazos de propositura da acção
108. No que se refere aos prazos de propositura das acções dirigidas à condenação à
prática de actos administrativos, há que distinguir consoante a Administração adoptou uma
81() Cfr. CARLOS CADILHA, “O silêncio administrativo”, p. 34.
atitude de inércia ou, pelo contrário, respondeu ao requerimento apresentado, emitindo um
acto de indeferimento da pretensão ou de recusa de apreciação do requerimento.
a) No primeiro caso, a acção deve ser proposta no prazo de um ano, contado desde o ter-
mo do prazo legal dentro do qual a Administração deveria ter respondido ao requerimento. A
fixação deste prazo compreende-se para evitar, por razões de segurança jurídica, que a
Administração possa ser demandada em tribunal vários anos após a verificação da situação de
incumprimento do dever de decidir, com fundamento na apresentação de um requerimento
de que pode já não haver memória.
Uma vez expirado o prazo de um ano estabelecido no artigo 69º, nº 1, o interessado pode,
naturalmente, apresentar de novo idêntico requerimento. Como não houve anteriormente
qualquer decisão, a este requerimento não pode ser oposto o regime do artigo 9º, nº 2. A
nosso ver, a nova apresentação do mesmo pedido, apoiado nos mesmos fundamentos, não se
dirige a constituir de novo o órgão competente no dever de decidir, porque ele ficou
constituído nesse dever desde o momento em que o primeiro requerimento foi apresentado e
esse dever não se extinguiu, no plano substantivo, com a caducidade, no plano processual, do
direito de reacção judicial contra o incumprimento. Ela dirige-se a reabrir a via judicial. Trata-
se, na verdade, de uma segunda interpelação da Administração para cumprir, com o alcance
de, uma vez decorrido o prazo legal, abrir de novo, e de novo pelo prazo de um ano, o acesso à
via judicial em ordem a reagir contra nova eventual atitude de inércia.
b) Na hipótese de ter havido lugar à emissão de um acto de indeferimento, a acção deve
ser ser proposta, como determina o artigo 69º, nº 2, e também sucede, no direito alemão, no
âmbito da Verpflichtungsklage, dentro do mesmo prazo de três meses que o artigo 58º, nº 2,
alínea b), estabelece para a impugnação dos actos administrativos, determinando o artigo 69º,
nº 3, que também neste domínio é aplicável à contagem do prazo o disposto nos artigos 59º e
60º.
Tal como sucede com o artigo 66º, nº 2, esta solução confirma a posição do CPTA de
configurar o acto de indeferimento como um verdadeiro acto administrativo, a que deve
corresponder o regime adequado à natureza dos actos administrativos, designadamente no
que se refere ao tradicional entendimento de que a necessidade de segurança e estabilidade
na definição do quadro das relações jurídico-administrativas exige que os actos administrativos
só possam ser judicialmente questionados durante um período de tempo limitado, sob pena
de o acto se consolidar e, portanto, de a definição por ele introduzida já não poder ser posta
em causa.
§ 3º - O contencioso dos regulamentos
1. Pressupostos de âmbito geral dos arts. 73º e 77º do CPTA
1.1. Pressupostos relativos à declaração de ilegalidade dos regulamentos
109. É nos artigos 72º a 76º que o CPTA reune um conjunto de disposições respeitantes
aos processos que “tenham por objecto a declaração da ilegalidade de normas emanadas ao
abrigo de disposições de direito administrativo” (artigo 72º, nº 1). Está aqui em causa o
contencioso de impugnação das normas emanadas no exercício da função administrativa, o
que compreende toda e qualquer norma emanada no exercício de poderes conferidos pelo
direito administrativo, uma vez que, seja qual for o ramo do direito em que as normas adminis-
trativas irão ser objecto de aplicação, as regras sobre a sua produção (competência, forma,
etc.) são de direito administrativo, pelo que incumbe aos tribunais administrativos verificar se
essas regras foram devidamente respeitadas (82).
Ora, no domínio da impugnação de normas, os artigos 72º a 76º prevêem dois tipos de
pronúncias judiciais. É a respeito de cada um deles que cumpre, portanto, identificar o
específico regime estabelecido quanto aos correspondentes pressupostos processuais.
a) A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida, sem depen-
dência de quaisquer outros pressupostos, pelo Ministério Público (artigo 73º, nº 3), oficiosa-
mente ou mediante requerimento apresentado pelas pessoas e entidades mencionadas no
artigo 9º, nº 2, para defesa dos valores aí mencionados. O Ministério Público fica constituído
no dever de deduzir esse pedido “quando tenha conhecimento de três decisões de desaplica-
ção de uma norma com fundamento na sua ilegalidade” (artigo 73º, nº 4).
82() No mesmo sentido, a propósito da reforma de 1984/1985, cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A impugnação e anulação contenciosa dos regulamentos”, Revista de Direito Público, Ano I, nº 2, p. 43.
Esta declaração também pode ser pedida por quem tenha sido prejudicado pela aplicação
da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo. Neste caso, a declaração
só pode ser pedida se a aplicação da norma já tiver sido recusada por qualquer tribunal, em
três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade (artigo 73º, nº 1).
A dedução do pedido não está, em qualquer dos casos, sujeita à observância de qualquer
prazo (artigo 74º).
b) Quando os efeitos de uma norma se produzam imediatamente, sem dependência de
qualquer acto de aplicação, o artigo 73º, nº 2, admite que “o lesado pode obter a desaplicação
da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso”.
O Código prevê, assim, um segundo tipo de pronúncia que pode ser proferida nos pro-
cessos de impugnação de normas administrativas. Trata-se da declaração de ilegalidade sem
força obrigatória geral, isto é, de uma declaração de que a norma impugnada é ilegal que só
vale para o interessado. O alcance que o preceito directamente associa a esta declaração é o
de “obter a desaplicação da norma”, ou seja, o alcance de impedir que a norma possa ser
aplicada ao interessado.
Note-se que o interessado lesado por uma norma directamente aplicável, mas já
incidentalmente julgada ilegal por três vezes, não está obrigado a pedir a declaração de
ilegalidade dessa norma com força obrigatória geral. Ele pode limitar-se a pedir que a decla-
ração seja proferida com efeitos circunscritos ao seu caso, evitando, desse modo, o risco de se
poder ver confrontado com uma decisão de limitação de efeitos. Como expressamente refere
o artigo 73º, nº 2, na sua parte inicial, a possibilidade de pedir a declaração de ilegalidade com
efeitos de âmbito circunscrito está consagrada “sem prejuízo do disposto no número anterior”.
Trata-se, portanto, de uma faculdade que assiste aos lesados, sem prejuízo daquela que o
artigo 73º, nº 1, também lhes reconhece, assim como a um leque mais alargado de possíveis
interessados.
Como, entretanto, claramente resulta da letra do preceito, a restrição prevista no artigo
72º, nº 2, só vale para a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. A declaração de
ilegalidade sem força obrigatória geral pode, por isso, basear-se na eventual inconstitucionali-
dade da norma impugnada. Tal como, aliás, também se poderia basear na incons-
titucionalidade da norma o pedido da sua desaplicação incidental, no âmbito do processo de
impugnação do acto administrativo de aplicação, se a norma não fosse directamente aplicável
e houvesse, portanto, lugar à prática de um acto desse tipo.
Acrescente-se que tudo o que fica dito também vale para a hipótese, contemplada no ar-
tigo 73º, nº 2, de o pedido de declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral ser de-
duzido por qualquer das pessoas e entidades legitimadas a fazê-lo em defesa dos valores
mencionados no artigo 9º, nº 2.
2. Pressupostos relativos à declaração de ilegalidade por omissão de regulamento
110. O artigo 77º do CPTA legitima o Ministério Público, as demais pessoas e entidades
defensoras dos interesses referidos no artigo 9º, nº 2, e quem alegue um prejuízo
directamente resultante da situação a reagir judicialmente contra a omissão ilegal de normas
administrativas cuja adopção “seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos
carentes de regulamentação”.
§ 4º - O contencioso de anulação de contratos
111. Segundo dispõe o nº 2 do artigo 41º do CPTA, as acções de anulação de contratos
que se enquadram no âmbito da acção administrativa comum devem ser propostos no prazo
de seis meses contado da data da celebração do contrato ou, quanto a terceiros, do
conhecimento do seu clausulado.
§ 5º - A condenação de particulares à adopção ou abstenção de comportamentos em
acções propostas por outros particulares
112. O nº 3 do artigo 37º do CPTA estabelece os pressupostos específicos de que depende
a propositura, segundo a forma da acção administrativa comum, de acções dirigidas à
condenação de particulares, designadamente concessionários, à adopção ou abstenção dos
comportamentos necessários a assegurar o cumprimento de vínculos jurídico-administrativos.
Nesse sentido, o referido preceito prevê que os particulares cujos direitos ou interesses
sejam directamente ofendidos possam demandar, perante os tribunais administrativos, outros
particulares, que não têm de ser necessariamente concessionários, por estes estarem a violar
normas de direito administrativo ou obrigações jurídico-administrativas contratualmente assu-
midas ou darem indícios que justifiquem o fundado receio de as poderem vir a violar, pedindo
que eles sejam condenados a adoptar ou a abster-se de certo comportamento, por forma a
assegurar o cumprimento das normas ou obrigações em causa. Pressuposto para a utilização
desta possibilidade é que os interessados tenham previamente solicitado às autoridades com-
petentes que adoptassem as medidas adequadas, sem que estas o tenham feito.
§ 6º - A intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem
de certidões
113. O CPTA regula nos artigos 104º a 108º um processo especial urgente de intimação
para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões. Trata-se de
uma forma especial de processo dirigida a assegurar uma tutela específica, em condições de
maior celeridade, ao direito à informação procedimental, fundado nos artigos 61º a 64º do
CPA, e ao direito à informação extra-procedimental, consagrado no artigo 268º, nº 2, da CRP.
Os pressupostos processuais de que depende a utilização desta forma especial de
processo urgente são os seguintes.
Primeiro pressuposto é que o interessado tenha apresentado à Administração um pedido
dirigido a obter a consulta de um processo, a passagem de uma certidão ou a prestação de
informações e se tenha visto confrontado com um dos três tipos de situações seguintes: (a)
decurso do prazo legalmente estabelecido, sem que a entidade requerida tenha dado
satisfação à pretensão; (b) indeferimento do pedido; (c) satisfação apenas parcial do pedido.
