Falácia, argumentação e contra argumentação na mídia brasileira
Lêda Correa - Direito e Argumentação - Ano 2008
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Leda C orrêa(ORGANIZADORA)
D ir e it o e A r g u m e n t a ç ã o
D i r e i t o e A r g u m e n t a ç ã o
D ir e it o e A r g u m e n t a ç ã oL e d a C o r r ê a
( o r g a n i z a d o r a )Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ). Professora adjunta do Departamento de Letras e do Núcleo de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe ( u f s ) . Coordenadora do grupo de pesquisa “História do ensino das línguas no Brasil”.
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Manole
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Direito e argumentação / Leda Corrêa(organizadora). - Barueri, SP : Manole, 2008.
Vários autores.Bibliografia.ISBN 978-85-204-2533-6
1. Argumentação 2. Direito - Filosofia 3. Direito - Metodologia 4. Direito - Teoria I. Corrêa, Leda.
07-9924 CD U -340.115
índice para catálogo sistemático:1. Argumentação jurídica : Teoria do direito 340.115
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Ia edição - 2008
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Sobre os autores
Aparecida Regina Borges SellanDoutora e mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) . Coordenadora e professora da disciplina Redação e Linguagem Jurídica do curso de Direito da p u c / s p . Vice-coordenadora do curso “Secretário Executivo Trilíngüe” da p u c / s p . Vice-líder de pesquisa do “Núcleo de Pesquisa Português Língua Estrangeira”, vinculado ao Instituto Sedes Sapientiae para Estudos de Português ( i p - p u c / s p ) . Docente do curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa da p u c / s p .
Carlos Alberto ShimoteBacharel e licenciado em Letras pela Universidade de São Paulo ( u s p ) . Mestre em Literatura Brasileira ( u s p ) e doutorando em Teoria Literária. Professor de Redação e Linguagem Jurídica na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) .
Doroti Maroldi GuimarãesDoutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do curso de Letras da Faculdade Santa Izildinha e avaliadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).
Leda Corrêa (organizadora)Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) . Professora adjunta do Departamento de Letras e do Núcleo
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de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe ( u f s ) . Coordenadora do grupo de pesquisa “História do ensino das línguas no Brasil”.
Lílian Ghiuro PassarelliDoutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ). Pós-dou- tora pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP). Docente da Faculdade de Comunicação e Filosofia e do curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa da p u c / s p . Líder do grupo de pesquisa “Estudos da linguagem para o ensino de português” (Gelep-puc/sp).
Maria Teresa Rego de FrançaGraduação em Letras Vernáculas pela Universidade de São Paulo ( u s p ) . Mestrado em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) e doutorado em Filologia Portuguesa na u s p . Foi professora efetiva da rede pública estadual e deu aulas de Língua e Literatura no Centro de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet/SP). Integrou a equipe p e c - p u c ,
ministrando cursos de capacitação para professores das redes de ensino m u nicipal e estadual. Lecionou Oratória nas Faculdades Integradas Rio Branco. Professora de Redação e Linguagem Jurídica na p u c / s p .
Nancy dos Santos CasagrandeMestre e doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ).
Professora associada do Departamento de Português da mesma instituição. Professora da disciplina Redação e Linguagem Jurídica no curso de Direito da p u c / s p . Vice-coordenadora do curso Secretário Executivo Trilíngüe da p u c / s p .
Membro dos grupos de pesquisa “Historiografia da Língua Portuguesa” e “Lingüística Funcional”, vinculados ao Instituto Sedes Sapientiae para Estudos de Português ( i p - p u c / s p ) , ambos cadastrados pelo C N Pq.
Sumário
Apresentação (Dirceu de Mello) ......................................................................... IXPrefácio (Dieli Vesaro P a lm a ) ............................................................................XI
PARTE 1 - Percursos Históricos da RetóricaI - A Retórica de A ristó teles.....................................................................................1Carlos Alberto Shimote
II - A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clássica por ChaimP ere lm an ................................................................................................................ 52Nancy dos Santos Casagrande
III - A mise en scène a rgum en ta tiva ....................................................................72Maria Teresa Rego de França
PARTE 2 - Prática Argumentativa no DireitoIV - A construção do dram a narrativo em p e tiç õ e s ...................................... 92Leda Corrêa
V - Domínio discursivo jurídico: procedimentos argumentativos no gênerotextual decisão interlocutória............................................................................116Lílian Ghiuro Passarelli
VI - O uso dos argumentos na prática do D ire i to .................................... 139Doroti Maroldi Guimarães
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VII - A argumentatividadc nos discursos jurídicos: intertextos einterdiscursos........................................................................................................161Aparecida Regina Borges Sellan
índice alfabético-remissivo..............................................................................175
Apresentação
Direito e argumentação, esse é o título da coletânea de textos cuja organizadora, Profa. Leda Corrêa, honrou-m e com o convite para apresentar.
Honraria de que me desincumbo sem qualquer dificuldade. Menos, é certo, porque diretamente ligados, os temas tratados, à área na qual, sucessivamente, como advogado, promotor, juiz e professor de Direito, tenho profissionalmente vivido; mais porque, sem exceção, de altíssimo nível os vários estudos compendiados.
Sabido que o operador do Direito tem como principal instrumento de trabalho, ao lado da palavra oral e escrita, a agudeza do argumento utilizado, o que dizer, com efeito, de coletânea que principia com pesquisa sobre “A Retórica de Aristóteles” (autor Carlos Alberto Shimote) e que, passando por apreciações acerca de “A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman” (autora Nancy dos Santos Casagrande), “A mise en scène argumentativa” (autora Maria Teresa Rego de França),“A construção do drama narrativo em petições” (autora a própria organizadora Leda), “D omínio discursivo jurídico: procedimentos argumentativos no gênero textual decisão interlocutória” (autora Lílian Ghiuro Passarelli), “O uso dos argumentos na prática do Direito” (autora Doroti Maroldi Guimarães), se encerra com perquirição acerca de “A argumentatividade nos discursos jurídicos: intertextos e interdiscursos” (autora Aparecida Regina Borges Sellan)?
Diretor que fui da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ) , sinto-me à vontade para atestar a importância da disciplina Redação e Linguagem Jurídica, oferecida aos alunos da graduação por professores como Leda Corrêa e demais colaboradores da coletânea con
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siderada, recrutados junto à Faculdade de Comunicação e Filosofia da instituição (Comfil).
Também por isso gratifica apresentar obra que, agora já no plano reservado à docência do Direito, repercute ensinamentos originariamente cobertos pela disciplina ministrada na graduação.
Direito, raciocínio, lógica, argumentação, lucidez verbal e lucidez escrita- esses, entre outros, aspectos que a publicação organizada pela Profa. Leda e em boa hora viabilizada pela Editora Manole descortina a quantos se interessem pelo domínio e pela vivência superior da atividade jurídica.
Eu mesmo, confesso-o gostosamente, aprendi, e muito, na leitura que me propus fazer da obra, na tentativa de poder apresentá-la com a dignidade que merece.
Dignidade e valor que de mim, leitor primeiro e privilegiado do trabalho, ora transmudado em livro, exigem mais, ou seja, impõem-me recomendá-lo à comunidade dedicada às lides do Direito. A biblioteca, pública ou particular, a que se incorporar a obra, estará decidida e gloriosamente enriquecida.
Parabéns, Profa. Leda. Parabéns, Editora Manole. Mas parabéns, sobretudo, àqueles que, afortunados como eu, lograrem acesso a Direito e argumentação, estudo maior das nuances intelectuais próprias do bem-sucedido exercício do mister jurídico.
Dirceu de MelloProfessor de Direito na p u c / s p .
Ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Prefácio
A obra que aqui se apresenta expressa, de forma concreta, a articulação entre ensino e pesquisa, duas das dimensões que servem de base para a construção do conhecimento na universidade. Ela é o resultado da prática docente de um grupo de professores no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na disciplina Redação em Linguagem Jurídica, que tem a árdua tarefa de despertar em seus estudantes a consciência sobre a im portância do domínio da língua materna para o profissional do Direito. Ao mesmo tempo em que ela é fruto de atividades em sala de aula, aponta a relevância do conhecimento teórico e da pesquisa científica na atuação didática do professor universitário. Em suma, o trabalho proposto revela novas concepções no processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa, que se caracterizam como rupturas em diferentes direções.
A primeira que pode ser apontada centra-se no ensino da própria língua. Até bem recentemente, para qualquer formação profissional, o ensino da língua portuguesa era feito de forma geral, focado na gramática normativa, sem levar em consideração as especificidades das várias áreas de conhecimento nas quais a língua era ensinada. A partir dos anos 1970, em relação à língua materna, surge a necessidade de revisão de seu ensino, considerando-se as particularidades dos profissionais e de seus campos de atuação. Esse deslocamento de um ensino geral para um ensino direcionado tornou-se conhecido como ensino de línguas para fins específicos. É esse o caminho didático seguido no curso de Direito.
Ele pressupõe um diálogo intenso entre a área de atuação do professor de língua, que deve conhecer as modernas teorias sobre a linguagem e seu fun
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cionamento, e as particularidades do discurso jurídico. Cabe ao professor de língua, fundamentado na pesquisa, conhecer essas características lingüísticas do discurso jurídico para, por meio da transposição didática, apresentá-las aos discentes do curso de Direito. Logo, o conhecimento a ser ensinado não se restringe apenas aos aspectos lingüísticos, como regras gramaticais, por exemplo, mas implica também especificidades dos textos jurídicos. O objetivo desse ensino é conscientizar o futuro profissional sobre as práticas discursivas da área em que atuará. Foi esse modo de trabalhar a língua portuguesa que permitiu a produção dos textos que compõem esta obra.
A segunda ruptura diz respeito às teorias lingüísticas que embasam o processo de ensino da língua. Observando-se os capítulos que integram o livro, verifica-se que a linguagem é concebida como interação, da qual a argu- mentatividade é elemento constitutivo. Assim, servem de base para o debate da argumentação, trabalhos pertencentes à Lingüística do Discurso, sendo a comunicação, estabelecida por meio da língua, a finalidade última das trocas lingüísticas. Do ponto de vista teórico, os aspectos relativos a essas concepções estão presentes na Parte 1 da obra, sendo retomados, com suas especificidades no discurso jurídico, na Parte 2. Vê-se, assim, que não é, como tem sido a tradição, a teoria gramatical normativa que fundamenta os textos aqui apresentados.
Quanto à organização, os autores, na Parte 1, “Percursos Históricos da Retórica”, têm como ponto de partida a Retórica aristotélica, que é discutida em profundidade por Carlos Alberto Shimote em “A Retórica de Aristóteles”, dado o seu caráter seminal no conhecimento da argumentação. Na seqüência, trazem a Retórica de Perelman, por ser ela a vertente atual da Retórica e por sua estreita relação com o discurso jurídico. Em “A nova Retórica: um novo olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman”, Nancy dos Santos Casagrande tem por objetivo retomar e recontextualizar a velha Retórica, à luz dos ensinamentos de Perelman, apresentando algumas técnicas argumen- tativas, com vistas a atingir as técnicas discursivas que visam a provocar a adesão das mentes às teses apresentadas ou a aumentar a adesão a elas. Ainda nessa Parte 1, há um capítulo, de autoria de Maria Teresa França, dedicado à concepção argumentativa de Vignaux (1976) e Grize (1990), conhecida como “lógica natural”, visando a oferecer ao profissional do Direito outros elementos que o auxiliem na construção da argumentação, desenvolvendo, assim, sua competência argumentativa.
Na Parte 2, “Prática Argumentativa no Direito”, em “A construção do drama narrativo em petições”, a autora, Leda Corrêa, objetiva aprofundar questões
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relacionadas ao texto narrativo, uma vez que ele tem merecido pouca atenção dos estudiosos dos discursos jurídicos. No capítulo “Domínio discursivo ju rídico: procedimentos argumentativos no gênero textual decisão interlocu- tória”, Lílian Ghiuro Passarelli procura tratar dos procedimentos argumentativos em um dado gênero textual - uma decisão interlocutória - , analisando lingüisticamente os mecanismos utilizados pelo produtor, com vistas a convencer e a persuadir seus interlocutores em relação a uma tese assumida. Doroti Maroldi Guimarães, em “O uso dos argumentos na prática do Direito”, partindo do pressuposto de que os argumentos são “a própria essência do raciocínio jurídico” e que “a prática do Direito” consiste, “fundamentalmente, em argum entar”, tem como objetivo oferecer aos alunos subsídios para a am pliação de recursos suasórios, a fim de que melhor possam argumentar. Finalmente, em “A argumentatividade nos discursos jurídicos: intertextos e in- terdiscursos”, Aparecida Regina Borges Sellan focaliza a textualidade jurídica como prática discursiva social em que se presentifica um conjunto de outros textos e de outros discursos, aprofundando questões relativas à intertextuali- dade, em sentido amplo e em sentido restrito, e à interdiscursividade.
Assim, do ponto de vista didático, a presente obra representa também uma ruptura pelo conteúdo que desenvolve. Rompe com trabalhos dedicados ao ensino da língua em cursos de Direito que se atêm ou ao tratamento da redação técnica ou a questões exclusivamente gramaticais. Ela apresenta como cerne a construção da argumentação, alma do texto jurídico, detalhando aspectos relacionados à sua elaboração, quer no âmbito lingüístico, quer no âmbito do texto, quer no âmbito do discurso.
Em síntese, esta é um a obra inovadora no tratamento da língua portuguesa no curso de Direito, por introduzir uma nova maneira de ensinar a língua - o ensino para fins específicos - , por trazer para a sala de aula, pela transposição didática, as teorias lingüísticas mais atuais e, finalmente, por apresentar conteúdos fundamentais para a formação do profissional do Direito, sempre visando ao desenvolvimento da competência argumentativa, elemento essencial na atuação de um profissional desse campo do saber. Merecem cumprimentos os autores, que, de forma eficiente, souberam aliar ensino e pesquisa, produzindo um material didático que, certamente, levará a mudanças no ensino da língua materna nos cursos de Direito.
Dieli Vesaro Palma Vice-Reitora Acadêmica Adjunta da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( p u c / s p ).
parte 1 Percursos Históricos da Retórica
i
A Retórica de Aristóteles
Corlos Alberto Shimote
Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. Toda primeira leitura de um
clássico é na realidade uma releitura.
ítalo Calvino, Por que ler os clássicos, 1981
A Retórica de Aristóteles é puramente filosófica e terá uma influência decisiva sobre todas as
determinações ulteriores do conceito.
Friedrich Nietzsche, Da retórica, 1874
A estrutura triádica da Retórica de Aristóteles
A Retórica de Aristóteles apresenta uma simetria triádica não apenas por sua divisão interna em três livros diferentes (os quais foram, provavelmente, como observa Kennedy (21), redigidos em épocas distintas), mas também pela apresentação do processo retórico da perspectiva de três segmentos interligados: o de quem fala, o que se fala e, finalmente, o para quem se fala. Ou, segundo a classificação aristotélica, o ethos, o logos e o pathos: o orador, o discurso e o auditório; os quais, por sua vez, geram três tipos diferentes de discurso, o jurídico, o epidítico e o deliberativo.
Uma sistematização engenhosa, sem dúvida, e que, observou Roland Barthes (8, p. 179), exibe concepção do discurso como mensagem submetida à divisão de tipo informático na qual o Livro I da Retórica se apresenta como
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o livro do emissor da mensagem: o livro do orador, o qual se ocupa principalmente da concepção dos argumentos, dependentes do orador e de sua adaptação ao público. O Livro 11 se mostra como o livro do receptor da m ensagem ou, ainda, o livro do público, pois nele se trata das emoções (das paixões), e de novo dos argumentos, mas, dessa vez, recebidos e não mais, como antes, concebidos. E, finalmente, o Livro III se revela o livro da própria m ensagem, nele se tratando da lexis ou elocutio, ou seja, das figuras, e da táxis ou dispositio: a ordem das partes do discurso.
Tal estrutura triádica também foi observada por Paul Ricoeur (32, p. 18), para quem a Retórica de Aristóteles abrange três campos. Há uma teoria da argumentação, constituindo seu eixo principal e fornecendo, ao mesmo tempo, o nó de sua articulação com a lógica demonstrativa e com a filosofia, que, segundo observação do filósofo francês, abrange dois terços do tratado. Há também uma teoria da elocução e, enfim, uma teoria da composição do discurso.
Retórica, democracia e cidadania
Aristóteles define retórica como a arte de extrair de qualquer assunto o grau de persuasão que ele comporta: “a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (Capítulo II, Livro I). Tal definição encontra sustentação na própria história da disciplina, surgida em Siracusa, na Sicília (antiga Magna Grécia), onde se tornou sinônimo dos usos da palavra pública, em decorrência da transformação da palavra em arma legítima destinada a influenciar o povo, diante do tribunal, na assembléia pública, ou, ainda, para elogio ou panegírico: uma arma chamada a dar a vitória em lutas nas quais o discurso se coloca como elemento decisivo. Havia retórica na Sicília, diz Paul Ricoeur (32), porque havia eloqüência pública, o que, por sua vez, justificaria a famosa frase de Nietzsche (25): “A retórica é republicana”.
E se, conforme aguda observação de Cícero, o princípio da sociedade é a união (Prima Societas en conjugio est), retificado por Francesco Carnelutti (12, p.20), para quem o correto seria afirmar a união ser o princípio da república, entende-se melhor em que medida, na antiga cultura grega, o gosto pela retórica como cursus studiorum ocorre na mesma época em que surge a polis e a democracia. O novo regime de gestão da sociedade passa a exigir dos homens públicos a capacidade de exposição de suas idéias e, também, a capacidade de persuadir - por meio do discurso - os cidadãos para que não apenas se posicionem, mas também tomem decisões próprias à natureza da polis. Afinal, o que possibilita a união dos iguais em torno das coisas
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e, desse modo, o princípio da sociedade (ou o princípio da república), é justamente a adesão dos cidadãos (ou da maior parte deles) às teses expostas pelos homens públicos. Escreve Eduardo Biltar: “As coisas da cidade, efetivamente, num sistema político de participação, se decidem a partir de um processo de ascese retórico-dialética das diversas dóxai de seus cidadãos acerca dos destinos da res publica” (11, p. 1.302).
Ser cidadão, segundo os gregos, é poder persuadir e ser persuadido. E os gregos foram os primeiros a viver isso na História. Não sem razão, Jtirgen Habermas (16, p.42) observa a publicidade grega se definir como “o conjunto de pessoas privadas fazendo uso público da razão”, razão que, ao se analisar o sentido grego de logos, é também um légein, ou seja, um dizer. A discursividade pública é, dessa forma, o privilégio de quem pode fazer distinção entre a esfera pública e a privada, isto é, de quem funda sua cidadania na visibilidade social assegurada por seu domínio privado. Fazer uso público da razão, na perspectiva iluminista de Kant - e que nutre a análise crítica de Habermas só é possível aos sujeitos sem sujeição a qualquer outra instância que não seja a consensual regra do melhor argumento. Consenso só possível quando os interlocutores se reconhecem mutuamente como iguais, quando reciprocamente se reconhecem como sujeitos de um discurso que, recusando a violência, é capaz de mover a mente do outro, de a “co-mover”. Como lembra Aristóteles, o verdadeiro e o justo são, por natureza, mais fortes (physei) do que seus contrários.
Na origem da retórica encontram-se, portanto, polis, cidadania, dem ocracia e uso do discurso como instrumento autônom o e legítimo para obtenção dos direitos. A retórica surge como instrumento reivindicatório de direitos espoliados. O primeiro tratado metódico sobre a arte da palavra e da persuasão apareceu na Sicília em 465 a.C., a Teoria retórica, de Córax e Tísias. A obra revela a preocupação de seus autores com a premente necessidade de fornecer a seus concidadãos meios de defesa de seus direitos, no decisivo m omento de passagem da tirania para a democracia, quando numerosos processos surgiram diante dos tribunais.
Para Paul Ricoeur (32), a antiga definição recebida dos sicilianos pela cultura ocidental, segundo a qual “a retórica é escrava (ou mestra) da persuasão” (peithous demiourgos), recorda a retórica ter sido acrescida como técnica à eloqüência natural, mas que essa técnica enraíza-se em um a demiurgia espontânea. Entre todos os tratados didáticos escritos na Sicília e posteriormente na Grécia, foi essa techné que tornou o discurso consciente de si mesmo e fez da persuasão um objetivo distinto a ser alcançado por meio de um a estratégia específica.
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O debate entre Platão e Aristóteles
Quando Aristóteles define a retórica como “a faculdade de descobrir os meios possíveis de persuasão acerca de qualquer sujeito” (Esto dè rhetorikè dynamis perí hékaston toü theorêsai tò endekómetion pithanón), está também reconhecendo a retórica como uma techné, isto é, como produto da inteligência hum ana ou legítimo instrumento racional no qual o discurso é concebido como meio de produzir o que pode ser ou não ser, e cuja origem - conforme aguda observação de Roland Barthes (8, p. 179) - encontra-se no agente criador, não no objeto criado, pois não há techné das coisas naturais ou necessárias, já que o discurso não faz parte nem de umas nem de outras. A definição revela ainda o uso significativo e marcante de duas palavras:“a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão”.
A palavra teoria tem no interior da filosofia aristotélica uma presença muito especial. Contemplação, em grego, diz-se theoría, do verbo theoréo, que significa observar, examinar, contemplar, e cujo correspondente em latim é o verbo specio, de onde vem a palavra especulação. A filosofia, espanto admirativo (to thamázein), é contemplação, conhecimento ou saber especulativo e resulta de um procedimento de coletar informações (ta éndoxa). E, embora o desejo de conhecer seja uma tendência natural dos humanos (Aristóteles afirma no início da Metafísica: “Todos os homens, por natureza, têm o desejo de conhecer”), a filosofia, nascida do espanto, não é um impulso espontâneo, pois nasce de uma pressão sobre nossa alma, causada por uma aporia, isto é, por uma contradição que parece insolúvel. Dessa forma, a filosofia descreve um movimento no qual o primeiro espanto tira os humanos de sua ignorância satisfeita para cair em novos espantos, ou seja, em aporias. A coleta de informações (ta éndoxa) - método legítimo da filosofia, defendido por Aristóteles - possui a peculiaridade de apresentar as opiniões dos filósofos não em uma seqüência cronológica, mas em uma seqüência de aporias, na qual cada filósofo responde ao outro, mostrando a filosofia na condição de diálogo filosófico.
O acordo entre os filósofos é o primeiro sinal de verdade; seu desacordo, ao contrário, o da falsidade de suas opiniões. Desenvolver uma aporia e recolher a opinião dos antecessores significa, em primeiro lugar, que o filósofo tem de passar pelos mesmos problemas de seus antecessores, e, em segundo, que o diálogo dos filósofos é uma ascese da verdade, não como um progresso inelutável, mas como um trabalho sempre renovado. É por essa razão que, antes de aparecer na condição de teoria, a retórica aparece na filosofia de
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Aristóteles na condição de aporia: um problema concreto a ser analisado e refletido, uma pressão na alma causada pelas censuras de seu mestre Platão à legitimidade da retórica. Em seus renomados diálogos filosóficos, Platão compreende a retórica como instrumento do engodo e, portanto, tal qual o absoluto contrário do discurso apodítico. A Retórica pode ser lida, portanto, como o produto resultante do diálogo a que se viu obrigado a fazer Aristóteles com seu outrora mestre para superá-lo com a apresentação de uma nova teoria não apenas divergente, mas também diferente.
Como se sabe, a retórica aparece na obra de Platão como sinônimo de sofistica e, por tal, não possui nada de positivo. Para o mestre de Aristóteles, o sofista não tinha compromisso algum com a verdade e, desse modo, podia fazer trocadilhos com os diversos sentidos de uma palavra ou um conceito, caso isso fosse útil a sua tese. Não é, pois, sem razão Platão colocar o discurso apodítico (o que é evidente e demonstrável ou o discurso comprometido com a verdade) em um a condição oposta à da retórica, segundo o filósofo capaz de “vender todas as causas” ou “defender tudo”, o que, em última instância, corresponde - para Platão - em não saber nada. Em Górgias, a retórica é refutada não somente como ciência (epistemé), mas igualmente como arte ( techné): ela aparece definida, antes de tudo, como habilidade de ordem prática, totalmente balizada pelo m undo da experiência: emperiría kháritos tinos kai hêdonês apergasías (conhecimento prático da produção de um certo gênero de entretenimento e prazer).
Ora espécie de propaganda, ora manipulação ou bajulação (kolakeia), a retórica aparece definida nesse diálogo de Platão tal qual uma habilidade fundada sobre a ignorância e sobre a adulação do auditório. O personagem Górgias busca legitimar a retórica, considerando-a um a atividade que valoriza não apenas os efeitos, mas também os conteúdos do discurso, enquanto Platão, por meio de Sócrates, procura desqualificá-la, considerando-a um sa- voir-faire puramente formal que, longe de permitir o conhecimento, consagra apenas os poderes da ignorância, pois o bem não se confunde com o agradável. A retórica é para a alma o que a cozinha, em contraste com a medicina, é para o corpo, instrumento para agradar e adular, em vez de ser instrum ento para cuidar e sanar os males da ignorância. Sem preocupação alguma com o bem, a retórica não cessa de atrair, com suas armadilhas, nossa atenção para os engodos da sedução da linguagem.
Em outro diálogo de Platão, Fedro, a retórica aparece com outra nuança: desdobrada em verdadeira ou falsa, em retórica dialética e retórica sofistica. Ocorre no Fedro o triunfo da dialética em detrimento da sofistica, pois, se
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gundo Platão, a dialética possibilita a visão de essências e idéias para além de suas aparências sensíveis, ou muito além de paixões ou debates (a dialética é o instrumento que possibilita a própria visão da verdade e o meio mais justo para ascender à ciência autêntica). Para Platão, é falsa a retórica sofistica que exibe um saber que, em verdade, não possui; é autêntica a retórica dialética que sabe, de fato, o que exibe. Como observou Nietzsche, há nesse diálogo de Platão uma série de exigências em torno do rétor.
No Fedro exige-se do orador que adquira, com a ajuda da dialética, conceitos claros sobre todas as coisas, a fim de estar em estado de os introduzir sempre adequadamente na exposição. Deve-se manter 110 domínio da verdade para
dispor também do verossímil e assim poder iludir os seus auditores. Mais lon
ge, exige que saiba excitar as paixões dos seus auditores e assim tornar-se se
nhor deles. Para isso deveria ter um conhecimento exato da alma humana e do
efeito de todas as formas de discurso sobre o ânimo humano. A formação de uma efetiva arte oratória pressupõe portanto uma preparação muito profunda e muito englobante: que a tarefa do orador seja persuadir os seus auditores com ajuda do verossímil não altera esse pressuposto. Aliás Sócrates explica que
aquele que atingiu um tal cume do saber já não se contentará com tarefas su
balternas: o fim supremo é então “partilhar com outrem o saber adquirido”. Aquele que sabe pode portanto ser tanto rhêtorikos como didaktikós. Mas um
dos fins é muito mais elevado. No entanto não se devem excluir todos os usos
da retórica: mas nunca se trata de fazer dela um modo de vida! (25, p.31-2)
A conseqüência mais visível dessa nova nuança com a qual a retórica é analisada - bem como a aplicação desse singular critério de autenticidade ao conhecimento produzido pelo ser hum ano - é a retórica perder toda a possibilidade de autonomia. Ela fica diluída entre duas ordens divergentes e in- comensuráveis: a ordem sofistica dos efeitos e a ordem dialética dos fundamentos, a qual, segundo Platão, por meio da dupla jornada de indução e divisão, assim como de análise e síntese, pode indicar à retórica o método adequado e justo para elaboração do saber autêntico.
Em dois outros diálogos, Teeteto e Filebo, Platão continua a ocupar-se de reflexões em torno da retórica, revelando que, antes de ser uma questão menor de sua filosofia, a retórica é, ao contrário, uma questão de legítima magnitude. Em tais escritos, de perspectivas diferentes, opera-se 0 último m omento de tematização da retórica no interior dos diálogos, que se tornaram os textos mais admirados e lidos da obra de Platão e paradigmas de sua ad
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mirável filosofia idealista. O Filebo continua, portanto, a tratar da diferença entre retórica e dialética, todavia pelo viés da oposição entre uno e múltiplo. No Teeteto, o problema discutido é outro: a questão da relação entre ciência e opinião correta (ortho doxie). O objetivo de Platão é mostrar a retórica, malgrado sua inegável influência sobre esta última, não possuir influência alguma sobre a ciência.
Platão, ao formular sua teoria do conhecimento em sua mais im portante obra filosófica (A República, Livro VII, no famoso mito da caverna), reage à retórica por meio da metafísica. Para Platão, o verdadeiro discurso, o logos, não conhece a opinião nem a contingência (aquilo sobre o qual não há certeza de acontecer); o conhecimento verdadeiro não admite a possibilidade de verdade contrária, o que por definição seria um erro. A verdade é absoluta ou deixa de ser verdade. A ambigüidade, o sentido plural ou a multiplicidade das opiniões são, desse modo, ferramentas dos incompetentes esforçando-se para falar de tudo e dar a impressão de saberem do que falam. Para Platão, o meio disponível para o alcance da verdade, antes de ser a retórica, é, ao contrário, a dialética, isto é, jogo de questões e respostas ou arte do diálogo e da discussão: expressão da verdade única e unívoca que deve emergir da discussão, pois é sempre pressuposta por ela. Michel Meyer (22) observa que, com Platão, a retórica é expulsa do campo do logos centrado na apodicidade, ou seja, centrado no evidente e verdadeiro.
A crítica de Platão à retórica ocorre em três campos distintos: no campo da ética, já que por meio da adulação ela se torna instrumento para o engodo; no campo da lógica, por ser a natureza dos argumentos de que ela se serve discutível, uma vez que são argumentos falsos e sem compromisso com a verdade; e no campo da estética, pois, afinal, para Platão, o belo é necessariamente o bem, e este não se confunde com o agradável.
Em face de tais censuras formuladas por Platão contra a retórica (e da solução dualista singular de sua filosofia opondo claramente coisas e essências, o sensível e o inteligível, ou a opinião e o conhecimento), Aristóteles, para superar a aporia herdada de seu mestre, elabora uma organização triádica do conhecimento e, também, uma sistematização da ciência, do ponto de vista da ação humana e da natureza dos seres investigados por elas. Assim, como meio de superar o dualismo da filosofia platônica que reconhece apenas conhecimento verdadeiro (epistemé) e conhecimento falso (doxa), Aristóteles propõe uma terceira espécie: o conhecimento provável ou verossímil, do qual faz parte a retórica. E, além disso, Aristóteles sistematiza a ciência (epistemé) em duas grandes categorias: teorética e teórica.
8 Direito e Argumentação - Parte 1
As ciências teoréticas abrangem conhecimentos dos seres naturais: física (compreendendo biologia, botânica, zoologia, psicologia e cosmologia), conhecimentos matemáticos (aritmética, geometria, astronomia, harm onia ou música) e conhecimentos teológicos (o divino, o ser puro, perfeito, imutável). Para Aristóteles, as ciências teoréticas são aquelas cujos objetos existem independentemente de vontade e ação humanas e, por isso, só podem ser contemplados por nós. As ciências teóricas, ao contrário, são aquelas cujo objeto de conhecimento depende de vontade e ação humanas. Trata-se das ciências da ação ou das ciências teóricas sobre as práticas humanas: “Toda arte ( techné), toda investigação (méthodos), toda ação (práxis) e toda escolha racional (pmaíresis) tendem para algum bem”
Para Aristóteles, entretanto, há certa diferença entre os fins das ciências teóricas, pois a ação hum ana possui duas grandes modalidades: a ação que tem como fim a produção de uma obra e a ação que tem seu fim em si mesma. Disso resulta a distinção que estabelece entre práxis e poiesis (ação fabri- cadora). Poiesis é arte ou técnica e compreende agricultura, navegação, pintura, escultura, arquitetura, tecelagem, todos os artesanatos, poesia e retórica. Práxis compreende economia, ética, direito e política. É função de toda ciência, segundo Aristóteles, investigar não apenas os princípios, mas também as causas e a natureza dos seres que são seu objeto de estudo.
O fato de as ciências possuírem em comum o procedimento (méthodos) de busca de princípios e causas não as torna, no entanto, iguais, pois a natureza dos seres que investigam é diferente. E essa diferença da natureza das coisas investigadas faz princípios e causas de cada ciência serem diferentes, o que, por sua vez, explica a organização das ciências em três grupos distintos: o das ciências teoréticas, o das ciências práticas e o das ciências produtivas ou poiéticas (também chamadas por Aristóteles techné ou, como nos legou a tradição latina, ars ou arte).
Dessa nova perspectiva, ciências práticas são aquelas cujo princípio, ou causas, o homem como agente da ação, e a finalidade é o próprio homem. Trata-se daquelas ciências nas quais agente, ação e finalidade da ação são uma só e mesma coisa, ou, como se costuma dizer, são inseparáveis e imanentes. Tais ciências se referem à práxis como algo propriamente humano; uma atividade que não produz algo diferente do agente e que tem como causa a vontade humana considerada escolha deliberada, refletida e racional. Sendo a vontade racional causa ou princípio da ação, as ciências práticas diferem das teoréticas por, além de não serem contemplativas, seu objeto não ser necessário ou universal, mas antes contingente e particular. Esse objeto - ação, a práxis - é aquilo possível de acon
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tecer ou deixar de acontecer (contingente ou meramente provável), dependendo da vontade racional do agente, e é aquilo que acontece de maneira determinada (particular), dependendo das características pessoais do agente. Apesar da contingência e da particularidade, Aristóteles fala em ciências práticas por ser possível conhecer as ações humanas, pois existe algo conferindo necessidade e universalidade a elas: a finalidade. As ações verdadeiramente racionais e refletidas são as realizadas para alcançar um fim: o Bem. Este, por sua vez, não possui a universalidade de um princípio teorético ou de uma causa teorética, mas é referência estável e geral, válida para todos, e oferece um critério, uma medida (métron) para o agente escolher entre várias ações possíveis. O critério define ser bom ou um bem o que contribui para aumentar ou conservar independência ou autonomia do agente, isto é, tudo que torne o agente menos dependente de outros ou de outras coisas é, dessa forma, bom ou um bem. O bem é, assim, a autarcia ou a auto-suficiência de alguém (autárkeia).
As ciências práticas são constituídas por ética e política. A ética tem por objetivo estudar a ação do ser humano como alguém que deve ser preparado para viver na sociedade, além de estabelecer princípios racionais da ação virtuosa para o bem do indivíduo como ser sociável vivendo em relação com outros. A política visa a estudar a ação dos homens como seres comunitários ou sociais, procurando estabelecer, para cada forma de regime político, princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade ou o bem comum.
As ciências poiéticas se referem a um tipo particular de ação humana: a fa- bricadora. Tal ação, em grego, chama-se poiesis e, por isso, as ciências poiéticas também são chamadas ciências produtivas, ou, como meio de distingui-las das ciências em seu senso estrito, simplesmente techné. A poiesis difere da práxis porque, nela, agente, ação e produto da ação são termos diferentes e separados; ou, como diz Aristóteles, a finalidade da ação está fora dela, na obra, no artefato, em um objeto. As ciências poiéticas são, como as ciências práticas, as que lidam com o contingente (o que pode ser ou deixar de ser) e com o particular (o que existe em tempo e lugar determinados). E, do mesmo modo que na práxis, também na poiesis é possível encontrar um ponto de referência (critério ou padrão) que ofereça uma necessidade e uma universalidade para a ação produtora ou fabricadora. Esse ponto também é uma finalidade: é o modelo do que se vai fabricar ou produzir. Ações poiéticas são todas as referentes a um aspecto particular da capacidade fabricadora ou técnica dos humanos e, por isso, são tão numerosas quanto nossas possibilidades produtivas e técnicas: pintura, escultura, arquitetura, medicina, eloqüência, poesia, engenharia, olaria, tecelagem. Dessas técnicas ou artes (techné), Aristóteles deixou dois tratados: além da
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Arte poética, a Arte retórica, ou simplesmente a Retórica (arte da discussão e da persuasão por meio do discurso que move nossas paixões).
Retórica, poética e dialética
Aristóteles considera a retórica do domínio dos conhecimentos prováveis e não das certezas e evidências (campo de domínio dos raciocínios científicos e lógicos), sobre os quais sistematizou suas análises no Organon. A persuasão retórica desenvolve-se no campo não do conhecimento falso (como sustentara Platão) ou do conhecimento verdadeiro (área da ciência e da lógica), mas no campo do conhecimento provável, plausível ou verossímil, uma vez que há em Aristóteles a convicção de serem no m undo da opinião (doxa) tecidas as relações sociais, políticas e econômicas, pois as capacidades de raciocinar (noús) e produzir discursos (logos) converteram-se em instrumentos determinantes para o convívio social. E, se não há ciência sem um mínimo de argumentação, também é verdade, constata o pensador, não existir raciocínio ou argumentação sem retórica. Por tal, cm seu estudo da comunicação humana, Aristóteles considerou os diversos tipos de argumentação: a argumentação científica, na qual se emprega o silogismo científico (este parte de premissas verdadeiras e absolutamente primeiras); a argumentação dialética, na qual o silogismo - também chamado epiquirema - é dialético por partir de premissas prováveis; a argumentação erística ou sofistica, que apresenta como prováveis premissas que, em verdade, não o são ou simula conclusões, a rigor, improcedentes; e, finalmente, a argumentação retórica, caracterizada por sustentar-se por dois procedimentos, o entimema e o exemplo.
A retórica se ocupa daquilo que é, mas pode não ser ou ser diferente, e, ainda, ser de outro modo ou ser outra coisa. Por essa razão (por não tratar de certezas e evidências), seu campo é o da controvérsia, da crença, do m undo da opinião, que se há de formar dialeticamente pelo embate das idéias e pela habilidade no manejo do discurso. O domínio da retórica, das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo da verdade, mas do verossímil, pois, como se ocupa de explicar o próprio Aristóteles (2, p. 1.094b), “seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos simplesmente persuasivos quanto exigir de um orador (rétor) demonstrações invencíveis”.
Trata-se, como observa Eduardo Bittar (11, p. 1.297), de uma arte voltada - muito mais do que pura e simplesmente para a persuasão - para o conhecimento dos meios pelos quais pode-se operar e para a definição de persuasivo. Ou, como afirma o próprio Aristóteles no Capítulo I do Livro I da Retórica:
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Sua tarefa não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir
a propósito de cada questão [...] é manifesto que o papel da Retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de persuadir do que só o é na aparência.
Persuadir etimologicamente vem de persuadere, per + suadere. O prefixo per significa de modo completo, suadere é aconselhar (não impor). As palavras da mesma família esclarecem o valor da raiz: swad - suavis, suave; sa- vium, beijo terno. Daí o sentido geral de persuadere: aconselhar, levar alguém a aceitar um ponto de vista de m odo suave, habilidosamente.
A literatura antiga é pródiga na difusão de tais sentidos de suavidade e habilidade de suavizar a argumentação como típicos da palavra persuasão. Há na mitologia grega (e também latina) uma divindade da Persuasão integrando o cortejo de Afrodite, simbolizando o poder persuasivo da beleza. Persuadir, em sua raiz, significa tornar suave. Por tal razão, Dante Alighieri, nos fins da Idade Média, subordinou a retórica ao planeta Vênus. No julgamento de Páris, Venus vence Juno e Minerva não pela beleza, mas pela eloqüência.
No entanto, a retórica, de direito, é atribuída a Hermes, pois, como em baixador e mensageiro de Zeus, ele se identifica com o logos, a palavra divina. E foi ele quem ensinou aos homens a falar bem para persuadir. Não sem razão, Marciano Capela, no século v de nossa era, faz o casamento de Mercúrio, eloqüência, com Filologia, sabedoria (De Nuptiis Mercurrii et Philologiae). Consta, também, que ladrões e comerciantes ficavam sob a proteção de Mercúrio, pois seria natural dessas profissões a exigência de muita habilidade no falar.
A retórica distingue-se da poética, visto esta tratar do que não é, mas — dentro dos limites do verossímil - poderia ser. Tal distinção, muitas vezes, não se mostra, todavia, suficiente para a compreensão plena da dimensão de cada uma das disciplinas, pois um a e outra manifestam-se por meio do uso do discurso. A retórica, porém, é antes de tudo uma técnica da eloqüência, seu alcance é o mesmo da eloqüência: gerar a persuasão. A poética, arte de compor poemas, não depende, quanto à função e situação do discurso, da retórica, arte de defesa, deliberação, repreensão e elogio. A poesia não é eloqüência, uma vez que não visa à persuasão, mas - e ao contrário - à purificação das paixões por meio de terror ou piedade.
Aristóteles define a retórica como a arte de inventar ou encontrar provas. Ora, a poesia nada quer provar, seu projeto é mimético: seu alcance é com por um a representação essencial das ações humanas, seu modo próprio é di-
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zcr a verdade por meio da ficção, da fábula, do mythos trágico. A tríade poie- sis-mimesis-kátharsis descreve, de maneira exclusiva, o m undo da poesia, sem confusão possível, observa Paul Ricoeur, com a tríade retórica-prova-persua- são. Por tal fato, os oradores latinos faziam correr em seu tempo a máxima: poeta nascitur, orator facitur (o poeta nasce, o orador se faz).
A retórica distingue-se também da dialética, pois esta - ainda que partindo, como a retórica, de premissas prováveis - consiste em uma arte de argumentação visando ao universal (como indica claramente seu papel no estabelecimento dos princípios da filosofia). A relação entre retórica e dialética ocupa os três primeiros capítulos do Livro I da Retórica. E parece mesmo que, para Aristóteles (ao contrário de Platão), o intercâmbio entre dialética e retórica assume a função de complementaridade para aquela na mesma medida em que aquela está para esta. A relação entre retórica e dialética é, como revela Olivier Reboul (31), além de complexa, alvo de muita controvérsia em razão dos diversos tipos de articulação estabelecidos entre ambas por Aristóteles. A superação da controvérsia pode, contudo, ser alcançada, se for considerada a sugestão efetuada por Reboul propondo o abandono das tentativas de hierarquização com as quais, habitualmente, as disciplinas são tra tadas, e se, ao contrário, insistir-se em analisar retórica e dialética em um mesmo plano, destacando-se as características compartilhadas:
• As duas são de aplicação universal: ambas podem sustentar uma tese (e seu contrário); ambas possibilitam discussão de tudo que é controverso.
