Linguagem em revista ano 8 número 15

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ISSN: 1807-6378 1 2 3 4 LINGUAGEM 5 EM (RE)VISTA 6 (Ano 08, N o 15-16) 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 Niterói 20 2013 21

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ISSN: 1807-6378 1

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LINGUAGEM 5

EM (RE)VISTA 6

(Ano 08, No 15-16) 7

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EXPEDIENTE 1

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A LINGUAGEM EM (RE)VISTA é um periódico semestral destina-4

do à expansão e socialização de pesquisas inscritas no âmbito de es-5

tudos da linguagem. Eventualmente, poderá receber contribuições de 6

áreas afins. 7

Conselho Editorial

Ana Léa Rosa da Cruz

Antônio Carlos da Silva

Beatriz dos Santos Feres

Iran Nascimento Pitthan

Maria Isaura Rodrigues Pinto

Maria Luiza de Castro da Sil-

va

Olga Maria Guanabara de Li-

ma

Regina Souza Gomes

Organização e edição: Maria Isaura Rodrigues Pinto

Capa: Maria Isaura Rodrigues Pinto

Editoração e diagramação: José Pereira da Silva

Montagem e encaderna-

ção: Silvia Avelar Silva

Impressão: Universidade das Cópias

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As ideias apresentadas nos artigos assinados são de exclusiva 9

responsabilidade de seus autores. 10

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SUMÁRIO 5

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0. Apresentação 7

Maria Betânia Almeida Pereira ................................... 05 8

1. O ensino da língua portuguesa e a lei 11.645/2008 9

Norma Sueli Rosa Lima .................................................. 9 10

2. Ensino de língua na escola básica: orientação funcio-11

nal 12

Vania Lúcia Rodrigues Dutra ....................................... 18 13

3. Uma experiência com a construção de sentidos em co-14

médias da vida privada, de verissimo 15

Helio de Sant’Anna dos Santos .................................... 37 16

4. Gêneros publicitários e o modo argumentativo: pers-17

pectivas de ensino 18

Glayci Kelli Reis da Silva Xavier ................................. 63 19

5. Ethos e jornalismo opinativo: imagens de (im)parciali-20

dade 21

Patricia Ferreira Neves Ribeiro ................................... 83 22

6. Interseção entre o domínio literário e o domínio midi-23

ático na atualidade 24

Maria Isaura Rodrigues Pinto .................................... 102 25

7. Ser, tempo, escrita: limite e representação em A Hora 26

Da Estrela e Água Viva 27

Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos .................. 114 28

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8. Memórias de infância em Graciliano Ramos 1

Maria Betânia Almeida Pereira ................................. 129 2

9. Elisa Lucinda e Graça Lima: a qualificação implícita 3

na semiose verbo-visual de livros ilustrados para cri-4

anças 5

Beatriz dos Santos Feres ............................................ 150 6

INSTRUÇÕES EDITORIAIS .......................................... 167 7

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APRESENTAÇÃO 5

Com muita satisfação, convidamos o leitor a apreciar os 6

textos que compõem esta nova edição do periódico LINGUA-7

GEM EM R(E)VISTA. Embora a diversidade de ideias revele a 8

riqueza comum do debate na área específica de estudos da lin-9

guagem, há similaridades que agregam pontos de contato entre 10

os autores, estabelecendo assim diálogos capazes de propiciar 11

uma linha convergente de pensamento. 12

Na esteira dos estudos contemporâneos sobre o ensino 13

de Língua Portuguesa nas escolas, quatro estudiosos, cada um 14

a sua maneira, constroem seus escritos, colaborando para um 15

alargamento das dimensões da prática docente, a partir de fo-16

co(s) singular(es). Vamos a eles: 17

A Profa. Dra. Norma Sueli Rosa Lima em “O ensino de 18

Língua Portuguesa e a Lei 11.645/2008”, busca compreender 19

de que maneira o ensino de Língua Portuguesa pode colaborar 20

com a construção de identidade cultural, no resgate da digni-21

dade tanto dos afrodescendentes, quanto dos segmentos indí-22

genas. Já em “Ensino de Língua na escola básica: orientação 23

funcional”, a Profa. Dra. Vânia Lúcia Rodrigues Dutra (UERJ/ 24

UFF), com base nos pressupostos teóricos da Linguística Sis-25

têmico-Funcional e da Semiótica, busca trabalhar com a elabo-26

ração de estratégias pedagógicas diversas das que vêm sendo 27

usadas em sala de aula, no que se refere aos conteúdos pro-28

gramáticos da Língua Portuguesa. Desse modo, procura verifi-29

car, especificamente, o modo como a linguagem funciona na 30

construção dos textos (sequências textuais – se não argumenta-31

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tivas, descritivas, narrativas), o que determinará grandemente 1

os significados textuais. 2

A terceira discussão pautada também no ensino de Lín-3

gua Portuguesa fica a cargo do Prof. Dr. Hélio Sant’Anna dos 4

Santos (UFF), cujo texto, “Uma experiência com a construção 5

de sentidos em Comédia da Vida Privada, de Veríssimo” de-6

fende a tarefa imprescindível de o professor de língua materna 7

no exercício de ensinar as práticas de linguagem. O estudo 8

parte de uma experiência que realizou com aproximadamente 9

trezentos alunos de escolas públicas e privadas, dos três anos 10

do Ensino Médio, a partir da análise feita por esses alunos dos 11

textos que compõem o livro Comédias da Vida Privada – Edi-12

ção Especial para Escolas (VERÍSSIMO, 1999). 13

Partindo igualmente de uma prática docente, a Profa. 14

Dra. Glayci Kelli Reis da Silva Xavier (UFF/FFP-UERJ), em 15

seu trabalho, “Gêneros publicitários e o modo argumentativo: 16

perspectivas de ensino”, pretende mostrar como é possível 17

proporcionar, desde as séries iniciais, situações que desenvol-18

vam a competência linguística dos alunos. Para isso, analisa 19

um projeto realizado com alunos do quinto ano do Ensino 20

Fundamental, que envolve o estudo e a produção de gêneros 21

do domínio publicitário. 22

Em outro caminho não menos instigante para o debate 23

do corpus do periódico, alguns estudiosos perscrutaram outros 24

discursos, alinhavando outras redes. No emaranhado universo 25

midiático, por exemplo, a Profa. Dra. Patrícia Ferreira Neves 26

Ribeiro, em “Ethos e jornalismo opinativo: imagens de 27

(im)parcialidade”, tem como proposta analisar provérbios que 28

são recriados em textos argumentativos assinados pelo repórter 29

político Villas-Bôas Corrêa, no intuito de flagrar o ethos, no 30

escopo de contrato de comunicação midiática. 31

Considerando a projeção do domínio midiático na atua-32

lidade, agora no âmbito da literatura, a Prof.(a) Dra. Maria 33

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Isaura Rodrigues Pinto (FFP/UERJ), em “Interseção entre o 1

domínio literário e o domínio midiático na atualidade”, analisa 2

a escritura de João Gilberto Noll, por considerar esse espaço 3

narrativo um campo especialmente privilegiado para investi-4

gação. Dentre muitas questões, sinaliza que o método de com-5

por do autor capta a velocidade e a efemeridade das imagens 6

que passam fugazes pela tela do cinema; encenando através de 7

uma linguagem vertiginosa e fragmentada a vida contemporâ-8

nea em seu movimento frenético. 9

Partindo também de uma análise da escritura de outra 10

figura em destaque na Literatura Brasileira, a Profa. Dra. Da-11

nielle Cristina Mendes Pereira Ramos evidencia o texto clari-12

ciano em “Ser, tempo, escrita: limite e representação em A ho-13

ra da estrela e Água viva”. A pesquisadora, a partir do exame 14

das obras, discute que o texto de Clarice Lispector “inquire a 15

força mimética presente na abstração da pintura que esvaziada 16

de forma figurativa apresenta-se como elemento potencial de 17

descoberta do inefável...”. E chega à conclusão que “a escritu-18

ra de Clarice se constrói como fonte de semeadura de um labi-19

rinto de dúvidas, condenadas ao silêncio”. 20

Ainda no vasto campo da Literatura Brasileira, o artigo 21

“Memórias de Infância de Graciliano Ramos”, da Prof.(a) Dra. 22

Maria Betânia Almeida Pereira (LANTE/UFF; UNESA), pre-23

tende abordar como o escritor Graciliano Ramos elabora a sua 24

experiência de infância, conjugando memória e ficção, a partir 25

dos três primeiros contos de Infância: “Nuvens”, “Manhã” e 26

“Verão”. Tais títulos sugestivos para telas de pintura podem 27

configurar um paralelo entre este campo artístico e a tessitura 28

narrativa. Para a autora, “o entrecruzamento entre as vivências 29

do autor e a carga ficcional se materializa numa estética que 30

prioriza uma forma poética na composição dos contos”. 31

No âmbito também da infância, especificamente, em se 32

tratando de obras para o público leitor infantil, o artigo “Elisa 33

Lucinda e Graça Lima: a qualificação implícita na semiose 34

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verbo-visual de livros ilustrados para crianças”, da Prof.(a) 1

Dra. Beatriz dos Santos Feres (UFF), considera que a investi-2

gação sobre a qualificação implícita em livros ilustrados para 3

crianças tem como objetivo identificar, nas encenações descri-4

tivas, a função formativa subjacente às expressões nominais, 5

às metáforas verbais e visuais e às ilustrações codificadas. O 6

trabalho fundamenta-se essencialmente na Semiolinguística 7

(CHARAUDEAU, 2008) e toma como corpus para análise os 8

livros A menina transparente (2010), Lili, a rainha das esco-9

lhas (2011a) e A dona da festa (2011b), de Elisa Lucinda e 10

Graça Lima. 11

Esperamos que a leitura dos textos contribua para o de-12

bate nas áreas aqui evidenciadas e amplie as discussões traça-13

das no vasto campo da linguagem. Assim como os textos fo-14

ram construídos nas trilhas do olhar investigativo, com muito 15

gosto, desejamos que também o leitor possa enveredar por es-16

ses percursos, ajudando a formar um caminho de estudos, com 17

prazer. 18

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Niterói, dezembro de 2013. 20

Maria Betânia Almeida Pereira 21

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O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA 5

E A LEI 11.645/2008 6

Norma Sueli Rosa Lima1 7

8

No exame dos fatos que culminaram na criação da Lei 9

11.645, em março de 2008, que instituiu a cultura afro-brasi-10

leira e indígena nos ensinos fundamental e médio, públicos e 11

privados, em todo o currículo escolar, identificamos a sua ori-12

gem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 13

9394, de 1996, que em seu quarto artigo, determinou que os 14

conteúdos pedagógicos deveriam contemplar a pluralidade das 15

contribuições de diferentes culturas e etnias para a formação 16

do povo brasileiro, “especialmente [as] das matrizes indígena, 17

africana e europeia”. 18

Somente, entretanto, sete anos depois, com o estabele-19

cimento da Lei 10.639/2003, que esta preocupação com uma 20

prática pedagógica voltada para as colaborações das etnias as-21

sumiria teor sintonizado com os ideais das ações afirmativas, 22

através da especificação de que, ao currículo escolar, deveriam 23

ser incorporadas “a luta dos negros, no Brasil”, bem como a 24

sua “contribuição nas áreas social, econômica e política”. Cin-25

co anos depois, a Lei 11645/2008 incluiu o segmento indígena 26

como também merecedor de ser contemplado: “(...) a luta dos 27

1 Doutora em Literatura Comparada pela UFF. Coordenadora dos Cursos de Pós-Graduação em Cultura Afro-Brasileira e Indígena e de Literaturas de Língua Portu-guesa (Africana, Brasileira e Indígena) – Ipetec/Funcefet/UCP.

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negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indí-1

gena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade 2

nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, 3

econômica e política, pertinentes à história do Brasil (...)”. 4

Estas Leis, nascidas da constatação da exclusão dos 5

africanos e indígenas do ambiente escolar, tanto no sentido de 6

suas contribuições históricas, quanto no de suas participações 7

nela enquanto sujeitos, muitas vezes ainda são “cumpridas” no 8

ambiente escolar apenas reproduzindo práticas que remetem a 9

estereótipos que foram alimentados, durante muito tempo, pelo 10

imaginário eurocêntrico, através de ações que não iam muito 11

além da reprodução de lugares comuns sobre índios e africa-12

nos, até mesmo porque estes docentes não tinham tido, em su-13

as formações, determinados conteúdos que já se encontram, 14

atualmente, presentes nos recomendados livros de História e 15

de Geografia informando que a África, por exemplo, é o berço 16

da Humanidade, da Civilização (LARKIN) e que os índios de-17

veriam ser compreendidos não no contexto de uma sociedade 18

cuja economia é de excedente, dentre muitos outros fatores a 19

serem considerados (CLASTRES). 20

Na tentativa de auxiliar os professores, muitas iniciati-21

vas foram tomadas, como as das publicações de livros didáti-22

cos e paradidáticos, com o objetivo de, através do diálogo es-23

cola/afro-brasilidade/indianismo, alterar o lugar tradicional-24

mente conferido às nossas matrizes étnicas. Os Parâmetros 25

Curriculares Nacionais no volume dedicado ao ensino de Lín-26

gua Portuguesa, com foco na leitura (tanto para o fundamental, 27

médio, quanto para o superior), orienta, entre outras questões, 28

para que a consideremos como língua materna, geradora de 29

significação e também como integradora da organização de 30

mundo e da própria identidade (MURRIE, 2000, p. 10). Nos 31

PCN que contemplam os temas transversais, a Linguagem é 32

percebida, igualmente, como fator identitário de grupos e indi-33

víduos: 34

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Tratar de bilinguismos e multilinguismos é uma forma de 1 mostrar a riqueza da diversidade que sabe desenvolver-se man-2 tendo elementos comuns e elementos singulares. Será possível 3 trabalhar a importância da língua como fator de identidade para 4 um grupo étnico, tratando da estrutura e do uso das diferentes 5 línguas das etnias indígenas presentes no Brasil (PCN, 2000, p. 6 78). 7

Na tríade referenciais histórico-culturais, contexto edu-8

cacional e educando, procuraremos compreender de que ma-9

neira o ensino de Língua Portuguesa pode colaborar com a 10

construção da identidade cultural, no resgate da dignidade tan-11

to dos afrodescendentes, quanto dos segmentos indígenas. 12

Pensar a articulação entre Educação, Cidadania e Ética 13

com esse ensino é examinar as Linguagens como veículo das 14

transformações históricas e culturais. Compreender a Língua 15

também como um fenômeno de Leitura é pensar em um cor-16

pus de textos das Literaturas de Língua Portuguesa (Africanas, 17

Brasileira e Indígena) que possam auxiliar a tarefa do educa-18

dor, tomando como base teórica a construção do leitor ideal e 19

do leitor real, segundo as propostas de Fillmore (1983) e Kay 20

(1983). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem 21

que o ensino de Língua Portuguesa (LP) trabalhe com a leitura 22

e a escrita a fim de tornar o aluno apto a se desenvolver en-23

quanto leitor, dominando a produção das diversas modalidades 24

de textos. E é como Leitura que as Avaliações propostas pelo 25

MEC vêm encarando a LP, desde a década de 90. Além disso, 26

entendemos que o trabalho com a Literatura ocupa um espaço 27

privilegiado no atendimento dos objetivos da Lei 11.645/08, já 28

que nela observamos aspectos culturais e históricos do conti-29

nente Africano e do Brasil, além de ela auxiliar, no ensino da 30

Língua, a fomentar o pensamento crítico acerca das diversas rea-31

lidades. 32

A seleção de textos com tais temáticas, portanto, auxili-33

arão na tarefa, como sugeriu Amâncio (2008) de: formar pro-34

fessores sensíveis à questão racial; desconstruir o imaginário 35

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quanto aos africanos e os indígenas, evitando estereótipos 1

equivocados; promover a construção de imagens positivas de 2

negros e índios, e em consequência, de outras minorias étnicas 3

e de gênero; incentivar, por meio da fruição poética e em prosa 4

de autores africanos, brasileiros e indígenas, elementos das vi-5

sões destes grupos sem a contaminação de uma leitura eu-6

rocêntrica, ou seja, dizer, não ser dito pelo outro; possibilitar o 7

contato com literaturas desconhecidas ou pouco divulgadas 8

enquanto instrumentos de marcas étnicas (por exemplo: tre-9

chos de um romance abolicionista escrito no século XIX por 10

desconhecida autora brasileira; estudar autores africanos, bra-11

sileiros e indígenas, inclusive contemporâneos, que refletem 12

sobre as suas identidades). Pensamos que com estas, entre ou-13

tras ações, possamos auxiliar a diminuir o racismo ainda pre-14

sente nos textos veiculados entre os alunos (SILVA, 2008). 15

Acerca das reflexões sobre o papel do professor de Lín-16

gua Portuguesa, cabe citar que ele 17

deve ter um aprofundamento teórico acerca da linguagem, e o 18 principal, colocar em prática a teoria, pois não adianta nada ter 19 conhecimentos sobre todas as teorias se não colocar em prática 20 no ambiente escolar a leitura e a escrita de uma forma crítica e 21 voltada para a construção de uma educação melhor. Então, 22 “através da leitura, portanto, reconhecemo-nos parte da humani-23 dade e não seres isolados e somos capazes de tecer a própria in-24 dividualidade a partir do e com o outro” (GURGEL, 1999, p. 25 210). 26

A citação é pertinente porquanto o próximo ponto a ser 27

considerado é o de compreendermos a Língua Portuguesa do 28

ponto de vista da linguagem, enquanto sistema que, ao longo 29

da sua história, tem dialogado com grupos étnicos com os 30

quais entrou em contato. A partir principalmente das décadas 31

iniciais do século XX, aliado ao conceito de nova nação que 32

surgia com a finalização da República Velha, como ensina Me-33

lo (1975), o interesse em se estudar uma língua “nacional” ins-34

tigou estudiosos como João Ribeiro, Sílvio Elia, entre outros: 35

“a língua nacional é essencialmente a Língua Portuguesa, mas 36

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enriquecida na América, emancipada e livre nos seus próprios 1

movimentos”, ensina Ribeiro (1975). Para Elia (2003), se pren-2

dia ao destino da própria cultura brasileira, na quebra de uni-3

dade cultural com o Velho Mundo. 4

Estas reflexões, que vêm sendo realizadas ao longo das 5

décadas, encontram ressonância e acolhida nas postulações da 6

Lei 11645, ao entendermos a Língua como fenômeno de Cul-7

tura (MELO, 1975, p. 20), na investigação dos fundamentos 8

histórico-linguísticos observados nela (ELIA, 2003), desde o 9

século XIX. O exame dos influxos tanto das línguas indígenas, 10

quanto das africanas no Português vem merecendo, ao longo 11

das décadas, debates que ora minimizam a sua presença em 12

nossa expressão, Melo (1975), Silva Neto (1993), Elia (2003), Câ-13

mara (1972) ora afirmam a sua importância, inclusive servindo 14

como análise sociológica do comportamento do brasileiro em 15

obras de referência das ciências sociais Freyre (1998), Holanda 16

(1995). 17

A questão da presença de línguas indígenas e africanas 18

em suas contribuições para o Português do Brasil, em termos 19

de um caráter distinto de sua matriz falada em Portugal valori-20

za, ainda, o aspecto da oralidade, objeto de investigação de 21

muitos filólogos e linguistas. Segundo Fávero (2005), histori-22

camente, a escrita era considerada a verdadeira forma de lin-23

guagem e a fala, por ser mais flexível, não constituía objeto de 24

estudo e só depois de 1960 é que a linguagem falada deixou de 25

ser considerada uma mera verbalização. Como também afirma 26

Geraldi: 27

A língua, enquanto produto desta história e enquanto condi-28 ção de produção da história presente vem marcada pelos seus 29 usos e pelos espaços sociais destes usos. Neste sentido a língua 30 nunca pode ser estudada ou ensinada como produto acabado, 31 pronto, fechado em si mesmo [...] (GERALDI, 1984, p. 28). 32

A Oralidade é adquirida nas relações sociais do nosso 33

dia-a-dia, desde o nosso nascimento, por isso, a prática da ora-34

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lidade é uma forma de inclusão cultural e de socialização. 1

Como pressupostos teóricos que embasam o ensino de Língua 2

Portuguesa partimos das considerações de Geraldi (1984) sobre 3

a “linguagem como forma ou processo interação”. A lingua-4

gem é vista como um lugar de interação humana, pois hoje não 5

há mais questionamentos sobre a importância de se trabalhar o 6

componente oral na sala de aula. 7

Autores como Travaglia (2000) e Fávero (2005), por 8

exemplo, têm argumentado a favor do desenvolvimento de 9

competências orais na escola, evidenciando que só se pode 10

compreender e ensinar a língua escrita com base na correta 11

compreensão do funcionamento da fala. Neste sentido, é inte-12

ressante investigar os diálogos processados entre a Língua 13

Portuguesa com modalidades orais das línguas indígenas e 14

africanas, além de trazer à tona o debate sobre a influência 15

destas línguas ser responsável pela especificidade do portu-16

guês brasileiro, como acreditam alguns (RIBEIRO, 1930), 17

Mendonça (1935), ao passo que outros não entendem tais in-18

fluências como fundamentais para a formação da língua brasi-19

leira. 20

Como bem postulou Petter (1996) o levantamento das 21

variedades da Língua Portuguesa é o caminho seguro para 22

identificar o caráter específico de uma expressão nacional, que 23

não pode ser considerada como um bloco homogêneo, pois 24

apresenta diferenças decorrentes de variações diatópicas e di-25

astráticas que merecem ser avaliadas. O exame destas ques-26

tões, em termos de ensino da Língua aplicado à Lei 11645, irá 27

ao encontro das expectativas de uma formação com fortes la-28

ços em uma identidade brasileira, também não homogênea, 29

pois que com matriz índia, branca e negra. Em termos de me-30

todologia de trabalho, considerando que a tradição oral é de-31

positária do acúmulo de experiências materiais e espirituais 32

vivenciados pelo grupo, a investigação, segundo Petter (1998), 33

poderia partir das manifestações folclóricas e dos falares indí-34

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genas e africanos, bem como através dos diferentes níveis so-1

cioculturais de linguagem, até do Português falado no Brasil. 2

Concluímos que o ensino da Língua Portuguesa, bem 3

como a divulgação de textos das diferentes Literaturas expres-4

sas em Língua Portuguesa e de temas que abordem expectati-5

vas contempladas na Lei 11.645 propiciarão aos professores 6

oportunidades de desenvolver em suas escolas trabalhos inter-7

disciplinares, por ser ela o instrumento através do qual docen-8

tes, de todas as disciplinas, interagem e ministram os seus con-9

teúdos. 10

11

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 12

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brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 14

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

18

1

2

3

4

ENSINO DE LÍNGUA NA ESCOLA BÁSICA: 5

ORIENTAÇÃO FUNCIONAL 6

Vania Lúcia Rodrigues Dutra2 7

8

1. Introdução 9

Há, hoje, o entendimento de que o foco do trabalho na 10

sala de aula de Língua Portuguesa não pode ser mais a gramá-11

tica com objetivo e fim em si mesma. Buscamos, com o traba-12

lho com a língua na escola, ampliar a competência comunica-13

tiva dos alunos, objetivo não muito claro para professores e 14

alunos há pouco tempo. Essa mudança de perspectiva está 15

sendo possível por conta da concepção que se passou a assu-16

mir em relação a essa mesma língua, considerando-a como um 17

instrumento de comunicação e de ação, e privilegiando sua 18

funcionalidade. 19

Com base nessa visão, pesquisadores que se dedicam a 20

pensar as práticas pedagógicas de ensino de língua na Escola 21

Básica têm trazido, cada vez mais, para o centro de suas dis-22

cussões, a abordagem funcionalista da linguagem – em nosso 23

caso, mais especificamente, a abordagem sistêmico-funcional 24

de Michael Halliday (2004). A partir dela, procura-se demons-25

trar que o trabalho com a gramática na escola é necessário – ao 26

contrário do que alguns defendem –, que o conhecimento gra-27

2 UERJ, Instituto de Letras, Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portu-guesa e Filologia Românica. UFF, Colégio Universitário – COLUNI, Língua Portu-guesa.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

19

matical é imprescindível para que o aluno possa desenvolver 1

suas habilidades de leitura e de escrita em busca de uma maior 2

proficiência verbal. A ênfase dada hoje ao trabalho com os 3

textos na escola vem ao encontro do que propõe a abordagem 4

sistêmico-funcional, que estabelece uma estreita relação entre 5

os fatos gramaticais e a constituição dos textos. 6

Assim como muda a concepção de língua a partir do que 7

propõe a Linguística Funcional, muda também a concepção de 8

gramática. A língua, na visão funcionalista, não é um sistema 9

autônomo, e a gramática é entendida em “referência a parâme-10

tros como cognição e comunicação, processamento mental, in-11

teração social e cultura, mudança e variação, aquisição e evo-12

lução” (NEVES, 1997, p. 3). A gramática passa, então, a ser 13

concebida como um potencial para a construção do significa-14

do. A gramática assim considerada analisa a estrutura da lín-15

gua em relação a toda a situação comunicativa – os interlocu-16

tores, os objetivos do evento da fala, o contexto discursivo – e 17

estabelece relações entre o sistema linguístico, seus elementos 18

e as funções que eles cumprem na comunicação. É a chamada 19

“gramática funcional”, cuja tarefa, conforme Beaugrande 20

(apud NEVES, op. cit.), é “fazer correlações ricas entre forma 21

e significado dentro do contexto global do discurso”. Dessa 22

forma, não há como desvincular gramática e texto no processo 23

de ensino-aprendizagem da língua. 24

25

2. Gramática Sistêmico-Funcional 26

À visão formalista da linguagem, opõe-se a visão funci-27

onalista. A primeira trata da estrutura sistemática das formas 28

da língua, enquanto a segunda preocupa-se com a relação sis-29

temática entre as formas e as funções na língua. Essas duas 30

correntes delinearam o que se chama, respectivamente, “gra-31

mática formalmente orientada” e “gramática funcionalmente 32

orientada”. 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

20

Segundo Halliday (2004), as diferenças entre essas duas 1

correntes da gramática baseiam-se na oposição fundamental 2

entre uma orientação primariamente sintagmática e uma orien-3

tação primariamente paradigmática. Assentada na primeira 4

orientação, a gramática formalmente orientada interpreta a 5

língua como uma lista de estruturas, entre as quais relações re-6

gulares podem ser estabelecidas secundariamente; enfatiza os 7

traços universais das línguas e toma a sintaxe como base, or-8

ganizando a língua em torno da frase. Assentada na segunda 9

orientação, a gramática funcionalmente orientada, ao contrá-10

rio, entende a língua como uma rede de relações, com a atuali-11

zação das estruturas funcionando como a realização dessas re-12

lações; evidencia as variações entre as línguas e toma a semân-13

tica como base, organizando a língua em torno do texto e do 14

discurso. 15

Na base dessa diferenciação está o fato de os formalistas 16

encararem a linguagem como fenômeno mental, estudando a 17

língua como um sistema autônomo, enquanto os funcionalistas 18

a veem como um fenômeno social, estudando-a em relação à 19

função social que desempenha. 20

A natureza social da linguagem impõe que ela seja ana-21

lisada com base em seu aspecto enunciativo-discursivo, isto é, 22

na interação verbal e no enunciado (BAKHTIN, 2003). Os 23

formalistas tratam a língua como sistema abstrato, ideal e fe-24

chado em si mesmo; os funcionalistas apontam a enunciação, 25

produto das interações sociais, como a unidade de estudo da 26

língua. Essa enunciação concretiza-se por meio de enunciados, 27

que, como signos ideológicos, acompanham os atos de com-28

preensão e interpretação nas interações. 29

30

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

21

2.1. Objeto de análise da Gramática Sistêmico-1

Funcional 2

Segundo Bakhtin (2003), falamos por meio de gêneros 3

dentro de determinada esfera da atividade humana. Não atuali-4

zamos simplesmente um código linguístico, mas moldamos a 5

nossa fala aos parâmetros de um gênero no interior de uma 6

atividade. Conforme pressupõe a Linguística Sistêmico-7

Funcional, não se pode pensar o gênero em si mesmo ou em 8

seus aspectos formais somente. Suas funções socioverbais e 9

ideológicas são imprescindíveis para sua constituição. Os gê-10

neros são fenômenos complexos que envolvem, entre outros, 11

aspectos linguísticos, discursivos, interacionais, sociais, prag-12

máticos, históricos. 13

Em nosso fazer diário, empregamos muitos gêneros de 14

forma segura e adequada, embora, teoricamente, não tenhamos 15

consciência de sua existência. Adquirimos o conhecimento 16

empírico sobre os gêneros assim como adquirimos a língua 17

materna, nas trocas diárias de enunciações concretas, em todas 18

as situações comunicativas com nossos interlocutores, quando 19

as ouvimos/lemos e reproduzimos. Conhecer o funcionamento 20

dos gêneros que usamos equivale, em relação à língua, a co-21

nhecer a organização de sua gramática. Tal conhecimento pos-22

sibilita-nos extrair, de um e de outro – do gênero e da língua, 23

que apreendemos em conjunto e que são, ambos, indispensá-24

veis à compreensão mútua –, o melhor em termos de expressi-25

vidade e comunicabilidade. 26

De acordo com Halliday (1979, p. 4-5): 27

A linguagem é o que é por causa das funções que ela 28 desenvolveu para exercer na vida das pessoas; é de se esperar 29 que as estruturas linguísticas possam ser entendidas em termos 30 funcionais. 31

Os estudos sobre iconicidade na língua e, portanto, 32

na sua organização gramatical, têm chamado a atenção para 33

uma possível motivação icônica, ou seja, para o reflexo, nos 34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

22

elementos estruturais dos textos, de relações existentes em sua 1

estrutura semântica. Com base na Teoria da Iconicidade Ver-2

bal (SIMÕES, 2009), considera-se haver uma relação não arbi-3

trária entre forma e função, ou seja, entre estrutura gramatical 4

e sentido nos textos. Conforme Neves (1997), 5

A despeito da absoluta arbitrariedade apregoada pelos estru-6 turalistas, as bases funcionalistas vêm fortalecendo passo a passo 7 a existência de iconicidade nas gramáticas das línguas, demons-8 trando a existência de uma correlação um-a-um entre forma e in-9 terpretação semântico-pragmática pautada numa motivação fun-10 cional imanente aos aspectos estruturais observados (cf. DECAT 11 et al, 2001, p. 36). 12

Considerando-se que o texto escrito pode ser tido como 13

um objeto visual, e que a leitura é um processo de semiose – 14

de geração de sentidos –, o instrumental semiótico adquire 15

grande relevância para a análise do signo-texto. Aliando pres-16

supostos teóricos da Semiótica Linguística de Peirce, da Gra-17

mática Funcional de Halliday e da abordagem pragmático-18

textual de Adam, consideramos que os recursos linguísticos 19

que entram na organização dos textos são verdadeiros signos e 20

que, portanto, têm potencial icônico. 21

Partindo-se da iconicidade diagramática (considerada 22

em sua plasticidade – diagramação) e da função social dos gê-23

neros (considerados como objetivos sociocomunicativos), fo-24

camos nossa atenção na estruturação linguística dos textos 25

(aspectos discursivo-gramaticais), evidenciando uma motiva-26

ção icônica para a forma linguístico-gramatical que o materia-27

liza. Nessa perspectiva semiótico-funcional, os conceitos de 28

gênero e de sequências textuais assumem especial relevância, 29

pois possibilitam um trabalho mais produtivo com a leitura e a 30

produção de textos em sala de aula. Mais do que explorar a 31

nomenclatura e os conceitos gramaticais, é preciso que se in-32

vista no conhecimento sobre a função social dos gêneros 33

(MARCUSCHI, 2002) e nos valores projetados sobre os sig-34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

23

nos que compõem as diversas sequências textuais que entram 1

em sua composição (ADAM, 1992). 2

3

3. Os gêneros e as sequências na sala de aula 4

Embora pareça ser consensual hoje que o objetivo da 5

escola básica, no que diz respeito ao ensino da língua materna, 6

seja desenvolver a competência discursiva do aluno por meio 7

do estudo dos textos, a análise dos resultados observáveis, de 8

um modo geral, aponta para uma única constatação: o trabalho 9

que vem sendo realizado não está sendo bem sucedido. 10

Muito distante da intenção está a prática. Acreditando 11

que o conhecimento sobre a gramática normativa é que leva, 12

necessariamente, a ler e a escrever melhor na variedade padrão 13

da língua, o professor continua investindo no trabalho com a 14

gramática, privilegiando a nomenclatura, a memorização de 15

conceitos e a análise de formas artificiais da língua, muitas ve-16

zes concebidas unicamente para esse fim. Os textos estão na 17

sala de aula, muito mais presentes do que estavam antes do 18

advento dos PCN. Entretanto, ainda são subutilizados, servin-19

do basicamente de fonte para a retirada de enunciados que 20

alimentarão as análises gramaticais, atividade predominante no 21

dia a dia das aulas de língua portuguesa ainda nos dias de hoje. 22

Ou seja, na prática, promove-se o distanciamento, a separação 23

entre o conhecimento gramatical e as práticas de leitura e de 24

produção de textos. No caminho inverso, é preciso que se de-25

monstre claramente a existência de relação entre os fatos gra-26

maticais e a construção dos sentidos nos textos. 27

Essa constatação demonstra a necessidade da adoção de 28

uma outra concepção de gramática e, junto a isso, a necessida-29

de da integração entre gramática e texto para um ensino de 30

língua mais eficaz. Nessa perspectiva, a gramática é conside-31

rada parte de um conjunto mais amplo de recursos que atuam 32

na configuração da forma como a língua é colocada em uso, 33

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24

ou seja, na configuração da forma como os textos são constru-1

ídos. Nesse âmbito, a gramática tem a sua importância res-2

guardada, mas há um redimensionamento do espaço por ela 3

ocupado na análise linguística do texto. 4

Admitindo-se a correlação necessária entre gramática e 5

texto no ensino da língua, entende-se que a gramática é um po-6

tencial para a construção do significado e que a análise das es-7

truturas gramaticais é uma ferramenta útil ao desenvolvimento 8

das habilidades discursivas (HAWAD, 2009). A perspectiva 9

de trabalho com os textos com base nos pressupostos teóricos 10

da Linguística Sistêmico-Funcional e da Semiótica possibilita 11

uma organização diferente dos conteúdos programáticos da 12

Língua Portuguesa – especificamente de gramática –, que se-13

rão organizados a partir das sequências textuais e não dos gê-14

neros propriamente ditos, e pressupõe a elaboração de estraté-15

gias pedagógicas diversas das que vêm sendo usadas em sala 16

de aula. Conhecer o funcionamento da gramática é condição 17

para um uso mais consciente e, portanto, mais eficiente do sis-18

tema linguístico que o falante tem a sua disposição. 19

20

3.1. Gêneros textuais3 21

Os gêneros textuais são o instrumento por meio do qual 22

colocamos a língua em funcionamento nas interações sociais. 23

São, portanto, textos concretos que circulam em sociedade e 24

que cumprem funções sociais específicas; têm formato e com-25

posição relativamente estáveis, conteúdo, estilo, objetivo co-26

municacional e modo de veiculação característicos. São obje-27

tos culturais e existem em grande quantidade e diversidade, 28

podendo variar de cultura para cultura. 29

3 As seções 3.1 e 3.2 deste texto foram primeiramente apresentadas como parte da comunicação Iconicidade diagramática – a expressão motivada pelas funções, no II Colóquio de Semiótica, na UERJ, em 2009.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