Esta forma de processo tanto pode ser, portanto, utilizada quando a Administração tenha
permanecido omissa, como quando ela tenha respondido à pretensão do interessado. O prazo
dentro do qual o interessado pode deduzir o pedido de intimação começa, assim, a correr,
consoante os casos, com o termo do prazo de que a Administração dispunha para satisfazer o
pedido, ou com a data da notificação do acto de indeferimento expresso ou de deferimento
parcial. O prazo para a Administração facultar a consulta do processo, emitir a certidão ou
prestar as informações é, entretanto, de dez dias (artigos 61º, n.º 3, 63, n.º 1, e 71º, n.º 1, do
CPA) e conta-se em dias úteis, nos termos previstos no artigo 72º do CPA.
§ 7º - A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias
114. O CPTA regula nos artigos 109º a 111º um processo especial urgente de intimação
para protecção de direitos, liberdades e garantias, que pode ser utilizado quando a célere
emissão de uma decisão de mérito que imponha “a adopção de uma conduta positiva ou nega-
tiva se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade
ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento
provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131º” (artigo 109º, nº 1).
Segunda Parte — Formas do Processo Administrativo
Título Primeiro – Processos Declarativos
As formas do processo administrativo declarativo e sua tangibilidade decorrente do
princípio da livre cumulabilidade dos pedidos, independentemente da forma do processo
(arts. 4º e 5º do CPTA): acção administrativa comum, acção administrativa especial e
processos urgentes (arts. 35º e 36º do CPTA); a acção administrativa comum como o
processo comum do contencioso administrativo (art. 37º do CPTA); âmbito de aplicação da
acção administrativa especial (art. 46º do CPTA); âmbito de aplicação dos processos urgentes
(arts. 97º, 100º, 104º e 109º do CPTA).
115. Como foi oportunamente referido (cfr. nº 5), o conceito de forma do processo
designa o conjunto ordenado de actos e formalidades que devem ser observados na
propositura e desenvolvimento da acção em tribunal. De acordo com o princípio da tipicidade
legal das formas de processo, a lei estabelece os modelos de tramitação por que devem passar
os diferentes processos, desde o momento em que a acção é proposta perante o tribunal até
ao momento em que este vem a proferir a correspondente decisão. A previsão legal de
diferentes formas de processo resulta da opção do legislador no sentido de que os processos
não devem ter todos a mesma tramitação, mas devem ser, pelo contrário, reconduzidos a
tipos diferenciados, e de que a tramitação dos processos correspondentes a cada tipo deve
obedecer a uma sequência específica de actos e formalidades. E são vários os critérios que
podem levar o legislador a prever múltiplas formas de processo, assim como a dividir os
processos por tipos, determinando a que formas de processo devem corresponder os
diferentes tipos legalmente previstos e delimitados.
O tema das formas do processo declarativo é objecto da Secção II do Capítulo V da Parte
Geral do CPTA, que é constituída apenas por dois artigos, o artigo 35º e o artigo 36º. Esta
Secção e, em especial, o artigo 35º desempenham um papel fundamental na determinação da
estrutura do Código. Com efeito, aí se diz quais são as formas, os modelos de tramitação, a
que devem obedecer os processos declarativos e, como expressamente aí se refere, a es-
trutura do Código é determinada, nos subsequentes Títulos II, III e IV, em função das formas de
processo que, nessa sede, são identificadas.
Cumpre, em todo o caso, notar que, ao contrário do que sucedia no regime anterior ao
CPTA, este veio, entretanto, admitir a cumulação, num mesmo processo, de pretensões que, à
partida, corresponderiam, se fossem deduzidas em separado, a diferentes formas de processo.
É o que resulta do artigo 4º, nº 1, do CPTA, de acordo com o qual num mesmo processo decla-
rativo podem ser deduzidas diferentes pretensões, desde que a causa de pedir seja a mesma e
única e os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, ou
desde que, sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa es-
sencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos
princípios ou regras de direito.
Pense-se no exemplo do funcionário público que é objecto de uma decisão ilegal de
demissão. Num mesmo processo, ele pode impugnar a decisão ilegal, pedindo a sua anulação
(pretensão dirigida a obter uma sentença constitutiva, de anulação, e, por via dela, o
restabelecimento da relação laboral) e pedir a condenação da entidade pública que o demitiu
a reintegrá-lo no posto de trabalho, a pagar-lhe os vencimentos em atraso e a indemnizá-lo
por outros danos sofridos (pretensões dirigidas a obter diferentes sentenças de condenação e,
por via delas, a retomar a prestação de trabalhar, a receber os vencimentos e a indemnização).
O artigo 4º, nº 2, limita-se, entretanto, a ilustrar os principais tipos de situações de
cumulação de pedidos que podem ter lugar nos processos administrativos. Não se trata, pois,
de um elenco fechado, mas meramente exemplificativo, que também neste domínio não
estabelece qualquer regime de tipicidade ou numerus clausus.
Tal como, no âmbito do regime da competência dos tribunais administrativos, sucede com
o artigo 21º, nos moldes já oportunamente expostos, o artigo 5º assegura, entretanto, que o
princípio da livre cumulabilidade de pedidos, tal como ele se encomtra consagrado no artigo
4º, não sofra entorses ou restrições decorrentes da aplicação das regras atinentes à
estruturação das formas do processo declarativo, impedindo que, mesmo que o CPTA faça
corresponder diferentes formas de processo aos pedidos cumulados, estabelecendo que os
correspondentes processos deveriam seguir tramitações diferenciadas, essa circunstância
constitua obstáculo à cumulação.
Nesse sentido, estabelece o artigo 5º, nº 1, que, quando forem cumulados pedidos a que
corresponderiam diferentes formas de processo, deve seguir-se a forma da acção
administrativa especial, cabendo ao tribunal introduzir na respectiva tramitação as adaptações
que se revelem necessárias. A exemplo do que sucede, em processo civil, no domínio de
intervenção do artigo 31º, nº 3, do CPC, as adaptações devem ser introduzidas no respeito
pelos princípios da igualdade das partes e do contraditório, para os quais remete o artigo 265º-
A do CPC (83).
116. Como foi preliminarmente referido a título introdutório (cfr. nº 21), resulta do
esquema genericamente traçado no artigo 35º e da subsequente estrutura do Código, nos
Títulos II, III e IV, e sem prejuízo de outros que possam ser consagrados em legislação especial,
o regime das formas do processo administrativo declarativo concretiza-se na previsão de duas
formas de processo que poderíamos qualificar como não-urgentes e de quatro formas de
processo que o próprio Código qualifica e regula como urgentes.
Referimo-nos, respectivamente, às formas de processo que o Código designa como acção
administrativa comum (cfr. artigo 35º, nº 1, e Título II: artigos 37º e seguintes) e como acção
83() Cfr., a propósito, M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, pp. 38-39.
administrativa especial (cfr. artigo 35º, nº 2, e Título III: artigos 46º e seguintes); e às formas de
processo que o Código qualifica como urgentes (cfr. artigos 35º, nº 2, 36º, nº 1, alíneas a) a d),
e Título IV: artigos 97º e seguintes) e que faz corresponder ao contencioso eleitoral (artigos
97º a 99º), ao contencioso relativo à impugnação de actos praticados no âmbito de
procedimentos pré-contratuais (artigos 100º a 103º) e ao contencioso de intimação para a
prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (artigos 104º a
108º) e para a protecção de direitos, liberdades e garantias (artigos 109º a 111º).
Sem prejuízo da existência de processos urgentes, o CPTA estrutura, assim, os processos
declarativos não-urgentes em torno de um modelo dualista, assente na contraposição entre
duas formas de processo, a que dá o nome de acção administrativa comum e de acção admi-
nistrativa especial. Para além das eventuais situações particulares de urgência, que são objecto
de regulação própria, o Código estabelece, portanto, uma distinção entre causas: há umas que
devem ser objecto de um processo cujos trâmites seguem a forma da acção administrativa
comum e outras que obedecem a um processo cuja tramitação corresponde à forma da acção
administrativa especial.
Como referem os artigos 35º, nº 1, e 42º, nº 1, e sem prejuízo das (escassas) particularida-
des que resultam do artigo 42º, a acção administrativa comum segue os mesmos termos a que
obedece o processo de declaração regulado no CPC.
Como entretanto refere o artigo 35º, nº 2, a acção administrativa especial rege-se pelas
disposições previstas no Título III e, portanto, observa, como determina o artigo 46º, nº 1, a
tramitação regulada no capítulo III desse Título, que consta dos artigos 78º e seguintes. As
causas que o Código faz corresponder à forma da acção administrativa especial não são,
portanto, tramitadas segundo os termos do processo de declaração do CPC, mas segundo um
modelo de tramitação próprio, que se encontra especificamente regulado no CPTA.
Como já foi oportunamente assinalado (cfr. nº 21), a opção por este modelo dualista
reconduz-se à matriz que — sem prejuízo da previsão de processos urgentes e acessórios — já
no regime anterior ao CPTA presidia à contraposição entre dois modelos de tramitação dos
processos que corriam perante os tribunais administrativos, pelo que, no essencial (84), assenta
no mesmo critério, de saber se o processo se reporta ou não a actos administrativos e normas
84() Cumpre, em todo o caso, reconhecer que o critério, embora tendencial, não é absoluto. É assim que, de acordo com o artigo 37º, nº 2, alínea c), seguem a forma da acção administrativa comum os processos em que se requeira a condenação da Administração à não emissão de um acto administrativo, matéria que diz respeito ao (não) exercício de um poder de autoridade através da prática de um acto administrativo.
regulamentares. No essencial das situações em que é esse o caso, o processo segue a forma da
acção administrativa especial.
Com efeito, estabelece o artigo 46º que seguem a forma da acção administrativa especial
os processos de impugnação de actos administrativos e normas regulamentares e os processos
dirigidos à condenação da Administração à emissão desse tipo de actos, em caso de recusa ou
omissão. Nos restantes casos, ou seja, sempre que nele não sejam deduzidas pretensões
relacionadas com esses tipos específicos de actos, o processo deve ser tramitado segundo a
forma da acção administrativa comum (cfr. artigo 37º).
117. As formas da acção administrativa especial e da acção administrativa comum corres-
pondem à generalidade das situações, em que não se verificam circunstâncias de especial
urgência que como tal estejam expressamente previstas pela lei, para o efeito de deverem
corresponder a uma forma de processo especial, caracterizada por um modelo de tramitação
mais acelerado em razão da urgência.