• Ambas utilizam técnicas semelhantes; retórica e dialética são capazes de provar uma tese ou seu contrário - o que não significa as duas teses serem necessariamente equivalentes, pois então se cairia na sofistica: pode-se argumentar mesmo em favor de uma tese fraca.
• Ambas desenvolvem procedimentos argumentativos similares.• Ambas são capazes de estabelecer as diferenças entre o verdadeiro e o não-
verdadeiro: ambas são capazes de fazer distinção entre verdadeiro e aparente (a dialética, entre o verdadeiro silogismo e o sofisma; a retórica, entre o realmente persuasivo e o logro).
• Ambas utilizam dois tipos idênticos de argumentação: indução e dedução.
Tais semelhanças, quando somadas aos aspectos próprios da cultura grega da Antiguidade, particularmente aquele que associa a oratória às práticas competitivas e artimanhas próprias do jogo - pois era assim, observa Nietzsche (25), que se caracterizava a especificidade da vida helênica: todas as atividades
A Retórica de Aristóteles 13
de entendimento, da seriedade da vida, da necessidade e mesmo do perigo eram concebidas como um jogo - , problematizam o significado do termo techné.
Quando se procura observar retórica, dialética e poesia da perspectiva do jogo, a compreensão do conceito de techné se amplia, pois o entendimento quase mecanicista que, modernamente, possui a palavra técnica não faz jus ao aspecto lúdico que também possuem tais artes. Retórica e poética, além de produto do Homo sapiens (que caracteriza o lado racional da espécie hum ana), são também manifestações do Homo ludens- para lembrar a nomenclatura empregada por Johan Iluizinga (18). Tal compreensão também possui Emmanuel Kant, que considera a retórica a “arte de exercer um ofício do entendimento” (portanto, um instrumento do intelecto ou do aspecto racional próprio da humanidade), mas com a manifesta presença do aspecto lúdico, pois, para Kant, retórica e poesia são também uma espécie de jogo.
As artes elocutivas são a eloqüência e a poesia. Eloqüência é a arte de exercer um ofício do entendimento como um jogo livre da faculdade da imaginação;
a poesia é a arte de executar um jogo livre da faculdade da imaginação como um ofício do entendimento.
O orador, portanto, anuncia um ofício e executa-o como se fosse simplesmen
te um jogo com idéias para entreter os ouvintes. O poeta simplesmente anuncia um jogo que entretém com as idéias e do qual contudo se manifesta tanta coisa para o entendimento como se ele tivesse simplesmente tido a intenção de
estimular o seu ofício. (20, p.227)
Quando, enfim, retórica, poética e dialética são avaliadas em consonância com os aspectos mais característicos da cultura grega, tal postura crítica permite melhor compreensão de singularidades e alcance de tais technés. Todo jogo possui, como postulado, um ganhador e um perdedor, e, como observa Olivier Reboul, o postulado da dialética é a máxima vencer é convencer. Ou seja, a dialética se apresenta como uma espécie de jogo no qual, por meio de observação e obediência a um conjunto de regras determinadas, visa-se a provar ou refutar uma tese. Trata-se, diz Reboul, da parte especificamente ar- gumentativa da retórica, o que, por sua vez, permite não somente distingui- la da sofistica, mas também da filosofia, já que o sofista não joga, antes simula jogar, pois seu desprezo pelas regras destrói a própria essência do jogo. Do mesmo modo, a filosofia, mesmo observando as regras naturais do jogo, tam bém não joga, porque seu fim transcende o próprio jogo, já que seu objetivo não é a vitória, mas a procura da verdade.
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Para Reboul, a dialética não é moral nem imoral, simplesmente por, no fundo, ela ser um jogo - um jogo especulativo. Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes que se cruzam como dois círculos em intersecção, em um processo interativo. Dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Retórica é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrum ento intelectual. E, conforme alerta Reboul, se tais círculos podem cruzar-se, é por se situarem no mesmo plano e por pertencerem, em sentido estrito, ao mesmo mundo. Ou seja: a retórica utiliza a dialética para convencer. Não é sem razão, portanto, Aristóteles iniciar a Retórica constatando não somente similitudes entre retórica e dialética, mas também quão natural é para o ser hum ano a disposição para o debate.
A Retórica não deixa de apresentar analogias com a Dialética, pois ambas tratam de questões que de algum modo são da competência comum de todos os
homens, sem pertencerem ao domínio de uma ciência determinada. Todos os homens participam, até certo ponto, de uma e de outra; todos se empenham dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apre
sentar uma defesa ou uma acusação. (4, p.29)
A relação entre retórica e dialética, observada no primeiro parágrafo da obra, é reiterada outras vezes por Aristóteles. Primeiro, quando se propõe expor sobre a utilidade da retórica e reafirma que “a Retórica não se enquadra num gênero particular e definido, mas que se assemelha à Dialética” ( ibid., p.31); depois, no Capítulo II do Livro I, quando o filósofo afirma:
A Retórica é uma parte da Dialética e com ela tem parecenças, como deixamos dito logo no princípio. Com efeito, nem uma nem outra é ciência com seu ob
jeto definido, cujos caracteres se dê ao trabalho de investigar. São apenas facul
dades de fornecer argumentos. (ibicí., p.34)
E, não bastasse tais reiterações, logo após, no mesmo capítulo, retoma o assunto ao fazer a seguinte constatação:
A Retórica não encarará teoricamente o provável para cada indivíduo, por
exemplo, para Sócrates ou Hípias, mas sim o provável para homens desta ou daquela condição, e nisso se assemelha à Dialética. Esta última não raciocina
por silogismo, partindo de quaisquer premissas ao acaso - pois há premissas
A Retórica de Aristóteles 15
que até loucos podem admitir mas parte do que precisa ser estabelecido pelo
raciocínio, ao passo que a Retórica estriba-se em fatos que já estamos habituados a pôr em deliberação. (ibid., p.35)
O mérito principal da leitura concebida por Reboul encontra-se no estabelecimento não apenas do contraste, mas também do paralelismo entre retórica e dialética, colocando em destaque quão determinante é para ambas o auditório com o qual interagem, pois tanto um a quanto outra compartilham a ambição de vencer a disputa que caracteriza o debate de idéias. Os meios de demonstrar, isto é, de recorrer às provas como mecanismo de persuasão, são idênticos, afirma Aristóteles, para a retórica e para a dialética: o método indutivo e o dedutivo. No entanto, a retórica se serve de um silogismo (método dedutivo) específico, do mesmo modo que se serve de um jeito singular do método indutivo, pois o silogismo ou método dedutivo próprio da retórica é o que Aristóteles chama de silogismo retórico ou, segundo a terminologia aris- totélica, entimema. Do mesmo modo, o método indutivo próprio da retórica é, na terminologia de Aristóteles, o exemplo, que, segundo o filósofo, possui a virtude de atingir o geral partindo de casos individuais. Sobre a eficácia de um e outro instrumento de persuasão retórica, Aristóteles afirma: “os discursos baseados nos exemplos prestam-se mais que os outros para persuadir; mas os discursos baseados em entimemas impressionam mais” (ibid., p.34).
Os entimemas, por se ligarem à capacidade de raciocínio e argúcia crítica do orador, são argumentos ligados ao ethos, enquanto os exemplos, por serem referências tiradas do universo e da realidade nos quais está inserido o auditório (e com quem o orador ou ethos interage), são argumentos ligados ao pathos. Entimema e exemplo são, portanto, instrumentos de argumentação marcados pela referência ao orador (e à credibilidade dele), bem como à disposição do público em ouvi-lo. Não sem razão Jeanne Croissant afirma:
Ce qui distingue la technique de In persuasion de la pure dialectique cest quaux
preuves logiques viennent s’ajouter des facteurs de persuasion qui résident soit datis le caractere de 1’orateur, soit dans les dispositions affectives qu il creé chez Vauditeur. (15, p. 193)1
1 “O que distingue a técnica da persuasão da dialética p u ra é q ue às provas lógicas vêm se ju n ta r os fatores de persuasão que residem seja n o caráter do orador, seja nas disposições afetivas que ele criou n o ouv in te”.
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A dialética, embora se sirva dos mesmos recursos que a epistemé das ciências teoréticas, ou seja, dos métodos indutivo e dedutivo, utiliza-os em consonância com sua particularidade, razão pela qual, para Aristóteles, o silogismo dialético não se confunde com o silogismo demonstrativo. O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes, necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simplesmente prováveis, os endoxa> aquilo que parece verdadeiro a todo mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indivíduos competentes. O enáoxon opõe-se, observa Reboul, ao paradoxon porque, ainda que verdadeiro, o paradoxo contradiz a opinião aceita.
Podemos raciocinar e deduzir, ora partindo de proposições já demonstradas,
ora, pelo contrário, de proposições ainda não demonstradas e que precisam de
demonstração, porque não são correntemente admitidas. Destes dois meios, um é necessariamente difícil de seguir, devido à sua extensão, porque se supõe
ser o juiz pessoa simples. O outro não se presta, por natureza, para persuadir, visto que não parte de proposições, sobre as quais reine completo acordo e que sejam correntemente admitidas. (4, p.35)
A dialética renuncia à verdade das coisas em benefício da opinião aceita. Substitui a pergunta científica o que é? por o que lhe parece? Aristóteles, ao contrário dos sofistas, não se contenta simplesmente com o consenso; antes toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consenso do consenso aparente (phainomenon endoxon). Como observa Michel Meyer:
Aristóteles afirma que a interrogação dialética, longe de ser um verdadeiro processo de questionamento, é na realidade a colocação à prova de uma tese provável para toda a gente, para a maioria, ou para os sábios. Interrogar é fazer admi
tir uma proposição oposta mas igualmente provável, confrontando-a, entre
outras coisas, com os argumentos do adversário. [...] Trata-se de chegar, tanto quanto possível, a uma proposição que exclua o seu contrário, esperando que a
ciência possa decidir apoditicamente, quer dizer, com toda precisão. (22, p.29)
É natural para os seres humanos, observa Aristóteles, a predisposição e inclinação para a verdade: “Os homens são, por natureza, suficientemente propensos para o verdadeiro e na maioria dos casos alcançam a verdade” (Aristóteles, op.cit., p.30), sentença assaz parecida com aquela da metafísica que, outrora, destacamos: “Todos os homens, por natureza, têm o desejo de conhecer”.
A Retórica de Aristóteles 17
E, por isso, retórica e dialética são úteis, pois, aponta o filósofo, “é m anifesto que o papel da Retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente suscetível de persuadir do que só o é na aparência, do mesmo modo que pertence à Dialética distinguir o silogismo verdadeiro do silogismo aparente” (ibid., p.31). O que, no entanto, é dialética para Aristóteles? A dialética constitui, para ele, a parte da lógica que estuda os raciocínios dialéticos ou prováveis. Assim, discurso retórico é o texto que pretende persuadir sobre um a questão provável, dialética. Um discurso retórico é feito de questões prováveis, dialéticas, sendo esse, portanto, seu objeto material. E, por o discurso retórico se apresentar da perspectiva persuasiva, a persuasão é seu aspecto formal. Dessa forma, todo discurso retórico supõe outro discurso em confronto. Todo discurso retórico pede outro discurso em ato ou potência: um discurso se faz antes de outro discurso e supõe um discurso posterior, que pode ser imediato, retardado ou ficar em aberto, pois a matéria do discurso retórico é dialética.
Para entender a natureza dos raciocínios dialéticos, imaginemos uma situação na qual nos encontremos diante de uma questão e nosso espírito fique, em dúvida, flutuando entre duas alternativas. A ciência resolve a dúvida e chega à certeza. No entanto, o âmbito da ciência é restrito. Nem sempre ela dá uma solução indiscutível. Se estamos, portanto, em face de uma dúvida e não há uma resposta científica, e ainda assim precisamos decidir e tomar uma atitude, buscamos a alternativa mais provável, a que pesa mais; e, se não chegamos à certeza, ao menos atingimos uma opinião que oferece probabilidades.
Para Dante Tringali (35, p.26), o conhecimento científico funda-se em raciocínios verdadeiros e evidentes e levam a uma conclusão certa; os raciocínios dialéticos, em vez de verdade, oferecem probabilidades ou crenças, isto é, opiniões gerais. Em vez da evidência intrínseca do juízo, apóiam-se na autoridade da crença da maioria dos homens ou na maioria dos entendidos. Em vez de certeza, engendram o estado de espírito chamado opinião ou probabilidade no qual o entendimento se inclina para um dos lados da alternativa, mas tem receio de que a outra alternativa possa ser mais provável. Sempre que, diante de uma dúvida, não é possível chegar à certeza (à ciência), somente a probabilidades, está-se em face de uma questão dialética, objeto do discurso retórico.
Retórica e dialética baseiam-se, ambas, em raciocínios dialéticos e geram uma área de conhecimentos prováveis, o m undo da opinião. Diferem elas no plano formal, pois a retórica se realiza por meio de um texto contínuo, ininterrupto (um discurso se contrapõe a outro discurso), enquanto a dialética opera pela conversação e pelo diálogo, desenrolado por falas alternadas, com
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relativa brevidade. Quando se pergunta a Zenão a diferença entre as duas disciplinas, ele se limita a abrir e fechar a mão: a mão aberta alude à abundância da retórica; a mão fechada, à concisão da dialética.
A dialética, afirma Pierre Aubenque (6, p.286), refuta no real, mas só demonstra na aparência. Na retórica, complementa Reboul (31, p.38), na qual não se sustenta uma tese, mas se defende uma causa, na qual não se joga com idéias, mas o que está em jogo no discurso é o destino judiciário, político ou ético dos homens, é preciso levar a sério o na aparência como verossímil que faz as vezes de uma evidência sempre inapreensível. A retórica só atinge o verossímil, o que acontece no mais das vezes, mas que poderia acontecer de outra forma. Eqüivale a dizer que ela só é possível em certo mundo. E retórica e dialética, no interior do sistema filosófico de Aristóteles, pertencem ao mesmo mundo, pois, dos dois m undos estabelecidos por Aristóteles, o lunar e o sublunar, retórica e dialética estão inseridos neste último.
Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o m undo lunar, o céu, não cognoscível pela fé, mas, ao contrário, pela razão demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invisível, Deus, quanto o divino visível, os astros, objeto da astronomia matemática, pois, sendo seus movimentos necessários, são calculáveis e previsíveis. Abaixo, o m undo sublunar, a Terra, onde existem acaso, contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil - mundo, enfim, aberto à ação humana.
Por tais fatos, para Reboul, retórica e dialética devem ser pensadas como “duas disciplinas que se recortam, como dois círculos que apresentam uma in- tersecção” (op.cit., p.51). Ambas pertencem a um mundo pleno de interrogações, pois, como adverte Pierre Aubenque, “num mundo perfeitamente transparente à ciência, isto é, onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para a ação humana”^ , p.68).
E justamente por tal razão que a retórica não aparece no interior da obra de Aristóteles como técnica de argumentação lógica ou de consideração apo- dítica, mas como técnica de argumentação verossímil, que se materializa e ganha forma por meio dos silogismos retóricos, isto é, os entimemas. Como observa Paul Ricoeur em A metáfora viva:
O gênero de prova que convém à eloqüência não é o necessário, mas o verossí
mil, pois as coisas humanas, a respeito das quais os tribunais e as assembléias deliberam e decidem, não são suscetíveis de qualquer sorte de necessidade, de de
terminação intelectual, que a geometria e a filosofia primeira exigem. (32, p.22)
A Retórica de Aristóteles 19
Partimos de uma constatação elementar sobre a qual Aristóteles não pára de insistir: a relação retórica liga um orador e um auditório por meio da linguagem, permitindo, enfim, estabelecer um processo de comunicação. À dimensão do orador Aristóteles chama ethos, pois nada é mais convincente ou sedutor do que a força moral, o caráter e as virtudes de autoridade, os quais devem tornar-se prova da matéria do que procura persuadir ou agradar. Aristóteles caracterizou a dimensão do auditório como pathos, pois o que escuta o discurso do orador é atravessado pelas paixões postas em movimento pelo tema tratado (donde o conceito de emoção). Quanto à dimensão que recobre a linguagem, Aristóteles a chamou de logos, definido, às vezes, por estilo ou razão, figuras ou argumentos, ou, como dito hoje, pelo figurado e pelo literal. A retórica é estudada, portanto, segundo o recorte ethos-pathos-logos, e nisto reside sua especificidade.
Retórica, persuasão e ética
A vocação original da retórica é ser uma teoria geral do discurso persua- sivo, isto é, essencialmente um a teoria da argumentação. Por tal fato, a tradição latina, herdeira dos princípios aristotélicos, sob a voz de um de seus mais significativos pensadores, Cícero, anunciava as finalidades da retórica com três princípios distintos ( tria officia): docere, ensinar, informar; movere, m over (“co-mover”) os sentimentos; e delectare, encantar, seduzir.
Tais princípios revelam as duas orientações pelas quais, tradicionalmente, a retórica clássica é compreendida: de um lado, a visão da retórica como instrumento de psicagogia, que atua pela “co-moção” da psique, por sedução, utilizando a eficácia simbólica da palavra; de outro, a compreensão da retórica como demonstração da verossimilhança por meio da prova. Isso, por sua vez, implica uma teoria da prova e, também, a noção, como verificado anteriormente, de o raciocínio retórico-argumentativo não ensinar a verdade (aletheia), como ocorre com a epistemé, mas apenas um a aproximação à verdade, à verossimilhança, modificável no tempo e no espaço, isto é, a opinião (doxa).
A teoria da argumentação não pode adm itir que toda prova seja reduzida à evidência, pois, caso se admita a teoria da argumentação como estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou acrescer a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento, está-se a pressupor a adesão dos espíritos ser de intensidade variável. Não se debate ou discute sobre o evidente e sobre as questões em torno das quais impera consenso, com
20 Direito e Argumentação - Parte 1
preensão comum ou unanimidade de juízos. A função da retórica reside na organização do discurso visando à deliberação e não se delibera sobre o que se tem certeza.
A retórica é a arte de persuadir pelo discurso e, afirma Aristóteles, “nenhum a outra arte possui esta função” (4, p.33). Não é, portanto, aplicável a todo tipo de discurso, mas aos que têm a persuasão como parte de sua natureza, como pleito advocatício, alocução política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio e tratados de filosofia, teologia ou ciências humanas. O uso do discurso persuasivo não é genérico, mas restrito, pois, como observa Aristóteles, “usamos os discursos persuasivos para provocar um juízo, pois não há necessidade de discursos para os pontos que conhecemos e sobre os quais já temos juízo formado” (ibid., p.139).
A retórica diz respeito, portanto, ao discurso persuasivo ou ao que um discurso tem de persuasivo; trata-se do discurso que leva alguém a crer em alguma coisa, tal qual observação de Arthur Schopenhauer:
A eloqüência é a faculdade de fazer partilhar as nossas opiniões e a nossa maneira de pensar a propósito de uma coisa, de lhes comunicar os nossos pró
prios sentimentos, de os pôr em sintonia conosco. E devemos chegar a esse re
sultado, fazendo penetrar por meio das palavras as nossas idéias nos seus cérebros com uma força tal que os seus próprios pensamentos se desviam do seu curso primitivo para seguir as nossas. E a obra-prima será tanto mais per
feita quanto o curso das suas idéias difira anteriormente mais da nossa. (apud 25, p.29)
A retórica é uma arte que, para persuadir, utiliza meios de ordem racional e também de ordem afetiva, como acentua Aristóteles, pois a formação de um juízo envolve não apenas a razão, mas também a alma e as paixões da alma. Por isso, além de techné, a retórica é também dynamis, term o empregado por Aristóteles ao expor, no capítulo I do livro I, a função da retórica; “a retórica então pode ser definida como a faculdade de descobrir os meios possíveis de persuasão acerca de qualquer objeto”(£sío dè rhetorikè dynamis peri hékaston toú theorêsai tò endekómenon pithanón). A palavra dynamis significa em grego força e poder para influenciar o curso de alguma coisa. É da mesma raiz do verbo dynamai, que, entre suas possíveis acepções, significa ter poder para, ter capacidade e autoridade para, e ter valor, ter significação. Trata-se de um termo referente a um poder, uma força ou potência de alguém ou algo a quem torna possível certas ações. É a possibilidade ou a capacidade
A Retórica de Aristóteles 21
contida na natureza da coisa ou da pessoa. Em Aristóteles, diz Marilena Chauí (14, p.347), significa o que um ser pode tornar-se no tempo, graças a uma potencialidade que lhe é própria. Na filosofia aristotélica, dynamis é o poder para ser, fazer ou tornar-se alguma coisa.
A tradução brasileira ao empregar o termo faculdade como o símile do original grego dynamis não é de todo feliz, pois não contempla com tal escolha a acepção do termo no texto aristotélico. A retórica trata do poder da linguagem, do poder do uso da palavra e do discurso. Linguagem e discurso não são, afinal, apenas instrumentos de agregação comunitária (que permitem, portanto, a existência das sociedades humanas e mesmo a identificação das nacionalidades, tão bem expressa, por exemplo, por Fernando Pessoa no Livro do desassossego: “Minha pátria é minha língua”). Para Aristóteles, a linguagem é mais do que um elemento característico do ser humano, pois, à diferença dos animais, o homem não apenas fala, mas também faz, por meio de cálculos racionais, a fala tornar-se discurso e, desse modo, instrumento agregador, com o poder de persuadir e fazer crescer na alma humana paixões diversas.
A linguagem agrega os humanos não somente por existir como elemento natural e próprio do Homo sapiens, mas por se tratar de elemento que se transfigura cm produto racional, que se transforma em discurso (logos) e, portanto, em elemento no qual a racionalidade hum ana mostra toda a força de sua existência. Há no pensamento de Aristóteles a compreensão de linguagem e discurso não apenas como elementos próprios da natureza humana, mas também como elementos dotados de uma faceta política e ética. Se é verdade que, em A política, encontra-se uma das mais célebre frases de Aristóteles - “O homem é um animal político por natureza”, frase com a qual o filósofo expressa ser da natureza hum ana buscar a vida em comunidade ou sociedade - , também é fato, na mesma obra, encontrar-se um a reflexão perspicaz sobre a linguagem e sua função:
A nosso ver, a natureza nada faz em vão; e o homem é o único entre todos os animais a ter o dom da palavra. Ora, enquanto a voz (phorié) só serve para in
dicar a alegria e o sofrimento e, por esse motivo, também pertence aos outros
animais (pois sua natureza chega a experimentar as sensações de prazer e de dor e a exprimi-las uns aos outros), o discurso (logos) serve para exprimir o
útil e o prejudicial e portanto também o justo e o injusto: pois é característica
própria do homem em relação aos outros animais ser o único a ter o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e outras noções morais, e é a comu
nidade desses sentimentos que gera família e cidade. (3, p.41)
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A Retórica, de Aristóteles, é a obra na qual o filósofo se propõe realizar uma reflexão, mais do que sobre a linguagem, sobre o logos, isto é, sobre o discurso racional, seus efeitos e usos - o discurso que, como observa o filósofo em A política, serve para exprimir o útil e o prejudicial, bem como o justo e o injusto. Não é, pois, por acaso o pensador constatar a retórica, além de techné, ser também dynamis. Afinal, a função da retórica é a análise do uso e dos efeitos do discurso; e o uso do discurso (logos) envolve uso da linguagem e análise dos sujeitos da linguagem, orador (ethos) e auditório (pathos). Em outros termos, Aristóteles analisa como a ação racional, quando elabora um discurso, pode, por meio do discurso elaborado, transform ar a psique humana, to rnando-se capaz de transformar a percepção e a compreensão que os hum anos têm da realidade na qual estão inseridos. O orador pode, por meio do discurso que elabora, persuadir e, portanto, mover da alma de quem o ouve determinadas paixões, substituindo-as por outras, em consonância com suas intenções de ganhar, para as causas que defende, a adesão de seus iguais.
A força da retórica encontra-se, assim, na possibilidade de a techné favorecer o orador, dotando-o de um discurso compreensível para seus iguais e com poder de “co-mover” a psique deles. Não é sem conseqüência, desse modo, o primeiro livro da Retórica indicar preocupação justamente com a apresentação de uma análise da argumentação produzida pelo orador, enquanto o segundo livro se dedica às argumentações não baseadas na validade formal do discurso, mas na dimensão psicológica própria, segundo o filósofo, a todo discurso: disposição do espírito do ouvinte, credibilidade do orador e paixões que podem animar o auditório.
Ora, uma vez que a Arte Retórica tem por objetivo um juízo - com efeito, julgam-se os conselhos, e a decisão dos tribunais é igualmente um juízo --, é absolutamente necessário não ter só em vista os meios de tornar o discurso de
monstrativo e persuasivo; requer-se ainda que o orador mostre possuir certas
disposições e as inspire ao juiz. Para inspirar confiança, importa sobremaneira, principalmente nas assembléias deliberantes, e também nos processos, que
aquele que fala mostre-se sob certo aspecto, faça crer que se encontra em determinadas disposições a respeito dos ouvintes, e, além disso, encontre estes
nas mesmas disposições a seu respeito. (4, p.97)
E é por tais razões que Aristóteles, ao analisar a natureza das provas fornecidas pelo discurso, divide-as em duas categorias: a das provas afetivas e a das provas retóricas. A primeira é ligada diretamente às paixões da alma
A Retórica de Aristóteles 23
(também de duas espécies: provas ligadas diretamente ao orador ou ethos e provas ligadas ao auditório ou pathos); a segunda categoria é ligada aos aspectos racionais típicos e característicos da espécie hum ana e, por tal, ligada diretamente ao logos.
Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar. (ibid.y p.33)
A preocupação com a ética é uma das bases da Retórica, razão pela qual, ao comentar a natureza das provas afetivas ligadas ao orador, o filósofo adverte a persuasão resultante de tal origem não ser obtida gratuitamente, mas antes, e pelo contrário, de certas condições e pressupostos de natureza ética:
Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso procede de maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de confiança. As pessoas de bem inspiram confiança mais eficazmente e mais rapidamente em to
dos os assuntos, de um modo geral. (ibid.y p.33)
Com tal observação e tais condições ou pré-requisitos impostos ao orador, Aristóteles supera a aporia herdada de Platão, que, como verificado, critica e elimina a retórica do campo dos bens hum anos e também se sobrepõe à insensatez dos sofistas. Para Aristóteles, pois, a retórica não é apenas uma técnica útil (e, portanto, legítima): se seu uso é às vezes desonesto, não cabe censurar a técnica, mas o técnico. Por isso, no início de suas reflexões, expõe a seguinte ponderação:
Muito errônea é a afirmação de certos autores de artes oratórias, segundo a
qual a probidade do orador em nada contribuiria para a persuasão pelo discurso. Muito ao contrário, o caráter moral deste constitui, por assim dizer, a
prova determinante por excelência. (ibid.y p.33)
Para Aristóteles, sem contar as demonstrações (isto é, as provas imanen- tes às qualidades do discurso ou logos elaborado pelo orador e, portanto, a provas ou argumentos associados às qualidades intelectuais do orador), a credibilidade inspirada pelos oradores provém de três causas. São as únicas, segundo o filósofo, que obtêm, efetivamente, nossa confiança: prudência, virtude e benevolência.
24 Direito e Argumentação - Parte 1
Os oradores, quando falam ou aconselham, atraiçoam a verdade por falta destas
três qualidades ou de uma delas. Com efeito, por falta de prudência, suas opiniões são desprovidas de justeza; ou então, com opiniões justas, a maldade os impede de exprimir o que se lhes afigura bom; ou então, sendo prudentes e honestos, fal
ta-lhes a benevolência. Neste último caso, o orador, apesar de conhecer a melhor determinação, não a exprime. Não existe outra causa além destas, (ibid., p.97)
Ao continuar sua análise sobre tipos de provas afetivas, abordando dessa vez as ligadas às paixões suscitadas pelo orador no auditório, Aristóteles considera que “obtém-se a persuasão nos ouvintes quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os juízos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio” (ibid., p.33). Persuadir im plica, portanto, o orador ser capaz de desenvolver no auditório paixão ou emoção adequada a seus objetivos de persuasão, pois “os fatos não se revelam pelo mesmo prisma, consoante se ama ou se odeia, se está irado ou em inteira calma” (ibid., p.97). É assim que Aristóteles dedica os dezessete primeiros capítulos do Livro II ao estudo da confiança que o orador deve inspirar (Capítulo I), às diferentes paixões que animam os homens (do Capítulo II ao XI), ao caráter do ouvinte conforme seja ele jovem ou idoso, rico ou não (do Capítulo XII ao XVII), do mesmo modo que reitera, ao abrir o Livro III, existirem provas afetivas e provas retóricas e que “a convicção dos juizes resulta ora do estado em que conseguimos colocá-los, ora das disposições que eles conferem aos que falam, ora, finalmente, da demonstração que lhes foi apresentada” (ibid., p. 173).
As provas retóricas são as construídas com emprego da dialética, entimemas e exemplos, provas que fazem a retórica acasalar-se com a dialética e aproximar- se da lógica, transformando-se na “parte propriamente argumentativa” da retórica, conforme palavras de Olivier Reboul e de que tratamos anteriormente.
O sistema retórico
O discurso retórico é posto por Aristóteles como produto da razão, da mente racional típica e característica da espécie Homo sapiens. Trata-se, pois, de produção estrategicamente pensada, analisada e refletida e, por tal, em nada se assemelha, por exemplo, com mecanismos literários da cultura m oderna, que, ao valorizar a espontaneidade da expressão como meio legítimo da expressão, possibilitou, em um extremo, o surgimento da revolucionária poesia de Arthur Rimbaud com seu livro Iluminações e, no outro extremo, o
A Retórica de Aristóteles 25
aparecimcnto da escrita automática consagrada pela vanguarda surrealista. Por tratar-se de discurso compreendido como produto racional - e, portanto, resultante de uma estratégia racional - , a retórica consagrou um plano para elaboração e construção do discurso, plano que se revela nitidamente método ou metodologia de argumentação.
A tradição oriunda do estoicismo romano procurou, por intermédio de Cícero, justificar tal estrutura metodológica de origem aristotélica, tecendo as seguintes considerações: “Etenim caussa prosita prim um intelligere debenus, cujus modi cuassa sit, deinde invenire, quae, apta sint caussae, tum inventa rec- te et cum ratione disponere” (É preciso primeiro compreender o que a causa implica, a que gênero pertence, em seguida descobrir o que está adaptado à causa, enfim dispor o que se encontrou de maneira justa e racional).
Aristóteles abre o Livro III da Retórica afirmando: “três são as questões relativas ao discurso que precisam ser versadas a fundo: a primeira donde se tirarão as provas; a segunda, o estilo que se deve empregar; a terceira, a m aneira de dispor as diferentes partes do discurso”.
Aristóteles está a se referir respectivamente às diferentes etapas previstas pelo método retórico para elaboração do discurso: euresis, lexis e táxis ou, como consagrou a tradição latina, inventio, elocutio e dispositio. Essas etapas constituem a primeira parte do sistema retórico e dizem respeito apenas aos aspectos da escrita.
Ocorre, contudo, o sistema retórico prever, além da concernente à escrita, uma segunda parte relacionada à oratória. Desse modo, a configuração completa do sistema retórico é, em verdade, constituído de duas grandes partes: a primeira - concernente à escrita - é composta de três etapas; e a segunda - concernente à oratória - , de outras duas etapas.
T a b e la 1 S is tem a re tó r ico
ESCRITA ORATÓRIA
Terminologia das Etapas Terminologia das Etapas
1. Descoberta (euresis/inventio) 4. Memória (mneme/memoria)
2. Ordenação (tóxis/dispositio) 5. Exposição (hypôkrisis/actio)
3. Expressão (lexis/elocutio)
A etapa da descoberta (euresis, em grego, ou inventio, em latim) é o m omento no qual ocorre o estoque do material argumentativo para a construção
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do discurso, quando se elaboram argumentos, provas e outros meios de persuasão relativos ao tema do discurso. Invenção, do latim inventio, liga-se ao verbo invenire, encontrar, descobrir, achar. Invenção é o ato de procurar e achar.
Invenção nas ciências e nas artes designa a descoberta do novo, do original, do desconhecido. Em retórica e dialética, porém, significa procurar e achar o escondido e guardado. Invenção no sentido estrito e específico, na Retórica, limita-se à busca das provas que constituem a substância da invenção. E tal é sua relevância que Aristóteles chega a definir a retórica pela invenção (a arte de achar em qualquer questão os meios de prova).
As provas se encontram e não se criam, mais uma vez, em razão de raciocínios da retórica (e também da dialética) diferirem de raciocínios científicos por força da matéria (raciocínios científicos levam à certeza; raciocínios retó- rico-dialéticos, a probabilidades). Em função disso, as provas na retórica sempre giram em redor de alguns capítulos gerais: há um repertório prévio de lugares onde encontrar as provas. A invenção, a busca de provas, é uma operação comum à retórica e à dialética; por tal razão, Aristóteles criou uma disciplina chamada tópica, a qual estuda a invenção na retórica e na dialética.
A tópica ensina onde encontrar os lugares dos quais se tiram as provas. A palavra lugar possui, contudo, na filosofia de Aristóteles, sentido figurado, distingue lugares previamente mapeados nos quais se encontram as provas para o discurso persuasivo (lugares se traduz em grego por topoi e, em latim, por loci). Os lugares se dizem comuns e especiais e podem servir aos três gêneros oratórios ou só a um.
Lugares, topoi ou loci são definidos como certas noções gerais ou conceitos, expressos por uma ou poucas palavras, dos quais se tiram os argumentos (de forma figurada e o que convencionalmente se chama sedes argumento- rum). Em Aristóteles, os lugares são os de definição, divisão, etimologia, gênero, espécie, diferença, propriedade, acidente, causalidade, termos contrários e circunstâncias.
A etapa da ordenação (táxis, em grego; dispositio, em latim) trata da maneira de dispor as diferentes partes do discurso, o qual deve ter os seguintes componentes; exórdio, proposição, partição, narração/descrição, argumentação (confirmação/refutação) e peroração. Tal estrutura é ainda hoje empregada pelo discurso jurídico, particularmente na organização da petição, que possui como estrutura característica um análogo dessa tradição aristotélica. Direcionamento, qualificação e narração dos fatos próprios da petição são análogos a exórdio, proposição, partição e narração/descrição de Aristóteles; argumentação petitória é análoga à argumentação (confirmação/refutação) de Aris
A Retórica de Aristóteles 27
tóteles; e a conclusão da petição (quando ocorre o pedido) é análoga à perora- ção aristotélica. Trata-se da organização interna do discurso, de seu plano.
A disposição consiste na distribuição das partes dentro do todo, ordenando-as de modo a constituir uma unidade complexa na qual nada fique solto, a esmo. A ordem da seqüência das partes obedece a critérios lógicos ou psicológicos. Metaforicamente, o discurso se assemelha a um ser vivo, um organismo (lembra Platão no Fedro). Para Aristóteles, o discurso constaria de duas partes essenciais, isto é, exposição do problema e provas, acrescentando uma parte introdutória e uma conclusão:
1. Exórdio• Proposição• Partição• Argumentação
- Confirmação- Refutação
2. Peroração
O exórdio é a parte introdutória do discurso, o primeiro contato entre ré- tor e público. Assinalam-se três objetivos à introdução: captatio benevolen- tiae, obter a benevolência dos ouvintes, tornando-os simpáticos, bem-dispos- tos, favoráveis; obter a atenção dos ouvintes de modo a evitar que se distraiam; tornar os ouvintes dóceis, sujeitos à influência do rétor (para terem atitude mais receptiva e se deixarem guiar).
A proposição assinala, em relação ao tema, à questão, o partido que o rétor tomará, pois o discurso sempre parte de uma tomada de posição. O rétor se situa sempre em um dos lados, em uma perspectiva, e assim está constituída a causa. A proposição define o status quaestionis, isto é, o m om ento no qual o rétor enuncia, em termos precisos, por meio de uma proposição, exatamente o que vai defender (a partir daí a questão fica fixada).
A partição caracteriza-se pela indicação feita pelo rétor aos ouvintes do roteiro que vai seguir, ou seja, as etapas que enfrentará no desenvolvimento do discurso.
A argumentação é a parte mais densa e substancial do discurso, pois aqui se concentram as provas. Argumentação é a atividade pela qual se produzem argumentos. Argumento é um raciocínio exteriorizado pelo qual se prova, ou se refuta, alguma coisa. A argumentação compreende duas atividades: confirmação, na qual são emitidos argumentos que defendem o próprio ponto de
28 Direito e Argumentação - Parte 1
vista, e refutação, na qual são invalidados argumentos que sustentam o ponto de vista contrário.
A peroração é o fecho, a conclusão, o m om ento decisivo, pois, como alertavam os retóricos romanos, finis coronat opus (o fim coroa a obra). Para Aristóteles,
a peroração compõe-se de quatro partes: a primeira consiste em dispor bem o ouvinte em nosso favor e em dispô-lo mal para com o adversário; a segunda
tem por fim amplificar ou atenuar o que se disse; a terceira, excitar as paixões no ouvinte; a quarta, proceder a uma recapitulação. (4, p.220)
Trata-se, portanto, como indica o pensamento de Aristóteles, da etapa na qual o rétor procura observar os seguintes princípios:
• recapitulação - resumo dos pontos mais contundentes e pertinentes do discurso de modo a fixá-los na cabeça dos ouvintes;
• apelo ao ético e patético - prática dos recursos visando a comover o auditório (e indispô-lo contra o que ou quem se argumenta);
• amplificação - ênfase de uma idéia, intensificando-a. De acordo com a conveniência, engrandecem-se as idéias fracas e se diminuem as fortes. Amplifica-se a idéia por meio do ornamento, com figuras. A amplificação serve para expor e comover. Pode aparecer em outras partes, mas aqui encontra seu melhor lugar.
A etapa da expressão (lexis, em grego; elocutio, em latim) trata do estilo e das escolhas que podem ser feitas no plano da expressão para que haja adequação de forma e conteúdo. Elocução deriva do latim elocutio, da família do verbo eloqui, falar, exprimir-se por palavras, falar com arte. Etimologica- mente, elocução significa ação de falar, de se exprimir; na terminologia da retórica, indica a ação de escrever o discurso, por ser regra escrevê-lo e decorá- lo para, depois, pronunciá-lo em público. A retórica repudia a improvisação. A elocução é o ato de compor o discurso, eqüivale à inventio; enquanto na invenção se buscam as coisas, res, materiais, as provas, na elocução se buscam as palavras, verba. Na invenção se trata do que se dirá; na elocução, do modo de dizer, pois vigora a forte convicção de não se escrever bem sem ter idéias e sem amadurecê-las (só escreve bem quem pensa bem). A elocução não se limita a apenas escrever o discurso, mas almeja escrever bem, com arte; a elocução acaba por ser uma arte de composição e estilo. E dentro dela se desen
A Retórica de Aristóteles 29
volve a teoria da forma ornada, a teoria das figuras, que ocupa o centro da elocução. São qualidades da elocução: correção, clareza, adequação, isto é, o justo uso da elegância por meio do estilo simples, médio ou sublime.
A elocução é, entre as etapas do sistema retórico, a que ocupa o maior espaço no conjunto do Livro III da obra de Aristóteles. Diz o filósofo na Retórica: “Não basta possuir a matéria do discurso; urge necessariamente exprimir-se na forma conveniente, o que é de suma importância para dar ao discurso uma aparência satisfatória” ( ibid., p. 173). Questão reiterada pelo filósofo quando observa que
o estilo terá a conveniência desejada, se exprimir as paixões e os caracteres e se
estiver intimamente relacionado com o assunto. Esta relação existe quando
não se tratam de modo rasteiro assuntos importantes, nem enfaticamente as
suntos vulgares, quando não se enfeita de ornamentos uma palavra ordinária; de contrário, cai-se no estilo cômico, como sucedeu com Cleofonte, certas expressões do qual eram deste tipo: “Venerável figueira”. O estilo exprime as pai
xões, se, quando houve ultraje, a expressão é a de um homem irado; se a ação é ímpia e vergonhosa, se adota o tom de um homem cheio de indignação e de
reserva nas palavras. Se a matéria é elevada, falar-se-á com admiração. Se é dig
na de compaixão, usar-se-ão termos de humildade. E o mesmo nos demais casos. O que contribui para persuadir é o estilo próprio do assunto, {ibid., p. 187)
São conhecidos e ainda válidos os dispositivos e preceitos que, segundo Aristóteles, são próprios do bem dizer: correção, clareza, concisão, adequação e elegância. Sobre a clareza, afirma o filósofo ser a virtude maior do estilo, pois “se o discurso não tornar manifesto seu objeto, não cumpre sua missão” (ibid., p. 176). Sobre a correção, Aristóteles abre o Capítulo V do terceiro livro com a seguinte constatação: “O princípio do estilo é falar com pureza, segundo o espírito da língua” (ibid., p. 184). A exigência do katharon tês léxeôs (a pureza do falar e da língua) não se restringe apenas à correção gramatical, pois é necessária, também, a escolha correta das palavras. Aristóteles diz arché lês léxeôs tò hellênizein (a helenidade é o princípio da língua), o que implica o ethos com bater solecismos (a palavra solecismo vem da colônia ateniense de Sóloi, na Cilícia, onde o grego, segundo Estrabão, era particularmente mau) e barbaris- mos, os quais são os seguintes:
• Prósthesis (adição): por ex., Sôkráten por Sôcrátê.• Aphaíresis (subtração): por ex., Iiermê em vez de Hermên.