25

A tirinha, por exemplo, é um gênero textual. 1

2 (QUINO, 1993) 3

Normalmente veiculada em jornais e revistas, a tirinha 4

configura-se, em sua diagramação típica, como um texto com-5

posto por uns poucos quadrinhos – entre um e quatro, nor-6

malmente –, em que se combinam o verbal e o não verbal. Ne-7

la, apresenta-se a “fala” das personagens – enunciados curtos – 8

distribuída em balões. O conteúdo tratado na tirinha é quase 9

sempre uma crítica aos modos de comportamento social, polí-10

tico, aos valores, aos sentimentos, buscando o efeito de humor. 11

Em relação ao estilo, pode-se dizer que a tirinha traz a marca 12

individual de seu autor, em seus traços e em sua linguagem, 13

normalmente marcada pela informalidade. 14

Envolvidos em diversas práticas sociais em seu dia a 15

dia, os falantes utilizam uma grande variedade de gêneros 16

orais e escritos, lançando mão do que Koch e Elias (2006) 17

chamaram de competência metagenérica. Tal competência 18

possibilita-nos interagir convenientemente, capacitando-nos 19

para produzir e para compreender os gêneros textuais. A tiri-20

nha é um entre tantos outros gêneros, como o conto, o poema, 21

a notícia, a entrevista, o relatório, a procuração, o bilhete, o e-22

mail, a palestra, o discurso político, a aula, a missa etc. 23

Sendo objetos culturais, há gêneros característicos de 24

outras culturas, desconhecidos em nossa sociedade, portanto. 25

Assim como há gêneros comuns entre nós e desconhecidos de 26

outros povos. Lembremo-nos do mangá japonês, recentemente 27

descoberto pelos jovens ocidentais. Há, também, gêneros que 28

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

26

estão deixando de ser usados, desaparecendo de nossa prática 1

social – a carta pessoal –, e outros que surgiram recentemente 2

– o e-mail – e que ainda surgirão, motivados por necessidades 3

comunicativas que o futuro trará. 4

Os textos socialmente considerados como representan-5

tes de determinado gênero têm características semelhantes, 6

atribuídas a restrições genéricas: os gêneros têm identidade e 7

nos condicionam a escolhas, quando de sua produção, que não 8

podem ser livres nem aleatórias. Segundo Bakhtin (2003), eles 9

limitam nossa ação na fala e na escrita, organizando-a, assim 10

como a gramática organiza as formas linguísticas. 11

12

3.2. Sequências textuais 13

Segundo Jean Michel Adam (1992), as sequências tex-14

tuais são organizações linguístico-formais que entram na con-15

figuração de um gênero para realizar objetivos discursivos por 16

ele suscitados – como narrar, descrever, argumentar etc. Elas 17

atendem a critérios basicamente linguísticos e são descritas 18

por meio das estruturas gramaticais e dos elementos linguísti-19

cos característicos de sua constituição formal. Essas sequên-20

cias são “esquemas” linguísticos básicos cuja função, confor-21

me Bronckart (1999), é organizar linearmente seu conteúdo 22

temático, exercendo papel fundamental na organização infraestru-23

tural mais geral dos textos. Para Adam, os gêneros são consi-24

derados como componentes da interação social e as sequên-25

cias, como organizações linguístico-formais em interação no 26

interior de um gênero. 27

As sequências, ao contrário dos gêneros, são em número 28

relativamente pequeno – em torno de seis – e não se configu-29

ram como um inventário aberto, como acontece com os gêne-30

ros. Embora sendo poucas, há divergências entre os tipos de 31

sequências apresentadas pelos autores. Adam, por exemplo, 32

propõe a existência das sequências narrativa, descritiva, ar-33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

27

gumentativa, explicativa e dialogal. Marcuschi (2002) trabalha 1

com as sequências narrativa, descritiva, argumentativa, expo-2

sitiva e injuntiva4. Consideramos a necessidade de abarcar as 3

duas descrições, tomando como base a proposta de Adam e 4

acrescentando a sequência injuntiva sugerida por Marcuschi. 5

Há, em cada uma delas, a nosso ver, especificidades que, se 6

exploradas, auxiliarão no trabalho com a leitura e a escrita na 7

sala de aula, considerando-se a construção do sentido do texto 8

a partir da investigação do objetivo comunicativo de seu autor. 9

Analisaremos, em seguida, a sequência argumentativa, 10

com o objetivo de demonstrar a funcionalidade das estruturas 11

gramaticais nos textos, ou seja, na língua em uso – como pres-12

supõe a LSF. 13

14

3.3. Sequência argumentativa 15

As sequências textuais diferem uma das outras no que 16

diz respeito às características linguísticas que apresentam, uma 17

vez que, com base na Teoria da Iconicidade Verbal, é possível 18

postular um arranjo icônico diferente dos signos que compõem 19

uma e outra. As consequências desse arranjo característico dos 20

signos são o cumprimento de objetivos discursivos distintos 21

pelo enunciador e o reconhecimento da presença de sequências 22

diferentes na composição de um mesmo gênero textual. 23

Normalmente, o texto é heterogêneo em relação às se-24

quências que o compõem. Por isso a importância de se escla-25

recer que o que chamamos de sequência é, de fato, um seg-26

mento de texto, não um texto empírico. É necessário que isso 27

seja observado quando do trabalho com a leitura e a escrita na 28

escola, uma vez que essa heterogeneidade se refletirá no reco-29

nhecimento, pelo leitor, das escolhas das estruturas linguístico-30

gramaticais feitas pelo autor do texto, atribuindo sentido a 31

4 Marcuschi chama as sequências de tipos textuais.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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elas, e nas escolhas que o próprio aluno terá de fazer para com-1

por seu texto. 2

A sequência argumentativa consiste, essencialmente, na 3

contraposição de enunciados, que tem sua sustentação em ope-4

radores argumentativos, buscando defender um posicionamen-5

to. Esses operadores apõem um enunciado que está sendo 6

construído a um já-dito (DUCROT, 1987). O esquema argu-7

mentativo se constrói, basicamente, pela apresentação de um 8

argumento (dado explícito de sustentação de uma tese) e uma 9

conclusão. Esse arranjo icônico da sequência pode sofrer vari-10

ações de acordo com a estratégia argumentativa adotada pelo 11

enunciador e com o tipo de raciocínio desenvolvido – dedutivo 12

ou indutivo – para persuadir o interlocutor. A presença dos 13

elementos básicos da argumentação é o que determina a se-14

quência como argumentativa, não bastando para isso que se 15

tenha a intenção, o objetivo argumentativo. A fábula é um gê-16

nero textual que exemplifica bem o que se diz aqui, pois se 17

constrói com estrutura narrativa (sequência narrativa), mas seu 18

objetivo discursivo é, além de narrar, principalmente persua-19

dir, modificar comportamentos – o que se dá no nível semânti-20

co (DUCROT, op. cit.), mas não no nível estrutural. 21

Muitos autores defendam a tese de que a argumentatividade 22 é característica e objetivo de todos os textos. Adam (1992), en-23 tretanto, lembra que não se podem colocar no mesmo plano ar-24 gumentatividade e o que denomina sequência argumentativa. A 25 sequência é um mecanismo de textualização, um conjunto de 26 proposições psicológicas que se estabilizaram como recurso 27 composicional dos vários gêneros, sendo linguisticamente está-28 vel – o que possibilita sua determinação. A argumentatividade, 29 por sua vez, prende-se à natureza do discurso, ou seja, a sua ori-30 entação discursiva, que é de persuadir, pela apresentação de pon-31 tos de vista trazidos pelo locutor para o discurso. (DUTRA, 32 2007, p. 65) 33

Portanto, não se pode confundir a orientação argumenta-34

tiva que se reconhece nos textos, com a existência de uma es-35

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

29

trutura argumentativa prototípica, possibilitada pela presença 1

da sequência argumentativa na composição dos gêneros. 2

Partimos de Adam (1992), que caracteriza a sequência 3

argumentativa, especificamente, como constituída de três par-4

tes: os dados (premissas), o escoramento de inferências e a 5

conclusão; e complementada por uma tese anterior e uma res-6

trição. A tese anterior é a ideia que será contestada, podendo 7

estar implícita; os dados são as afirmações que conduzem à 8

conclusão; o chamado escoramento de inferências, quando não 9

explícito, é dado pelo sentido do enunciado: são elementos que 10

orientam para uma provável conclusão e podem estar apoiados 11

em exemplos; a restrição é apresentada por meio de uma partí-12

cula conclusiva ou restritiva que encaminha à conclusão; a 13

conclusão, por sua vez, é a opinião do enunciador, que possi-14

velmente servirá de tese para uma nova sequência argumenta-15

tiva. 16

Quadro 1 17

18

ESQUEMA TÍPICO DA SEQUÊNCIA ARGUMENTATIVA (ADAM, 1992, p. 118) 19

Aproximando essas noções dos objetivos deste trabalho, 20

propõe-se que se observem as sequências em suas especifici-21

dades estruturais e funcionais. Para tanto, é preciso estabelecer 22

um limite5 – até quando for possível – entre cada uma delas. 23

5 Há questões linguísticas que são comuns a todos os gêneros escritos: os aspectos notacionais (ortografia, pontuação), por exemplo.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

30

Analisando-se os gêneros de base argumentativa – crô-1

nica, editorial, carta, para citar alguns –, é possível reconhecer 2

neles, em geral, a macroestrutura apresentada por Adam. Com 3

uma descrição mais simples e, portanto, mais adequada para a 4

sala de aula da escola básica, encontramos, em Othon Moacyr 5

Garcia (1985), a planificação de dois planos-padrão para o que 6

o autor chama de argumentação formal e argumentação in-7

formal: 8

Quadro 2 9

ARGUMENTAÇÃO FORMAL

Proposição (tese):

afirmativa suficien-

temente definida e limitada, não conten-

do em si mesma ne-

nhum argumento.

Análise da proposi-

ção ou tese:

definição do sentido da proposição ou de

alguns de seus ter-

mos, a fim de evitar

mal-entendidos.

Formulação de

argumentos:

fatos, exemplos, dados estatísticos,

testemunhos etc.

que sustentem a

tese.

Conclusão:

retomada da

tese, refor-çando-a.

10

Quadro 3 11

ARGUMENTAÇÃO INFORMAL

Citação da

tese adversá-

ria:

afirmativa su-ficientemente

definida e li-

mitada, não contendo em

si mesma ne-

nhum argu-mento.

Argumentos

da tese ad-

versária:

fatos, exem-plos, dados

estatísticos,

testemunhos etc. que sus-

tentem a tese

adversária.

Introdução

da tese a ser

defendida:

afirmativa su-ficientemente

definida e li-

mitada, não contendo em

si mesma ne-

nhum argu-mento.

Argumentos

da tese a ser

defendida:

fatos, exem-plos, dados es-

tatísticos, tes-

temunhos etc. que sustentem a

tese defendida

pelo enuncia-dor.

Conclusão:

retomada

da tese de-

fendida pe-lo enuncia-

dor, refor-

çando-a.

12

3.4. Base linguística da sequência argumentativa 13

Há aspectos linguístico-gramaticais que são característi-14

cos da constituição da sequência argumentativa, assim como 15

há outros que são mais determinantes na constituição de cada 16

uma das demais sequências. 17

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

31

O texto constituído por sequências argumentativas, dife-1

rentemente do que ocorre com textos de base narrativa, por 2

exemplo, não obedece a uma organização temporal. Ao con-3

trário, o texto argumentativo se constitui a partir de um plane-4

jamento, buscando realizar uma estratégia argumentativa espe-5

cífica elaborada por seu autor. As estratégias argumentativas 6

visam a convencer, persuadir, fazer aceitar, fazer crer, fazer 7

mudar de opinião, levar a uma determinada ação. Dessa forma, 8

é essa estratégia que ditará a organização das partes que irão 9

compor o texto. Assim, os tempos verbais mais característicos 10

de gêneros de base argumentativa são os do subsistema do 11

presente, em sua correlação com o futuro. 12

Os elementos que compõem as sequências argumentati-13

vas podem organizar-se de forma distinta das apresentadas nos 14

quadros 2 e 3. Sua organização é uma entre tantas estratégias 15

argumentativas à disposição do autor de textos de base argu-16

mentativa. Dependendo da organização imposta aos elementos 17

constituintes da sequência argumentativa, as relações semânti-18

cas entre suas partes serão umas e não outras. Esse é um as-19

pecto fundamental para a construção da coerência do texto. 20

Portanto, a articulação entre as suas partes, tornando explícita 21

a intenção do autor por meio do emprego de conectivos e or-22

ganizadores textuais que o encaminham a uma conclusão, é 23

um dos aspectos linguísticos mais relevantes nesse tipo de se-24

quência. Assim, é preciso explorar palavras e expressões que 25

anunciam a posição do autor diante do que está sendo enunci-26

ado; que introduzem argumentos, estabelecendo relações lógi-27

cas entre as partes dos enunciados (orações, períodos); que 28

apresentam o fechamento, a conclusão do texto; que articulam 29

o texto como um todo (grupos de períodos, parágrafos, partes 30

maiores do texto). São aspectos da coesão sequencial, impres-31

cindível para a construção da coerência do texto, tanto do pon-32

to de vista do locutor quanto do interlocutor. 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

32

O emprego de conectivos é um aspecto muito importan-1

te na constituição do sentido do texto, uma vez que explicita a 2

intenção do autor no que diz respeito à construção das relações 3

semânticas no texto. É fundamental, então, que se investiguem 4

os conectivos que explicitam as relações semânticas construí-5

das nos textos que estão sendo lidos em sala de aula. Esses co-6

nectivos podem se afigurar como conjunções, locuções prepo-7

sitivas, locuções adverbiais, marcadores discursivos, entre ou-8

tros. Esse é um trabalho de grande valia para a ampliação do 9

repertório que o aluno precisa ter para construir adequadamen-10

te a coesão sequencial nos textos que escreve. 11

Ao lado desses aspectos de coesão sequencial, são tam-12

bém importantes para a constituição do enunciado os meca-13

nismos da coesão referencial. É preciso ir além do que diz a 14

gramática normativa acerca do emprego dos artigos, dos pro-15

nomes, alertando o aluno para o papel que esses elementos 16

linguísticos desempenham no texto, pois é nele que se materia-17

liza a linguagem e, portanto, é nele que se deve investigar seu 18

funcionamento. Conforme Neves (2000, p. 64): 19

Na verdade, ao estudar-se o funcionamento da linguagem, o 20 que está em questão são prioritariamente os processos, e é a 21 compreensão deles que governa a compreensão dos arranjos dos 22 itens que os expressam adequadamente. 23

Um outro aspecto linguístico de muita relevância aqui é 24

a enunciação (quem fala no texto e como se apresenta). É im-25

portante que se avalie o efeito de sentido causado pela opção 26

por uma ou por outra forma de enunciação. Sendo capaz de 27

perceber o efeito diferenciado obtido quando do uso da primei-28

ra pessoa, da voz passiva, do sujeito indeterminado, da impes-29

soalidade ou mesmo da terceira pessoa em lugar da primeira, o 30

aluno poderá identificar, com mais facilidade, o objetivo co-31

municativo do autor, desvendando-lhe a intenção. 32

33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

33

3.5. As sequências como elementos constitutivos dos gê-1

neros 2

Retomando a ideia de que as sequências textuais são or-3

ganizações linguístico-formais em interação no interior dos 4

gêneros, cabe esclarecer, mais uma vez, que um gênero pode 5

ser considerado argumentativo, mas apresentar outras sequên-6

cias em sua constituição formal. Uma crônica6 pode apresentar 7

– e geralmente apresenta –, além de sequências argumentati-8

vas, sequências narrativas, por exemplo. Entretanto, a crônica 9

será caracterizada como um gênero argumentativo por conta 10

da predominância dessa sequência em sua constituição. 11

As especificidades linguístico-gramaticais existentes em 12

cada sequência devem ser exploradas de forma planejada, a 13

partir de gêneros que a apresentem em sua constituição, para 14

que possam ser reconhecidas nos textos analisados pelos alu-15

nos e utilizadas adequadamente quando da produção de textos. 16

A ênfase no estudo das sequências deve-se dar em dife-17

rentes frentes. O aluno precisa reconhecer o papel discursivo 18

da sequência (narrar, argumentar, descrever etc.) e sua contri-19

buição para a constituição do gênero de que faz parte. Ele pre-20

cisa, ainda, ser capaz de selecionar, entre as possibilidades que 21

a língua oferece, e colocar em uso adequadamente os elemen-22

tos que realizam a função requerida pela sequência em pauta. 23

É preciso, também, saber combinar as sequências e articulá-las 24

para que, de sua combinação, resulte um texto coeso e coeren-25

te. Além disso, é preciso que o aluno registre seu texto, por 26

meio da escrita, fazendo uso dos aspectos formais exigidos pe-27

la variedade de língua característica do gênero (ortografia, 28

pontuação, concordância etc.). Esse último aspecto é comum a 29

todas as sequências e deve ser tratado com a ênfase necessária, 30

pois também dele depende a clareza do texto. 31

32 6 Considera-se, aqui, a crônica argumentativa.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

34

4. Conclusão 1

Os conceitos de sequência textual e de gênero textual, 2

conforme aqui considerados, podem promover uma mudança 3

relevante no trabalho com a leitura e com a escrita na escola, 4

e, consequentemente, uma mudança no quadro desalentador 5

que temos hoje: os alunos saem da escola, depois de, no míni-6

mo, doze anos de escolarização, sem o domínio básico da lei-7

tura e da escrita, habilidades essenciais para a vida em sociedade. 8

O que aqui se propõe permite que o professor construa 9

um trabalho em que verdadeiramente se possam aliar gramáti-10

ca e texto, torna possível que se possa mostrar ao aluno a apli-11

cabilidade dos conhecimentos gramaticais adquiridos aos tex-12

tos que lê e aos textos que escreve. 13

O aluno, por sua vez, poderá perceber a relação íntima 14

existente entre aspectos linguísticos e sequências textuais, 15

transportando, automaticamente, os conhecimentos linguísti-16

cos adquiridos de um gênero para outro, desde que eles apre-17

sentem, em sua base linguístico-textual, a mesma sequência. 18

Propõe-se, enfim, a mudança de perspectiva nas aulas 19

de Língua Portuguesa. Não se trata absolutamente de excluir a 20

gramática da sala de aula. Ao contrário, procura-se valorizar a 21

sua investigação, buscando aproximá-la do texto, uma vez que 22

se sabe que não há texto sem gramática. Busca-se, com essa 23

prática pedagógica, um resultado mais satisfatório no que diz 24

respeito à proficiência linguística de nossos alunos, que, cada 25

vez mais distantes da leitura e da escrita proficientes, tornam-26

se cidadãos acríticos e ausentes das diversas instâncias decisó-27

rias da sociedade a que pertencem. 28

29

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

35

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8

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

37

1

2

3

4

UMA EXPERIÊNCIA 5

COM A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS 6

EM COMÉDIAS DA VIDA PRIVADA, DE VERISSIMO7 7

Helio de Sant’Anna dos Santos8 8

9

É importante reiterar, antes de qualquer proposta, a pre-10

ocupação de adequar o texto ao nível de proficiência do aluno 11

no que se refere à leitura, pois cada texto exige uma série de 12

requisitos para que seja interpretado. Quando o aluno não en-13

tende determinado texto, é preciso também reavaliar a própria 14

proposta. Aquele leitor está em condições de lidar com a cons-15

trução dos sentidos envolvidos no texto em questão? Qualquer 16

leitor pode entender qualquer texto? Faz-se necessário estar 17

atento para a hipótese de que determinados textos podem re-18

presentar graus de dificuldade diferentes para leitores em está-19

gios de leitura diferentes, por mais que identificar tais estágios 20

não seja tarefa simples. 21

A interpretação de um texto depende de uma série de fa-22

tores, não se limitando o entendimento, de fato, a apenas uma 23

possibilidade. Querer que todos os alunos compreendam o tex-24

to da mesma forma corresponderia a ignorar a noção dos estra-25

7 O artigo é parte da tese de Doutorado intitulada Humor e ensino: um estudo cose-riano sobre Verissimo, sob a orientação da Profa. Dra. Terezinha Maria Fonseca dos Passos Bittencourt (UFF, 2013).

8 Universidade Federal Fluminense. [email protected]

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38

tos semânticos com base coseriana e a complexidade da cons-1

trução de sentidos. 2

O sentido será construído no texto, como processo, co-3

mo interação entre leitor, texto e autor, sob a interferência di-4

reta dos entornos e em função do emprego das operações de 5

determinação. De acordo com o ideário coseriano, as opera-6

ções do âmbito da determinação, partindo da compreensão de 7

linguagem como atividade, são realizadas “para dizer algo 8

acerca de algo com os signos da língua” (COSERIU, 1979, p. 9

215). Empregam-se para atualização e direcionamento para a 10

realidade concreta de um signo virtual (pertencente à “lín-11

gua”), ou para delimitação, precisão e orientação da referência 12

de um signo (virtual ou atual). 13

Os entornos, por sua vez, garantem que “o falado signi-14

fique e se entenda além do que foi dito e até além da língua” 15

(COSERIU, 1979, p. 228). São instrumentos circunstanciais da 16

atividade linguística, orientando todo discurso e dando-lhe 17

sentido, podendo, inclusive, determinar o nível de verdade dos 18

enunciados. Não há qualquer evento linguístico que não ocorra 19

numa circunstância, portanto, os entornos correspondem a 20

elementos fundamentais para a compreensão. 21

Elementos de caráter subjetivo certamente estarão en-22

volvidos. Destaque-se a importância do sentido para o estudo 23

de base coseriana e do entendimento de que contribuir para a 24

interpretação de textos na escola é um dos principais focos 25

deste estudo. Sendo assim, uma experiência que se fez neste 26

trabalho foi submeter os textos que compõem o livro Comé-27

dias da Vida Privada – Edição Especial para Escolas (VE-28

RISSIMO, 1999) à análise de alunos, na busca pelos sentidos. 29

Como os alunos reagem aos textos? Depreendem os 30

sentidos de que forma? Há alguma relação entre os sentidos 31

assinalados por eles e o que se analisa na pesquisa? Os textos 32

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39

lhes são acessíveis, interessantes, despertam-lhes o prazer esté-1

tico? 2

Não é propósito responder a todas as indagações, entre-3

tanto é possível ter uma noção de ordem geral a respeito da 4

percepção de uma amostragem dos alunos frente aos textos de 5

Verissimo. 6

A experiência consistiu em expor os textos a cerca de 7

duzentos alunos de 3.ª série do Ensino Médio do curso noturno 8

de uma escola pública e a aproximadamente cem alunos de 1.ª, 9

2.ª e 3.ª séries do curso diurno de uma escola particular9, no 10

período de 2010 a 2012. Os primeiros são, predominantemen-11

te, alunos maiores de 18 anos, muitos deles adultos trabalhado-12

res, responsáveis por manter as suas famílias ou pelo menos 13

por colaborar com o orçamento da casa. O segundo grupo é 14

formado por jovens de até 18, no máximo, 19 anos, mantidos 15

por seus responsáveis. Ainda que não constituam classe social 16

abastada, poucos precisam trabalhar para colaborar com o or-17

çamento familiar. 18

Propuseram-se, basicamente, duas tarefas: 1) de uma 19

maneira ampla, identificar o sentido em cada texto; 2) comen-20

tar as possíveis semelhanças em relação à construção dos tex-21

tos. Omitiu-se dos alunos a referência explícita à autoria dos 22

textos ou ao gênero textual em que pudessem estar inseridos. 23

Não há a intenção de fazer estudo comparativo entre as 24

percepções por parte dos alunos da escola pública e os alunos 25

da escola particular, o que inclusive exigiria uma amostragem 26

mais representativa, envolvendo não apenas uma escola de ca-27

da rede. O que se tentará demonstrar é simplesmente a varie-28

dade de sentidos que se pode constatar a partir da leitura dos 29

textos selecionados do livro. Por outro lado, com a exposição 30

9 As escolas referidas situam-se no município de Araruama – RJ: Colégio Estadual Edmundo Silva e Colégio Professor Fernando Moreira Caldas.

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

40

das interpretações dos alunos, busca-se também estimular o 1

professor a acreditar no trabalho sistemático com os textos 2

como uma forma de estímulo ao aprimoramento da compreen-3

são. 4

Na sequência, correspondendo às duas tarefas referidas 5

acima, ver-se-ão as tabelas com fragmentos de comentários de 6

alguns alunos por texto, de acordo com a ordem em que apare-7

cem na obra, e as tabelas com fragmentos das observações de 8

ordem geral. Foram feitas apenas correções de caráter ortográ-9

fico, além daquelas necessárias para garantir a clareza do con-10

teúdo, como um ou outro caso de concordância, regência ou 11

colocação pronominal que pudesse gerar ambiguidade. Natu-12

ralmente, por uma questão ética, os alunos estão identificados 13

apenas por iniciais de suas assinaturas nos trabalhos: 14

Textos Fragmentos de comentários dos alunos do Colégio Es-

tadual Edmundo Silva

1. Sala de

Espera

[...] às vezes perdemos as oportunidades que surgem em

nossas vidas e acabamos não aproveitando e perdemos

amores, trabalhos, conhecimentos [...] (L. B.)

[...] Quem não arrisca não petisca. (R. E. C.; C. R.; L. M.)

[...] o raciocínio de um homem não tem limites quando se

trata de desejo... [...] (L. G.)

Este texto nos transmite que em qualquer lugar que nós

vamos tem sempre alguém nos observando [...] (E. N.)

Ele tinha pensamentos maliciosos; ela queria apenas ser fe-

liz [...] (W. S. C.)

Isso é uma coisa que acontece conosco, porque cobiçamos

e desejamos muitas coisas, profissionalmente, emocional-

mente, materialmente... mas temos medo de tomar atitudes

e dar o primeiro passo (em buscar). (D. A. R. M.)

2. A Volta (I) [...] sua ansiedade era tanta que tudo lhe pareceu familiar

[...] (S. A.)

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[...] teve a falsa sensação de que se lembrava de tudo [...]

(R. E. C.)

[...] o tempo o fez esquecer como ela era. Como o tempo

faz esquecer até as coisas mais importantes. (B. S.)

A saudade é tanta que a lembrança faz a gente imaginar, re-

lembrar momentos bons. (C. C.)

3. Lar Des-

feito

Que pai ou mãe que não quer o melhor pros seus filhos? (J.

C.)

[...] É um pouco irônico porque muitos jovens queriam era

ter em seu lar paz. [...] O que eu entendo é como se estivés-

semos em um lugar onde não falta comida, mas é importan-

te passar um dia sem comer para que desperte em nós a

fome [...] (D. A. R. M.)

É um texto até engraçado. Como pode um casal viver bem

com a vida sem brigas, principalmente nos tempos de hoje?

[...] (N. S.)

[...] Crianças mimadas e insatisfeitas com a vida que ti-

nham, querendo se enturmar com os amigos [...] (F. C.)

As mudanças na sociedade foram acontecendo a longo pra-

zo, de modo que hoje se você tem uma relação duradoura e

é feliz assim, isso parece uma coisa que caiu em desuso.

(V. B. S.)

Eu entendi do texto que o que nos faz felizes não são os ró-

tulos e sim viver e ser felizes. É não viver da forma que a

sociedade nos impõe. (J. C. B.)

4. O Maridi-

nho e a Mu-

lherzinha

[...] o Maridinho parece mais com uma criança de cinco

anos do que com um homem casado e a Mulherzinha pare-

cia mais com uma mãe rigorosa do que com uma mulher

casada. (V. T.)

A história do Maridinho que precisa fazer pirraça para con-

seguir o que quer, feito criança, e finge que acredita que é

durão. E da Mulherzinha que de tanto ser tratada como tal

um dia diminuiu tanto que nunca mais foi encontrada. (V.

B. S.)

Na verdade, eu entendi que o Maridinho e a Mulherzinha

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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não eram pessoas adultas e sim duas crianças brincando e

fazendo de conta que já eram pessoas adultas. (Y. M. D.)

O primeiro texto, no meu ponto de vista, vem falar sobre a

forma estranha com que o marido é tratado pela esposa.

Como se fosse uma criança, ele obedece e faz exatamente o

que ela quer! No caso da mulherzinha, ela era também tra-

tada como uma criança, até que em um belo dia ela se

transforma verdadeiramente nessa criança, até sumir. [...]

(R. O.)

O texto relata personalidades de dois relacionamentos dis-

tintos. No primeiro relacionamento, a mulher é o cabeça da

relação, enquanto seu marido (Maridinho) seguia suas re-

gras sem questionamentos. No segundo relacionamento, o

homem é visto como única pessoa a expressar, falar sua

opinião. A mulher é excluída, seus únicos deveres eram

passar, lavar e cozinhar. Para um relacionamento harmôni-

co e feliz, é necessário que tenha cordialidade entre ambos.

Ou seja, precisam ser tratados com igualdade. Esse é o se-

gredo para uma relação boa e feliz. (J. S. G.)

No texto O Maridinho, vemos de uma maneira exagerada a

posição de um marido ao se deixar dominar pela esposa, e

sua falta de personalidade, deixando que ela o domine ple-

na e totalmente.

Já no caso da Mulherzinha vemos a mesma situação, agora

sendo a mulher na posição de total submissão, chegando a

ponto de perder-se como pessoa numa relação a dois. (E.)

Mostra um relacionamento de uma forma cômica. [...] (T.

C. B.)

[...] no caso da Mulherzinha, entendo que é uma metáfora

de que o marido não permite que ela tenha opinião e não a

respeita como esposa nem como mulher [...] (E. N.)

5. O Homem

Trocado

Nesse texto, pode-se perceber como a vida de certas pesso-

as tende a ser atravessada por episódios estranhos e com-

plicados. [...] (R. O.)

Entendi que os enganos acontecem por acaso, não porque a

gente quer. Que na vida nada acontece da maneira que que-

remos, que um dia há de ter enganos, mesmo que seja só

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uma vez! (D. J.)

Na vida há sempre riscos; o medo sempre faz parte. [...] (N.

A. S.)

O texto mostra que determinados enganos, dependendo de

sua gravidade, modificam inteiramente a vida de uma pes-

soa, por isso devemos refletir quando algumas pessoas de-

fendem a pena de morte, pois um engano nos coloca como

criminosos. [...] (E. N.)

[...] por pior ou mais estúpido que seja, enganos acontecem,

não tem como evitar. (D. V. N.)

6. O Ator

[...] O ator leva a vida tão a sério que não consegue separar

a vida real da ficção. (M. N.)

Durante todo o texto o autor deixa a entender que o ator pa-

rece estar sofrendo de uma estafa, que ele não se lembra de

que aquilo ali é apenas uma gravação e não a sua vida real.

No final do texto, podemos perceber que tudo sempre foi

uma gravação.

O texto fez com que eu pensasse em quantas vezes nós

mesmos vivemos a nossa vida como se ela fosse um filme,

onde estamos trabalhando em um cenário, e um dia sim-

plesmente nos damos conta de que nos perdemos do nosso

“plano original”. (R. O.)

Talvez estejamos adormecidos seguindo nossa rotina. Mas

um belo dia despertamos e nos damos conta de que fomos

tão permissivos com as opiniões e imposições de outras

pessoas que nem mais dirigimos nossa própria vida. Vive-

mos as escolhas alheias. (V. B. S.)

7. A Espada

[...] Nem tudo em que não acreditamos é impossível. (B.

S.)

[...] às vezes você ouve verdades que mais parecem menti-

ras ou brincadeiras [...] (E. L.)

Quantas vezes crianças dizem coisas que podem parecer

absurdas, mas que no fundo são verdades! O texto fala de

um garoto que no seu aniversário descobre que não é ape-

nas um garoto. Ele tenta contar ao seu pai, que não acredita

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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na história. [...] (R. O.)

[...] nem tudo que a criança fala é fantasia, coisa da imagi-

nação [...] (M. N.)

8. A Bola

No mundo de hoje, as crianças estão mais vidradas em vi-

deogame, computador, etc. [...] (R. B.)

[...] Eles não têm brincadeiras como antigamente, em que

brincávamos de bola, de roda... Se perguntarmos, eles não

vão nem saber explicar como são as brincadeiras de anti-

gamente. (L. V.)

[...] as crianças de hoje em dia estão ficando tipo robôs, só

querem ganhar coisas modernas e, assim, vivem a vida de

frente para um videogame. (Y. L.)

Percebemos que o avanço da tecnologia, embora seja uma

coisa positiva, tem seus efeitos colaterais. [...] (V. B. S.)

É a pura realidade do tempo de hoje. Os jovens não sabem

o que é brincar, curtir como antigamente, só pensam em

computadores, games, brinquedos eletrônicos... (N. S.)

[...] o tempo não para e as coisas mudam com o passar do

tempo. O que é legal hoje pode não ser tão legal daqui a um

tempo e o que foi legal no passado hoje pode estar ultrapas-

sado ou chato na opinião de alguns jovens. (E. L.)

9. A Mesa

Entende-se que os homens largaram suas vidas, que consi-

deravam monótonas, aos poucos, após perceber que o tem-

po que passavam juntos, nesse caso, no bar, era, sobretudo,

muito mais prazeroso, decidindo então não abrir mais mão

disso para nada. (R. K.)

É um texto engraçado, onde, pelo que entendi, cinco ami-

gos, por terem laços de amizade muito fortes, queriam pas-

sar o resto de suas vidas juntos, nisso incluindo largar famí-

lia e emprego. (D. A. S.)

Parece muito insano trocar por uma “eterna” estadia num

bar o fluir da própria vida: família, trabalho, o prazer de es-

tar em sua própria casa usufruindo do convívio no lar. (V.

B. S.)

[...] queriam ficar ali tomando seus chopes, batendo papo,

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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sem ter que se preocupar com as responsabilidades do dia a

dia. (E. S. F.)

Entendi que eles deram mais valor à bebida do que à sua

família, como sua esposa e filhos [...] (E. M. C. Q.)

10. A Verda-

de

Por mais que ache que ninguém vai acreditar, conte a ver-

dade. Somente a verdade, mesmo que seja história de pes-

cador!!! (M. S.)

[...] No fim, com uma lição de moral em tom cômico. (R.

E. C.)

[...] É como dizem: “a dona mentira só ocupa a cadeira en-

quanto a verdade não chega”. (L. G.)

[...] E pode-se entender que o povo prefere acreditar em

histórias horrendas a acreditar em histórias simples. (R. K.)

[...] uma mentirinha pode fazer um grande estrago. [...] (D.

A. S.)

A condição moral de grande parte da população – talvez

possamos dizer – mundial, é tão distorcida hoje que uma

verdade tão simples passa por uma coisa inacreditável. As-

sim, algumas pessoas inconsequentes espalham mentiras

sem a menor preocupação de prejudicar ou não alguém. (V.

B. S.)

1

Textos Fragmentos de comentários dos alunos do Colégio Pro-

fessor Fernando Moreira Caldas

1. Sala de

Espera

Esse título se encaixa perfeitamente nesse texto não pelo

fato do episódio ocorrido ter acontecido em uma sala de

espera, mas também pela calma, paciência, lentidão dos pa-

cientes. Um casal, um esperando o outro tomar a iniciativa

[...] (F. O.)

Sala de Espera tem como sentido retratar aquele velho di-

tado (“A oportunidade só bate uma vez em sua porta”), pois

os dois queriam um ao outro e não ficaram juntos por falta

de atitude e deixaram a oportunidade passar. (V. G.)

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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O sentido desse texto é mostrar que se não tomarmos atitu-

de nada acontece, pois ali estavam os dois pacientes que-

rendo a mesma coisa um com o outro, mas, devido ao medo

e vergonha, ninguém falou nada e eles nunca mais se vi-

ram. (P. C.)

Está relacionado com a comunicação de hoje em dia, como

está difícil conhecer alguém. (H. B. P.)

[...] todo o sonho se desfaz, e dificilmente se encontrarão

novamente. É uma forma de demonstrar como a inseguran-

ça pode atrapalhar nos acontecimentos do dia a dia [...] (L.

M. R. G.)

O texto se baseia em uma situação em que os dois não inte-

ragem diretamente, eles imaginam o tempo todo como seria

uma conversa entre eles [...] (A. C. C.)

2. A Volta (I)

Retrata o que o psicológico e as lembranças podem fazer

com a pessoa. O personagem lembrava de tudo, a sua casa,

o cinema, mas, ao saber que não estava em sua cidade na-

tal, esqueceu até como seria fazer o caminho de volta para

a estação. (V. G.)

Nem sempre aquilo que você pensa é realidade. (H. B. P.)