O âmbito de aplicação daquelas duas formas de processo encontra-se, por isso, à partida
delimitado em função dos processos urgentes que a lei entenda prever. Sem prejuízo de
outros que possam ser consagrados em legislação especial, aqueles que o próprio CPTA, desde
logo, institui no Título IV são, como foi referido, os processos do contencioso eleitoral (artigos
97º a 99º), do contencioso relativo à impugnação de actos praticados no âmbito de certos
procedimentos pré-contratuais (artigos 100º a 103º) e de intimação para a prestação de
informações, consulta de processos ou passagem de certidões (artigos 104º a 108º) e para a
protecção de direitos, liberdades e garantias (artigos 109º a 111º).
Na medida em que se preencham os pressupostos que o Código estabelece para cada um
destes quatro processos urgentes, os interessados podem, assim, utilizar estes meios em vez
dos meios não-urgentes, por forma a procurar obter com maior celeridade uma decisão de
mérito sobre as suas pretensões — pretensões que, dependendo dos casos, tanto se poderão
dirigir contra a Administração, como contra particulares, e tanto poderão ter por objecto a im-
pugnação de actos administrativos, como a condenação da Administração à adopção ou abs-
tenção de condutas ou à prática de actos administrativos.
Este último aspecto merece ser salientado, na medida em que se reveste de grande
importância para a caracterização dos processos urgentes, em contraponto com as outras duas
formas de processo. Com efeito, foi dito que a contraposição que, no plano da tutela não-
urgente, o CPTA estabelece entre as formas da acção administrativa comum e da acção admi-
nistrativa especial assenta no critério de saber se o processo diz ou não respeito ao exercício
de poderes de autoridade por parte da Administração. Este aspecto, pelo contrário, não releva
na configuração do quadro dos processos urgentes, que são instituídos exclusivamente em
função da existência de situações de urgência que exijam a obtenção de uma pronúncia sobre
o mérito da causa por forma mais célere.
Título Segundo – Processos cautelares
118. Como expressamente resulta do artigo 268º, nº 4, da CRP, a tutela jurisdicional
efectiva perante a Administração Pública inclui a adopção de medidas cautelares adequadas. É,
na verdade, essencial à realização da justiça que os tribunais possam adoptar, em momento
anterior àquele em que o processo vem a ser decidido, providências cautelares, destinadas a
dar uma regulação provisória aos interesses envolvidos no litígio. Em princípio, as providências
cautelares estabelecem, pois, uma regulação provisória para o litígio, dirigida a assegurar a
justa composição dos interesses durante a pendência do processo declarativo.
Como refere o artigo 112º, nº 1, as providências cautelares existem para assegurar a
utilidade das sentenças a proferir nos processos judiciais e, portanto, para prevenir a
inutilidade, total ou parcial, das sentenças, seja por infrutuosidade, seja por retardamento.
Existe inutilidade da sentença por infrutuosidade quando, mercê da evolução das
circunstâncias, já não é possível dar corpo, no plano dos factos, ao que é determinado na
sentença, pelo que se assiste à perda definitiva da utilidade pretendida no processo principal.
A sentença é (parcialmente) inútil em virtude do retardamento, na medida em que, embora a
sua execução seja possível e permita evitar a produção de danos futuros, a verdade é que já
não está em condições de remover os danos irreparáveis ou de difícil reparação que
resultaram do estado de insatisfação do direito que se manteve durante a pendência do
processo.
119. As providências cautelares tanto podem ser requeridas antes, como simultanea-
mente ou mesmo depois da propositura da acção principal (artigo 114º, nº 1). Tanto se pode
pedir uma providência cautelar, como várias, por forma a obter, da conjugação dos efeitos de
cada uma, o resultado pretendido (artigo 112º, nº 1), podendo também o tribunal optar pela
adopção de uma ou de várias providências e até, ouvidas as partes, pela adopção de outra ou
de outras, em cumulação ou em substituição daquela ou daquelas que tinham sido concre-
tamente requeridas, “quando tal se revele adequado a evitar ou atenuar a lesão dos interesses
defendidos pelo requerente e seja menos gravoso para os demais interesses, públicos ou
privados, em presença” (artigo 120º, nº 3).
Como desde logo resulta do teor do artigo 112º, nº 1, ao referir-se a “quem possua le-
gitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos” — mas também
transparece dos vários preceitos que, ao longo do Título V, se referem aos “interesses que o
requerente visa assegurar” (cfr., por exemplo, os artigos 120º e 129º) —, a legitimidade para
requerer a adopção de providências cautelares não pertence apenas aos particulares que
recorram à justiça administrativa em defesa dos seus direitos ou interesses legalmente
protegidos, mas também ao Ministério Público (cfr., aliás, a referência no artigo 124º, nº 1) e a
quem quer que actue no exercício da acção popular ou impugne um acto administrativo com
fundamento num interesse directo e pessoal, no óbvio pressuposto de que a todos deve ser
reconhecida a possibilidade de verem acautelada a utilidade do processo principal que estão
legitimados a intentar.
Por este motivo se surpreende, em diversos preceitos — a começar pelo artigo 120º, nºs 2
e 3, que impõem ao juiz o dever de ponderar “os interesses, públicos e privados, em presença”
—, a preocupação do Código em evitar uma terminologia assente na clássica contraposição
entre o interesse privado, que seria prosseguido pelo requerente da providência, e o interesse
público, que seria titulado pela Administração demandada.
Como foi assinalado durante a discussão pública sobre a reforma do contencioso
administrativo, multiplicam-se hoje “as situações em que estão em causa decisões complexas,
envolvendo uma multiplicidade de interesses públicos e privados conflituantes, como acontece
nas relações jurídicas poligonais, ambientais e urbanísticas”, em que muitas vezes o
requerente, seja ele o Ministério Público, uma associação ambientalista ou um grupo de
moradores, se movem em defesa de interesses públicos, porventura contrapostos aos (outros)
interesses públicos que determinaram a actuação da Administração, e “só uma adequada
ponderação global dos interesses em presença permitirá alcançar uma decisão judicial justa”
(85).
120. As providências cautelares caracterizam-se fundamentalmente pelos traços da
instrumentalidade e da provisoriedade. Estes traços transparecem do regime do CPTA.
a) A instrumentalidade (em relação a um processo principal) transparece, desde logo, do
facto de o processo cautelar só poder ser desencadeado por quem tenha legitimidade para
intentar um processo principal e se definir por referência a esse processo principal, em ordem
a assegurar a utilidade da sentença que nele virá a ser proferida (artigo 112º, nº 1). Mas é
claramente afirmada no artigo 113º, nº 1, onde se assume que “o processo cautelar depende
da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito”.
Por este motivo, se o processo cautelar for intentado em momento anterior ao da
instauração do processo principal, ele é intentado “como preliminar” (artigo 113º, nº 1) e, por
isso, as providências cautelares que vierem a ser adoptadas caducam se o requerente não fizer
uso, no prazo de três meses, do meio principal adequado (artigo 123º, nº 2). Pelo mesmo
motivo, as providências também caducam se o processo principal estiver parado durante mais
de três meses por negligência do interessado ou se nele vier a ser proferida decisão transitada
em julgado desfavorável às suas pretensões (cfr. artigo 123º, nº 1).
b) A provisoriedade transparece da possibilidade de o tribunal revogar, alterar ou
substituir, na pendência do processo principal, a sua decisão de adoptar ou recusar a adopção
de providências cautelares se tiver ocorrido uma alteração relevante das circunstâncias
inicialmente existentes (artigo 124º, nº 1), designadamente por ter sido proferida, no processo
principal, decisão de improcedência de que tenha sido interposto recurso com efeito
suspensivo (artigo 124º, nº 3).
Note-se que o sentido do artigo 124º, nº 3, é apenas o de estabelecer que a circunstância
nele prevista deve ser tida em conta, para o efeito de se avaliar se a providência deve ser man-
tida ou se, pelo contrário, deve ser revogada, alterada ou substituída. O regime do preceito
compreende-se desde o momento em que, de acordo com o artigo 120º, nº 1, o fumus boni
85() Cfr. FERNANDA MAÇÃS, O Debate Universitário, p. 364. Na mesma linha, cfr. JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, “A suspensão da eficácia e a polissemia da noção de interesse público: um salto em frente na protecção cautelar do ambiente”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 7, pp. 8 segs.
iuris constitui um dos critérios a considerar para a concessão ou recusa das providências
cautelares, sendo mesmo o único na hipótese prevista no artigo 120º, nº 1, alínea a).
c) Por outro lado, é afirmado o princípio de que o tribunal não pode dar, através da
concessão de uma providência cautelar, o que só à sentença final cumpre proporcionar, se vier
a dar provimento às pretensões deduzidas no processo principal (86).
Não significa isto que uma providência cautelar não possa antecipar, a título provisório, a
produção do mesmo efeito que a decisão a proferir no processo principal poderá determinar a
título definitivo. Ponto é que essa antecipação tenha, na verdade, lugar a título provisório e,
portanto, que ela possa caducar se, no processo principal, o juiz chegar a conclusões que
sejam incompatíveis com a manutenção da situação provisoriamente criada. Assim, se o
interessado pretende que, no processo principal, lhe seja reconhecido o direito a ser admitido
num concurso, é possível que, a título cautelar, o tribunal determine a sua admissão
provisória, permitindo-lhe participar do concurso em condições precárias, até que, no
processo principal, se esclareça se lhe assiste ou não esse direito.
O que a providência cautelar não pode fazer é antecipar, a título definitivo, a constituição
de situações que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar a título
definitivo, em tais condições que essa situação já não possa ser alterada se, no processo
principal, o juiz chegar, a final, a conclusões que não consintam a sua manutenção. Por
conseguinte, se o interessado pretender a obtenção de licença para demolir um imóvel ou de
autorização para realizar uma manifestação, o tribunal não pode impor, como providência
cautelar, que a licença ou a autorização sejam concedidas.
Quando o periculum in mora possa comprometer o efeito útil do processo principal e só
possa ser evitado através da antecipação de um efeito que só pode ser determinado pela
sentença a proferir no processo principal, sob pena de a concessão da providência fazer com
que o processo principal se torne inútil, o que é necessário é obter, com carácter de urgência,
uma decisão sobre o mérito da questão colocada no processo principal. Tal decisão já não
pertence, porém, ao domínio da tutela cautelar, mas ao domínio da tutela final urgente, e só
pode ter lugar se se preencherem os pressupostos de que depende a utilização de processos
principais urgentes especificamente instituídos na lei, como a intimação para protecção de di-
86() Cfr., a propósito, M. GLÓRIA DIAS GARCIA, “Da exclusividade de uma medida cautelar típica à atipicidade das medidas cautelares ou a necessidade de uma nova compreensão do Direito e do Estado”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 16, p. 79; FERNANDA MAÇÃS, O Debate Universitário, p. 362.
reitos, liberdades e garantias, que intervém precisamente, como diz o artigo 109º, nº 1, quan-
do não seja possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma provi-
dência cautelar.