30 Direito e Argumentação - Parte 1
• Enallagê (substituição): por ex., êâunámen por eáunámên.• Metáthesis (intervenção): por ex., dríphon por dríphron.• Synailoiphê (fusão): por ex., ho tháteros em vez de ho héteros.• Diaíresis (decomposição): por ex., Dêmosthénea em vez de Dêmosthénê.• Katà tónon ("segundo a acentuação): por ex., boulômai em vez de boúlomai.• Katà chrónous (segundo a quantidade): por ex., tratar uma palavra como
se fosse de sílabas longas, quando, em verdade, é breve.• katà pneuma (segundo a aspiração): por ex., ahyrion em vez de ayruin, omo
por homoy chorona por corona.
Entre os solecismos, o maior pecado é a hakyrologia, por negligenciar a proprietas das palavras. Por proprietas deve-se entender a designação mais completa de uma coisa, de tal forma que não possamos encontrar nada que signifique melhor (quo nihil invenirepotest significantus). Trata-se da precisão na escolha das palavras, evitando a ambigüidade, pois afirma Aristóteles serem três as regras que fundamentam a correção do estilo:
uma primeira consiste 110 emprego correto das conjunções. A segunda consis
te no uso dos vocábulos próprios, sem termos de recorrer às perífrases. A terceira consiste em evitar expressões anfibológicas, a não ser que propositadamente se tome o partido contrário. É o que fazem as pessoas que nada têm que
dizer e que, no entanto, querem dar ares de dizer alguma coisa, (ibid., p. 184)
Observa Friedrich Nietzsche a obscuridade do discurso - solecismo que fere a principal virtude do estilo, segundo observação já ressaltada de Aristóteles - surgir do uso de palavras e expressões antiquadas, em decorrência do comprimento confuso da frase (ferindo o princípio da concisão), das construções cruzadas ou das interpolações. Nietzsche, para ilustrar o pecado da hakyrologia, cita um fragmento do livro Parerga, de seu mestre filósofo Schopenhauer:
Aqueles que compõem discursos difíceis, obscuros, enredados, ambíguos, não
sabem certamente o que é que de fato querem dizer, mas têm apenas uma consciência da qual se diria que se debate para atingir um pensamento; tam
bém freqüentemente querem esconder, a si próprios como aos outros, que não têm nada a dizer, (apuei 25, p.53)
Tanto Nietzsche quanto Schopenhauer revelam muito ter aprendido com Aristóteles, pois, do mesmo modo que em seu livro sobre a retórica cita frag
A Retórica de Aristóteles 31
mento de Schopenhauer, anos depois, em A gaia ciência, de 1882, Nietzsche afirmaria: “Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforçar-se por ser obscuro”
Além das evidentes semelhanças que tais juízos de Schopenhauer e Nietzsche possuem com o fragmento de Aristóteles destacado da Retórica (no qual o filósofo, ao comentar as três regras do estilo retórico, sustenta a terceira regra consistir justamente em “evitar expressões anfibológicas, a não ser que propositadamente se tome o partido contrário. É o que fazem as pessoas que nada têm a dizer e que, no entanto, querem dar ares de dizer alguma coisa”), há de se observar que Aristóteles insiste na importância da clareza como o bem maior do estilo retórico, no Capítulo X do Livro III da Retórica:
É naturalmente agradável a todos aprender sem dificuldade; ora, as palavras
têm uma significação; por conseguinte, as mais agradáveis das palavras são as que nos trazem algum conhecimento. Mas as palavras obsoletas nos são desco
nhecidas, ao passo que conhecemos os termos próprios. Este efeito é muito particularmente produzido pela metáfora. Quando nos dizem que a velhice é como um colmo, fornecem-nos um conhecimento e uma noção pelo gênero:
velhice e colmo, ambos perderam a flor. Surtem o mesmo efeito as imagens dos poetas, pelo que, quando empregadas a propósito, conferem um ar de urbanidade ao estilo. A imagem é, como dissemos acima, uma metáfora, diferindo
dela apenas por ser precedida de uma palavra. Pelo que é menos agradável, pelo fato de ser desenvolvida um pouco mais longamente. Ela não diz o que
uma coisa é, nem é também isso o que o espírito procura. Daí resulta necessa
riamente que o estilo e os entimemas são elegantes, quando geram em nós um
conhecimento rápido das coisas. É o que faz com que não apreciemos os entimemas que saltam à vista, isto é, que são evidentes a todos e que não exigem nenhum trabalho de pesquisa por parte dos ouvintes, como nem os que, depois de enunciados, continuam sendo ininteligíveis. Deliciamo-nos com os
que compreendemos logo que são formulados ou com que a inteligência apreende com pouco atraso. (4, p. 195)
O sistema retórico também prevê a existência de uma parte concernente à oratória, constituída de duas etapas. Cada uma delas, como nos casos anteriores, é dotada de especificidades e funções próprias, mas com a crucial diferença de manter estreita dependência da parte antecedente, isto é, do discurso escrito e elaborado em consonância com as etapas descritas nos parágrafos anteriores.
32 Direito e Argumentação - Parte 1
A etapa da memória (mneme, em grego; memória, em latim) consiste na retenção do material a ser transmitido, considerando-se, sobretudo, o discurso oral, com o qual o orador transmite sua mensagem para um auditório. Para tal finalidade, constituem elementos essenciais a própria estrutura do discurso, sua coerência interna, o encadeamento lógico das partes e a eurit- mia de suas frases. A educação antiga, sob o império da retórica, exalta a memória, principalmente por haver, na Antiguidade, um culto que tributa à memória papel determinante para a cultura personificado na figura de uma deusa. Memória ou Mnemosime (filha do Céu e da Terra ou Uranus e Gaia) é a esposa com quem Zeus, em nove noites consecutivas, gera as nove musas que presidem a cultura.
A etapa da exposição (hypókrisis, em grego; actio em latim) ultrapassa os limites da escrita e não apenas transforma o discurso retórico em oratória, mas também o aproxima do teatro. Nela se incluem os elementos supra-segmentais (ritmo, pausa, entonação, timbre da voz) e a gestualidade. Tal etapa possui o pressuposto segundo o qual é preciso considerar vivamente a presença de um auditório, em relação ao qual o princípio básico é o de adequação, tendo como finalidade convencer pelos raciocínios e persuadir com base na emoção. Trata- se de uma etapa com a qual Aristóteles revela preocupação e cuidado desde o início do Livro III da Retórica, constatando a retórica não se restringir ao verbo e aos limites da escrita. Ela, em verdade, ultrapassa o verbo e adentra os limites da atuação teatral, tendo, por conseqüência, em alguns momentos, simi- litudes com a arte poética, o que, por sua vez, torna o orador, o ethosy também uma espécie de ator e, assim, a retórica algo próximo do teatro.
Procuramos, pois, conforme a ordem natural, o que vinha em primeiro lugar, isto é, o que há de convincente nas próprias coisas. Em segundo lugar vem o estilo, que permite ordená-las, e em terceiro lugar, uma questão da mais alta importância da qual ninguém ainda tratou: o que respeita à ação oratória. Com efeito,
só tardiamente penetrou no domínio da tragédia e da rapsódia, pois de início só poetas dramaturgos representavam eles próprios suas tragédias. É pois evidente
que esta questão faz parte da Arte Retórica, como da Arte Poética. Da Poesia já alguns se ocuparam, por exemplo, Glauco de Teos. Esta ação ocupa-se da voz, das
diferentes maneiras de a empregar para expressar cada paixão: ora forte, ora fraca, ora média; estuda igualmente os diferentes tons que a voz pode assumir, al
ternadamente aguda ou grave ou média, já que se ocupa do ritmo a ser empregado em cada circunstância. Estas três coisas constituem o objeto da atenção dos
oradores: a força da voz, a harmonia, o ritmo. (ibid.y p. 173)
A Retórica de Aristóteles 33
A ação c mais uma enérgeia do que um érgon, isto é, é mais um agir do que um produto ou artefato. A ação consta de uma atividade complexa cujo eixo central é ocupado pela pronuntiatio, pronunciação, que significa o mesmo que recitativo, declamação, e, por tal, envolve, além da prosódia, a gestualidade.
Retórica e gênero jurídico
A retórica, segundo Aristóteles, possui três gêneros de discurso, pois cada um desses gêneros está vinculado aos elementos constitutivos do processo retórico: ethos, logos e pathos. Para o filósofo, os gêneros dos discursos retóricos são, respectivamente, o jurídico (associado ao ethos), o epidítico ou dem onstrativo (diretamente ligado ao logos) e, finalmente, o político ou deliberativo (vinculado ao pathos). Diz Michel Meyer (23, p. 10-1):
O ethos dará lugar ao gênero judiciário, pois o orador só será crível se fizer pro
va da justeza de seus argumentos ou, tão simplesmente, se ele estiver habilitado a proferi-los, igual o juiz no tribunal. O que ele diz deve ser inquestionável
como os fatos. Factualidade e julgamento estão ligados, e vai-se assim da justeza à justiça. O logos será ligado ao gênero epidítico, em que se trata, sobretu
do, do agradável, do belo e do conveniente, daquilo que se aprova ou desaprova por razões estéticas. O que dá lugar ao belo discurso, bem feito, bem torneado,
até mesmo bem argumentado. A retórica literária, com seu estilo e suas figuras, provém diretamente de uma certa autonomia do logos. Quanto ao pathos,
ele se inscreve no jogo da receptividade e da sensibilidade que serão tão im por
tantes para a época romântica, quando definirão a subjetividade. No entanto,
para Aristóteles, o pathos caracteriza, sobretudo, o debate político, porque o único critério de resolução das assembléias é o jogo das paixões. É o gênero deliberativo no qual cada um responde segundo seu hum or e suas emoções.
(Tradução do autor)
Uma parte significativa do Capítulo III do primeiro livro da Retórica é dedicada aos gêneros dos discursos:
São três os gêneros da retórica, do mesmo modo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso comporta três elementos: a
pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala; e o fim do
discurso refere-se a esta última, que eu chamo “o ouvinte”. O ouvinte é, necessariamente, espectador ou juiz; se exerce as funções de juiz, terá de se pronunciar
Direito e Argumentação - Parte 1
ou sobre o passado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futu
ro é, por exemplo, o membro da assembléia; o que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz propriamente dito. Aquele que só tem que se
pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador. Donde resultam necessariamente três gêneros de discursos oratórios: o gênero deliberativo, o gênero
judiciário e o gênero demonstrativo (ou epidítico). Numa deliberação, aconse
lha -se ou desaconselha-se, quer se delibere sobre uma questão de interesse par
ticular, quer se fale perante o povo acerca de questões de interesse público. Uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa: necessariamente os que pleiteiam fazem uma destas duas coisas. O gênero demonstrativo comporta
duas partes: o elogio e a censura. Cada um destes gêneros tem por objeto uma parte do tempo que lhe é própria: para o gênero deliberativo, é o futuro, pois
que delibera-se sobre o futuro, para aconselhar ou desaconselhar; para o gêne
ro judiciário, é o passado, visto que a acusação ou a defesa incide sempre sobre fatos pretéritos; para o gênero demonstrativo, o essencial é o presente, porque
para louvar ou para censurar apoiamo-nos sempre no estado presente das coisas; contudo, sucede que freqüentemente utilizamos a lembrança do passado
ou presumimos o futuro.Cada um destes gêneros tem finalidade diferente: porque há três gêneros, há
três fins distintos. O fim do gênero deliberativo é o útil e o prejudicial, pois, quando se dá um conselho, este é apresentado como vantajoso, e quando se pretende descartá-lo, ele é apresentado como funesto. Por vezes, este gênero
toma algo dos outros, por exemplo, o justo ou o injusto, o belo ou o feio. O fim
para os pleiteantes é o justo ou o injusto, mas acontece que também eles co
lhem elementos dos outros gêneros. Quando se louva ou se censura, as referên
cias são feitas ao belo ou ao feio; sucede todavia que também aqui se introdu- zem no assunto elementos estranhos. Eis a prova de que cada gênero tem o fim que dissemos. Por vezes nem sequer se discute sobre os demais pontos. Por exemplo, um homem citado para comparecer em juízo pode não contestar a
realidade do fato ou do dano; mas o que por nada deste m undo ele não pode confessar é que tenha procedido injustamente, pois, em tal caso, não haveria matéria de processo. Do mesmo modo, também no gênero deliberativo conce
de-se muitas vezes tudo o mais; mas que os conselhos dados sejam inúteis, ou desviem do que é útil, ninguém concordará com isso. Quanto à questão de sa
ber se não é injusto reduzir à escravidão povos vizinhos, contra os quais não
há motivo de queixa, freqüentemente não se encontra a mínima alusão sobre
este assunto nos oradores. Igualmente os que se servem do elogio ou da censura não examinam se a ação foi útil ou nociva a quem a cometeu: vão mais além
A Retórica de Aristóteles 35
e muitas vezes louvam o autor da ação por ter agido nobremente, a despeito de
seu interesse. Por exemplo, Pátroclo, embora sabendo que iria morrer, quando, se não o fizesse, continuaria vivendo. Sem dúvida, semelhante m orte era mais bela para Aquiles, mas seu interesse era viver. (4, p.40-1)
As particularidades dos gêneros retóricos podem ser observadas na Tabela 2.
Tabela 2 Tabela geral da retórica aristotélica
Discurso Aud itó rio Tempo Objetivo Meios Processos Topoi
Jurídico ou judiciário
Juiz
[julgamento]
Passado Justo/injusto[ética]
Acusação/defesa
Entimema Real/irreal
[temporalidade]
Deliberativo ou político
Assembléia[decisão)
Futuro Útil/prejudicial[política]
Persuasão/dissuasão
Exemplo Possível/impossível
[possibilidade]
Epidítico ou demonstrativo
Público[avaliação]
Presente Nobre/vilBelo/feio
[estética]
Elogio/censura
Amplificação Mais/menos[quantidade]
O discurso jurídico é pensado por Aristóteles em consonância com a ética, pois, como mostra a tabela, o discurso jurídico, ao ter como objetivo determinar o justo e o injusto, integra o campo da ética. O orador do discurso jurídico interage com o auditório para persuadi-lo e dele obter uma resposta em forma de ação, isto é, o julgamento de alguma questão envolvendo o campo do direito e, também, o campo da ética. Julga-se um fato determinando se ele, em consonância com os valores da sociedade na qual ocorreu, é justo ou injusto. Seu tempo característico é o passado, pois fato é ocorrência indiscutível, por se tratar de evento pretérito, coisa feita, já acabada; não se confunde com indício, ocorrência possível, mas não certa. Por isso Michel Meyer acentua ser própria da natureza do discurso jurídico a ligação entre factualidade e julgamento, pois a observação precisa de uma ocorrência indiscutível, ou seja, a análise de um fato da perspectiva de ser justo ou não, tornando natural do discurso jurídico o processo no qual a análise precisa das ações, com o intuito de observar a exatidão das ocorrências (a justeza), condição para a prática da justiça.
Os meios empregados para o julgamento justo são acusação e defesa; e o método de raciocínio empregado para a ação de julgar é o dedutivo, pelo emprego do entimema, silogismo retórico cujas premissas são extraídas da doxa, da
36 Direito e Argumentação - Parte 1
opinião, dos valores éticos que imperam em determinado grupo social no qual um possível ato injusto (e aético) ocorreu. Os entimemas pertencem, contudo, segundo observação de Aristóteles, a um tipo de prova resultante da aplicação da techné que é a retórica; e prática e discurso jurídicos também se servem de outras provas que não dependem da arte, isto é, provas que não dependem da aplicação de técnica racional ou elaboração de entimemas persuasivos. Provas, enfim, que existem, afirma o filósofo, independentes da arte retórica: leis, testemunhas, contratos, confissões obtidas pela tortura e juramento.
O discurso jurídico merece do filósofo alguns capítulos do Livro I. No Capítulo X, Aristóteles observa a reflexão sobre a injustiça envolver três questões básicas: natureza e motivos que induzem a cometer a injustiça; disposições dos que cometem a injustiça; e qualidade e disposições das vítimas da injustiça. Para Aristóteles, cometer uma injustiça consiste em causar voluntariamente dano a alguém, por meio da violação das leis. A compreensão da justiça pressupõe, portanto, compreensão de seu contrário, a injustiça; e com preensão da injustiça e das ações injustas implica compreensão de questões puramente éticas, ou seja, compreensão de dano, ação voluntária, violação das leis e leis.
Há, segundo o filósofo, dois tipos de leis: a particular e a comum. Aristóteles considera lei particular a que possui a propriedade de apresentar-se escrita e reger, dessa forma, a polis, isto é, a sociedade. As leis comuns, ao contrário, não se apresentam escritas, mas ainda assim “parece serem reconhecidas por todos os povos” (4, p.67).
Para Aristóteles, uma ação pode ser voluntária quando é deliberada, resultante de uma ação consciente, fruto de ação consciente e escolha racional: “agimos voluntariamente quando sabemos o que fazemos, sem coação de espécie alguma” ( ibid., p.67).
O filósofo reconhece, todavia, nem todos os atos praticados de forma voluntária, isto é, por força da própria vontade, resultarem de aspectos puramente racionais. Aristóteles invade o campo psicológico e das paixões hum anas, pois observa algumas ações voluntárias, antes de serem movidas pela consciência racional, serem, ao contrário, resultantes de impulsos passionais degradados, vícios que contrariam virtudes tais como maldade, intemperan- ça, avareza, covardia, ambição, ira, cobiça, rancor, insensatez e insolência.
Os motivos que impelem os homens, após escolha premeditada, a causarem dano a outrem e a procederem mal para com ele, violando as leis, são a malda
de e intemperança. Com efeito, possuir um ou mais vícios é mostrar-se igual
A Retórica de Aristóteles 37
mente injusto relativamente ao objeto do vício; por exemplo» o avarento relativamente às riquezas; o intemperante relativamente aos prazeres do corpo; o covarde relativamente aos perigos, pois os covardes abandonam, por medo,
seus companheiros de perigo; o ambicioso deixa-se arrastar pelas honras; o colérico, pela ira; o cobiçoso de triunfar, pela vitória; o rancoroso, pela vingança;
o insensato, porque se deixa iludir no concernente ao justo e ao injusto; o in
solente, pelo desprezo que sente pela boa reputação, (ibid., p.67)
Para Aristóteles, as ações do homem derivam de causas exteriores ou internas (seu caráter e complexão moral). Entre as causas exteriores, o filósofo observa umas serem efeito do acaso, outras da necessidade. As ações feitas por necessidade provêm da coação ou da natureza, pois, para Aristóteles, todas as ações humanas provenientes de causas exteriores são resultantes do acaso, da natureza ou da coação. As ações humanas provenientes de aspectos internos, configuração do espírito e complexão moral são, para o filósofo, decorrentes, em parte, de um hábito e, em parte, de uma tendência que pode ser premeditada ou irrefletida, configurando o que o pensador chama de ações voluntárias.
O homem age, portanto, por pressões externas ou movido pela vontade; e
ações resultantes da vontade, as ações voluntárias, são causadas por aspectos racionais próprios da condição hum ana (as ações premeditadas) ou por aspectos passionais (as ações irrefletidas).
A vontade é uma tendência para o bem, pois que ninguém quer senão o que
pensa ser o bem, as tendências irrefletidas são a ira e o desejo. Pelo que, todas
as ações humanas se reduzem necessariamente às sete causas seguintes: acaso,
natureza, coação, hábito, reflexão, ira, desejo, (ibid,, p.68)
Há no universo das ações humanas coisas agradáveis e outras que não o são por exigirem sacrifício, sofrimento, esforço ou trabalho. O prazer, diz o filósofo, é determinado movimento da alma que a reconduz inteiramente e de maneira sensível a seu estado natural; a pena é o contrário. É agradável o que não resulta da coação, pois a coação, observa Aristóteles, é oposta à natureza, e o que é resultado da necessidade é penoso.
Preocupações, aplicação intensa, esforços prolongados são penosos por serem impostos pela necessidade. São agradáveis - entre outras coisas listadas pelo filósofo - distrações, ausência de inquietações e preocupações, jogos, momentos de repouso e sono. É também agradável, afirma Aristóteles, tudo aquilo para o que somos arrastados por um desejo interior, pois o desejo é
38 Direito e Argumentação - Parte 1
uma tendência que nos impele para o agradável. E são também coisas agradáveis praticar o bem e receber benefício, pois, quando se recebem benefícios, obtém-se o que todos desejam. Quando se pratica o bem, é sinal de o possuirmos, e o possuímos em maior escala, duas superioridades que, conforme observação do filósofo, também são ambicionadas.
O campo do gênero jurídico envolve o campo da ética, visto que, para a compreensão do dano, é preciso conhecer seu contrário: as questões concernentes ao bem e ao agradável. É por tal razão que Aristóteles, depois de definir injustiça, dedica parte do Capítulo X e a totalidade do Capítulo XI do Livro I da Retórica para realizar reflexões sobre questões próprias da ética, algumas das quais semelhantes às abordadas pelo filósofo em outra im portante obra, Ética a Nicômacos, com a qual freqüentemente sua Retórica dialoga por meio de alusões e referências. Somente no Capítulo XII o filósofo retoma a questão, introduzida no início do Capítulo X, em torno da definição de injustiça, procurando indicar a razão de sua existência na comunidade humana.
Somos levados a cometer injustiça, quando pensamos que o ato injusto pode ser cometido e cometido por nós; ou que, se forem descobertos, não sofrerão
castigo, ou que, no caso de serem punidos, o castigo será menor do que o lu
cro que esperam para si mesmos ou para aqueles que estão a seus cuidados. [...] Julgamos poder cometer injustiça sem incorrer no menor castigo quando
possuímos o talento de falar, quando somos homens de ação, quando temos experiência dos processos, quando temos muitos amigos e somos ricos. De
modo peculiar, julgamos poder cometer injustiça, quando nos encontramos
nas condições mencionadas; ou então, quando temos amigos, servos ou cúm
plices que satisfazem a essas condições; são outros tantos meios que permitem a injustiça, não ser descoberto e subtrair-se ao castigo. Mesmo que se diga, quando se tem amizade às vítimas ou aos juizes que hão de julgá-las: os amigos não
se acautelam contra as injustiças de seus amigos, e, antes de recorrerem aos tri
bunais, entram em acordo com eles; os juizes favorecem os amigos e, se não o absolvem pura e simplesmente, infligem-lhes penas leves, (ibid., p.76)
Para o filósofo, a prática da injustiça - por ação voluntária do dano ou violação das leis - tem causas determinadas:
• quando o agente não crê na possibilidade de ser descoberto;• quando o agente, apesar de descoberto, crê ser impossível a aplicação de
um castigo;
A Retórica de Aristóteles 39
• quando, ainda que aplicado, o castigo é ínfimo relativamente ao lucro obtido como resultado da ação ilícita;
• quando o agente conta com o dom da retórica ou da argumentação para a vitória sobre os acusadores;
• quando o agente desfruta de amizades influentes, poderosas ou ricas;• quando o agente goza da amizade íntima com o juiz ou conta com a pos
sibilidade de suborná-lo;• quando existe, para o agente, a possibilidade de adiar indefinidamente o
processo, procrastinando-se o julgamento da ação injusta;• quando o agente, percebendo-se indigente, considera não ter nada a perder;• quando a lei existente é ineficaz ou de punição leve para a ação injusta
cometida;• quando o agente considera poder contar com a benevolência no julgamen
to, alegando, por exemplo, necessidade;• quando o agente goza não apenas ótima reputação, mas também estima
sociais;• quando o agente se percebe portador de péssima reputação e considera
não poder ter maiores prejuízos do que os já sofridos.
A compreensão das ações justas e injustas, para Aristóteles, só pode ocorrer em consonância com a compreensão da diferença entre violação das leis e violação da dignidade humana.
O que é justo e injusto foi definido de duas maneiras, relativamente às leis e às pessoas. Digo que, de um lado, há a lei particular e, do outro lado, a lei comum: a primeira varia segundo os povos e define-se em relação a estes, quer seja escrita ou não escrita; a lei comum é aquela que é segundo a natureza. Pois há uma justiça e lima injustiça, de que o homem tem, de algum modo, a intuição, e que são comuns a todos, mesmo fora de toda comunidade e de toda convenção recíproca. (ibid.y p.80)
Aristóteles pondera haver danos que atingem apenas uma pessoa; mas outros há que causam males a toda a comunidade humana. Uma coisa, por exemplo, é alguém ferir outrem, ação na qual “lesa-se apenas um membro determinado”; outra coisa totalmente diferente, nessa perspectiva analítica do filósofo, é, por exemplo, sonegar impostos devidos ao erário público, pois “lesa-se a comunidade inteira” em tal ação.
A Retórica, como observado, alcança, nos momentos em que trata da justiça e das particularidades do gênero jurídico, posições semelhantes às encon
40 Direito e Argumentação - Parte 1
tradas no tratado ético escrito por Aristóteles para seu filho Nicômacos, particularmente no conteúdo do Livro V da obra, concebida pelo filósofo como espécie de legado ético para educar seu então jovem filho. Em tal livro, encontra-se a seguinte definição:
A justiça é a disposição da alma graças à qual elas [as pessoas] se dispõem a fa
zer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idên
tica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma graças à qual elas agem injus
tamente e desejam o que é injusto. (2, p.91)
A Retórica de Aristóteles é, na verdade, um livro híbrido, no sentido de se apossar de conteúdos de outros textos do filósofo (Retórica e Poética constituem a etapa final da famosa arquitetura filosófica e enciclopédica erigida por Aristóteles). Seu texto m antém um diálogo com a obra do autor: realiza o que a lingüística contemporânea chama de diálogo intertextual não apenas com obras alheias, mas, sobretudo, com outros tratados filosóficos do próprio autor. A Retórica comunica-se com os conteúdos de outros livros de Aristóteles ao mesmo tem po que deles se apodera para melhor estabelecer os limites dos textos persuasivos. É perceptível, por exemplo, o diálogo que o Livro I da Retórica - ao tratar da dialética, dos silogismos lógicos, dos silogismos retóricos, ou seja, da estrutura e características das premissas do entimema - e o Livro II - ao tratar dos lugares da argumentação dos quais se extraem as premissas argumentativas - m antêm com o Organon, mais particularmente com a topica, uma das partes desse grande tratado de lógica escrito pelo filósofo antes de seu tratado sobre discurso persuasivo. Do mesmo modo, também é notável o fato de a Retórica dialogar com sua obra co-irmã, Poética: há na Retórica seis alusões à Poética, e na Poética há uma referência à Retórica.
Não é, portanto, estranho Aristóteles revelar conteúdo semelhante ao exposto na Ética a Nicômacos ao tratar do discurso jurídico na Retórica. Além da notável erudição, com a exibição do conhecimento de toda a tradição intelectual de seu tempo, a filosofia de Aristóteles é auto-referente. Tal fato traz para o leitor uma conseqüência imediata, pois, a despeito da clareza de seu estilo e da objetividade de seu discurso (nem sempre respeitados pelos tradutores brasileiros, pois a tradução brasileira da Retórica transformou Aristóteles, injustamente, em escritor barroco), seus textos muitas vezes dão por compreendidas coisas nem sempre explicadas em sua totalidade, ou pelo menos nem sempre definidas com toda profundidade e complexidade com que,
A Retórica de Aristóteles 41
de fato, o filósofo as tratou no conjunto dc sua obra. Na Retórica, embora esteja clara, a definição de ação voluntária não aparece exposta em toda sua complexidade; por ser auto-referente e fazer alusões diretas e explícitas aos conteúdos de outras obras suas - por exemplo, com o uso de notas - , Aristóteles prefere remeter e instigar seu leitor para a leitura de outros livros seus a fazer a repetição automática da explicação plena de determinados conceitos. Assim, na Retórica, ao definir injustiça como “ação voluntária de causar dano” a alguém e ação voluntária como a ocorrida ‘quando sabemos o que fazemos, sem coação de espécie alguma”, Aristóteles remete a seu tratado de ética, quase obrigando o leitor a ler suas reflexões sobre essa ciência prática, bem como a análise sobre a natureza da ação voluntária, para que, desse modo, seja possível melhor compreender a faceta ética de justiça e discurso jurídico.
Aristóteles afirma, na Retórica, a condição necessária para ocorrência de injustiça e justiça ser a existência da voluntariedade. Do mesmo modo, na Ética a Nicômacos há a seguinte passagem:
Sendo os atos justos e injustos aqueles que descrevemos, uma pessoa age injustamente ou justamente sempre que pratica tais atos voluntariamente; quando os pratica involuntariamente, ela não age injustamente nem justamente, a não ser de maneira acidental. O que determina se um ato é ou não é um ato de injustiça (ou de justiça) é sua voluntariedade ou involuntariedade; quando ele é voluntário, o agente é censurado, e somente neste caso se trata de um ato de injustiça, de tal forma que haverá atos que são injustos mas não chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade também não estiver presente. Considero voluntária, como já foi dito antes, qualquer ação cuja prática depende do agente e que é praticada conscientemente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido (por exemplo, quem ele está golpeando, com que objeto e para que fim); além disto, nenhuma destas ações dever ser praticada acidentalmente ou sob compulsão (por exemplo, se alguém segura a mão de uma pessoa e com ela golpeia outra pessoa, a pessoa cuja mão é segura não age voluntariamente, pois a prática do ato não dependia dela). (ibid.y p. 104)
Quando trata do discurso jurídico na Retórica, Aristóteles aproxima a techné da práxis, pois, ainda que para o filósofo as ciências práticas (incluídos ética, direito e política) e as ciências produtivas (incluindo retórica) sejam diferentes por suas finalidades serem distintas, há de se lembrar novamente a
42 Direito e Argumentação - Parte 1
famosa passagem com a qual o autor abre Ética a Nicômacos: “Toda arte (techné) e todo procedimento (méthodos), assim como toda ação (práxis) e toda escolha (proaíeresis) tendem para um bem”. A retórica é uma techné; a ética, ao contrário, uma práxis. No entanto, apesar da distinção (e autonomia) que essas ciências gozam, Aristóteles observa nelas um elemento comum: a tendência para um bem, que para o ser hum ano é sempre uma excelência, uma areté (virtude). Aristóteles não concebe a retórica como arte dissociada da areté.
Em outros termos, a Retórica de Aristóteles, embora seja um tratado a respeito de uma techné da persuasão, não se restringe ao universo da techné (objeto de sua reflexão e análise), pois, entre os gêneros de discursos, segundo o filósofo, próprios dessa arte, encontram-se justamente o deliberativo ou político e o jurídico. Estes, por sua vez, relacionam-se diretamente com duas ciências práticas, política e direito, ambas diretamente relacionadas de m aneira mais ou menos profunda à ética. Se falar em discurso jurídico é de algum modo referir-se ao direito, falar em direito também implica referir-se à ética.
Se a justiça é necessariamente um a ação hum ana voluntária do mesmo m odo que a injustiça, como alertou o filósofo, é preciso, então, com preender a diferença estabelecida por Aristóteles entre ações da natureza e ações humanas. Para Aristóteles, ações hum anas não são como operações na tu rais, pois na natureza cada ser segue as exigências impostas por sua matéria e forma. O hom em , ao contrário da natureza, possui vontade e poder de escolha quando age; encontra-se em seu poder agir de um modo ou de outro. Além de animal político, o homem deve ser um animal ético, por gozar do poder de escolha e deliberação, o que exige suas ações se darem sob determinadas medidas, pois, para o grego, a hybris, a falta de medida, é a origem do vício.
A areté (virtude) é a medida do homem bom e do homem nobre; e a virtude é considerada por Aristóteles como a justa medida: a medida entre os extremos, o justo meio, nem excesso nem falta. Moderar, em grego, diz-se médo, ação que impõe o médio, a medida, méson. A virtude é uma ação-de- cisão de impor limites ao que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar (médo) é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar. A ética é a ciência da m oderação ou, como afirma Aristóteles, da prudência (phrónesis); a virtude consiste na força do caráter educado pela moderação. A virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe segundo a orientação da razão, que determina os fins racionais de uma escolha com vista ao bem do indivíduo: sua fe
A Retórica de Aristóteles 43
licidade (eudaimonía). O virtuoso (o ar is to, aristoi) é feliz por ser prudente, e prudente por ser, além de moderador, moderado.
Para determinar a essência da ação ética, Aristóteles distingue ações involuntárias e voluntárias. O filósofo considera a vontade espontaneidade natural, ou seja, o que a natureza de um ser o leva naturalmente a realizar, e, no caso do ser humano, o que, além de espontâneo, é consciente, por ser resultado de uma deliberação. No entanto, como adverte o filósofo:
A escolha, então, parece voluntária, mas não é a mesma coisa que o voluntário, pois o âmbito deste é mais amplo. De fato, tanto as crianças quanto os animais inferiores são capazes de ações voluntárias, mas não de escolha. Também definimos os atos repentinos como voluntários, mas não como o resultado de uma
escolha. Aqueles que identificam a escolha com o desejo, ou a paixão, ou a as
piração, ou uma espécie de opinião, não parecem estar falando acertadamen- te, pois a escolha não é partilhada também pelos seres irracionais, mas a paixão e o desejo são. {ibid., p.52-3)
O ato involuntário é o realizado somente sob duas circunstâncias: sob constrangimento e coação, quando somos forçados a uma ação pelo poder de uma força externa, ou por ignorância das circunstâncias nas quais agimos - “tudo que é feito por ignorância é não voluntário” {ibid., p.51). O ato voluntário é, portanto, o realizado espontaneamente, sem constrangimento e sem ignorância das circunstâncias, resultado de uma deliberação.
Para saber quando um ato voluntário é ético, Marilena Chauí (14, p .314) observa Aristóteles introduzir a pergunta ética por excelência sobre o que está ou não em nosso poder quando agimos, o que depende ou não de nós em uma ação. O ato ético voluntário é o que depende de nós na ação; o ato regido, sob qualquer circunstância, por um a disposição interior (hexis) nos permitindo responder eticamente à situação; o ato voluntário ético é o ato feito por e com virtude. A definição de virtude realizada por Aristóteles introduz dois elementos essenciais da ação virtuosa, pois a ação virtuosa é, de um lado, uma escolha preferencial (proaíresis); de outro, é uma ação proveniente de uma deliberação racional (boúlesis).
Do mesmo modo que, na Retórica, Aristóteles observa usarmos “os discursos persuasivos para provocar um juízo, pois não há necessidade de discursos para os pontos que conhecemos e sobre os quais já temos juízo formado”, o filósofo constata, no Livro III da Ética a Nicômacos, não deliberarmos sobre todas as coisas.
44 Direito e Argumentação - Parte 1
Será que deliberamos acerca de tudo, e tudo é um possível objeto de delibera
ção, ou a deliberação é impossível acerca de certas coisas? É de presumir que devemos chamar de objetos de deliberação não os assuntos sobre os quais um insensato ou um louco deliberaria, mas aqueles sobre os quais deliberaria um ho
mem sensato. Ora: ninguém delibera sobre coisas eternas - por exemplo, sobre
o universo ou sobre a incomensurabilidade da diagonal do lado de um quadra
do; tampouco deliberaríamos sobre corpos em movimento mas que se movi
mentam sempre de maneira idêntica, seja por necessidade, ou por natureza, ou por qualquer outra causa - por exemplo, os solstícios e a posição dos astros - nem sobre fenômenos que ora ocorrem de uma maneira, ora de outra - por
exemplo, secas e chuvas - , nem sobre eventos fortuitos, como a descoberta de um tesouro; não deliberamos sequer sobre todos os assuntos que interessam
aos homens - por exemplo, nenhum espartano delibera sobre a melhor constituição para os citas, pois coisa nenhuma deste gênero pode ser influenciada
por nossos próprios esforços.Deliberamos sobre coisas que estão ao nosso alcance e podem ser feitas, e são
estas as que ainda estão por ser examinadas. [...] no caso das ciências exatas e
autônomas não há deliberação - por exemplo, sobre as letras do alfabeto (não temos dúvidas sobre a maneira de escrevê-las); mas as coisas influenciáveis por
nossas ações, porém nem sempre de maneira idêntica, são aquelas sobre as quais deliberamos - por exemplo, questões relativas ao tratamento médico ou ao enriquecimento. Deliberamos mais sobre navegação que sobre exercícios fí
sicos, pois estes ainda estão menos organizados como ciência e são menos pre
cisos; acontece o mesmo com outras atividades em condições idênticas, e mais
ainda no caso das artes que no das ciências, pois temos mais dúvidas acerca das
primeiras. (2, p.54-5)
Não deliberamos sobre natureza, necessidade (anánke) e fortuna (tykhe), mas sobre o que depende de razão e ação. Deliberamos sobre o que podemos escolher e escolhemos o que a deliberação nos mostrou ser o preferível. Deliberamos e escolhemos a respeito dos preferíveis e não dos necessários. Conseqüentemente, virtude e vício são atos voluntários, dependendo da natureza da deliberação e da escolha preferencial. O ato virtuoso obedece a três regras: o agente conhece ou sabe o que faz; o agente escolhe a ação e executa por si mesmo; o agente realiza a ação em consonância com uma disposição interior e permanente.
O homem virtuoso é o prudente e a obra do prudente é a moderação, isto é, encontrar medida e regra correta (orthòs logos) para deliberação ou esco
A Retórica de Aristóteles 45
lha da medida justa, da ação virtuosa. A escolha não se identifica com a opinião, pois a doxa se distingue por sua falsidade ou verdade, e não por sua maldade ou bondade, ao passo que a escolha se distingue mais por estas últimas características. A escolha, alerta o filósofo, requer uso de razão e pensamento, pois “seu próprio nome, aliás, parece sugerir que ela é aquilo que é escolhido de preferência a outras coisas” (ibid., p.54).
Ser como se deve ser, e deve-se ser como convém; esses são os adágios da polidez. Ou ainda, segundo as próprias palavras da Ética a Nicômacos, “agir de maneira que convém e quando convém” (2, p.36). O homem prudente, o homem prevenido, sabe relacionar-se com o Kairós. É o homem que sabe o que convém fazer no momento certo. A prudência é a habilidade de apreender, por meio de uma percepção intuitiva do singular, o momento exato de agir.
A retórica encontra-se, para Aristóteles, relacionada à ética e ao universo das virtudes, pois afinal ela é - como depois definiram os retóricos latinos — uma recta ratio agibilium , isto é, um conjunto de regras racionais, justificada para se agir da melhor forma possível. A retórica, sob pena de se negar, deve ser justa; não pode, em hipótese alguma, praticar a injustiça, pois é preferível sofrer a cometer a injustiça. A retórica só terá direitos de cidadania quando se sujeitar totalmente ao império da dialética e, dessa forma, ao império do bem, da justiça, da verdade e do am or ao bem, ao conhecimento e à sabedoria.
A virtude é, para Aristóteles, uma disposição permanente (ou um hábito voluntário) para controlar determinada classe de sentimentos (tidos naturalmente) e, também, uma disposição para agir corretamente em determinada situação (contingente), na qual o sujeito da ação adota nem o excesso nem a falta, mas o justo meio. É possível observar as ações da natureza contingentes e voluntárias, e, entre as últimas, os vícios por excesso e por falta, bem como as virtudes morais (as ações da justa medida ou do justo meio), expostas na Tabela 3.
O termo injusto, lembra Aristóteles, aplica-se tanto a pessoas que infringem a lei quanto às ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que, de fato, têm direito) e iníquas, de tal forma que, obviamente, as pessoas cumpridoras da lei e as corretas serão justas. O justo, então, é o que é conforme à lei e correto, e o injusto é ilegal e iníquo. Em Aristóteles, os atos justos não aparecem dissociados da virtude (areté) e estão ligados ao bem comum, como observa na Ética a Nicômacos:
Chamamos justos os atos que tendem a produzir e preservar a felicidade, e os elementos que a compõem, para a comunidade política. E a lei determina
igualmente que ajamos como agem os homens corajosos (ou seja, que não de-
46 Direito e Argumentação - Parte 1
Tabela 3 Quadro das virtudes morais
Sentim ento ou
paixão(natureza)
Situação na
qual a paixão é suscitada (contingência)
VÍCIO
(excesso)
Deliberação e escolha
VÍCIO
(falta)Deliberação e escolha
VIRTUDE (justo meio) Deliberação e escolha
Prazeres Tocar, ter, ingerir
Libertinagem Insensibilidade Temperança
Medo Perigo, dor Covardia Temeridade Coragem
Confiança Perigo, dor Temeridade Covardia Coragem
Riqueza Dinheiro, bens Prodigalidade Avareza Liberalidade
Fama Opinião alheia Vaidade Humildade Magnificência
Honra Opinião alheia Vulgaridade Vileza Respeito próprio
Cólera Relação com os
outros
Irascibilidade Indiferença Gentileza
Convívio Relação com os outros
Zombaria Grosseria Agudeza de espírito
Conceder prazer Relação com os próximos
Condescendência Tédio Amizade
Vergonha Relação de si com os outros
Sem-vergonhice Tim idez Modéstia
Sobre a boa sorte de alguém
Relação dos outros consigo
Inveja Malevolência Justa apreciação
Sobre a má
sorte de alguém
Relação dos
outros consigo
Malevolência Inveja Justa indignação
sertemos de nosso posto, nem fujamos, nem nos desvencilhemos de nossas ar
mas), e como os homens moderados (ou seja, que não cometamos o adultério nem ultrajes), e como os homens amáveis (ou seja, que não agridamos os outros, nem falemos mal deles), e assim por diante em relação às outras formas de excelência moral, impondo a prática de certos atos e proibindo outros; as
determinações das leis bem elaboradas são boas e as das leis elaboradas apressadamente não chegam a ser igualmente boas. Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em rela
ção ao próximo. Portanto a justiça é freqüentemente considerada a mais elevada forma de excelência moral, e “nem a estrela vespertina nem a matutina é tão
maravilhosa”. (2, p.92-3)
Aristóteles observa que “na justiça se resume toda a excelência”, pois, diz o filósofo, a justiça é a prática efetiva da excelência moral perfeita: “Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo”.