Quando querem, as pessoas enxergam aquilo que lhes con-

vém. Uma fuga feita pelo ser humano é a fantasia, o fato de

se encaixar, rever e criar desculpas para que aquilo seja de

fato a realidade que procura. (L. M. R. G.)

3. Lar Des-

feito

Esse texto é um pouco contraditório. Ele sai totalmente do

padrão daqueles textos que estamos acostumados a ler...

Que no início a família pode ser a mais infeliz, mas ao final

sempre existe aquele “felizes para sempre”. Esse texto

não... começa com uma família feliz, filhos saudáveis, mas

que querem experimentar a infelicidade, os pais tiveram

que se separar para deixar seus filhos “felizes”, pois eles

queriam experimentar a tristeza, lamento, decepção, etc. (F.

O.)

Fala sobre os valores e alienação causados por uma socie-

dade desarmônica. (C. A. G.)

[...] O sentido é que as pessoas nunca estão satisfeitas com

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as coisas e querem sempre o que a outra tem. (P. L. V.)

O sentido do texto é mostrar a situação deturpada da nossa

sociedade, onde o normal são casais que brigam e se divor-

ciam. [...] (P. C.)

Antigamente, feio era o lar desfeito, a mulher desquitada,

uma desvalorização para o nome de tal família. Mantinham

as aparências, como sempre, pessoas querendo mostrar o

“politicamente correto”. O tempo passou, os valores se in-

veteram, virou “moda” ser casal separado, mas o foco não é

esse, e sim o fato de manter as aparências. A sociedade pre-

fere pôr de lado a felicidade íntima para ser considerado

normal e passar no julgamento de pessoas alheias a sua vi-

da. (L. M. R. G.)

Esse texto trata de uma família incomum, onde tudo dá cer-

to e isso incomoda a filha [...] (A. M.)

[...] O mundo que vive de convenções e costumes. (R. C.)

A família mudou. [...] (M. I.)

4. O Maridi-

nho e a Mu-

lherzinha

É uma crítica a relacionamentos em que o parceiro pensa

que tem a posse do outro [...] (R. W.)

Mostra de forma pejorativa o tratamento de homem e mu-

lher. Como se o homem fosse sem atitude e mandado pela

esposa, e ela uma esposinha sem valor, tão sem valor que

desapareceu. (R. C.)

Trata da submissão. Pessoas que em um relacionamento

são “adestradas” pelos seus parceiros. (M. I.)

5. O Homem

Trocado

Essa história é muito boa, tem toda uma ironia [...] O ho-

mem foi enganado toda a vida, mas quando achou que tinha

desenganado, enganou-se outra vez. (A. M.)

Sentido humorístico [...] fala de trocas que o personagem

sofreu durante toda a sua vida, sempre o comprometendo

tanto pessoal como profissionalmente [...] (J. B.)

É a história de um verdadeiro azarão. Desde o início teve

uma vida de erros e continuou tudo mesmo após a maturi-

dade. (C. F. A. B.)

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Mostra os enganos da vida. (R. W.)

6. O Ator

O sentido do texto é nos pôr como atores em nossas pró-

prias vidas, cada um sendo dirigido pelo outro. (E. V.)

Ironiza a situação familiar do homem, falando que o seu dia

a dia não passa de uma farsa, como se fosse um filme e ele

estivesse interpretando bem. (A. M.)

Como se o personagem vivesse controlado o tempo todo

com as pessoas dizendo o que fazer, bem como o papel da

mídia polindo e colocando ideias na cabeça das pessoas

sem elas perceberem. (V. G.)

O autor satiriza a vida como se fosse um palco, onde have-

ria diretor e atores, o que não é definitivamente verdade. A

vida é um palco no qual não se dispõe de ensaios. Os capí-

tulos são vividos no improviso. (R. C.)

O sentido, como dito no próprio texto, é o simbolismo de

que o mundo é um palco e que nós somos atores das nossas

próprias vidas, mas que tudo já foi determinado por um

script, e nós estamos aqui apenas para “interpretá-lo” e não

vivê-lo ou contestá-lo. (P. C.)

O Ator é um texto que faz alusão à vida cotidiana progra-

mada, em que há um script para o dia a dia, ao mesmo

tempo em que há uma crítica muito sutil. (C. M.)

O texto faz uma metáfora da vida, como se tudo fosse

“programado”. A nossa ilusão e controle dela é falha. (R.

W.)

7. A Espada

[...] Ironiza a imaginação de criança e mistura com a reali-

dade. (A. M.)

Faz alusão ao super-herói que existe em cada criança, o ser

mais puro do mundo, que realmente se preocupa com a jus-

tiça, combate aos malfeitores e sempre ajuda as pessoas de

bem. (R. C.)

Cria-se um surrealismo, contrariando o script geral da mai-

oria dos textos, usando a fantasia. (C. M.)

O garoto faz com que a espada seja uma figura para mos-

trar que ele já está maduro e a passagem de criança para

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homem. (R. W.)

8. A Bola

A história de um menino que, por estar tão envolvido com

as regalias e facilidades que a tecnologia oferece, não con-

segue interpretar, entender, manusear, decifrar a brincadei-

ra ou o brinquedo mais simples de qualquer infância: uma

bola. (F. O.)

[...] a felicidade era encontrada em coisas simples, ao con-

trário de hoje, em que, quanto mais caro e novo, mais “di-

vertido”. (L. B.)

[...] Antigamente ganhar uma bola era mágico [...] (M. I.)

[...] os valores de hoje em dia estão diferenciados, e vale

mais um brinquedo eletrônico que qualquer outro que pre-

cise se exercitar para usá-lo, como, no caso, a bola. (J. C.)

9. A Mesa

O texto tem uma característica humorística e irônica. [...] a

parte cômica destaca-se no último parágrafo, quando há

certa preocupação do dono do bar em como eles vão pagar

a conta [...] (J. C.)

A mesa fala sobre a fuga do mundo real para um mundo

sem preocupação e responsabilidade. [...] (C. A. G.)

Trata-se de um grande exagero da situação de bar, de ficar

até depois da hora. Exemplifica a vontade real. (C. M.)

O sentido desse texto é mostrar como em muitos casos re-

ais pessoas trocam sua família e seu lar por uma mesa de

bar e um copo de chope. [...] (P. C.)

Reflete o machismo que rodeia os homens. Resolveram fa-

zer apenas coisas de homem – beber e dormir. Enquanto as

respectivas esposas cuidam da casa e dos filhos. (R. C.)

Este texto lembra um pouco a história de Quincas Berro

D’Água, que desiste da vida para ficar no bar [...] (C. F. A.

B.)

Que quando se está com bons amigos não se precisa de

mais nada. (A. G.)

O texto demonstra como a felicidade pode ser alcançada

por coisas simples, como ficar numa mesa de bar com os

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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amigos, mesmo que no texto ocorra um exagero. (L. B.)

10. A Verda-

de

Enfoca as consequências de mentir. Explora o campo da

acusação e do julgamento. (C. A. G.)

A verdade nem sempre é tão interessante. [...] (M. I.)

Nesse texto, podemos observar que a mentira só causa des-

truição ao homem, mas muitas vezes as pessoas não que-

rem ouvir a verdade. [...] (A. V.)

O texto mostra como o povo acredita e se interessa por his-

tórias sensacionalistas, mais do que a verdade, por mais

simples que ela seja. Se não houver violência, polêmica e

sexo, a notícia torna-se descartável. (L. B.)

O sentido desse texto é um pouco contraditório. Pois a ver-

dade é que não existe verdade ao longo do texto. A donzela

querendo se sair como vítima fez com que seu pai e seu ir-

mão matassem pessoas inocentes, mas ao final a sua pró-

pria mentira se volta contra ela [...] (F. O.)

1

Fragmentos de comentários de ordem geral sobre a leitura dos textos –

alunos do Colégio Estadual Edmundo Silva

Os textos analisados nas últimas aulas apresentam fatos da vida cotidiana,

fatos a que às vezes não damos muita importância. Esses fatos, em sua gran-

de maioria, são problemas que acontecem diariamente. Em contato com es-

ses problemas apresentados, o texto força nosso pensamento a pensar sobre

tal assunto, nos levando a pensar na solução ou até mesmo a evitar os pro-

blemas. (J. S. G.)

[...] possuem similaridade quanto ao uso do aspecto narrativo, além de pos-

suírem também lições de moral importantes para as pessoas. [...] (R. K. A.

L.)

Todos os textos são bem elaborados e gostosos de ler, com sua linguagem

formal. (G. C. S.)

É que os textos sempre estão falando sobre coisas que acontecem com a gen-

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te em ocasiões diferentes. (T. S. L.)

Eles nos ensinam o valor da vida, nos ensinam no final de tudo uma moral,

algum detalhe da vida que deixamos escapar ou não. (C. R. D. M.)

Em todos foram usadas situações reais, só que de uma maneira divertida e

fora da realidade. (D. A. S.)

Em todos os textos podemos notar um certo tom cômico. (E. S. F.)

Eu acho que os textos são tipo uma comédia e tem um pouco do nosso dia a

dia. (N. A. S.)

São incomuns, pois contam uma história sem se preocupar se estão próximos

da realidade ou não; e alguns acabam começando com problemas do cotidia-

no e, no final, o resultado é um pouco incomum. (D. M. C.)

[...] uns são até engraçados, outros são mais sérios. Uns ajudam até nas au-

las, ao abrir a mente. (A. M.)

Todos têm uma conotação de brincadeira, de imaginação, de algo fora do

comum. (S. A. S. S.)

Todos os textos – para mim, pelo menos – tratavam de assuntos que nos fa-

zem pensar sobre nossas atitudes e o modo como outras pessoas veem o

mundo. (R. O. V.)

Todos são textos “cômicos”, com uma lição de moral no final. (R. E.)

Todos os textos de certa forma tentaram passar uma mensagem de aprendi-

zado sobre certas circunstâncias da vida. Como saber que não podemos lar-

gar todas as responsabilidades e deveres de lado, por diversão, com os ami-

gos, para confiarmos mais no nosso potencial e estarmos sempre preparados

para os desafios da vida. (J. C. M. C.)

O que há de comum é a ironia do autor com relação ao comportamento dos

personagens [...] (T. C. B.)

Todos os textos fazem parte da vida real das pessoas; não quer dizer que tu-

do é real e sim que tudo que se apresenta no texto é comum, por mais estra-

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nho que seja. (C. D.)

O autor usa o humor para fazer o leitor refletir, para mostrar situações que

acontecem em nosso dia a dia. [...] (V. B. S.)

1

Fragmentos de comentários de ordem geral sobre a leitura dos textos –

alunos do Colégio Professor Fernando Moreira Caldas

Um humor básico, procurando retratar o cotidiano. (H. B. P.)

A estratégia de humor nos textos foi relatar o dia a dia. [...] Todos os textos

retratam o nosso dia a dia com muito humor; cada um estabelece uma rela-

ção de proximidade, seja no mundo infantil, imaginário ou no mundo das

bebidas, do lazer, ou do mundo da atuação. (D. D. S.)

Uma forma clara de sátira. [...] Os textos foram construídos com base no

humor cotidiano que atinge a maioria das famílias. [...] (R. C.)

Tratam de situações que podemos vivenciar, inclusive o paradoxo entre o

que é verdade e o que é interessante. Isso traz humor às histórias. O humor

se dá ao final do texto, em seu desfecho. (M. I.)

[...] mostram situações do cotidiano que tomam proporções diferentes do

normal. [...] (A. L. S. P.)

Todos são construídos com histórias relativamente loucas, onde existem no

desenvolver da história frases de efeito e pessoas que desacreditam naquilo.

E terminam dando brecha para uma nova história, deixando a nossa imagi-

nação a pensar o que teria acontecido após o término e imaginando situações

cômicas. (P. C.)

São todos construídos com base em um surrealismo que foge aos textos co-

muns, usando situações “cotidianas”. Cria-se assim um humor sutil fantasio-

so. (C. M.)

A relação entre os textos está nas características cômicas e irônicas utiliza-

das nos últimos parágrafos. Os textos tendem a distrair o leitor, apresentando

um final inesperado e divertido. Os jogos de palavras, as frases utilizadas e

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até mesmo, em alguns casos, trazendo as situações para os dias atuais. (J. C.)

Todos os textos são sátiras, críticas à sociedade atual e desenvolvem seu

humor a partir disto, demonstrando o comportamento humano. Foram todos

construídos na narrativa, com diálogos e um narrador. (L. B.)

Nos textos, temos situações comuns, que se modificam bruscamente [...] (S.

N. M. S.)

Os textos foram construídos em cima de fatos do cotidiano da sociedade atu-

al, mostrando as falhas que nem sempre são notadas. [...] A construção do

humor é feita através do inesperado [...] (L. M. R. G.)

Os textos surpreendem no final, deixam uma contradição no meio e procu-

ram te deixar fixo, querendo saber o final. (A. M.)

Os textos fazem sátira de situações da vida real. (A. V.)

Ainda que um dos objetivos de inserir as tabelas neste 1

artigo seja levar o leitor a tirar suas próprias conclusões sobre 2

os variados sentidos depreendidos pelos alunos nos textos, pa-3

rece oportuno fazer referência a algumas impressões sobre os 4

comentários. 5

As experiências de vida interferem fortemente na inter-6

pretação dos textos, mesmo que cada um, independente de su-7

as vivências, construa a sua leitura do texto. Com alguma mo-8

tivação, os alunos têm o que dizer sobre os mais variados te-9

mas, mesmo que em algumas situações haja dificuldade em 10

expressar o que pensam. E, com base no desenvolvimento da 11

experiência durante as aulas, uma constatação: sem muita ex-12

posição a atividades de interpretação, boa parte dos alunos 13

tende a resumir o que leu, apenas recontando o texto, muitas 14

vezes tendo dificuldades em reconhecer o sentido. 15

O que se produziu em meio ao que acabou significando 16

um projeto de leitura de cerca de três anos foi mais do que se 17

esperava. Quanto maior a exposição a atividades com interpre-18

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54

tação de textos, maior a condição de entender e desenvolver tal 1

tarefa. Na fase inicial, muitas vezes os alunos estranhavam ou 2

mesmo desdenhavam o trabalho com os textos de humor, pro-3

vavelmente porque não havia a mínima familiarização. O fato 4

é que, à medida que os textos foram sendo apresentados com 5

maior frequência, lidar com as suas estratégias foi se tornando 6

mais fácil. A impressão é que as construções foram se tornan-7

do mais acessíveis. 8

Assim como o estudioso pautado nas concepções cose-9

rianas crê na aprendizagem da língua como resultado de uso 10

constante, posto que língua é atividade, não se pode pensar de 11

forma diferente, quando se trata da leitura. É preciso exercitar, 12

é preciso ensinar. E é o professor de Língua Portuguesa um 13

dos maiores responsáveis por tal tarefa, por mais que se saiba 14

de toda a série de elementos do entorno que interferem decisi-15

vamente no processo e que estão, muitas vezes, além do pro-16

fissional. 17

Não se pode, entretanto, ignorar o quanto é importante o 18

comprometimento em fazer do aluno um leitor competente. É 19

bom que se deixe claro que os resultados expostos nas tabelas 20

não representam a presunção de revelar alunos altamente 21

competentes ou a comprovar um trabalho de qualidade de um 22

professor. O que se procura demonstrar é o quanto alunos de 23

contextos diferentes podem dizer sobre os textos de humor, 24

perceber parte de suas estratégias e relacioná-los com suas ex-25

periências. 26

Muitos chegam a referir-se em seus comentários a as-27

pectos metalinguísticos, sinalizando a noção sobre o processo 28

de produção do humor por parte do autor. 29

Segundo Pauliukonis (In: PAULIUKONIS & SANTOS, 30

2006, p. 128), trata-se de uma prática que deve funcionar para 31

o ensino de interpretação é o abandono da ideia da busca in-32

cessante do sentido hegemônico de um texto. Deve-se optar 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

55

pela focalização no modo como ele foi feito, pois o sentido 1

poderá resultar do reconhecimento de estratégias utilizadas pa-2

ra sua construção, da tomada de consciência do processo por 3

parte do aluno. 4

Orientado pelo professor e, quem sabe, desenvolvendo 5

algumas análises em conjunto, é provável que o aluno atenda à 6

proposta de identificar estratégias textuais e até as pratique de 7

forma bem-sucedida. Ressalte-se que o que se defende é que o 8

trabalho sistemático com a leitura de textos de humor, devi-9

damente fundamentado, portanto consistente, já corresponderá 10

a uma possibilidade valiosa de contribuição para o ensino. Em 11

tais condições, estar-se-á favorecendo o desenvolvimento da 12

referida competência do aluno, por si só já um grande desafio 13

– e busca constante por parte do professor. 14

Com tal trabalho, pretende-se contribuir com o desen-15

volvimento da interpretação. Contudo, colaborar com a siste-16

matização da produção textual também é possível. Por exem-17

plo, pode-se propor, nos moldes da sugestão de Berti (2002, p. 18

119-120), que o aluno trabalhe com os esquemas narrativos 19

dos textos, principalmente quando apresentam alguma seme-20

lhança. 21

O texto, Sala de Espera (p. 7), em que um casal aguarda 22

uma consulta e alimenta, cada personagem a seu modo, uma 23

série de expectativas estereotipadas muito diferentes em rela-24

ção a uma possível sedução do outro, pode ser uma alternativa. 25

De início, considere-se que o contato não se concretiza, frus-26

trando-se os próprios personagens, além do leitor. Seria possí-27

vel estabelecer uma relação entre a quebra de expectativa 28

ocorrida nesta história com a de outro(s) texto(s) do livro. Na 29

Corrida (p. 27) é uma opção: um casal se conhece durante 30

uma rotina de corridas, começa um relacionamento, mas não 31

consegue manter a relação fora das circunstâncias específicas 32

de uma corrida. Só se interessam um pelo outro quando estão 33

correndo. 34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

56

O aluno ainda poderia ser desafiado a produzir narrativa 1

semelhante, criando ambiente em que o universo masculino 2

fosse confrontado com o feminino e resultasse em desfecho 3

incomum, inesperado, conforme ocorre nos dois textos. 4

No decorrer deste trabalho, fez-se tal experiência. Pro-5

pôs-se aos alunos, após intenso debate sobre as estratégias de 6

construção manifestadas no texto Sala de Espera, que fizes-7

sem uso de recursos semelhantes. Seguem abaixo dois textos 8

produzidos por dois alunos das escolas supracitadas, de modo 9

a apenas ilustrar a proposta, sem maior aprofundamento. Res-10

salte-se que, ainda que as alunas tenham feito uso de estratégia 11

discursiva semelhante à desenvolvida por Verissimo, não pro-12

duziram, efetivamente, textos de humor. Os textos printados 13

nas páginas seguintes foram escritos pelas alunas M. C. J. e S. 14

R., respectivamente. 15

Talvez o trabalho constante com as estratégias empre-16

gadas pelos mais diversos escritores possa contribuir para o 17

desenvolvimento das competências dos alunos. Exercitando 18

alguns recursos, além de tomar consciência de seu emprego, é 19

bem provável que os alunos os reconheçam em outros textos, 20

compreendendo-os de maneira mais satisfatória. 21

O texto A Volta (I) (p. 16), em que se vê um persona-22

gem retornar à cidade natal depois de trinta anos e acabar con-23

fundindo-se numa estação de trem, gerando bastante confusão, 24

também poderia ter seu esquema narrativo comparado a outro 25

no livro, A Volta (II) (p. 19). Neste, um suposto sobrinho viaja 26

a uma cidadezinha para rever a sua tia, mas para no número er-27

rado. Estava no 2001 e deveria ter chegado ao 201. Ele é con-28

fundido com um cãozinho de estimação da senhora e acaba, de 29

certa forma, pedindo para tomar o seu lugar. 30

Outros textos do livro apresentam o tema do reencontro 31

após certo tempo, como Trinta Anos (p. 11), Grande Edgar (p. 32

22) e Amigos (p. 53), o que poderia servir de referência para 33

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expandir a atividade, com o aluno produzindo o seu próprio 1

conto. 2

3

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58

1

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59

Lar Desfeito (p. 34) poderia motivar uma rica discussão 1

sobre a sociedade e a forma muitas vezes estranha como as 2

pessoas se submetem às suas regras. Pode-se trabalhar o reco-3

nhecimento da construção do texto a partir das oposições se-4

mânticas em nível microestrutural – identificando operações 5

de determinação – e no âmbito da macroestrutura – através dos 6

instrumentos que constituem os entornos. Seria uma oportuni-7

dade para constatar de perto como as unidades narrativas or-8

ganizam-se hierarquicamente, de modo a constituir a coerência 9

global, formando um todo. O aluno teria a possibilidade de 10

identificar passo a passo a construção por meio de oposições e 11

o sentido delas em relação ao todo do texto. 12

Em O Homem Trocado (p. 77) pode-se apontar como 13

recurso básico para atingir o humor no texto o contraste entre a 14

tranquila situação inicial e a constatação de que continuava a 15

ser perseguido pelo engano. E, como sugestão para atividade, 16

seria possível os alunos, individualmente ou não, elaborarem 17

uma narração em que determinadas palavras de um campo se-18

mântico – no caso do texto, “troca” e “engano”, principalmen-19

te – marcassem a vida de um personagem. Como na comédia 20

de Verissimo, uma situação inicial tranquila, de aparente alí-21

vio, poderia contrastar com a manutenção de sua sina, de seu 22

destino incômodo. 23

Partindo do estudo da comédia O Ator (p. 79), trabalhar-24

se-iam os limites entre as profissões, como escrever sobre o 25

professor, o médico, o dentista, o repórter ou qualquer profis-26

sional e sua dificuldade exagerada em se desvencilhar dos seus 27

afazeres rotineiros. No texto, o leitor é confundido com a opo-28

sição de rotinas do ator e do homem comum em seu dia a dia. 29

Talvez se pudesse provocar reflexões sobre os Reality Shows, 30

tão em evidência hoje. 31

Em relação ao texto A Mesa (p. 101), seria possível pro-32

por a exploração da oposição entre uma situação habitual, cor-33

riqueira, e seu absurdo, como o de resolver permanecer eter-34

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namente à mesa do bar, conforme decidiram os personagens 1

de Verissimo. 2

3

Algumas considerações 4

De maneira geral, poderá ser perfeitamente viável discu-5

tir a partir dos textos aspectos não só da materialidade linguís-6

tica como também do seu conteúdo extralinguístico. Para tal, 7

seriam muito válidos os conceitos de determinação e de entor-8

nos, propostos por Coseriu. 9

Com certeza, embora a aplicação pedagógica de recur-10

sos de humor mereça estudos mais abrangentes, há sempre 11

uma possibilidade enriquecedora para trabalhar o texto de Ve-12

rissimo. O professor pode contribuir muito para o aluno de-13

senvolver-se enquanto leitor proficiente, proporcionando a 14

oportunidade de tornar-se consciente de seu papel no ato de 15

leitura. 16

Neste sentido, são bastante oportunas as observações de 17

Cidreira, Oliveira & Pereira (2005, p. 138). As autoras alertam 18

para o fato de que pouco importa se, para produzir o texto, o 19

autor “se utiliza de sua intuição linguística e não de saber con-20

ceitual”. O importante é oferecer condições ao aluno de reco-21

nhecer os recursos linguísticos utilizados, fazendo-o compre-22

ender que “pode usar os mesmos recursos disponíveis para to-23

dos no sistema da língua”. 24

É claro que deverão ser respeitadas as diferenças natu-25

rais de vivência, talento e criatividade dos alunos, durante o 26

processo de ensino-aprendizagem. Sendo assim, espera-se que 27

o trabalho com Comédias da Vida Privada – Edição Especial 28

para Escolas represente contribuição significativa para desen-29

volvimento de tal competência. 30

Ressalte-se que tais atividades estão de acordo com o 31

entendimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRA-32

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SIL, 1998, p. 22), segundo os quais é preciso adotar a concep-1

ção interativa de leitura, o que significa compreender que au-2

tor, texto e leitor interagem dinamicamente em um gênero es-3

pecífico. Desenvolvendo-se as propostas, colocar-se-iam em 4

ação várias estratégias sociocognitivas, contribuindo para o 5

exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstra-6

tas, bem como para o reconhecimento da função estética dos 7

usos da linguagem. 8

Não cabe mais serem priorizadas propostas de ativida-9

des em que aluno e professor participem de experiências que 10

não representem significado concreto. É imprescindível que 11

haja sentido concreto naquilo que os profissionais de ensino 12

propõem na escola em suas aulas. 13

Sabe-se que em todas as áreas de ensino há muita pes-14

quisa, muito investimento em torno da compreensão de con-15

cepções sobre aprendizagem, circunstância nem sempre aces-16

sível aos professores, na maioria das vezes prisioneiros da ro-17

tina de aulas e diários em muitas escolas. Por outro lado, é pra-18

ticamente impossível falar em aprendizagem que constitua 19

sentido para o aluno, ensino contextualizado, a partir dos gêne-20

ros textuais, sem que o professor tenha contato com as pesqui-21

sas atuais, seja a partir da formação continuada nas escolas, se-22

ja a partir da leitura ou da troca de experiências. 23

Não é novidade que em muitos casos, sem qualquer 24

apoio, depende apenas do próprio professor o acesso ao estu-25

do, à investigação, ao desenvolvimento da prática científica, 26

de modo que possa encontrar as melhores alternativas para o 27

seu trabalho diário. Parece incontestável a necessidade urgente 28

de implementação de políticas públicas que garantam ao pro-29

fessor a sua formação constante. Do mesmo modo, não se po-30

de prescindir de maior intercâmbio entre professores e pesqui-31

sadores, aproximando-se a escola da universidade, para que o 32

processo de ensino-aprendizagem seja, pelo menos, mais 33

consciente. 34

35

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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1

2

3

4

GÊNEROS PUBLICITÁRIOS 5

E O MODO ARGUMENTATIVO: 6

PERSPECTIVAS DE ENSINO 7

Glayci Kelli Reis da Silva Xavier10 8

9

1. Considerações iniciais 10

A escola tem como uma de suas finalidades primordiais 11

ensinar o aluno a ler e a escrever efetivamente. Contudo, a prá-12

tica pedagógica tem revelado, principalmente no Ensino Fun-13

damental, um resultado improdutivo em relação à proficiência 14

linguística dos alunos e à sua capacidade criativa. Constata-se 15

que, em geral, os alunos não são levados a desenvolver, ao 16

longo de anos de escolarização, as competências para uma in-17

teração/interlocução em que demonstrem compreender/inter-18

pretar o mundo ao seu redor. 19

Por esse motivo, o ensino de Língua Portuguesa tem 20

começado a tirar o foco exclusivo nos aspectos formais da lín-21

gua e a valorizar aspectos pragmáticos e funcionais, por meio 22

do trabalho com os diversos gêneros textuais presentes em 23

nosso cotidiano. Segundo Dolz & Schneuwly (2004, p. 172), 24

na ótica do ensino, “os gêneros constituem um ponto de refe-25

rência concreto para os alunos”. 26

Apesar do avanço, o trabalho com produção textual – 27

sobretudo com gêneros do modo argumentativo – ainda tem 28

sido desenvolvido quase que exclusivamente no Ensino Mé-29

10 UFF, FFP-UERJ e GP LeiFen.

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dio, geralmente com as famosas “dissertações”, de modo a 1

preparar os alunos para as provas de vestibular, enfocando-se 2

somente os aspectos estruturais de uma “redação”. Como con-3

sequência, multiplicam-se os resultados negativos tão forte-4

mente comentados e criticados pela mídia. 5

Acredita-se que um dos fatores responsáveis por tal fra-6

casso é o fato de que os alunos chegam despreparados ao En-7

sino Médio. A leitura ajuda a fornecer subsídios para a escrita, 8

mas esta só se desenvolve por meio de muita prática; não é 9

meramente fruto de um dom ou pura técnica. Dessa forma, o 10

ideal seria abordar diversos tipos de organização textual desde 11

cedo, de forma gradual. Dolz & Schneuwly (2004, p. 64), con-12

cordam com isso, quando afirmam que o trabalho com textos 13

deva ocorrer em espiral, ou seja, objetivos semelhantes devem 14

ser "abordados em níveis de complexidade cada vez maiores 15

ao longo da escolaridade". 16

Sob essa perspectiva, o presente trabalho propõe a utili-17

zação de gêneros do domínio publicitário nas séries iniciais, 18

com o objetivo de desenvolver alguns aspectos da argumenta-19

ção já nesse nível escolar, considerando alguns dos aspectos 20

linguístico-discursivos de tais textos, que têm o objetivo de 21

persuadir/seduzir o interlocutor a adquirir determinado produ-22

to ou serviço. Além disso, ao utilizar gêneros do domínio pu-23

blicitário, pretende-se também ter como foco um trabalho de 24

produção que valorize a função social da língua, desenvolven-25

do tanto a oralidade quanto a escrita. Para isso, faz um breve 26

relato de um projeto didático realizado com alunos do 5º ano 27

do Ensino Fundamental, que envolve a análise e a produção de 28

textos publicitários. Como diretriz, foram utilizados pressu-29

postos da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso 30

(CHARAUDEAU, 2009). 31

32

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65

2. As competências da linguagem 1

Patrick Charaudeau (2001, p. 13) afirma que a constru-2

ção de sentido, mediante qualquer ato de linguagem, procede 3

de um sujeito que se dirige a outro sujeito, dentro de uma situ-4

ação de troca específica, que sobredetermina parcialmente a 5

escolha dos recursos de linguagem que poderá usar. Isto levou 6

o autor a elaborar um modelo dividido em três níveis, onde 7

cada nível corresponde a um tipo de competência do sujeito. 8

A competência situacional exige de todo sujeito comu-9

nicante e interpretante de um ato de linguagem a aptidão para 10

construir seu discurso em função da identidade dos parceiros 11

da troca, da finalidade da troca, do propósito em jogo e das 12

circunstâncias materiais da troca. 13

A competência semiolinguística exige de todo sujeito 14

que comunica e interpreta a aptidão para manipular/reconhecer 15

as formas dos signos, suas regras de combinação e seu sentido, 16

sabendo que estes são empregados para exprimir uma intenção 17

de comunicação. Segundo Charaudeau (2001, p. 17), é neste 18

nível, precisamente, que se constrói o texto, considerando tex-19

to "o resultado de um ato de linguagem produzido por um da-20

do sujeito dentro de uma dada situação de troca social e pos-21

suindo uma forma particular". Para isso, são necessários certos 22

conhecimentos ligados às nossas competências textuais, relati-23

vos à composição do texto, à construção gramatical e ao uso 24

adequado das palavras e do léxico. 25

A competência discursiva é o conjunto de todas as ou-26

tras competências, e é fazendo-a funcionar que se produzem 27

atos de linguagem portadores de sentido e de vínculo social 28

(CHARAUDEAU, 2009, p. 8). Esse nível exige de todo sujeito 29

comunicante ou daquele que vai interpretar a aptidão para ma-30

nipular (EU) – reconhecer (TU) os diferentes procedimentos 31

de encenação discursiva. 32

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Essas competências constituem, para Charaudeau (2009, 1

p. 17-18), as condições necessárias para comunicação por 2

meio da linguagem. Elas são o resultado de um movimento de 3

ida e volta permanente entre a capacidade de reconhecer as 4

condições sociais de comunicação, a capacidade de manipular-5

reconhecer as estratégias do discurso e a capacidade de mani-6

pular-reconhecer os sistemas semiolinguísticos. Tais níveis es-7

tariam, portanto, interligados, pois um depende do outro. 8

De acordo com Feres (2006, p. 159), ainda existiria uma 9

quarta competência: a competência fruitiva. Feres afirma que 10

essa competência diz respeito 11

[...] ao conjunto de habilidades que o leitor deve dominar não só 12 para perceber as sensações provocadas pelas estratégias analógi-13 cas articuladas na tessitura textual, como também para criar um 14 "estado de aceitabilidade favorável" a fim de deixar-se afetar in-15 teriormente pelo texto (FERES, 2006, p. 160). 16

A competência fruitiva refere-se às sensações e à sensi-17

bilização (sentimento do texto, como ação de sentir); está liga-18

da, portanto, à visada de patemização ("fazer sentir"). Desse 19

modo, a competência fruitiva agiria em um nível extra de 20

construção de sentido, que paira sobre os outros níveis, e esta-21

ria sobreposta às outras competências, pois está vinculada aos 22

"excessos" do texto. Assim, é extremamente subjetiva, pois es-23

tá suscetível ao sujeito externo (TUi), influenciado pela situa-24

ção de leitura (FERES, 2006, p. 159). 25

26

3. Os modos de organização do discurso 27

Segundo Charaudeau (2009, p. 68), os modos de organi-28

zação do discurso constituem "os princípios de organização da 29

matéria linguística, princípios que dependem da finalidade 30

comunicativa do sujeito falante: ENUNCIAR, DESCREVER, 31

CONTAR, ARGUMENTAR". 32

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67

Cada uma dessas ordens tem diversos componentes e a 1

combinação desses diferentes componentes e modalidades 2

permite compreender os diferentes tipos de discurso (científi-3

co, jornalístico, pedagógico, publicitário etc.). 4

Dessa forma, os quatro modos de organização do dis-5

curso são o enunciativo, o narrativo, o descritivo e o argumen-6

tativo. Cada um desses modos possui uma função de base e 7

um princípio de organização. 8

O Modo Enunciativo refere-se aos protagonistas, seres 9

da fala, internos ao ato de linguagem, e seus comportamentos 10

particulares. De acordo com Monnerat (2003, p. 25), o modo 11

enunciativo tem um status especial na organização do discur-12

so, já que, de certo modo, "comanda" os outros modos, já que 13

intervém na mise em scène de cada um dos outros três, ao mes-14 mo tempo em que consegue dar conta da posição do locutor em 15 relação ao interlocutor, em relação a ele mesmo (ao 'dito') e em 16 relação aos outros discursos. 17

Nesse sentido, o modo enunciativo organiza as categori-18

as da língua, ordenando-as de forma a que deem conta da ma-19

neira pela qual o sujeito falante se "apropria" da língua. Assim, 20

é possível distinguir três funções do modo enunciativo (moda-21

lização), quanto à posição assumida pelo locutor: 22

estabelecer uma relação de influência entre o locutor e 23

interlocutor, a que denominamos ato alocutivo (refere-24

se à relação do locutor com o interlocutor); 25

revelar o ponto de vista do locutor, a que denomina-26

mos ato elocutivo (refere-se à relação do locutor com 27

o que ele diz); 28

retomar a fala de um terceiro, a que denominamos ato 29

delocutivo (refere-se à relação do locutor com o que o 30

outro diz). 31

Cada um desses atos têm características e finalidades 32

próprias. Eles estão relacionados aos procedimentos da cons-33

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trução enunciativa de ordem linguística, por meio do processo 1

de modalização do enunciado. Os procedimentos de ordem 2

enunciativa também podem ser de ordem discursiva; esses 3

procedimentos contribuem para pôr em cena os outros Modos 4

de organização do discurso. 5

O Modo Narrativo consiste em construir a sucessão das 6

ações de uma história no tempo, com a finalidade de fazer um 7

relato. Os procedimentos discursivos na encenação narrativa 8

são abordados nas maneiras de implicar o destinatário-leitor, 9

nos modos de intervenção do narrador e nos estatutos e pontos 10

de vista do narrador. 11

O Modo Descritivo consiste em nomear, localizar/situar 12

e qualificar os seres do mundo, com uma maior ou menor sub-13

jetividade. Os procedimentos discursivos na encenação descri-14

tiva são abordados nos diferentes efeitos de saber, de realida-15

de/ficção, de confidência e de gênero. 16

O Modo Argumentativo, por sua vez, consiste em saber 17

expor e provar causalidades dos acontecimentos, numa visada 18

racionalizante para influenciar o interlocutor. Para que essa 19

persuasão ocorra, é necessário que eles compartilhem repre-20

sentações socioculturais. Os procedimentos discursivos na en-21

cenação argumentativa são abordados nos tipos de posição do 22

sujeito que argumenta e nos tipos de valores dos argumentos. 23

24

4. Argumentação e publicidade em sala de aula 25

O trabalho com diferentes gêneros textuais, além de 26

contribuir para a apropriação por parte dos alunos das diversas 27

formas de dizer que circulam socialmente, possibilita ainda o 28

desenvolvimento de capacidades específicas inerentes à com-29

preensão e produção de textos. 30

Ao utilizar os gêneros publicitários em sala de aula, é 31

possível desenvolver um trabalho a partir da integração de di-32

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ferentes mídias: TV, vídeo, material impresso (revistas, jor-1

nais, outdoors) e internet, com o objetivo de oferecer aos alu-2

nos a oportunidade de aprimorar a leitura e a escrita, assim 3

como a oralidade. Além disso, poderíamos estudar como o 4

mesmo gênero se adapta a vários tipos de suporte, modifican-5

do as estrutura e escolhas, devido às características do veículo 6

e às transformações na intenção do emissor. De acordo com 7

Carvalho (2008, p. 6), 8

O texto publicitário [...] torna-se um instrumento importante 9 no ensino da língua, pois reproduz em sua mensagem o discurso 10 com seus recursos linguísticos e visuais, tal como está transitan-11 do no momento, na sociedade em que está inserido. É um discur-12 so atual e bem elaborado, utilizando os recursos de informação, 13 argumentação e convencimento, de que o sistema dispõe e o fa-14 lante usa: recursos fonéticos, léxico- semânticos e sintáticos. 15 Além disso, traz referências culturais que podem ser identifica-16 das no mesmo. 17