Capítulo I – Regime substantivo da tutela cautelar
§ 1º - Tipos de pretensões e de providências cautelares
A cláusula aberta do artigo 112º, nº 2, do CPTA; situações jurídicas finais e providências
conservatórias, situações jurídicas instrumentais e providências antecipatórias; a suspensão
da eficácia de actos administrativos (arts. 112º, nº 2, al. a) do CPTA) e a proibição de
executar o acto administrativo que decorre da dedução de pedido de suspensão da eficácia
(art. 128º do CPTA); a suspensão da eficácia de regulamentos (arts. 112º, nº 2, al. a), e 130º
do CPTA); a admissão provisória em concursos e exames (art. 112º, nº 2, al. b), do CPTA); a
atribuição provisória da disponibilidade de bens (art. 112º, nº 2, al. c), do CPTA); a
autorização provisória para exercer actividades ou adoptar condutas (art. 112º, nº 2, al. d),
do CPTA); a regulação provisória de situações, designadamente através da imposição do
pagamento de quantias (arts. 112º, nº 2, al. e), e 133º do CPTA); a intimação para a adopção
ou abstenção de condutas (art. 112º, nº 2, al. f), do CPTA); as providências especificadas do
CPC (art. 112º, nº 2, do CPTA); o caso particular da produção antecipada de prova (art. 134º
do CPTA).
121. O CPTA consagra, como sabemos, o princípio de que todo o tipo de pretensões
podem ser objecto de um processo principal. É o que sucede com as pretensões dirigidas ao
reconhecimento de situações jurídicas subjectivas e à condenação da Administração à adopção
ou abstenção de comportamentos, ao pagamento de indemnizações, à realização das
condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados ou ao
cumprimento de deveres de prestar que directamente decorram de normas jurídico-adminis-
trativas e não envolvam a emissão de um acto administrativo impugnável — e isto, para
recorrer apenas aos exemplos mais frisantes sugeridos, a título meramente indicativo, pelo
artigo 37º, nº 2, a propósito da acção administrativa comum.
Ora, a efectividade do amplo leque de pretensões substantivas que os particulares passam
a poder accionar, a título principal, perante os tribunais administrativos passa pela possibilida-
de de obter providências cautelares de conteúdo diversificado, em função das necessidades de
cada caso.
Por conseguinte, o artigo 112º consagra, nesta matéria, uma cláusula aberta, por força da
qual “quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos
pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou con-
servatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse
processo”.
O artigo 112º, nº 2, admite, entretanto, que as providências cautelares a adoptar possam
ser as providências típicas que se encontram especificadas no CPC, com as adaptações que se
justifiquem (87). E apresenta um elenco exemplificativo de outras providências que podem ser
adoptadas, como a atribuição provisória da disponibilidade de um bem, a autorização
provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta e
a regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição do
dever do pagamento de quantias ou da adopção ou abstenção de condutas.
122. O artigo 112º, nº 1, faz referência à adopção de providências antecipatórias e conser-
vatórias. A distinção reveste-se, na economia do CPTA, de grande importância, na medida em
que, como adiante se verá, são diferentes os critérios de que, nos termos do artigo 120º, nº 1,
depende a adopção de cada um destes dois tipos de providências.
a) As providências cautelares conservatórias têm o propósito de evitar a deterioração do
equilíbrio de interesses existente à partida, procurando que ele se mantenha, a título provisó-
rio, até que a questão de fundo seja dirimida no processo principal. Visam dar resposta a
interesses dirigidos à conservação de situações jurídicas já existentes — interesses cuja sa-
87() Para a análise circunstanciada da aplicabilidade, no contencioso administrativo, das providências cautelares especificadas do CPC, cfr. CARLA AMADO GOMES, Contributo para o estudo das opera-ções materiais da Administração Pública, Coimbra, 1999, pp. 443 segs.
tisfação, no processo principal, depende da emissão de sentenças que determinem ou im-
ponham, também elas, a manutenção dessas situações.
Disso constitui exemplo a clássica providência de suspensão da eficácia de actos adminis-
trativos, mencionada na alínea a) do nº 2 do artigo 112º. Com efeito, a suspensão da eficácia
de um acto administrativo, ao paralisar os efeitos do acto, impede a inovação que ele visava
introduzir na ordem jurídica, fazendo com que, durante a pendência do processo principal,
tudo se passe como se o acto não tivesse sido praticado e, portanto, com que tudo se
mantenha como estava antes de o acto ter sido praticado. Trata-se, assim, de uma providência
cuja adopção está ao serviço de pretensões dirigidas à obtenção, no processo principal, de
uma sentença que, anulando o acto impugnado, assegure a manutenção do stato quo ante.
b) As providências cautelares antecipatórias têm, como o nome indica, o alcance de ante-
cipar, a título provisório, a constituição de uma situação jurídica nova, diferente da existente à
partida. Visam dar resposta a interesses cuja satisfação, no processo principal, dependa da
emissão de sentenças que determinem ou imponham uma alteração da situação pré-existente.
Disso são exemplo os tipos de providências mencionados nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do
artigo 112º. Com efeito, a admissão provisória num concurso ou a atribuição provisória da dis-
ponibilidade de um bem ou de uma autorização conferem ao respectivo beneficiário uma
situação de vantagem de que ele não beneficiava. Por outro lado, trata-se de providências cuja
adopção está ao serviço de pretensões dirigidas à obtenção, no processo principal, de
sentenças que imponham, a título definitivo, a constituição de situações jurídicas novas (88).
123. As pretensões cautelares podem ser, assim, agrupadas em dois grandes grupos.
a) O primeiro desses grupos corresponde às situações em que o interessado pretende
manter ou conservar um direito em perigo, evitando que ele seja prejudicado por medidas que
a Administração venha a adoptar.
88() Para a distinção, no plano substantivo, entre situações jurídicas finais, dirigidas à manutenção do que já se tem — que, no plano cautelar, tendem a carecer de uma tutela conservatória — e situações jurídicas instrumentais, dirigidas à obtenção de bens e/ou utilidades que não se têm mas se desejam ter — que, no plano cautelar, tendem a carecer de uma tutela antecipatória —, cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos…, pág. 562, com outras referências.
Se tiver sido emitido um acto administrativo de conteúdo positivo, o problema resolve-se
com a suspensão da eficácia do acto, possibilidade prevista no artigo 112º, nº 2, alínea a). Nas
demais situações, a tutela cautelar concretiza-se na imposição provisória de uma ordem no
sentido de a Administração não realizar certa actividade ou porventura cessar essa actividade
(cfr. artigo 112º, nº 2, alínea f)). Isto pode acontecer quando o interessado pretenda que a Ad-
ministração se abstenha de realizar operações materiais que não surjam em directa execução
de actos administrativos ou quando a providência cautelar se destine a complementar a sus-
pensão da eficácia de um acto administrativo (por exemplo, não promoção de um funcionário
enquanto esteja pendente a definição da situação de um seu concorrente directo).
b) O segundo dos referidos grupos envolve as situações em que o interessado pretenda
obter uma prestação administrativa, a adopção de medidas por parte da Administração (ou de
um particular), que podem envolver ou não a prática de actos administrativos. Neste tipo de
situações, em que o interessado aspira à obtenção de um efeito favorável, a tutela cautelar
concretiza-se na imposição de uma ordem no sentido da adopção das medidas necessárias
para minorar as consequências do periculum in mora.
Em muitos casos, há-de ser necessário, para o efeito, antecipar, a título provisório, o resul-
tado favorável pretendido no processo principal, mediante, por exemplo, a permissão provi-
sória da utilização de um bem (cfr. artigo 112º, nº 2, alínea c)), a inscrição provisória numa
Universidade, a admissão provisória num concurso, a atribuição provisória de uma bolsa ou a
permissão provisória da prática de determinado horário de comércio (cfr. artigo 112º, nº 2,
alínea d)), a regulação provisória de indemnizações ou outras prestações pecuniárias (cfr.
artigos 112º, nº 2, alínea e), e 133º) ou a imposição da adopção de certos comportamentos
(cfr. artigo 112º, nº 2, alínea f)). Sem prejuízo de se vir a pôr termo à situação no caso de im-
procedência do processo principal, com as devidas consequências: cumprimento das eventuais
obrigações de repristinar e restituir, bem como de indemnizar terceiros porventura lesados em
consequência da medida provisória.
124. Passando agora à identificação dos principais tipos de providências cautelares que
podem ser adoptadas, o artigo 112º, nº 2, contém, como já vimos, um elenco exemplificativo.
a) Desse elenco, merece natural relevo a suspensão da eficácia de actos administrativos,
desde logo prevista na alínea a), na medida em que constitui a providência que permite
impedir a execução de actos administrativos de conteúdo positivo. É o que decorre do artigo
153º do CPA e também parece resultar do artigo 414º do CPC, a cuja redacção restritiva parece
dever ser atribuído o sentido de que o “embargo de obra nova” só pode ser decretado, no âm-
bito das relações jurídico-administrativas, nos domínios em que não haja lugar à aplicação do
meio próprio do contencioso administrativo, que é a suspensão da eficácia, quando a obra
resulte da execução de um acto administrativo.
O artigo 128º regula a situação em que fica colocada a Administração entre o momento
em que recebe o duplicado do pedido de suspensão e aquele em que o tribunal se vem a
pronunciar sobre esse pedido, determinando que, durante esse período de tempo, ela não
pode iniciar ou prosseguir a execução do acto e que os actos de execução indevida que
pratique poderão ser declarados ineficazes pelo tribunal.
Não estamos propriamente perante uma suspensão provisória dos efeitos do acto, mas,
como diz a lei, perante uma “proibição de executar o acto administrativo”, na medida em que
do que se trata é apenas de proibir que a Administração inicie ou prossiga a execução do acto
durante a pendência do processo de suspensão, até ao trânsito em julgado da respectiva
decisão. Assim, se, num determinado caso, a eventual suspensão da eficácia teria porventura o
efeito de obrigar a Administração a realizar certas prestações durante a pendência do
processo, não parece que essas prestações devam ser antecipadas por aplicação do artigo
128º, que apenas impõe que a Administração suspenda a adopção de medidas dirigidas à
execução do acto administrativo.