A Retórica de Aristóteles 47
E, na medida em que concebe a justiça como um conjunto de atos que tendem a produzir e preservar a felicidade não apenas individual, mas, sobretudo, coletiva, Aristóteles lembra que a justiça, “e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o bem dos outros”, e
o pior dos homens é aquele que põe em prática sua deficiência moral tanto em
relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo,
e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil. Neste sentido, então, a justiça não é uma parte da excelência moral, mas a excelência moral inteira, nem seu contrário, a injustiça, é uma parte da deficiência moral, mas a defi
ciência moral inteira. (ibid.y p.93)
Conclusão
A obra inaugural da cultura grega clássica, a Odisséia, de Homero (17), em seu Canto VIII, narra a chegada de Odisseu ao palácio do rei Alcino, a festa e a celebração organizadas a pedido do monarca para bem receber o herói forasteiro. Além de boa comida e bebida farta, o rei também se ocupa de trazer à celebração o aedo cego chamado Demódoco, que, ao declamar seus poemas acompanhado da lira, em um a das cenas mais tocantes da epopéia de Homero, leva Odisseu às lágrimas: o herói cobre o rosto com o manto de púr- pura para esconder que, emocionado, chora copiosamente. Depois, contrariando todas as regras da hospitalidade, Laódamas usa a palavra e elabora em público um discurso, por meio do qual desafia o hóspede e herói. Em resposta, saem da boca de Odisseu as palavras: “Os deuses não dispensam igualmente aos mortais seus amáveis presentes: formosura, talento, eloqüência”.
Em linguagem mitológica, afirmava-se que Zeus teria enviado a Eloqüência, guiada por Hermes, aos homens ao ter ficado sensibilizado com a miséria humana. Enviou-a para que os homens pudessem resolver seus problemas e viver melhor. Os gregos consideravam a Peithô (Persuasão), uma deusa poderosa. Segundo Esquilo, a Persuasão era uma deusa, “ser encantador a quem nada se nega”. O discurso oratório era o produto da inspiração divina, diante do qual o ser hum ano era sempre convencido.
Com o advento da cultura filosófica e do discurso analítico, persuasão e eloqüência ganharam outras nuanças, e a Retórica de Aristóteles tornou-se a obra referencial de análise crítico-racional não apenas da eloqüência e da persuasão propriamente ditas, mas também da retórica como techné e dynamis.
48 Direito e Argumentação - Parte 1
Uma obra puramente filosófica e com decisiva influência sobre todas as determinações ulteriores do conceito, como observou Nietzsche, ainda no século xix. Tal fato não evitou, contudo, a retórica, como disciplina, passar por uma decomposição, segundo aguda observação de Michel Meyer e Roland Barthes.
Em primeiro lugar, decomposição de seu prestígio, pois, para o homem comum de nosso tempo, a palavra retórica é sinônimo, muitas vezes, de coisa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa, ou mesmo algo com sentido ainda mais pejorativo: quando designa um discurso de palavras ocas ou de efeito meramente ornamental. Em segundo lugar, a decomposição da própria estrutura do sistema retórico outrora proposto por Aristóteles, trazendo como conseqüência diferentes modos de tratar e compreender a retórica como disciplina. Algumas vezes a retórica é retomada e repensada colocando-se em relevo a invenção, e, nesse caso, torna-se, como em Perelman, uma disciplina preocupada, sobretudo, com argumentação e elaboração de provas ou argumentos segundo os padrões da lógica. Outras vezes a retórica é retomada e reestruturada por meio da ênfase na elocução, e, nesse caso, torna-se retórica da elocução, retórica das figuras, um tratado do bem falar, do bem dizer, ou uma espécie de manual da ornamentação do discurso (iniciado com Quintiliano e, depois, radicalizado nos séculos posteriores, particularmente xvn, xvm e xix). Outras vezes, ainda, a retórica torna-se uma disciplina que coloca em destaque a ação, e, nesse caso, ela se transforma em uma retórica teatral ou gestual (como é o caso dos trabalhos de Vigneaux ou Grize).
Leitura, aproveitamento, discussão, reestruturação e decomposição da retórica aristotélica não são fenômenos recentes e próprios de nosso tempo. Trata-se, ao contrário, de ocorrências antigas, quando, ainda na antiga Roma imperial, a retórica tornou-se um dos mais insinuantes instrumentos de poder; primeiro com o surgimento da Rhetorica ad Herennium (obra atribuída a Cornifício), depois com Cícero, Quintiliano e Tácito.
O primeiro a questionar Aristóteles com consistência intelectual foi Quintiliano, que, no século l da Era Cristã, em nome da lógica, problemati- zou a definição aristotélica de retórica como a técnica de persuadir e encontrar os meios adequados à persuasão que toda questão admite. Para Q uintiliano, o ato de persuadir não pode fazer parte da definição da retórica por nem todo discurso persuadir, e, além disso, muitas outras coisas além do discurso retórico persuadem, como, por exemplo, dinheiro, poder, virtude. Quintiliano pondera, de acordo com as leis lógicas de definição, uma definição só dever valer para o definido: logo, a definição da retórica como arte de
A Retórica de Aristóteles 49
persuadir não a especifica, pois se aplica a muitas outras coisas. Surgiu, aí, o primeiro tratado de retórica no qual, à diferença de Aristóteles, coloca-se em relevo a elocução. Quintiliano - sem menosprezar a ética e questões relacionadas ao justo e à justa medida - define a retórica como ars bene dicendi (arte de falar bem), colocando em destaque não apenas a importância de estilo, elegância e clareza como virtudes justas do bom discurso, mas também enaltecendo questões próprias da oratória.
Surgiu depois um texto misterioso, atribuído a Longino, de profunda influência na cultura ocidental, sobretudo no período renascentista: o tratado chamado Do sublime, no qual a questão da elocução - embora acionada em conjunção com a psicagogia - é ainda mais acentuada, pois se define o sublime pela excelência da linguagem (o máximo da linguagem!). Para Longino, as fontes do estilo sublime se encontram na nobreza das idéias, na força da fantasia e, sobretudo, na autenticidade das grandes paixões (o estilo sublime deriva do patético).
No século XVIII, com o Iluminismo e o Racionalismo na França e na Alemanha, o pensamento de Aristóteles é revisto. DVVlembert distingue persuadir de convencer: persuadir significa comover, e convencer, conquistar a m ente. No entanto, é Kant, o mais decisivo e influente filósofo da era iluminista, quem vai - efetivamente - retomar as censuras inaugurais de Platão à retórica. Primeiro, contrariando Plotino, com Kant opera-se radical transformação no conceito de sublime, não mais compreendido como problema de expressão: sublime se torna uma categoria estética em oposição ao belo (enquanto o belo resulta da contemplação de um objeto limitado, o sublime resulta da contemplação de um objeto absolutamente grande e forte, o infinito). Depois, Kant retoma a distinção aristotélica entre analítica e dialética (Aristóteles distingue três tipos de raciocínio: analítico, dialético e sofistico; o primeiro diz respeito ao certo, verdadeiro e evidente; o segundo versa sobre o provável; o terceiro sobre tudo o que é falso).
Em Kant, a analítica estabelece as leis do verdadeiro conhecimento e corresponde à analítica de Aristóteles, a lógica dos raciocínios verdadeiros. A dialética, entretanto, identifica-se com a sofistica. Para Kant, a dialética é uma lógica das aparências e assume, tal qual a retórica, um sentido pejorativo. Kant, além de determinar a retórica como espécie de jogo, como já destacado - e, portanto como instrumento lúdico (e para ele dissociado da construção de conhecimento e saber verdadeiros) também sentencia a retórica ser a flor da decadência. Além disso, como D’Alembert, o filósofo alemão diferencia o per
50 Direito e Argumentação - Parte 1
suadir do convencer: persuadir se diz quando se impõe uma conclusão particular, subjetiva; convencer, quando se impõe uma conclusão de validade universal. Tais diretivas vão influenciar a nova retórica de Perelman, que, sem se afastar muito de Kant, usa persuadir quando se quer atingir um auditório particular e convencer quando se quer atingir um auditório universal.
A Retórica de Aristóteles, pela qualidade de sua sistematização, é a obra primordial e referencial para todas as reflexões que a disciplina sofre, mesmo nos momentos mais contemporâneos. Obra puramente filosófica, como indicou a sensibilidade de Nietzsche, a Retórica de Aristóteles, por força de sua permanência, sua influência e contestações ou releituras sofridas, merece a alcunha de um livro clássico. É “uma curiosa síntese de crítica literária e de lógica, de ética, de política e de jurisprudência de segunda ordem, mescladas habilmente por um homem que conhece as debilidades do coração humano e que sabe como jogar com elas”, observa David Ross (34, p. 103), ou, então, “um dos dois vetores da transformação da linguagem natural nas linguagens codificadas dos distintos saberes”, segundo observação de Paul Ricoeur (32, p.25).
A Retórica de Aristóteles é um clássico, pois apresenta a qualidade acentuada por ítalo Calvino como propriedade de um livro clássico: sua primeira leitura é uma espécie de releitura, pois seu conteúdo referencial aparece pulverizado em diferentes obras modernas e contemporâneas, sem, muitas vezes, o leitor ter disso percepção imediata. É impossível não sentir uma sensação de déjà vu quando, durante sua leitura, percebem-se e se reconhecem coisas vividas, vistas, conhecidas; como perceber - para além dos limites de suas páginas - seu conteúdo disseminado ou incorporado por nossas instituições republicanas e presente - como um bem vivo - , por exemplo, na estrutura de uma petição jurídica contemporânea.
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IIA Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por ChaYm Perelman
Nancy dos Santos Casagrande
Refletir sobre a retórica em pleno século xxi requer, principalmente, buscar uma ciência que iniciou na Antiguidade e desencadeou uma série de estudos os quais trarão à luz a nova retórica. Nomes como Córax e Tísias surgiram como exponenciais na Grécia antiga, com o estabelecimento de uma relação constitutiva entre necessidade de defesa jurídica e uso do recurso da eloqüência que começou a ser sistematizado no m omento em que a Sicília invadiu a Siracusa (Souza, in 9). Isso desencadeou um processo no qual a retórica se tornou referência para um caso específico, pois não havia, ainda, direito constituído que desse conta da situação de júri popular.
Nesse sentido, a base da retórica está ligada “à construção de categorias de certo e errado, do bem e do mal exteriores’ à própria língua: ela dirá sobre a conduta a ser seguida pelos homens” (9, p.2), não se dissociando da m oral, do ético e do político, sentidos densos e complexos, muitas vezes banalizados nas obras modernas. É preciso entender a retórica como, segundo Pfeiffer (9, p.4), um “conjunto de preceitos práticos esclarecidos por exemplos; uma demonstração técnica e racional do verossímil”, tornando o discurso válido de uma perspectiva lógica.
Ainda na Antiguidade, a retórica se configurou de diferentes maneiras, conforme a concepção de seus inúmeros estudiosos. Entre eles, destaca-se Aristóteles, para quem a retórica está intimamente ligada ao estudo lógico da argumentação, tendo sido definida como “a arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis”. Por isso, o objeto da retórica an
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 53
tiga era, essencialmente, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (8, p.6), “a arte de falar em público de modo persuasivo”, levando em consideração o uso da linguagem falada, do discurso em praça pública, com a finalidade de conseguir adesão do auditório.
Este texto tem por objetivo primeiro tratar da retórica à luz dos conceitos apresentados por Chaim Perelman, o expoente maior de aprofundam ento do conceito de retórica postulado por Aristóteles. O segundo objetivo é apresentar algumas técnicas de argumentação propostas pelo mesmo estudioso a fim de chegar ao objeto de estudos da retórica: o estudo das técnicas discursivas para provocar ou aum entar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento. Assim sendo,
entre os antigos a retórica se apresentava como estudo de uma técnica para o uso do vulgo, impaciente por chegar rapidamente a conclusões, por formar uma opinião para si, sem se dar ao trabalho prévio de uma investigação séria [...] (ibid., p.6)
A ele, como precursor da nova retórica, resta a tarefa de tratar da retórica aliada à argumentação, pois seu objeto de estudos será restrito aos recursos discursivos utilizados a fim de obter a “adesão dos espíritos” por meio de técnicas que se usam da linguagem para persuadir e convencer. Ao novo conceito de retórica vêm aliadas quatro observações, tornando possível perceber a medida na qual ele se amplia em relação ao conceito aristotélico.
Nesse sentido, como a
nova retórica [está] identificada com a teoria geral do discurso persuasivo, que
visa a ganhar a adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja qual for, afirmamos que todo discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a influenciar uma ou várias pessoas a orientar os seus pensamentos, a excitar ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma ação, ela é o domínio da retórica, (ibid., p.8-9)
Passaremos a tratar dos novos postulados teóricos de Perelman, que afirma a retórica como uso do discurso para persuadir seu auditório.
Segundo Meyer1,
1 C onform e C apítu lo I, de Carlos Alberto Shimote.
54 Direito e Argumentação - Parte 1
não é por acaso, portanto, que, Perelman, ao revitalizar a retórica aristotélica no século xx, procure apresentá-la como “a arte de bem falar, de mostrar eloqüência diante de um público para o ganhar para a nossa causa”. Trata-se de uma arte que, para persuadir, utiliza meios de ordem racional, mas também de
ordem afetiva, como acentua Aristóteles, porque a formação cie um juízo envolve não apenas a razão, mas também a alma e as paixões da alma. (5, p.31)
Nessa perspectiva, razão e emoção se misturam e as palavras ganham força persuasiva por trazerem a eloqüência permeada pela emoção do orador. É necessário recorrer, em primeiro lugar, a um acordo prévio sobre o sentido das palavras, quando, em uma discussão, apenas a experiência não é suficiente para convencer o interlocutor. Portanto, “para conseguir um acordo a esse respeito, será indispensável recorrer à retórica no sentido amplo, que engloba, tanto os tópicos como a dialética, as técnicas próprias do debate e da controvérsia” (7, p. 142).
É, ainda, preciso considerar demonstrações e relações da lógica formal com a retórica. Conforme o autor, na escola filosófica racionalista, representada aqui por Descartes, a retórica foi suplantada pela evidência, isto é, a verdade das premissas era por ela garantida, resultante do fato de tais premissas referirem-se a idéias claras e distintas, pelas quais nenhum a discussão era possível. Para esses racionalistas, o manejo da linguagem era dispensável, pois as evidências de um fato dele davam conta sem precisar tomar como base a palavra, porém, quando havia noções vagas ou confusas, que a lógica formal era incapaz de resolver, fazia-se necessário o uso de argumentos, e seu estudo dependia da retórica.
A nova retórica discute a intensidade variável que a adesão a uma tese pode ter. A discussão em torno desse aspecto remonta ao fato de se diferenciarem fatos e verdades, levando em conta que “quando se trata de aderir a um a tese ou a um valor, a intensidade da adesão sempre pode ser utilmente aumentada, pois nunca se sabe com qual tese ou qual valor ela poderia entrar em competição” (ibid., p. 143).
O que distingue a retórica da lógica formal e das ciências positivas seria sua forte relação com a adesão e nem tanto com a verdade, visto que essa mesma verdade é considerada impessoal, enquanto o discurso retórico envolve um ou mais espíritos aos quais está sendo dirigido, isto é, o auditório.
Nesse aspecto, pode-se afirmar a noção de auditório ser fundamental nos estudos da nova retórica. Trazido da retórica clássica, esse conceito revela-se de suma importância, pois todo e qualquer discurso é dirigido a um auditório,
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 55
inclusive o discurso escrito; embora, às vezes, o escritor acredite estar sozinho, seu texto pretende atingir um leitor específico. No tocante à retórica,
parece-nos preferível definir o auditório como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual dirige seus discursos. (8, p.22)
Pode ser observada, no diagrama, a representatividade do auditório segundo os postulados de Perelman:
Segundo o autor, o papel do auditório é tão significativo que, se o orador quiser atingir seu público, será necessário adaptar-se a ele. Pelos postulados aristotélicos, percebe-se que, na Grécia antiga, interessava conquistar a m ultidão reunida em praça pública por meio da adesão.
A argumentação, pela nova retórica, assim será concebida:
56 Direito e Argumentação - Parte 1
“Englobará, portanto, todo o campo da argumentação, complementar da demonstração, da prova pela inferência estudada pela lógica formal” (7, p. 144). Partindo de tal afirmação, pode-se dizer, se a nova retórica busca atingir lodo e qualquer auditório, é preciso pensar no tipo de linguagem a utilizar para esse feito. Dirigir-se a um auditório especializado significa os ouvintes estarem aptos a aderir ao discurso com certa unanimidade.
É óbvio que o valor dessa unanimidade depende do número e da qualidade dos
que a manifestam, sendo o limite atingido, nessa área, pelo acordo do auditório universal. Trata-se evidentemente, nesse caso, não de um fato experimentalmente provado, mas de uma universalidade e de uma unanimidade que o orador imagina, do acordo de um auditório que deveria ser universal, pois
aqueles que não participam dele podem, por razões legítimas, não ser levados
em consideração. (8, p.35)
Já um auditório heterogêneo requererá do orador uma adaptação em relação, principalmente, às questões técnicas. É nesse processo que reside o problema da vulgarização das informações. Afinal, “o importante na argum entação não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige” (ibid., p.26-7).
O auditório, na nova retórica, divide-se em dois: universal e particular. O auditório universal, já mencionado, é “um conjunto de pessoas sobre as quais não temos controle sobre as variáveis”, isto é, não há como saber situação financeira, classe social, nível de instrução, idade, situação profissional. Não sendo possível conferir-lhe um perfil determinado, o auditório universal pode não corresponder à fórmula mais feliz de satisfazer a exigência de sinceridade e lucidez imposta a todo orador, como um “ser para o outro”, mas é, sem dúvida, uma afirmação do ideal ético que o deve nortear. O que não parece admissível é ver nele o (único) critério para se classificar um discurso como convincente ou apenas persuasivo, conforme a intenção do orador seja a de obter adesão de todos ou só de alguns (6, p.37).
A fim de se vislum brar como o auditório universal é configurado, a seguir há um fragmento de crônica escrita por Carlos Heitor Cony (3). Ela se destina a todo e qualquer leitor, não conhecido nas variáveis às quais Perelman se refere:
O assunto da semana ainda é o referendo do último domingo. Ao encampar a
consulta popular, o governo conseguiu uma cortina de fumaça para a crise que
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 57
está atravessando, desviando as atenções do país para uma questão que aparentemente tem a ver com a onda de crimes que se abate sobre nós, mas distorcendo o problema, atribuindo a violência às armas e não aos violentos, que continuam a existir e a agir com ou sem armas de fogo.
O escritor trata de terna conhecido do grande público e debatido à exaustão no período anterior ao referendo sobre armas de fogo. lo d o e qualquer leitor a quem se dirige a crônica tomou conhecimento do assunto. Sem precisar reconhecer seu auditório-leitor, Cony apresenta o assunto de forma genérica; afinal, em um país como o Brasil, poucos são os que não sofreram algum tipo de violência com ou sem armas de fogo. Eis o auditório universal.
O auditório particular configura-se como específico: o orador tem conhecimento de algumas características de seus ouvintes e o conhecimento do auditório influencia o discurso do orador. Um exemplo é o discurso, na cerimônia de abertura do Seminário para Investidores-Brasil e Parceiros, no qual o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, dirigiu-se não só a ministros, mas também a investidores. Em dado momento, afirmou:
O Brasil é um parceiro privilegiado desse renascimento continental. Não por acaso, nossas exportações devem chegar a 117 bilhões de dólares este ano. De Norte a Sul do continente, nosso país participa de projetos prioritários, que vão redesenhar as fronteiras do comércio, dos transportes, das comunicações,
da energia e das oportunidades.
Falo, por exemplo, de obras em marcha como a Rodovia Interoceânica que liga o Brasil ao Pacífico, no Peru. Falo da ponte sobre o rio Orinoco, na fron
teira com a Venezuela. Falo da hidrelétrica San Francisco, no Equador. Falo da
ponte Assis Brasil-Inapari, na fronteira peruana. Falo das parcerias no setor de energia com o Paraguai, a Venezuela e a Bolívia. Falo do desenvolvimento mul- tilateral da região do rio Madeira. Falo dos gasodutos na Bolívia e na Argen
tina. Falo da segunda ponte sobre o rio Paraná, na fronteira com o Paraguai. Falo do corredor bioceãnico entre Santos e Antofagasta, no Chile. Falo de uma nova ponte sobre o rio Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. E falo da dupli
cação da auto-estrada do Mercosul, que estreitará ainda mais nossos laços com
os irmãos argentinos, [ver íntegra do discurso nos Anexos, p.63]
Ao ser lido tal discurso, percebe-se o conhecimento do auditório ter levado o presidente a utilizar argumentos realçando o Brasil como país de grande potencial em investimentos. Utilização de dados como “ 117 bilhões de dó
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lares” ao tratar das exportações e citação de infindáveis exemplos de parceria entre Brasil e países do Mercosul denotam conhecimento profundo do auditório em questão, caracterizado como particular de acordo com os postulados da nova retórica.
Nesse sentido, “a argumentação dirigida ao auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas” (8, p.35).
Para um discurso ser assumido por um auditório, são necessárias algumas precauções. A adaptação da linguagem é de extrema importância, como já afirmado; no entanto, a fim de persuadir o auditório, é preciso conhecê-lo de antemão, observando quais teses ele aprova e a intensidade de adesão a elas. A argumentação parte daí, e, considerando teses controversas, a aderência a uma ou a outra far-se-á de acordo com a que revelar maior intensidade. Por isso,
vincular uma argumentação a premissas às quais se concede uma adesão apenas de fachada é tão desastroso quanto pendurar um quadro pesado a um pre
go mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo e, em vez de adotadas
as conclusões, em conseqüência da solidariedade estabelecida entre elas e as teses iniciais, estas é que serão abandonadas pelo auditório se as conclusões em que resultou a argumentação lhe parecem menos aceitáveis do que as teses das
quais dependem. (7, p. 146)
Sendo assim, as técnicas de argumentação têm por objetivo reforçar ou enfraquecer a adesão a outras teses, ou suscitar a adesão a teses novas que resultam da adaptação de teses primitivas. Esse processo de reforço ou enfraquecimento à adesão de teses pelo auditório é tratado pela nova retórica considerando o condicionamento desse mesmo auditório ante o discurso proferido. Interessa-lhe a ordem na qual os argumentos devem ser utilizados a fim de causar o efeito, desejado pelo orador, no auditório. À nova retórica interessa, ainda, os esquemas argumentativos adotados pelo orador, ao proferir seu discurso: “Buscamos, acima de tudo, caracterizar as diversas estruturas argumentativas, cuja análise deve preceder qualquer prova experimental à qual se quisesse submeter sua eficácia” (8, p.10). Por isso, em relação ao auditório, a argumentação não pressupõe a adesão a uma tese somente por mostrar-se verdadeira, mas pelo fato de apresentar valores compatíveis com os do auditório em questão. Para ter plena aceitação do auditório, o orador
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 59
deve buscar no senso comum teses que lhe possibilitem conhecer melhor seus ouvintes para, assim, obter resultados satisfatórios quanto à adesão.
Uma característica importante da teoria da argumentação é a denom inada, por Aristóteles, lugar-comum. Em busca de persuadir todo e qualquer auditório, tarefa primeira da nova retórica, o lugar-comum se caracteriza como um valor, um ponto de vista que deve ser considerado em uma discussão. Afirmações mais gerais em um assunto específico tendem a despertar no auditório empatia com o orador. Assim, Perelman afirma que
lugares-com uns desempenham na argumentação um papel análogo ao dos axiomas em um sistema formal. Podem servir de ponto inicial justamente por
que os supomos comuns a todos os espíritos. Mas diferem dos axiomas porque
a adesão que se lhes concede não é fundamentada na evidência deles, mas, ao contrário, na ambigüidade deles, na possibilidade de interpretá-los e de aplicá-
los de modos diversos. (7, p. 159)
Considerando a importância do lugar-comum no processo de adesão do auditório a determinada tese, Perelman insiste na forma como o orador deve conduzir seu discurso. Segundo ele, se ao orador cabe a escolha de fatos, valores ou lugares-comuns de acordo com suas necessidades discursivas, cabe- lhe também a tarefa de colocá-los em evidência de modo a incutir-lhes um a presença, deixando-os em primeiro plano na consciência dos ouvintes. O conceito de presença, embora não exerça papel algum na lógica formal, na teoria da argumentação é fundamental. A princípio refere-se à presença física, efetiva; no entanto, podemos considerá-lo “procedimentos que têm por objetivo ilustrar a tese que queremos defender” (ibid., p. 159), isto é, histórias, por exemplo, que sirvam como recurso ilustrativo na tarefa de persuadir o auditório.
As técnicas argumentativas - à luz da nova retórica, recursos valiosos na construção da argumentação em busca da adesão de uma tese pelo auditório - dividem-se em dois grandes grupos: os argumentos quase-lógicos e os baseados na estrutura do real.
Os argumentos quase-lógicos caracterizam-se por não-formalidade e esforço mental de que se necessita para reduzi-lo à formalidade. Assim, “esses argumentos recebem o nome de quase-lógicos porque muitas das incompatibilidades não dependem dos aspectos puramente formais e sim da natureza das coisas ou das interpretações hum anas” (7, p. 162). Por esse lado, tais argumentos têm como pretensão a convicção, se comparados aos raciocínios
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formais, lógicos ou matemáticos, porém sua natureza pouco lógica leva-os à designação de quase-lógicos. Desses argumentos, alguns parecem mais práticos no que diz respeito às técnicas argumentativas.
O primeiro argum ento quase-lógico é o da compatibilidade e incom patibilidade. Trata-se, efetivamente, de um a demonstração na qual o orador apresenta ao auditório compatibilidade ou incompatibilidade da tese inicial em relação à tese principal, ou seja, a adesão, conseguida por meio da tese inicial, poderá ser quebrada de acordo com a forma de condução do discurso.
Outro argumento quase-lógico é a regra de justiça. Seu conceito está ligado ao tratamento idêntico de seres e situações pertencentes a uma mesma categoria. Assim,
a regra de justiça reconhece o valor argumentativo daquilo a que um de nós
chamou justiça formal, segundo a qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados do mesmo modo. (...) a regra de justiça fornecerá o
fundamento que permite passar de casos anteriores a casos futuros, ela é que permitirá apresentar sob forma de argumentação quase-lógica o uso de prece
dente. (8, p.248)
Um terceiro argumento quase-lógico é o de reciprocidade: visa a tratar duas situações correspondentes da mesma maneira. Os argumentos de reciprocidade utilizam-se do conceito de simetria para serem aplicados. Desse modo, há uma facilitação da “identificação entre os atos, entre os acontecimentos, entre os seres, porque enfatiza um determinado aspecto que parece impor-se em razão da própria simetria posta em evidência. Esse aspecto é, assim, apresentado como essencial” (ibid., p.250-1).
O ridículo é outro recurso muito utilizado como técnica argumentativa. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, uma afirmação é ridícula quando entra em choque com uma opinião já aceita.
O ridículo é a arma poderosa de que o orador dispõe contra os que podem, pro
vavelmente, abalar-lhe a argumentação, recusando-se, sem razão, a aderir a uma ou outra premissa de seu discurso. É ela, também, que se deve utilizar contra os
que se atreverem a aderir, ou a continuar a adesão, a duas teses julgadas incom
patíveis, sem se esforçarem [para] remover essa incompatibilidade, (ibid., p.234)
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 61
O último argumento quase-lógico por nós elencado é o argumento por comparação. Para entendê-lo em sua essência, pode-se dizer serem apresentados, de modo geral, como constatações de fato, ficando a cargo do orador atribuir-lhe a relação de igualdade ou desigualdade. Assim,
as comparações podem dar-se por oposição (o pesado e o leve), por ordena
mento (o que é mais pesado que) e por ordenação quantitativa (no caso, a pe- sagem por meio de unidades de peso). (...) A escolha dos termos de compara
ção adaptados ao auditório pode ser um elemento essencial da eficácia de um argumento, mesmo quando se trata de comparação numericamente especifi- cável: haverá vantagem, em certos casos, em descrever um país como tendo nove vezes o tamanho da França em vez de descrevê-lo como tendo a metade
do tamanho do Brasil, (ibid., p.275-8)
Serão abordados os argumentos fundamentados na estrutura do real mais práticos no emprego de técnicas argumentativas, sempre visando à adesão do auditório. De início, é possível classificar os argumentos fundam entados na estrutura do real como o estabelecimento de uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover; ou seja, eles não estão ligados a uma descrição objetiva dos fatos, mas a opiniões relativas a eles.
O primeiro argumento ao qual será feita referência é o pragmático. Tal argumento remete-se ao “apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. (...) Para apreciar um acontecimento, cumpre reportar-se a seus efeitos” (ibid., p.303). Ao utilizar o argumento pragmático, o orador busca transferir para a causa o valor das conseqüências, tendo uma importância direta para a ação. Em outras palavras, o argumento pragmático fundamenta-se na relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de um vínculo causai.
O segundo argumento é o do desperdício. Esse argumento consiste em afirmar que, iniciada uma obra e aceitos seus sacrifícios, cabe dar continuidade a ela; isto é, o argumento do desperdício lembra o do sacrifício inútil. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, “o sacrifício é a medida do valor cjue o determina, mas, se este valor é mínimo, o sacrifício é, por seu turno, depreciado” (ibid., p.319).
O terceiro argumento é o da direção. Seu intuito é direcionar o orador no sentido de responder à questão: onde se quer chegar? A utilização desse argumento vem alertar contra o uso do procedimento de etapas, pois “cada vez que uma meta pode ser apresentada como um ponto de referência, uma eta
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pa num a certa direção, o argumento de direção pode ser utilizado” (ibici., p.321). Nesse sentido, esse argumento desperta o temor de determinada ação nos envolver em um encadeamento de situações cujo desfecho receamos.
O quarto e último argumento aqui apresentado é o da superação. Diferentemente do argumento de direção, que impõe limites no discurso, o de superação insiste na possibilidade de alçar um vôo discursivo o mais longe possível, tendo em vista um crescimento contínuo de valor nessa direção. Ao utilizar esse tipo de argumento, o orador deverá ter em mente não só o cumprimento de seu objetivo, mas também sua superação, sempre no sentido de prosseguir indefinidamente. Perelman e Olbrechts-Tyteca afirmam que
freqüentemente essa técnica é utilizada para transformar os argumentos con
tra em pró, para mostrar que o que até então era considerado um obstáculo é,
na realidade, um meio para chegar a um estágio superior, como a doença que
deixa o organismo mais resistente, imunizando-o. (8, p.329)
A utilização desse argumento pelo orador leva os ouvintes a valorizarem certos termos sobre os quais versa, de fato, o debate. Mais do que a superação sem limites de metas ou objetivos, torna-se importante ressaltar a oposição a essa progressão contínua ser necessária, pois há risco de chegar ao ridículo, resultante da incompatibilidade de valores. Assim, ao usar o argumento de superação, o orador deverá ter em mente o equilíbrio que permita, em seu discurso, harmonizar valores passíveis de entrar, no limite, em conflito.
Ainda que Perelman tenha-nos apresentado uma nova perspectiva para os estudos retóricos, seus postulados têm origem em Aristóteles e nos estudos por ele desenvolvidos na Antiguidade. Esse fator é de suma importância, pois demonstra que, apesar de todos os recursos tecnológicos disponíveis à humanidade, é no discurso proferido pelo homem, que residem as mais diversas intenções, jamais perceptíveis pelo mais m oderno computador.
ANEXOS
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 63
Senhor Luiz Inácio Lula da SilvaPresidente da República Federativa do Brasil
São Paulo, SP, 02.12.2005Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de abertura do Seminário para Investidores - Brasil e Parceiros
Bom dia aos nossos convidados,Bom dia aos nossos ministros e ministras,Eu quero começar agradecendo a aceitação do convite feito pelo nosso
governo para que pudéssemos ter, aqui, o conjunto de empresários investidores no Brasil, para que pudéssemos mostrar um pouco, não apenas aquilo que somos, mas aquilo que pretendemos ser num futuro muito próximo. Há algum tempo, fizemos uma reunião em Genebra, depois fizemos uma reunião em Nova Iorque, depois fizemos uma reunião em Tóquio, e eu dizia que era preciso, depois da aprovação de alguma estruturação na nossa legislação, que nós convidássemos um grupo de empresários estrangeiros e brasileiros para que nós pudéssemos mostrar o que está acontecendo no Brasil. Por isso eu quero agradecer, outra vez, a disponibilidade de vocês, de virem a São Paulo para participar deste evento.
O Brasil e a América do Sul se apresentam hoje como uma enorme fronteira de oportunidades para os investidores de todas as partes do mundo. Estamos reconstruindo a geopolítica e a infra-estrutura de uma região que reúne mais de 300 milhões de habitantes, com um PIB superior a 1 trilhão de dólares.
Durante séculos, essa riqueza viveu desencontrada de si mesma. Agora, um continente inteiro redescobre a vocação para crescer de forma cooperada e solidária num a comunidade de nações. Unir mercados, abrir fronteiras, intensificar o comércio, atrair investimentos e ampliar a justiça social é a agenda da América do Sul no século xxi.
O Brasil é um parceiro privilegiado desse renascimento continental. Não por acaso, nossas exportações devem chegar a 117 bilhões de dólares este ano. De Norte a Sul do continente, nosso país participa de projetos prioritários, que vão redesenhar as fronteiras do comércio, dos transportes, das comunicações, da energia e das oportunidades.
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Falo, por exemplo, de obras em marcha como a Rodovia Interoceânica que liga o Brasil ao Pacífico, no Peru. Falo da ponte sobre o rio Orinoco, na fronteira com a Venezuela. Falo da hidrelétrica San Francisco, no Equador. Falo da ponte Assis Brasil-Inapari, na fronteira peruana. Falo das parcerias no setor de energia com o Paraguai, a Venezuela e a Bolívia. Falo do desenvolvimento multilateral da região do rio Madeira. Falo dos gasodutos na Bolívia e na Argentina. Falo da segunda ponte sobre o rio Paraná, na fronteira com o Paraguai. Falo do corredor bioceânico entre Santos e Antofagasta, no Chile. Falo de uma nova ponte sobre o rio Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. E falo da duplicação da auto-estrada do Mercosul, que estreitará ainda mais nossos laços com os irmãos argentinos.
Criamos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, um departamento especializado em integração latino-americana, com carteira de projetos de 2,6 bilhões de dólares. Temos hoje, no mínimo, um grande projeto de integração física em andamento em cada um de nossos parceiros continentais.
Eis a diferença substantiva entre o que acontece hoje e a integração sonhada no passado. O processo, agora, avança intensamente sobre pontes, estradas, usinas, comércio e gasoduto.
Quero chamar a atenção dos senhores e das senhoras para esse fato histórico: estamos realizando um dos mais importantes projetos de integração continental do mundo, no século xxi. Estamos vivendo um poderoso processo de mobilização de recursos, de vontade política e de energia cultural e humana. É para participar dessa marcha, que já mudou a face comercial e política da América do Sul, e que irá mudá-la ainda mais nos próximos dez anos, que exortamos a participação dos senhores e das senhoras.
Um outro grande mercado desponta na História. O fluxo crescente do comércio continental em produtos e serviços gerou uma dinâmica irreversível. Ela é a melhor garantia de remuneração ao capital que aqui for investido. Significa dizer que investir no Brasil hoje, diferentemente do passado, eqüivale também a participar de um encadeamento virtuoso de projetos e oportunidades que, há muito, não se observava na arquitetura regional.
O Brasil rechaça qualquer pretensão hegemônica na integração regional. Todavia, seja pelo porte, seja pela sofisticação de nossa estrutura industrial e financeira, temos consciência das responsabilidades adicionais que nos cabem nessa trajetória.
Nossa economia está credenciada a desempenhar esse papel histórico. Hoje, ela reúne uma combinação ímpar de estabilidade com geração de em pregos e distribuição de renda.
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 65
Dcsdc 1995, a pobreza não caía tanto no Brasil. A tal ponto que em 2004, com onze anos de antecedência, atingimos a primeira Meta do Milênio, de reduzir à metade a miséria no país.
Temos hoje a m enor taxa de desemprego dos últimos cinco anos; pela primeira vez, desde 1996, a renda média do trabalhador parou de cair; o consumo das famílias cresce e há confiança no ambiente de negócios.
Uma parcela significativa da indústria brasileira ganhou nervos e musculatura como nunca teve no passado. Portanto, estão líquidas, são mais rentáveis, ampliaram a produtividade e reduziram o seu endividamento externo e interno.
Qualquer que seja o indicador pelo qual se avalie este momento, em que pesem oscilações conjunturais da economia, o que se constata é o impulso renovado para crescer e se transformar. Ele está ancorado num a robusta convergência de investimentos públicos e privados, como não se via há mais de duas décadas no nosso país.
A Petrobras prevê uma inversão de 53,5 bilhões de dólares em novos projetos até 2010, com geração de 280 mil empregos diretos e indiretos. Vamos dobrar a malha brasileira de gasodutos. Até 2007, serão aplicados 2,6 bilhões de dólares para a implantação de mais 4.600 quilômetros de redes no Norte, Nordeste e Sudeste. Mais de 250 mil novos empregos serão gerados pelos 3 bilhões de dólares em novos investimentos atraídos por essa infra-estrutura.
Este ano, pela primeira vez, os investimentos em ferrovias vão ultrapassar os valores aplicados pelo BNDES em transporte rodoviário. Mais que uma mudança de portfólio, trata-se de uma redefinição de prioridades de uma economia que assumiu sua vocação exportadora. A partir de 2006, até 2010, os investimentos no setor serão da ordem de 2,5 bilhões de reais por ano. Na semana passada, iniciamos a construção da nova ferrovia Transnordestina, que terá recursos de 4,5 bilhões de reais e ligará os nove estados do Nordeste aos portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco. Nossa previsão é de que o transporte ferroviário cresça 20% no país em 2006, com encomendas de vagões superiores a 7.500 unidades.
Quatorze novas usinas hidrelétricas estarão habilitadas para construção em 2006. Licitamos, este ano, linhas de transmissão para integrar definitivamente a rede nacional de energia. Garantimos oferta suficiente de energia para afastar, de uma vez por todas, o risco de estrangulamentos inaceitáveis como o que ocorreu em 2001 no nosso país.
O setor siderúrgico brasileiro iniciou um novo ciclo de investimentos que deve somar mais de 12,7 bilhões de dólares até 2015. No segmento químico
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e petroquímico, as inversões programadas passam de 17 bilhões de reais. No total, projetos no valor de 20,4 bilhões de dólares nos setores siderúrgico, de refino de petróleo, químico, papel e celulose estão em andamento, com ciclo de maturação até 2010.
O governo, através do BNDES, participa ativamente desse esforço de expansão de nossa base produtiva e exportadora, em especial, com recursos aplicados em grandes projetos de celulose e siderurgia, envolvendo até 50% do investimento previsto.
Nosso otimismo se apóia no chão firme das decisões refletidas e de um a estratégia vitoriosa. Estamos fazendo uma transição benigna de um passado marcado pela estagnação para um ciclo de verdadeiro desenvolvimento econômico e social.
O Brasil trocou uma inserção externa dependente e subordinada por uma participação soberana e cooperativa no comércio internacional. O fluxo do comércio exterior saltou de 13% do PIB, nos anos 90, para mais de 26%, atualmente. Nossas reservas quadruplicaram. Há superávit em contas correntes. O risco-país foi drasticamente reduzido. A dívida externa recuou. Descontadas as reservas, ela se equipara às exportações previstas para 2006.
Este país lidera as exportações mundiais de carne, soja, café, açúcar, suco de laranja e álcool. Mas também exporta automóveis, celulares e aviões. Quase 55% de nossas vendas são de manufaturados. Os industrializados de média e alta intensidade tecnológica têm participação crescente nos embarques. São parâmetros importantes de um país no qual já estão presentes 400 das 500 maiores multinacionais do Planeta. Essa é a hora de ampliar a parceria com o nosso desenvolvimento. Para isso, tomamos uma série de medidas nos últimos meses com o objetivo de facilitar as exportações e desonerar o investimento produtivo, totalizando um a renúncia fiscal da ordem de 5,7 bilhões de reais ao ano.
Estamos convidando os senhores a investir para compartilhar a matriz energética mais limpa e sustentável do Planeta no século xxi. A energia hidrelétrica atende 90% de nossa indústria. O Brasil será auto-suficiente em petróleo ainda neste ano. Produzimos 15 bilhões de litros de álcool a preços imba- tíveis no mercado de combustíveis renováveis. O programa do Biodiesel, nesta primeira etapa, substituirá 800 milhões de derivados de petróleo por combustível extraído de soja, m am ona e girassol.
Tenho a certeza que esse horizonte fala alto a quem enxerga longe. Nele, o Brasil desponta como um parceiro diferenciado, uma ponte sólida e democrática para ingresso no mercado sul-americano e mundial. Estamos de braços abertos para recebê-los, num a relação madura de respeito e transparência.
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 67
Aprendi, em m inha longa trajetória de negociações, que os bons acordos contemplam os interesses dos dois lados da mesa. Mais do que simplesmente adicionar fôlego a um m omento singular da nossa História, queremos firm ar compromissos compartilhados de longo prazo, que gerem riqueza com justiça, e democracia, com oportunidades para todos.
Meus amigos, minhas amigas,Quero term inar dizendo a todos vocês aquilo que eu dizia no primeiro
ano do meu mandato, em vários debates com empresários. O Brasil, durante a sua história recente, teve inúmeras oportunidades de crescer, de se desenvolver e de se transformar num país definitivamente desenvolvido.
Muitas vezes, precipitações políticas, muitas vezes, pressões, às vezes justas, mas feitas nas medidas equivocadas, fizeram governantes enveredarem pelos caminhos fáceis que se tornaram difíceis ao longo do tempo e, ao invés de avançar, o Brasil experimentou retrocessos.
Houve um momento na história do Brasil em que se negava o papel do Estado, tudo que fosse do Estado não valia nada. Houve um momento na história do Brasil em que se negava até a empresa nacional, de que o que importava era o que o mercado globalizado determinava, como se nós não pudéssemos, enquanto Nação soberana, determinar um modelo de desenvolvimento, definição das prioridades que o Brasil precisava.
Desde que nós tomamos posse, eu tenho sido um provocador, eu diria, benigno, dos empresários nacionais. Ao invés de dizer que a empresa nacional é inferior à empresa multinacional, e ao invés de dizer que a empresa nacional tem que fechar para a entrada de uma empresa multinacional, não foram poucas as vezes em que eu desafiei as empresas nacionais a virarem empresas multinacionais. É com muito orgulho que assistimos, hoje, em presas brasileiras tendo uma inserção no m undo de forma extraordinária, e à mesa nós temos dois exemplos, a Companhia Vale do Rio Doce e o nosso amigo Gerdau, do grupo Gerdau.