Dessa forma, além da integração das diferentes mídias, 18

através dos gêneros publicitários é possível trabalhar com al-19

guns aspectos da argumentação já nas séries iniciais. Normal-20

mente, nessa fase escolar, a preferência é trabalhar com gêne-21

ros narrativos, como contos, fábulas, lendas, etc., já que o con-22

tar e o ouvir histórias fazem parte do mundo das crianças dessa 23

faixa etária. No entanto, o ideal seria abordar diversos tipos de 24

organização textual desde cedo, de forma gradual. 25

Com relação ao ensino do Modo Argumentativo, o pró-26

prio Charaudeau afirma que: 27

A tradição escolar nunca esteve muito à vontade com essa 28 atividade de linguagem, em contraste com o forte desenvolvi-29 mento do Narrativo e Descritivo. Se as instruções oficiais reco-30 mendam que se desenvolvam as capacidades de raciocínio dos 31 alunos, nada é dito sobre o modo de se chegar a isso. (CHA-32 RAUDEAU, 2009, p. 201) 33

Da mesma forma, não podemos negar a imensa força 34

que exercem os meios de comunicação em massa e os gêneros 35

deles decorrentes na formação da opinião pública, agindo for-36

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temente em todas as esferas sociais. A publicidade estaria in-1

serida nesse contexto. 2

Monnerat (2003, p. 12) explica que, com o desenvolvi-3

mento dos meios físicos de comunicação e o aumento da pro-4

dução industrial pelo aperfeiçoamento tecnológico, a publici-5

dade “passa a ser um símbolo da abundância de produtos e 6

serviços que o progresso tecnológico coloca diariamente à dis-7

posição do homem”. A autora ainda afirma que na publicida-8

de, 9

Os objetos são “semantizados”. Cria-se, portanto, uma noção 10 de status, conferido pela aquisição de bens ligados ao conforto e 11 ao lazer. Os objetos que a publicidade toca conferem prestígio, 12 porque o produto anunciado extrai seu valor menos de sua utili-13 dade objetiva do que de um sentido cultural, servindo para man-14 ter um status efetivo, ou sonhado. [...] 15

A publicidade é uma das várias forças de comunicação que 16 deve levar o consumidor através de vários níveis (desconheci-17 mento → conhecimento → compreensão → convicção → ação) 18 ao objetivo visado – a compra do produto (ação). (MONNERAT, 19 2003, p. 12, 15) 20

Para atingir tal objetivo, os textos publicitários combi-21

nam vários modos de organização do discurso. Apesar de ter 22

grande tendência para o Modo Descritivo (nos slogans, por 23

exemplo) e Narrativo (quando uma história é contada), nos 24

gêneros publicitários evidenciam-se estratégias próprias do 25

Modo Argumentativo. De acordo com Charaudeau, a argu-26

mentação 27

[...] caracteriza-se por uma relação triangular em que um sujeito 28 argumentante se dirige a um sujeito alvo, com ênfase numa tese 29 sobre o mundo. Do ponto de vista do sujeito argumentante, tal 30 atividade possui um duplo objetivo: 1) uma busca de racionali-31 dade que sirva como ideal de verdade quanto à explicação de fe-32 nômenos que comportam mais de uma explicação; 2) uma busca 33 de influência como ideal de persuasão, a fim de fazer com que o 34 outro compartilhe um certo universo discursivo, tornando-se um 35 coenunciador. (CHARAUDEAU, apud MENEZES, 2006, p. 96) 36

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Conforme descreve Monnerat (2003, p. 30), o contrato 1

comunicativo do gênero publicitário coloca em cena uma du-2

pla estratégia: a estratégia da ocultação e a da sedu-3

ção/persuasão. Na primeira estratégia, a palavra publicitária 4

oculta o que se passa no circuito externo, no qual os partici-5

pantes estão ligados por relações de interesse bem mais pro-6

veitosas para o publicista do que para o consumidor. Na se-7

gunda, o publicitário deve procurar conquistar o destinatário, 8

mediante a fabricação de uma imagem de sujeito-destinatário 9

suficientemente persuasiva e sedutora, de modo que o interlo-10

cutor possa se identificar com ela. 11

Além disso, no discurso publicitário, evidenciam-se es-12

tratégias próprias do discurso argumentativo, como a singula-13

rização e a pressuposição (MONNERAT, 2003, p. 27). A sin-14

gularização é um procedimento através do qual, de maneira 15

explícita ou implícita, procura-se distinguir o produto (marca) 16

dos outros produtos existentes, tornando-o único. Na pressu-17

posição procura-se de produzir, por diversos meios, uma ima-18

gem do destinatário da qual ele próprio não possa fugir. 19

Quanto à lógica argumentativa, Monnerat (2003, p. 28) 20

ainda afirma que os textos publicitários “tratam sempre de 21

maneira mais ou menos explícita do produto (P), da marca do 22

produto (M), das qualificações do produto (q) e do que ele 23

oferece (R)”, e propõe a seguinte fórmula: P (M) x q → R. 24

Assim, por meio de todos esses aspectos, a organização 25

argumentativa do texto publicitário, de acordo com Monnerat 26

(2003, p. 29), compreende: 27

uma “Tese” – base sobre a qual se apoia a argumenta-28

ção, demonstrando aquilo a que a mesma se refere; 29

uma “Proposição” – que se baseia no quadro de racio-30

cínio: Se p, então q. 31

um “Ato de Persuasão” – que procura dar conta da va-32

lidade da proposição, através de duas questões: ou o 33

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destinatário não se interessa pelo produto porque não 1

tem consciência da necessidade do mesmo (não tem 2

consciência da falta), ou o destinatário precisará ser 3

convencido de que não tem outros meios de obter R 4

sem utilizar P. 5

Nesse sentido, como os gêneros publicitários têm como 6

objetivo “seduzir” e “persuadir” o leitor a adquirir determina-7

do produto, ao trabalhar as características desses textos, esta-8

remos ajudando os alunos a desenvolverem esse tipo de lin-9

guagem e a terem um olhar mais cuidadoso e menos passivo 10

ao confrontar tais textos. Portanto, o trabalho com gêneros pu-11

blicitários pode tornar-se um ponto de partida para o desen-12

volvimento de uma consciência crítica, de modo que os alu-13

nos, futuros cidadãos, não sejam meros reprodutores dos dis-14

cursos alheios. 15

Como esse trabalho seria desenvolvido com alunos das 16

séries iniciais, vários cuidados deveriam ser tomados, para que 17

o trabalho estivesse adequado à faixa etária e nível da turma. 18

Alguns desses cuidados eram com relação à linguagem, aos 19

textos e recursos a serem utilizados. Esse trabalho foi realiza-20

do com turmas do 5º ano do Ensino Fundamental de uma esco-21

la da rede municipal de Niterói. 22

Como motivação inicial, foi passado um vídeo para os 23

alunos. Esse vídeo era um desenho animado, em que os perso-24

nagens decidem tornarem-se empreendedores e utilizam várias 25

técnicas para convencer os clientes a comprarem seus produ-26

tos. Após o vídeo, foi promovida uma discussão sobre o tema. 27

Em outro momento, as crianças tiveram contato com anúncios 28

de revistas, de modo a observar que um anúncio é direcionado 29

a determinado público, escrito na linguagem desse público e 30

veiculado no suporte específico. Em seguida, conversamos so-31

bre comerciais de TV, quais mais gostavam, achavam interes-32

santes ou criativos e por qual razão. 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

73

Em outra etapa dividimos os alunos em grupos e propu-1

semos a seguinte atividade: cada grupo deveria criar um novo 2

produto e dizer para que servia e como era esse produto; tam-3

bém deveriam desenhar o produto e determinar o público para 4

o qual ele se destinava. 5

A etapa seguinte seria a divulgação do produto. Para is-6

so, os alunos criaram o design dos rótulos e embalagens dos 7

produtos no Laboratório de Informática; “deram vida” aos 8

seus produtos com a utilização de sucatas; criaram anúncios 9

para divulgação do produto no editor de texto; elaboraram um 10

roteiro e gravaram comerciais televisivos dos produtos. 11

A etapa final foi a exposição do material para toda a 12

comunidade escolar. No dia da feira de Artes, colocamos todos 13

os produtos em exposição, perto de seus anúncios, e uma TV 14

ao lado passando os comerciais editados. Nesse dia, além da 15

escola, participaram os pais e a comunidade. 16

17

5. Análise de material produzido pelos alunos 18

Algumas das produções dos alunos serão analisadas 19

com o objetivo de verificar a presença de alguns aspectos 20

linguístico-discursivos da argumentação no texto publicitário. 21

O primeiro anúncio a ser analisado é o do sabonete Be-22

leza Natural. No anúncio, o sujeito argumentante seria a em-23

presa fabricante do sabonete; o sujeito alvo seria o público fe-24

minino; a proposta sobre o mundo seria uma forma de deixar a 25

pele mais hidratada e sensual. 26

A imagem de flores no sabonete remete o anúncio ao 27

público feminino. Além disso, pode-se remeter à ideia de ter a 28

pele “sedosa como uma flor”. 29

Nesse anúncio, pode-se observar a modalização alocuti-30

va, pois, por meio do verbo no imperativo, o interlocutor é 31

projetado no discurso; há uma injunção/ conselho/ sugestão 32

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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para que o interlocutor adquira o produto (“compre o seu tam-1

bém”, “compre o sabonete que deixa sua pele hidratada”). 2

Além disso, existe um ato elocutivo, quando o locutor 3

declara sua avaliação/opinião sobre o produto: “Eu usei e gos-4

tei”. Essa pode ser considerada uma estratégia de legitimação, 5

pois o locutor, ao dizer que “usou e gostou”, tenta dar legiti-6

midade ao anúncio e ganhar credibilidade para sugerir ao in-7

terlocutor que faça o mesmo. No comercial criado pelo grupo, 8

várias meninas falam do produto e uma diz no final o slogan 9

do produto (“Eu usei e gostei, compre o seu também”), o que 10

confirma isso. 11

12

A singularização do produto, por sua vez, é feita não 13

qualificando o produto, mas como ficará a pele após utilizá-lo: 14

“mais sensual”, “hidratada”. 15

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

75

Assim, é possível inferir a seguinte lógica argumentati-1

va: Se você utilizar o sabonete Beleza Natural, então terá a 2

pele hidratada e mais sensual; ora, eu comprei, usei e gostei, 3

logo você pode comprar o seu também. 4

O próximo anúncio é do bombom O Caminho da Pai-5

xão, parodiando os famosos bombons “Serenata de Amor” e 6

“Sonho de Valsa”. 7

8

Como o nome do bombom é O Caminho da Paixão, o 9

grupo utilizou a cor vermelha (que simboliza a paixão) para 10

sua embalagem e corações em seu anúncio. A cor pode ser 11

considerada um elemento diferenciador na singularização do 12

produto (MONNERAT, 2010, p. 104). 13

Quanto à modalização, foi amplamente utilizado o ato 14

alocutivo, nas modalidades de interpelação (“Se seu relacio-15

namento está sem graça, ofereça esse bombom à pessoa amada 16

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e ele ajudará a melhorar a sua relação”) e de conselho/injunção 1

/sugestão (“ofereça esse bombom à pessoa amada”, “Coma es-2

se bombom e tudo ficará bom”). 3

A partir do anúncio, é possível definir a seguinte orga-4

nização argumentativa: 5

Tese – seu relacionamento pode estar sem graça e ter 6

caído na rotina; 7

Proposição – Se você oferecer O Caminho da Paixão à 8

pessoa amada, então poderá melhorar sua relação; 9

Ato de Persuasão – Ao oferecer O Caminho da Paixão 10

à pessoa amada, você poderá melhorar sua relação e 11

tudo ficará bom. 12

A partir daí também se encontra a lógica argumentativa 13

do anúncio: Se você oferecer O Caminho da Paixão à pessoa 14

amada, então poderá melhorar sua relação e tudo ficará bom. 15

Por último, será analisado um comercial de TV que 16

apresenta um desodorante, ao qual os alunos deram o nome de 17

HXB: 18

19

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

77

Cena 1 Três meninos estão conversando e passa uma menina fazen-1 do cara feia, como se estivesse sentindo um mau odor. Ela 2 passa perto de um dos meninos, “franze” o nariz e diz: 3 “Hum...”, numa entonação mostrando que ele está com um 4 cheiro ruim. 5

Cena 2 O menino com “mau cheiro” da cena anterior passa o deso-6 dorante HXB. 7

Cena 3 Os três meninos estão conversando novamente e a mesma 8 menina passa. Dessa vez, ela diz: “Hum, que cheirinho bom! 9 Hum...”. 10

Cena 4 O anunciante diz: “Se você tem ‘cecê’, use HXB, o melhor 11 pra você”. 12

Jingle no final: ♫ HXB, o melhor pra você! ♫ 13

Com relação à lógica argumentativa [P (M) x q → R], o 14

anunciante quer dizer: se você tem "cecê", então use HXB; 15

ora, se você quer ficar cheiroso e atrair as meninas, logo HXB 16

é o melhor pra você. 17

A própria fala do anunciante já revela em si a lógica ar-18

gumentativa: Se você tem "cecê", (então) use HBX, (pois) é o 19

melhor pra você. 20

No anúncio, o sujeito argumentante seria a empresa fa-21

bricante de HXB (EUc publicista, pertencente ao espaço ex-22

terno-externo), na voz do menino que apresenta o produto no 23

final (EUe anunciante, pertencente ao espaço externo-interno); 24

o sujeito alvo seriam aqueles que têm mau cheiro ou simples-25

mente querem ficar mais cheirosos para atrair as meninas 26

(TUd, idealizado pelo EUc, pertencente ao espaço interno-27

externo); a proposta sobre o mundo seria uma forma de acabar 28

com o mau-cheiro e ainda atrair as garotas (ELE-x). 29

Quanto à organização argumentativa, por meio desses 30

detalhes, pode-se inferir: 31

Tese – você pode ter "cecê"; 32

Proposição – Se você usar HXB, você ficará cheiroso; 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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Ato de Persuasão – Ao utilizar HXB, além de ficar 1

mais cheiroso, ainda poderá atrair garotas bonitas. 2

Quanto à modalização, é possível encontrar atos alocu-3

tivos e elocutivos. 4

Quanto aos atos alocutivos, há uma interpelação na cena 5

4 e no jingle, pois o uso do pronome você faz com que o sujei-6

to interpretante se identifique com a imagem de destinatário. 7

Além do mais, existe uma injunção/conselho/sugestão, quando 8

diz ao interlocutor: “Se você tem ‘cecê’, use HXB”. 9

Nas cenas 1 e 3, como atos elocutivos, podemos desta-10

car duas apreciações, feitas pela menina. A primeira é desfavo-11

rável, pois o “Hum...” denota mau cheiro. A segunda, por ou-12

tro lado, após o menino usar o desodorante HXB, é favorável, 13

pois ela diz: “Hum, que cheirinho bom! Hum...”. Essa tomada 14

de posição apreciativa coloca o destinatário na posição de tes-15

temunha e, por meio da imagem eufórica do enunciador na ce-16

na 3, ele se identifica com o produto. Além disso, a utilização 17

do termo "cecê", por ser menos formal, aproxima o anunciante 18

do público alvo. 19

20

6. Considerações finais 21

O presente trabalho, sob o olhar da Teoria Semiolin-22

guística de Análise do Discurso (CHARAUDEAU, 2009), pre-23

tendeu comprovar como é viável a proposição de atividades 24

pedagógicas para o desenvolvimento da competência de lin-25

guagem (CHARAUDEAU, 2001) dos alunos, mais especifica-26

mente no que tange ao estudo da argumentação, desde as sé-27

ries iniciais do Ensino Fundamental. 28

A competência situacional é uma das mais importantes, 29

porém ainda é uma das menos trabalhadas em sala de aula. 30

Contudo, se, para que o trabalho de leitura e produção faça 31

sentido para os alunos, a proposta é trabalhar textos de acordo 32

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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com sua função social, esse é um aspecto que não pode ser 1

deixado de lado. Os alunos demonstraram em seus trabalhos 2

que sabiam quem eram os principais destinatários de seus tex-3

tos (Beleza Natural – o público feminino; Bombom, o Cami-4

nho da Paixão – pessoas apaixonadas; HXB – pessoas que têm 5

“cecê”) e preocupavam-se com isso, adequando aspectos ver-6

bais e não verbais a seus interlocutores. Além disso, sabiam 7

que a natureza da comunicação, nos anúncios, era escrita e, 8

nos comerciais, era oral. Ambos os textos eram não presenci-9

ais, ou seja, locutor e interlocutor não se encontrariam direta-10

mente, devendo o produtor, então, tornar seu texto o mais cla-11

ro possível. Quanto ao propósito (do que se trata?), os alunos, 12

desde a elaboração do roteiro para criação do produto, foram 13

levados a pensar sobre suas características: como seria, para 14

que servia, qual nome teria, etc.; com relação à finalidade da 15

troca (estou aqui para dizer o quê?), os alunos também mostra-16

ram em seus trabalhos que planejaram a forma como iriam 17

apresentá-lo e tinham noção do que iriam dizer. 18

Quanto à competência discursiva, nos trabalhos desen-19

volvidos foi possível detectar as estratégias de singularização, 20

pressuposição, legitimação, credibilidade e captação, próprias 21

do Modo argumentativo, utilizadas com o objetivo de conven-22

cer o interlocutor a adquirir o produto; também foi possível 23

depreender a lógica argumentativa de cada anúncio e comerci-24

al. Os alunos utilizaram também o Modo descritivo e a Quali-25

ficação, para singularização do produto, com o mesmo objeti-26

vo de sedução/persuasão; e, em todo o momento, o Modo 27

Enunciativo, que perpassa todos os outros Modos de organiza-28

ção do discurso (estratégias de ordem enunciva). Quanto à 29

Modalização, foi possível perceber que predominou nos anún-30

cios e comerciais o ato alocutivo, nas modalidades interpela-31

ção, injunção e conselho/sugestão, e o ato delocutivo, na mo-32

dalidade asserção, com o objetivo de descrever o produto por 33

meio da Qualificação. Em alguns deles, porém, apareceu tam-34

bém o ato elocutivo, quando o locutor pretendia utilizar as es-35

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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tratégias de credibilidade e legitimação, dizendo que utilizou o 1

produto (“Eu usei e gostei, compre o seu também”), ou quando 2

fazia uma apreciação positiva ou negativa do mesmo (“Hum... 3

Isso é bom demais, cara!”). 4

Quanto à competência semiolinguística, a seleção lexi-5

cal foi adequada aos objetivos do projeto de comunicação, 6

como pôde ser observado no comercial de HXB. Como foi di-7

to anteriormente, os modos de organização do discurso tam-8

bém foram usados satisfatoriamente. A utilização de signos 9

não verbais, complementando os verbais também foi explora-10

da, como a cor vermelha no bombom O caminho da Paixão e 11

as expressões faciais e gestos da menina de HBX, mostrando 12

que gostou ou não gostou do cheiro do menino. 13

Quanto à competência fruitiva, por sua vez, foi possível 14

encontrar a utilização de mecanismos linguísticos e visuais pa-15

ra captar o leitor por meio da emoção, como a utilização de 16

“coraçõezinhos” no anúncio do bombom O Caminho da Paixão. 17

Desse modo, pode-se perceber que as escolhas feitas pe-18

los alunos não foram aleatórias, assim como não são nossas 19

escolhas num ato real de troca linguageira. Tais escolhas são fei-20

tas a partir das intenções do falante e do contexto em que ele 21

está inserido, e dependem também de quem seja o interlocutor. 22

Isso só foi possível porque foram escolhidos determinados gê-23

neros textuais (anúncio e comercial) para desenvolver a argu-24

mentação. Não faria sentido se a argumentação fosse trabalha-25

da com os alunos nos moldes da clássica tipologia: narração, 26

descrição e argumentação, enfocando apenas os aspectos es-27

truturais desses modos de organização, como era (e ainda é) 28

trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa. 29

Ao abordar diferentes gêneros textuais no ensino, po-30

demos ir além. Dessa forma, é preciso organizar o planejamen-31

to pedagógico de forma que o aluno possa vivenciar as dife-32

rentes modalidades de leitura e escrita: ler e escrever para in-33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

81

formar-se, estudar, revisar o que produz, para resolver proble-1

mas do cotidiano, para divertir-se, enfim, para agir no mundo. 2

3

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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Regina Souza (Orgs.). Anais do II Fórum Internacional de Aná-1

lise do Discurso: Discurso, Texto e Enunciação – Homenagem 2

a Patrick Charaudeau. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 3

4

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

83

1

2

3

4

ETHOS E JORNALISMO OPINATIVO: 5

IMAGENS DE (IM)PARCIALIDADE 6

Patricia Ferreira Neves Ribeiro11 7

8

1. Palavras iniciais 9

Ao Jornal do Brasil, parabéns pelos seus 10 113 anos de imparcialidade. 11

(Ricardo Gaspar M. De Oliveira) 12

13

Esta frase, proferida por um leitor do Jornal do Brasil, 14

demonstra o apego que se tem ao princípio da imparcialidade 15

como garantia de um jornalismo de credibilidade. É critério 16

válido para esquivar-se de um jornalismo que caia na “armadi-17

lha” de sacrificar a verdade ou a justiça a considerações parti-18

culares. Trata-se de conceito importante para evitar justificati-19

vas que aceitem qualquer manipulação dos fatos pelo jornalis-20

ta a seu bel-prazer. 21

Esse critério, todavia, não pode ser tomado pelo “mito” 22

da isenção e da neutralidade que costuma circular sobre o dis-23

curso jornalístico e não pode impedir que a leitura das entreli-24

nhas de um texto revele a inerente subjetividade na apreensão 25

da notícia, isto é, da inevitável parcialidade alinhavada, discur-26

sivamente, nas páginas diárias dos jornais. Parcialidade que se 27

instaura no sentido de se elaborar um julgamento (explícito ou 28

11 Universidade Federal Fluminense. [email protected]

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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implícito) com paixão, com interferência, com sentido de auto-1

ria e de tomada de posição por parte do jornalista. 2

Interessados em apurar esse jogo entre a objetivida-3

de/imparcialidade e a subjetividade/parcialidade que se instala 4

no interior do domínio jornalístico, propomo-nos analisar a 5

construção do ethos num dos gêneros textuais constitutivos do 6

jornalismo: o colunismo político. 7

O ethos integra, ao lado do logos e do pathos, a trilogia 8

aristotélica dos meios de prova em uma argumentação. Se o 9

logos concerne ao conteúdo em si dos argumentos e o pathos 10

diz respeito aos atributos do público-alvo, o ethos constitui os 11

atributos do orador. Não os traços reais do caráter do enuncia-12

dor, mas o que deixam emergir pelo discurso. Em outros ter-13

mos, o ethos é a propriedade que o orador se confere por meio 14

de sua maneira de dizer, de seu modo de expressão. O ethos é, 15

enfim, uma “imagem de si” que o locutor projeta (de si mes-16

mo) através do discurso. 17

Especificamente, consideramos, neste artigo, a focaliza-18

ção do ethos projetado por um dos baluartes do colunismo po-19

lítico nacional: o articulista Villas-Bôas Corrêa. 20

Elegemos examinar o ethos do sujeito enunciador Vil-21

las-Bôas Corrêa em virtude de o tema da imparcialidade, no 22

discurso jornalístico opinativo, ser ainda um campo em aberto 23

como comprova a discussão travada entre Villas-Bôas, ícone 24

do colunismo político, e outro jornalista de renome, Milton 25

Temer. O primeiro defendendo-se de acusação pronunciada 26

pelo segundo mostra-se guardião da imparcialidade, conforme 27

a seguinte transcrição: 28

na minha seara é nítida a linha que separa o militante do jornalis-29 ta. A minha geração, a de Castellinho, e de Heráclio Salles, con-30 quistou o seu espaço nos jornais abrindo a vereda da imparciali-31 dade, com o reconhecimento dos diretores e editores da diferen-32 ça entre a linha opinativa dos editoriais e o noticiário objetivo 33 dos fatos e a sua análise isenta, imparcial. E não posso, não de-34

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vo, não quero mudar. (Villas-Bôas Corrêa. Não é nada disso, 1 Temer. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 nov. 2002, p. A10). 2

Em decorrência das questões suscitadas em torno do 3

caminho da objetividade e da trilha da subjetividade, no âmbi-4

to do colunismo político, decidimos decifrar a constituição da 5

tal imagem imparcial defendida pelo sujeito real Villas-Bôas 6

Corrêa. Fazemos isso a partir da análise do ethos que, como 7

sujeito “de papel”, o referido jornalista constitui para si mes-8

mo. 9

Além disso, decidimos focalizar essa “imagem de si” 10

(ethos) projetada pelo enunciador, relacionando-a à funciona-11

lidade da argumentação estudada em face do contrato de co-12

municação jornalístico. 13

Não seria possível, neste caso, negligenciarmos as con-14

dições impostas pelo contrato de comunicação midiático ao 15

“fazer” do enunciador e, por consequência, à sua identidade. 16

Tais condições correspondem, segundo Charaudeau (2006b, p. 17

86), a duas finalidades ou exigências que estão, no contrato, 18

inscritas: a da credibilidade e a da dramatização. 19

De um lado, por apelo à credibilidade, instaurada dentro 20

de uma lógica cívica, cabe ao jornalista oferecer ao leitor um 21

saber calcado na exatidão dos fatos, rendendo-se a um discur-22

so de distanciamento e de seriedade. De outro lado, por impo-23

sição do objetivo da dramatização, estabelecido dentro de uma 24

lógica de sedução, ao jornalista estaria reservado o papel de 25

captar o maior número de leitores, oferecendo-lhe um ideal de 26

novidade e de inusitado, com vistas a mobilizar sua afetivida-27

de, e estabelecer para si um discurso de engajamento. 28

Além disso, seguindo esse fio de raciocínio, também 29

não poderíamos nos furtar de considerar, num trabalho que se 30

centra sobre o texto predominantemente argumentativo, a im-31

portante constatação da análise da argumentação no discurso, 32

qual seja a de que há uma associação íntima entre racionalida-33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

86

des e emoção. O referido programa sugere a exclusão de um 1

dizer visto como uma operação puramente intelectual, destitu-2

ída de qualquer palavra para exprimir emoção. Nesse sentido, 3

a argumentação é sempre situada e vivida por sujeitos portado-4

res de emoção, que deixam marcas no enunciado (CHARAU-5

DEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 57). 6

Dentre os mais variados procedimentos linguísticos por 7

meio dos quais o sujeito enunciador pode imprimir suas mar-8

cas no enunciado, elegemos um instigante e recorrente fenô-9

meno do discurso do articulista em foco: a reenunciação pro-10

verbial. 11

Desse modo, estabelecemos como proposta para esta 12

pesquisa analisar provérbios que são recriados em textos ar-13

gumentativos assinados pelo repórter político Villas-Bôas Cor-14

rêa. Nosso intuito é o de flagrar o ethos, a partir daí constituí-15

do, no escopo do contrato de comunicação midiática. 16

17

2. Pressupostos teórico-metodológicos 18

A partir da proposta enunciada, analisamos dois artigos 19

de autoria do colunista político Villas Bôas-Corrêa, escritos 20

para o Jornal do Brasil: “Branco da discórdia” e “Lula identi-21

fica o inimigo”, dos quais extraímos expressões proverbiais 22

recriadas. 23

Mais especificamente, o uso discursivo dos provérbios 24

recriados, no interior dos artigos supracitados, é analisado 25

consoante o arcabouço teórico-metodológico da Análise do 26

Discurso de orientação semiolinguística de Patrick Charaude-27

au, no escopo das noções de contrato comunicativo midiático 28

(2006a, 2006b), de modos de organização do discurso (2006a) 29

e de ethos (2006a). 30

À luz da primeira noção, veremos o ethos constituído 31

em resposta ao paradoxal contrato de informação midiática por 32

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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meio do qual são moldados os artigos analisados, voltados que 1

estão para a dupla finalidade de informação (credibilidade) e 2

de captação (dramatização). 3

No escopo do contrato de comunicação midiática, o ar-4

tigo opinativo, como um dos gêneros do domínio da imprensa, 5

sustenta-se sob uma dupla finalidade: a visada de informação e 6

a visada de captação. A partir dessas finalidades, ao jornal im-7

põem-se dois desafios, respectivamente: o da credibilidade e o 8

da dramatização. 9

Dentro de uma lógica cívica, cabe ao jornal dar ao leitor 10

uma informação sobre o que aconteceu ou está acontecendo no 11

mundo da vida social, por meio da reportagem de fatos do 12

mundo e da explicação acerca das causas e consequências so-13

bre o surgimento desses fatos. Segundo a visada de informa-14

ção, a imprensa se vê desafiada a angariar credibilidades, por-15

que baseia sua legitimidade não na verdade em si, mas “no fa-16

zer crer que o que é dito é verdadeiro” (CHARAUDEAU, 17

2006b, p. 90). Assim, faz prevalecer um saber calcado na exa-18

tidão de provas que comprovam a veracidade dos fatos. 19

Por sua vez, quando inserido em uma lógica comercial, 20

o jornal se vê intimidado a captar o maior número possível de 21

consumidor das notícias face à concorrência. Assim, diante 22

dessa visada de captação, a imprensa se vê obrigada a desper-23

tar o interesse do público-leitor pela informação que lhe é 24

transmitida, lançando para tanto efeitos de dramatização sobre 25

ela. Desse modo, faz predominar um saber que mobiliza afeti-26

vidades justamente por incorporar um ideal de novidade, ins-27

taurador do diferente e/ou inusitado. 28

Quanto à teoria dos modos de organização do discurso, 29

vale dizer que ela será utilizada para, em dimensão macroes-30

trutural, reconhecermos as etapas de organização dos artigos, 31

predominantemente argumentativos, de Villas-Bôas Corrêa. 32

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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Além disso, objetivamos constatar, no que diz respeito 1

ao modo enunciativo – aquele que trata da maneira como o 2

enunciador projeta-se no enunciado – que o repórter político, 3

ao construir seus textos, assume a posição de sujeito enuncia-4

dor, isto é, do “ser de papel” que deixa marcas no tecido dis-5

cursivo. Essas marcas produzem significações que dependem 6

não só do componente linguístico, mas também do situacional. 7

Aliás, Charaudeau (2006a) elenca, a esse respeito, pro-8

cedimentos enunciativos que contribuem para a criação do 9

ethos. Cita três: os de enunciação elocutiva, alocutiva e delo-10

cutiva. Usando meios de enunciação elocutiva, o sujeito dis-11

cursivo revela-se no interior da cena comunicativa, mostrando 12

seu ponto de vista pessoal. Pelos procedimentos alocutivos, o 13

enunciador põe em cena o interlocutor. A enunciação delocu-14

tiva é expressa por meio de procedimentos que sugerem um 15

apagamento dos interlocutores no ato de linguagem. 16

Quanto à noção de ethos, vale destacar que ele não se 17

constrói naquilo que o orador transmite, mas na imagem que o 18

locutor elabora de si, isto é, no modo como se mostra ao outro. 19

E é essa maneira de dizer, não totalmente voluntária e tampou-20

co necessariamente coincidente com o que o destinatário per-21

cebe, que produz certos efeitos de sentido no enunciado. Preci-22

samente, o ethos tem uma materialidade linguística, já que se 23

concretiza em marcas da enunciação. Para identificá-lo, por-24

tanto, cumpre analisarmos essas marcas na teia discursiva. 25

Para a análise mais específica desses procedimentos 26

enunciativos nos provérbios reenunciados, recorreremos tam-27

bém a Koch (2006), que vai mostrar o movimento intertextual 28

inerente à recriação proverbial, em que uma voz derivada imi-29

ta, deliberadamente, uma voz matriz para captá-la ou subvertê-30

la. 31

Gréssilon e Maingueneau (1984) atestam que esses dois 32

processos – o de captação e o de subversão – são um détour-33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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nement (desvio), sendo o primeiro introduzido com vistas a 1

que se siga a orientação argumentativa da versão original, nu-2

ma espécie de intertextualidade das semelhanças (por paráfra-3

se), e o segundo como reorientação da versão original, numa 4

espécie de intertextualidade das diferenças (por paródia). 5

Metodologicamente, examinamos o funcionamento da 6

reenunciação proverbial em Villas-Bôas Corrêa, sob uma Lin-7

guística da Enunciação (KERBRAT-ORECCHIONI, 1980) 8

em duplo recorte: o da “enunciação ampliada” (condições ex-9

tradiscursivas) e o da “enunciação restrita” (condições intra-10

discursivas). 11

Em termos de enunciação ampliada e restrita, cabe-nos 12

inventariar, pela investigação aos modos de expressão supraci-13

tados, as escolhas linguísticas efetuadas pelo enunciador rela-14

tivamente à reenunciação proverbial. Nosso intuito é verificar 15

se a imagem (ethos) de parcialidade do sujeito está inscrita na 16

linguagem, até mesmo na jornalística, que tende à imparciali-17

dade, segundo os principais manuais de jornalismo publicados 18

no país. Em outros termos, queremos verificar se o status insti-19

tucional do escritor Villas-Bôas Corrêa, como ser do mundo, e 20

a construção verbal desse mesmo enunciador, como ser do 21

discurso (ethos), se recobrem ou se distanciam. 22

Queremos ainda explorar essas duas grandes categorias 23

de ethos atrelando-as, respectivamente, a duas específicas ra-24

mificações, propostas por Patrick Charaudeau (2006a), a sa-25

ber: os ethé da credibilidade, fundados em um discurso da ra-26

zão, e os ethé da identificação, fundados em um discurso do 27

afeto. 28

29

3. Análise de dados 30

Do artigo “Branco da discórdia”, extraímos uma reen-31

unciação por substituição, a saber: “Aliança em que falta voto, 32

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todos berram e todos têm razão”, relativa ao provérbio origi-1