A nosso ver, a proibição de executar o acto administrativo só se mantém enquanto não for
proferida decisão, no processo cautelar, que indefira o pedido de suspensão da eficácia. A
proibição cessa, portanto, com a emissão de uma tal decisão, ainda que esta seja objecto de
recurso jurisdicional. Com efeito, como o artigo 143º, nº 2, atribui efeito meramente
devolutivo aos recursos interpostos contra decisões respeitantes à adopção de providências
cautelares, estas decisões produzem imediatamente os seus efeitos a partir do momento em
que são proferidas. Por conseguinte, a decisão que, em primeira instância, indefira um pedido
de suspensão da eficácia tem o alcance de fazer cessar a proibição de executar o acto
administrativo que o artigo 128º impõe, naturalmente, para valer apenas pelo período de
tempo em que ainda não tenha sido proferida, no processo cautelar, uma pronúncia judicial
eficaz sobre os riscos envolvidos nessa eventual execução.
b) Prevê-se, nos artigos 112º, nº 2, alínea a), e 130º, a possibilidade da suspensão da
eficácia de normas emanadas no exercício da função administrativa. É a primeira vez que,
entre nós, é consagrada a possibilidade, em termos gerais, da obtenção de uma tal suspensão.
A exemplo do que, como vimos, sucede no domínio da sua própria impugnação, o artigo
130º admite que a suspensão dos efeitos das normas ditadas pela Administração possa ser
requerida em dois tipos diferentes de situações.
(i) O primeiro é aquele em que a suspensão é requerida pelos interessados na declaração
da ilegalidade de normas “cujos efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de um
acto administrativo ou jurisdicional de aplicação” (artigo 130º, nº 1). Neste caso, a suspensão
da eficácia da norma é decretada com efeitos circunscritos ao caso do requerente. Trata-se,
aqui, de acautelar a posição das pessoas e entidades a quem o artigo 73º, nº 2, reconhece
legitimidade para requerer a declaração da ilegalidade da norma sem força obrigatória geral e,
portanto, com efeitos circunscritos ao caso do interessado.
Afigura-se que esta solução dá resposta adequada a uma exigência que, neste domínio,
parece decorrer do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 268º, nº 4,
da CRP, sem que, em sentido contrário, releve o facto de a impugnação de normas se encon-
trar separadamente prevista no nº 5 daquele artigo.
Com efeito, a solução de circunscrever os efeitos da suspensão da eficácia do regulamento
directamente lesivo justifica-se pelo facto de estarem, neste domínio, em causa valores consti-
tucionalmente relevantes, como o da segurança e estabilidade jurídicas e o da prossecução do
interesse público. A referida solução permite, assim, superar as objecções que, desse ponto de
vista, na doutrina e na jurisprudência vinham sendo opostas, em termos gerais, à ad-
missibilidade da suspensão judicial de efeitos de normas administrativas (89).
A solução tem, além do mais, o alcance de facilitar a atribuição da providência, porque
não há que ponderar os efeitos, muito mais gravosos para a segurança jurídica de terceiros e
para o interesse público, que se poderiam contrapor a uma suspensão com força obrigatória
geral. O artigo 117º, nºs 3 e 4, procura, entretanto, obviar às dificuldades que possam advir da
indeterminabilidade ou do elevado número de contra-interessados.
(ii) O segundo tipo de situação de suspensão da eficácia de normas regulamentares tem
lugar a requerimento do Ministério Público ou de quem, estando legitimado para o efeito (cfr.
artigo 73º, nº 1), “tenha deduzido ou se proponha deduzir pedido de declaração de ilegalidade
89() Para uma panorâmica geral dessas objecções, cfr. CARLA AMADO GOMES, “Suspensão da eficácia de regulamentos imediatamente exequíveis”, Revista Jurídica (da Associação Académica da Fa-culdade de Direito de Lisboa) nº 21.
com força obrigatória geral” (artigo 130º, nº 2) (90) e implica a suspensão, com alcance geral,
dos efeitos da norma.
c) Já sabemos que, no novo contencioso administrativo, podem ser deduzidas pretensões
dirigidas contra particulares que violem ou ameacem violar normas ou vínculos contratuais de
natureza jurídico-administrativa (cfr. artigo 37º). Essas pretensões tanto podem ser deduzidas
por particulares, como pela própria Administração, em situações em que esta não disponha,
nos termos da lei substantiva, de poderes de auto-tutela declarativa e/ou executiva. O artigo
112º, nº 2, alínea f), na parte em que se refere à intimação de particulares para a adopção ou
abstenção de condutas, reporta-se à tutela cautelar correspondente a estes casos.
Note-se, contudo, que a intimação também pode ser dirigida, desde logo, contra a
Administração, com o que evita que, no silêncio da lei sobre esse ponto, a questão da admissi-
bilidade de uma tal intimação tivesse de ser colocada e decidida pelos tribunais administrati-
vos apenas por aplicação da cláusula aberta do artigo 112º, nº 1. Esta possibilidade reveste-se
de especial interesse no domínio das actuações materiais da Administração. Com efeito, se ela
agiu emitindo um acto administrativo de conteúdo positivo, a providência cautelar apta a
impedir a execução desse acto é a suspensão da eficácia do acto administrativo. Mas já não é
assim no domínio das actuações materiais da Administração, em que ela não age ao abrigo de
um acto administrativo e em que, por isso, a reacção contenciosa passa, a título principal, pela
propositura de uma acção administrativa comum e, quando seja caso disso, a título cautelar,
pelo pedido deste tipo de intimação, dirigida a obter, a título provisório durante a pendência
do processo principa, a adopção ou abstenção de condutas por parte da Administração.
d) Uma última palavra quanto à produção antecipada de prova, que não é mencionada no
elenco do nº 2 do artigo 112º, mas para a qual o CPTA consagra um regime próprio no artigo
134º. Sobre esse regime, foi explicado na Exposição de Motivos do CPTA que, “sem prejuízo
das reservas que, do ponto de vista doutrinal, possa suscitar, a opção de enquadrar a produção
antecipada de prova no título respeitante à tutela cautelar vai ao encontro de propostas nesse
sentido formuladas no âmbito da discussão pública e evita dificuldades de ordem sistemática
que outra solução colocaria”.
90() Sobre o modo específico como se concretizam os pressupostos de que depende a concessão da suspensão com força obrigatória geral, cfr. CARLA AMADO GOMES, “Suspensão…”, pp. 295 segs.
É, com efeito, controvertida a natureza da produção antecipada de prova.
Tradicionalmente enquadrada no elenco das providências cautelares — como ainda hoje
sucede, por exemplo, nos Códigos de Processo Civil francês e italiano —, sempre foram
reconhecidas as suas especificidades, que hoje levam boa parte da doutrina — e levaram, aliás,
o nosso CPC — a autonomizá-la como um incidente processual autónomo (cfr. artigos 520º e
521º do CPC).
Na verdade, a produção antecipada de prova visa evitar que a mora do processo impeça
ou dificulte a produção, no momento próprio do andamento do processo, de certos meios de
prova — e, nesta dimensão, é um instrumento dirigido a acorrer ao periculum in mora. Porém,
a produção antecipada de prova, pela natureza específica da situação típica de perigo a que
visa dar resposta, não tem por objecto estabelecer uma regulação provisória para o litígio, em
ordem a assegurar a justa composição dos interesses nele envolvidos durante a pendência do
processo principal. A produção antecipada de prova desempenha uma função completamente
diferente, que é a de recolher elementos de prova que vão ficar adquiridos para o processo
principal, como se a prova tivesse sido produzida nesse processo. Por este motivo, a produção
antecipada de prova não partilha com as (demais) providências cautelares a característica da
provisoriedade, não lhe sendo, designadamente, aplicável o regime de caducidade do artigo
123º; e não depende do preenchimento dos pressupostos do artigo 120º, mas dos
pressupostos específicos estabelecidos no artigo 134º.
§ 2º - Critérios de atribuição das providências cautelares
1. Critérios gerais de concessão de providências cautelares - O periculum in mora, o
fumus boni iuris e a ponderação de interesses (art. 120º, nºs 1 e 2, do CPTA); configuração
diferenciada dos critérios, consoante a providência seja conservatória ou antecipatória (art.
120º, nº 1, als. b) e c), do CPTA); possibilidade da concessão de providências distintas do
requerido (art. 120º, nºs 2 e 3, do CPTA).
125. Das providências referidas nas diversas alíneas do artigo 112º, nº 2, só a suspensão
da eficácia (prevista na alínea a)), as providêncas relativas a procedimentos de formação de
contratos e a regulação provisória do pagamento de quantias (compreendida na alínea e)) são
objecto de regulação específica no capítulo de “disposições particulares” que se estende pelos
artigos 128º a 134º. E ainda aí, só pontualmente encontramos (nos artigos 129º, 132º, nº 6, e
133º, nº 2) a previsão de um regime próprio quanto aos pressupostos de que depende o
decretamento das providências.
Daqui resulta que os critérios de que depende a concessão das providências cautelares
são quase unitariamente definidos no artigo 120º, que, por isso, determina os critérios que de-
vem orientar o juiz numa decisão que envolve a possibilidade de adoptar os mais diversos
tipos de providências cautelares. Isto explica o facto de o nº 1 do artigo 120º estabelecer, nas
suas alíneas b) e c), critérios diferenciados, consoante se trate de conceder providências con-
servatórias ou providências antecipatórias.
126. O regime regra decorre das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 120º, nos termos das
quais a concessão das providências cautelares depende da demonstração do periculum in
mora, que o Código articula com o critério do fumus boni iuris.
a) Quanto ao periculum in mora, se não falharem os demais pressupostos de que, nos
termos do artigo 120º, depende a concessão da providência, ela deve ser concedida sempre
que “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produ-
ção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente” visa assegurar
(alínea b)) ou pretende ver reconhecidos (alínea c)) no processo principal.
Do ponto de vista do periculum in mora, as providências cautelares devem ser, portanto,
atribuídas em dois tipos de situações que a lei apresenta em alternativa:
(i) O primeiro tipo de situação existe quando os factos concretos alegados pelo requerente
inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível,
no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano
dos factos, da situação conforme à legalidade. É este o único sentido a atribuir à expressão
“facto consumado”. À situação tradicional do “prejuízo de difícil reparação”, é, assim,
acrescentada, neste domínio, uma outra, que surge colocada em alternativa e faz apelo ao
“fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado”. Para além das
situações em que, no quadro do regime normativo precedente, se poderia admitir o risco da
“produção de prejuízos de difícil reparação”, as providências cautelares passam a ser desde
logo concedidas quando exista o “fundado receio da constituição de uma situação de facto
consumado”.