O que nós queremos é que mais empresas brasileiras assumam essa d imensão multinacional, essa dimensão globalizada, para que nós não sejamos tratados como se fôssemos eternamente pequenos e não fôssemos competitivos como somos em muitas áreas em que os senhores, aqui no Brasil, participam com seus investimentos ou em parcerias com empresários brasileiros.
O Brasil não pode, em nenhum momento, permitir que qualquer que seja a circunstância, em função de um ano eleitoral - e eu faço questão de reiterar isso na frente dos empresários e dos trabalhadores, toda vez que sou chamado para um debate - não haverá, em função do ano eleitoral, nenhuma tomada
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de posição do governo que possa colocar em perigo, em risco, o que nós conseguimos criar nesses três anos de sustentabilidade, de seriedade e de perspectiva de o Brasil ser um país que tenha, definitivamente, um crescimento de longo prazo, um ciclo virtuoso de crescimento para que a gente possa, não apenas desenvolver o Brasil, mas para que possamos, além de desenvolvê-lo, fazer a justa distribuição de renda que ao longo da história não foi feita.
Durante vinte anos, os trabalhadores brasileiros, por mais que lutassem, eram poucas as categorias de trabalhadores que conseguiam fazer acordos acima da inflação. Normalmente as categorias menos organizadas perdiam nos acordos coletivos. Vejam a boa coincidência, pela primeira vez, nas últimas décadas, as empresas brasileiras ganham mais do que os bancos, lucram mais do que os bancos.
E pela primeira vez, em vinte anos, os trabalhadores brasileiros, este ano, 85% dos acordos salariais foram feitos acima da inflação, com ganhos reais, definitivamente melhorando a vida dos trabalhadores. Isso sintetiza o quê? Sintetiza uma máxima que nós acreditamos: quanto mais a empresa ganhar, mais chances os trabalhadores terão de ter os seus dividendos pela sua participação no resultado do ganho dessas empresas.
E nós sabemos que, para as empresas ganharem, nós precisamos investir em tecnologia. Por isso estamos formando, este ano, a marca dos 10 mil doutores que prometemos em 2003. Por isso estamos anunciando este ano mais quatro universidades federais, e hoje vou lançar a pedra fundamental da Universidade Tecnológica do ABC; inauguramos a universidade tecnológica no Paraná; e vamos fazer quatro universidades federais, 32 extensões, das quais cinco são faculdades que serão transformadas em universidades federais. E, ao mesmo tempo, estamos construindo 32 escolas técnicas.
E por que estamos fazendo isso? Porque acreditamos que o Brasil não parará de crescer. Não se preocupem com o índice do terceiro trimestre, não se preocupem, porque, embora tenha me deixado chateado, porque você sempre espera números altamente positivos, os indicadores demonstram que a economia vai crescer, e vai crescer de forma sólida, em 2006. E, se Deus quiser, vai crescer em 2007, 2008,2009, 2010, porque eu espero, em qualquer lugar do m undo que encontrar com vocês, sendo presidente ou não sendo presidente, ouvir de vocês a frase de que a empresa de vocês está ganhando dinheiro no Brasil e não que a empresa de vocês quebrou por estar no Brasil.
E queremos carregar junto conosco nessa trajetória um trabalho intenso, que vocês têm acompanhado, criando uma consciência no Continente, em todos os países que fazem fronteira com o Brasil, de que não é possível um país
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaim Perelman 69
crescer sozinho, é possível o Brasil crescer e, junto com o Brasil, crescer a Argentina, crescer o Uruguai, crescer Paraguai, Colômbia, Peru, Equador, Chile, e todos aqueles que pertencem à América do Sul, porque assim a gente vai ter a certeza de que o século xxi vai ser para nós, na América do Sul, o que foi o século x jx para a Europa, o que foi o século XX para os Estados Unidos. E isso só será possível se vocês tiverem a ousadia de acreditarem tanto na integração da América do Sul, na perspectiva de crescimento do Brasil, como nós acreditamos.
O que eu estou dizendo a vocês é que tenham a certeza, de uma vez por todas: o Brasil não cometerá os erros que já foram cometidos historicamente.
Queremos olhar para a história, para o nosso passado, e aproveitar tudo aquilo que já foi feito de bom pelos outros governos, porque o Brasil não começou conosco e tampouco terminará conosco; queremos aproveitar as boas lições para aperfeiçoá-las; queremos aproveitar as coisas que nós sabemos que foram ruins para extirpá-las de uma vez por todas da política brasileira.
Em economia não existe mágica, em economia existe seriedade, existe transparência, existem passos a serem dados, do tam anho da nossa perna. Não adianta ficar olhando para a China, não adianta ficar olhando para os Estados Unidos, não adianta ficar olhando para alguém que cresceu mais ou menos do que nós. Não adianta. Nós temos que olhar para nós, para a nossa indústria, para a nossa cultura, para a nossa política, para as nossas possibilidades, e aí sim, juntos, nós poderemos encontrar o m omento certo de tomar as medidas certas para que o Brasil passe para o rol dos países ricos.
Ontem, eu fiz um telefonema ao Tony Blair, e dizia ao Primeiro-Ministro inglês: as negociações da Rodada de Doha são de tamanha magnitude para o mundo subdesenvolvido e, sobretudo, para os países mais pobres que nós não temos o direito de permitir que os nossos assessores negociem sem que haja participação direta dos Presidentes da República ou dos Primeiros-Ministros na decisão final. É uma negociação muito difícil e eu disse ao primeiro-ministro Tony Blair: se nós, governantes do mundo, queremos provar que estamos querendo fazer uma política justa, onde os países que já conquistaram a sua cidadania, a sua riqueza, o seu bem-estar social, tomem posições para permitir que os países mais pobres possam vender aquilo que produzem na agricultura. Se a gente quiser provar que estamos falando sério, num mundo mais justo, sem terrorismo, com democracia e com paz, eu disse a ele: o senhor, que é o coordenador do G-8, neste momento, convoque o G-8 e convoque cinco países emergentes, a qualquer dia e a qualquer hora, nós certamente, a hora em que juntarmos os Presidentes da República, poderemos encontrar o caminho de uma boa negociação, o que os nossos interlocutores até agora não encontraram.
70 Direito e Argumentação - Parte 1
Eu acho que se nós fizermos isso, veja que não estamos falando pelo Brasil. O Brasil, quando se trata do agronegócio, não temos medo de competir com qualquer país do mundo, não estamos falando pelo Brasil, estamos falando pelos países da África, estamos falando pelos países mais pobres da América Latina e estamos falando pelos países mais pobres do mundo, que têm na agricultura a única possibilidade. Eu tenho certeza de que se o primeiro-ministro Tony Blair conseguir convencer o G-8 de que essa reunião é im portante, nós teremos, meu caro Roberto Rodrigues e meu caro Furlan, certamente, o sucesso na Rodada de Doha, que não estava previsto.
Se não acontecer, e não houver acordo, fiquem certos: os ricos continuarão mais ricos e os pobres continuarão mais pobres e as Metas do Milênio d ificilmente serão alcançadas. E, certamente, nós não conseguiremos fazer isso sem que os empresários do m undo inteiro, do Brasil e de qualquer país do mundo assumam junto com o Estado a responsabilidade de construir este m undo que todos nós sonhamos.
Muito obrigado.
Fonte: www.mre.gov.br/portugue$/po1itica_externa/discursos; acessado em 12.12.2005.
O grande silêncio
O assunto da semana ainda é o referendo do último domingo. Ao encampar a consulta popular, o governo conseguiu uma cortina de fumaça para a crise que está atravessando, desviando as atenções do país para uma questão que aparentemente tem a ver com a onda de crimes que se abate sobre nós, mas distorcendo o problema, atribuindo a violência às armas e não aos violentos, que continuam a existir e a agir com ou sem armas de fogo.
Paralelamente, tivemos o previsível desfile de opiniões, a turm a do Bem, dos politicamente corretos, apoiando a proibição das armas, responsáveis pelas desgraças da humanidade. Do lado contrário, os Maus, os violentos, os sem-entranhas que defendem o comércio das armas para dar vazão aos bestiais instintos que cultivam com a habitual ferocidade.
Como são manjados, os Bons e os Maus, nem se precisa ver ou ouvir o desfile. Sabemos de que lado estão Agnaldo Timóteo, o coronel Erasmo Dias,
A Nova Retórica: um Novo Olhar sobre a Retórica Clássica por Chaím Perelman 71
o Bolsonaro, o Severino, o Maluf, o povo do Mal em peso, berrando por armas, clamando por fogo e ranger de dentes.
De outro, os Puros, os de coração limpo e sem mácula, as Vestais de sempre que elegeram Lula e acreditam que o PT é a salvação da lavoura e do povo. Nas últimas eleições presidenciais, a atriz Regina Duarte foi crucificada pela mídia e pelos colegas de profissão, discriminada como a ovelha negra do rebanho, condenada e sacrificada em nome do Bem e do Lula - que pareciam a mesma coisa.
Nos dias de hoje, a mesma turm a do Bem, que tanto se esbofou pela proibição das armas, evita se comprometer com o Mal, preferindo o silêncio sobre a corrupção daqueles que ajudou a eleger.
Carlos Heitor Cony, membro do Conselho Editorial da Folha. Romancista e cronista, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000.
Referências bibliográficas
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rizado. Disponível em: http://mvw.geocities.com/gt_ad/pfeiffer.doc; acessado em 27.12.2004.
IIIA /W/se en Scène Argumentativa
Maria Teresa Rego de França
Invejo o ourives quando escrevo:Imito o amorCom que, em ouro, o alto-relevo Faz de uma flor
Olavo Bilac
A citação ilustra a postura comum àqueles que, admirados diante de um produto - um texto ou uma jóia - buscam entender-lhe o processo de construção. Ilustra, também, como o conhecimento de tal fazer pode nos tornar mais aptos, a ponto de escolhermos, ao criar nosso próprio texto-produto, um percurso semelhante para sua construção.
Todo operador do direito sabe a importância do bom domínio do idioma para sua carreira. Todo operador de direito já deparou com a certeza de que saber argumentar é tão importante quanto saber interpretar as leis e aplicá-las. No entanto, a ciência de ser a competência argumentativa fundamental não garante um texto bem elaborado. É necessário mais. É necessário o operador não só se exercitar na complexa atividade linguageira, mas, sobretudo, ter dela alguns conhecimentos teóricos.
Portanto, o intuito deste texto é levar aos operadores do direito, em especial, e a outros profissionais que se interessam pelo assunto, alguns conhecimentos teóricos sobre argumentação, pois a prática respaldada teoricamente pode se tornar mais eficiente. Dessa forma, será apresentada, em linhas gerais, a concepção argumentativa de Vignaux (10) e Grize (4), conhecida como lógica natural.
A Mise en Scène Argumentativa 73
O texto de José Eduardo Martins Cardozo (3, reproduzido no final deste capítulo), deputado federal pelo PT-SP e presidente da Comissão da Reforma do Judiciário na Câmara (2004), é admirável em termos de argumentação e apresenta, entre outras características, aquilo a que Vignaux (10, p.229) se refere como o autoritarismo inerente a toda (boa) construção discursiva, no sentido de nada nele ser gratuito. Entender como e por que o texto-produto resultou tão bem-feito requer assumir a posição do analista com respaldo na teoria escolhida.
Argumentação e retórica
Falar sobre argumentação leva, inexoravelmente, a Aristóteles (388-322a.C.), como sabido, o primeiro filósofo ocidental a especular sobre linguagem e a formalizar uma teoria sobre o poder da palavra. Melhor dizendo, uma teoria sobre o poder do orador que sabe, pois considera a situação de interação, enfeitiçar um auditório com a energia de suas palavras.
Coube também a Aristóteles a percepção de que despertar as paixões do auditório é um a forma eficaz de envolvê-lo: é a função psicagógica aristotélica. A passagem que se segue (apuei 6, XLI), retirada da Poética, bem revela tal função: “as paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer”. Revela, ainda, outro aspecto extremamente valorizado pelo estagirita sobre a energia que determinadas figuras e construções podem imprimir ao discurso: a própria citação aristotélica se constrói pelo uso de uma metáfora.
Se a retórica é definida por Aristóteles como a “faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (1, Cap. II), se a finalidade dela é “aduzir provas” (ibid., Cap. I), é conveniente notar que a retórica é uma disciplina “cuja tarefa não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada questão” (ibid., Cap. I). Neste sentido, ela pode ser considerada uma disciplina instrumental, cujos conhecimentos e técnicas são extremamente importantes para quem vai argumentar, mas não se confunde com a própria argumentação, como se pode depreender das sábias palavras de Mosca (7): “A Retórica fornece os meios para analisar o discurso argumentativo, mas também para defender-se dele”.
Curioso ainda é notar que, sendo a retórica, como a considerava Aristóteles, a arte dos contrários, a arte não do verdadeiro, mas do provável, do verossímil, certamente ela viabiliza a diversidade de opiniões e até a liberdade dos sujeitos, que não ficam restritos ao apodítico, ao demonstrável. Não é sem ra
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zão, durante o período das monarquias absolutas, a retórica ter caído em descrédito. Não é sem razão também que, esgotado o racionalismo cartesiano, revalorizada a subjetividade, as questões ligadas à retórica e, por conseguinte, à argumentação tenham exsurgido com tanta freqüência.
Na segunda metade do século XX, Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao analisarem o discurso da propaganda totalitarista, redescobriram a retórica clássica aristotélica e publicaram, em 1958, uma obra que é um marco nos estudos retóricos atuais, Tratado da argumentação: a nova retórica. Nela, os autores apresentam um conceito de argumentação que já pode ser considerado um truísmo: toda argumentação busca a adesão dos espíritos às teses propostas.
Publicado o Tratado, houve verdadeira explosão de obras ligadas à retórica e à argumentação, e novas tendências foram se delineando. Alguns teóricos, como os do grupo |j, por exemplo, priorizaram a retórica das figuras. Já Vignaux e Jean-Blaise Grize privilegiaram o caráter teatral da argumentação e as operações lógicas nela presentes.
O discurso como representação da realidade
Segundo Vignaux (10, p.261), “toute realité ríexiste que par un domaine de representations qui lui sont afférentes; le discours est lieu privilégiépour Vácte constitutif de ces représentations” (toda realidade só existe por um domínio de representações que a ela são conduzidas; o discurso é o lugar privilegiado para o ato constitutivo dessas representações). Talvez a citação já seja suficiente para se entender o pressuposto básico da teoria de Vignaux sobre a argumentação: o discurso não reproduz a realidade, ele a representa. Isso im plica afirmar que, dado um texto - aqui considerado a manifestação concreta de um discurso - , as idéias nele expostas não são a realidade exterior; são a representação que um sujeito discursivo faz dela.
Tal representação é o que se pode designar uma representação de segundo grau, ou seja, realiza-se por meio de outra, pois a própria linguagem tam bém é representação. Vignaux propõe que o discurso cria sua própria realidade, embora, obviamente, ele sempre nos reenvie à realidade exterior, que lhe fornece os referentes. Em outras palavras: a realidade exterior fundamenta e motiva o discurso, pois o sujeito parte dela, mas este - por meio de suas representações - também pode modificar a realidade, uma vez que seu discurso busca influir nas representações do outro. Em suma, o que nos move são as representações que fazemos do mundo. Talvez por isso Santaella (9) afirme vivermos na noosfera, isto é, o reino dos signos e das linguagens.
A Mise en Scène Argumentativa 75
O discurso como ação do sujeito
Do exposto, decorre outra premissa da teoria da lógica natural de Vignaux: todo discurso subsume a ação de um sujeito. O discurso é, portanto, uma forma de o sujeito atuar sobre o mundo. Se, como sabido, o formalismo estruturalista das décadas de 1960 e 1970 concebia o sujeito subordinado ao código e ao sistema, não lhe reconhecendo, pois, a autonomia (o sujeito era produto e reprodutor das coerções ideológico-sociais ou mero de- codificador do código lingüístico), a concepção de sujeito atuante de Vignaux reflete uma nova concepção filosófica e lingüística. Se nos reportarmos ao caráter libertário da retórica, não é difícil entender a concomitância entre o boom retórico e a nova concepção de sujeito.
De qualquer forma, é a questão da construção discursiva feita pelo sujeito que interessa destacar. Para esclarecer sua postura metodológica, Vignaux faz, constantemente, ao longo de sua obra VArgumentation: essai d ’une logi- que discursive (10), várias comparações buscando desvelar não só o que é, mas, principalmente, como se processa essa ação constitutiva do sujeito. Para o autor, todo discurso argumentativo embute o projeto de um sujeito que fala de um determinado lugar - o que ele ocupa no seio de uma formação social - , mas tal ação é delimitada pelo auditório a quem ele - o sujeito - se dirige e ao qual ele quer convencer, se não da verdade de suas idéias, ao menos da justeza delas.
Isso significa que as representações sociais que permeiam e constituem nossa ideologia são basicamente as circulantes e atuantes no meio social em que vivemos. Tal fato levou alguns filósofos e lingüistas a falar em ilusão discursiva do sujeito; ou seja, o sujeito pensa inovar discursivamente, produzir representações originais, ter voz própria, mas, na verdade, ele apenas reproduz representações vigentes em seu meio.
A diferença de postura filosófica e metodológica comparada com a que vigia nas décadas de 1960 e 1970 (época do apogeu do estruturalismo lingüístico), portanto, é enorme. O que parece simples diferença de terminologia lingüística encerra, na verdade, outra postura filosófica, outra maneira de ver o mundo. O próprio Vignaux, ao finalizar sua obra e avaliar a importância de ter proposto um novo modelo metodológico para a análise dos textos argumentativos, aponta a inserção do sujeito como um dos pontos altos de sua contribuição: “Possam os estudos sobre argumentação reintroduzir um sujeito que eles tinham considerado até então apenas como uma existência passiva [grifo nosso] dentro do produto e das condições exteriores do produzir” (ibid., p.329).
76 Direito e Argumentação - Parte 1
A questão da argumentação como construção de um projeto do sujeito implica, necessariamente, a questão da própria liberdade - o que reforça a noção de sujeito-agente - , pois lhe cabem as escolhas relativas ao objeto ou objetos de seu discurso e às operações necessárias para dar existência a eles, ou seja, para representá-los. Há, ainda, outro dado fundamental: tais representações devem prever um destinatário e as estratégias discursivas necessárias para envolvê-lo de tal forma que haja adesão do auditório. Nesse sentido, a retórica aristotélica continua atualíssima.
A teatralidade argumentativa
Antes de serem especificados objetos, ações, operações e processos envolvidos na argumentação, será feita uma referência ao que parece a analogia fundamental da concepção de discurso argumentativo de Vignaux: a teatralidade da atividade discursiva, isto é, um sujeito desempenha para seu auditório, com intuito de envolvê-lo, uma mise en scène discursiva. Também para Grize (4), o discurso argumentativo se caracteriza pela teatralidade, pois o sujeito elabora um a esquematização e a representa diante de seu auditório. Isso significa a argumentação visar à eficácia e não à veracidade dos conhecimentos. Visa à verossimilhança e não à comprovação de alguma verdade. Ela é de natureza retórica.
Dentro dessa analogia grizeana, o espectador também é um ator (agente) cuja atividade envolve três momentos: receber, concordar e aderir. Se receber implica um espectador disposto a reconstruir a esquematização, concordar pressupõe ausência de objeções, ao passo que aderir significa compartilhar, ou seja, o espectador se apropria da esquematização e a faz sua.
Parece fácil, agora, entender o conceito de lógica natural dado por Grize (ibid., p.65): a lógica entendida como “o estudo das operações lógico-discur- sivas que permitem construir e reconstruir uma esquematização”, ou seja, a lógica que preside a construção de um discurso argumentativo. Segundo Grize (apud 10, p.21), um estudo de lógica natural está a meio caminho entre um estudo estrutural e um estudo funcional concreto, ligado este aos problemas de eficiência, criação de efeitos e atmosfera. Seria possível, pois, dizer que a lógica do discurso argumentativo é também retórica.
Todo texto argumentativo constrói uma esquematização e, para tanto, lança mão de esquemas lógicos, não havendo nele a preocupação com a verdade, mas com a verossimilhança. É um a lógica do sujeito em interação com seu auditório e com os próprios objetos discursivos construídos, entendidas
A Mise en Scène Argumentativa 77
como objetos as representações de m undo feitas pelo sujeito. É, pois, a lógica não-formal, cotidiana.
Talvez uma comparação ajude a entender o que restou afirmado: qual o objetivo maior de um ator? Apresentar a seu público uma peça - uma esque- matização - cuja construção é naturalmente lógica, mas apresentá-la de forma a envolvê-lo, seduzindo-o por meio de determinadas estratégias decorrentes da própria ação do sujeito ao representar. Na verdade, o discurso argumentativo encerra jogos e estratagemas do sujeito, cuja representação e forma de representar estão indissoluvelmente imbricadas.
A atividade argumentativa - no sentido de teatralidade e construção de uma representação do m undo - busca aprisionar o leitor-espectador. A sensação de completude diante de uma peça bem representada e a sensação de assentimento que um texto argumentativo bem desenvolvido desperta são próximas. Como espectador ou leitor, pode-se, posteriormente à admiração que causa todo bom espetáculo, endossar idéias e teses representadas ou refutá-las, buscando responder - ao menos de forma especulativa - com novas representações. No entanto, importa frisar que, independentemente da resposta de adesão ou negação, houve reação; melhor dizendo, interação. Ainda mais, houve uma atividade estritamente retórica: um orador {ethos), diante de um auditório (pathos), buscou conduzi-lo a assentir com seu discurso (logos). Um ouvinte-leitor diante da esquematização apresentada busca, imbuído de suas próprias representações, responder às teses propostas.
Nesse sentido, convém notar que, conforme afirma Vignaux, toda argumentação responde a outra. Isso parece muito claro: os objetos das argum entações são, normalmente, assuntos polêmicos. Aliás, se verdades fossem, não haveria argumentações.
O fazer argumentativo
Isso posto, buscaremos, a partir de agora, entender os tipos de ações e operações dos quais o sujeito lança mão para construir seu projeto argum entativo. Buscaremos mais: os tipos de relação estabelecidos para o percurso previsto pelo orador permitir consecução e sucesso de seu projeto. A idéia de percurso é fundamental para refletir sobre a necessidade de um plano que conduza às metas: não há como escrever, sobretudo um texto argumentativo, contando apenas com a inspiração. O texto argumentativo é, antes de tudo, uma construção lógica, racional, até quando quer persuadir. Cumpre-nos, pois, observar-lhe o tipo de lógica subjacente.
78 Direito e Argumentação - Parte 1
Vignaux procura desvelar a essência do fazer argumentativo, destacando- lhe os elementos constituintes: objetos, relações entre objetos, determinações, modalidades e procedimentos de ordem. Escolhido o objeto do discurso, o sujeito passará a executar duas atividades: a de construir os objetos escolhidos, definindo-os, qualificando-os, fazendo-os agir, o que já implica atores colocados em relações espaço-temporais; e a de operar relações entre eles. Tais relações serão de natureza lógica ou retórica.
As operações de natureza lógica envolvem, por exemplo, uso de asserções, negações, inclusão ou exclusão, implicação, complementação, analogia. Já as operações de natureza retórica dizem respeito às modalidades do certo, do provável, do possível. Em síntese, se a ação de construir se relaciona ao dizer do sujeito, a ação de operar se relaciona a seu julgar, a sua valoração.
O objeto é aquilo de que o discurso argumentativo fala. Em uma perspectiva retórica, poder-se-ia associá-lo à proposição, ou seja, ao resumo claro e breve do assunto que será tratado pelo sujeito e, geralmente, inicia o texto. Todavia, segundo Vignaux, o objeto não pode ser confundido, como costuma acontecer, com o tema, a tese. O texto de José Cardozo (3), objeto de nossa análise, fala, por exemplo, sobre súmulas vinculantes, mas o tema vai além, como será visto adiante.
Obviamente, um texto, embora tenha um objeto principal, trabalha com vários objetos discursivos, e observar como são designados e qualificados é uma forma de buscar as marcas do sujeito no texto. Kerbrat-Orecchioni (5), lingüista francesa, denomina essas marcas de subjetivemos, e é sempre conveniente observar como determinadas escolhas lexicais - sobretudo referentes a verbos, adjetivos, substantivos, advérbios e alguns pronomes - podem traduzir uma axiologia. Essa ação de escolher designações e qualificações por meio das quais o sujeito vai representando seus objetos para referenciar a realidade, bem como a operação de relacioná-los, situando-os no tempo e no espaço, Vignaux denomina determinação.
Já os procedimentos de ordem, que Vignaux reputa retóricos por excelência, são as estratégias usadas pelo sujeito para privilegiar determinada ordem que lhe permite melhor conduzir seu auditório. É por meio da ordem, arbitrada pelo sujeito, que alguns objetos são mais explorados, outros ficam latentes, alguns são recuperados. De fato, a ordem é fundamental para torneios e meneios, ou seja, para dar ao discurso a modulação prevista pelo autor, para os jogos do sujeito, cujo intuito é conseguir a adesão de seu leitor. Essas ações e operações vão sendo tecidas no e pelo discurso, e a imagem da atividade discursiva, como uma rede de relações, é bastante elucidativa: relações do dis
A Mise en Scène Argumentativa 79
curso com seu próprio objeto, do discurso com seu sujeito, do discurso com seu destinatário, do discurso com a realidade social.
Merece destaque a atenção dada por Vignaux às relações estabelecidas entre os pares de proposições sucessivas, as relações lógicas locais, ou diádi- cas, fundamentais para entender por que alguns textos argumentativos parecem tão cerrados, tão irrefutáveis. Ou seja, quando está o ouvinte-leitor reconstruindo a esquematização proposta pelo sujeito, não encontra brechas em seu dizer; é como se o percurso proposto não permitisse desvios interpre- tativos. Embora seja da natureza da argumentação ser dialética, contra-argu- mentável, a verossimilhança de um texto parece ser diretamente proporcional à dificuldade de refutá-lo. Certamente o uso das operações lógicas locais é essencial para isso.
A seguir algumas operações lógicas locais citadas por Vignaux:
• (Causa) Conseqüência - Essa relação pode ser explicada, segundo o senso comum, pela expressão isto leva àquilo. Há, por exemplo, no texto de Cardozo: “Às vezes, a busca desesperada dos meios para a solução de um problema leva a que se perca a visão maior dos fins que animam a solução do próprio problema”; “Nem sempre as boas intenções geram boas conseqüências” (terceiro parágrafo).
• Incompatibilidade - Ocorre quando duas noções não podem coexistir no mesmo domínio. A relação de incompatibilidade supõe as de oposição e exclusão: “Não há, pois, como pretender agilizar as prestações jurisdicio- nais eliminando a finalidade maior a ser alcançada por essa própria agilização” (penúltimo parágrafo). No contexto, da forma como a questão foi colocada, a agilização da prestação jurisdicional é incompatível com a finalidade da própria agilização. Em suma: a priorização dos meios exclui, é incompatível com os fins desejáveis.
• Implicação - E o tipo de relação definida pelos lógicos da seguinte forma: se x contém necessariamente y, sempre que ocorrer x, teremos y: “Por ela [proposta de súmulas vinculantes], o Supremo Tribunal Federal [...], poderá fixar regras gerais determinando o alcance e o sentido das nossas leis, de modo que todos os magistrados estejam sempre obrigados a segui-las” (quarto parágrafo).
• Oposição - Há diferentes tipos de oposição: por natureza, identidade, propriedade, conseqüências: “É sabido que a interpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra, mas sim uma verdadeira opção iníluen-
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ciada por fatores ideológicos, culturais e políticos” (oitavo parágrafo); “A rapidez decisória de um litígio não é um fim, mas um meio” (quinto parágrafo). Equivalência - Dois termos de um a relação são colocados como equivalentes, até mesmo idênticos, se produzem os mesmos efeitos, as mesmas conseqüências, ou o sujeito os define como de mesma natureza, dotados de propriedades próximas ou idênticas: “Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta. [...] É o que poderá ocorrer com a reforma do Poder Judiciário, se for acolhida pelo Senado a proposta de súmulas [vinculantes]” (terceiro e quarto parágrafos). Há uma equivalência, embora metafórica, entre as duas ações relacionadas como causa e conseqüência. Adotar a proposta das súmulas vinculantes eqüivale a destruir a Reforma do Judiciário. Salvar-se-á uma proposta (= uma árvore) em detrimento do todo, da pluralidade, da floresta, da própria democracia.União - Processo de assimilação, que deve ser entendido mais como identificação do que como mera adição: “A rapidez decisória de um litígio, naturalmente, não é um fim, mas um meio. Um meio para que a ofensa ao direito não se perpetue e para que a vontade da maioria, expressa pela lei, seja assegurada. Um meio, enfim, para a manutenção da democracia” (quinto parágrafo).Hierarquia - Essa relação marca a desigualdade entre dois objetos e aponta, conseqüentemente, a superioridade de um sobre outro. Em geral, essa superioridade é dada em termos da importância, da natureza, do papel exercido: “Seu poder será soberano, pois aos juizes da Corte Suprema caberá dizer para a sociedade, de modo genérico, o que afirma a lei. Suas palavras valerão mais do que as palavras votadas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo)” (sexto parágrafo).Analogias e comparações - Analogias e comparações são também apontadas por Vignaux entre as operações lógicas locais. Dizemos também porque tanto Aristóteles quanto Perelman as destacam como excelentes recursos argumentativos. E bastante difundida a opinião de um texto rico em analogias e comparações ser poético. Contudo, é interessante verificar a analogia perfeita - aquela na qual a dupla proporção se explicita - reproduzir um raciocínio lógico-matemático cuja expressão formal a regra de três subsume: “Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta” (terceiro parágrafo). E perceptível, entre tais proposições, ter sido estabelecida uma relação lógica de causa-conseqüência, mas parece inegável que expressar tal relação de forma metafórica dá mais força ao dito. Na verdade, existe aí
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uma dupla comparação que pode revelar a construção de uma analogia; o que simbolizam a árvore e a floresta? Voltaremos a essa questão oportunamente. Embora ligeiramente modificada, a mesma analogia fecha o texto, o que, no mínimo, indicia sua força lógico-retórica.
Lembrando sempre que a lógica natural, embora siga esquemas lógicos - como alguns aqui já especificados - , não tem compromisso com a verdade, Vignaux destaca que um bom argumento deve atender aos objetivos do sujeito e o encadeamento das proposições deve repousar sobre a relação fundamental que liga a conseqüência ao princípio. Dessa maneira, mesmo uma proposição te- nuemente verdadeira é legítima se introduz a verdade de sua conseqüência. Como exemplo, é possível citar a analogia anterior: salvar uma árvore não redundaria, verdadeiramente, em destruir uma floresta (aliás, as campanhas ecológicas reforçam o contrário), mas nesse texto a imagem é procedente, é verossímil: sintetiza a verdade (passou a ser uma verdade discursiva).
Reconstruindo a esquematização
Observações
O sujeito, m unido de um projeto, constrói seu discurso representando-o de forma não só a permitir ao leitor reconstruí-lo, mas que, ao fazê-lo, assuma a tese que o outro quer passar. O discurso argumentativo é teatral, pois o sujeito, ao proceder a suas escolhas, ao designar os objetos, ao fazê-los agir, prioriza determinadas operações e determinada ordem: encobrirá o que não lhe interessa, redundará um argumento importante, deixará pistas para o leitor as preencher, recuperará o julgado relevante.
A noção de sujeito discursivo não é imune a controvérsias. As definições variam conforme a teoria assumida; e, se o rigor lingüístico obriga a distinguir sujeito discursivo (interno) de sujeito comunicacional (externo), a experiência didática permite afirmar que, sobretudo em textos jornalísticos argu- mentativos, a tendência do leitor comum é identificá-los. A questão se adensa ao se reportar o fato de, mesmo entre lingüistas, além da variabilidade, não haver uniformidade no uso de designações. Tal oscilação também se estende à nomenclatura referente ao receptor.
Charaudeau e Maingueneau (2, p.459) esclarecem a distinção entre locutor externo e interno ao discurso se estribar no pressuposto de todo sujeito falante ter dupla identidade, um a social e uma discursiva. Os autores propõem um quadro no qual situam as diferentes designações usadas em relação
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ao sujcito-falante (emissor, autor, orador, enunciador) e também em relação ao sujeito-ouvinte (receptor, leitor, auditório, co-enunciador).
Sujeito Posição de produção Posição de recepção
Externo (ao discurso) Emissor Receptor
Locutor Interlocutor
Alocutário
Autor OuvinteLeitor
Interno (ao discurso) Enunciador DestinatárioAlocutárioCo-enunciador
Narrador Narratário
Autor modelo Leitor modelo
O quadro organiza e situa designações que no dia-a-dia se imiscuem e permite ao leitor comum entender a pertinência de sua confusão, pois, se o sujeito discursivo depende do sujeito social, a recíproca também é verdadeira, ou seja, não há sujeito social que não seja também um sujeito discursivo; o homem e sua linguagem estão constantemente imbricados. Isso talvez explique por que, para o leitor comum, a distinção entre sujeito discursivo e social não é relevante.
A análise
Se, como visto, os objetos são os tópicos selecionados pelo sujeito discursivo, convém notar, desde o título, não só o objeto principal já estar colocado, mas também a tese já se encontrar anunciada, pois o articulista é contra a adoção das súmulas vinculantes na reforma do Judiciário em andamento: “Pela reforma sem súmulas vinculantes”.
Interessante no primeiro parágrafo é a forma naturalmente lógica de construí-lo: o sujeito emite um juízo de valor sobre a reforma do Judiciário e, em seguida, passa a justificá-lo. A reforma ser incipiente e pouco concreta, as designações (“m undo das preocupações”), qualificações (“abstrato”) e verbos escolhidos (“parece ter começado a sair”) revelam. O sujeito julgá-la tardia é uma valoração que o uso do modalizador (“finalmente”) deixa transparecer. As várias ações dos envolvidos com a reforma são taxadas de “iniciativas”, e, entre elas, o sujeito seleciona e destaca (“em especial”) a que será o objeto central de sua tese: a proposta do senador José Jorge.
A Mise en Scène Argumentativa 83
Mais interessante ainda é notar o próprio articulista presidir a comissão da reforma na Câmara. Em termos de construção do ethos, isso significa o sujeito, constituído no discurso, ter autoridade para opinar. Merece credibilidade. De tal aspecto, é ainda bastante producente o sujeito elogiar aquele que representa (como veremos a seguir) seu adversário, cuja tese combate. Não é outra a estratégia do sujeito, ao abrir o segundo parágrafo: de forma perem ptória (“não tenho dúvidas”) elogia a intenção de seu opositor (“foi a melhor possível”) ao apresentar a proposta de emenda constitucional.
Citar, na seqüência, as atividades executadas pelo opositor é uma operação lógica por meio da qual se justifica o elogio feito, pois tais ações são valoradas positivamente (o senador definiu parâmetros “objetivos” e “ainda” apontou um sistema mais “transparente e eficiente”), o que pode ser comprovado pelo uso dos adjetivos axiológicos, os subjetivemas, segundo Orecchioni.
Se, conforme a retórica clássica, o exórdio é importante não só para o orador dizer a que veio, mas principalmente por ser o momento de conquistar a benevolência do auditório (captatio benevolentiae), a estratégia é eficaz: é crível um orador que consegue destacar as boas intenções e algumas ações produtivas de seu adversário. A esse respeito, as afirmações de Vignaux são elucidativas:
Não é sem razão que a tradição retórica tem insistido sobre o exórdio, a introdução do discurso, que tem por meta captar, de imediato, o interesse do auditório. É nesse momento discursivo que o sujeito tentará criar, por exemplo, a comunhão de valores que ele deseja repartir com o seu auditório, ou ainda, éo momento em que ele insistirá sobre a sua competência, sua imparcialidade, sua honestidade, sua boa vontade. (10, p. 159)
Importa ainda notar, em termos de operações lógico-discursivas, os dois parágrafos iniciais encerrarem praticamente raciocínios silogísticos: apresentam a conclusão (a conseqüência), a regra mais geral e, a seguir, a especificam com dados singulares (as causas). Aliás, se não nos anteciparmos, essa ordem lógica reaparece ao longo do texto.
Elogiado o adversário, anunciado o estado da questão (a situação), tendo buscado a benevolência do auditório, o sujeito pode iniciar a desconstrução da tese adversária e dizer de fato a que veio. É o outro lado da questão, um raciocínio de oposição que se anuncia no terceiro parágrafo. Requer, pois, cautela, diplomacia. Nesse sentido, o uso do modalizador (“nem sempre”) é estratégico e fundamental, permitindo ao sujeito negar - sem se comprometer - o discurso do senso comum segundo o qual boas intenções geram boas conseqüências, além de permitir desmerecer o adversário de forma polida. Seria
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agressivo, por exemplo, não modalizar, o que implicaria afirmar que boas intenções nunca geram boas conseqüências. Contudo, como a expressão “boas intenções” reporta, de imediato, à proposta do adversário (“a intenção do senador foi a melhor possível”), seria incoerente denegar de forma taxativa o elogio já feito. Sutileza combina com diplomacia.
E a boa intenção do senador - a proposta apresentada ao Senado - vai ser, a partir de agora, rejeitada; e o sujeito passará a explicar o porquê de tal rejeição. Coincidentemente, as operações diádicas sucessivas vão se tornar mais presentes e, por vezes, até superpostas, tornando o texto cerrado. Por meio de relações lógicas de causa e conseqüência, uma negada (boas ações não geram boas conseqüências), outra afirmada (a busca desesperada dos meios leva a que se perca a visão dos fins), o sujeito vai desvelando sua posição a respeito do objeto selecionado.
Há ainda, nesse trecho, um raciocínio de dupla equivalência - base da analogia matemática - , pois, se a busca desesperada dos meios eqüivale às boas intenções, a perda da visão dos fins corresponde às más conseqüências. É fundamental frisar o papel do adjetivo desesperada, pois essa escolha do sujeito é responsável pela veracidade da asserção em tela: só buscas desesperadas ofuscam os fins que as motivaram.
Quando o autor, no final do terceiro parágrafo, afirma “ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta”, é óbvio ele ter estabelecido uma relação também não-verdadeira, mas bastante convincente e persuasiva; e tal analogia fisga, racional e emotivamente, o leitor. Racionalmente, dada a própria estrutura lógica, inerente à analogia (a/b:c/d); emocionalmente, em decorrência da figurativização ou metáfora com a qual a estrutura foi preenchida. Talvez seja essa a razão pela qual as analogias metafóricas são construções fortes ou enérgicas, como diria Aristóteles.
Se de um lado foi estabelecida uma equivalência entre a salvação da árvore e a busca desesperada dos meios, na outra ponta estabeleceu-se equivalência entre a destruição da floresta e a cegueira quanto aos fins. Portanto, se só os meios preocupam, se a busca desesperada é salvar a árvore, muito provavelmente será esquecida a floresta, o todo maior, os fins a que se deve chegar. Obviamente, a síntese que a analogia subsume encerra uma operação lógica de implicação e conseqüência1: salvar a árvore implica aniquilar a floresta. Obviamente, tam bém, tal analogia ganhará outras relações e significações ao longo do texto.
1 É por vezes bastante difícil distinguir implicação de conseqüência, pois, como dito, a lógica ar- gumentativa não c formal.
A Mise en Scène Argumentativa 85
É o que ocorre quando o sujeito discursivo estabelece uma relação de identidade entre a analogia criada e a reforma do Judiciário, se adotada a proposta das súmulas vinculantes. O quarto parágrafo trabalha, partindo dessa identidade, basicamente, com implicações sucessivas (a conseqüência de uma proposição pode ser vista como causa de outra, cuja conseqüência pode ser causa da outra). Tais implicações vão, em um crescendo, formulando hipóteses das conseqüências negativas que a adoção das súmulas vinculantes implicará: o Supremo Tribunal Federal fixará regras interpretativas para nossas leis; os magistrados não poderão discordar dessas regras superiores; as interpretações de matérias controvertidas serão unificadas.
Quando o sujeito, ao fechar o quarto parágrafo, revela que a pretensão de tal proposta é a agilização da Justiça, torna-se evidente para o leitor a oposição à proposta das súmulas vinculantes, cuja adoção representará uma busca desesperada na qual a salvação dos meios levará à obliteração dos fins. Fica claro, também, que as novas competências atribuídas ao Supremo Tribunal Federal - STF (observemos os grifos no parágrafo precedente) conferem a esse órgão um caráter despótico.
O quinto parágrafo inicia de forma altamente retórica, pois interpelar o auditório e se identificar com ele (“perguntemos”) favorece, como afirma Perelman, a comunhão de orador e auditório. Para responder à pergunta por ele formulada, o sujeito estabelece, inicialmente, uma relação de não-identi- dade, ou seja, destaca o que a agilidade decisória não é (“A rapidez decisória de um litígio não é um fim”) para, a seguir - estrategicamente - , acentuar o que ela é, ou seja, criar as relações lógicas de identidade. Negar alguns aspectos, para em seguida, por oposição, destacar outros é expediente lógico-retó- rico eficaz, cuja força se expressa em construções do tipo: tal coisa não é isto, mas é isto e isto e mais aquilo.
Sendo a agilização do Judiciário um meio, resta saber para qual fim. Dito de outro modo, se a analogia com a árvore permitiu identificá-la com os meios e estes com as súmulas vinculantes, resta saber como as informações desse parágrafo permitem preencher o outro termo da analogia, ou seja, saber o que a floresta simboliza. Se a árvore está para a floresta assim como os meios estão para os fins, ou seja, árvore/floresta:meios/fins; se os meios são identificados com as súmulas vinculantes, e os fins, com a democracia, então: árvore/floresta:súmulas vinculantes/democracia. Curioso é a analogia assim constituída expressar a equivalência proposta pelos adversários, mas refutada pelo sujeito.