nal “Em casa onde não há pão, todo mundo grita sem razão.” 2

Em termos de enunciação ampliada, destacamos que o 3

propósito desse artigo é o de discutir as fragilidades do PT du-4

rante a campanha presidencial de 1998 e suas consequências 5

para as eleições daquele ano. Dessa discussão, extrai-se a tese 6

de que o PT está em desordem, isto é, de que a frente oposici-7

onista mostra-se irracional nas suas atitudes para ascender à 8

presidência. Essa tese calca-se objetiva e diretamente no epi-9

sódio “da troca do vermelho de 20 anos da tradição petista pe-10

lo branco da rendição”. Nessa direção, instaura-se o efeito de 11

sentido da neutralidade, típico da linguagem jornalística, e um 12

ethos imparcial depreendido das informações críveis apresen-13

tadas acerca da postura do PT naquela campanha de 98. 14

Entretanto, no bojo da argumentação, o texto é perpas-15

sado por uma construção alçada também à condição de tese, 16

que, indiretamente, associa o PT à desordem anunciada. Trata-17

se, justamente, de um provérbio recriado: “Aliança em que fal-18

ta voto, todos berram e todos têm razão”. 19

No âmbito da enunciação restrita, o provérbio original 20

submete-se a várias alterações linguísticas num processo de re-21

textualização. Nesse caso específico, ocorre a subversão por 22

apelo à substituição dos itens lexicais. A nova versão é obtida 23

por meio da troca do termo “casa” pelo termo “aliança”, “pão” 24

por “voto”, “grita” por “berram” e “sem” (ter) por “têm”. São 25

substituições de ordem lexical que alteram o campo semântico 26

da construção original – do doméstico (negativo: “ninguém 27

tem razão”) para o político (afirmativo: “todos têm razão”). 28

Desloca-se assim a visão consensual para olhar inédito sobre o 29

fato relatado, instaurando-se a paródia. 30

Nesse jogo polifônico, inerente à paródia proverbial, o 31

ajuste da voz coletiva ao que o sujeito argumentador tem a di-32

zer dá-se no momento em que o conceito de desentendimento 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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oriundo da miséria, difundido pelo provérbio-fonte, é desloca-1

do para o debate acerca de um fato político específico. Tal fato 2

pode ser colocado nos seguintes termos: a desordem na casa 3

do PT, geradora de uma linha de campanha incoerente com 4

alianças espúrias, resulta em perdas de voto. 5

Os termos “aliança” e “voto”, ao substituírem “casa” e 6

“pão”, instauram o dito em universo distante do doméstico, o 7

da notícia debatida: a desordem no PT. Além disso, o sujeito 8

discursivo deixa marcas de sua autoria ativa e criativa ao 9

propor uma curiosa inversão lexical no final do provérbio-10

derivado (“todos têm razão”). Essa oposição rompe com a 11

ideia que o leitor tem na memória (“sem razão”), o que acaba 12

surpreendendo-o. Esse efeito surpresa captura a atenção do 13

leitor e o encaminha à leitura do texto. O “novo” sentido 14

(oposto) introduz o leitor no universo da notícia debatida que, 15

de certo modo, contesta a verdade absoluta do provérbio. 16

Se, no plano doméstico, proposto pela sabedoria univer-17

sal, a discussão irracional está desautorizada pela voz prover-18

bial, haja vista não reverter o quadro de miséria instalado em 19

casa de família, no campo político ao qual se aplica este pro-20

vérbio, autoriza-se a discussão em prol de um acordo que or-21

ganize a casa do PT, ou não, já que cada um tem também a sua 22

razão, numa espécie de voluntarismo pretensioso. 23

Por meio da reenunciação proverbial examinada, estabe-24

lece-se, portanto, uma clara proposta de reconfiguração da rea-25

lidade. Nesse sentido, apreendemos a finalidade argumentati-26

va do enunciador, qual seja a de recriar o estereótipo em torno 27

do pensamento político, afastando-se do clichê e encerrando o 28

discurso paródico. Em consequência, delineia-se um ethos tra-29

dutor das impressões do sujeito discursivo, isto é, parcial cor-30

respondente, sem sacrifício, é claro, da justiça e da verdade, 31

mas mobilizador de afetividades. 32

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Além disso, a paródia proverbial, como veículo dessa 1

parcialidade, é usada como mecanismo estruturador da argu-2

mentação examinada. A reenunciação proverbial prova ser 3

passível de contrair para si diferentes efeitos argumentativos. 4

Na coluna política focalizada, a paródia proverbial figura co-5

mo proposição, ponto de vista do enunciador em relação a uma 6

asserção sobre o mundo, caso do exemplo analisado; como ar-7

gumento, meio de sustentação da proposição; e como conclu-8

são, o resultado da exposição. 9

Essa incorporação da paródia proverbial à macroestrutu-10

ra textual revela o ajuste da parcialidade ao tecido argumenta-11

tivo, inserida que está na configuração argumentativa do co-12

mentário jornalístico de Villas-Bôas Corrêa. Daí a operaciona-13

lidade desse ethos de não isenção dentro da argumentação es-14

tudada. 15

Prevendo ainda que o objeto discursivo seja construído 16

na intersubjetividade das negociações, buscamos confirmar es-17

tar o sujeito discursivo Villas-Bôas Corrêa inscrito no texto. 18

No produtivo ato de desfazer provérbios, como o que 19

ocorre entre “Quem tem um amigo como esse não precisa de 20

inimigo” e “Quem tem um aliado como o MST não precisa de 21

adversário” – fragmento extraído do artigo “Lula identifica o 22

inimigo” – existe toda uma instabilidade para a criação do ob-23

jeto discursivo (de amigo a aliado, de esse a MST, de inimigo 24

a adversário) e para a consequente identificação da “voz pes-25

soal” do sujeito enunciador. Essa “voz” é identificada através 26

da intenção de se promover um novo processo argumentativo 27

ao marcar o deslize entre uma categorização e outra. 28

A lição proposta pelo provérbio é orientada, através da 29

reenunciação, para um debate mais atual e local. Em termos de 30

enunciação ampliada, vale dizer, a respeito do artigo em tela, 31

que, em uma das campanhas presidenciais do PT, as relações 32

políticas entre petistas e aliados justificaram-se pelo fato de, 33

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sendo cúmplices, defenderem a mesma causa, indicada no in-1

terior do texto: “a reforma agrária”. O PT, na ocasião, uniu-se 2

a aliado de peso. Esse aliado, codificado sob a sigla “MST”, 3

espantaria, entretanto, eleitores, tornando-se, contraditoria-4

mente, adversário, desfavorável ao intento petista de ascender 5

à presidência. 6

O discurso, neste caso, não se atém à representação das 7

“coisas”, mas constantemente problematiza tal representação 8

por meio de estratégias linguísticas, das quais o enunciador 9

lança mão na relação com a sua própria palavra, durante o per-10

curso de categorização que o identifica. Os novos termos da 11

versão derivada reorientam, em dimensão paródica (intertextu-12

alidade das diferenças), a mensagem original. 13

Entretanto, ao mesmo tempo em que o enunciador rein-14

venta – por paródia – esse saber tradicional, exibindo sua satu-15

ração, submete-se a ele, em um movimento bifurcado de atra-16

ção e de repulsa. Sugerindo que os provérbios dão o tom ao 17

seu discurso, o enunciador os mobiliza sob as medidas da pa-18

ráfrase. Há a produção de estabilidades que promovem efeitos 19

de sentido de objetividade. Diante desses efeitos funda-se a 20

voz estratégica da imparcialidade. A fim de o sujeito discursi-21

vo não explicitar seu engajamento, trata de apresentar a infor-22

mação como evidente, isto é, dependente de um sujeito de 23

“saber onisciente”. 24

A informação é citada sob uma fórmula convencional, 25

como Quem X, Y: “Quem tem um aliado como o MST, não 26

necessita de adversário”. Outra fórmula – Onde X, Y – é tam-27

bém identificada na primeira reenunciação examinada: “Alian-28

ça em que falta voto, todos berram e todos têm razão”. Esses 29

modelos formais padrão são tomados como hospedeiros das 30

novas expressões postas em uso. 31

Pela captação aos referidos modelos – já instaurados na 32

memória discursiva do falante – os textos originais parecem 33

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deglutir os textos derivados. O enunciador, em consequência, 1

instaura para si uma máscara que o identifica à voz alheia atrás 2

de si. Nesse sentido, o enunciador estabelece para ele mesmo 3

um ethos de objetividade, uma vez que expõe o dito como se 4

nenhum sujeito estivesse implicado. 5

Quanto ao conteúdo, por sua vez, o efeito de estabilida-6

de aparece, por exemplo, na aproximação do campo semântico 7

do dito original ao do reformulado. Isso se dá por uma mano-8

bra lexical que resguarda a orientação argumentativa do pro-9

vérbio convencional. Esse caso ocorre, por exemplo, na reen-10

unciação já analisada: “Aliança (casa) em que falta voto (pão), 11

todos berram e todos têm razão”. 12

Examinando o espaço enunciativo instaurado por essa 13

reelaboração proverbial quando incorporada à argumentação, 14

vemos que há uma aproximação da voz do sujeito parodiador à 15

vox populi. Ao ocuparem justamente o espaço da “casa” e do 16

“pão”, os termos “aliança” e “voto” se revestem desses senti-17

dos. Assim como o “pão” é vital à sobrevivência física e emo-18

cional da “casa”, o “voto” é imprescindível à vitória do partido 19

/aliança político. 20

Nessa direção, percebemos que o deslocamento da ver-21

são proverbial inédita, relativamente à original, passa a ser mí-22

nimo, o que caracteriza o discurso parafrástico. 23

Do mesmo modo, corrobora esse aspecto a apresentação 24

da reenunciação em tela por intermédio de expressão metalin-25

guística introdutória, caso exemplificado por “velha e sábia 26

sentença”, conforme se transcreve do texto: 27

... Lula deve tomar providências radicais e imediatas... acabando 28 com a balbúrdia insensata que enquadrou sua campanha na velha 29 e sábia sentença: aliança em que falta voto, todos berram e todos 30 têm razão. 31

Ao caracterizar a origem de sua enunciação, o articulista 32

denota estar ciente de que evoca um saber partilhado pelo lei-33

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tor. Além disso, assegura que ele identificará o provérbio ori-1

ginal. Assim, aparenta querer apagar a sua própria voz, exal-2

tando uma característica peculiar aos provérbios, a impessoa-3

lidade. Seria como se a reenunciação proverbial recaísse sobre 4

a coletividade e o argumentador fosse mero espectador das 5

transformações impostas à tradição, distanciando-se da própria 6

autoria da nova versão proverbial. Essa teria uma existência 7

própria e independente do sujeito-enunciador. 8

Da expressão metalinguística introdutória “velha e sábia 9

sentença”, depreendemos indícios que fortalecem a ideia de 10

que há outra voz, anônima e coletiva, que não a do enunciador, 11

a assumir o dizer. 12

O qualificador “velha”, por exemplo, valida o provérbio 13

e sua reenunciação no quadro de uma sabedoria tradicional, 14

identificando-o, pois, a um grupo social fixado em um tempo 15

passado. O adjetivo “sábia”, por sua vez, reconhece ter a reen-16

unciação proverbial e o próprio dito um poder persuasivo que 17

assegura o cumprimento de normas e a concordância em torno 18

de valores sociais. Essa força prescritiva do provérbio é oriun-19

da, justamente, da autoridade de uma voz genérica e, por supo-20

sição, consensual. 21

Assim, o desvio paródico surpreendido no discurso de 22

Villas-Bôas Corrêa cai num desvio mínimo, isto é, na paráfra-23

se, e pode afastar o sentido de autoria. 24

Segundo Charaudeau (2006a), a variabilidade das más-25

caras é possível em consonância com a mudança de situação 26

de troca, que está submetida às restrições do contrato comuni-27

cativo. Ao trocarmos uma máscara pela outra, alteramos nossa 28

imagem diante do outro. Isso porque “a máscara é o que cons-29

titui nossa identidade em relação ao outro” (CHARAUDEAU, 30

2006ª, p. 8). Naquilo que se diz, há sempre um dito e um não 31

dito que também se diz. 32

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É válido, assim, ressaltar que a palavra pronunciada por 1

Villas-Bôas Corrêa, tomada pelo dito e pelo não dito, encerra, 2

a partir do que depreendemos pela investigação aos procedi-3

mentos discursivos empregados de maneira mais ou menos 4

consciente pelo articulista, um ethos em dupla face. Por trás da 5

máscara da neutralidade (do dito), há a máscara da parcialida-6

de (não dito) que, entretanto, também se diz através de meios 7

discursivos implícitos, tais quais descortinamos nas análises 8

elaboradas. Os outros meios, conforme aquilo que atestamos, 9

apresentam-se explícitos na constituição da neutralidade. 10

Esse jogo de mascaramento da parcialidade pela neutra-11

lidade corresponde exatamente ao que propõe o contrato midi-12

ático idealizado. Inscrito no domínio das representações soci-13

ais, esse contrato legitima-se por estar preso à “visada da in-14

formação” – que pressupõe mobilizar procedimentos para a 15

instauração de um discurso de distanciamento – e não à “visa-16

da da captação” – que se ampara em meios discursivos para a 17

garantia de um discurso de engajamento moral (CHARAU-18

DEAU, 2006a). 19

Reafirmamos que são esses procedimentos/meios dis-20

cursivos, resultantes de uma intenção e de um cálculo – nem 21

sempre voluntários – da parte do sujeito enunciador, que aju-22

dam a encenar o ethos. De acordo com Charaudeau (2006a, 23

p.167), o sujeito falante emprega tais procedimentos “de ma-24

neira mais ou menos consciente e são mais ou menos percebi-25

dos e reconstruídos pelo interlocutor e pelo público”. 26

Como já salientamos ao longo de nossa análise, colo-27

camos em evidência modos de expressão que produziram efei-28

tos de ethos em dupla dimensão: o da parcialidade e o da im-29

parcialidade. A fim de aplicar a terminologia usada por Cha-30

raudeau (2006a) para a fabricação do ethos correspondente à 31

imagem de um enunciador parcial, foi necessário acionar mo-32

dalidades de enunciação “elocutiva”. Os meios de enunciação 33

elocutiva “revelam a implicação do orador e descrevem seu 34

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ponto de vista pessoal” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 174). Por 1

sua vez, para a produção do ethos referente à figura imparcial 2

do enunciador, fez-se imperativo colocar em cena modalidades 3

de enunciação “delocutiva”. Os modos de expressão “delocu-4

tiva” “apagam todo traço dos interlocutores, para se apresentar 5

sob a forma impessoal” (CHARAUDEAU, 2006a, p.179). 6

Examinando, no âmbito do discurso argumentativo de 7

Villas-Bôas Corrêa, o instigante e recorrente fenômeno da ree-8

nunciação proverbial, pudemos atestar que a enunciação “de-9

locutiva” foi expressa, explicitamente, pela preservação das 10

sintéticas fórmulas convencionais; pela citação a expressões 11

metalinguísticas introdutórias; pela aproximação do campo 12

semântico da tradição ao da atualidade da notícia comentada; e 13

por sua atuação prescritiva. Esses aspectos representam dife-14

rentes processos de estabilização dos quais emerge o discurso 15

estratégico da objetividade e animam, sem dúvida, a formata-16

ção do discurso parafrástico. 17

Esses traços se prestaram, dessa forma, a apresentar o 18

dito como se ele não fosse, de fato, da alçada do enunciador, 19

dependente apenas da opinião de uma voz terceira, dada por 20

uma verdade já estabelecida. Essa enunciação “delocutiva” 21

permitiu-nos paramentar o enunciador como um analista “so-22

berano”, portador da verdade absoluta e suscetível de construir 23

a figura do sujeito imparcial. 24

Ocorre, entretanto, que, desse mesmo exame às reenun-25

ciações produzidas por Villas-Bôas Corrêa, descortinamos 26

procedimentos linguísticos por meio dos quais o enunciador 27

mostrou-se encarar de modo diferente aquilo que considerou 28

como as meias-verdades da tradição. Sendo assim, apesar da 29

tendência à isenção e à impessoalidade, instaurada pelas mar-30

cas da enunciação delocutiva, verificamos que, de fato, a pers-31

pectiva do eu-enunciador emerge. 32

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Nesse caso, então, no escopo da enunciação elocutiva, 1

flagramos procedimentos para a sua expressão, tais como: ape-2

lo a operações de retextualização para a subversão do dizer 3

tradicional, deslocando-o de seu contexto original e distanci-4

ando-o da visão consensual; emprego das reenunciações como 5

categorias argumentativas, funcionando como recurso de ar-6

gumentação indireta; obsessiva relação com o já-dito, espe-7

lhando sua saturação; problematização das representações para 8

marcar o deslize entre uma categorização e outra e, em conse-9

quência, a imagem do produtor do texto. Esses mecanismos 10

destacados constituem o quadro de instabilidade do qual 11

emerge o discurso da subjetividade e animam, nesse caso, a 12

formatação do discurso paródico. 13

Disso resulta que, por meio da reorientação paródica do 14

conceito consensual, o enunciado passa a constituir-se segun-15

do a imagem de um sujeito parcial. Como resultado da aplica-16

ção desse processo, que, aliás, não se trata de um adorno, mas 17

de princípio mesmo estruturante dos textos avaliados, cons-18

trói-se a figura de um enunciador que não é mais soberano do 19

seu dizer. Escapa-lhe a pretensão de construir para si mesmo a 20

imagem exclusiva do sujeito neutro e imparcial. Mesmo por-21

que essa pretensão é a do indivíduo real, capturado indepen-22

dentemente de sua atividade oratória, e não a do sujeito enun-23

ciador, cujo “ethos está ligado ao exercício da palavra, ao pa-24

pel a que corresponde seu discurso” (MAINGUENEAU, 1996, 25

p. 138). 26

Assim o que Villas-Bôas Corrêa é – jornalista imparcial 27

– fica ocultado pelo que ele diz, como sujeito enunciador, ain-28

da que involuntária e implicitamente. Variados meios linguís-29

ticos foram examinados, em recorte macro e microestrutural, 30

para concluirmos que Villas-Bôas Corrêa apresenta o dito co-31

locando-se em cena, apesar de sua própria recusa. O ethos daí 32

constituído é o da parcialidade. 33

34

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4. Considerações finais 1

Ainda que esta pesquisa relativa ao ethos do sujeito-2

enunciador Villas-Bôas Corrêa não tenha esgotado todos os 3

mecanismos existentes para a sua apreensão, centralizando a 4

análise na reenunciação proverbial, foi possível constatar que 5

o eu-enunciador, dotado de mobilidade, projeta para si, con-6

traditoriamente, o duplo ethos do neutro estratégico e do par-7

cial. São duas faces do ethos que constituem dois elementos 8

essenciais da argumentação inscritos no contrato de comunica-9

ção jornalístico: a razão (credibilidade) e a emoção (dramati-10

zação). 11

Reafirmamos, assim, à luz das considerações acerca do 12

contrato da informação e, a partir do que depreendemos das 13

análises realizadas, a constituição do sujeito Villas-Bôas Cor-14

rêa nem totalmente autônomo nem completamente neutro em 15

relação aos seus discursos e seus sentidos. Move-se, na verda-16

de, entre a autonomia em relação ao convencionalmente parti-17

lhado, conforme as marcas da enunciação “elocutiva” nos dei-18

xam entrever, e a submissão ao discurso do outro, de acordo 19

com o que vislumbramos pelos indícios da enunciação “delo-20

cutiva”. Ambos os movimentos coadunam-se ao jogo proposto 21

pelo contrato comunicativo das mídias: navegar entre o polo 22

da dramatização/captação e o da credibilidade/informação. 23

Chegamos assim ao enunciador Villas-Bôas Corrêa co-24

mo sendo o tal sujeito ativo e criativo, sugerido por Sírio Pos-25

senti (1996), dotado de competência discursiva, conforme pos-26

tulação de Maingueneau (1997). Competência que o faz susce-27

tível de construir para si a figura da “austeridade racionalizan-28

te” e, paralelamente, a da “imaginação dramatizante” (CHA-29

RAUDEAU, 2006b, p. 93) com vistas tanto a parecer crível ao 30

público, quanto a tocá-lo, num jogo entre o que o impressiona 31

e o que o emociona. Enfim, poderíamos afirmar que, de fato, 32

Villas-Bôas Corrêa desenvolve sua imagem identitária sob du-33

as grandes categorias de ethos: o da credibilidade, fundado em 34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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um discurso da razão, e o da identificação, fundado em um 1

discurso do afeto. 2

Enfim, sob o domínio do ethos, entramos no jogo enun-3

ciativo proposto por Villas-Bôas Corrêa com o intuito de deci-4

frá-lo. Em campo, levantamos a ponta do véu e encontramos 5

as máscaras da neutralidade tática e da parcialidade que o re-6

presentaram. As saborosas recriações proverbiais, dentre as 7

quais poderíamos citar ainda: “Uma mão suja ajuda a empor-8

calhar a outra”, “Depois da bonança, mais quatro anos de cas-9

tigo” e “Vaiar e coçar é só começar” nos permitiram surpreen-10

der, mesmo num escritor fortemente empenhado na análise 11

isenta dos fatos, a oscilação entre parcialidades e imparciali-12

dades, entre a razão e a emoção. 13

14

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24

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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1

2

3

4

INTERSEÇÃO ENTRE O DOMÍNIO LITERÁRIO 5

E O DOMÍNIO MIDIÁTICO NA ATUALIDADE 6

Maria Isaura Rodrigues Pinto12 7

8

O desenvolvimento de novas técnicas de comunicação – 9

disseminadas de modo acelerado, desde as últimas décadas do 10

século XIX – promove, no domínio público, uma prodigiosa 11

ampliação do trânsito das imagens e das informações pelo cor-12

po social, dando origem à nova ordem antropológica da socie-13

dade de massa, paralela à expansão urbana. Sobretudo no am-14

biente citadino, o sujeito torna-se, em diferentes escalas, con-15

sumidor de uma torrente de mensagens que, elaboradas indus-16

trialmente, são oferecidas em série por sofisticados meios de 17

reprodução tecnológica. 18

A contemporaneidade apresenta como um de seus traços 19

mais característicos a (oni)presença da comunicação midiática. 20

Vive-se hoje imerso num torvelinho de signos estetizados – 21

simulacros industriais que hiper-realizam o cotidiano. No 22

mundo da simulação, a visualidade, o imediatismo, a interpe-23

netração e a simultaneidade funcionam como vetores técnico-24

culturais que reestruturam a vida diária, alteram mentalidades, 25

comportamentos, percepções e processos cognitivos e artísti-26

cos dos que convivem diariamente com os artefatos técnicos e 27

as linguagens que deles derivam. A população dos grandes 28

centros passa a ter sua percepção moldada com base numa ló-29

12 Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro. [email protected]

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gica cultural urbana, que enfatiza a impressão de um mundo 1

em que as coisas, sob a dinâmica do progresso tecnológico, fo-2

ram desmaterializadas (desrealizadas) ou convertidas em su-3

perfície, uma superfície que pode ser, por exemplo, a da tela 4

do cinema, da televisão, do computador ou do celular. Com a 5

proliferação de simulacros, o sentimento de real e de tempo li-6

near se dissolve num torvelinho de signos. Dessa maneira, 7

principalmente nas grandes cidades, um sentido de proximida-8

de em relação à cultura de massa marca a sensibilidade con-9

temporânea e as condições do relacionamento social cotidiano. 10

Atentando para a questão, Bolívar Torres apresenta na 11

revista Amanhã, do jornal O Globo, do dia 09/07/2013, um ar-12

tigo intitulado “Tudo ao mesmo tempo agora; um fenômeno da 13

era digital”, no qual enfatiza a ideia de que O tempo não 14

avança mais. Só o agora interessa. Esse é o diagnóstico sobre 15

o mundo contemporâneo feito por Douglas Rushkoff, profes-16

sor americano, no seu polêmico "Present shock: When 17

everything happens now" ("Choque do presente: quando tudo 18

acontece agora", em tradução livre), recentemente lançado nos 19

EUA. Para Rushkoff, o “presentismo” é a principal caracterís-20

tica da época atual; essa sensação de viver uma espécie de 21

“instante prolongado” afeta diretamente o modo de ser das 22

pessoas. (TORRES, 2013). 23

No plano artístico, admite-se, cada vez mais, que se 24

pense o fazer literário a partir de seu estreitamento de contato 25

com as linguagens da mídia, em especial a cinematográfica. A 26

questão é que a projeção da cultura de massa na contempora-27

neidade é tão decisiva e atuante que desconsiderá-la, no âmbi-28

to estético, é praticamente impossível. 29

Observa-se que a produção literária dos contemporâ-30

neos, em seu impulso sincrético, típico da época, tem se volta-31

do abertamente para práticas da indústria cultural com o pro-32

pósito de daí extrair modelos para compor sua multiplicidade e 33

revitalizar sua técnica com novas configurações de ordem 34

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formal e temática. Longe de exercitar com exclusividade a re-1

visitação e a reciclagem de seus próprios produtos, a literatura 2

atual se reabastece das energias das formas culturais consagra-3

das pelos meios de comunicação de massa. Esse parece ser ho-4

je um procedimento que muitas obras literárias bem sucedidas 5

não desejam ignorar, mas problematizar. Tal expediente, pon-6

do em xeque os postulados de originalidade e autenticidade 7

atribuídos outrora à “criação” artística, conduz a uma revisão 8

da ideia de arte, enquanto bem individualizado. 9

O que possibilita e gera as condições para que se adote, 10

na literatura, essa atitude versátil que reúne, a par do trabalho 11

com a visualidade, um tipo de pluralismo autorreflexivo apoi-12

ado no exercício da apropriação, é o fato de ocorrer, na era da 13

reprodutibilidade técnica, um cabal afrouxamento do princípio 14

centralizador da unidade e uma consequente rapidez na suces-15

são e diversificação de estilos e padrões. Pode-se dizer, nesse 16

caso, que a obra literária desta época corrobora um movimento 17

maior, que se dá nas várias esferas da cultura, para a multipli-18

cidade hiper-real. 19

Considerando esse contexto, a pesquisa aqui empreen-20

dida, em conformidade com o que se delineia como pensamen-21

to estético do momento, elege como caminho de análise o en-22

foque do considerável grau de interseção entre o domínio lite-23

rário e o domínio midiático na atualidade, visto que esse pare-24

ce ser o ponto que identifica, de modo mais intenso, a produ-25

ção literária de hoje, gerando a necessidade de se examinar, de 26

forma mais detalhada, a maneira como esse processo vem se 27

evidenciando. Busca-se, sobretudo, investigar o que caracteri-28

za o discurso romanesco, em função de suas complexas e vari-29

adas relações com os meios e formas da cultura de massa. 30

Para realizar tal intento, foi escolhida como objeto de 31

exame a escritura de João Gilberto Noll, por se considerar que 32

esse espaço narrativo é um campo especialmente privilegiado 33

para a investigação proposta. O método de compor do autor 34

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capta a velocidade e a efemeridade das imagens que passam 1

fugazes pela tela. A aceleração do tempo, experimentada no 2

cinema, integra o sistema narrativo, cuja linguagem vertigino-3

sa e fragmentada encena, como espetáculo visual, a vida con-4

temporânea em seu movimento frenético. 5

O narrar vertiginoso de Noll deve-se, em grande parte, 6

ao ritmo febril dos passos errantes de seus narradores andari-7

lhos, entregues ao torvelinho tumultuado dos acontecimentos. 8

Impelidos a uma errância visual, eles estão sempre na iminên-9

cia de partir. Essa mobilidade transparece até mesmo no título 10

Hotel Atlântico, dado a um dos romances do escritor, já que o 11

hotel é por natureza um local de passagem que, possuindo co-12

notação oposta à casa, ao lar, é um lugar anônimo; em todos os 13

aspectos (mobiliário funcional, produtos descartáveis), destitu-14

ído de significação pessoal. Nessas andanças, algo está sempre 15

acontecendo com o narrador-personagem, mas logo se percebe 16

que não é bem o que parece ser, é outra coisa que também 17

acaba por não ser exatamente o que aparenta. O compasso alu-18

cinante e dúbio da errância remete o leitor ansioso de uma pá-19

gina a outra e assim sucessivamente, até o final do livro e daí, 20

de novo, ao princípio de um tênue fio narrativo, em que as 21

imagens se sucedem em profusão e o enfoque do existencial se 22

realiza na ótica do instantâneo. Nesse caso, como já ressaltou 23

Silviano Santiago: 24

Olhados no seu próprio presente, isto é, narrados pela pers-25 pectiva do instante em que estão “sendo”, os fatos existenciais 26 não suportam encadeamentos lógicos ou explicativos pedidos de 27 empréstimo às ciências clássicas que estudaram o homem. (...) 28 eles são aglutinados anarquicamente pela cola do acaso (SAN-29 TIAGO, 1989). 30

Entre a primeira cena de Hotel Atlântico (que alude o 31

um assassinato) e a que a segue, por exemplo, abre-se uma es-32

pécie de brecha: o narrador surge, então, aos olhos do leitor, 33

hesitante diante das escadas. Diz a passagem, dando acesso ao 34

que vai em sua mente: Mas recuar me pareceu ali uma covar-35

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dia a mais que eu teria de carregar pela viagem. E então fui 1

em frente (NOLL, 1989, p. 5). Assim, sem explicações prévias 2

ou mesmo alusões anteriores, toma-se conhecimento de que o 3

narrador se encontra na iminência de empreender uma viagem 4

e de que seguir requer coragem. O ato de se pôr em trânsito 5

assinala um duplo início: o da escritura e o da errância. 6

O episódio anteriormente mencionado é um exemplo do 7

aspecto não causal que caracteriza a ação humana encenada na 8

obra. O narrador não toma uma decisão, é arrastado pelas con-9

tingências. Apreende-se de imediato, ao ler a sequência, que 10

na armadilha em que o mundo configurado se transformou, o 11

indivíduo é cada vez mais impelido por forças exteriores, por 12

situações inexoráveis das quais não pode escapar. Em face 13

dessa deriva e incerteza generalizada, o personagem é tomado 14

por uma espécie de embriaguez, de atordoamento. 15

Assim é que uma gargalhada estridente e inesperada, 16

exibida em “close” logo a seguir, introduz a próxima sequên-17

cia, que diz respeito à breve estada do narrador no hotel e ao 18

seu rápido relacionamento sexual com a recepcionista. A am-19

biência contemporânea com sua instabilidade inquietante pa-20

rece estar sendo aí traduzida pela gargalhada sarcástica desse 21

sujeito atordoado para quem os relacionamentos são sempre 22

ocasionais. O efeito de surpresa e de impacto, provocado pelo 23

incidente desconexo, mobiliza a atenção do leitor que busca 24

decodificar a cena perturbadoramente ambígua: 25

Quando me vi diante de uma moça atrás de um balcão, que 26 atendia os hóspedes, não pude conter uma imprevista gargalha-27 da. Desde criança eu não dava uma gargalhada como aquela. A 28 moça pensou com certeza que fosse uma gargalhada de algum 29 parente ou amigo do morto em estado de choque, e com um 30 olhar consternado ela esperou que eu acabasse de gargalhar 31 (NOLL, 1989 b, p. 10). 32

Como se pode constatar, os eventos sucessivos não se 33

vinculam a um ordenamento causal; ocorre, no caso, a justapo-34

sição e imbricamento de cenas, em lugar do encadeamento. As 35

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sequências narrativas se apresentam como um arranjo de ima-1

gens descontínuas sem que, entre elas, haja elos explicativos 2

que as relacionem ou hierarquizem. As situações existenciais 3

tratadas pelo prisma da vertigem encontram correlato numa 4

técnica de montagem disjuntiva que bem se pode definir como 5

uma vertigem poética do discurso. 6

Pode-se, a título de exemplificação, conferir o uso dos 7

manejos textuais aludidos na sequência de abertura do roman-8

ce Hotel Atlântico: 9

Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de 10 Copacabana, quase esquina da Miguel de Lemos. Enquanto su-11 bia ouvi vozes nervosas, choro de alguém. 12

De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, 13 sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMs, e começa-14 ram a descer trazendo um banheirão de carregar cadáver. 15

Lá dentro havia um corpo coberto por um lençol estampado. 16

Fiquei parado num dos degraus, pregado à parede. Uma mu-17 lher com cabelos pintados muitos louros descia a escada choran-18 do. Ela apresentava o tique de repuxar a boca em direção ao olho 19 esquerdo (NOLL, 1989, p. 5). 20

É num súbito lampejo que aparece na “tela” do romance 21

o fluxo de imagens mentais do narrador. A escritura tem como 22

estratégia discursiva o agenciamento de cenas que a memória 23

do personagem libera. Tal remessa visual é elaborada artificio-24

samente e oferecida aos olhos do leitor como uma espécie de 25

“cinema mental”. 26

Na mente do narrador, um eu apresenta – através de 27

olhar que funciona à maneira de uma câmera subjetiva – os 28

episódios dos quais faz parte. As imagens projetadas são ex-29

pedientes verbais que apresentam peculiaridades cinematográ-30

ficas, com ângulos de câmera e tomadas de várias distâncias; 31

constituem-se em manejos escriturais agilizados a partir do 32

princípio da montagem, entendida aqui como justaposição de 33

constituintes textuais, visando à produção de significados. 34

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Mesmo que, a exemplo do que ocorre no cinema, esse olho-1

câmera aponte para o leitor/espectador os percursos a serem 2

seguidos pelo seu olhar, de acordo com as tomadas de visão 3

que efetua em relação ao relato, ainda assim, não submete nem 4

a narrativa nem o olhar do leitor ao seu controle, já que seus 5

movimentos são descentralizadores, deixando transitar o senti-6

do. 7

Valendo-se dos expedientes da segmentação e da visua-8

lidade, peculiares ao fenômeno cinematográfico, o texto simu-9

la um espetáculo fílmico. Assim é que, na sequência inicial do 10

romance, constata-se a utilização do corte e da montagem. Em 11

ritmo apressado, resultante da ausência de elos subordinativos, 12

justapõem-se cenas que, articuladas, constituem a sequência 13

(Em linguagem cinematográfica, planos agrupados constituem 14

uma cena, um conjunto de cenas forma uma sequência). O 15

bloco faz lembrar em seu aspecto visual, uma “folha de mon-16

tagem”, em que os fotogramas estão dispostos lado a lado. 17

Devido à estrutura paratática do texto, é possível descrever a 18

passagem como se fosse o roteiro de um filme, em que se per-19

cebe a enumeração de planos: 20

1. Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de 21 Copacabana, quase esquina da Miguel de Lemos. 22

2. Enquanto subia ouvi vozes nervosas e choro de alguém. 23

3. De repente, apareceram no topo da escada muitas pessoas, 24

4. sobretudo homens com pinta de policias, alguns PMs 25

5. e começaram a descer trazendo um banheirão de carregar 26 cadáver. 27

6. Lá dentro havia um corpo coberto por um lençol estampado. 28

7. Fiquei parado num dos degraus, pregado à parede. 29

8. Uma mulher com cabelos pintados muitos louros descia a 30 escada chorando. 31

9. Ela apresentava o tique de repuxar a boca em direção ao olho 32 esquerdo. 33

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O levantamento do trecho por planos mostra que a nar-1

rativa, buscando captar o movimento de uma câmera, produz 2

sucessivos deslocamentos de foco: primeiramente, vê-se uma 3

figura humana, o narrador, que começa a subir os degraus do 4

hotel. Introduz-se na cena a notação de uma percepção auditi-5

va – ele ouve vozes nervosas e o choro de alguém. Ruídos e 6

imagens se mesclam na preparação do clima de suspense que 7

começa a ser delineado. O que se observa, em seguida, é um 8

grupo de pessoas no topo da escada. O olho seletivo (olho-9

palavra) distingue possíveis policiais e PMs, incidindo, depois 10

sobre o banheirão de carregar cadáver que está sendo conduzi-11

do pelas pessoas que começam a descer os degraus. Focaliza-12

se, então, o lençol estampado que cobre o corpo sem vida que 13

é retirado do hotel. Posteriormente, a “câmera” passa a se ocu-14

par de uma mulher de cabelos muitos louros tingidos que des-15

ce a escada chorando. Um close ressalta o pormenor do repu-16

xar da boca em direção ao olho esquerdo. A função do recurso 17

parece ser a de mostrar, através de ênfase dada aos lábios (que 18

se movem involuntariamente), a tensão que se apossa da mu-19

lher diante do ocorrido. Contudo, em Noll, diferente do que 20

acontece, em geral, nos filmes de suspense, o detalhe que se 21

amplia na “tela” não irá desempenhar papel decisivo em outra 22

sequência, ele é descartado, uma vez que a narrativa passa de 23

um quadro a outro sem manter entre eles uma relação de con-24

tinuidade. 25

A narrativa, na verdade, não conta nada – mostra, suge-26

re. Tal procedimento permite ao leitor/observador o exercício 27

da construção do sentido, o prazer de descobrir. Tudo é móvel 28

no texto: as imagens, o narrador, o sentido... Do atropelo de 29

detalhes, de fragmentos, de imagens que se frequentam, que se 30

revezam e se chocam, fica só a impressão geral, cabendo ao 31

leitor preencher os vazios, completar as lacunas. 32

Por outro lado, como acontece no cinema, o olho-câme-33

ra – que corresponde a um olho-voz, ou melhor, a um olho-34

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máquina que registra a escrita – hipnotiza o leitor. Veem-se, 1

então, os personagens e o contexto da ação através da mente 2

que os capta. Participa-se, na pele do narrador, de aventuras 3

eletrizantes. 4

O jogo de imagens fascinantes, agenciado pela narrati-5

va, dilui a distância entre espetáculo e espectador, ao mesmo 6

tempo em que opera o apagamento da expectativa de verdade. 7

Percebendo a mascarada, o leitor se apropria da liberdade ine-8

rente à farsa e se integra no jogo do falso/verdadeiro da ficção: 9

ele próprio assume a forma múltipla por se desdobrar em ou-10

tros, através da identificação com o narrador. 11

Ainda com relação à sequência mencionada de Hotel 12

Atlântico, observa-se que a justaposição dos lances visuais que 13

a compõem, engendra a imagem integral da chegada do narra-14

dor ao Hotel Atlântico, onde, momentos antes, ocorre o assas-15

sinato de um dos hóspedes. 16

A maneira instigante e ambígua de selecionar e apresen-17

tar as imagens modela com contornos visuais o clima de sus-18

pense. A passagem faz lembrar filmes de mistérios que, dis-19

pondo de um começo enigmático, carregado de tensão, estimu-20

lam o espectador a elaborar conjecturas na tentativa de decifrar 21

o enigma e dar sentido à montagem, carente de esclarecimen-22

tos. 23

A adoção desse procedimento se constitui numa mano-24

bra comercial amplamente utilizada em filmes e narrativas po-25

liciais que têm o propósito de atrair o leitor e mantê-lo conti-26

nuamente atento. Sobre a técnica de elaboração do romance 27

policial, assim se pronuncia Umberto Barbaro: 28

Como o que se deseja é manter o leitor em contínuo 29 suspense, incerto e desejoso de chegar ao fim e a solução do caso 30 que lhe está sendo narrado, começa-se a narrativa pelo ponto 31 culminante, o crime mais ou menos misterioso. As primeiras 32 cenas da história estimulam poderosamente a curiosidade do 33 leitor e lhe propõem uma espécie de charada ou adivinhação, que 34