Da previsão expressa deste primeiro tipo de situação resulta a clara rejeição do apelo,
neste domínio, a critérios fundados na susceptibilidade ou insusceptibilidade da avaliação
pecuniária dos danos, pelo seu carácter variável, aleatório ou difuso, em favor do
entendimento segundo o qual existe periculum in mora sempre que os factos concretos
alegados pelo requerente permitam perspectivar a criação de uma situação de impossibilidade
da reintegração da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado
procedente.
(ii) As providências devem também ser concedidas, sempre pressupondo que não falhem
os demais requisitos de que depende a respectiva concessão, quando, embora não seja de
prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará
impossível, os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se
a providência for recusada, essa reintegração no plano dos factos será difícil, no caso de o
processo principal vir a ser julgado procedente, por já não ser possível evitar a ocorrência de
danos especialmente graves.
b) Outro dos critérios de que depende a atribuição de providências cautelares envolve a
apreciação perfunctória e provisória, por parte do juiz, da consistência e, portanto, da credibili-
dade da pretensão que o requerente faz valer no processo principal — apreciação que cumpre,
naturalmente, conservar dentro dos estritos limites que são próprios da tutela cautelar, para
não comprometer nem antecipar o juízo de fundo que caberá formular no processo principal.
O tribunal deve tomar também em linha de conta o comportamento, judicial e extrajudicial,
que entretanto a Administração tenha assumido, na medida em que tal comportamento tam-
bém possa, pelo seu lado, fornecer indícios da adopção, por parte da Administração, de uma
atitude de desrespeito pela legalidade.
Como já foi referido, o CPTA opta, entretanto, por distinguir, quanto a este ponto,
consoante a providência cautelar a atribuir seja conservatória ou antecipatória, tornando mais
fácil a sua obtenção no primeiro caso do que no segundo.
É assim que quando está em causa a concessão de uma providência cautelar conser-
vatória, o artigo 120º, nº 1, alínea b), determina que, uma vez demonstrado o periculum in
mora (e sem prejuízo da ponderação a que se refere o artigo 120º, nº 2), a providência será
concedida a menos que “seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a
formular [no processo principal] ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conheci-
mento de mérito”. Estão aqui em causa providências destinadas a manter o statu quo, não
permitindo que ele se altere, como paradigmaticamente sucede com a tradicional suspensão
da eficácia de actos administrativos, cuja concessão não dependia, no quadro normativo
anterior, da formulação de qualquer juízo sobre a aparência de bom direito (fumus boni iuris).
Por esse motivo, tal aparência não é verdadeiramente exigida, bastando-se a lei, neste caso,
com uma modesta formulação negativa: se não existirem elementos que tornem evidente a
improcedência ou a inviabilidade da pretensão material, não será por esse lado que a
providência será recusada.
Já no caso de estar em causa a concessão de uma providência cautelar antecipatória, o
artigo 120º, nº 1, alínea c), estabelece que, ainda que demonstrado o periculum in mora (e
sempre sem prejuízo da ponderação a que se refere o artigo 120º, nº 2), a providência só será
concedida quando seja de pensar “que a pretensão formulada ou a formular [no processo
principal] pode vir a ser julgada procedente”. Estão aqui em causa providências destinadas a
alterar o statu quo, razão pela qual se atribui relevo ao critério do fumus boni iuris, que, neste
domínio, intervém na sua formulação positiva (91): se o requerente pretende, ainda que a título
provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova
perfunctória do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal, sendo aqui
naturalmente aplicáveis os critérios edificados pela doutrina do processo civil sobre a
apreciação perfunctória da aparência de bom direito a que o juiz deve proceder no âmbito dos
processos cautelares.
c) Aos dois critérios enunciados, o nº 2 do artigo 120º acrescenta um terceiro critério, de
ponderação, num mesmo patamar, dos diversos interesses, públicos e privados, que, no caso
concreto, se perfilem, sejam eles do requerente, da entidade demandada ou de eventuais con-
tra-interessados, determinando que a providência ou as providências sejam recusadas quando
essa ponderação permita concluir que “os danos que resultariam da sua concessão se mos-
tram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou
atenuados pela adopção de outras providências”.
Abandona-se, assim, a tradição, forjada no âmbito da aplicação do instituto da suspensão
da eficácia de actos administrativos, de se ponderarem separadamente os pressupostos de
que dependia a concessão da providência e em valor absoluto os riscos para o interesse 91() No sentido da adopção, em relação à tutela cautelar de conteúdo antecipatório, de um critério de fumus boni iuris qualificado, cfr. FERNANDA MAÇÃS, O Debate Universitário, p. 366.
público que dessa concessão poderiam advir. A justa comparação dos interesses em jogo
exige, pelo contrário, que o tribunal proceda, em cada caso, à ponderação equilibrada dos
interesses, contrabalançando os eventuais riscos que a concessão da providência envolveria
para o interesse público (e para interesses privados contrapostos) com a magnitude dos danos
que a sua recusa com toda a probabilidade poderia trazer ao requerente: a atribuição da provi-
dência não pode causar danos desproporcionados, com o que se dá expressão, neste contexto,
ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou da proibição do excesso.
Note-se que o preenchimento dos requisitos da alínea b) ou da alínea c) do nº 1 é
fundamental, na medida em que constitui a conditio sine qua non e, nessa medida, o primeiro
passo de que depende a concessão da tutela cautelar. A demonstração do periculum in mora e
do fumus boni iuris permite afirmar que a posição do requerente se apresenta, prima facie,
como merecedora de protecção, colocando, assim, o requerente numa posição de partida
favorável à obtenção da tutela cautelar. Se a posição do requerente da providência fosse a
única a ter em conta neste domínio, bastaria, na verdade, o preenchimento da alínea b) ou da
alínea c) do nº 1 para que a tutela cautelar fosse concedida.
Sucede, porém, que o artigo 120º, nº 2, vem acrescentar uma cláusula de salvaguarda
neste domínio, permitindo que, no interesse dos demais envolvidos, a providência ainda seja
recusada quando, pese embora o preenchimento, em favor do requerente, dos requisitos
previstos na alínea b) ou na alínea c) do nº 1, seja de entender que a concessão da providência
provocaria danos (ao interesse público e de eventuais terceiros) desproporcionados em
relação àqueles que se pretenderia evitar que fossem causados (à esfera jurídica do requeren-
te). O artigo 120º, nº 2, introduz, assim, um critério de ponderação de interesses, por força do
qual a decisão sobre a atribuição da tutela cautelar fica dependente da formulação de um juízo
de valor relativo, fundado na comparação da situação do requerente com a dos eventuais inte-
resses contrapostos.
O preceito assume, entretanto, com toda a clareza que o processo cautelar não se define
necessariamente pela contraposição entre um interesse privado, prosseguido pelo requerente
da providência, e um interesse público, titulado por uma entidade pública demandada. São, na
verdade, cada vez mais frequentes as situações que envolvem uma multiplicidade de
interesses públicos e privados conflituantes e em que o requerente, seja ele o Ministério
Público, uma associação ambientalista ou um grupo de moradores, se move em defesa de
interesses públicos, porventura contrapostos a outros interesses públicos que determinaram a
actuação da Administração e a interesses privados, por vezes muito significativos, que foram
beneficiados por essa actuação. Só uma adequada ponderação global de todos esses
interesses permitirá alcançar uma decisão justa.
Note-se, entretanto, que o preceito admite que a providência requerida ainda pode ser
concedida se os danos desproporcionados que poderiam resultar da sua concessão puderem
ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências (em substituição ou em
cumulação com aquela que tinha sido solicitada, como melhor resulta do nº 3). Isto significa
que a tutela cautelar não pode ser recusada ao interessado — cuja posição, recorde-se, é, em
si mesma, digna de tutela cautelar, em virtude do preenchimento dos requisitos da alínea b)
ou da alínea c) do nº 1 do artigo 120º — se puder ser adoptada alguma providência que, em
substituição ou cumulação com aquela que tinha sido requerida, não cause danos
desproporcionados para os interesses em presença.
2. Regimes especiais de concessão de providências cautelares – O regime do art. 120º,
nº 1, al. a), do CPTA, respeitante a situações de evidência de bom direito – confronto com o
regime do art. 121º; o regime do art. 120º, nº 6, do CPTA, respeitante à suspensão de
obrigações de pagamento de quantia certa – confronto com o regime do art. 50º, nº 2; o
regime do art. 129º do CPTA; o regime do art. 132º, nº 6, do CPTA, respeitante às providên-
cias relativas a procedimentos de formação de contratos; o regime do art. 133º do CPTA,
respeitante à regulação provisória do pagamento de quantias.
127. O primeiro regime especial de concessão de providências cautelares que se encontra
previsto no CPTA corresponde às situações em que seja “evidente a procedência da pretensão
formulada ou a formular no processo principal, designadamente por estar em causa a impug-
nação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma já anteriormente anulada
ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente”, a que
se refere o artigo 120º, nº 1, alínea a).
Se o tribunal considerar preenchida a previsão do artigo 120º, nº 1, alínea a), ele concede
a providência sem mais indagações. Não intervém o disposto no nº 2 e nem sequer há que
atender ao critério do periculum in mora, a que fazem apelo as alíneas b) e c) do nº 1. É a
situação de máxima intensidade do fumus boni iuris, que, em situações de manifesta
procedência da pretensão material do requerente, vale por si só (92).
Importa sublinhar o carácter meramente exemplificativo das situações elencadas no
preceito, todas exclusivamente referidas a processos impugnatórios de actos administrativos,
mas que apenas pretendem ilustrar o que está em causa neste domínio, recorrendo, para isso,
ao elenco das situações mais paradigmáticas.
128. O segundo regime especial decorre do artigo 120º, nº 6, que estabelece que “quando
no processo principal esteja apenas em causa o pagamento de quantia certa, sem natureza
sancionatória, as providências cautelares serão adoptadas independentemente da verificação
dos requisitos previstos no n.º 1, se tiver sido prestada garantia por uma das formas previstas
na lei tributária”.
Recorde-se que o artigo 50º, nº 2, estabelece, por seu turno, que, “sem prejuízo das
demais situações previstas na lei, a impugnação de um acto administrativo suspende a eficácia
desse acto quando, cumulativamente, esteja apenas em causa o pagamento de uma quantia
certa, sem natureza sancionatória, e tenha sido prestada garantia por qualquer das formas
previstas na lei tributária”. Note-se que, neste último caso, estamos, contudo, perante uma
suspensão automática, ex lege, que não depende, portanto, da emissão da providência
cautelar de suspensão da eficácia do acto.
129. O artigo 129º admite a possibilidade da suspensão da eficácia de actos
administrativos já executados, justificada pelo facto de a pronúncia de suspensão produzir
efeitos retroactivos, podendo assim constituir a Administração no dever de adoptar as
medidas necessárias (por exemplo, restituições) para que se reconstitua (provisoriamente) a
situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado e executado.