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De qualquer forma, apenas no sexto parágrafo o sujeito explicita sua tese: a proposta das súmulas vinculantes é equivocada por nela valorizarem-se os meios e olvidarem-se os fins; salva-se a árvore em detrimento da floresta.
Se a analogia já permitira associar, de um lado, a salvação da árvore à adoção das súmulas (opinião dos adversários) e, de outro, o aniquilamento da floresta à destruição da democracia (opinião do articulista), o sujeito vai, a partir desse momento, defender sua posição, m ostrando todas as implicações e conseqüências do equ ívoco de se adotarem as súmulas vinculantes.
É bastante elucidativo observarmos, nos sexto e sétimo parágrafos, como as escolhas lexicais vão reiterando o caráter despótico que a adoção das súm ulas conferirá ao STF, redundando implicações e informações já colocadas no quarto parágrafo: “A cú p u la do Judiciário f ix a r á as n o rm a s que caberá a todos
obedecer, sem p o d e r de contestação e de revisão ; seu poder [o do s t f ] será sobe
rano; a lei será d ita d a pe lo s t f ” e outras. Convém observar que toda língua é redundante e insistir conscientemente em determinadas informações é procedimento eficaz, sobretudo em discursos argumentativos.
Não é sem razão que, no fechamento do sexto parágrafo, o sujeito discursivo, por comparação, opera com relações de hierarquia, as quais, na realidade, subsumem redundantemente o já dito ao longo dos parágrafos anteriores: as palavras dos juizes da Corte Suprema valerão m a is do que as dos representantes do povo. Bem, se é sabido o estado democrático de direito se fundar em autonomia e equilíbrio dos três poderes, tal valorização do Judiciário compromete a essência da democracia. Aliás, a considerar o poder que a adoção das súmulas conferirá ao Supremo - conforme a representação construída pelo sujeito - , fica para o leitor a sensação de que tal adoção configurará a “ditadura do s t f ”.
Pertinente é lembrar, aqui, a concepção de Vignaux e Grize quanto à teatralidade inerente à argumentação, ou seja, a argumentação como a m ise en
scène de um sujeito que busca o melhor desempenho diante de seus leitores e espectadores para aceitarem, acatarem e se apropriarem de sua representação, isto é, de sua opinião. Vale sempre, portanto, lançar mão de operações lógicas e retóricas para convencimento e persuasão; valem recorrências, insistências e interferências do sujeito em seu discurso.
Começar, por exemplo, no oitavo parágrafo, negando um possível exagero que poderia surgir no espírito do leitor, pois as implicações anteriores atingiram um ápice (os ministros ditarão a lei a seu bel-prazer), é um a m aneira estratégica de aplacar qualquer desconfiança do leitor (considerando o texto um lugar de interação). Modalizar sua assertiva com um s in cera
A Mise en Scène Argumentativa 87
mente pode significar confie em mim. Reforçar de modo não pessoal (“é sabido que”) a questão da interpretação, excluindo pela negação (“interpretar não é técnica jurídica pura e neutra”) para, na seqüência, incluir pela afirmação (“mas sim uma verdadeira opção”), é um percurso naturalm ente lógico para reforçar a conclusão de toda interpretação ser valorativa, im plicar escolhas.
Afinal, cabe perguntar a quem o sujeito/orador quer convencer, a quem quer persuadir. Em outras palavras: cabe perguntar qual é seu auditório. Talvez o conceito de argumentação dado por Vignaux ajude a resolver a questão:
Eu definirei então o discurso argumentativo como aquele que, a partir de um
lugar determinado de um orador no seio de uma formação social, marca uma
posição desse orador sobre um sujeito ou conjunto de sujeitos; esta posição re
velará diretamente, não diretamente ou mesmo disfarçadamente, o lugar do orador dentro da formação social considerada. Esta posição é sempre determinada por um outro, que o autor pode convocar ou não, mas que intervém como referencial delimitativo. (10, p.58)
Fica claro todo sujeito ocupar determinado lugar social, e seu discurso mostrará, direta ou indiretamente, esse lugar dentro de determinada formação social. Fica claro, ainda, a linguagem ser essencialmente dialógica: nosso discurso é sempre dirigido para o outro e é por ele delimitado, podendo o outro estar nele convocado ou não.
Portanto, se o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados) promulgar as súmulas vinculantes, designadas como verdadeiras leis interpre- tativas, a outra conclusão óbvia a que se chega é que, ironicamente, o próprio Poder Legislativo - representante lídimo da voz e da vontade do povo - abrirá mão dessa representatividade. Valerá a interpretação do s t f , refletindo ou não a intenção do legislador.
Se for recuperada a informação de ser o autor do texto um representante do Legislativo (e seu discurso traz as marcas do lugar social de onde ele fala), pode-se afirmar que o texto prevê dois tipos de auditório: o universal — leitores do jornal; e o particular - representantes do povo na Câmara e no Senado, estes em especial. Aliás, é possível afirmar, considerando a definição de Vignaux, o auditório particular ter sido convocado no parágrafo final.
Diante de todas as implicações e conseqüências negativas aventadas, o modo categórico pelo qual o penúltim o parágrafo conclui a argumentação
88 Direito e Argumentação - Parte 1
(“não há, pois, como agilizar”) reforça a tese central do texto, ou seja, a questão da incompatibilidade entre adoção de súmulas e democracia. Obviamente, como toda afirmação requer uma confirmação, o sujeito redunda e recupera alguns argumentos, expandindo-os, ou explicitando o que ficara a cargo do leitor inferir, por exemplo, a questão do equilíbrio dos poderes, ou melhor, do desequilíbrio (o verbo escolhido é destroçado).
À proposição que levanta a hipótese de a agilização do Judiciário e a democracia poderem ser compatíveis (“Há, com certeza, outros meios para que a vontade democrática possa ser”) seguem-se proposições que, ao excluírem as conseqüências negativas (“sem que o equilíbrio seja”, ”e sem que”), recuperam, na verdade, o argumento básico do autor: a agilização deve ser feita, mas não da forma equivocada proposta.
Chega-se, assim, ao parágrafo final, que a retórica clássica denomina pe- roração e, normalmente, representa uma dor de cabeça para alguns, cuja queixa comum é de nem sempre conseguirem fechar seus textos satisfatoriamente. Também quanto a esse aspecto, o texto de Cardozo tem muito a ensinar: é um fecho que apela ao bom senso do adversário (“medite cuidadosamente”), ressaltando-lhe a responsabilidade (“importante decisão”), sem deixar, contudo, de alertá-lo (“E não aniquile a floresta ao pretender salvar a árvore”). É um fecho que fala à razão e à emoção; e a recuperação da analogia - síntese imagética da tese do autor - é o último movimento estratégico da mise en scène representada pelo sujeito.
Portanto, parece só restar aderir e aplaudi-lo! Pelo menos, até que sejam reconstruídas outras representações de outros sujeitos para os quais “salvar a árvore não implica aniquilar a floresta” e, fundamentalmente, que tais representações envolvam e convençam.
Palavras finais
Alguns aspectos da teoria de Vignaux e Grize, conhecida como lógica natural, merecem ser aqui reiterados. O primeiro deles é a visão do fazer argumentativo como uma mise en scène desempenhada pelo sujeito com o objetivo de o destinatário, ao endossar a representação discursiva, endossar a tese subjacente.
Desse aspecto, toda argumentação subsume um projeto de dizer e julgar, ou seja, organiza-se como um a esquematização cuja propriedade de convencimento e persuasão depende das operações lógico-retóricas realizadas pelo sujeito. E é justamente com relação às operações lógicas que a teoria de
A Mise en Scène Argumentativa 89
Vignaux parece reveladora, sobretudo quando mostra como o encadeamen- to entre pares de proposições sucessivas reproduz, de forma natural, alguns esquemas da lógica formal. São as relações diádicas.
Bastante interessante é notar a lógica inerente às relações diádicas decorrer, muitas vezes, do fato de elas trabalharem essencialmente com o elo prin- cípio-conseqüência. Há, por exemplo, a própria relação causa-conseqüência, (in)compatibilidade-conseqüência, implicação-conseqüência, equivalência- conseqüência. O próprio raciocínio analógico se estriba, como visto, em uma relação lógico-matemática, de dupla equivalência, possível de ser usada como premissa para uma conclusão.
O caráter de construção cerrada que a princípio toda boa argumentação apresenta deve-se fundamentalmente a seqüências de encadeamentos lógicos, que vedam as brechas para questionamentos e dúvidas do leitor. A própria questão da ordem, que Vignaux recupera da retórica aristotélica, bem como a questão das escolhas lexicais, que indiciam subjetividade e conseqüente valo- ração do sujeito, contribuem para envolvimento e persuasão do leitor.
ANEXO
Pela reforma sem súmulas vinculantes
A reforma do Poder Judiciário finalmente parece ter começado a sair do abstrato mundo das boas preocupações. As várias iniciativas tomadas pelo Ministério da Justiça e pela comissão especial criada pela Câmara dos Deputados, e em especial o parecer apresentado pelo senador José Jorge (PFL-PE) sobre a proposta de emenda constitucional que trata da matéria, na Comissão de Justiça do Senado Federal, recolocaram a discussão na ordem do dia.
Não tenho dúvida de que a intenção do senador ao apresentar essa m anifestação foi a melhor possível. Acolheu a proposta de controle externo da magistratura, definiu parâmetros objetivos para impedir que juizes exerçam a advocacia imediatamente após suas aposentadorias e ainda apontou diversas regras para a busca de um sistema de prestação jurisdicional mais transparente e eficiente para o Estado.
Todavia a vida tem nos ensinado que nem sempre as boas intenções geram boas conseqüências. Às vezes, a busca desesperada dos meios para a solução de um problema leva a que se perca a visão maior dos fins que animam a solução do próprio problema. Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta.
90 Direito e Argumentação - Parte 1
É o que poderá ocorrer com a reforma do Poder Judiciário, se for acolhida pelo Senado a proposta de súmulas sugerida no parecer do senador Jorge. Por ela, o Supremo Tribunal Federal, consolidando sua posição interpretati- va acerca de certas questões, poderá fixar regras gerais determinando o alcance e o sentido das nossas leis, de modo que todos os magistrados estejam sempre obrigados a segui-las. Não poderão mais discordar dessas “ordens superiores”, mesmo que as reputem erradas ou tenham novos argumentos para questioná-las. Com isso, pretende-se unificar para todo o país as interpretações legais de matérias controvertidas, agilizando as decisões de litígios.
Mas perguntemos: para que se quer um Judiciário mais ágil? A rapidez decisória de um litígio, naturalmente, não é um fim, mas um meio. Um meio para que a ofensa ao direito não se perpetue e para que a vontade da maioria, expressa pela lei, seja assegurada. Um meio, enfim, para a manutenção da democracia.
É na ausência dessa compreensão que reside o equívoco da proposta das súmulas vinculantes. Com a sua adoção, a pretexto de agilizar a prestação ju- risdicional, estar-se-á atribuindo à cúpula do Judiciário, constituída por m agistrados não eleitos pelo povo, e vitalícios, o poder de fixar, em situação superior ou no mínimo equivalente à dos legisladores, regras interpretativas genéricas que a todos caberá obedecer, sem contestação e sem poder de revisão, já que apenas por esses mesmos magistrados é que poderão ser revistas. Seu poder será soberano, pois aos juizes da Corte Suprema caberá dizer para a sociedade, de modo genérico, o que afirma a lei. Suas palavras valerão mais do que as palavras votadas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo).
Afinal, aos parlamentares apenas caberá produzir a “lei” no seu sentido formal. No seu sentido “real”, no seu sentido que tem valor efetivo e vinculan- te, a lei será ditada pelo STF sempre que seus ministros entenderem que assim deva ser feito.
Não há nessa afirmação, sinceramente, nenhum exagero. É sabido que a interpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra, mas sim uma verdadeira opção influenciada por fatores ideológicos, culturais e políticos. Interpretar, portanto, é sempre uma escolha valorativa feita pelo intérprete a partir dos vários sentidos possíveis de uma norma legislativa. E é na interpretação que se fixa o conteúdo do que de fato deve ser respeitado por todos.
Se assim é, se vier o Congresso a atribuir à cúpula do Judiciário o poder de promulgação dessas verdadeiras leis interpretativas, a que se convencionou chamar de súmulas vinculantes, estará retirando do povo o poder de de
A Mise en Scène Argumentativa 91
finir, por seus representantes, o sentido e o alcance da sua própria vontade. A lei valerá genericamente não pelo que o Legislativo afirmou dentro da ordem jurídica, mas pelo que o Supremo disser, dentro das suas opções valorativas.
Não há, pois, como pretender agilizar as prestações jurisdicionais eliminando a finalidade maior a ser alcançada por essa própria agilização. Há, com certeza, outros meios para que a vontade democrática da população possa ser mantida por decisões ágeis do Judiciário, sem que o equilíbrio dos Poderes seja destroçado e sem que o poder das leis passe a ser emanado não mais do povo, como ordena a Constituição, mas de uns poucos homens togados não eleitos pelo voto direto de todos os brasileiros.
Sinceramente, espero que o Senado Federal medite cuidadosamente sobre a importante decisão que tomará quando apreciar o parecer do senador Jorge, nos próximos dias. E não aniquile a floresta ao pretender salvar a árvore.
José Eduardo Martins Cardozo, advogado, deputado federal pelo PT-SP, é o presidente da Comissão de Reforma do Judiciário da Câmara.
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parte 2 Prática Argumentativa no Direito
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L. A Construção do DramaNarrativo em Petições
Leda Corrêa
Pouca atenção tem recebido o texto narrativo nos estudos voltados à construção dos discursos jurídicos. Em uma breve reflexão, atribuímos essa escassez primeiro à relação sócio-histórica entre retórica e Direito; mais especificamente entre a sofistica, de Protágoras, e o Direito. Em segundo lugar, ao proselitismo do m undo contemporâneo, que insiste cm reduzir a com unicação hum ana a relações de meio e fim, ou, ainda, a relações de perdas e ganhos, por meio da persuasão pura e simples.
Entendemos que os mais diferentes campos do saber social não se estruturam apenas por essa face utilitária e finalística do uso da linguagem. O campo do Direito, em especial, constrói-se sobre outras bases sociais: ética, tradição e cultura. A narrativa é um tipo textual que torna mais evidente a busca por essas bases históricas e, portanto, abre-se com mais clareza à construção dialógica entre o longo tempo de permanência dos sentidos e o curto tempo, que opera com sua transitoriedade.
A petição, m omento exordial das ações processuais, se organiza parcialmente pelo texto narrativo. Eis uma das razões que a qualificam como gênero discursivo de abertura da fase processual no Direito; ela apresenta o drama e propõe soluções cabíveis à sua resolução pela narração dos fatos e pela formalização do pedido.
Em síntese, a compreensão do m undo pela narrativa recupera o caráter essencial e dramático das relações humanas que se esconde m udo por detrás das aparências.
A Construção do Drama Narrativo em Petições 93
A tridimensionalidade da ação na linguagem e no Direito
No vasto campo do Direito, o vocábulo ação apresenta muitas acepções, das quais destacamos três por remeterem à tridimensionalidade temporal que configura o campo das interações jurídicas.
A primeira acepção designa “o direito que têm as pessoas (físicas ou ju rídicas) de dem andar ou pleitear em juízo, perante os tribunais, o que lhes pertence ou o que lhes é devido” (7, p. 12-3). Nessa acepção, atribui-se relevo à ação em potência, ao que pode ou deve ser. Assim, ação apreende a perspectiva futura do acontecimento, ou seja, acontecível: como possibilidade ou dever de agir em juízo, assegurado aos cidadãos pelo Direito. Ainda sob essa definição, o vocábulo ação se funda no princípio manifestado na lei civil: “A todo direito corresponde uma ação que o assegura”.
A segunda acepção de ação designa “o próprio processo intentado em juízo para se pedir alguma coisa, de que se julga com direito, seja o restabelecimento de um a relação jurídica violada, seja para pedir o cum primento de um a obrigação” (ibid., p. 13). Nessa acepção, atribui-se relevo à ação em curso, intentada em juízo. Assim, o vocábulo apreende a perspectiva presente do acontecimento, isto é, o lugar de manifestação ou realização do próprio Direito.
As duas dimensões temporais da ação não se consubstanciam sem uma terceira: a do passado, doravante acontecido, sedimentado em códigos, jurisprudência e doutrinas, que orientam tanto o direito de demandar ou pleitear, quanto o próprio processo intentado em juízo.
No âmbito dos estudos lingüísticos, com a inserção e o desenvolvimento da Pragmática como disciplina que possibilita explicar o funcionamento da língua em contextos particulares de uso, a concepção de linguagem alinhavou igualmente as três dimensões temporais da ação, isto é, passou a ser concebida como uma forma de ação praticada por usuários da língua envolvidos em uma dada situação comunicativa. A ação do homem pela linguagem faz dele um ser capaz de manter e modificar os sentidos das coisas do m undo nas diferentes situações de discurso. Nesse processo de (inter)ação comunicativa o homem se constitui como pessoa - ser simultaneamente uno e plural, pois apresenta suas vicissitudes como indivíduo, que o singularizam frente aos demais homens, com os quais compartilha modos de ser e agir no m undo social.
Dessa perspectiva, também está presente na linguagem a tridimensionalidade espaço-temporal da ação, pois, ao usar o código lingüístico, o homem não apenas age intencionalmente sobre outro homem, mas com ele interage
94 Direito e Argumentação - Parte 2
para manter, projetar e modificar estados de coisas na sociedade por um ponto de vista individual.
De acordo com a teoria da ação, mudança é o fundamento que rege as ações. Entretanto nada muda fora da relação com o que se mantém sedimentado através dos tempos. Estranho paradoxo. Contudo, deixa de sê-lo se compreendemos a inexorabilidade entre identidade e diferença. Dessa ótica, os sentidos só mudam na relação estabelecida com o dado, o já construído, o passado que, na perspectiva textual-discursiva, apresenta-se sob a forma de m odelos de representação social arquivados na memória humana. Tais modelos são compartilhados por grupos ou por toda a sociedade, ao mesmo tempo em que são reinterpretados pelo indivíduo nos processos de socialização.
Observemos, por exemplo, a palavra petição como forma substantivada do verbo pedir, que, por sua transitividade, necessita de complementos verbais: o teor do pedido (algo) e a pessoa a quem se destina o pedido (alguém). Nosso conhecimento da língua possibilita, nesse caso, a ativação dos actantes do verbo pedir: o que pede e a quem se pede; bem como possibilita ativar a existência do conteúdo do pedido. No campo do fazer jurídico, o uso do termo petição implica uma seqüência orientada e ordenada de ações por uma ação maior ou macroação: a ação de pedir. Esqucmaticamente, tal seqüência é assim representada na Figura 1:
X = autor da ação;Y = advogado; Z = réu; W = juiz.
Figura 1
A Construção do Drama Narrativo em Petições 95
Segundo Van Dijk (11), as seqüências de ações, em geral, são esquemas conceituais ou modelos mentais, designados scripts, aqui concebidos como micro-narrativas conceituais estereotipadas dos acontecimentos. Os scripts,
portanto, dizem respeito à dimensão passada dos acontecimentos, visto refletirem o processo sócio-cultural e ideológico sedimentado, além de orientarem a elaboração dos planos de ação futura a serem efetivados em língua, em uma dada situação comunicativa. Em outros termos, todo scrip t pressupõe uma ordem social preestabelecida, passível de ser lentamente alterada no curso do tempo por interação dos diferentes grupos sociais. Essa ordenação social estrutura as interações desenvolvidas no interior dos campos do saber social.
Nesse sentido, existência e estruturação do campo do Direito obedecem a esse tipo de ordenação social que, no plano conceituai, funciona como uma macro-narrativa, de ordem cultural ou macro-histórica, designada por Corrêa (2) m egascrip t. Esse conceito refere-se a um esquema mais amplo e genérico de organização social que ultrapassa os limites dos grupos sociais, estendendo-se a todo o campo social ou a toda a sociedade como princípio comum de organização sócio-histórica. Entendemos o m egascrip t como forma de conhecimento simbólico e pactuai que transita para além dos contratos sociais. Em termos valorativos, esse esquema, além de sua abrangência só- cio-cultural, compreende também o domínio da ética social.
Conforme Reale, as normas éticas não envolvem apenas um juízo de valor sobre as ações humanas, mas culminam “na escolha de uma diretriz obrigatória numa coletividade” (6, p.33). Essa diretriz, sendo expressão de um complexo processo de opções valorativas, resulta na imperatividade da via construída e escolhida pelos diferentes grupos sociais. A imperatividade, nesses termos, é a expressão do poder hegemônico, edifkado por um concerto polifônico de vozes e lugares sociais. Por tal razão, as normas, da perspectiva da ética, são formas especiais de contrato social, designadas por Corrêa (2) como pactos. Os pactos sociais são sócio-historicamente construídos e sedimentados.
No campo do Direito, por exemplo, a petição é o ato inaugural ou exor- dial de um processo mais amplo, que se apresenta como uma macro-narrati- va, cuja importância reside na conservação do pacto ou acordo in te r eives, ou, simplesmente, pacto de civilidade. Esse esquema m eg a scrip tu ra l está representado na Figura 2.
No referido esquema, é possível observar que seqüências de ações decorrem da desmobilização do pacto, cuja finalidade mais importante é o restabelecimento da normalidade, inscrita nas ações ordinárias e cotidianas dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, a fase processual (penal e civil) do Direito
96 Direito e Argumentação - Parte 2
Figura 2
caracteriza-se socialmente como evento ou acontecimento extraordinário, pois o andamento das ações processuais tem como objetivo o retorno ao equilíbrio social na voz derradeira daquele que tem o poder de julgar - o juiz. Segundo Carnelutti (1, p.33), o processo serve, portanto, “para fazer que entrem em juízo aqueles que não o têm”
O utro aspecto observável na Figura 2 é a natureza das ações possíveis de desencadear o processo penal ou civil. Certamente essa seara é complexa até mesmo para os especialistas em Direito; porém, do ponto de vista lingüístico, o vocábulo penal designa castigo ou punição aplicado a crimes ou delitos cometidos. Nesse sentido, crime e castigo são acontecimentos que m antêm entre si estreita relação. Distinguem-se, sobremaneira, no plano temporal, pois o vocábulo crime marca a ruptura do pacto, m om ento no qual se dá o início do processo. Já os vocábulos castigo e pena marcam a retomada do pacto, m om ento no qual se dá o fim do processo. Há, de tal perspectiva, re
A Construção do Drama Narrativo em Petições 97
lação sinonímica entre as expressões processo criminal e processo penal, pois não deve haver crime sem penalização ou penalização sem crime. Roubar é crime, portanto aquele que pratica tal ação deve ser penalizado. Por exemplo, no campo da política nacional, o lugar-comum “ele rouba, mas faz” é amplamente utilizado pelos cidadãos brasileiros desde os tempos do popu- lismo, quando fazia-se referência ao político que rouba, mas executa a contento seu ofício público.
Nós brasileiros sabemos que, historicamente, o preenchimento semântico do pronom e ele é atribuído, de preferência, a dois personagens da história política nacional. Entretanto, interessa compreender que, nesse campo de interação, salvo raras exceções, o crime (roubo, no exemplo) não m antém ligação estreita com a pena, pois, em geral, nas representações sociais sobre nossos políticos, prevalece a idéia de serem corruptos e nunca ou quase nunca sofrerem punições. Por razões históricas, a esse enunciado segue-se outro, igualmente usado quando se faz necessária a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar crimes nessa esfera de ações sociais: “Tudo acaba em pizza”. É voz geral do povo, que sabe e projeta o final do processo com isenção da pena devida aos criminosos.
Ainda da perspectiva lingüística, o vocábulo civil diz respeito ao cidadão considerado em suas circunstâncias particulares dentro da sociedade, no interior da qual assume direitos e deveres. Nas interações civis, não raro, surgem alterações de ânimo ou discórdia, ou, ainda, conflitos de interesses entre os cidadãos, que podem culminar ou não na prática criminosa. Segundo Carnelutti (1, p.26), o processo civil intervém “porque ainda não surgiu o delito que reclama a pena”. Ainda, para esse autor, “a situação diante da qual intervém (o processo civil) leva o nome de lide ou litígio” (ibid. p.26).
Assim, a lide contém o crime em estado de latência. Por essa razão, lide e delito são dois índices correlatos de não-civilidade. A diferença é na lide haver perigo iminente e no delito, dano. É preciso considerar, todavia, o processo civil poder assumir natureza preventiva ou contenciosa; nesta, opera-se com o dano, naquela, com o perigo iminente.
O caráter tridimensional da ação da linguagem, portanto, viabiliza a comunicação humana, pois, para agir no presente e projetar o futuro, necessária é a recorrência a modelos mentais de representação social (megascripts e scripts). Tais modelos, todavia, não são estáticos, por orientarem a produção textual-discursiva presente e serem lenta e gradativamente por ela modificados. De forma análoga, a projeção futura da ação pela linguagem e seus efeitos sociais mais fecundos dependem da resultante da relação dialógica entre
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acontecido (passado) e acontecimento (presente), pois só se projeta a dim ensão do que ficou por fazer pelo constante diálogo entre as vozes do passado - cristalizadas na forma de modelos de representação generalizantes e específicos - e o sujeito situado no presente. Nesse sentido, o acontecível - perspectiva futura da ação - é a via das projeções do sujeito pela qual ele cria possibilidades para transformar, paulatinamente, o m undo a seu redor.
Contexto e interação
Toda ação implica interação de sujeitos contextualmente situados. Estar situado pode ser entendido de duas perspectivas: local e global. O contexto local é o espaço da ocorrência efetiva das interações sociais. Uma audiência no fórum, uma aula ou uma consulta médica são alguns exemplos da dim ensão social na perspectiva localizada do contexto. O contexto global, por sua vez, é o espaço organizado por campos de interação social. Segundo Thompson (9), esses campos são formados por espaços institucionais e não-institucio- nais. Tais espaços, sobretudo os institucionais, apresentam forte estrutura hierárquica de organização do poder.
Interações efetivadas em um dado contexto local ocorrem no interior desses campos, sendo por eles orientadas. A longo prazo, ocorrências locais também modificam lentamente as estruturas dos campos. Devido à interação pela linguagem, esses campos são também designados campos do saber social. Com efeito, um campo tem considerável autonomia, mas sua formação e mudança não ocorrem fora do espaço de integração intercampos, isto é, sem a socialização com outros campos do saber. O campo de interação social do Direito, por exemplo, é organizado por instituições como tribunais, fóruns e varas e por espaços não-institucionais, nos quais informalmente dis- cutem-se assuntos do saber jurídico.
Os contextos local e global também apresentam dimensão cognitiva, não apenas social. Os modelos de contexto local são inúmeros, assim como o são as situações sociais, e são representados por seqüências de ações estereotípi- cas (scripts); há modelos de representação de consulta médica, aula etc. Os modelos de contexto global dizem respeito à ordenação estrutural de campos do saber em uma dada sociedade. São representados por seqüências de ações, resultantes da complexidade dos fatores sócio-histórico-culturais e ideológicos que envolvem a conjugação de conhecimentos e valores de diferentes grupos para construção de um terreno comum de conhecimento, o qual assume de forma tácita a forma de pacto social.
A Construção do Drama Narrativo em Petições 99
A dimensão cognitiva dos contextos globais é representada por mega- scripts. Eles são genéricos por não representarem situações específicas, mas orientarem a maior parte delas. Sua fundação, formação e sedimentação histórica são bastante complexas, e seu estudo pormenorizado não constitui o escopo deste capítulo. Dessa perspectiva, a formação sócio-histórico-cultural das estruturas sociais tem como fundação simbólica pactos que se estendem a todos, ou a quase todos, os membros de um ou mais campos de interação social.
O drama na narrativa jurídica
Historicamente, o vocábulo drama vincula-se ao teatro, à arte da representação. De etimologia grega, dráma, designa ação. Sabe-se que a linguagem é uma forma de ação pela qual sujeitos sociais investem-se de papéis sociais para interpretá-los de determinados pontos de vista diferenciados, às vezes até controversos. Essa é uma das explicações para o vocábulo drama ter assumido, no curso do tempo, estreita relação com as noções de conflito, atrito, desacordo etc.
É proposta aqui a ordenação causai dos conceitos conflito e drama. Sendo o conflito causa do drama, ele é o dram a iminente. Já dram a é a conseqüência do conflito, o conflito deflagrado. Dessa perspectiva, no dram a pode haver ruptura parcial ou total de um dado contrato regido pelo pacto social. As ações que buscam retecer esgarçamento ou ruptura do tecido social constituem a tram a narrativa da qual o dram a é parte constitutiva, além de qua- lificar-se como acontecimento extraordinário; isto é, o que foge à ordem do dia, no dizer de Da Matta (3), em sua tipologia de eventos ordinários e extraordinários.
O mero relato de acontecimentos, quando não ocorre efetiva violação ou tentativa de violação de normas, não constitui propriamente narrativa, pois não há reconstrução das relações que entretecem a tram a social. Nesse sentido, há graus de dramaticidade nas narrativas, desde que se considere a iminente ou a real ruptura da trama instituída e representada cognitivamente por scripts e megascripts. No campo do Direito, ações de natureza preventiva, em geral, funcionam como relatos.
O esquema megascriptural, representado na Figura 2, orbita a esfera do pacto de civilidade; e a ação processual, uma das etapas do esquema, qualifica-se como cerne do drama. Observa-se, ainda, que, no direito processual penal, há o dano instaurado nas teias da trama; já no direito processual civil,
100 Direito e Argumentação - Parte 2
pode ou não haver ruptura, conforme observado em casos de natureza preventiva ou contenciosa. Conseqüentemente, na área civil, pode ou não ocorrer narrativa.
As narrativas apreendem as dimensões global e local dos contextos. As ações efetivas entre personagens ocorrem no espaço do contexto local. Conforme observado, as ações são tridimensionais, por isso abarcam, dialogica- mente, outros tempos e espaços situados no passado e no futuro, a partir de um presente determinado. Essa totalidade de tempos e espaços responde pela perspectiva global do contexto. Assim, o contexto global orienta as ocorrências discursivas localizadas por meio da conformação e estruturação histórica dos campos de interação social.
A organização sócio-histórica do campo do Direito rege-se pelo pacto de civilidade, cuja função é assegurar a manutenção dos contratos sociais, por meio da obediência às normas jurídicas pelos cidadãos em suas interações ordinárias. Por essa razão, sempre que a preservação dos contratos estiver ameaçada, encontrar-se-á igualmente ameaçado o campo do Direito e o pacto que o rege.
Análise da construção do drama narrativo em petição inicial de ação indenizatória por danos morais e materiais
O texto abaixo selecionado para análise é um fragmento extraído de um a petição inicial de ação de indenização por danos morais e materiais. A ação foi proposta em face de médico e hospital responsáveis por diagnóstico e tra tamento inadequados de uma paciente, portadora de doença por si já bastante constrangedora, que, além de ficar exposta ao ridículo, viu-se impedida de trabalhar por longo período. Depois de fracassadas tentativas de cura, a paciente procurou outro médico, que, em pouco tempo, conseguiu curá-la por meio de intervenção cirúrgica simples.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA _________VARA CÍVEL DA COMARCA DE CURITIBA/PARANÁ
(Autora) [...], por seu advogado adiante assinado, Dr. Leucimar Gandin, brasileiro, casado, inscrito na OAB/PR sob o n. 28.263, com endereço [...], onde recebe intimações e notificações, vem respeitosamente perante Vossa Excelência, com fulcro nos arts. 159, 1.545 e demais artigos do Código Civil Brasileiro [CC/1916], bem como art. 14 do CDC, propor a seguinte
A Construção do Drama Narrativo em Petições 101
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO por DANOS MORAIS E MATERIAIS em face de R R. A., brasileiro, médico, inscrito no CRM/PR sob o n. [...] com endereço na Av. [...] e H. M. C. LTDA., pessoa jurídica de direito privado com sede na rua [...], pelas razões de fato e direito a seguir expostas:
RAZÕES DE FATONo início do ano de 1998, a autora começou a sentir algumas dores em seu bo
tão anal (ânus), principalmente quando necessitava ir ao banheiro. Estas dores fo ram se repetindo e se agravando com o passar do tempo, a ponto de ser obrigada a procurar um profissional da medicina visando obter um diagnóstico e a cura.
Em data de 27.03.1998 procurou o primeiro réu e realizou uma consulta para verificar o que estava ocorrendo. Este alegou que a paciente apresentava “botão hemorroidário sangrante” e marcou uma cirurgia reparadora de emergência para o dia 06.04.1998. Devido às fortes dores, foi-lhe recomendado um afastamento do trabalho por período de 15 dias, bem como receitada uma série de medicamentos com o fim de amenizar as fortes dores que sentia.
A cirurgia foi realizada nas dependências do segundo réu, uma vez que o primeiro réu atendia com freqüência naquela instituição hospitalar. Submetida à cirurgia, retornou à sua residência, permanecendo em recuperação por alguns dias, mesmo porque sentia fortes dores, principalmente quando evacuava.
Não obstante as orientações do médico, as dores e o sangramento continuaram ininterruptamente por diversos dias, desta vez com maior intensidade, porém o primeiro réu alegou serem normais tais sintomas, eis que a paciente se encontrava em fase de recuperação.
Em data de 18.05.1998, já passados mais de 42 (quarenta e dois) dias da realização da cirurgia, a autora já não suportava as dores que a acometiam. Somente conseguia fazer suas necessidades à base de laxantes e analgésicos, além de diversos outros medicamentos que lhe vinham sendo receitados com freqüência. Nesse quadro, dirigiu-se novamente até a clínica do primeiro réu comunicando as fortes dores e a impossibilidade de evacuar normalmente, esclarecendo que se encontrava muito pior que antes da realização da cirurgia. Novamente foram-lhe receitados uma infinidade de remédios (vide documentos anexos) e recomendado mais um período de 15 (quinze) dias para repouso.
Em 29.05.1998, quando a paciente retornou ao consultório do médico, com as mesmas dores, o réu entendeu por bem realizar novos exames laboratoriais, justificando que as dores poderiam ter decorrido de uma suposta anormalidade do aparelho reprodutor da paciente. Submetida então a um exame ecográfico de pelve na própria clínica do réu, cujo resultado fora o seguinte:
102 Direito e Argumentação - Parte 2
“COMENTÁRIO: Útero discretamente aumentado de volume, porém de contornos regular es e aspecto homogêneo. Presença de massa mista pélvica em topografia anexial direita, medindo 52x43x40mm (V=46y8cm3)y com áreas hi- perecogênicas e algumas imagens císticas em seu interior; sendo a maior delas de 25x14mm.
CONCLUSÃO: Ultra-som pélvico com alterações sugestivas de massa pélvica à direita
Ao final da página de resultado do exame vinha transcrita a seguinte m ensagem:
“Os exames complementares dependem de análise em conjunto com dados clínicos. Lembramos que muitas vezes existem limitações no método utilizado, devendo haver complementação diagnostica.” (grifamos) Com base no resultado deste exame, E SOMENTE DESTE, o primeiro réu informou a paciente que as fortes dores resultavam, sem dúvida nenhuma, da existência de um cisto (massa pélvica mista) o qual deveria ser removido via intervenção cirúrgica, poisy do contrário, as fortes dores permaneceriam. Mesmo assumindo que o exame realizado não era suficientemente capacitado para apurar com precisão a anormalidade da autora, o réu agendou uma nova cirurgia para extração do suposto “corpo estranho” sem antes complementar referido exame ou buscar outra solução ao problema, estando certo de que as dores resultavam do pequeno cisto existente.
Enquanto aguardava a cirurgia a autora recebeu novo atestado de licença para o trabalho por 15 (quinze) dias.
Apesar de surpresa com referido diagnóstico, eis que jamais havia sofrido de qualquer dor ou anormalidade em seu aparelho reprodutor; a autora estava envolvida pela insuportável e ininterrupta dor, o que a impossibilitou sequer de raciocinar sobre qual seria a gravidade das alegações do “especialista”, razão pela qual autorizou a nova cirurgia, na esperança de se ver aliviada daquele pesadelo que vivenciava, confiando sobretudo na alegada experiência do médico, efo i justamente por confiar extremamente nas habilidades daquele profissional que permitiu o tratamento sem questionar com outro profissional da medicina. Ressalte-se que não foi informada detalhadamente acerca dos motivos da nova intervenção cirúrgica, nem mesmo se era a única forma de eliminar a massa existente em seu aparelho reprodutor.
Em 08.06.1998 foi submetida à nova cirurgia, também nas instalações do segundo réu (Hospital e Maternidade Caritas) ocasião em que a massa pélvica fo i retirada para, aí simy ser enviada à analise laboratorial. Permaneceu mais alguns dias em recuperação, eis que desta vez a intervenção fora mais delicada de
A Construção do Drama Narrativo em Petições 103
vido à sua localização (foi realizada em seu ventre). Novamente foram-lhe receitados diversos medicamentos para recuperação, permanecendo mais alguns dias em repouso.
Da análise da massa retirada, chegou-se à conclusão de que se tratava de:“Segmento de ovário: 30x30x25mm. Superfície externa branco-acinzenta-
day lisa e brilhantey com uma área cruenta de 30x18mm. Ao corte é cístico contendo sangue coagulado e parede branco-amarelada com 2 a 8 mm de espessura. Na área mais espessa notam-se cistos de conteúdo líquido, límpido, esféricos, o maior com 5 m m de diâmetro. Diagnóstico macro e microscópico.
CISTO LUTEÍNICO HEMORRÁGICO DE OVÁRIO. ”Apesar das características da massa retirada serem totalmente diversas das
que haviam sido detectadas no exame ecográfico, após a realização de referidos exames e concluídos os diagnósticos, o réu tranqüilizou a autora, alegando que as dores não tardariam a passar e novamente receitou uma infinidade de medicamentosy aconselhando repouso à sua paciente, desatento ao fato de que tal cisto sequer possuía qualquer relação com as dores de sua paciente. Ademais, om itiu da mesma o fato de que a retirada de tal massa não necessitava de cirurgia, e somente da aplicação de um simples medicamento. Até no relatório que forneceu à paciente o médico assume que optou pela Laparostomia Exploradora (cirurgia) “ [...] como forma de tratam ento mais adequado [...]” assumindo que existiam outras formas de tratamento, até menos dolorosas e constrangedoras à autora, sem deixar cicatrizes, porém omitindo tais fatos desta. Não bastasse, o profissional chega ao absurdo de cogitar a possível retirada de um ovário ou até mesmo da trompa direita na cirurgia.
Porémy por ironia do destino e infelicidade da autora, as dores sequer dim inuíram e seu quadro clínico passou a complicar-se ainda mais após a segunda cirurgia, poisy após esta outra intervenção, além das dores em seu botão anal, iniciaram-se problemas em seu aparelho reprodutor, situações que jamais haviam ocorrido em toda a sua vida, como fortes dores no abdômen e descontrole do ciclo menstruai. Tudo isso chegou a causar desequilíbrio psico-emocional à paciente, a qual passou a tomar novos medicamentos para tentar amenizar a dor, sem qualquer sucesso.
Em 31.07.1998, 63 (sessenta e três) dias após a realização da segunda cirurgia e 115 (cento e quinze) dias após a primeira, sem qualquer resultado positivo e com a complicação de seu quadro clínico, a autora entendeu por bem procurar novo médico, eis que já havia perdido totalmente as esperanças do tratamento com o primeiro réu, mesmo porque havia seguido a risca todas as orientações daquele, sem qualquer melhora.
104 Direito e Argumentação - Parte 2
Procurou então o Dr. Fernando Hinz Greca, especialista em cirurgia do aparelho digestivo, pagando nova consulta no valor de R$ 70,00 (setenta reais), vide recibo anexo. Este, após avaliar o quadro da autora, encaminhou-a de imediato para realização de exames, marcando nova cirurgia para o dia 06.08.1998. Realizada a intervenção cirúrgica, a autora permaneceu no hospital por dois dias, quando então teve alta. Felizmente, no dia da alta, 08.08.1998, já não sentia mais dor.
Permaneceu com atestado para repouso por 15 dias, porém, já no segundo dia após a alta sentia-se recuperada. Retornou ao consultório do médico em 08.09.1998 totalmente recuperada e sem qualquer dor.
Da análise de todos os fatos acima percebe-se que a autora permaneceu do dia 27.03.1998 ao dia 08.09.1998 em tratamento devido ao total desleixo, negligência, imprudência e imperícia do primeiro réu, o qual, juntam ente com o segundo réu, deixou de prestar a atenção devida ao estado clínico da paciente, mantendo-a por mais de 06 (seis) meses, ou seja, 180 (cento e oitenta) dias com insuportável dor física, causando diversos constrangimentos e aflições, pois, se um dia de dor é desagradável, imagine, Excelência, 180 dias!! Não bastasse, receitaram inúmeros medicamentos, os quais não surtiram qualquer efeito, e, além do mais, devido à negligência deles, a autora fora submetida a 03 (três) intervenções cirúrgicas, quando somente uma, bem feita como foi a última, teria surtido resultado.
Além da dor física e mental, a autora se submeteu a diversos constrangimentos de ordem moral, senão vejamos que permaneceu por seis meses em tratamento clínico sendo obrigada a expor todas as suas partes íntimas por inúmeras vezes para exames, cirurgias, curativos, depilações púbicas, aplicação de medicamentos e análises diversas, eis que tais procedimentos se faziam necessários para acompanhar o seu quadro, e os mesmos eram sempre realizados por profissionais do sexo masculino, como pode ser perfeitamente verificado nos documentos anexos. Além disso, permaneceu tomando laxantes por diversos m eses, quando era obrigada a se deslocar ao banheiro em média 10/15 vezes ao dia. Em seu ambiente de trabalho não era diferente; se via obrigada a trabalhar o tempo todo em pé pois não podia sequer sentar, o mesmo ocorrendo quando se deslocava ao trabalho, eis que sempre teve que utilizar transporte coletivo de passageiros.