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irá se desenvolvendo aos poucos, no decorrer das investigações 1 sobre o caso (BARBARO, 1965, p. 103). 2

Com efeito, o discurso ficcional de Noll recebe o influ-3

xo dos filmes de detetive e das narrativas policiais, o que justi-4

fica a recorrência do suspense e a inclusão dos temas de sexo e 5

violência; no entanto, a característica de desvendamento, co-6

mum às tramas detetivescas, é aqui desprezada – o texto se de-7

senrola de modo totalmente anódino, não se encaminhando pa-8

ra um término elucidador. 9

O romance não está vinculado à progressão de uma 10

ação, ao desenvolvimento de uma temática uniforme e defini-11

da. Acontecimentos totalmente dispares e dúbios cortam a nar-12

rativa, esfacelando possíveis nexos de causalidade. Por essa 13

razão a obra prescinde de um começo fixo, de um desfecho ir-14

refutável – aspectos característicos do narrar clássico, que ten-15

de a dispor os fatos de forma precisa e fechada e a direcionar o 16

percurso de leitura, a exemplo do que ocorre na narrativa poli-17

cial. Em Noll, o suspense se mantém disperso, no acúmulo de 18

imagens incongruentes, de fragmentos, de cortes que a narrati-19

va constrói, como que a simular deslocamentos contínuos e 20

imprevisíveis de uma câmera. 21

Contrariando o esquema da narrativa policial, a caracte-22

rística do desvendamento é abolida, sendo, no entanto, a par 23

disso, problematizada a relativização dos papéis vítima/culpa-24

do, o que instaura jogos de ambiguidade. Não é a chave de 25

seus enigmas o que a narrativa fornece ao leitor, mas um con-26

vite a deles participar e, nesse caso, o que estimula a atenção 27

não é o raciocínio lógico aplicado no método de investigação, 28

mas o apreciar as qualidades múltiplas do texto, o seu poder de 29

jogo e margem de indecisão, que faz estalar o paradigma em 30

que parece apoiar-se. 31

Analisando ainda o romance Hotel Atlântico, observa-se 32

que a cena final põe em destaque o caráter flutuante da reali-33

dade configurada, ao sugerir a morte do narrador: 34

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Só me restava respirar, o mais profundamente. 1

E me vi pronto para trazer, aos poucos, todo ar para os 2 pulmões. 3

Nesses segundos em que enchia o pulmão de ar, senti a mão 4 de Sebastião apertar a minha. 5

Sebastião tem força, pensei, e fui soltando o ar, devagar, 6 devagarinho, até o fim (NOLL, 1989, p. 98). 7

O desfecho ambiguamente construído, embora não auto-8

rize uma conclusão, produz um efeito anti-ilusionista, que 9

lembra ao leitor o fato de este estar diante de uma obra de fic-10

ção, de onde se conclui que o eu que apresenta os episódios 11

não passa de uma construção discursiva – uma coleção frag-12

mentada de textos, de imagens, de cenas – no dizer de Roland 13

Barthes, é um “ser de papel” (BARTHES, 1987, p. 59). 14

A escritura de Noll, com esse procedimento afasta-se do 15

paradigma do gênero policial, visto que, obedecendo às con-16

venções desse tipo de produção de estrutura lógica fechada, o 17

personagem-narrador não poderia reconstituir mentalmente a 18

sua própria morte; fato que, no entanto, fica sugerido na obra. 19

Como se pode constatar, o texto em face da moldura do 20

gênero policial, renuncia a um procedimento único, oscila en-21

tre aceitação e transgressão, utiliza técnicas e recursos do sus-22

pense, mas descarta o discurso monológico e racionalista que 23

caracteriza a trama policial, quando abole as leis de causalida-24

de. 25

Em Noll, tem-se, pois, uma práxis reprodutora, replican-26

te, um amálgama de citações, que passa pela colagem de esti-27

los tipificados. Em sua elaboração, cumulam-se, entre outros, 28

dois fatores que de certa forma a constituem e a configuram: 29

por um lado, a manutenção de vínculos com os dispositivos 30

básicos do método de montagem disjuntiva do cinema de van-31

guarda – ainda que subtraída de alguns de seus traços funda-32

mentais, como a sua dimensão revolucionária – por outro, o 33

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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emprego do pastiche de gêneros cinematográficos estratifica-1

dos. Em ambos os casos, a narrativa simula identidades com o 2

anteriormente elaborado, oferecendo ao leitor-espectador, co-3

mo resultado da atividade de produção, o antigo reciclado. Po-4

de-se, pois, constatar, à vista do exposto, que as estratégias de 5

apropriação, possibilitando diferentes soluções estéticas no 6

plano narrativo, tornam a imagem o suporte básico do proces-7

so de elaboração da escritura que, dessa forma, se realiza co-8

mo espetáculo para os olhos. 9

10

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 11

BARBARO, Umberto. Elementos da estética cinematográfica. 12

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. 13

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 14

1987. 15

NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. Rio de Janeiro: Rocco, 16

1989. 17

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ___. Nas 18

malhas da letra. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. 19

TORRES, Bolívar. Tudo ao mesmo tempo agora; um fenôme-20

no da era digital. O Globo. Rio de Janeiro, 9 de julho de 2013. 21

22

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1

2

3

4

SER, TEMPO, ESCRITA: 5

LIMITE E REPRESENTAÇÃO 6

EM A HORA DA ESTRELA E ÁGUA VIVA 7

Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos13 8

9

Antes de mais nada, pinto pintura. E antes 10 de mais nada te escrevo dura escritura. 11

(Clarice Lispector, Água Viva). 12

13

Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não 14 sei ainda o que estou denunciando. 15

(Clarice Lispector, A Hora da Estrela). 16

17

1. Introdução 18

Na primeira metade do século XX, a menina de sete 19

anos remetia vários contos ao jornal da cidade, onde sonhava 20

vê-los publicados. Ela nunca conseguiu. 21

Clarice Lispector, a criança em questão, caso transfor-22

masse esse episódio em narrativa ficcional, provavelmente não 23

o contaria desta forma. O que seduzia Clarice não era contar 24

os fatos, mas as impressões por eles despertadas – e eis aqui o 25

provável motivo da recusa daquelas primeiras histórias, se-26

gundo o seu depoimento (GOTLIB, 1995, p. 85). 27

13 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e professora de Literatura Brasileira na Universidade Estácio de Sá.

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A projeção de uma possível simbiose entre a menina e a 1

mulher escritora revela um desejo de unidade subjetiva, pela 2

palavra imaginada – talvez uma forma de travestir a frágil 3

construção da identidade, frente à consciência da dissolução 4

moderna do eu uno. De qualquer modo, o caminho tecido para 5

falar sobre a vida, desvela a consciência sobre a sua escritura: 6

“meus livros, infelizmente para mim, não são superlotados de 7

fatos, e sim da repercussão dos fatos nos indivíduos” (BORE-8

LLI, apud ROSENBAM, 2002, p. 10). 9

A obra de Clarice Lispector pauta-se justamente nessa 10

recusa de uma concepção mimética que aloca a literatura em 11

um plano de mera figuração da realidade. Sabemos como a 12

percepção da mimese artística como transcendente em relação 13

à referenciação externa foi um caminho aberto pelas propostas 14

estéticas das vanguardas modernistas, em sua defesa da liber-15

dade e experimentação radical do exercício artístico, liberando 16

o autor para a tessitura de um universo criativo inovador. Co-17

mo afirma o eu-lírico de “As lições de R.Q.”, poema de Ma-18

noel de Barros, em clara consonância com esse posicionamen-19

to: 20

Arte não tem pensa: 21 O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê 22 É preciso transver o mundo. 23

A proposta da obra de Clarice Lispector é construir uma 24

narrativa que “transveja” o mundo, em meio à consciência da 25

impossibilidade da apreensão do real em sua totalidade e à 26

busca de uma escritura que, ao romper com a mera figuração, 27

configura-se como busca e indagação da própria inefabilidade. 28

É capaz de conduzir o leitor para além da possibilidade carte-29

siana do “penso, logo existo” ao moldar as possibilidades exis-30

tenciais não na lógica, mas nas sensações: o “sinto, logo exis-31

to” com o qual permeia a narrativa. 32

A apreensão do mundo a partir das impressões – ou se-33

ja, de algo que não é puramente sensível ou inteligível, mas 34

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que emerge no choque desta confluência – liga-se a uma escri-1

tura que recusa, pela clave da ironia, o papel da literatura co-2

mo cópia de referentes externos e rompe com o legado do ro-3

mance social da década de 30: a concepção da literatura como 4

um “retrato”, um instrumento de relato e de denúncia do real. 5

Ligada a essa recusa também está o questionamento da noção 6

de autoria. Ao criar vozes ficcionais que tramam o texto em 7

uma constante indagação das potencialidades e dos limites do 8

ato de narrar, a obra de Clarice converte a narrativa na tentati-9

va de compreender os estilhaços do real, ordenando-os em 10

meio à procura por uma escritura que transcenda a mera figu-11

ração e revele não o indizível, mas a busca por este. 12

A ironia com que Clarice lê a tradição moderna é reve-13

lada principalmente em A Hora da Estrela e em Água Viva. 14

No primeiro, a recusa da plenitude do narrador – enquanto se-15

nhor do saber e da verdade –, e a consequente percepção da 16

labilidade presente no ato de narrar, com as suas fissuras e li-17

mitações, alia-se ao modo de representar a fragmentação da 18

subjetividade, nos jogos áporos de identidade/alteridade entre 19

as faces do autor, do narrador e de Macabéa. Ao mesmo tem-20

po, ao “narrar-se narrando” a história de Macabéa (uma des-21

coberta do outro – pois Macabéa configura-se, também, como 22

descoberta de si – do narrador e de nós – leitores), o clichê do 23

romance social, que prega a necessidade de trabalhar a temáti-24

ca do nordeste com veracidade, também é destruído. 25

Em Água Viva, a impossibilidade do efeito do real é ce-26

lebrada em uma narrativa que implode a noção tradicional de 27

enredo e constrói uma genial reflexão acerca dos limites e das 28

possibilidades do ser e como em A Hora da Estrela imbrica 29

esta questão à da própria construção da narrativa. 30

Ser e escrever são atos conexos e lábeis em Água Viva: 31

precisam ser enfrentados, para que se reúnam os estilhaços das 32

sensações e se componha uma reflexão fragmentada e calei-33

doscópica sobre o ato de viver e de representar. Neste sentido, 34

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os discursos artísticos da pintura, da música e da literatura são 1

confrontados e alocados em uma reflexão que situa a pintura e 2

a literatura no embate entre a abstração e a figuração. Ser, vi-3

ver e representar são instâncias confrontadas e postas em xe-4

que. 5

É no embate entre a subjetividade, a escrita e a repre-6

sentação que emerge o “instante-já”: uma temporalidade sem-7

pre e nunca presente, paradoxo misterioso a cruzar o agora 8

com outras esferas temporais. Ao mesmo tempo, o “instante-9

já” cristaliza e transforma, desencadeia mudanças e catalisa na 10

narrativa a captação dos múltiplos flashes do ser e estar na vi-11

da como fotografias díspares. 12

Tais fotografias muito divergem do “retrato” da literatu-13

ra social da década de 30. 14

A figuração da narrativa enquanto um retrato, a conce-15

ber a fotografia – photos grafia, escrita na luz –, como o ins-16

tante único que não se apaga, como a luz escrita eternamente, 17

como a concepção de um real coerente e uno torna-se obsoleta 18

e sem sentido. 19

A escrita de Clarice aponta a possibilidade de “fotogra-20

far” as sensações e percepções que desencadeiam compreen-21

sões dos traços de um mundo plural, pela consciência da au-22

sência do perene e da presença do múltiplo, da impossibilidade 23

de totalização: o ser em flashes, assumindo-se como peças de 24

um quebra-cabeça que nunca se completará. 25

É sobre a relação que podemos vislumbrar (e deslum-26

brar) na escritura clariceana entre uma escrita da luz que se 27

quer fragmentada como flashes que se organizam como instan-28

tes-já, como busca da corporificação de uma escrita que se 29

quer, além do puramente figurativo, do sujeito uno, do narra-30

dor clássico, que pretendemos refletir neste artigo. 31

32

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2. A dura escritura 1

Logo no início de Água Viva, a voz narrativa clama à re-2

flexão: “o próximo instante é feito por mim? É feito sozinho? 3

Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura 4

de toureiro na arena”. (LISPECTOR, 1998, p. 9). 5

Enfrentar não só ao tempo, mas (pois que intrínseca a 6

ele) à própria escritura, como o touro na arena, e assim, em 7

uma luta de vida e de morte, de beleza e de terror, enfrentar-se 8

a si como aos cacos de um espelho – o espelho do eu, que ja-9

mais será reconstruído: eis o convite desta escrita, construída 10

por e construtora de uma percepção labiríntica do tempo e da 11

identidade. 12

A escritura de Clarice coloca como projeto o impossí-13

vel, a tessitura do indizível, a qual pode ser lida mais do que 14

como utopia, já que esta utopia seria a força motriz do próprio 15

viver. Assim, na narrativa anuncia-se o desejo de captar o ins-16

tante-já, de compreender o “it”, de buscar o choque de forças 17

que conformam a alma humana. 18

Ao rebelar-se contra os rótulos, contra o pré-concebido, 19

sua obra mostra-se em agônico deslize, construída às avessas 20

das (já então) desgastadas estratégias naturalistas e realistas. 21

Clarice cria seus textos a partir de elementos cotidianos. Po-22

rém, contraditoriamente, afasta-os do rótulo do realismo ao 23

mirar a incompletude presente no que poderia ser um “retrato” 24

do real, mas que se insinua como o ponto de partida para a 25

desconstrução do simples relato das ações. Assim, sua “dura 26

escritura” assume-se fragmentária, ao fugir do especular e não 27

revelar o real, mas as impressões dele despertadas, como dito. 28

É esta senda narrativa que se configura com toda a sua força 29

em Água Viva, onde a busca obcecada por captar e contar so-30

bre o instante-já e pela possibilidade de narrar o conhecer-se 31

enquanto “it” mina a possibilidade de estruturação clássica da 32

trama, de articulação regular do enredo. 33

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Em Água Viva a problemática da mimese é retomada, 1

instaurando-se em uma discussão já aberta por Clarice em ou-2

tros textos, os quais sinalizam para o questionamento da narra-3

tiva descritiva, ancorada na concepção de literatura como có-4

pia especular do real. Ao construir uma narrativa que mina a 5

concepção clássica de enredo, a voz narrativa (que constrói um 6

diálogo com um ouvinte imaginário) aparentemente conta o 7

“nada”, já que o texto estrutura-se a partir da busca de um 8

além, de uma transcendência tanto da literatura (confrontada 9

com a impossibilidade semântica), quanto do ser em si. A es-10

critura se constrói como um parto, como uma convulsão a 11

anunciar a “dura escritura” da palavra, do agônico e do subli-12

me contidos no processo de constituição do sujeito, inclusive 13

enquanto autor e leitor. 14

A narradora-personagem revela ser uma pintora que, em 15

meio a um processo de experimentação a si como sujeito (s) e 16

ao mundo, como flashes dispersos que se revelam, coaduna es-17

te processo à passagem do ato de pintar ao de escrever. A re-18

flexão sobre essa mobilidade perpassa toda a narrativa, na ten-19

tativa de compreender a linguagem, em meio ao questiona-20

mento sobre a (im) possibilidade de abstração na escritura, 21

frente ao figurativo e ao fluxo do inconsciente: ao deslocar o 22

que é descrito para o ato de descrever, esta escritura se arvora 23

como pulsão que transcende o racional e o próprio domínio do 24

ato de escrever, se afastando da concepção de Literatura en-25

quanto cópia de um referente externo: 26

E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante 27 do canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei não 28 posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de 29 sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer 30 um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração 31 última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras 32 feitas apenas dos instantes-já (LISPECTOR, 1998, p. 11). 33

Em muitos textos de Clarice, a personagem feminina 34

encontra-se em um espaço interior, onde melancolicamente 35

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vive as possibilidades de uma vida tão limitada quanto este es-1

paço. Em Água Viva, a personagem – voz que narra a partir de 2

uma dicção feminina, também está fisicamente confinada. Po-3

rém, não há explicitamente uma situação de confronto que or-4

ganize o questionamento da tradição patriarcal e do papel fe-5

minino nessa obra. Se em outros textos este espaço se coadu-6

na ao espaço social da mulher, aqui o espaço a partir do qual a 7

narradora conta a história (e do qual raramente fala) está atado 8

ao próprio confinamento do eu perante a vida, isto é, a impos-9

sibilidade da transcendência existencial. 10

Busca-se o que está atrás do atrás do pensamento, do 11

não visível, porém não para desvendar o mistério do que real-12

mente seja a verdade, mas para configurá-la como precarieda-13

de, filtrada por uma linguagem igualmente insuficiente, mas 14

que é a possibilidade de conexão com a realidade. É essa lin-15

guagem oblíqua que permite pensar a si, ao outro e ao mundo 16

e transcendê-la, em busca de uma superação referencial, tal 17

como na pintura abstrata é o fio que costura as reflexões e 18

flashes díspares na escritura. Toda a arte se configuraria ape-19

nas no abandono da figuração absoluta do real; somente em 20

uma busca, a qual é o caminho mais importante desta percep-21

ção da arte que quer alcançar a própria possibilidade de com-22

preensão do cerne da vida: na pintura, a busca pela fixação do 23

incorpóreo, na música, a palavra muda e na literatura, a pala-24

vra intocada, o não livro. (GOTLIB, 1995, p. 411). 25

Na correlação entre as linguagens da pintura e da litera-26

tura há uma via que cinde esta identificação e percebe na pin-27

tura uma maior possibilidade de dar conta da aporia de dizer o 28

“indizível” do que na literatura, que não consegue realizar a 29

sua experiência de ir além da figuração, além de si mesma. O 30

discurso literário existe, assim, como uma performance de 31

busca, sobretudo: de enfrentamento, como o touro na arena, do 32

inefável, diante da visão fragmentada da vida. 33

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A própria constituição da narrativa identifica essa visão 1

caleidoscópica do mundo em sua estrutura. O texto organiza-2

se como uma espécie de colagem de fragmentos, os quais apa-3

recem em outros textos da autora, como A Hora da Estrela. É 4

importante entender que esta estrutura fragmentada não é 5

construção aleatória ou descuidada, mas um esforço intenso de 6

compreender a complexidade da vida e do sujeito em meio ao 7

labirinto do real e da multiplicidade da subjetividade. 8

Mais: esta técnica de bricolage pode mesmo ser pensada 9

enquanto uma estratégia de ampliação das possibilidades de 10

intersecção entre a pintura, a música e a literatura, na medida 11

em que é estabelecida uma correspondência que “despreza an-12

teriores princípios reguladores da obra” (GOTLIB, 1995, p. 13

411). O narrador estabelece um jogo lúdico com a linguagem; 14

o corpo da linguagem vira elemento de experimentação, assu-15

mindo-se transracional, tecendo assim uma ponte para o espa-16

ço da própria inconsciência. A dureza de sua escritura reside 17

na tensão entre a fixação da literatura e a metamorfose do “ins-18

tante-já”; sua dura escritura também é dura como concretude, 19

como difícil construção em tensão com o abstrato, já que 20

quando palavra o “instante-já” torna-se concreto. A arena – 21

palavra- escritura se revela o lugar do embate entre a precarie-22

dade do ser e a fugacidade do instante. Aceitemos o combate. 23

24

3. Narrar, viver: a trama (re) velada 25

O abandono do veio naturalista-realista e a experimen-26

tação da narrativa, presentes na escritura clariciana, não a ori-27

entaram para a redenção à estética de choque vanguardista ou 28

à estética formalista. Na verdade, se tomarmos como base as 29

reflexões de Helena, podemos perceber nas obras de Clarice 30

(bem como nas de Guimarães Rosa e Autran Dourado) a tenta-31

tiva de “fazer contato com um material inconsciente, que per-32

meia a identidade cultural brasileira, mas não se confina nem 33

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no registro do regional, nem do nacional”. (HELENA, 1992, p. 1

1665). 2

Macabéa pode ser percebida como muito mais do que o 3

“retrato” da nordestina brasileira, como uma personagem que 4

retrata e denuncia a situação de um grupo social, de uma regi-5

ão14. A construção da personagem transcende essa leitura por-6

que se anuncia como mais do que um retrato do tipo nordesti-7

no: como uma condição existencial. 8

Junto a Rodrigo S. M., Macabéa luta no jogo da narrati-9

va para ser humana e configura-se como uma alegoria do pró-10

prio ser humano, independente de sexo, etnia, grupo social, na-11

turalidade, nacionalidade. A narrativa de A Hora da Estrela 12

rompe com o legado da narrativa social que impunha a veraci-13

dade como fator primordial na literatura que tematizasse a 14

questão nordestina. 15

Ao romper com este legado, é instaurada no livro a 16

ruptura no lugar-comum dessa temática na tradição literária 17

brasileira. Significa-se o Nordeste como o lugar da 18

desesperança, mas uma desesperança que não se circunscreve 19

ao regional, que faz parte da própria condição humana. À 20

literatura como retrato da realidade, compromissada em 21

descrever fielmente o real, a narrativa contrapõe a inversão 22

deste olhar fotográfico, assumindo-se ironicamente com 23

fotografia, mas que ao invés de retratar fielmente o real, 24

mostra-se fragmentada, como uma leitura em flashes deste 25

real, que nunca o reconstitui, mas que o reelabora em sua 26

multiplicidade, em sua falta. 27

14 Esta perspectiva da literatura como retrato social pode ser lida a partir da propos-ta de Benjamin em “Pequena história da fotografia” (BENJAMIN, 1994, p. 91-107), onde concebe na prática do retrato o próprio desejo da permanência e, podemos acrescentar, da coesão, da ilusão de uma univocidade do real, que não se fragmen-ta, nem se converte em ruína, imobilizado em um instante que, ao contrário do ins-tante já de Água Viva, cristalizar-se-ia.

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A questão da fragmentação, como em Água Viva, 1

reflete-se ainda na estruturação da narrativa. A estrutura 2

circular do livro acompanha a desestruturação do texto, que 3

começa em um quase clímax e encerra-se também desta 4

forma, substituindo o final feliz pela instabilidade, coerente 5

com o delineamento dado por Rodrigo S. M. a sua narrativa. A 6

sua construção enquanto narrador bem como a elaboração 7

ficcional de sua subjetividade instauram-se como estratégias 8

metaficcionais a indagar não só sobre a questão de gênero 9

como sobre a própria construção da máscara ficcional do 10

narrador. 11

Rodrigo S. M. é um narrador que não é mais deus, que 12

só pode divinar os seus personagens como adivinhação, pois 13

perdeu a competência da onisciência, já que percebe até a si 14

próprio como mistério. Rodrigo, que sequer tem o sobrenome 15

revelado, tal a falta de convicção em sua importância enquanto 16

senhor da história, questiona o processo de tessitura do sujeito-17

autor enquanto o ser absoluto, onisciente, controlador, o que se 18

revela na própria estruturação do texto, tornando necessário ler 19

os silêncios, as ausências, os lapsos, as lacunas e a inconclusão 20

na qual (e pela qual) Rodrigo constrói-se. 21

Esse narrador mina as possibilidades de redenção e con-22

trole do ato de narrar, anunciando-se um mistério para si, em 23

um jogo identitário aonde a questão do modo masculino de 24

narrar e do embate entre o autor, o narrador e o personagem 25

chocam-se e revelam-se. Com ironia, despe-se da condição de 26

autor, enquanto criador que plenamente domina o microcosmo 27

ficcional que cria. Tal condição nos leva a outro plano irônico 28

que é o próprio jogo que Clarice estabelece nos meandros da 29

construção de um enfrentamento entre a narrativa e a questão 30

da subjetividade, que se desdobra em múltiplas instâncias des-31

de a configuração múltipla da voz narrativa (que não é Na ver-32

dade Clarice Lispector (LISPECTOR, 1985, p. 27) ou Rodrigo 33

S. M. ou o narrador neutro, mas os três, até a própria constitui-34

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ção de Macabéa como personagem que, ao se descobrir em 1

meio ao choque entre a plenitude e o vazio, desloca a sua iden-2

tificação com o regional, alçando uma significação existencial 3

e tocando em aspectos do inconsciente coletivo. 4

Nesta passagem de personagem nordestina para perso-5

nagem arquetípica, Macabéa passa a identificar não apenas o 6

drama do retirante brasileiro, mas a própria condição humana, 7

a enfrentar a tensão inesgotável entre o vazio e a plenitude, en-8

tre a miséria e a aleluia da vida. Macabéa passa a ser uma face 9

não só de Rodrigo S. M. ou da voz narrativa de Água Viva, a 10

indagar sobre a própria condição humana em meio à agonia e a 11

libertação, mas também de todos nós. 12

Rodrigo S. M. é uma construção que desafia e contraria 13

a noção da morte do autor, repensada por Foucault em O que É 14

um Autor? (2006), questão que se coaduna à própria experiên-15

cia da pós-modernidade: a desagregação do sujeito, o labor de 16

morte, a tentativa falha de classificação de textos e práticas 17

discursivas; a quebra da soberania autoral: “a marca do escri-18

tor não é mais do que a singularidade da sua ausência; é lhe 19

necessário representar o papel do morto no jogo da escrita” 20

(FOUCAULT, 2006, p. 269). 21

Rodrigo é persona que joga com as máscaras do autor e 22

do personagem, jogo anunciado pela própria autora, Clarice. 23

Este narrador, em meio a faíscas, apresenta-se como ruínas, 24

com um potencial significativo que o revela enquanto uma las-25

ca do autor. 26

A opção por Rodrigo S. M. revela a desconstrução do 27

binômio masculino-feminino e desvela o preconceito por trás 28

de clichês relacionados ao feminino, como conferir à narrativa 29

feminina uma emotividade e pieguice que se confrontaria à 30

isenção e distanciamento que seriam próprios a um narrar, por 31

assim, dizer mais que masculino, mas patriarcal – tanto no 32

sentido sociocultural, como pela visão clássica da figura do 33

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autor como presença, como aquele que é capaz, como um pai, 1

de controlar o sentido da obra15. 2

Assim, a narrativa anuncia-se como um baile de másca-3

ras que se sobrepõe e se mesclam, com a manifestação na nar-4

rativa da categoria Clarice Lispector (apresentada como um 5

rótulo, como uma rubrica no início do livro), com a presença 6

adivinhada da própria autora como organizadora da voz ficci-7

onal que narra, com a construção de Rodrigo S. M., que de 8

forma simbiótica conta a si e a Macabéa. 9

Assim, a narrativa convida a uma leitura do masculino e 10

do feminino não como forças opostas ou restritas à condição 11

biológica, mas como potências presentes na condição existen-12

cial de todos os seres humanos, como notou Hélène Cixous: 13

“and whereas the opening to the text tells us if masculine and 14

feminine agree with each other (...) it is because there is femi-15

nine, there is masculine, in the one and in the other”. (CI-16

XOUS, apud HELENA, 1992, p. 1169). 17

Nadia Gotlib, em seu livro Clarice Lispector: uma vida 18

que se conta, percebe em Macabéa traços biográficos da auto-19

ra. Mais precisamente, Gotlib relaciona a construção do sofri-20

mento da personagem – humilde, errante, indecentemente que-21

rendo-se humana-, como uma transfiguração metafórica da 22

cultura hebraica, das origens de Lispector. A fome, a miséria, 23

a impossibilidade de Macabéa, para quem a morte é um mo-24

mento de epifania e o cessar de suas humilhações, são uma 25

denúncia, um grito de rebeldia da autora. Que pese a própria 26

escolha do nome da personagem – visto que os macabeus eram 27

um povo, que segundo o velho testamento, resistiu em sua fé à 28

15 José de Alencar nos dá um exemplo desta noção clássica de autoria ao batizar o prefácio de Sonhos d’Ouro com o título “Benção Paterna”. João Adolfo Hansen nos mostra que esta concepção romântico-positivista de autoria percebida como presen-ça divina nas obras, é balizada pela ideia do autor enquanto presença do artista na obra, que se anula como produto, substituído pela aura da criação como fetichismo da mercadoria. (HANSEN, 1992, p. 19).

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adoração de outros deuses, sendo por isto massacrado, mas 1

ainda assim, nos parece que a escolha de Macabéa remete me-2

nos a um elo familiar que a um arquétipo universal, visto que a 3

condição da miséria é trans-histórica e ubíqua. 4

5

4. Conclusão 6

Clarice propôs outro olhar para a realidade, vendo-a 7

como plural e desconstruindo a oposição entre a subjetividade 8

e o sensível, a essência e a aparência, o masculino e o femini-9

no. Sua escritura mostra as fissuras presentes nesses aparentes 10

binômios e reivindica uma visão de mundo fraturada, o que 11

pode conectar-se ao desinteresse em retratar os fatos e à busca 12

pela reflexão sobre as sensações desencadeadas por estes. É 13

por elas que se pode vislumbrar o mundo, segundo a lógica 14

clariciana, a inverter a proposta cartesiana do cogito, ergo 15

sum. 16

Diante dessa inversão, a experiência de leitura de Água 17

Viva e de A Hora da Estrela enfrenta a suspensão das certezas. 18

O texto clariciano inquire a força mimética presente na abstra-19

ção da pintura que esvaziada da forma figurativa apresenta-se 20

como elemento potencial de descoberta do inefável, desejando 21

uma escritura abstrata e escrevendo na consciência utópica 22

deste desejo, que a leva a migrar em seus sentidos e a inquirir 23

a vida como enigma a conjugar os verbos existir, sentir e es-24

crever. A escritura se constrói como fonte de semeadura de um 25

labirinto de dúvidas, condenadas ao silêncio. 26

Nela, tempo, ser e representação mesclam-se em torno 27

da textualização do “instante-já”. Como ele, a linguagem na 28

obra carrega-se de contradições, potências, limites: ela é, 29

mesmo quando carregada de impossíveis; está muito além de 30

sua condição comunicativa e abarca o silêncio, compreendida 31

em meio à tensão entre o vazio e o pleno e a consciência de 32

que a plenitude só é possível na morte (como para Macabéa), 33

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pois a condição necessária para ser, para estar vivo, é a incom-1

pletude. 2

O eu só é plausível enquanto múltipla fratura, enquanto 3

flashes a se multiplicar e ordenar em instantes-já, frente ao 4

nomadismo da consciência. De forma ambígua, a fragmenta-5

ção da subjetividade permitirá, mediante o choque do encontro 6

consigo, a abertura de brechas para o encontro com o outro. 7

Daí a escassez da relação com o mundo, em Rodrigo e Maca-8

béa, e a premência de escrever ao outro como via do encontro 9

consigo, da voz narrativa de Água Viva, onde a estratégia de 10

relação com o mundo é tecida a partir de um eu que também é 11

um tu e um nós: “esse eu que é vós, pois não aguento ser ape-12

nas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto 13

que sou”. (LISPECTOR, 1985) 14

A escrita de Lispector tenta corporificar a palavra que 15

escapa, em meio à lucidez da precariedade da linguagem e da 16

impossível tradução do real. Fica a celebração da palavra co-17

mo faca de dois gumes– obstáculo e possibilidade-, a escrever 18

o “instante-já”, em temporalidade vária: flashes do ser, do 19

tempo e do escrever, em confluência na arena de Clarice. 20

21

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 22

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Cia. das Le-23

tras, 1992. 24

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São 25

Paulo: Brasiliense, 1994. 26

FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e 27

cinema. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universi-28

tária, 2006. 29

GOTLIB, Nadia. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: 30

Ática, 1995. 31

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HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luís (Org.). 1

Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 2

HELENA, Lucia. A problematização da narrativa em Clarice 3

Lispector. Hispania, n. 75, December, 1992. 4

______. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Cla-5

rice Lispector. Niterói: Eduff: 1997. 6

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 7

1998. 8

______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Record, 1984. 9

ROSENBAUM, Yudith. Clarice Lispector. São Paulo: Publi-10

folha, 2002. 11

12

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1

2

3

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA 4

EM GRACILIANO RAMOS16 5

Maria Betânia Almeida Pereira17 6

7

O artigo pretende abordar como o escritor Graciliano 8

Ramos elabora a sua experiência de infância conjugando me-9

mória e ficção. A análise parte dos três primeiros contos de In-10

fância: “Nuvens”, “Manhã” e “Verão” – são títulos sugestivos 11

para telas de pintura, podendo-se entrever um paralelo com es-12

te campo artístico na tessitura narrativa. O entrecruzamento 13

entre as vivências do autor e a carga ficcional se materializa 14

numa estética que prioriza uma forma poética na composição 15

dos contos. 16

Primeiramente, os trinta e nove contos, que compõem 17

Infância, foram publicados em jornais, revistas e suplementos 18

do Rio de Janeiro e Lisboa, entre os anos de 1938 a 1944, 19

aproximadamente. Em 1945, a editora José Olympio publica a 20

obra completa. No seu formato final, o livro representa a in-21

fância de um menino nordestino, num meio severo, revivendo 22

fatos, pessoas e acontecimentos que influíram na sua educação 23

e formação. A infância em cena desmistifica a ideia do lugar 24

paradisíaco, ameno e feliz. Ao contrário, o menino protagonis-25

16 Este artigo faz parte de uma das discussões do segundo capítulo da minha tese de doutorado, intitulada Com os olhos da infância: memória e ficção em Graciliano Ramos e José Lins do Rego, defendida na UFF em fevereiro de 2012.

17 Laboratório de Novas Tecnologias de Ensino da Universidade Federal Fluminense (Lante/UFF) e Universidade Estácio de Sá (UNESA).