O artigo 129º acrescenta, no entanto, um requisito suplementar àqueles de que, em
termos gerais, depende, como vimos, a atribuição das providências cautelares, segundo o
disposto nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 120º. Por conseguinte, a suspensão da eficácia de
actos administrativos, tenham eles já sido executados ou não, depende, em qualquer caso, do
preenchimento dos pressupostos do artigo 120º e, portanto, em particular, da ponderação dos
interesses, públicos e privados (e, por conseguinte, também dos interesses dos eventuais
92() Estamos perante situações em que o fumus boni iuris é forte, devendo, por isso, relevar com maior intensidade. Cfr., a propósito, FERNANDA MAÇÃS, O Debate Universitário, pp. 365-366.
contra-interessados) em presença, a que se refere o nº 2 deste artigo. No caso de o acto já ter
sido executado, haverá, contudo, ainda e antes de mais, que demonstrar a utilidade que da
suspensão advirá para o requerente ou para os interesses pelos quais ele se bate. O que bem
se compreende, na medida em que a suspensão do acto já executado não se justificará, por
falta de interesse processual do requerente, se todos os efeitos nocivos do acto já se tiverem
consumado e as consequências da execução realizada forem materialmente irreversíveis. Com
efeito, a pronúncia judicial nem terá, nesse caso, a utilidade de impedir a produção futura de
efeitos nocivos, nem a de impedir a manutenção da situação lesiva.
130. Outro regime especial resulta do artigo 132º, que estabelece um conjunto de
disposições específicas, respeitantes à adopção de providências cautelares relativas a
procedimentos de formação de contratos.
A razão de ser da existência de um artigo autónomo sobre “providências relativas a
procedimentos de formação de contratos” reside no facto de este artigo se destinar a
incorporar no CPTA o regime do Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio, na parte em que este
diploma se referia, no artigo 5º, à adopção de providências cautelares, no propósito de
assegurar a adequada transposição para a ordem jurídica portuguesa das Directivas do
Conselho nº 89/665/CEE, de 21 de Dezembro, e nº 92/13/CEE, de 25 de Fevereiro (93). Nesta
perspectiva se compreende, desde logo, o disposto no artigo 132º, nº 1, na parte em que
admite a possível adopção de “providências destinadas a corrigir a ilegalidade” e se refere
especificamente à possibilidade da suspensão do procedimento de formação do contrato,
referências provenientes das referidas Directivas.
Ora, na mesma perspectiva se compreende também a solução consagrada no artigo 132º,
nº 6, de se definirem os critérios de que, neste domínio, depende a concessão das providên-
cias nos estritos termos em que eles são determinados pelas Directivas, com a consequência
de fazer com que os requisitos de cuja apreciação depende a concessão das providências
assente numa ponderação semelhante à que se encontra prevista no artigo 120º, nº 2, e,
93() Cumpre, porém, sublinhar que o artigo 132º não se subordina à estrita lógica da recepção do regime do Decreto-Lei nº 134/98 e da transposição das mencionadas Directivas, o que desde logo se evidencia pelo facto de estender o âmbito do regime nele consagrado a todo o domínio das providências cautelares relativas a procedimentos de formação de contratos, sem o circunscrever aos tipos específicos de con-tratos abrangidos pelo âmbito de aplicação das referidas Directivas — que são, como sabemos, os que estão enunciados no artigo 100º, nº 1, a propósito do processo principal urgente de impugnação de actos pré-contratuais (regulado nos artigos 100º a 103º) que, esse sim, apenas vale para os referidos tipos de contratos.
desse modo, de excluir que, neste domínio, se possa conjugar o periculum in mora com o
fumus boni iuris, segundo os critérios definidos no artigo 120º, nº 1, alíneas b) e c).
A solução explica-se porque a eventual extensão a este domínio dos critérios do artigo
120º, nº 1, alíneas b) e c), poderia ser vista como podendo conduzir a resultados concretos
mais restritivos na concessão das providências cautelares do que aqueles que resultariam da
aplicação do critério mais simples previsto nas Directivas, com o consequente risco de se vir a
entender que não se tinha procedido à adequada transposição das Directivas para a ordem
jurídica portuguesa — tanto mais que a consagração dessa solução envolveria uma alteração
significativa ao critério que, nos estritos termos das Directivas, já se encontrava consagrado no
artigo 5º, nº 4, do Decreto-Lei nº 134/98, e que, também por isso, é retomado no artigo 132º,
nº 6.
131. No quadro da regulação provisória de situações jurídicas, a que se refere a alínea e)
do nº 2 do artigo 112º, o caso particular da regulação provisória do pagamento de quantias,
em situações de grave carência económica do requerente, é objecto de regulação própria no
artigo 133º. Tem-se aqui em vista facilitar a tutela de situações subjectivas que se dirijam à
obtenção do cumprimento de obrigações de pagar quantias em dinheiro (seja qual for a fonte
de onde provenham), por forma a obviar a situações prementes de carência.
Em geral, a tutela cautelar em situações dirigidas ao pagamento de quantias em dinheiro é
assegurada através da prestação da garantia prevista no artigo 120º, nº 4, que dispensa o
preenchimento dos requisitos do nº 1 do mesmo artigo. Pelo contrário, a regulação provisória
do pagamento de quantias, nos moldes em que o artigo 133º a configura, visa dar resposta a
situações em que, por se encontrar em “situação de grave carência económica”, o requerente
não possa prestar garantia. O referido artigo institui, por isso, um regime especial que, por
pressupor a impossibilidade, por parte do tribunal, de recorrer ao mecanismo da prestação de
garantia previsto no n.º 4 do artigo 120º, depende do preenchimento de requisitos próprios,
que incluem uma modalidade especialmente caracterizada de periculum in mora (artigo 133º,
nº 2, alíneas a) e b)) e o fumus boni iuris (artigo 133º, nº 2, alínea c)), excluindo, entretanto,
como se compreende, a ponderação de interesses, que, no regime geral, se encontra prevista
no nº 2 do artigo 120º.
Capítulo II – Regime processual da tutela cautelar: os regimes especiais
O decretamento provisório de providências cautelares (art. 131º do CPTA) e seu
confronto com a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias; a possibilidade
da convolação do processo cautelar num processo principal (arts. 121º e 132º, nºs 1 e 7, do
CPTA).
132. O artigo 131º institui um regime especialmente célere de decretamento, a título pro-
visório, de providências cautelares destinadas a “tutelar direitos, liberdades e garantias que de
outro modo não possam ser exercidos em tempo útil” ou, em todo o caso, a dar resposta a
situações de “especial urgência” (94).
O propósito do instituto é assegurar que, quando as circunstâncias o justifiquem, o tribu-
nal conceda a providência cautelar imediatamente após a apresentação do pedido. O decre-
tamento provisório é concedido logo no início do processo cautelar e destina-se a evitar o
periculum in mora do processo cautelar, evitando os danos que possam resultar da demora
desse processo. Trata-se, assim, de antecipar, a título provisório, e apenas para dar resposta a
situações de especial urgência durante a pendência do processo cautelar, a concessão de uma
providência cautelar que, depois, cumprirá decidir se também deve valer durante toda a
pendência do processo principal.
De acordo com o artigo 131º, nº 3, o decretamento provisório tem lugar quando “a peti-
ção permita reconhecer a possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade
ou garantia invocado ou outra situação de especial urgência”. O preceito dá, naturalmente,
coberta às situações em que o tribunal dê razão à avaliação que, nesse sentido, o requerente
faça a propósito da urgência, em petição concretamente dirigida ao decretamento provisório,
que tenha apresentado ao abrigo do nº 1. Mas também parece que o preceito pode ser lido no
sentido de que, mesmo quando o interessado se limite a pedir uma providência cautelar, nos
termos do artigo 114º, sem requerer o seu decretamento provisório, o tribunal deve avançar
para o decretamento provisório quando reconheça, atenta a gravidade da situação, que essa é
a única solução capaz de assegurar a tutela jurisdicional efectiva do requerente. Esta parece
ser a interpretação mais consentânea com o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
94() Sobre este instituto, cfr. JORGE MANUEL LOPES DE SOUSA, “Notas práticas sobre o decretamen-to provisório de providências cautelares”, Cadernos de Justiça Administrativa nº 47, pp. 45 segs.
133. O primeiro período de vigência do CPTA permitiu identificar múltiplas dificuldades na
aplicação deste instituto. E a primeira de todas tem que ver com a própria estrutura do insti-
tuto, na articulação que, no artigo 131º, é estabelecida entre duas fases sucessivas, que se en-
contram previstas, respectivamente, no nº 3 e no nº 6.
À partida, o decretamento provisório está previsto no nº 3 e tem lugar estritamente com
base nos critérios que nesse preceito são enunciados. Uma vez “decretada a providência pro-
visória” — ou seja, uma vez realizado o decretamento provisório, nos termos do nº 3 —,
acrescenta, no entanto, o nº 6 que “é dado às partes o prazo de cinco dias para se pronun-
ciarem sobre a possibilidade do levantamento, manutenção ou alteração da providência,
sendo, em seguida, o processo concluso, por cinco dias, ao juiz ou relator, para proferir decisão
confirmando ou alterando o decidido”. E a questão que se coloca é a de saber qual é o sentido
e o alcance deste procedimento, regulado no nº 6.
Duas posições são, quanto a este ponto, concebíveis: (a) a primeira é a de conceber o pro-
cesso de decretamento provisório como um processo complexo, constituído por duas fases,
sendo que, na primeira (regulada no nº 3), o tribunal, em apenas 48 horas e, por regra, sem
contraditório, “decreta a providência provisória”, e na segunda (regulada no nº 6),
primacialmente destinada a assegurar o contraditório (mas sem lugar à produção de prova), é
dada ao juiz a possibilidade de rever a decisão tomada — tudo no pressuposto de que o
decretamento provisório se destina a vigorar durante a pendência do processo cautelar e,
portanto, de que, entretanto, haverá o processo cautelar propriamente dito, no âmbito do
qual se decidirá em que termos deverá ficar a situação regulada durante a pendência do
processo principal; (b) a segunda posição concebível nesta matéria é a de conceber o processo
de decretamento provisório como um processo constituído por uma única fase, que se esgota
na pronúncia prevista no nº 3, e de já ver no nº 6 a tramitação especial a que, nestes casos,
ficará submetido o processo cautelar propriamente dito, em ordem a estabelecer se a
providência provisoriamente decretada se deverá ou não manter durante a pendência do
processo principal.