Ocorre que a autora trabalhava em uma empresa de cobrança e, devido ao seu incessante e incorreto tratamento médico, fo i obrigada a se afastar de referido labor, pois, do contrário, não mais poderia continuar com referido tratamento. Ademais, suas dores durante todo o período eram tamanhas que se
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quer poderia deslocar-se até seu trabalho ou até mesmo permanecer trabalhando, uma vez que não se sentia bem. Além disso, somente conseguia evacuar com a ajuda de laxantes, razão pela qual sentia-se constrangida em seu ambiente de trabalho, uma vez que permanecia indo ao banheiro inúmeras vezes ao dia.
Evidentes desta forma as lesões materiais, psicológicas, morais e físicas que atingiram a autora diante do equívoco dos réus, razão pela qual perfeitamente cabível a indenização pleiteada.
Organizamos a análise textual-discursiva pela relação que se estabelece entre o longo e o curto tempo das interações sócio-cognitivas. Conforme definimos anteriormente, o megascript é um esquema genérico, organizado por uma macro-narrativa de ordem cultural ou macro-histórica, cuja seqüência de ações prevê conservação de um dado pacto social. Esse esquema conceituai expressa modos de proceder ou de agir mais gerais que orientam as interações localizadas em um determinado campo do saber.
Postulamos o campo do Direito ter como suporte o pacto de civilidade, que orienta os contratos sócio-jurídicos. Tais contratos são representados por modelos de ação organizados em função das ramificações dos direitos público e privado. Desse modo, práticas contratuais entre membros da sociedade flexibilizam diferentes visões de m undo dos grupos.
Da perspectiva do tem po de curta duração, situações de comunicação constituem ocorrências sociais concretas manifestadas lingüisticamente por uso oral ou escrito da língua. O texto é lugar da materialidade lingüística das práticas sócio-discursivas, por isso deve ser concebido como ponto de partida, mas não necessariamente como ponto de chegada da análise discursiva.
Segundo Spink (8), o tem po de curta duração organiza-se por presente, passado próximo (tem po vivido) e futuro esperado. O presente é o tem po da enunciação propriam ente dita, pelo qual constitui a relação dialógi- ca entre o eu e o tu, participantes diretos da ação comunicativa. O passado próximo, ou tempo vivido, é resultante do processo de socialização do sujeito enunciador, pelo qual as vozes sociais ecoam na expressão de sua voz, constituindo ponto de vista individual. Finalmente, o futuro esperado é o tem po dos planos de ação discursiva, pelo qual se edifica sua finalidade na intencionalidade do sujeito enunciador e nos efeitos de sentidos construídos pelo leitor.
106 Direito e Argumentação - Parte 2
A organização macronarrativa da petição selecionada: a questão da dramaticidade
Na primeira etapa de análise, o objetivo é verificar o modo pelo qual o modelo de representação genérico e representativo do longo tempo das interações sócio-históricas aponta para o reconhecimento dos graus de dram aticidade das narrações, constituindo a narratividade, concebida, segundo Grei- mas & Courtés (4), como princípio de organização do texto narrativo. Para tanto, é preciso proceder ao investimento semântico das seqüências de proposições genéricas que estruturam o megascript do campo do Direito.
Proposição 1: X dever cumprir as normas jurídicas
Essa proposição estrutura-se pela modalidade do dever, que traduz força e poder das normas jurídicas sobre os cidadãos em geral. Segundo Todorov (10), a modalidade do dever designa uma ação ainda não ocorrida (= acontecível).
No texto em análise, por se tratar de consulta médica, as partes envolvidas, médico e paciente, assumem uma forma contratual da qual decorre o nexo causai: ação do médico-resultado no paciente. A cada uma das partes compete exercício e interpretação do papel correspondente à situação viven- ciada. Sabe-se que os papéis são consuetudinários, por isso apresentam propriedades mais ou menos fixas. Suas variações decorrem, pois, da interpretação dos atores.
Em uma consulta, o que interpreta o papel de médico tem o dever de executar as ações de diagnosticar o paciente e de oferecer-lhe tratam ento adequado, de modo a promover a cura de sua doença. Disso resulta o nexo causai ação do médico (diagnosticar e tratar adequadamente)-efeito da ação do médico no paciente (promover a cura). O papel de paciente, por sua vez, prevê cumprimento das orientações médicas indicadas para tratamento e cura de sua enfermidade. Se o paciente não acata as tais orientações, é desfeito o nexo causai referido.
A instituição hospital também participa do caso em questão: “A cirurgia foi realizada pelo primeiro réu utilizando a estrutura do segundo como se verifica na documentação anexa”.
Do viés das normas jurídicas, o princípio da responsabilidade civil orienta as ações do médico c da instituição hospitalar. No texto selecionado, o advogado aplica esse princípio pela incidência dos seguintes deveres (Figura 3):
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Figura 3
No que tange à paciente, se tiver acatado as orientações médicas, não lhe cabe nenhum outro dever jurídico, apenas o direito de indenização por erro médico.
Proposição 2:X cumprir as normas jurídicas
A segunda proposição designa o cum primento efetivo das normas para assegurar o acordo inter eives ou pacto de civilidade. No texto sob análise, o médico cumpre as ações previstas no contrato social firmado com a paciente, pois executa as ações manifestadas nos verbos diagnosticar e tratar. C ontudo, suas ações revelam-se inadequadas ao resultarem na piora substancial do quadro clínico da paciente, mesmo após reiteradas tentativas de acerto. Rompe-se, desse modo, o nexo causai diagnosticar e tratar-curar.
A paciente cumpre sua parte no contrato estabelecido, submetendo-se às orientações de seu médico. Entretanto, mediante ruptura do nexo causai, desfaz-se também sua submissão às ordens médicas. Logo, sua procura pelo segundo médico não configura, no plano jurídico, ruptura de contrato, mas conseqüência da ineficiência das ações do primeiro médico e do hospital no qual a paciente sofrerá intervenção cirúrgica.
Ressalta-se, ainda, a cura da paciente pela ação do segundo médico reforçar a tese de ocorrência de erro por parte dos primeiros. Já as provas documentais e periciais utilizadas posteriormente, na fase processual, legitimam a
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avaliação da existência do erro por imperícia, negligência e imprudência, caracterizando danos materiais e morais causados à paciente. Nesse sentido, instala-se a procedência do pedido de indenização fundado no pacto de civilidade e fundamentado no princípio da responsabilidade civil, explicitado na primeira proposição. O pacto de civilidade, nesse caso, rompe-se totalmente por ocorrência de dano à paciente.
Proposição 3: Y reclamar a possibilidade de descumprimento do contrato por X
A terceira proposição dá início à lide que caracteriza os processos cíveis de natureza contenciosa ou conflitiva. O primeiro passo é propor ação processual cível visando ao ressarcimento dos danos sofridos pela paciente, agora autora da ação, que se faz ouvir na voz da lei, representada pelo advogado por ela contratado.
A petição é o texto inaugural desse tipo de processo. Em termos lingüísticos, ela consiste em pedir algo a alguém. No texto em foco, o principal objetivo da macroação de pedir é “a condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos materiais e morais”. O pedido destina-se ao juiz, cuja função mais típica é julgar os fatos narrados pelos advogados das partes envolvidas e decidir a causa a favor ou contra os réus. Do ponto de vista da autora da ação (vítima), a narração dos fatos apresenta-se com alto grau de dra- maticidade, pois o ocorrido não transita na iminência do dano, mas em sua ocorrência efetiva. Se há dano, é necessário responsabilizar seus causadores, condenando-os.
Nesse sentido, na dimensão macronarrativa, a narração dos fatos pretende o retorno ao pacto de civilidade, mediante aplicação da sanção jurídica aos réus. Na dimensão micronarrativa dos contratos sociais, a narração dos fatos tem função argumentativa, evidenciada por seleção e ordenação dos fatos e por apresentação das provas periciais e documentais, cujo objetivo é convencer o juiz da procedência do pedido.
Proposição 4: Y cessa o litígio contra X
Mediante a apresentação dos fatos pelas partes, cabe ao juiz o poder de fundamentar sua decisão nas normas jurídicas para restabelecer o pacto social. A análise, aqui, não se estende ao âmbito da sentença judicial, embora essa instância responda pelo efetivo retorno à manutenção do pacto de civilidade.
A Construção do Drama Narrativo em Petições 109
A organização micronarrativa da petição selecionada: a função argumentativa
Na segunda e última etapa de análise, o objetivo é verificar o modo pelo qual os esquemas de representação específicos e representativos do curto tempo das interações sociais apontam para construção e reconhecimento da função argumentativa da narração.
O curto tempo das interações sócio-comunicativas organiza-se pelo:
1. Presente: tempo da enunciaçãoEU (aquele que fala): nesse tempo, o eu enunciativo, representado na fi
gura do advogado da autora, constitui o narrador observador dos fatos.POSIÇÁO: em relação aos fatos, assume a posição de narrador onisciente,
o que lhe confere maior flexibilidade em seleção e organização dos fatos. Em relação ao tu, tem posição inferior, visto que narra para lhe pedir algo.
PAPEL (função): advogado - o que advoga sobre causa alheia para obter ganho da ação.
TU (aquele com quem se fala): nesse tempo, o tu, representado na figura do juiz, constitui autoridade judicial máxima, lingüisticamente manifestada no texto pelo uso do pronome de tratamento Vossa Excelência.
POSIÇÃO: superior ao eu (advogado), pois é quem tem o poder de acatar ou não o teor do pedido a ele encaminhado.
PAPEL (função): julgar e deferir ou indeferir o pedido.
2. Passado próximo (tempo vivido): tempo de socialização do sujeito enun- ciador - vinculação do individual com o social pela atualização em língua do modelo de representação contrato médico versus paciente sob perspectiva jurídica
Inicialmente, o narrador (advogado) propõe o tipo de ação processual, “ação de indenização por danos morais e materiais”, fundamentado nos arts. 159, 1.545 e demais do Código Civil de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002), bem como no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. O enunciado destacado estrutura-se pela relação entre causa e conseqüência: danos morais e materiais (causa) versus penalidade de indenização (conseqüência). Os textos de lei referidos legitimam essa relação seqüencial, pois as leis, bem como sua aplicação, têm por objetivo manter e assegurar o pacto de civilidade ou acordo inter eives.
110 Direito e Argumentação - Parte 2
Na organização textual das petições, a designação do tipo de ação processual e das partes envolvidas preenche a categoria qualificação, formalizada por um único parágrafo, de natureza descritiva. A narração dos fatos propriamente dita tem início após a qualificação. Seleção e ordenação dos fatos a serem narrados pelo advogado orientam-se pela eleição do fato juridicamente relevante, sem o qual o narrador perde o viés jurídico. No texto em questão, constitui fato juridicamente relevante para proposição de ação indenizatória por danos morais e materiais erro médico por imprudência, negligência ou imperícia fundamentado no art. 1.545 do Código Civil de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002).
Na dimensão micronarrativa do texto, o narrador seleciona e ordena os demais fatos em função do fato juridicamente relevante, que precisa ser com provado. Dessa forma, os fatos selecionados funcionam como razões ou argumentos de comprovação do fato jurídico desencadeador da ação processual ou, simplesmente, a relação dano-pena.
A categoria textual que organiza a narração nas petições denomina-se “Dos Fatos ou Razões de Fato”. Na petição selecionada, o narrador, tendo por orientação o erro médico, seleciona os fatos e os ordena no eixo do tempo cronológico. O erro médico por imperícia, por exemplo, é um desvio do m odelo de representação scriptural consulta médica, gerando a complicação da narrativa, que, por sua vez, conduz ao dram a na dimensão megascriptural ou macronarrativa (etapa processual civil ou penal). Nesse sentido, a seleção dos fatos e sua ordenação devem apontar para a ruptura do script (erro médico = complicação) e, conseqüentemente, para a ruptura do pacto de civilidade.
Mediante tal orientação, o narrador dispõe os fatos em três tempos, organizados por marcadores temporais (Figuras 4 a 7):
Figura 4
A Construção do Drama Narrativo em Petições 111
T2 Tempo da formalização do contrato médico.
Diagnóstico 1 (em 27.03.1998) -» "botão hemorroidário sangrante"
Tratamento 1 -> "cirurgia reparadora de emergência" para curar o mal;"afastamento do trabalho por período de 15 (quinze) dias devido às fortes dores";"série de medicamentos com o fim de amenizar as fortes dores"
Execução do tratamento 1 -> 06.04.1998: realização da cirurgia nas dependências do segundo réu: Hospital e Maternidade Caritas.
Fase de recuperação 1 - » a) "depois de alguns dias": paciente "sentia fortes dores, principalmente quando evacuava"Avaliação do médico: "alegou serem normais tais sintomas''
b)"Em data de 18.05.1998, já passados 42 (quarenta e dois) dias da realização da cirurgia": paciente apresentava dores insuportá- veis;"somente conseguia fazer suas necessidades à base de laxantes e analgésicos, além de outros medicamentos que lhe vinham sendo receitados com freqüência"Avaliação do médico: "foram-lhe receitados uma infinidade de remédios (vide documentos anexos) e recomendado mais um período de 15 (quinze) dias para repouso"
c)"Em 29.05.1998"-» Paciente retorna ao consultório com as mesmas dores.
Avaliação do médico -» "entendeu por bem realizar novos exames laboratoriais, justificando que as dores poderiam ter decorrido de uma anormalidade do aparelho reprodutor da paciente"Exame solicitado e realizado: ecografia da pelve, realizada na própria clínica do réu.Resultado do exame: "alterações sugestivas de massa pélvica à direita""muitas vezes existem limitações no método utilizado, devendo haver complementação diagnóstica" [grifo do narrador].
Figura 5
Mediante a seleção dos fatos que caracteriza o primeiro diagnóstico e a apresentação das provas documentais, constata-se a primeira etapa do erro médico por imperícia, pois o tratamento não possibilitou cura ou recuperação da paciente. As avaliações do médico, apresentadas pelo narrador, funcionam como argumentos de reforço à sua imperícia. A Figura 6, ainda em T2, ilustra a ordenação da segunda fase do contrato médico:
112 Direito e Argumentação - Parte 2
Diagnóstico 2 -» "Com base no resultado deste exame, E SOMENTE DESTE, o primeiro réu"deu o seguinte diagnóstico:"as fortes dores resultavam,sem dúvida nenhuma, da existência de um cisto (massa pélvica mista)"
Tratamento 2 intervenção cirúrgica "para extração do'corpo estranho'"
Execução do tratamento 2 (em 08.06.1998) realização da cirurgia nas mesmas instalações do segundo réu (hospital).Avaliação do médico: (prova documental: relatório médico - "assume que optou pela Laparoscopia Exploradora (cirurgia)'como forma de tratamento mais adequado'assumindo que existiam outras formas de tratamento, até menos dolorosas e constrangedoras à autora, sem deixar cicatrizes"Avaliação explícita do narrador, mediante comparação do exame laboratorial e relatório pós-operatório: "características da massa retirada serem totalmente diversas das que haviam sido detectadas no exame ecográfico"- médico (réu) errou não só por imperícia, mas por negligência, pelo fato de não observar a ausência de relação entre exame laboratorial e pós-operatório. E, por imprudência, por omitir outras possíveis formas de tratamento. Fase de recuperação 2 -> período considerado em relação à realização da segunda cirurgia = 63 (sessenta e três dias) dias; período considerado em relação à realização da primeira cirurgia =115 (cento e quinze) dias:"as dores sequer diminuíram e seu quadro clínico passou a complicar-se ainda mais após a segunda cirurgia, pois, após esta outra intervenção, além das dores em seu botão anal, iniciaram-se problemas em seu aparelho reprodutor, situações que jamais haviam ocorrido em toda a sua vida, como fortes dores no abdômen e descontrole do ciclo menstruai." Em decorrência, o "[...] desequilíbrio emocional [...]"
T2 -> Tempo da formalização do contrato médico.
Figura 6
No texto, o narrador marca a efetiva ruptura do script pelo erro médico na seguinte passagem: “Porém, por ironia do destino e infelicidade da au to ra’ seu quadro clínico complicou, pois em vez de curar uma enfermidade (botão anal), acresce-lhe outra (aparelho reprodutor). Depois de reiteradas tentativas de resolução da gradativa complicação de seu problema, a paciente se vê desobrigada a acatar as orientações dos réus e procura resolução por formalização de novo contrato médico com outro profissional da mesma área.
No passado próximo, o narrador (advogado) vale-se dos conhecimentos não-jurídicos para interpretar, por um ponto de vista pessoal, a história vivi-
A Construção do Drama Narrativo em Petições 113
Figura 7
da pela autora da ação, de modo a passar para o tempo da história narrada. Constata-se, ainda no passado próximo, o narrador criar condições que lhe possibilitam executar a macroação de toda e qualquer petição: pedir algo ao juiz. Nesse sentido, com pondo as perspectivas temporais do curto tempo na dimensão da micronarrativa, há ainda o futuro esperado, que diz respeito ao plano de ação comunicativa do sujeito enunciador.
3. Futuro esperado: plano de ação comunicativa
O sujeito da enunciação, representado na figura do advogado, tem por intenção comunicativa comprovar o dano em juízo por imperícia, negligência e imprudência dos réus. Essa intenção aponta para o objetivo de convencer o juiz a acatar o pedido de condenação dos réus pela aplicação da pena de indenização por danos materiais e morais.
Considerações finais
A construção da dramaticidade narrativa, portanto, torna-se possível quando concebida na perspectiva dialógica do longo e do curto tempo dos sentidos. As duas dimensões temporais apontam para modelos de representação social que caracterizam campos de interação e grupos sociais. O megascript abarca a dimensão dos campos, por isso é altamente genérico; já o script abarca a dimensão social dos grupos: ser mais específico. Como ambos são
114 Direito e Argumentação - Parte 2
lingüisticamente manifestados por seqüências ordenadas de ações, postula-se poderem ser concebidos como macro e micronarrativas.
Nesse sentido, a análise do texto narrativo ganha novos contornos, definidos pelo eixo dialógico e interacional das duas perspectivas temporais. As narrações jurídicas, observadas por esse eixo, facultam às ações processuais o alcance das dimensões de contratos e pactos sociais. Com efeito, o campo do Direito edifica-se pelo acordo primordial entre cidadãos. Esse acordo generalizado tem amplo grau de projeção social, pois sua historicidade explica-se por matrizes socioculturais e éticas de convivência responsável entre os membros da sociedade. De tal prisma, o acordo funciona como pacto social em torno do qual os cidadãos, pertencentes a diversos grupos sociais, voltam- se uníssonos. Assim se define a natureza simbólica dos pactos.
Embora orientem os contratos e sejam por eles orientados, os pactos não se caracterizam como espaço de controvérsia, por isso não constituem lugar de argumentação, mas de histórias simbólicas e cristalizadas pelo longo tempo. Por outro lado, os pactos não são estáticos, embora demorem séculos para se modificar. Neles, não encontram lugar os argumentos propriamente ditos, mas a argumentatividade, como princípio constitutivo da linguagem, cuja materialidade lingüística se apresenta sob a forma de argumentos, presente no curto tempo das interações.
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A Construção do Drama Narrativo em Petições 115
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VDomínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória
Lílian Qhiuro Passarelli
Quando é preciso argumentar por escrito, por sermos fruto de uma escola cujas aulas de língua materna conferem primazia ao normativismo ditado por um ensino gramatical ortodoxo, à moda do que prescrevem as práticas calcadas na noção de certo e errado, não raro ficamos atormentados diante de atividades linguageiras que exijam leitura crítica ou produção textual. Em detrimento das aulas de linguagem (pressupondo, aqui, um rico conjunto de usos), esse ensino pautado por uma perspectiva prescritivista impõe a aprendizagem da língua como produto independente de suas condições de produção.
Com a imposição do normativismo, ensinam-se regras, atendendo a uma normativa cujo objetivo se atém à fixação de regras e convenções - a
regra pela regra de alguns temas referentes a acentuação, ortografia, alguns usos da pontuação, sintaxe de colocação (pronomes pessoais oblíquos), sintaxe de concordância. No m omento em que precisamos registrar e com unicar algo (até mesmo de maneira mais íntima ou informal), não vemos uma
clara entre a escrita para a escola e a escrita para a vida fora dos m uros escolares. Usos e funções da escrita variam histórica e culturalmente; variam, da mesma forma, em função dos contextos definidos por comunidades específicas (hoje, a comunidade dos usuários da internet é um exemplo disso). Quando o indivíduo não encontra a relevância do ensino da escrita em suas necessidades reais, fica contaminado por um desânimo exemplar.
Assim, em busca de alternativas para dar conta de ler e produzir textos argumentativos, é necessário considerar algumas especificidades em função da natureza desse tipo textual.
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 117
Tratar dos procedimentos argumentativos em determinado gênero textual - uma decisão interlocutória por meio de análise lingüística dos mecanismos de que o produtor se vale, no intuito de convencer e persuadir seu interlocutor acerca de uma tese, é a proposta deste capítulo. Para averiguar como se dá a criação de efeitos de sentido no m om ento da construção da linguagem em contextos sociais, algumas concepções precisam ser tomadas, pois elas nortearão este estudo.
• Linguagem: processo interacional entre sujeitos que usam a língua em suas variedades para se comunicar, exteriorizar pensamentos e informações e, sobretudo, realizar ações verbais com o outro, sobre o outro. É ter a linguagem como atividade constitutiva histórica e social, realizada por sujeitos que interatuam partindo de lugares sociais estabelecidos pela sociedade em questão, embora não descarte a liberdade de cada sujeito, pois cada um se constitui diferente do outro (cf. 27, p .61-2, a partir de 20 e 21). Daí Koch afirmar que
usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lu
gar onde a ação acontece, necessariamente em coordenação com os outros. Essas
ações [verbais] não são simples realizações autônomas de sujeitos livres e iguais. São ações que se desenrolam em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente. Os rituais, os gêneros e as formas verbais dispo
níveis não são em nada neutros quanto a este contexto social e histórico. (23, p.31)
• Língua: produto histórico de diferentes instâncias sociais, resultante do trabalho discursivo do passado, obtido em processos de interlocução que acontecem no interior das múltiplas e complexas instituições de determinada formação social. Por ser produto da história e condição de produção da história presente, a língua “vem marcada pelos seus usos e pelos espaços sociais destes usos” (21, p.27-8). Daí a língua nunca poder ser considerada produto acabado, pronto, fechado em si mesmo.
• Texto: objeto lingüístico observável por meio de sua organicidade, cujos princípios gerais de produção e funcionamento se dão em nível superior à frase. Bronckart (8, p.75) complementa ao afirmar que texto é “toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação)”. Tal panorama se constitui em uma perspectiva sociointerativa e histórica e considera que os textos apresentam traços distintivos formais, funcionais, comunicativos e interacio-
118 Direito e Argumentação - Parte 2
nais. Isso implica os textos se realizarem nos diversos gêneros textuais existentes; e, de acordo com as necessidades da situação de linguagem (interlocutores, lugar de produção, finalidade comunicativa), é preciso adequação do gênero a ser utilizado. Por sua relação com as atividades humanas, e por conta da diversidade dessas atividades, os gêneros são múltiplos e em número infinito, o que se deve também a seu caráter histórico.Discurso: linguagem em interação, isto é, linguagem relacionada a suas condições de produção, o que pressupõe considerar interlocutores, situação e contexto sócio-histórico. O discurso é a materialização de sentido do texto em funcionamento e, ainda que se dê na manifestação lingüística, diz respeito mais ao resultado de um ato de enunciação do que uma configuração morfológica de encadeamentos de elementos lingüísticos. Daí Fiorin (19) considerar ser no discurso que se manifestam plenamente as coerções ideológicas incidentes sobre a linguagem.Domínios discursivos: instâncias discursivas de uma cultura, mais propriamente de uma esfera de atividade humana, nas palavras de Bakhtin (3), que abrangem uma série de discursos específicos. Como Marcuschi (25) adverte, não se trata de um princípio de classificação de textos, pois indica instâncias discursivas, tais como discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, discurso militar e discurso acadêmico. Um domínio discursivo não abarca um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas nas quais se pode identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhe são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instau- radoras de relações de poder. No âmbito do discurso jurídico, por exemplo, podem ser identificados gêneros textuais como petição, contestação, m andado de segurança, sentença, decisão interlocutória, libelo.Gênero textual1: realização lingüística concreta definida por propriedades sociocomunicativas. Trata-se do texto empiricamente realizado que cumpre funções em situações comunicativas. Um texto se organiza em determinado gênero em função das intenções comunicativas, por isso se diz que um dado
1 C o m o a noção dc gênero tem sido bastante discutida c não há consenso em relação a questões term inológicas, para não m encionar as epistemológicas, usa-se, aqui, o te rm o gênero textual em lugar de gênero discursivo ou gênero do discurso. O bserve-se essa m esm a advertência em relação a tipo textual, com o s in ô n im o dc tipo de discurso ou tipo discursivo. Sc gcneros são form as textuais, parece mais razoável o p ta r po r tal term inologia. Em função da com plexidade da noção de gênero, m uitos autores usam som ente o te rm o gênero em seus textos científicos, e, ao que parece, não faz m uita falta o acréscim o da adjetivação.
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 119
gênero se funda em critérios externos: sociocomunicativos e discursivos. São textos orais ou escritos materializados em situações comunicativas recorrentes com os quais temos acesso em nossa vida cotidiana. Por estar ligado à vida em sociedade, todo gênero de texto é produzido para determinada sociedade e dentro dela. Bilhete, lista de supermercado, poema, e-mail, receita médica, petição inicial, telegrama, recibo, bula de remédio, notícia jornalística, nota fiscal, mensagem eletrônica, decisão interlocutória, aula expositiva, bate-papo pela rede virtual, conto e por aí afora são gêneros textuais com objetivos preestabelecidos. Assim, gêneros são formas textuais escritas ou orais relativamente estáveis, histórica e socialmente situadas. Forma, aqui, diz respeito aos aspectos físicos e lingüísticos, mais propriamente aos elementos estruturais observáveis e que, em conjunto, possibilitam caracterizar um gênero e distingui-lo em meio a outros (33).
• Tipo textual: noção referente mais a modalidades discursivas ou seqüências textuais do que a um texto em sua materialidade (25). O tipo textual funda-se em critérios internos lingüísticos e se define pela natureza lingüística de sua composição - modalidade, aspectos sintáticos e lexicais, tempos verbais, relações lógicas, estilo, organização do conteúdo. Os tipos textuais envolvem algumas categorias conhecidas, que, em geral, são: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção (há autores que acrescentam a categoria dialogai ou conversacional). Com predominância de uma característica tipológica em um texto concreto, diz-se esse texto ser argumentativo, narrativo, expositivo, descritivo ou injuntivo (ou dialogai). Os tipos textuais constituem modos discursivos organizados no formato de seqüências estruturais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual. Tipo e gênero não formam uma dicotomia, mas se complementam na produção textual. Como um gênero pode envolver vários tipos (embora um sempre predomine), essa peculiaridade é designada por hete- rogeneidade tipológica. Uma fábula, por exemplo, é um gênero em cujo nível textual predominam seqüências narrativas, mas há, também, a presença de seqüências descritivas (cenário, características das personagens) e do caráter argumentativo instaurado pela sentença moral.
Para aplicar em parte o aparato teórico até então estudado, há a possibilidade de análise lingüística que contempla a questão da tipologia textual, partindo da operacionalização de ordem didática proposta anteriormente (cf. 27, p.63-4) e sistematizada na Tabela 1. A coluna da direita oferece especificações teóricas para, na coluna da esquerda, serem aplicadas em relação à peça jurídica em tela.
120 Direito e Argumentação - Parte 2
Tabela 1 Sistematização dos elementos constitutivos de práticas de linguagem consubstanciadas em textos verbais
Gênero textual: decisão interlocutória.
Dom ínio discursivo: jurídico.
Modalidade de realização: escrita.
Forma textual materializada em situação comunicativa, cuja modalidade de realização pode ser oral ou escrita.
Funda-se em critérios externos: sociocomunicativos e discursivos.Um texto se organiza dentro de determ inado gênero em
função das intenções comunicativas.
Suporte (de onde, materialmente, o texto foi
retirado): folhas de papel ofício.
Suporte ou ambiente no qual o texto aparece; meio mate
rial da mensagem e redes técnicas e humanas que lhe perm item circular.Dimensão mediológica:os modos de existência material e de difusão de um texto intervém em sua constituição. Nâo se separa o que é dito das condições institucionais do dizer.
Marcuschi (25) considera suporte de um gênero uma superfície física ou virtual que, em formato específico, suporta, fixa e mostra um texto.
Veicu lação ou tipo de situação com unicativa em que o gênero se situa: pública.
O texto veicula em uma situação pública, privada, corri
queira, solene ou íntima?
Função social ou propósitos: função utilitária - argumentar, formar opinião.
Os propósitos comunicativos podem se desdobrar em:• função estética: entreter, elogiar, sensibilizar, provocar
prazer (hedonismo?) etc.;• função utilitária: informar, formar opinião, explicar,
argumentar, documentar, orientar, divulgar, instruir etc.
Natureza da inform ação ou conteúdo: causas
da queda do avião de marca Fokker 100, da TAM, que provocou a morte de 99 pessoas.
Assunto ou informação transmitida (o que é ou pode tor
nar-se dizível por meio do gênero).
T ipos textuais em predom inância: argumentativo.
Observam-se, ainda, seqüências descritivas e
narrativas.
Fundam-se em critérios internos: lingüísticos e formais.
Podem-se agrupar os gêneros em relação à predom inância dos tipos narrativo, descritivo, injuntivo, expositivo, argumentativo, conversacional.
Relação entre partic ipantes da situação comunicativa: presumivelmente conhecidos, por
se saber de antemão se tratar de operadores das altas instâncias do Direito.
Situação de ausência e presença de contato imediato entre remetente e destinatário: conhecidos, desconhecidos,
nível social, formação.
N ível de linguagem predom inante: formal. Formal, semiformal, informal, dialetal.
Retomando o objetivo maior deste estudo - analisar os diferentes modos pelos quais se manifestam procedimentos argumentativos para uma linguagem mais influente (ou deliberada) cabe ainda a pergunta sobre o que é argumentar e se argumentar é manipular. Argumentar é agir com honestidade, o que confere uma característica importante a um processo argumentativo - a credibilidade. Por isso, argumentação não pode ser manipulação. Para Abreu (1), argumentar é a arte de, gerenciando a informação, convencer o outro de algo no plano das idéias e de, gerenciando a relação, persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que desejamos.
Na verdade, o autor defende a idéia de argumentar ser, antes de tudo, convencer, vencer junto com o outro, utilizando, com ética, técnicas argumen-
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 121
tativas para remover obstáculos que impedem o consenso. É motivar o outro a fazer o que queremos, mas com autonomia, de modo que ele perceba suas ações serem fruto de sua própria escolha. Em síntese, argumentar é saber dosar o trabalho com idéias e emoções, despendendo mais esforços em persuadir do que em convencer.
Para dar conta do relacionado aos campos do convencer e do persuadir, pois a persuasão se apresenta estreitamente ligada ao ato de convencer, observando a Tabela 2 (cf. 32, p. 139), tem-se a inter-relação de tais aspectos.
Tabela 2 Discurso convincente e discurso persuasivo
Persuasivo -» Recorre a: emoções, interesses pessoais, desejos e motivações irracionais, subjetividade, adesões, casos, piadas.
evidências, dados objetivos,
raciocínio lógico, provas, comprovações. iBaseia-se na:argumentação ----------------->
Tento:esclarecer, informar, recordar, modificar
condutas, elim inar uma opinião, crença ou teoria, influir.
Aproveita:estatísticas, cifras, demonstrações, pesquisas,
testemunhas e testemunhos, exemplos, fatos.
-> Baseia-se na: propaganda
Aproveita:orgulho, medo, ódio, simpatia, inveja, patrimônio, vaidade,
rivalidade, preconceitos.
Argumento é uma manifestação lingüística que inclui uma asserção capaz de levar a uma conclusão. Nos âmbitos formais, a formulação do argumento tem de se resguardar de dois tipos de erros: os de norm a culta e os de argumentação lógica. Para Coste (13, p. 15), toda atividade comunicativa envolve, além de outros componentes relativos ao dom ínio da língua, do conhecimento de m undo e do conhecimento enciclopédico, um componente de capacidade textual definido como “saberes e habilidades relativos aos discursos e às mensagens enquanto seqüências organizadas de enunciados”, no qual se observam elementos retóricos e argumentativos dos vários textos.
No entanto, considerando a complexidade do processo comunicativo, pela nítida diferença entre a comunicação recebida e a assumida, comunicar é agir sobre o outro; e isso é bem mais do que levar o interlocutor a receber c compreender mensagens. É, pois, conduzi-lo a aceitar o transmitido, a crer no dito, a fazer o proposto que ele faça. Assim, comunicar implica obter ade-
122 Direito e Argumentação - Parte 2
são: conseguir que um indivíduo ou um auditório adote determinado comportam ento ou partilhe determinada opinião.
Nas diferentes instâncias comunicativas do dia-a-dia, são inúmeras as situações nas quais se propõe obtenção da adesão (31). No campo da argumentação, as relações entre locutores e interlocutores podem ser de poder, influência etc. Em busca de adesão, um alguém, orador, está diante de um auditório, universal ou particular, expondo algo, manifestação discursiva (todo e qualquer discurso), visando à adesão do ouvinte.
As duas características básicas da argumentação são eficácia e caráter utilitário. A eficácia do discurso é atingida quando suscita a adesão ao apresentado como tese.
Quando alguém usa a linguagem para defender uma idéia, está fazendo uma argumentação que pode ser fraca ou forte para essa defesa. Por meio de um a maneira de dizer, do imaginário de um vivido, são passadas as idéias contidas no discurso do texto. O grau de força de um argumento depende de vários fatores, entre os quais se destacam sua formulação e o contexto em que é utilizado.
Para levar à convicção e persuasão, há vários recursos, como, por exemplo, escolha de termos para expressar o pensamento que raramente deixa de ter alcance argumentativo. Também o procedimento da singularização pode ser visto como um eficaz procedimento argumentativo.
Procedimentos argumentativos
No processamento textual, há uma série de expedientes argumentativos2 usados pelo produtor do texto para criar efeitos de sentido, no intuito de convencer e persuadir o interlocutor. O enunciador vale-se de procedimentos argumentativos, em um jogo discursivo intencional cujo propósito é convencer e persuadir o ouvinte ou leitor a aceitar a validade do sentido produzido pela argumentação. Eis alguns procedimentos argumentativos:
• Linguagem metafórica: desde que deixe de ser concebida como mero ornamento, compõe um conjunto de estratégias capazes de contribuir para a produção dos efeitos persuasivos. O uso, por exemplo, de eufemismos como recurso para suavizar a carga conotativa de outra expressão menos agradável, mais grosseira, ou acepções tabus.
2 Esse rol de p rocedim entos argum entativos baseou-se especialm ente em Citelli (11), Perelman (28 e 29) e Perelman & Olbrechts-Tyteca (31).
• Diferentes tipos de argumentos: argumento de autoridade, destacado por invocar o peso da opinião de uma autoridade universalmente reconhecida; argumento de justiça, baseado no tratamento conferido a seres e situações de uma mesma categoria; argumento pragmático, fundamentado na relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de um vínculo causai, como a transferência de valor de uma conseqüência para sua causa; argumento do desperdício, implicando a idéia de, se o trabalho já foi iniciado, ser preciso ir até o fim para não perder tempo e investimento; argumento pelo exemplo ou modelo, incluindo a sugestão de imitar as ações de outros; argumento pelo antimodelo, variação da argumentação pelo exemplo, trazendo o que se deve evitar; argumento pela analogia, utilizando como tese de adesão inicial um fato com uma relação analógica à tese principal (exemplo de 1, p.63-4: tese [principal] defendida pelo médico baiano em seu livro Menstruação, a sangria inútil: as mulheres devem inibir a ovulação para evitar a menstruação com medicamento. Questionado quanto a contrariar algo natural, Elsimar Coutinho alega que nem tudo que é natural é bom, como os terremotos, a cocaína etc.); argumento baseado em provas concretas, declarações apoiadas em fatos concretos ou em dados que devem apresentar-se com pertinência, suficiência, adequação e fidedignidade, com muita atenção para não incorrer em apresentação insuficiente ou generalizações impróprias.
• Escolha lexical: escolha de palavras, locuções e formas verbais. Costuma significar cruzamento dos planos estilísticos e ideológicos, configurando um jogo retórico para qualificar ou desqualificar. Destaque para o eufemismo, que, ao trocar nomes, tenta suavizar expressões.
• Intertextualidade: implica conhecimento sobre outros textos; a dependência de outros textos já produzidos. A noção de intertextualidade - um diálogo entre textos, presente em um texto - é fator importante de coerência, pois, para o processamento cognitivo (produção e recepção) de um texto, recorre-se ao conhecimento de outros textos. O conceito do fenômeno da intertextualidade é estudado partindo da concepção de polifonia textual (coro de vozes) formulada por Bakhtin (4, p.24): “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”. Usar citações literais, por exemplo, revela conhecimento sobre algum assunto, ou para atestar o dizer do locutor pela citação do discurso de outrem, o que vai ao encontro do que o argumento de autoridade implica.
• Coesão: é a ligação entre os elementos superficiais do texto, o modo como se relacionam, o modo como frases ou partes delas se combinam para assegurar um desenvolvimento proposicional. O conceito de coesão textual
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 123
124 Direito e Argumentação - Parte 2
diz respeito a todos os processos de seqüencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação lingüística significativa entre elementos na superfície textual. A coesão contribui, no sentido linear, estrutural, do texto, para obtenção da coerência. Contudo, é esta última que promove a interação autor-leitor mediada pelo texto. Leffa (24) indica a coesão de um texto poder ser estabelecida de quatro maneiras diferentes:- pela organização lexical
repetição - um mesmo item lexical é repetido;sinonímia - na relação sinonímica, o significado está no dicionário; o sentido é construído no texto.
- pela referênciaanáfora - referência a um conteúdo verbal já mencionado; na anáfora endofórica, uma palavra do texto não remete ao m undo real ou possível, mas a outra palavra do texto;catáfora - referência a um conteúdo verbal que ainda será mencionado.
- pela elipse (ou apagamento de um termo da frase)um item omitido para não ser repetido, mas recuperável pelo contexto.
- pelos conectoresuso argumentativo de elementos conectores para estabelecimento ou manutenção da coesão textual por seqüenciação feita por encadeamen- to de segmentos textuais. São usados conjunções, locuções conjuntivas, preposições, locuções prepositivas (causa, finalidade, conclusão, contradição, condição, adição, conseqüência, comparação, oposição, concessão, proporção, tempo) e operadores argumentativos3. Sendo responsáveis pela sinalização da argumentação, os elementos conectores, além de encadear os segmentos textuais,
3 Os elementos que funcionam com o operadores argumentativos têm papel transfrástico e atendem a fatores de função textual por orientarem a seqüência do texto. São elementos lingüísticos que atuam com o instruções dc natureza gramatical c determ inam os encadeam entos possíveis n o texto para sua progressão semântica. Afetividade: felizmente, queira Deus, pudera, oxalá, ainda bem (que). Afirmação: com certeza, indubitavelmente, p o r certo, certamente, dc fato. Conclusão: em sum a, em síntese, em resumo, afinal. Conseqüência: assim, conseqüentemente, com efeito, então, e (então, assim). Continuidade: além de, ainda por cima, bem com o, tam bém . Designação: eis. Dúvida: talvez, provavelmente, quiçá. Ênfase: ate, ate mesmo, no m ínim o, n o máximo, só. Exclusão: apenas, exceto, m enos, salvo, só, somente, senão. Expletivo: lá, só, ora, que. Explicação: a saber, isto é, po r exemplo. Inclusão: inclusive, tam bém , m esm o, até. Oposição: pelo contrário, ao contrário de. Prioridade: em prim eiro lugar, prim eiram ente, antes de tudo, acima de tudo, inicialmente. Situação: mas, então, pois. Realce: é que. Restrição: apenas, só, somente, unicamente. Retificação: aliás, ou an tes, melhor, isto é, o u seja. Tempo: antes, depois, então, já, posteriorm ente (cf. 6 e 44).
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 125
relacionam enunciados entre si e/ou com o próprio evento da enunciação, isto
é, assinalam os processos de seqüencialização, por meio dos quais se exprimem os diversos tipos de interdependência semântica e/ou pragmática entre os enunciados componentes de uma superfície textual. (22, p.85)
Coerência: diz respeito à configuração de conceitos e relações na estrutura profunda do texto. A coerência está diretamente ligada à possibilidade de estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela faz com que o texto tenha sentido para os usuários, devendo ser vista como um princípio de in- terpretabilidade do texto. Em decorrência da análise da coerência, é fundamental o conhecimento prévio de cada leitor como agente influenciador no processo de compreensão do texto. A coerência pode ser, também, ligada à inteligibilidade do texto em um a situação de comunicação e à capacidade que o receptor do texto tem ao interpretá-lo para compreendê-lo, para calcular seu sentido. Trata-se, pois, da possibilidade de estabelecer, no texto, alguma forma de unidade ou relação. Essa unidade é sempre apresentada como unidade de sentido no texto, caracterizando a coerência como global, isto é, referente ao texto como um todo.Alusão: faz rápida menção a alguém ou algo de modo vago ou indireto. Por esse processo, o leitor ou ouvinte absorve, por meio de pequenos índices, valores, idéias ou conceitos. Pode-se usar esse recurso para avaliar indiretamente um fato ou uma pessoa, pela citação de algo que o lembre. Expressões de valor fixo: fórmulas lingüísticas (termos, expressões, ditos populares, provérbios), geralmente de origem popular, que sintetizam um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral.Ironia: blague, paródia, piada, chiste. Recursos irônicos constituem argumentos, pela via do hum or corrosivo, quando desvalorizam ou ridicularizam uma idéia, um valor, uma assertiva presente no dizer de alguém. A blague, pelo riso e pela brincadeira, desqualifica algo ou alguém por afirmações inusitadas das qualidades positivas da contraparte. A paródia é obra literária, teatral ou musical imitando outra obra ou procedimentos de uma corrente artística com objetivo jocoso ou satírico. A piada é um texto humorístico curto de final surpreendente, às vezes picante ou obscena, contada para provocar risos. O chiste é um dito espirituoso, geralmente de hum or fino e adequado gracejo (pilhéria).Instâncias gramaticais: recursos explicativos com uso de interpolações conferindo sentidos novos aos enunciados (destacar informação, ainda que aparente ser mero acessório, explorar efeito irônico ou demonstrar conhe-
126 Direito e Argumentação - Parte 2
cimento de algo). Trata-se de esquemas explicativos em geral incluindo desde uso de apostos até mecanismos adverbiais. O uso de segundo se afirma - esquema explicativo-conformativo - revela a informação veiculada não ser de responsabilidade do redator. Lança-se mão desses recursos para dar mais força de verdade aos enunciados. Como os esquemas coesivos, as instâncias gramaticais também implicam uso argumentativo da gramática.