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ta habita o locus horrendus, um universo hostil e opressor em 1

que são raros os espaços de prazer e de encanto. 2

Como o escritor elabora a sua experiência de infância 3

conjugando memória e ficção? Ao compor o percurso dessa 4

experiência infantil, o processo de construção das memórias se 5

dá de forma bastante peculiar, nos três primeiros contos que 6

compõem a obra – “Nuvens”; “Manhã” e “Verão”. São títulos 7

sugestivos para telas de pintura e, não sem razão, pode-se en-8

trever um paralelo com este campo artístico na tessitura narra-9

tiva, pois os fragmentos das memórias vêm em blocos, como 10

peças que se complementam, se interpenetram, se justapõem 11

formando pequenos quadros a partir das imagens trazidas pelo 12

narrador: objetos, partes dos corpos das pessoas, acessórios, 13

lugares, espaços, ambientes. O entrecruzamento entre as vi-14

vências do autor e a carga ficcional se materializa numa estéti-15

ca que prioriza, sobretudo, uma forma poética na composição 16

dos contos. 17

“Nuvens” é o primeiro conto de Infância que, na carta 18

de 1936, aparece sob o título de “Sombras”. O escritor desde o 19

seu projeto inicial teve o intuito de ser este o primeiro conto. 20

Dentre os trinta e nove presentes, é o maior, abre o livro e reú-21

ne, de forma fragmentada, os temas presentes nos demais epi-22

sódios. Encontram-se nesta narrativa os prenúncios de eventos 23

e figuras mais marcantes que serão retomados e aprofundados: 24

a escola primária do interior com os métodos arcaicos e opres-25

sores simbolizados nas longas barbas do Barão de Macaúbas; 26

as figuras ameaçadoras do pai e da mãe; os personagens que 27

sofrem humilhações; a linguagem popular, expressa em versos 28

e a reflexão do adulto em relação aos fatos narrados. Pode-se 29

dizer que é um conto-repertório, por condensar, de certo mo-30

do, os temas posteriormente retomados e ampliados. 31

Vale discutir a troca dos vocábulos “sombras” por “nu-32

vens”. Nuvem, do latim nube, além de configurar um conjunto 33

visível de partículas de água ou de gelo em suspensão na at-34

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mosfera, pode indicar turvação de vista, transitória ou definiti-1

va; vista enevoada. Ao passo que “sombras”, do latim umba, 2

quer dizer espaço sem luz; zona privada de luz em virtude de 3

interposição de um corpo opaco; ausência de luz solar; escuri-4

dão, trevas (Cf. Dicionário Aurélio). A escolha de nuvens em 5

detrimento de sombras parece remeter a materialização da di-6

ficuldade de rememoração do passado, pois se não há como 7

recuperar todos os fatos, ficarão sempre “os pontos nebulo-8

sos”, difíceis de serem aclarados. A polissemia que o vocábulo 9

evoca entra em consonância com o artifício ficcional: as nu-10

vens no espaço do céu formam figuras e o admirador delas tem 11

total liberdade para criar, através da imaginação, formatos di-12

versificados. Em outra dimensão, da mesma família etimológi-13

ca, do latim nubes,-is: névoa, nevoeiro, nebuloso; vocábulos 14

que conotam uma ausência de claridade, o que é pouco percep-15

tível; obscuro. “Nuvens”, espaço intermediário entre a luz e a 16

sombra, pode melhor simbolizar o processo de construção das 17

memórias através da ficção. Em termos de uma construção 18

poética da memória é o título que melhor complementa a du-19

pla manhã-verão, tanto pelo valor sonoro – a recorrência das 20

consoantes nasais, juntamente com as vogais nasaladas – 21

quanto pelo valor semântico. 22

O início de “Nuvens” traz para o leitor a imagem de um 23

objeto perdido no tempo: “A primeira coisa que guardei na 24

memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, es-25

condido atrás da porta” (RAMOS, 1977, p. 9). O vaso de lou-26

ça, como utensílio utilitário, serve para guardar as pitombas e 27

também carrega um valor simbólico de guardião das lembran-28

ças à medida que faz despertar a memória para o universo a 29

ser desvendado. Curioso atentar para a maneira em que se en-30

contra: escondido, atrás da porta. As reminiscências, por sua 31

vez, estão escondidas, é necessário um considerável esforço 32

para fazê-las vir à tona. Neste sentido, a imagem do vaso entra 33

como teia que tece os eventos rememorados, mas tal imagem 34

pode ser também sonho, ideia vaga, corroborando ainda mais 35

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para a inexatidão e a organização dos fragmentos que vão sur-1

gindo de maneira a confirmar o caráter ficcional do texto. Para 2

resgatar o passado sob forma de imagens, é preciso dar valor 3

ao inútil, é preciso poder sonhar (BERGSON, apud RI-4

COEUR, 2007, p. 67). É neste espaço do sonho que a ficção se 5

faz presente e o modo de narrar torna-se mais valioso do que 6

fixar lembranças: “Assim, não conservo a lembrança de uma 7

alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indi-8

víduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma” (Ibid., p. 9). 9

Na reconstrução do tempo passado, o narrador se utiliza 10

do testemunho de terceiros à sua volta. Desta maneira, à me-11

mória autobiográfica se junta a memória coletiva. Halbwachs 12

afirma que um homem, para evocar seu próprio passado, pre-13

cisará também das lembranças dos outros, pois 14

ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que 15 são fixados pela sociedade. Mais ainda, o funcionamento da 16 memória individual não é possível sem esses instrumentos que 17 são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou e que 18 emprestou de seu meio (HALBWACHS, 1990, p. 54). 19

O menino vai tomando conhecimento das palavras e das 20

ideias do universo adulto: “Inculcaram-me nesse tempo a no-21

ção de pitombas – e as pitombas me serviram para designar 22

todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a gene-23

ralização era um erro, e isto me perturbou” (RAMOS, 1977, p. 24

9). A fruta de forma arredondada recebe a alcunha de pitom-25

bas, no entanto a outra fruta de similar geometria das pitombas 26

não pode ter igual denominação. Espanto do menino e reflexão 27

do adulto: pitombas não podem designar todas as frutas de 28

formato esférico; pitombas são diferentes de laranjas, de ma-29

neira que toda generalização incorre em erro – pondera o nar-30

rador. A diferenciação entre objetos e coisas pode levar a uma 31

nomeação mais precisa; é necessário o devido cuidado para 32

dar nome às coisas e saber distingui-las exige critérios. É uma 33

lição difícil para uma criança, mas o adulto escritor soube pro-34

cessá-la: a seleção criteriosa das palavras bem como o poder 35

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que o significado confere ao significante encerra um jogo am-1

bíguo nas relações sociais, nas quais a norma pode ser perigo-2

sa e confusa. 3

Necessário lidar bem com o uso das palavras, elas têm 4

força e carregam sutilezas. O menino percebeu o valor que as 5

palavras possuem. O adulto escritor vai esmerar-se em seu tra-6

balho, dedicando-se à escolha dos vocábulos precisos e na ta-7

refa primorosa para obtenção do texto enxuto, conciso, “sem 8

gorduras”. O mínimo necessário para uma máxima expressivi-9

dade é o lema que acompanha a escrita de Ramos e define uma 10

das marcas do seu estilo. Carpeaux (1943, p. 243) em seu arti-11

go “Visão de Graciliano Ramos”, diz ser necessário definir es-12

tilo que, no caso de Ramos, implica: escolha de palavras, esco-13

lha de construções, escolha de ritmos dos fatos, escolha dos 14

próprios fatos para conseguir uma composição perfeita, perfei-15

tamente pessoal. Ainda sobre estas mesmas bases de reflexão, 16

Alfredo Bosi (2003, p. 28) fala sobre um regime de consciente 17

economia no texto e acrescenta que o escritor não esperdiça 18

símbolos por acaso, importa para ele, a escolha do signo moti-19

vado. É interessante atentar que a escola é um desses signos 20

motivados, é o ambiente em que se pronunciam as palavras 21

causadoras de admiração e assombro na mente da criança. 22

Desde a correção de pitombas por laranjas até a entonação da 23

cartilha do ABC, o espaço escolar coloca em evidência os 24

“sons estranhos”, formados por “letras, sílabas, palavras miste-25

riosas”. Um narrador perspicaz passeia neste local e analisa a 26

precariedade do ensino em escolas primárias do interior: a sala 27

é improvisada e até serve de pouso para a família de Gracilia-28

no na viagem entre Alagoas e o sertão de Pernambuco; muitos 29

estudantes ocupam bancos sem encosto; paredes sujas e um 30

método de alfabetização retrógrado, sinalizado pela “toada 31

única”, coordenada pelo professor, “um velho de barbas lon-32

gas”. Enquanto signo motivador, a escola retornará em outros 33

contos de Infância, sob diferentes matizes, mas enfatizando a 34

imagem de um espaço enfadonho, pouco afeito à criação. 35

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A primeira imagem da sala de aula ficou registrada na 1

mente do menino. No texto, a forma de composição desta 2

imagem focaliza em planos superpostos o olhar da criança e o 3

olhar do adulto. Em raras passagens, a visão infantil de encan-4

to sugere um índice de positividade em meio a uma realidade 5

dura. Sensível às mudanças de comportamento dos humanos e 6

incapaz de compreender a complexidade da natureza das coi-7

sas e das pessoas, a criança revela a sua fraqueza, falta de co-8

nhecimento e impotência diante do “mundo complicado”. 9

Como entender a maravilha do açude, com sua água infinita 10

onde patos e marrecos nadavam, se anteriormente, o maior vo-11

lume de água conhecido se concentrava num pote? O encan-12

tamento do menino mostra também que a forma de percepção 13

da criança é muito diferente da do adulto, ela vê aquilo que o 14

adulto não vê mais – causam surpresa aos olhos do menino as 15

pequenas “criaturas capazes de viver no líquido”. Da comple-16

xidade dos humanos à natureza das coisas, a incapacidade in-17

fantil demonstra que não é possível a compreensão de tudo. 18

Objetos, palavras, coisas e pessoas “nos escapam, nos questio-19

nam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis” 20

(GAGNEBIN, 2005, p. 180). No entanto, é esta fragilidade do 21

olhar da criança a sua fortaleza diante da complexidade do 22

mundo, é o que opera a poeticidade no texto. 23

Subsequente à magnitude do açude, aparece a vazante 24

das abóboras. O pai do menino despreza o conselho de Amaro 25

e o resultado foi uma “praga” de aboboreiras. No universo dos 26

adultos, tal ato se originou do descuido e do mau planejamento 27

das atividades agrícolas, causando uma “safra inútil”. Porém, 28

no mundo infantil, a ótica é do deleite, pois as abóboras junta-29

vam-se em blocos formando “bela calçada movediça” onde “a 30

gente andava na roça pisando em cima delas”. Embora o texto 31

dê abertura a estes pequenos instantes de satisfação, o que pre-32

domina é a lucidez e a seriedade de um narrador que avalia o 33

passado sob a luz do presente. 34

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No caso específico de “Nuvens”, a exigência maior es-1

taria na experiência estética de transformar em palavras o pro-2

cesso memorialístico. O quebrado e o remendado poderão ser 3

reconstruídos? Será possível reunir os “cacos”? No intuito de 4

dar forma à matéria narrada, o narrador se esforça para dar se-5

quência de continuidade, porém as lembranças se impõem em 6

sua descontinuidade e o texto é alinhavado conforme o fluxo 7

da memória. É um processo complexo de apresentação tornar 8

em escrita essas imagens. A primeira sensação de abertura da 9

memória se deve à frágil imagem do vaso – um objeto que 10

aparentemente para o leitor pode parecer insignificante, como 11

primeira lembrança num livro de memórias; para o narrador 12

toma proporções valorosas, na medida em que ratifica o po-13

tencial estético do texto e sinaliza outro encaminhamento para 14

a reconstituição do passado: importa a impressão primeira que 15

ficou das coisas, objetos e pessoas. É este o instante da per-16

cepção do olhar do menino, mas que recebe a lente do olhar do 17

adulto. Lente multifocal, de múltiplas visões, não construindo 18

o texto puramente centralizado num eu que tudo vê e tudo sa-19

be. Porém, a lente seleciona o foco, reduzindo, ampliando, 20

transformando, recriando o que achar conveniente. Daí, emer-21

ge um modo peculiar de escrita. 22

Semelhante ao trabalho do pintor cubista que decompõe 23

as figuras geométricas para, ao final, dar valor ao desenho 24

multifacetado, o narrador se dedica na composição daquilo que 25

quer “pintar” de forma a valorizar, por exemplo, um acessório 26

de vestimenta como item capaz de identificar particularidades 27

de um personagem. Assim, fugindo da caracterização tradicio-28

nal do estilo descritivo, o enfoque dado às “peças” configura-29

se num processo metonímico que não invalida a natureza da-30

quilo que está sendo representado. Pelo contrário, enriquece a 31

composição multiplicando as formas de se ver e apreender a 32

natureza das coisas e das pessoas. Atendendo ao teor fragmen-33

tário da memória, simbolicamente denominada de “nuvens es-34

pessas”, a segunda abertura dá passagem aos rostos e as pala-35

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vras insensatas. Aos poucos os rostos tomam feição e vêm à 1

luz: “Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro 2

Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto; Sinhá Le-3

opoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue” 4

(RAMOS, 1977, p. 11-12). Outros personagens vão tomando 5

vulto ao longo do texto, seguindo a mesma linha de estrutura 6

descritiva: pedaços, pequenas partes em planos superpostos, 7

indicando um esquema curioso de montagem. Inicialmente 8

apresentados de forma fragmentária, os personagens desapare-9

cem, reaparecem, tornam a desaparecer. É tarefa do leitor jun-10

tar as partes para a composição do todo, pois é pouco a pouco 11

que os personagens são apresentados. Do casal, pode-se de-12

preender que a mulher é vaidosa, sabe vestir-se, adequando 13

bem os acessórios ao corpo: chita vermelha e brincos; ao passo 14

que o seu companheiro, o vaqueiro Amaro, parece destoar da 15

vivacidade da esposa, é triste e o seu gibão roto assinala a 16

classe social a que pertence. José Baia por sua vez, destacado 17

por seus “dentes alvos” é figura ativa, engraçada, uma espécie 18

de histrião, gozador e sorridente. 19

Não difere do esquema de montagem a representação 20

dos pais, mas se alonga para o terreno interior à medida que 21

sentimentos são revelados – medo, pavor, violência – e asse-22

guram a dureza do quadro pintado. Pai e mãe figuram como 23

personagens “grandes, temerosos, incógnitos” e ressurgem no 24

tecido da memória através de fragmentos dos corpos e porme-25

norização das mãos: “Revejo pedaços deles, rugas, olhos rai-26

vosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, fi-27

nas e leves, transparentes” (Ibid., p. 14). A diferenciação entre 28

as duas personalidades está no trato destas mãos, no contato 29

delas com o menino, em seu cotidiano: 30

Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as 31 finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas – 32 e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abran-33 davam em certos momentos. O vozeirão que as comandava per-34 dia a aspereza... (RAMOS, 1977, p. 14-15) 35

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Pela forma em que são detalhadas as mãos, pai e mãe 1

representam personalidades complexas, amedrontadoras e pas-2

síveis de mudança, pois são figuras ambíguas. Ora as mãos fi-3

nas se molhavam de lágrimas, denotando fragilidade de emo-4

ções, ora as mãos rudes amenizavam na rudeza. Estas oscila-5

ções comportamentais dos pais geravam desconfortos na cri-6

ança, levando-a a insegurança e a um estado de desconfiança. 7

Símbolo do poder dos pais, as mãos viabilizam o processo de 8

recriação destas entidades e revelam ambivalência de senti-9

mentos. 10

Contudo, a dor, o sofrimento e a violência deixam mar-11

cas mais visíveis e dolorosas: bolos, chicotadas, cocorotes, pu-12

xões de orelhas. “Acostumaram-me a isto muito cedo” revela a 13

voz de um narrador adulto, que vai registrando as cenas vio-14

lentas. Estas permeiam o conto do início ao fim: passa pelo 15

episódio da brincadeira malsucedida e até certo ponto sádica 16

de José Baía com a criança, cuja consequência é gravada no 17

corpo físico – um calombo grosso na testa; inclui também o 18

dedo inchado da mãe na tentativa desastrosa de fechar a porta 19

num “redemoinho brabo” e finaliza com a história do menino 20

que, penalizado por agressões, se vinga e põe fogo no rabo do 21

gato. Qual é o sentido destas cenas ao longo do primeiro conto 22

de Infância? O que elas trazem de valor para a compreensão 23

da obra e, por conseguinte, da escrita de Graciliano? 24

Exceção à parte, o dedo inchado da mãe foi uma fatali-25

dade da natureza imprevisível – o que sinaliza o quanto o ser 26

humano é vulnerável às intempéries do ambiente físico e de 27

como as transformações de ordem físico-natural podem inter-28

ferir na vida das pessoas de forma negativa e violenta. Tais 29

transformações será um dos tons que permeiam Vida Secas. A 30

mudança na paisagem, imprimindo como destaque a seca, pre-31

figura como um dos obstáculos na saga dos retirantes. Os dois 32

outros casos (a brincadeira sádica de José Baía com o menino 33

e a cena de maldade em que o menino põe fogo no rabo do ga-34

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to) parecem similares se considerarmos o desejo de vingança 1

latente naquele que, se sentindo agredido, revida para o ata-2

que. Em José Baía este fator parece remeter a um nível mais 3

inconsciente pela forma como o narrador contextualiza a brin-4

cadeira e apresenta a personagem. A quadra popular cantada 5

pelo amigo implicitamente diz muito sobre o sujeito que a 6

pronuncia: 7

Eu nasci de sete meses, 8 Fui criado sem mamar. 9 Bebi leite de cem vacas 10 Na porteira do curral 11

(RAMOS, 1977, p. 12). 12

Apesar de ser um sujeito risonho, com “exclamações, 13

onomatopeias e gargalhadas sonoras” (Ibid., p. 12), José Baía 14

revelava-se uma pessoa violenta e talvez o seu passado expli-15

que os seus gestos, quem sabe fora uma criança abandonada, 16

sem o convívio dos pais, tal como Paulo Honório, personagem 17

de São Bernardo? A verdade é que desde o conto inicial de In-18

fância, Graciliano Ramos demonstra certa compaixão com as 19

crianças abandonadas, vistas à margem de um contexto socio-20

econômico. São seres inferiorizados, muitas vezes tratados 21

como pequenos animais e portanto “invisíveis” num sistema 22

de organização cuja estrutura familiar ou inexiste ou desconsi-23

dera o respeito às diferenças. A criança do relato oral também 24

está na mesma linha dos gêneros de ofensas e de crueldade. 25

Vale a pena analisar como o autor constrói este relato. 26

A historieta popular, resgatada na voz de D. Maria, ao 27

passar para o papel segue uma composição adequada confor-28

me a perícia meticulosa de um revisor de texto. Quase simul-29

taneamente ocorrem os dois momentos – o de puxar da memó-30

ria a narrativa e o de trabalhar as palavras, ajustando-as da me-31

lhor forma. O narrador não dispensa o cuidado de adequação 32

vocabular da linguagem oral para o registro escrito, o passo a 33

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passo da sutileza é demonstrado para o leitor. Depois de algu-1

mas modificações, o resultado final: 2

Levante, seu Papa-hóstia, 3 Dos braços de Folgazona, 4 Venha ver o papa-rato 5 Com um tributo no rabo. 6

(Ibid., p. 19) 7

A quadra popular alude à história de um menino pobre 8

acolhido por um padre amancebado. No intuito de resguardar 9

o segredo de sua ação, o vigário dizia-se chamar “Papa-hós-10

tia”, “Folgazona” a amante, o gato “papa-rato” e o fogo era 11

“tributo”. Sentindo-se livres de qualquer mal, o padre e a 12

amante começaram a judiar da criança. Esta, por sua vez, se 13

vingou, pôs fogo no rabo do gato e fugiu, gritando os versos. 14

Aos olhos do menino Graciliano, a ação do garoto chega 15

a ser “notável”. Ele teve coragem de rivalizar com o poder dos 16

adultos, o que causa admiração e há uma identificação entre 17

ambos: eram vítimas de maus-tratos. No entanto, a semelhança 18

está apenas nesta área, pois confessa no tempo presente o nar-19

rador maduro: “Infelizmente não tenho jeito para violência” 20

(Ibid., p. 12). O foco muda para o tempo passado: “Encolhido 21

e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a co-22

ragem do menino vingativo”. Nesta passagem, é perceptível 23

um jogo de espelhos em que há, implicitamente, o desloca-24

mento de sujeitos presente nos adjetivos “encolhido e silencio-25

so”, que qualificam o menino e o adulto. A mudança dos tem-26

pos verbais provoca o distanciamento em relação ao tempo 27

passado, mas simultaneamente o aproxima do presente, suge-28

rindo um ato de autoconhecimento, como que predizendo um 29

lema de cunho psicológico – aquele menino que fui está dentro 30

do homem que sou. E ambos não toleram atos de violência e 31

injustiças. 32

Desta maneira, os fragmentos dos versos da cantiga po-33

pular emolduram o final da narrativa, como uma peça-chave 34

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tanto para entender o sistema de montagem do conto quanto 1

para decifrar os pensamentos e valores do autor de Caetés. No 2

último parágrafo, o sujeito que fala é o escritor e sua voz ava-3

lia, emite juízos de valor a respeito destes sujeitos “corajosos”: 4

“De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos 5

dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são es-6

pantosos, mas é necessário vê-los a distância, modificados” 7

(Ibid., p. 19). O esquecido pode ser o recalcado, e uma vez 8

lembrado, não deixa de ser vestígio, sinal que foi retomado pa-9

ra dar sentido à reflexão do passado no presente. O adulto ao 10

retomar o fato passado, reflete, critica e pondera as ações do 11

menino e, sob o prisma do presente, acaba revelando uma li-12

ção de aprendizagem: a coragem destemida do menino e os 13

disfarces forjados para ocultar verdades são atitudes para se 14

ver em letras de forma, na ficção: “Mais tarde, entrando na vi-15

da, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se 16

grava no papel e os gatos se transformam em papa-ratos” 17

(Ibid., p. 19). 18

A respeito do fecho deste capítulo, Ieda Lebensztayn 19

(2010) observa que a reflexão do adulto opera sobre a necessi-20

dade de se relativizar o valor do heroísmo, numa sugestão de 21

que as ações enérgicas, vingativas, de grande ostentação, mui-22

tas vezes escondem maior covardia. Ampliando o campo de 23

discussão para a dimensão do trabalho do escritor, a pesquisa-24

dora diz que 25

esse pensamento, de implicações políticas e educacionais, cor-26 responde à sua ética como artista da palavra escrita para a qual 27 importa construir imagens literárias que expressem a revolta 28 contra as injustiças 29

e, consciente do jogo ambíguo entre palavras e imagens, “a va-30

lentia de Graciliano foi, tendo experienciado injustiças desde 31

criança, combatê-las por meio da dedicação aos romances” 32

(LEBENSZTAYN, 2010, p. 329). 33

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Da forma como é constituído, “Nuvens” aponta para um 1

processo metamemorialístico, pois coloca em reflexão o ato de 2

composição das memórias, presente nos contos “Manhã” e 3

“Verão”, que formam, junto com o primeiro conto, uma trilo-4

gia para a compreensão da tessitura das memórias de Infância, 5

à medida que vão, num crescente, retomando fatos, persona-6

gens, ambientes. Não de maneira despropositada, o escritor 7

deu tais títulos, sugerindo uma atmosfera propícia para a aber-8

tura maior dos eventos passados, via ficção. Resgatar o passa-9

do e procurar reconstituí-lo não é tarefa fácil, pois, como afir-10

ma Bergson, 11

essencialmente virtual, o passado só pode ser apreendido por nós 12 como passado quando seguimos e adotamos o movimento pelo 13 qual ele desabrocha em imagens presentes, que emergem das 14 trevas para a claridade (Apud RICOEUR, 2007, p. 68). 15

As “sombras” iniciais, substituídas por uma manhã de 16

inverno, sinalizam uma abertura, que facilita a rememoração 17

narrativa, e permite antever uma análise cuidadosa do processo 18

de escrita, revelando tanto o estilo do escritor como indícios da 19

construção de sua subjetividade. Em “Manhã”, o movimento 20

narrativo flui para a interioridade do narrador e deixa vir à to-21

na imagens antagônicas – o quadro de horror da seca e a natu-22

reza exuberante. Esta, descrita e inscrita na alma: “o açude 23

apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estrei-24

tos mudados em riachos” (RAMOS, 1977, p. 20). 25

Não à toa, o estado de imersão, “Mergulhei numa cum-26

prida manhã de inverno” (Ibid., p. 20), é sinalizado pela esco-27

lha do verbo mergulhar – do latim merguliare, introduzir na 28

água ou em outro líquido; submergir; afundar. Em outra acep-29

ção, fazer entranhar-se, fazer penetrar; cravar profundamente. 30

Para o memorialista, entranhar-se nas águas profundas do pas-31

sado requer uma atenção redobrada, pois os fatos passados po-32

dem ser retomados e redimensionados no âmbito da criação. 33

Vale para o escritor as estratégias utilizadas no entrecruzamen-34

to entre memória e imaginação. E, neste pêndulo, o alinhavar 35

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da linguagem cosendo, articulando e criando, como bem suge-1

re a passagem: “Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, 2

pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, ar-3

ticulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente” (Ibid., 4

p. 20). Assim, na criação do pequeno mundo incongruente, 5

percebe-se um duplo movimento: o estado de imersão nos 6

emaranhados caminhos da memória e o estado de emersão ba-7

lizado pelo potencial de atribuir nuances criativas ao resgatado 8

ou ao não resgatado, muitas vezes lacunar. Neste dinamismo, 9

recortes da paisagem nordestina, fragmentos de pessoas, de 10

“self” atuam como móbiles da memória que, agrupados ou 11

deslocados, corroboram para a elaboração de um autorretrato 12

em mosaico. Explicaremos melhor. 13

Na manhã de inverno o narrador apresenta as pequenas 14

partes de sua linhagem hereditária. Não há referência à des-15

cendência de um clã senhorial, muitas vezes tematizada por 16

grande parte dos escritores modernistas, como é o caso de José 17

Lins do Rego, neto de donos de engenho. Os pedaços dos vi-18

ventes idosos (avós, bisavós) são referenciados como elos ne-19

cessários para se entender as relações familiares, sociais, mas 20

aparecem sobretudo como integrantes desse “eu” que aos pou-21

cos se manifesta. 22

A fotografia desbotada do avô paterno, recolhida do baú 23

das memórias, é imagem refletora e catalisadora de ações e re-24

flexões no panorama de construção da autoimagem do neto es-25

critor. Como num jogo de espelhos, o neto se vê na figura do 26

avô, “trabalhador caprichoso e honesto”. A criança curiosa ob-27

serva o idoso em suas atividades desinteressadas – o cantar e o 28

tecer peneiras –; admira as qualidades dispensadas na execu-29

ção destas tarefas e presta muita atenção nestas habilidades do 30

homem artista. Mas cabe ao escritor adulto se autoanalisar a 31

partir do primeiro modelo que lhe imprimiu a “vocação absur-32

da para as coisas inúteis” (Ibid., p. 21). Cláudio Leitão (2003, 33

p. 46) afirma que esse avô preenche o lugar de destaque do 34

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primeiro autor lido pelo menino ainda sem o domínio da leitu-1

ra gráfica. Sendo assim, 2

não será mais possível ao menino ler o mundo sem lançar mão 3 dos atributos desse avô. Paciência, atenção concentrada e obsti-4 nação são alguns traços perceptíveis no fazedor de urupemas, 5 primeiro autor e primeiro livros lidos não por simples hereditari-6 edade, mas por afinidade e escolha (LEITÃO, 2003, p. 46). 7

Por afinidade e pela escolha responsável em realizar um 8

trabalho caprichoso e honesto, avô e neto se identificam. Para 9

o escritor Graciliano Ramos falar de si é falar do seu fazer lite-10

rário. Neste sentido, como um dos elos integrantes do próprio 11

retrato de si, a figura do avô paterno colabora neste esboço cu-12

jo espelhamento reflete o ponto de interseção, revelado nos 13

ofícios ligados à arte. Como observa Wander Melo Miranda: 14

Trançar urupemas e traçar letras no papel são atividades aná-15 logas. Em ambas prevalece o fazer, a lida artesanal, paciente e 16 obsessiva, seja com fibras, seja com as palavras; ambas são tidas 17 pelos executores como atividades ‘desinteressadas”, alheias à 18 função utilitária que porventura possam ter; e, finalmente, ambas 19 não visam à reiteração de modelos anteriores, mas são o meio 20 particular de expressão de uma necessidade imperiosa, que é 21 também e sobretudo necessidade de depuração dos recursos esti-22 lísticos (MIRANDA, 1992, p. 46). 23

Em oposição ao avô paterno, aparece o materno que é 24

apresentado como “bárbaro”; um sujeito que “não desperdiça-25

va tempo em cantiga nem se fatigava em miuçalhas”. No en-26

tanto, esse ente idoso, ao contrário do outro, possuía o senso 27

prático diante da vida no sertão, era um grande observador e 28

autodidata. A sua voz oscilava, ora lenta e nasalada, devido ao 29

tabaco, ora se insinuava de maneira doce. Essa forma de falar 30

gerava “impressão de que a fala ranzinza nos acariciava e re-31

preendia”. Não há dúvidas de que este parente deixou, com es-32

sa dicção particular, sua marca na escrita singular de Gracilia-33

no Ramos. Especificamente a obra Infância destoa daquilo que 34

se espera de um livro de memórias, 35

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distancia-se do tom nostálgico ou condescendente no tocante à 1 rememoração do passado, optando por uma visão irônica, muitas 2 vezes sarcástica, em relação às injustiças sofridas, e impiedosa 3 diante do absurdo das situações representadas (MIRANDA, 4 2004, p. 52). 5

O livro também se distancia do teor narcisista, tão co-6

mum neste gênero literário. A constituição da(s) subjetivida-7

de(s) do autor se dá sempre em constante intercâmbio de expe-8

riência com (o)s outro(s). “Trata-se de uma consciência de vi-9

ver numa dualidade ou pluralidade de níveis, não totalmente 10

compatíveis, mas que não podem ser reduzidos à unidade” 11

(TAYLOR, 2005, p. 615). Daí não se pode dizer que existe um 12

sujeito empírico que se crê uno e inteiro; a montagem do au-13

torretrato em mosaico prefigura os desdobramentos, projeções 14

e disjunções dos “eus” em cena no corpo do texto. Sendo as-15

sim, outros retratos entram na composição desta montagem. 16

No conto “Verão”, os “ligeiros traços” de um “verão in-17

completo” são trançados de maneira a considerar o modo de 18

escrever do autor que se exime da responsabilidade de pintar 19

um verão nordestino com elementos indispensáveis à descri-20

ção. Para o escritor parece mais sensato criar uma realidade, 21

imaginar fatos do que entrar no lugar comum dos disfarces re-22

tóricos de composição descritiva do quadro típico do verão 23

nordestino, em que necessariamente os ramos aparecem secos 24

e as cacimbas vazias. 25

É interessante perceber que, nesta ótica, o narrador se 26

afasta de certa tendência regionalista do romance de trinta e o 27

adjetivo incompleto – que carrega um índice de negatividade, 28

por significar imperfeito, não acabado, truncado, mutilado – 29

atende a outro paradigma. Se, de um lado, o verão nordestino é 30

incompleto; por outro, o quadro se completa a partir do mo-31

mento em que se conjuga o material imprescindível à escrita 32

de Graciliano: o ser humano e suas complexidades. No caso 33

específico do conto, a exigência da escrita reside em observar, 34

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com minúcias, as modificações das pessoas mais próximas do 1

menino, em decorrência da seca. 2

A adjetivação é um dos recursos utilizados do início ao 3

fim da narrativa e serve como base semântica no registro das 4

alterações psíquicas e físicas do menino e das pessoas. De pa-5

chorrentas para a condição de “tanajuras, zonzas”. Da alegria 6

aparente, das longas conversas nos alpendres, as visitas, os ri-7

sos sonoros, os negócios lentos, para a tristeza representada na 8

figura dos “rostos sombrios e rumores abafados”. 9

Com os sentidos aguçados, sensíveis às transformações 10

na natureza das coisas e das pessoas, o menino capta os mo-11

mentos. Não compreende atitudes incomuns e suspeita do ina-12

bitual. Encher cestos de mandacaru era uma atividade que des-13

toava dos serviços comuns da fazenda; o pai abatido, com ges-14

to lento, em desânimo profundo não era a imagem que vigora-15

va em seu cotidiano. Habituado a vê-lo gritar, dar ordens e tra-16

balhar duro na piçarra e na argila, como compreender que esta 17

força fora sucumbida por uma outra maior? 18

Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente pode-19 roso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente 20 o abandonasse, deixando-o fraco e normal, num gibão roto sobre 21 a camisa curta (RAMOS, 1977, p. 29). 22

É no panorama da seca que a fixação do nome do diabo 23

toma vulto, num clima de enorme calor, nuvens de poeira e 24

falta de água. A plasticidade das cenas descritas traz também o 25

movimento do imaginário popular para compor as recordações 26

do menino: o diabo no meio do redemoinho, montado em um 27

cavalo de asas. Contudo, o inferno não é pura abstração. O su-28

plício da criança com sede e sem água para beber acarreta con-29

sequências terríveis, um verdadeiro “inferno” para o menino: 30

“a boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimadu-31

ras interiores” (Ibid., p. 27). O painel sensorial tecido pelo nar-32

rador confirma que as mudanças climáticas provocam muito 33

mais que transformações externas; as pessoas são abaladas por 34

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dentro. A criança sente na carne as dores provocadas pela seca 1

e a lembrança deste momento confirma que a dor não foi es-2

quecida. 3

As estruturas sociais e econômicas do lugar são abala-4

das diante do poder devastador da seca. Tudo isso é percebido 5

pelo narrador através de uma visão criteriosa que, para além da 6

problemática da seca, busca analisar as bases de organização 7

social. Apesar do esmorecimento da família e dos trabalhado-8

res agregados, todos se movem para achar soluções. Em meio 9

à falta de recursos da região, o nordestino migra no intuito de 10

lutar pela sobrevivência. Viver em condições adversas implica 11

sempre um eterno recomeçar. É o caso da família do menino, 12

que vislumbra a possibilidade de um recomeço através da mu-13

dança de cidade e, consequentemente, de status social. 14

Do interior do sertão nordestino para uma vila, o pai 15

deixa de ser fazendeiro e passa a ser comerciante. A criança 16

não é indiferente às tristezas à sua volta: “O desalento e a tris-17

teza abalaram-me”. Tais mudanças abalavam também o tem-18

peramento do pai e “explicavam a sisudez, o desgosto habitu-19

al, as rugas, as explosões de pragas e de injúrias” (Ibid., p. 30). 20

No entanto, conforme pondera o narrador adulto, esta explica-21

ção só é compreensível tempos depois. Em meio aos infortú-22

nios da natureza, arruinado pela epizootia, lutando com muito 23

custo para vencer, obediente ao chefe político, perseguindo os 24

devedores enfim, sendo massacrado pelo sistema opressor, era 25

até “natural” que o pai agisse daquela maneira: “Hoje acho na-26

turais as violências que o cegavam” (Ibid., p. 30). Como no 27

conto anterior, a narrativa termina com o olhar judicioso do 28

narrador adulto que se fixa na avaliação das reações da figura 29

paterna, sinalizando, de certa maneira que o problema é de po-30

der, de hierarquia, sob as bases de classes sociais. A criança 31

repara nas diferenças de poder entre as pessoas: a posição hie-32

rárquica e as vestimentas denotam o lugar social. 33

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Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas 1 redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai 2 tinha diversos enfeites; no de Amaro havia numerosos buracos e 3 remendos (Ibid., p. 29). 4