Pela nossa parte, quer-nos parecer que, do ponto de vista estritamente lógico, a segunda
das posições seria, à partida, a mais natural: com efeito, a simples circunstância de estarmos,
neste domínio, perante um instituto pensado para evitar o periculum in mora do processo
cautelar, em ordem a evitar os danos que possam ocorrer na própria pendência desse pro-
cesso, levaria, à partida, a pensar que, a preverem-se dois momentos no artigo 131º, esses
momentos haveriam de corresponder ao do decretamento provisório, que está indubi-
tavelmente previsto no nº 3, e, depois, no nº 6, ao do eventual decretamento definitivo, que,
pondo termo ao processo cautelar, determinaria em que termos deveria ficar regulada a
situação durante toda a pendência do processo principal — com o que o regime do artigo
131º, nº 6, substituiria, para estes casos, o dos artigos 117º e seguintes.
Pelo modo limitativo como se encontra configurado o regime do artigo 131º, nº 6, afigura-
se, porém, que não foi essa a opção do legislador e que, pelo contrário, a sua intenção terá
sido, na verdade, a de desenhar um processo de decretamento provisório em duas fases, sem
prejuízo do processo cautelar propriamente dito. Na verdade, a tramitação prevista no nº 6
não parece capaz de comportar, sem adaptações que o preceito não consente, as indagações
(e valorações) que são próprias de um processo cautelar.
Afigura-se, pois, que, como o nº 3 dá apenas 48 horas ao juiz para decidir, num primeiro
momento, sobre o decretamento provisório e o nº 4 parece admitir que, por regra, o
decretamento proferido nessas circunstâncias tenha lugar sem contraditório, o nº 6 terá so-
bretudo o propósito de dar ao juiz, ainda em sede de decretamento provisório, a oportunidade
de rever a sua decisão, uma vez assegurado o contraditório. Nesta perspectiva se compreende
o facto de, nesta sede, só se fazer referência à citação das partes para se pronunciarem, sem
menção à possibilidade de requererem a produção de prova, e a fixação de um prazo para o
juiz decidir, logo após as partes se terem pronunciado, que se afigura claramente incompatível
com a produção de qualquer prova.
Será, pois, de ver o processo de decretamento provisório de providências cautelares como
um processo em duas fases, tal como reguladas ao longo do artigo 131º. E de entender que a
decisão que, no âmbito desse processo, ao juiz cumpre proferir no termo da segunda fase,
segundo o diposto no artigo 131º, nº 6, não prejudica o subsequente desenvolvimento do
processo cautelar, processo em relação ao qual o do decretamento provisório funcionou como
um preliminar.
134. Uma outra questão importante que se coloca a propósito do instituto do decreta-
mento provisório de providências cautelares tem que ver com os critérios em que deve
assentar o decretamento provisório.
O artigo 131º refere-se, no nº 1 e, com maior grau de concretização, no nº 3, à “pos-
sibilidade de lesão iminente e irreversível” de um direito, liberdade ou garantia “ou outra
situação de especial urgência”. Ora, o primeiro aspecto a reter quanto a este ponto tem que
ver com a necessidade de se densificar esta última fórmula (“situação de especial urgência”), o
que se afigura da maior importância para evitar que ela seja preenchida em termos tais que
contribuam para a banalização de um instituto que, pelo excepcional grau de exigência que a
sua celeridade impõe ao sistema, deve ter um âmbito limitado de intervenção.
A nosso ver, essa densificação deve passar por uma interpretação de conjunto do artigo
131º, nº 3. Como já foi recordado, este preceito prevê dois tipos de situações em alternativa,
sendo mais preciso na identificação da primeira (“possibilidade de lesão iminente e irreversível
do direito, liberdade ou garantia”), do que da segunda. A utilização da fórmula “outra situação
de especial urgência” dá, no entanto, a entender que o legislador reconhece, desde logo, que
existe uma “especial urgência” quando há a possibilidade da lesão iminente e irreversível de
um direito, liberdade ou garantia e pretende estender o mesmo regime de protecção a outras
situações do mesmo tipo, que lhe sejam comparáveis — ou seja, a outras situações em que
exista a possibilidade da consumação de uma lesão iminente e irreversível.
A nosso ver, está, pois, aqui ínsito um dos dois requisitos de que, em termos gerais, o
artigo 120º, nº 1, faz depender, nas suas alíneas b) e c), a concessão de providências caute-
lares: o periculum in mora, que se concretiza no perigo de uma lesão irreversível — “fundado
receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de
difícil reparação”, na formulação do artigo 120º, nº 1, alíneas b) e c). Sucede, entretanto, que,
no âmbito do decretamento provisório, o periculum in mora tem de ser qualificado, na medida
em que não se reporta apenas à morosidade do processo principal, mas à morosidade do
próprio processo cautelar: não está, na verdade, em causa o perigo da constituição de uma
situação irreversível se nada for feito até ao momento em que venha a ser proferida sentença
no processo principal, mas o perigo da constituição de uma situação irreversível se nada for
feito de imediato, antes ainda do momento em que virá a ser decidido o próprio processo
cautelar. É por este motivo que o preceito associa ao perigo de uma lesão irreversível o perigo
de uma lesão iminente. A ocorrência tem, na verdade, de estar iminente — por dias ou
semanas —, pelo que a efectividade da tutela não se compadece com o normal andamento do
processo cautelar, mas antes exige a adopção de uma providência destinada a vigorar já
durante a própria pendência daquele processo.
Resta acrescentar que, a nosso ver, o juiz do decretamento provisório não deve deixar,
entretanto, de atender — designadamente na decisão que lhe cumpre proferir, a final, no âm-
bito do nº 6 — aos demais critérios de decisão que são enunciados no artigo 120º. A tal não se
opõe, na realidade, a circunstância de, no âmbito deste processo, o juiz poder não dispor de
todos os elementos, circunstância que, a nosso ver, apenas deve determinar, atenta a
gravidade dos interesses do requerente que, neste domínio, estão em jogo, que o de-
cretamento provisório só deva ser recusado, por razões que se contraponham ao periculum in
mora, em situações de evidência — desde logo, evidência de que o requerente não tem razão
quanto ao fundo da questão, a dirimir no processo principal.
135. O artigo 131º tem em vista situações que requeiram a imediata concessão de uma
providência cautelar, sem prejuízo da decisão que venha a ser proferida no processo principal
e até sem prejuízo da decisão definitiva que, a propósito da manutenção ou não da
providência provisoriamente decretada, venha a ser proferida no próprio processo cautelar.
Não estamos perante situações em que a concessão da providência faz com que o processo
principal se torne automaticamente inútil e em que, por isso, é necessário obter, com carácter
de urgência, uma decisão definitiva sobre o mérito da questão colocada no processo principal.
Pelo contrário, estamos perante situações em que a célere emissão de uma decisão sobre o
mérito da causa não é indispensável para proteger o direito, liberdade ou garantia, na medida
em que é, para o efeito, suficiente o decretamento de uma mera providência cautelar, desde
que se assegure que a providência é decretada com a maior urgência, imediatamente após o
momento em que seja solicitada.
136. Pela novidade que comporta, justifica uma última referência a solução introduzida
pelo artigo 121º, nos seguintes termos: “Quando a manifesta urgência na resolução definitiva
do caso, atendendo à natureza das questões e à gravidade dos interesses envolvidos, permita
concluir que a situação não se compadece com a adopção de uma simples providência cautelar
e tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito, o tribunal
pode, ouvidas as partes por dez dias, antecipar o juízo sobre a causa principal”.
Estamos aqui perante a previsão de um fenómeno de convolação da tutela cautelar em
tutela final urgente que se concretiza na antecipação, no processo cautelar, da decisão sobre o
mérito da causa. Esta previsão completa o quadro das soluções através das quais o CPTA
procura dar resposta a situações de urgência na obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da
causa. Como sabemos, as situações em que se coloque um problema de protecção de direitos,
liberdades e garantias são objecto de um processo urgente próprio, o processo de intimação
consagrado nos artigos 109º e seguintes. Nas situações que não se encontrem cobertas por
esse, nem por outro processo urgente, o máximo que o Código pode fazer é permitir a
antecipação da decisão a proferir no processo principal.
Esta possibilidade é condicionada pelo preenchimento de dois requisitos fundamentais. É
necessário, por um lado, que a natureza das questões colocadas e a gravidade dos interesses
em presença permitam concluir que existe uma “manifesta urgência na resolução definitiva do
caso”, com o que “não se compadece” a mera adopção de uma providência cautelar. Mas não
basta isto. Esta é a situação substantiva que tem de ser detectada para que possa ser
equacionada a hipótese da antecipação do juízo sobre o mérito da causa. Para que essa
antecipação, no entanto, se possa concretizar é necessário, por outro lado, que ouvidas as
partes e, portanto, consideradas as eventuais objecções por elas formuladas, o tribunal se
sinta em condições de decidir a questão de fundo, por dispor de “todos os elementos
necessários para o efeito”. Ou seja, é necessário que ele esteja em condições processuais que
lhe permitam dar resposta à situação substantiva de urgência, juízo a que deve proceder com
especial cuidado e que tenderá a ser positivo sobretudo quanto a questões cuja indagação não
se revista de grande complexidade (95).
Quando faltem as condições processuais (que correspondem a algo de semelhante ao
conceito alemão de Spruchreife, reportado a saber se a matéria está madura para decisão),
sempre haverá a possibilidade de, uma vez identificada a existência da situação substantiva de
urgência, se imprimir um ritmo mais acelerado ao andamento do processo principal, a
exemplo do que é formalmente admitido no direito italiano.
Resta acrescentar que também o artigo 132º, nº 7, no âmbito do regime específico
aplicável à adopção de providências cautelares relativas a procedimentos de formação de
contratos, admite que quando, logo no processo cautelar, considere demonstrada a ilega-
lidade de especificações contidas nos documentos do concurso, o juiz possa determinar a
respectiva correcção, assim decidindo, desde logo, a causa principal, no que constitui um
afloramento do regime do artigo 121º. À luz do que tem sido a experiência da aplicação juris-
prudencial, no direito comparado, da Directiva Recursos, esta solução parece ser a mais
adequada para assegurar alcance efectivo à possibilidade, entre nós prevista no artigo 132º, nº
1, de se pedir, logo no processo cautelar, a adopção de providências dirigidas a corrigir
ilegalidades patentes, como será, por exemplo, o caso do programa de concurso que vede o
acesso a candidatos de origem comunitária.
95() Para uma concretização neste sentido do campo de intervenção do artigo 121º, cfr. o disposto no artigo 132º, nº 7.