Enquanto os caboclos trabalhavam duro, prendendo 5

arame farpado nas estacas, o pai vigiava, dava ordens, repre-6

endia a todos, insatisfeito com o resultado. 7

Neste conto, o narrador prefigura o complexo sistema 8

da engrenagem social, dando indícios dos obstáculos que em-9

perram o desenvolvimento econômico no meio rural: as condi-10

ções precárias da agricultura, inexistência de indústrias, explo-11

ração do trabalhador rural etc. Na zona urbana, os problemas 12

persistem com outras feições – o comerciante tem que ser 13

obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco. Tanto em um 14

meio quanto em outro, a presença de uma desordem de gover-15

nança, a falta de uma administração pública que seja capaz de 16

conduzir o bem comum levam a crer nos (des)caminhos do 17

progresso no país. 18

A narrativa evoca uma análise detida das pessoas, numa 19

ótica pluridimensional, pois em alguns momentos é o menino 20

que observa, dá o seu depoimento, joga com suas emoções; em 21

outros momentos é o olhar do homem maduro que recolhe o 22

passado remoto e dá novo sentido, remodulando a experiência 23

vivida, transformando-a com uma roupagem transfigurada. 24

Desta maneira, o passado só faz sentido se for reestruturado, 25

refletido criticamente no presente da escrita. Na enunciação, 26

revestem de sentido ações incompreendidas, as pessoas tomam 27

feições mais humanas e há uma abertura maior para a projeção 28

de um mundo mais justo em outro tempo. É como se este su-29

jeito que analisa e reflete criticamente dissesse, “tudo poderia 30

ter sido diferente se...” 31

“Verão” sugere pelo título o lugar do sol, se for compa-32

rado com “Nuvens” e “Manhã”. Não deixa de escapar uma 33

certa luminosidade no que se refere à abertura gradual dos ca-34

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minhos da memória, uma vez que o conto evidencia um dis-1

curso em continuidade em relação à análise criteriosa das pes-2

soas e suas relações com o narrador-menino. Neste conto, o 3

cenário revelador não se resume na paisagem desértica do ve-4

rão nordestino, pelo contrário, a revelação maior são as pesso-5

as, seus comportamentos e mudanças no campo social. “Ve-6

rão” é um conto significativo neste sentido, pois se apresenta 7

como uma espécie de prenúncio, em linguagem poética, ser-8

viria como leixa-pren, pois nos contos posteriores será reto-9

mada a discussão da complexidade do ser humano e suas rela-10

ções sociais. Não é de forma gratuita que dos trinta e nove 11

contos presentes em Infância, vinte trazem como títulos figu-12

ras marcantes do universo do menino. A criação deste pequeno 13

mundo incongruente é formada por frações de “eus”, imagens, 14

objetos, pedaços de coisas, lugares e, principalmente, por pes-15

soas. 16

17

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15

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

150

1

2

3

4

ELISA LUCINDA E GRAÇA LIMA: 5

A QUALIFICAÇÃO IMPLÍCITA 6

NA SEMIOSE VERBO-VISUAL 7

DE LIVROS ILUSTRADOS PARA CRIANÇAS 8

Beatriz dos Santos Feres18 9

10

1. Primeiras considerações 11

“Qualificar” é, em síntese, um processo descritivo cujo 12

objetivo precípuo é fazer-identificar entes de acordo com um 13

ponto de vista. A “qualificação” é essencial à referenciação, 14

seja na nomeação “categorizante” dos seres, seja em sua sin-15

gularização por meio de termos adjetivos, ou ainda na apresen-16

tação de caraterísticas por meio de imagens codificadas e de 17

metáforas. Se, conforme Charaudeau (1992), descrever é uma 18

operação que consiste, basicamente, em nomear, localizar-19

situar e qualificar os seres, é preciso considerar que essa ope-20

ração é sempre situada em função de uma tomada de posição 21

(não é possível apontar e descrever seres em sua totalidade, 22

mas tão-somente na perspectiva assumida pelo descritor). Em 23

outras palavras, não se deve ignorar que o processo descritivo 24

atende às formulações e coerções advindas do conhecimento 25

sociocultural acionado pelo produtor em função da troca co-26

municativa de que participa. Disso se conclui que não há des-27

crições ou referências a priori, mas construtos localizados, que 28

instauram objetos de discurso interpretáveis em relação ao 29

contexto e aos saberes partilhados por um grupo social. 30

18 Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Assim, na “qualificação”, elegem-se características atri-1

buíveis aos seres que retratam o mundo perspectivamente, de 2

acordo com um modo de olhar, através de um filtro biológi-3

co/perceptivo e/ou cultural/interpretativo: “Para que um ser 4

exista, é preciso que ele receba uma identidade. Essa identida-5

de é o resultado da maneira como o homem percebe e constrói 6

o mundo” (CHARAUDEAU, 1992, p. 325) e “como as propri-7

edades são o resultado da maneira como o homem percebe e 8

constrói a significação do mundo, elas testemunham igualmen-9

te o modo de visão que o homem-sujeito falante projeta sobre 10

as qualidades dos seres” (Op. cit., p. 326). Com o termo qualifi-11

cação implícita pretende-se aqui fazer referência à qualifica-12

ção inferível na relação com o discurso e com a situacionali-13

dade comunicativa, subjacente a elementos textuais, sejam eles 14

as expressões nominais, as ilustrações codificadas e as metá-15

foras verbais e visuais. 16

As expressões nominais a que a qualificação implícita 17

está ligada limitam-se àquelas cujo sentido subjacente é de cu-18

nho avaliativo (singularizador ou especificador), ou seja, não 19

se trata de um sentido de língua que as expressões podem 20

igualmente significar, mas tão-somente uma característica su-21

bentendida, seja porque as expressões contêm um caráter re-22

presentacional que, ao serem inseridas num contexto, salienta 23

um sentido indireto, mais ou menos convencional, seja porque 24

esse elemento é potencialmente um produtor de efeitos (patê-25

micos, humorísticos, estigmatizantes). 26

Considera-se uma ilustração codificada o signo imagé-27

tico que alça o status de símbolo, em virtude de seu reconhe-28

cimento como representante de uma parcela da realidade mai-29

or do que sua referência direta a um elemento isolado do mun-30

do. Torna-se codificada a ilustração que, por convenção, pode 31

ser interpretada através do imaginário sociodiscursivo em que 32

se insere, com um sentido categorial predominante a que se 33

submete a aparência individualista. A imagem de uma prince-34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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sa, por exemplo, tipificada com traços delicados e vestido es-1

voaçante, é símbolo de uma frágil feminilidade. 2

Orientando-se a investigação pela qualificação implíci-3

ta, não se pode ignorar o valor das metáforas verbais e visuais, 4

que guardam importante capacidade de exacerbação de quali-5

dades. Ao aproximarem elementos de diferentes domínios em 6

função de uma qualidade que lhes é comum – em outras pala-7

vras, por meio da iconicidade –, as expressões metafóricas co-8

locam em evidência sentidos normalmente insignificáveis, mas 9

possivelmente apresentáveis e inferíveis, como os relativos às 10

sensações e aos sentimentos. A metáfora, muito mais do que 11

ornamento do discurso, pode ser entendida como a qualifica-12

ção operada por um elemento concreto (que pode ser represen-13

tado por um substantivo; às vezes, por um adjetivo; ou por 14

uma imagem) o qual se constitui como traço qualificador que 15

se pretende salientar; a metáfora pode ser vista como o autên-16

tico mecanismo de qualificação implícita. 17

Nesta análise, a qualificação implícita é tomada como 18

efeito indelével de sentido em virtude de seu caráter sub-19

reptício, cuja apreensão ocorre por meio de uma interpretação 20

fortemente orientada pelo imaginário sociodiscursivo e, mui-21

tas vezes, também pelo sentimento suscitado pelas estratégias 22

enunciativas. Efeito, por se considerar que a exacerbação de 23

qualidades se dá por meio de estratégias operadas na e pela 24

enunciação; indelével, por se acreditar que um efeito de caráter 25

epistêmico ou patêmico, quando efetivamente “aderido” pelo 26

sujeito-interpretante, atua em um espaço inferencial, quase 27

sempre inconsciente e indizível, amoldando sua visão de mun-28

do de acordo com uma orientação dada pelo grupo em que se 29

insere. Considerado o público-alvo dos livros ilustrados, o ca-30

ráter indelével – apenas latente – aqui atribuído ao efeito de 31

sentido provocado pela qualificação implícita se explica pela 32

(muito) possível aderência aos valores e crenças processados 33

por esse mecanismo: pelo lado da criança, por sua abertura ao 34

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novo; pelo lado do mediador-adulto, pelo papel formador atre-1

lado ao livro como objeto de cultura. 2

3

2. Discurso formativo no livro ilustrado: implicações peda-4

gógicas e ideológicas 5

Como gênero, que se estabiliza minimamente em forma 6

e propósito comunicativo, pode-se afirmar que o livro ilustra-7

do para crianças apresenta semiose verbo-visual, caráter esté-8

tico e, frequentemente, forma narrativa com duplo endereça-9

mento (a criança e o adulto, este quase sempre mediador da 10

leitura) e manifesta graus de complexidade constitutiva, seja 11

pelo tipo de integração entre a linguagem verbal e a visual, se-12

ja pela presença ou não de um narrador que “preenche lacu-13

nas” de mais difícil solução por parte das crianças, não acos-14

tumadas com a lógica narrativa, ou com o léxico variado. 15

Tida como um leitor em início de formação como ser 16

social, a criança, aos poucos, passa a compreender os rituais de 17

seu grupo, suas crenças e seus valores, conta com a colabora-18

ção do adulto, mediador de leitura, que costuma não só orien-19

tar a interpretação do texto, como também servir de modelo 20

para a posterior leitura autônoma da criança, seja esmerando-21

se no padrão prosódico e rítmico da oralização da parte verbal 22

do texto, seja intervindo no preenchimento de alguma lacuna 23

informacional ou inferencial que ele percebe ter sido deixada 24

vazia pela criança. Ela costuma se fixar em cada detalhe do 25

texto, sem hierarquizar elementos ou significados; já o adulto, 26

habituado com a estrutura textual, costuma se concentrar no 27

eixo evolutivo da trama, e/ou do tema. O movimento de ante-28

cipação e de focalização que apenas o leitor mais experiente 29

domina e que é fundamental para a criação de expectativas du-30

rante a leitura é, em geral, orientado pelo adulto e, dessa ma-31

neira, ensina-se um padrão interpretativo culturalmente atesta-32

do. Em vez de sugerir o público leitor em função de rótulos ou 33

de sua apresentação, o próprio livro prescreve o nível de leitu-34

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ra, mais previsível, “pré-digerido”, com pouca dedução ou 1

qualquer demanda de contribuição por parte do leitor, ou me-2

nos previsível, exigindo mais interação e dedução, mais inves-3

timento do leitor para as inferências exigidas pelo texto – co-4

mo qualquer livro pode fazer. Assim, a criança representa o 5

público-alvo do livro ilustrado, mas o adulto é também um lei-6

tor/mediador em potencial a quem se deve dirigir o mercado 7

editorial envolvido com esse gênero. 8

Apesar do duplo endereçamento latente, ou talvez por 9

causa dele, o livro ilustrado e os outros gêneros componentes 10

da dita “literatura infantil” tendem a ser tomados, atualmente, 11

simplesmente como livros, como produtos culturais que têm 12

como público alvo também as crianças. Sua categorização, 13

como já se afirmou aqui, incide, sobretudo, em aspectos orga-14

nizacionais, e não em uma estética e uma complexidade estru-15

tural “subvalorizadas”. Comprova-se esse fato com a análise 16

da qualificação que o gênero opera, procedimento complexo e 17

orientador de aspectos culturais. Aqui, a análise da qualifica-18

ção está fundamentada por noções trazidas pela Teoria Semio-19

linguística de Análise do Discurso, postulada por Patrick Cha-20

raudeau (1992; 2008). 21

Charaudeau (2008) trata o ato de linguagem como uma 22

encenação. Nela atuam parceiros cujo papel social é mutua-23

mente reconhecido e que interagem de acordo com as expecta-24

tivas que fazem criar a respeito de si e, simultaneamente, que 25

criam a respeito do outro em função do ambiente enunciativo e 26

de seu contexto histórico-cultural, num jogo entre o explícito e 27

o implícito. Há um contrato entre os parceiros que regula as 28

representações linguageiras de acordo com as práticas sociais 29

que conhecem. O sujeito comunicante concebe, organiza e en-30

cena suas intenções de acordo com estratégias que visam a 31

produzir determinados efeitos sobre o sujeito interpretante e 32

levá-lo a se identificar com o sujeito destinatário ideal (algo 33

como o “leitor-modelo”) construído por ele. Vários procedi-34

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mentos são utilizados; dentre eles, alguns que oscilam entre a 1

fabricação de uma imagem do real como lugar de uma verdade 2

exterior ao sujeito e que teria força de lei e a fabricação de 3

uma imagem de ficção como lugar da identificação do sujeito 4

com um outro, constituindo um lugar de projeção de seu ima-5

ginário. 6

Descrever é um desses procedimentos discursivos. Em-7

bora distinto, se combina com narrar e argumentar: “consiste 8

em ver o mundo com um ‘olhar parado’ que faz existir os se-9

res ao nomeá-los, localizá-los e atribuir-lhes qualidades que os 10

singularizam” (CHARAUDEAU, 2008, p. 111). Ao narrar, é 11

preciso que as ações se relacionem às identidades e qualifica-12

ções de seus actantes, por isso, afirma-se que o modo descriti-13

vo não só serve ao narrativo, mas dá-lhe sentido. Já a relação 14

entre descrever e argumentar é mais simbiótica: enquanto des-15

crever toma emprestado operações de ordem lógica à atividade 16

de argumentar a fim de melhor classificar os seres, argumentar 17

diz respeito a seres identificados e qualificados no ato de des-18

crever. 19

Os livros selecionados para análise compõem uma trilo-20

gia na qual algumas características se repetem: fazem parte da 21

Coleção Amigo Oculto (Editora Record) e centram-se na per-22

sonificação de conceitos (poesia, liberdade e alegria), concre-23

tizada em uma textualização versificada de autoria de Elisa 24

Lucinda e ilustrada “poeticamente” por Graça Lima. A inter-25

pelação ao “leitor-modelo” por parte da personagem narradora 26

tem o intuito de produzir um efeito de “brincadeira de adivi-27

nhação”, característica da coleção de que os livros participam. 28

As ilustrações apresentam imagens codificadas (BARTHES, 29

1990) e metáforas visuais e se configuram de maneira com-30

plementar em relação à parte verbal dos textos (NIKOLAJE-31

VA; SCOTT, 2011; HUNT, 2010). 32

Considera-se que, na encenação descritiva, o sujeito fa-33

lante se torna um descritor, que pode intervir de maneira ex-34

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plícita ou não e produzir efeitos “visados” (possíveis, planeja-1

dos). Nomear, localizar-situar e qualificar são os componentes, 2

autônomos e indissociáveis do modo de organização descriti-3

vo. Tanto as expressões nominais ligadas à descrição das per-4

sonagens, quanto as imagens revelam, nas analogias produzi-5

das, representações fortemente marcadas social e culturalmen-6

te, cujo entendimento se submete à apreciação de valores e 7

crenças partícipes de um constructo cultural orientador do lei-8

tor inexperiente a que se expõem os textos mencionados. 9

Nos livros em análise, a descrição é organizada catafo-10

ricamente, a fim de que a nomeação dos entes personificados – 11

e a consequente identificação da categoria selecionada como 12

tema – ocorra apenas no término de sua descrição. Além disso, 13

observa-se a iconicidade (PEIRCE, 2003; SANTAELLA, 14

2005) como processo significativo predominante, atuando co-15

mo um desencadeador de significações por meio de analogias 16

instituídas, muitas vezes, a partir de saberes de crença. 17

Em A Menina Transparente (2010), a descrição de poesia, 18

dificultada pelo alto grau de abstração do conceito, a princípio 19

ganha contornos de acordo com uma imaginária localização 20

de sua manifestação. Os espaços mencionados são variados, 21

mas têm em comum a incongruência dessa variedade (pôr do 22

sol/asa de gaivota/ar/mar/comida na panela/livro/vestido de 23

notas musicais), que transporta a interpretação para a não con-24

cretude de sua essência. São espaços que se revestem de uma 25

valoração positiva e convidativa, imbuindo a poesia de um ca-26

ráter “romântico”, tomado como prototípico. Além disso, a 27

poesia é apresentada, em sua “transparência”, ou na “invisibi-28

lidade” de sua existência, como algo perceptível através dos 29

elementos nos quais adere – “Eu apareço disfarçada de todas 30

as coisas...” (LUCINDA, 2010, p. 1) –, desde que ela inspire 31

um olhar diferenciado: 32

Tem gente que diz que eu 33 Nasço dentro da pessoa, 34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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E faço ela olhar diferente 1 Pra tudo que todos olham, 2 Mas não notam 3

(Op. cit., p. 3). 4

A natureza evanescente é sua principal Qualidade: 5

Às vezes apareço tão transparente e de mansinho 6 Que mais pareço um Gasparzinho. 7 Tem gente que nunca percebe que estou ali, 8 Não cuida de mim, 9 Não me exercita. 10 Eu fico como um laço de fita 11 Que nunca teve um rabo de cavalo dentro 12

(LUCINDA, 2010, p. 5). 13

A aproximação da personagem Gasparzinho, o “fantas-14

minha camarada” que habita o imaginário do grupo social que 15

produz e daquele a quem se destina o livro, transporta as qua-16

lidades de ser transparente, evanescente, “irreal”, metafísico, 17

imaterial à delimitação do conceito em questão. A ideia de um 18

fantasma, em geral considerada uma representação que desen-19

cadeia medo, é desvinculada desse sentimento pela subversão 20

trazida pela personagem de fácil identificação no universo in-21

fantil, pois se trata de um “fantasma-criança”, alegre, com 22

bons sentimentos, que deseja ter amigos e não assustar nin-23

guém. A menção a Gasparzinho, portanto, inclui muitas in-24

formações que dizem respeito ao imaginário sociodiscursivo 25

do qual o leitor participa. Já a comparação com o “laço de fita 26

que nunca teve um rabo de cavalo dentro”, assim como faz re-27

ferência a elementos relacionados ao universo infantil, tam-28

bém revela a qualidade de ser abstrato, dependente de um 29

elemento outro por meio do qual possa se manifestar e provar 30

sua função: o laço de fita, ornamento e instrumento, só existe 31

quando exerce o papel de prender um rabo de cavalo. O laço 32

de fita não está tão presente nos penteados das meninas de ho-33

je, mas faz parte do imaginário social que o vincula à infância 34

e que o perpetua como símbolo de feminilidade. 35

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Quanto às ilustrações, toma-se a como exemplo a de 1

uma menina negra (a mesma da capa do livro), com asas e ar-2

co e flecha faz referência a Cupido, deus do amor, e representa 3

a poesia. A renda compõe seu vestido e seu cabelo. As “fle-4

chas” lançam as palavras poesia, sol, amor, viver e nomes de 5

poetas, como Manoel de Barros, Drummond, Cecília Meireles, 6

Cora Coralina. Peixes, passarinhos, libélulas, borboletas e flo-7

res seguem-na, num voo guiado por ela. A constante presença 8

das rendas nas ilustrações simboliza o romantismo, a delicade-9

za e a leveza atribuídos à poesia, além de caracterizarem sua 10

brasilidade, tão marcada pelo artesanato de onde se originam 11

as rendas. A referência ao Cupido por meio do arco e da flecha 12

de onde saem as palavras codificam a ilustração, conferindo-13

lhe uma significação reconhecida para além da individualidade 14

da imagem, a partir de saberes partilhados culturalmente. Os 15

nomes lançados pelas flechas são representações impregnadas 16

de valoração positiva e relacionada à própria noção de poesia 17

que se mostra querer difundir, valoração essa passível de reco-18

nhecimento pelo grupo, desde que os parceiros envolvidos na 19

troca comunicativa engendrada pelo livro tenham acesso a es-20

ses saberes. Para o leitor menos experiente, a mediação da lei-21

tura operada por um leitor “maduro” é imprescindível, não só 22

para a construção do sentido orientado pelo texto, mas também 23

para a difusão desses símbolos e desses valores. Esses são sa-24

beres amparados pela cultura e por uma perspectiva específica 25

que se disseminam, sobretudo, por meio de materiais simbóli-26

cos tais como os livros. 27

As metáforas – verbais e visuais – igualmente se estabe-28

lecem a partir desse aparato cultural. Domínios e ideias são 29

sobrepostos em função de uma similaridade patente ou institu-30

ída. Por exemplo, o enunciado “Sou uma criança com muitos 31

pais” (LUCINDA, 2010, p. 3), aproxima criança e poesia, a 32

quem se refere a declaração. Para isso, é preciso se estabelecer 33

um elo a partir de algo em comum, uma qualidade que as une 34

e que é salientada por essa mesma união. Da criança, extrai-se 35

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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a qualidade de ser inaugural, ou original, possível atributo 1

também para a poesia, ideia corroborada pelos versos: 2

E faço ela [a pessoa] olhar diferente 3 Pra tudo que todos olham, 4 Mas não notam 5

(Op. cit., p. 3). 6

Da mesma forma, a menina-cupido e a poesia são apro-7

ximadas pelo caráter difusor de emoções e isso se percebe vi-8

sualmente, tanto pelas asas e pelo arco e flecha, que a asseme-9

lham ao Cupido, como pela direção das palavras que saem do 10

arco, a mesma para a qual aponta a flecha. Os seres que a se-11

guem formam com ela um conjunto similar a um cardume e 12

revelam os elementos constitutivos da poesia, seja represen-13

tando a natureza em sua diversidade (pássaros, peixes, flores), 14

que costuma lhe servir de tema, seja despertando valores posi-15

tivos atrelados a esses elementos (contemplação, emoções po-16

sitivas, beleza). 17

Na trilogia em análise, soma-se às simbologias já conso-18

lidadas a ideia inclusiva que traz a negritude para participação 19

igualitária não só da sociedade, assim como do imaginário so-20

ciodiscursivo que se constrói a partir de então, e que permite 21

subentender novos valores. Destaca-se a utilização de várias 22

personagens negras, como a própria menina-cupido, a quem se 23

vinculam qualidades consideradas positivas, além de ela 24

mesma representar a poesia em si. No caso dessa personagem, 25

subverte-se, primeiro, a ideia trazida pelo anjo como símbolo, 26

por ter sido ali representado não só pelo gênero feminino, mas 27

também por uma menina negra e que, além disso, extrapolan-28

do a condição de menina e de negra, age como um cupido, dis-29

seminador de “sensibilidades”. Da mesma maneira, em Lili, a 30

rainha das escolhas (LUCINDA, 2011a), e em A Dona da 31

Festa (LUCINDA, 2011b), a personagem-título também é fi-32

gurada com a pele negra – embora, assim como em A menina 33

transparente, haja outros personagens, representantes das mais 34

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variadas etnias. Porém, o fato de temas complexos como a po-1

esia, a liberdade e a alegria serem figurados como meninas de 2

pele negra traz, no escopo dessas enunciações, uma relevante 3

função formativa, que ultrapassa um imaginário antiquado, 4

prioritariamente “embranquecido” pela herança ocidental, e 5

alcança uma perspectiva efetivamente inclusiva e representati-6

va do povo brasileiro de que participa o grupo social em que 7

se insere esse material de cultura. 8

Em Lili, a rainha das escolhas (LUCINDA, 2011a), o 9

próprio epíteto recorre a uma expressão nominal bastante sig-10

nificativa: rainha, mais do que uma nomeação cujo significa-11

do se relaciona à soberana que governa um reino, é usada co-12

mo a representação mesma de uma figura feminina alçada a 13

um patamar privilegiado, superior, principal, de poder. Nesse 14

caso, a figura materializa uma faculdade, mais uma vez, de ca-15

ráter tão abstrato quanto a ideia de poesia: a liberdade. A rai-16

nha das escolhas, portanto, faz referência a uma categoria da 17

qual se destaca um de seus participantes, agregando-lhe as 18

qualidades de que se reveste o nome rainha. Além disso, indi-19

ca que a categoria a que se refere apresenta como um de seus 20

traços constitutivos o de ser uma escolha, de um tipo especial, 21

que pode ser alçado ao status de maior de seus componentes. 22

Na ilustração, Lili usa uma coroa e um manto de gola alta, es-23

tampado com coraçõezinhos. O cabelo escuro está bem arru-24

mado e a maquiagem é discreta. O gesto e a expressão fisio-25

nômica da rainha revelam um misto de curiosidade e de refle-26

xão. A ilustração mostra-se, assim, codificada, seja pelos ele-27

mentos que indicam a representação de uma rainha e, conse-28

quentemente, os valores de superioridade e de poder atrelados 29

a essa representação, seja pelo conjunto de elementos (gesto e 30

expressão) que identificam o estado reflexivo em que a perso-31

nagem se encontra. 32

As imagens de Lili, a rainha das escolhas apresentam 33

dinamicidade, movimento, ação. São compostas por desenhos 34

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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de personagens e cenas bastante coloridos e alegres. Em sua 1

autoapresentação, Lili compara seu funcionamento ao do exer-2

cício físico e, com isso, traz para si a ideia de necessidade de 3

constância, de permanência: 4

Funciono como exercício 5 que você não pode parar de malhar, 6 sou eu quem prepara seu corpo, sua alma 7 pra você na vida se realizar 8

(LUCINDA, 2011a, p. 9). 9

Mais uma vez, na ilustração contígua a esse trecho, de 10

forma codificada, a primeira personagem representa a catego-11

ria do herói, mencionada na parte verbal do texto, materializa-12

da em uma figura semelhante à do Batman, herói dos quadri-13

nhos, da TV e do cinema, graças à vestimenta e à máscara que 14

usa. A interpretação dessa codificação depende de um saber 15

partilhado, socializado com o leitor inexperiente a partir dessa 16

ilustração. À sua frente, uma menina e um ratinho se movi-17

mentam com halteres nas mãos. Também nesse caso observa-18

se a codificação presente na imagem: os halteres e as posições 19

das pernas e dos braços remetem à ideia de exercício físico. 20

Outros símbolos são utilizados: Papai Noel, como re-21

presentação que evoca o sonho, a imaginação; carrossel, como 22

representação que evoca brincadeira, prazer; a espada, como 23

representação que evoca luta, força. Uma ressalva torna a es-24

pada, que pode igualmente simbolizar opressão, um elemento 25

coerente à descrição da liberdade: é uma espada engraçada, 26

que corta, mas aceita; que é amorosa, mas também rejeita; in-27

comoda, mas respeita. Aqui, qualificações e “ações qualifica-28

doras” apresentam, mais explicitamente, alguns traços que de-29

limitam liberdade: 30

é que sou a antítese da opressão 31 e o valor de estar fora dela. 32 É claro que eu termino quando começa a do outro, 33 é claro que a do outro encerra quando inicia a minha, 34 você vê, sou uma gracinha... 35

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(LUCINDA, 2011a, p. 27). 1

“Sou uma gracinha” é uma expressão reconhecidamente 2

de aprovação, que valoriza a ação aparentemente respeitosa de 3

Lili e, concomitantemente, difunde esse valor positivo ao pú-4

blico leitor, tomando-o como virtude a ser alcançada. Por ou-5

tro lado, essa qualificação explícita torna-se incongruente se 6

relacionada aos versos que a antecedem: 7

Agora, não se iluda não, 8 eu tenho muita consequência, 9 e sou eu que digo pra você qual é o caminho; 10 posso ir com o meu jeitinho, 11 posso ser desastrada, 12 posso me mover com carinho 13 ou provocar chutando a canela 14

(Op. cit., p. 27). 15

Alguém que “diz qual é o caminho” e que “pode provo-16

car chutando a canela” não demonstra respeito ao espaço e à 17

liberdade do outro. Isso contradiz os versos que dizem que Lili 18

“é a antítese da opressão” e que termina “quando começa a do 19

outro”. 20

Em A Dona da Festa (LUCINDA, 2011b), o epíteto 21

também alça, com dona, a personagem-tema a um patamar 22

central e privilegiado, além de já induzir uma expectativa pro-23

pícia à apreensão do conceito alegria por causa de sua conti-24

guidade semântica com festa. A mescla de características e lo-25

calizações para delimitação de alegria se repete: é uma menina 26

otimista, divertida, leve e propícia a muitas circunstâncias, 27

que se encontra em sorrisos e em olhares. A descrição da me-28

nina, ou definição da alegria é realizada por meio de uma 29

constante inferenciação, que permite transpor traços de um 30

domínio mais concreto para outro domínio mais abstrato. Va-31

lores referendados socialmente – e até estereotipados – tam-32

bém são usados como parte da delimitação conceitual: 33

Não combino com a morte 34

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(Op. cit., p. 3); 1

...sou a principal característica do povo brasileiro 2

(Op. cit., p. 5); 3

...tenho um primo 4 esquisito chamado Sofrimento, 5 filho de Dona Dor e de Seu Tormento 6

(Op. cit., p. 5). 7

Mais do que constatações, esses valores que não só bali-8

zam a ideia-tema de acordo com o modo de olhar aceitável pe-9

la sociedade, mas também perpetuados irrefletidamente por 10

ela. A descrição se pauta pela vox populi: 11

Se bem que dizem que onde eu sou 12 mais bem identificável é no canto dos passarinhos! 13

(Op. cit., p. 15). 14

E, mais uma vez, bens simbólicos constituem a caracte-15

rização, seja nas expressões “árvore de Natal celeste e perma-16

nente”; “cardumes Quixotes”, nas quais se destacam “árvore 17

de Natal” e seu tom festivo, e “Quixotes”, nome próprio toma-18

do como qualificador, e seu tom aventureiro e “louco”; seja 19

nas ilustrações que trazem a presença da cultura negra, com o 20

berimbau. 21

Quanto ao aspecto relativo à patemização, ou ao desen-22

cadeamento de sentimentos, vale destacar, em A Dona da Fes-23

ta, uma enumeração de elementos naturais que são, conscien-24

temente da parte do enunciador, “representantes” da alegria. A 25

poeticidade ganha força neste trecho não só em função das 26

metáforas utilizadas, mas, sobretudo, na escolha de represen-27

tações impregnadas de sentimentos, propícios à “subjetividade 28

partilhada”. Cachoeira, vento que espalha papéis e chapéus, 29

nascer do sol, estrelas, pingos de chuva, ondinhas do mar, es-30

puminhas, pedrinhas, peixinhos, conchinhas, cardumes Quixo-31

tes, dia azul, rio, galinhas, golfinhos, macaquinhos, animal 32

grande e filhotinhos são elementos da natureza aos quais rea-33

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gimos afetiva e positivamente. O diminutivo presente em mui-1

tos deles dota-os da delicadeza e da satisfação que lhes são 2

atribuídas pela coletividade. A personificação em o segredo da 3

cachoeira e das conchinhas, a brincadeira do vento, o bebê- 4

-sol, a vivacidade dos pingos serelepes da chuva, os silêncios 5

das pedrinhas, o murmurar do menino rio, ao mesmo tempo 6

em que provoca a adesão dos leitores por causa da identifica-7

ção dos elementos a partir de ações comuns aos seres huma-8

nos, os reveste das qualidades que se destinam à delimitação 9

da noção de alegria: por exemplo, segredo é tomado por seu 10

principal atributo, ser misterioso, e brincadeira, por ser irreve-11

rente. 12

13

3. Para terminar 14

A qualificação apenas implícita, latente nas representa-15

ções, nos signos codificados, nas metáforas e em outros tipos 16

de analogias, se constitui de modos de entender e de sentir a 17

realidade. Esse processo atua não só na semiotização do mun-18

do, por meio da identificação/qualificação dos seres, mas, con-19

sequentemente, na própria socialização do leitor. Independen-20

te de uma possível intenção pedagogizante de que se pode im-21

buir um livro, a cada leitura, a cada movimento em direção à 22

coletividade, o indivíduo adere ao modo de olhar do grupo, 23

por meio do conhecimento que adquire e da crença que toma 24

para si como sua “verdade”. O sentimento de pertença ao gru-25

po depende dessa opção pela adesão às convenções e à pers-26

pectiva grupal. Esse esforço socializante e inconsciente se 27

submete aos vários sentidos propostos pelo mundo, inclusive 28

os sentidos sentidos, sensações e sentimentos, partilhados tan-29

to quanto o conhecimento mais consciente e objetivo. 30

A análise de livros ilustrados para crianças pode reve-31

lar seu caráter formativo, tanto em seu aspecto “educativo” e 32

inclusivo, pois disseminador de modos de olhar que integram 33

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a crianças ao “mundo”, quanto em seu aspecto “crítico”, pois 1

passível de um caráter provocativo, de questionamento em re-2

lação aos valores que comunicam. Assim como o sistema de 3

ensino pode atuar como instância de conservação e de consa-4

gração cultural, o suporte livro, ao qual é conferida grande 5

credibilidade, funciona como relevante canal de informação e 6

de legitimação (ou não) de valores. Dessa maneira, a inserção 7

de representações datadas, marcadas regionalmente e mais 8

abertas aos estratos sociais age, colateralmente, na construção 9

de uma identidade atualizada por novos valores, como a acei-10

tação das diferenças, a diversidade cultural, o legado africano 11

na constituição da sociedade brasileira, entre outros. 12

Se a (con)formação do leitor é condição para a leitura 13

proficiente, não significa que ela se obrigue repetidora e passi-14

va, apenas repetidora por requerer a convenção socializadora e 15

fortemente ativa, inter-ativa, gerada na influência mútua que 16

se estabelece entre texto e leitor, entre mediador e “ouvinte”, 17

entre “mais formado” e “mais livre para todos os sentidos”. 18

Afinal, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, 19

os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” 20

(FREIRE, 1987). 21

22

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 23

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova 24

Fronteira, 1990. 25

CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expres-26

sion. Paris: Hachette, 1992. 27

______. Linguagem e discurso: modos de organização. São 28

Paulo: Contexto, 2008. 29

FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Ja-30

neiro: Paz e Terra, 1987. 31

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: 1

Cosac Naify, 2010. 2

LUCINDA, Elisa. A menina transparente. Ilustr.: Graça Lima. 3

Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2010. 4

______. A dona da festa. Ilustr.: Graça Lima. Rio de Janeiro: 5

Galerinha Record, 2011. 6

______. Lili: a rainha das escolhas. Ilustr.: Graça Lima. 5. ed. 7

Rio de Janeiro: Record, 2011. 8

NICOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e 9

imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 10

PEIRCE, C. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 11

12

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Linguagem em (Re)vista, Ano 08, No 15-16. Niterói, 2013

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INSTRUÇÕES EDITORIAIS 1

2 1. A Linguagem em (Re)vista tem por finalidade a publicação de 3

trabalhos nas áreas de Letras. 4

2. Os artigos, que forem apresentados, podem ser inéditos ou não e 5

de responsabilidade do(s) autor(es), sendo seus originais apreci-6

ados e avaliados pelo Conselho Editorial; 7

3. Os trabalhos apresentados à Linguagem em (Re)vista devem se-8

guir estas normas: 9

3.1. Os originais devem ser digitados em Word para Windows; 10

3.2. Configuração da página: A-5 (148 X 210 mm) e margens 11

de 25 mm; 12

3.3. Fonte Times New Roman, tamanho 11 para o texto e ta-13

manho 9 para citações e notas; 14

3.4. Parágrafo justificado com espaçamento simples; 15

3.5. Recuo de 1 cm para a entrada de parágrafo; 16

3.6. Mínimo de 05 e máximo de 20 páginas; 17

3.7. As notas devem ser resumidas e colocadas no pé de cada 18

página; 19

3.8. As referências bibliográficas ser colocada ao final do texto; 20

3.9. Os artigos devem ser precedidos de um resumo em portu-21

guês de, no máximo 250 palavras, com indicação de três 22

palavras-chaves, evitando-se, se possível, gráficos, figuras 23

e caracteres especiais. 24

4. Os artigos devem ser enviados por e-mail ou em disquete (com 25

cópia impressa) 26

27

À 28

LINGUAGEM EM (RE)VISTA 29

Boulevard Vinte e Oito de Setembro, 397/603 30

20551-185 – Rio de Janeiro – RJ 31 Outras informações pelos telefones (21) 2569-0276 e 32

98460-6712 ou pelo endereço eletrônico [email protected]. 33