Como os gêneros textuais são fatos sociais que emergem na atividade de compreensão intersubjetiva em situações típicas nas quais é preciso gerenciar atividades e compartilhar significados rum o a propósitos de ordem prática (5), tomemos uma prática comunicativa autêntica do domínio discursivo da jurisprudência, a fim de analisar como o produtor busca “fazer com que os destinatários respondam segundo uma certa organização persuasiva da linguagem” (11, p.7), ou seja, como, pelos procedimentos argumentativos, o operador do direito pretende provocar uma reação no interlocutor.
Uma decisão interlocutória é uma decisão de cunho interlocutório que, ao contrário de uma sentença, não tem o condão de colocar fim ao processo, ou seja, como decisão interlocutória proferida cm inquérito policial, tem por objetivo precípuo a apuração de crime de ação penal pública. Como parte integrante de um inquérito policial, segundo Bozolo (7), a finalidade de um inquérito policial é servir de base para instauração da ação penal pública a ser promovida pelo órgão do Ministério Público. Bozolo recupera as palavras de Augusto Mondin para caracterizar mais:
É o registro legal, formal e cronologicamente escrito, elaborado por autorida
de legitimamente constituída, mediante o qual esta autentica as suas investiga
ções e diligências na apuração das infrações penais, das suas circunstâncias e dos seus autores, (ibid., p.l)
O trabalho a seguir se propõe analisar os recursos expressivos argumentativos da linguagem verbal, partindo da relação texto-contexto, de modo a examinar como operam a serviço da intencionalidade. Esse fator de textualidade refere-se ao direcionamento ideológico e intencional do produtor do texto, ao preenchimento de suas expectativas, enfim, ao modo como ele constrói textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo, para tanto, textos adequados à obtenção dos efeitos desejados. A intenção do autor é uma constitutiva essencial e inseparável à criação de seu texto; mas, como ensina Eco (18, p.86), não se deve confundir: a intenção do texto é do próprio texto-produto já aca
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 127
bado, que se torna autônomo e, de certa forma, pode ser visto dissociado do autor. No momento da leitura, a intenção do texto normalmente prevalece para o leitor, o que é verificável nas interpretações feitas pelos leitores.
A peça jurídica eleita como corpus, uma decisão interlocutória, é oriunda de uma prática comunicativa autêntica'1, como pode ser atestado por parte da notícia jornalística publicada em 22 de setembro de 20005:
O juiz da Ia Vara Criminal do Fórum do Jabaquara, Ricardo Graccho, não concordou com o pedido de arquivamento do inquérito policial da queda do
Fokker 100 da TAM. O arquivamento foi requerido pelo promotor de Justiça Mário Sarrubbo, que reconheceu que o acidente foi causado pela abertura, em pleno vôo, do reverso (freio), mas que inexistem provas quanto às responsabi
lidades criminais.
Ao vivenciar situações didáticas de análise lingüística (atividades epilin- güísticas e metalingüísticas), o indivíduo tem mais condições de refletir sobre as intenções do produtor, observar usos mais característicos dos expedientes argumentativos nesse gênero de texto e efeitos de sentido provocados pelas escolhas lexicais e estilísticas e sobre o papel social do redator do texto, por exemplo. As atividades epilingüísticas procedem de uma reflexão voltada para o uso, no próprio interior da atividade lingüística na qual se realiza (20). Por serem praticadas nos processos interacionais, tais atividades dizem respeito à reflexão sobre a língua em situações de uso, possibilitando aprim orar o controle sobre nossa própria produção lingüística. Assim, a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor do texto - quer esses recursos se refiram a aspectos gramaticais, quer a aspectos envolvidos na estruturação dos discursos - não prioriza a categorização. Isso implica as atividades epilingüísticas poderem transformar-se em processos extraordinariamente produtivos na conscientização lingüística do estudante e na formação de sua com petência comunicativa, para que ele se torne também criador e não apenas reprodutor do conhecimento.
4 Por causa do lim ite do n ú m ero de páginas a que este capítu lo se subm ete, a fo rm atação original sofreu alterações, especialm ente e m relação a recuo de parágrafo da p rim eira linha e espaços e n tre parágrafos.
5 M atéria in titu lada “Famílias do caso tam recusam RS 40 m ilhões”, assinada p o r A ndréa Portella. In: O Estado de S. Paulo, wvvvv.estado.estadao.com.br/editorias/2000/09/22/cid992.html; acessado em 02.03.2005.
128 Direito e Argumentação - Parte 2
As atividades metalingüísticas estão relacionadas a um tipo de análise voltada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos elementos lingüísticos, com a classificação ou o levantamento de regularidades sobre essas questões6. A metalinguagem não precisa ser sempre relegada; ao contrário, é necessário falar sobre a língua, pois, em situações didáticas, a atividade metalingüística pode desenvolver-se de modo a propiciar a sistematização e a classificação das características específicas da língua. É preciso ressaltar, no entanto, a abordagem da língua em seu contexto sociocomunicativo pressupor um âmbito que extrapola o campo da análise lingüística, pois aqui se necessita de um saber mais amplo - um saber sobre o mundo.
Para operacionalizar a análise lingüística, que não se pretende exaustiva, a Tabela 3 apresenta, na coluna esquerda, o texto original e, na coluna direita, os comentários analíticos paralelamente a cada parágrafo.
Inquérito Po lic ia l n. 382/96 1a Vara Crim inal
Vistos.
Trata-se de inquérito instaurado
pela autoridade Policial, visando
apurar as causas do lamentável acidente aéreo ocorrido em 31 de outubro de 1996, ocasião em que
foram abruptamente ceifadas as vidas de noventa e nove seres humanos.
O texto tem início com dois fatores contextualizadores (número do inquérito e vara), seguidos do termo vistos, que, na linguagem do foro, implica o operador do direito já ter exam inado toda a documentação submetida para apreciação.O ponto de partida para a argumentação, como esclarece Perelman (28, p.243), leva necessariamente o autor a fazer uma escolha que d iz respeito
"tanto aos fatos e aos valores mencionados, com o à sua descrição numa certa linguagem e com uma insistência que varia segundo a importância
que se lhe atribui'.'As seleções feitas serão o indicativo de manifestações de uma parcialidade se a elas poderem ser opostas outras escolhas.
Para introduzir o assunto7, o autor anuncia o objetivo de tal inquérito po licial. As escolhas lexicais com pondo esse enunciado revelam mais do que mera apresentação do fato (morreram 99 pessoas em acidente de avião que caiu), pois não se isentam de ju ízo de valor:• lamentável acidente: o adjetivo remete à idéia de o ju iz considerar o
acidente d igno de ser lamentado por seu caráter trágico e doloroso;
continua
6 “Entre o saber m etalingüístico e o saber epilingüístico, há o que os filósofos da linguagem cham am consciência lingüística e os diferentes procedim entos que perm item manifestá-la” (2, p. 84).
7 A inda q ue não seja escopo deste estudo , p ode-se observar nesta peça ju ríd ica os e lem entos estru tu ra is do texto a rgum en ta tivo , fixados p o r Aristóteles em q u a tro instâncias seqüenciais e in tegradas: I a) exórdio : in tro d u z a idéia central, indica o p o n to de vista a ser defendido , con- tex tua lizando o assun to , cu jo p ro p ó s ito é p ren d er a a tenção do in te rlo cu to r; 2a) narração: d e senvolvim ento dos fatos na m ed ida certa, co m p reen d en d o a a rg u m en tação p ro p riam en te dita; 3a) provas: e lem entos co m p ro b a tó rio s que susten tam a a rgum en tação , c o m p o n d o a instância p a r ticu la rm en te significativa do d iscurso ju ríd ico ; 4a) peroração: conclusão, epílogo, instância que fecha a a rg u m en tação e, p o r ta n to , a ú ltim a o p o r tu n id a d e para convencer e persuadir, c o m p o n d o -se de q u a tro partes: d isp o r o recep to r mal em relação ao adversário, am plificar ou a ten u a r o que foi dito , excitar as paixões do recep to r e p roceder a u m a recap itu lação (cf. 10).
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 129
continuação
• abruptamente ceifadas as vidas: uso do advérbio para intensificar o
sentido da rapidez das mortes;• ceifadas as vidas: ceifar é matar com foice. O uso no sentido figurado
(hiperbólico) instaura conotação de violência e enaltece a crueldade do fato;
• noventa e nove seres humanos: aqui o efeito retórico é mais contundente
do que uma escolha mais referencial, com o pessoas ou indivíduos em vez
de seres humanos.O somatório desses recursos lingüísticos induz o destinatário a considerar o
fato com indignação, além de orientar o leitor para a tese a ser defendida.
Eram por volta das oito horas e trinta
minutos, quando a aeronave da marca Fokker 100, prefixo PT-WRK,
de propriedade da empresa TAM -
Transportes Aéreos Regionais S/A, logo depois de decolar partindo da cabeceira 17 de pista do Aeroporto
de Congonhas, veio a projetar-se contra o solo, atingindo e destruindo várias edificações.
As escolhas que seguem conferem uma carga semântica que, de início, parecem objetivas e imparciais, mas, na verdade, manifestam um caráter tendencioso, se comparadas a outras possibilidades correlatas.
• veio a projetar-se contra o solo: por que não simplesmente caiu? Para dar
maior força argumentativa pelo esmero retórico;* atinçindo e destruindo várias edificações: a repetição do gerúndio
intensifica o estardalhaço e confere gradação dos fatos para expressar
a circunstância.
Inúmeras testemunhas foram ouv i
das e abundante prova documental restou reunida, inclusive o relatório final do M inistério da Aeronáutica, subscrito pelo Coronel Aviador Douglas Ferreira Machado, Chefe do CENIPA/SIPA-ER - Sistema de
Investigação e Prevenção de Acidentes Aéreos - e aprovado pelo Tenente Brigadeiro do Ar
Ronald Eduardo Jaeckel, Chefe do EMAer - Estado Maior da
Aeronáutica (apenso n. 13).
Para não deixar dúvidas quanto ao fato, o ju iz se vale de testemunhos de
pessoas devidamente documentados, configurando-se, portanto, argumento baseado em prova concreta, e do relatório redigido por coronel do M inistério da Aeronáutica e aprovado pelo chefe do EMAer, duas autoridades cuja área tem relação direta com o caso. Recorrer ao argumento de autoridade é uma forma de tornar as autoridades citadas fiadoras da veracida
de do que está relatado.Para somar o testemunho das autoridades ao das testemunhas, foi empregado o operador argumentativo de inclusão inclusive.
O M inistério Público, por seu repre
sentante especialmente designado para acompanhar o presente procedimento investigatório, requereu o
arquivamento do feito, por não vislumbrar indícios suficientes de infração penal a ser acossada, conforme se extrai do bem lançado parecer de fls. 1.602/27.
Uso de interpolações com o recursos explicativos para conferir sentidos no
vos aos enunciados e dar mais força de verdade aos enunciados:• a seqüência por seu representante especialmente desionado para acompa
nhar o presente procedimento investioatório exerce função explicativa so
bre representante do M inistério Público;• a seqüência por não vislumbrar indícios suficientes de infração penal a ser
acossada exerce função explicativa sobre a causa do arquivamento.O uso de elemento coesivo, a conjunção conforme, revela a informação veiculada não ser de responsabilidade do redator e serve para dar mais força
de verdade ao enunciado anterior, ao mesmo tempo que o liga à fonte fidedigna da qual foi retirado o parecer.Escolhas lexicais:
• vislumbrar indícios suficientes: o emprego desse verbo, em sentido figurado, significa perceber ou compreender indistintamente, confere conotação irônica e hiperbólica indicativa de quão impossível foi encontrar indícios suficientes;
• infração penal a ser acossada: a escolha de acossada em lugar de perseouida, por exemplo, pode ser indicativo do efeito retórico abarcado
pela palavra, por ser uma palavra que revela mais erudição;• bem lançado parecer: advérbio com a função de manifestar a circunstân
cia de intensidade que cerca a significação do adjetivo, realçando, por
conta do significado do termo juríd ico lançado (que passou do prazo; expirado), o parecer já ter sido devidamente dado.
continua
130 Direito e Argumentação - Parte 2
Escolhas lexicais:• consione-se: termo juríd ico que significa depositar em juízo, nas mãos de
um terceiro;• ainda: elemento coesivo cuja carga semântica é de inclusão, liga a
idéia do parágrafo anterior {prova documental) à idéia deste parágrafo (outra prova documental, a respeitável sentença) para conferir mais sustentabilidade ao rol de provas concretas do relatório;
• respeitável sentença: adjetivaçáo indicativa de ju ízo de valor meritório.
É o breve relatório. Outro aspecto a ser evidenciado no texto é a pontuação como fatorimportante para estabelecimento das relações coesivas por conta da progressão temática vinculada à constituição dos parágrafos. Pelas escolhas do autor, fica evidente que, no funcionamento do texto, a pontuação atua na construção do sentido. O estilo enxuto da paragrafação em circunstâncias com o esta, a seguinte e outras ao longo do texto ordena as idéias apresentadas, realça a informação e confere clareza.
Os termos juríd icos fundamentação e decisão orientam ordenadamente o leitor no sentido de, com a fundamentação, ter in ício a exposição do princípio da legalidade estrita, segundo o qual "as decisões judiciais devem basear-se em normas legais pertinentes" (14, p.220),o que de fato se dá, com o observado no parágrafo seguinte. Com a decisão, serão iniciadas as ponderações sobre questões incidentais que interferem no andamento do processo referente ao crime.
Para dar in ício à fundamentação de sua tese, o autor se vale da responsabilidade objetiva - que não é fundada em culpa - prevista pelo conjunto da legislação referente ao âmbito criminal: se há responsabilidade, há culpabilidade.Neste e nos parágrafos subseqüentes, ao valer-se das peculiaridades da legislação penal brasileira, o autor recorre ao argumento de autoridade para sustentar suas ponderações.
O crime punível é um fato típico, Prossegue o ju iz defin indo o crime passível de punição, com escolhasantijurídico e culpável. lexicais de termos jurídicos:
• crime: conforme o conceito analítico, ação típica e antijurídica, culpável e
punível (16);• fato típico: correspondente à descrição do tipo penal (14);• antijurídico: que contraria as normas jurídicas; ilegal, injurídico.Este parágrafo retoma o anterior ao relacionar se há responsabilidade, há culpabilidade e se há crime, há culpabilidode. Esse procedimento pode ser considerado como o de argumento pragmático.
De forma clara e bastante didática, o ju iz expande o sentido dos termos
empregados no parágrafo anterior, respeitando a ordem na qual sãoenunciados:• tipicidade: reunião, em um fato, de todos os elementos que definem
legalmente um delito. Cunha (14) esclarece mais: característica do enunciado da norma penal, concernente à existência do tipo; correspondência entre conduta e tipo penal;
• antijuridicidade: oposição ao direito; ilegalidade jurídica.
Por outro lado e ainda de forma A culpabilidade merece um parágrafo em separado provavelmente parasimplista, a culpabilidade nada destacar que, em direito penal, cu lpabilidade é concebida como elementomais é do que o elo de ligação en- subjetivo ligando o fato ao seu autor, manifestando-se pelo dolo.tre o agente e a punibilidade.
Portanto, para que uma infração penal seja perseguida e mereça o agente tratamento punitivo, não basta que o fato seja típ ico e antijurídico.
continuação
continua
A conclusão a que chega o autor acerca da punição à violação de norma de direito penal é iniciada com o elemento conector portanto, que, além de ligar esta oração à anterior, mantém entre ambas determ inada relação de sentido, não sendo, por conseguinte, fruto do acaso a escolha de tal elemento de coesão. Outra escolha lexical do âmbito jurídico: aoente, que significa o que infringe a lei penal; agente do crime.
Com bastante singeleza, a tipicidade
consiste no fato que se enquadra na descrição da lei penal, na espécie, homicídio. A antijuridicidade emerge no momento em que uma conduta humana fere um interesse defendido pelo Direito, no caso, a vida, o que a torna ilícita.
Passa-se à fundamentação e decisão.
Não existe no atual ordenamento juríd ico crim inal brasileiro, diverso da órbita civil, a denom inada responsabilidade objetiva.
Consigne-se, ainda, a pedido do M inistério Público, a anexação da respeitável sentença de Io Grau de Jurisdição referente à responsabili
dade Civil (fls. 1.544/600).
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumeniativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 131
continuação
Há necessidade que fique
cabalmente demonstrado tenha o agente concorrido com dolo ou culpa (em sentido estrito), presente a culpabilidade até como pressuposto da sanção.
Feitas essas resumidas considerações
doutrinárias, mas necessárias ao desenvolvimento do raciocínio que conduzirá à conclusão, passa-se à
análise do quanto apurado no
presente inquérito.
Distante de qualquer dúvida, a causa do acidente fundou na
abertura não comandada do reverso do motor direito em momento inoportuno, pois, no exato instante em que a aeronave transitava de"ground" para "air
position" indicando o momento da decolagem.
Tal anormalidade, não obstante o esforço da tripulação para corrig ir o problema, resultou na inclinação do
avião para a direita, de oitenta e
sete graus, bem com o na perda do controle em vóo, quando ocorreu o impacto com o solo.
Para encerrar esta etapa da argumentação, o autor adverte ser necessário
demonstrar a atuação do agente do crime se configurar dolo ou culpa por ser essa condição da própria norma penal (dolo, elemento de vontade consistente na intenção de causar dano, cf. 14). O operador argumentativo até enfatiza esse último aspecto do enunciado com o pressuposto da sanção.
Não se trata apenas de demonstrar, mas de demonstrar cabalmente, o que, na seqüência do texto, o juiz fará. Cobolmente parece conferir mais força semântica do que um termo equivalente, como, por exemplo, completamente.
No intuito de orientar o leitor, este parágrafo anuncia a transição das considerações levadas em conta à análise do que o inquérito averiguou. No en
tanto, não se trata de meras considerações: são considerocões doutrinárias, ou seja, a escolha do adjetivo elucida quanto aos princípios imutáveis e ab
solutos para os quais não há contestação, por se basearem em doutrinas do
ordenamento juríd ico brasileiro.Como recurso explicativo, o uso de interpolação da seqüência mos necessárias ao desenvolvimento do raciocínio que conduzirá à conclusão, em tom de advertência (conferido pelo uso da adversativa mas),óè mais força de verdade ao enunciado.
Embora o parágrafo anterior anuncie que será analisado o apurado, o autor opta por apresentar antes a causa do crime para, depois, dar conta
da análise prometida, recurso mais contundente em termos de procedimentos argumeniativos também por iniciar pela seqüência distante de aualauer dúvida. O advérbio distante estabelece conotação afastando a possibilidade de haver dúvida a respeito do que causou o acidente.A conjunção conclusiva pois em posposição marca pausa maior, e a
pontuação a destaca; ao participar do segmento que denota uma conclusão para o dito anteriormente, a posposição enfatiza a causa do acidente.O emprego de termos técnicos para caracterizar o momento de levantar vòo confere mais precisão ao enunciado.
Para referir-se à abertura involuntária do reverso, o autor se vale do mecanismo de coesão textual ao estabelecer a ligação lingüística entre esse fato e o ju ízo de valor conferido pela escolha de tal anormalidade {tal, pronome demonstrativo + anormalidade). A interpolação não obstante o esforço do tripulação para corriçir o problema, iniciada pelo conector não obstante, indica idéia oposta ao restante do enunciado, que diz respeito ao empenho da tripulação em reverter a abertura do reverso.
E, no que diz respeito aos pressupostos do crime, ajusta-se, de primeira vista, que não há indícios
para sustentar eventual dolo ou
culpa de qualquer membro da tripulação.
Reitera o ju iz a ressalva à culpa ou do lo da tripulação e, ao isentá-la, prepara o leitor para os argumentos que sustentarão a tese do autor em relação ao culpado pela abertura do reverso.
Basta conferir a conclusão encartada no Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica
(anexo n. 13):
“A investigação constatou ter ocorrido uma abertura inadvertida de reverso (reverse unlocked) do motor direito auando a aeronave deixou a pista (Lift off)"
Neste parágrafo, o ju iz passa a oferecer dados para convencer e sustentar a assertiva quanto à isenção de culpa da tripulação, citando documento do
qual reproduz passagens nos dois parágrafos seguintes. O argumento tem muito mais peso, pois se embasa em fato comprobatório,aqui configurado pelo Relatório da Aeronáutica - argumento baseado em prova concreta.
Esse relatório constitui argumento de autoridade por conta do peso da declaração proveniente de um órgão de tal natureza.
continua
132 Direito e Argumentação - Parte 2
continuacão
E mais:"/4 pane foi inusitada e náo previsto nos procedimentos de emergência, ocorrendo na fase mais critica de performance do vôo: TRANSIÇÃO - corrida de decolaaem/ subida - e mais, submetida a interpretações induzidas, corroborada pelas informações anterioresf ooravada pelos avisos sonoros e luminosos e, ainda, pela intermitência do travamento/destravomento do manete do motor direito - ciclaoem do reversor".
Para concatenar esta citação à anterior, ambas retiradas do relatório já
citado, o ju iz se vale da locução e mais, que funciona como operador argumentativo de continuidade e complementaridade.Observe-se o valor catafórico dos dois-pontos para anunciar o in ício da citação e o realce das citações conferido pelo itálico e pelas aspas, mecanismos de notação orientando o leitor acerca do que foi com pilado
do relatório.
Destarte, totalmente imprevisível a
conjuntura para quem não tinha as informações e instruções, escritas ou práticas, para reconhecimento
da anormalidade.
Afasta-se, assim, qualquer indício de
do lo ou culpa, em qualquer de suas modalidades, por parte da tripu lação do Fokker 100 da TAM.
Todavia, ao contrário da tese defendida pelo M inistério Público, há for
tes indícios de que pessoa de relevo científico tinha informações suficientes para prever que o reverso poderia abrir independentemente de comando.
Dando curso à progressão lógico-argumentativa do texto,o conector
destarte interliga as citações à idéia da imprevisibilidade com a qual se deu inadvertidamente a abertura do componente, aliada à impotência da tripulação para agir em virtude do desconhecimento de com o proceder
nesse tipo de situação. Para referir-se ao fato, o ju iz usa a repetição do item lexical anormalidade, reiterando o juízo de valor provocado por essa escolha. Destaque-se o emprego do advérbio totalmente, que exprime idéia de quantidade ou medida em relação à abrangência por com pleto da imprevisibilidade com a qual aconteceu a abertura do reverso.
Neste parágrafo, com o conseqüência do raciocínio desenvolvido, o juiz apresenta argumento pragmático, fundamentado na relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de um vínculo causai (a abertura inadvertida do reverso e o travamento/destravamento da manete do motor direito),
com a transferência de valor de conseqüência - isenção de responsabilidade da tripulação - para sua causa. Esse teor instaura-se mais especificamente pelo operador argumentativo de conseqüência assim.Fazendo uso repetido do adjetivo auolauer, aqui com sentido de todo ou
toda, há reforço à idéia de a tripulação não ter tido absolutamente nada a ver com a causa do acidente. Observação interessante: o item lexical aualouer é empregado quatro vezes pelo autor durante todo o texto, todas elas quando se trata de isentar a tripulação de dolo ou culpa.Isentada definitivamente a tripulação, resta saber em quem recai a culpa.
0 fluxo dessa linha de raciocínio progride com o efeito de sentido de contraste gerado pelo elemento conector todavia, interligando a idéia da isen
ção da tripulação anteriormente defendida a fortes indícios de outrem que sabia da possibilidade de abertura ingovernada do reverso. Caracterizar indícios pelo adjetivo fortes indica avaliação de reprovação do produtor do texto. Se eram fortes tais indícios, por que não houve manifestação de quem conhecia a probabilidade do problema?
O recurso explicativo da interpolação ao contrário da tese defendida pelo Ministério Público destaca a tese desse órgão público, ainda que aparentemente essa informação pareça mero acessório, por já constar desta decisão
interlocutória. Esse uso argumentativo da gramática, além de servir de esquema explicativo, demonstra o ju iz náo concordar com tal tese, por conta do uso do operador argumentativo de oposição ao contrário.Para designar a pessoa que detinha informações acerca da possibilidade de o reverso abrir por si só, o jurista emprega a locução adjetiva de relevo científico para orientar delim itativamente a referência a um aspecto do denota
do: d istinguir seu reconhecido saber. Esse efeito de sentido é obtido também pelo uso da linguagem metafórica no referente ao item lexical relevo, cujo significado é distinção, realce, destaque (cf. 15).
continua
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 133
continuação
O seu fabricante, a Northrop Grumman Corporation.
Ora, o relatório em itido pelo Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI),do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) do M inistério da Aeronáutica, em
3 de fevereiro de 1997, a respeito
dos testes nos indutores dos reversos, foi taxativo:
"O relatório concluiu aue - Os testes realizados nos dois solenóides do Secondary Lock Actuador (Cl.l. P/N A- 1.355, S/N 874 - do reversor esauerdo e S/N 870 - do reversor direito) de atuação da trava secundária das portas dos reversores de empuxo das turbinas mostraram inconsistência nas respostas dos mesmos e a conseaüente falta de confiabilidade por eles apresentada.
A expectativa a respeito da identidade da pessoa de relevo cientifico é elucidada com destaque conferido pelo estilo da pontuação empregada, pois a essa revelação o ju iz destina um só parágrafo.Ao anunciar se tratar do fabricante do reverso, o autor mais uma vez se vale do recurso explicativo da interpolação com o uso do aposto para destacar o nome do fabricante.
O uso do elemento coesivo anafórico referencial - pronome possessivo seu - faz referência à palavra do parágrafo anterior reverso.
Tendo revelado, no parágrafo anterior, o responsável pela fabricação do componente que gerou o acidente, aqui a progressão semántico-argu- mentativa flui a partir do denotador oro, que funciona com o operador argumentativo e tem como função realçar as averiguações de outro argumento de autoridade, o Relatório do M inistério da Aeronáutica. Em
relação à postura de tal relatório ante os resultados a que chegou, o
jurista usa o adjetivo taxativo, metáfora que desencadeia a idéia de não dar margem à objeção, ou seja, não adm ite réplica ou contestação.
Este e os três parágrafos subseqüentes estabelecem a intertextualidade por meio de citações literais retiradas do Relatório da Aeronáutica, que, como
documento oficial, atesta o discurso do ju iz pela citação do discurso de outrem, indo ao encontro do que o argumento de autoridade implica.Neste parágrafo, a citação apresenta a conclusão do relatório: o problema
dos reversores e, conseqüentemente, a inconfiabilidade por eles ocasionada.
Os componentes, aue deveriam apresentar um padrão de aualidade aeronáutica, colocados em operação, sofrem uma deterioração anormal, inexplicada pelos próprios fabricantes que vêm, há algum tempo, pesquisando formas de otimização.
Para destacar que o fabricante já era sabedor da anormalidade com que se deu a deterioração dos reversores e a falta de condições de explicá-la, o juiz usa o negrito com o mecanismo de notação que gera efeitos particulares - aumentar e preservar a força do argumento de autoridade.
Mesmo assim, ficou claro aue as unidades continuam a ser montadas e fornecidos aos clientes com as deficiências aue, aparentemente, só não eram de conhecimento do FAA - uma vez que o Fabricante demonstrou que já as conhecia e o Representante Acreditado doaue- le órção mostrou-se surpreso com o aue presenciou.
0 fato de o fabricante já saber das insuficiências técnicas dos reversores aqui também é destacado pelo negrito com o mecanismo de notação.
Em resumo, as unidades (S/N 874 e S/N 870) aue eauipavam a aeronave acidentada, nos testes operacionais propostos e realizados, apresentaram desempenho muito inferior ao mini- mo aceitável paro oarontir o segurança e o confiabilidade do sistema e, conforme o concluído ao final dos trabalhos, especificamente a de S/N 870 (do reversor direito), teve parcela de contribuição na
Mais uma vez, o uso do negrito com o realce: a conclusão final dos
trabalhos de averiguação com a constatação de ter o encadeamento de fatos levado à abertura inadvertida do reverso quando o avião levantou vòo.
continua
134 Direito e Argumentação - Parte 2
continuacão
seqüência de eventos que levaram à abertura não comandada das portas do reversor de empuxo da turbina n. 2, durante a fase de decolagem da aeronave".
Com efeito, em ficando consignado que a Northrop Grumman Corporation,fabricante das unidades questionadas, já vinha, há aloum tempo (momento temporal consignado na data da emissão do
relatório - 3 de fevereiro de 1997), pesquisando e trabalhando no
sentido de otim izar o seu produto,
é bastante provável que era do seu conhecimento, na época do acidente, a existência de deficiências
nos componentes que, segundo o Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica, contribuíram na
seqüência de eventos que derrubaram o Fokker 100.
Não se trata, dessa forma, de
responsabilidade penal objetiva, instituto que independe de
demonstração da culpabilidade.
Seleção e organização de argumentos apresentados em defesa da perspectiva da responsabilidade do fabricante são recuperadas neste parágrafo, in iciado com o denotador de situação com efeito, cujo papel transfrástico implica explicação. Explicar, aqui, envolve ratificação de o fabricante já conhecer o problema do reverso por ocasião do acidente (o ju iz evidencia a questão do fator temporal com o grifado em seu
próprio discurso, outro tipo de notação). A explicação tem continuidade com algo do âm bito do convencimento, com o acréscimo de dados
precisos sobre a época da emissão do relatório, que vêm apresentados
entre parênteses, notação que tem por função inclu ir aspectos complementares ao que está sendo tratado.Também do discurso convincente o autor recupera o empenho do
fabricante no sentido de retroverter o problema do desgaste do reverso, indicando, portanto, já ser anteriormente do conhecimento da empresa.No entanto, para formular a assertiva, o jurista faz uso da modalização bastante provável, expressão que denota explicitamente possibilidade, aqui com o efeito de sentido “a atenuação do conteúdo da proposição','pois o
locutor acredita na veracidade do que escreve, mas não pode ou não deve comprometer-se totalmente com tal veracidade (9, p.219).Essa assertiva vem referendada pelo uso de secundo o Relatório Final do Estado-Maior da Aeronáutica, que, como esquema explicativo-conformativo, revela a informação veiculada não ser de responsabilidade do juiz, recurso para dar mais força de verdade aos enunciados.Por estar chegando ao final do texto, outra significativa escolha lexical patenteia a tese defendida durante esta decisão interlocutória: em
deficiências nos componentes (...) contribuíram na seaüência de eventos aue derrubaram o Fokker 100, o verbo derrubor, cujo significado (deixar cair de
modo proposital ou inadvertido, deitar abaixo) im põe força argumentativa bem maior do que seria o uso de outro termo correlato.
Tendo apresentado seus argumentos, o jurista volta a valer-se dos
fundamentos de sua área de atuação para dar in ício aos arremates finais de seu texto. O indicativo mais tácito disso é o uso do elemento de coesão
por seqüenciação dessa forma,que assinala um tipo de interdependência
semântica ou pragmática entre este e o parágrafo anterior; ou seja, o uso desse elemento coesivo estabelece o sentido de conclusão, considerando o somatório dos argumentos e o que apresenta com respaldo nos
pressupostos do direito.Assim, o ju iz descarta da questão a responsabilidade penal objetiva, que não é fundada em culpa, isto é, cujo surgimento se dá simplesmente com a verificação do dano produzido, sem necessidade de comprovar relação entre ato praticado por um agente e dano decorrente desse
ato (14 e 16).Para explicitar o que implica a responsabilidade penal objetiva, recorre o jurista ao recurso explicativo da interpolação, destacando o sentido de tal
conceito jurídico. Ao construir seu discurso, o operador do direito emprega os termos jurídicos instituto (conjunto de regras e princíp ios jurídicos que regem determinadas entidades ou determinadas situações de direito, cf. 16) e demonstração (ato ou efeito de demonstrar, que é argumentar de m odo irrefutável, cf. 14).
continua
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 135
continuacão
Na verdade, a conduta do
fabricante do reverso esbarra nas portas do dolo eventual e representa, pelo menos, indícios de culpa grave, consistente na falta de perícia para confecção de tão
importante componente, cuja
deficiência, repita-se, já conhecida na época (conforme relatório em itido pelo CTA/IFI), deu causa à tragédia de desmedida proporção.
Justifica-se, nessa linha de reflexão, o "jus persecutione" do Estado, por
seu representante, o M inistério Público.
Em assim sendo, determ ino sejam os autos do presente inquérito
instaurado pela autoridade Policial, com todos os seus apensos, remetidos ao Procurador-Geral de
Justiça do Estado de São Paulo, para os fins e efeitos do artigo 28, do Código de Processo Penal.
Para convencer e persuadir o receptor, este parágrafo procede a uma
recapitulação de fatos e argumentos apresentados e se propõe excitar as paixões do receptor, como é típ ico da peroração.O modalizador na verdade remete à idéia de reafirmação enfática de fortes reivindicações de conhecimento e manifesta o ju iz ter com o verdadeiro o conteúdo da proposição apresentada com o uma afirmação que náo admite
dúvidas, constitu indo uma necessidade epistémica (cf. 9). Com o o uso desse
tipo implica não adm itir argumentos contrários, o discurso do juiz ganha mais contundência, com o se percebe pela forma com a qual se refere à conduta do fabricante, que esbarra nas portas do dolo eventual. A metáfora esbarra nos portas também modaliza dolo eventual, pois, se dolo, em direito penal, é o elemento de vontade consistente na intenção de causar dano, esbarrar nas portas não implica entrar porta adentro. Ainda que adm ita por essa atenuação poder não haver dolo, na progressão argumentativa ocorre
o emprego da expressão quantitativa pelo menos relacionada a culpa grave. 0 adjetivo grave caracteriza a possibilidade designativa do substantivo culpa por orientar delim itativamente a referência à culpa, que, segundo Cunha (14), significa pesado, sério, importante.
Outra escolha lexical para designar culpa grave advém da caracterização partindo do adjetivo consistente, ou seja, logicamente coerente, em referência à imperícia com a qual foi fabricado o reverso.Também esse item lexical agora merece adjetivação que contribui para a defesa do ponto de vista do juiz, pois não se trata mais de mero componente, mas de um importante componente. Ao mencionar a importância do reverso, o ju iz se vale mais uma vez da interpolação com repita-se, destacando o retomado acerca do conhecimento pelo fabricante da deficiência apresentada,
assertiva realçada pelo grifo (para grifar seu próprio texto, o ju iz usa o grifado; para o texto das citações, o negrito).Para atestar seu dizer, o ju iz recorre ao argumento de autoridade com a menção ao relatório e, por fim, apresenta como causa do acidente a deficiência do produto.Diferentemente das outras vezes nas quais se referiu a ele, aqui, na
peroração, o acidente vem sob o rótulo de tragédia de desmedida proporção. O emprego em sentido metafórico de tragédia confere ao acidente o cunho de acontecimento funesto que desperta piedade ou horror, catástrofe,
desgraça, infortúnio (cf. 16) para provocar o efeito de sentido de ser o fato lastimável.
O operador do direito vale-se dos argumentos apresentados, aos quais se refere como linha de reflexão, como fundamento para que se cumpra o jus persecutione (persecução do direito) pelo M inistério Público. Observe-se o uso de notações do itálico e aspas para evidenciar a expressão latina.Tal expressão latina implica o prosseguimento judiciário em busca de alcançar
um ideal de justiça, traçando as fronteiras do ilegal e do obrigatório, pelo conjunto de normas da jurisprudência.
Este parágrafo inicia com o elemento de coesão seqüencial de conclusão assim sendo, que inter-relaciona a idéia do jus persecutione com o epílogo,
que é consumado prescrevendo como orientação para a persecução do direito o envio dos autos (conjunto ordenado das peças jurídicas produzidas no decorrer do inquérito) ao Procurador-Geral, de acordo com o que reza o
art. 28 do Código de Processo Penal.
São Paulo, 10 de setembro de 2000 Ao assinalar a data de conclusão e provavelmente da emissão desta decisão
interlocutória, o ju iz lança mão de um fator de contextualização.
136 Direito e Argumentação - Parte 2
Ao tratar dos procedimentos argumentativos da decisão interlocutória, gênero textual, procedemos à análise lingüística dos mecanismos usados pelo operador do direito para convencer e persuadir seus interlocutores acerca de sua tese: considerar o fabricante o responsável pelo acidente aéreo.
Análise, interpretação, relacionamento de dados, informações e alguns conceitos amplos da jurisprudência foram levados em conta para que fosse possível acompanhar a construção da argumentação em defesa do ponto de vista do juiz, que, na argumentação jurídica, deve ser óbvio. Fazer menção a essa necessária obviedade eqüivale a dizer que toda argumentação é parcial, pois o trabalho do operador do direito visa à busca de argumentos legais que sustentem seu ponto de vista e, em contrapartida, anulem os argumentos da parte contrária a fim de convencer da validade e legitimidade do que pretende. Ressalte-se os argumentos não serem verdadeiros ou falsos, mas, sobretudo, fortes ou fracos, convincentes ou não, em relação à situação discursiva em pauta, pois a argumentação jurídica enreda a lógica retórica, sem jamais se pretender prova categórica da mais pura verdade. Daí alguns operadores do direito aceitarem determinadas teses rejeitadas por outros. Além disso, é pertinente assinalar a questão da interpretação da lei, que revela parcialidade inerente à argumentação jurídica tanto de quem a elabora quanto de quem vai julgar a argumentação elaborada.
Como o que mais caracteriza a atividade jurídica é a argumentação, por estar em correspondência à própria natureza persuasiva do discurso forense, é preciso reiterar que toda idéia só atinge força persuasiva se as razões que a fundamentam estiverem explicitadas com clareza e, logicamente, garantidas com argumentos eficazes constituídos de fatos, pois estes, a rigor, não precisam ser esclarecidos.
A seleção dos fatos e a forma de narrá-los, como visto, também envolvem aspectos argumentativos, e a narração apresenta, ainda que implicitamente, o ponto de vista do juiz. Também foi constatada a importância da seleção de itens lexicais como indicativo da subjetividade do produtor do texto, mesmo que ele se proponha parecer com isenção e imparcialidade.
Inquestionavelmente, o juiz, um conhecedor do Direito, formula sua decisão partindo não só de seu senso de eqüidade, mas também de seu conhecimento arguto de técnicas e norm as do foro, como pensam Perelman e Olbrechts-Tyteca (31).
O reconhecimento das características dessa decisão interlocutória e a análise lingüística de alguns expedientes argumentativos - dos quais o autor se vale para construir efeitos de sentido que levem a convencer e persuadir o lei
Domínio Discursivo Jurídico: Procedimentos Argumentativos no Gênero Textual Decisão Interlocutória 137
tor - mostram que, quanto mais desenvolvemos sistematicamente nossos saberes lingüísticos referentes ao funcionamento textual, mais proficiência podemos adquirir em termos de leitura e construção de textos.
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VIO Uso dos Argumentos
na Prática do Direito
Doroti Moroldi Guimarães
As novas nuanças da sociedade contemporânea têm exigido das universidades uma atuação mais dinâmica de seu conteúdo pedagógico no ensino do Direito, de modo a contribuírem para a boa formação dos alunos, futuros profissionais da área jurídica, principalmente no que diz respeito à argum entação. Como afirma Atienza,
ninguém duvida que a prática do Direito consista, fundamentalmente, em argumentar, e todos costumamos convir que a qualidade que melhor define o
que se entende por um “bom jurista” talvez seja a sua capacidade de construir
argumentos e manejá-los com facilidade. (2, p. 19)
Considerando, como o autor, os argumentos serem a própria essência do raciocínio jurídico, e a prática do Direito consistir, fundamentalmente, cm argumentar, este estudo oferece subsídios à produção de conhecimentos que permitam lidar com a necessidade de persuadir com maior desenvoltura, am pliando a gama de recursos suasórios. O estudo está situado na análise crítica do discurso (ACD) e delimitado a aspectos da abordagem cognitiva e so- ciointeracional da argumentação. Segundo Van Dijk (9), ACD é designação genérica aplicada à investigação científica dedicada a estudar textos e fala em uma visão multidisciplinar e está centrada em recursos discursivos que influenciam o pensamento de grupos sociais em conflito e, indiretamente, as ações de pessoas.
Será demonstrado, pela organização textual, a sentença de desclassificação construir-se a partir de um a hierarquização de categorias que definem a estrutura argumentativa desse gênero do discurso jurídico.
140 Direito e Argumentação - Parte 2
O discurso jurídico em sociedade: ação e interação
Contemporaneamente, para os estudos discursivos, as noções básicas são complexas, pois estão fundamentadas em princípios tais como: o discurso, além de estrutura, também é ação e interação; o texto, além de lingüístico, também é social e cultural; da mesma forma que ambos são relativos à cognição.
Petri, ao partir da norm a jurídica como elemento básico, diz que o discurso jurídico busca interpretá-la, adequando os fatos aos valores semânticos de seus termos com força persuasiva, por meio de uma adequação da experiência de vida aos valores eleitos pelo grupo social e integrados ao ordenamento jurídico. É no campo jurídico, segundo a autora, que mais se evidencia a relatividade da verdade.
Cada situação de tempo, local e ação exige uma análise, com vistas ao relacionamento da tese com a norma jurídica. Não é possível, então, que uma ciência social, ligada diretamente ao homem, enquanto membro de uma comunidade, tenha como fundamento verdades absolutas, capazes de se aplicarem ao presente e, ao mesmo tempo, se projetarem para o futuro. (6, p.97)
No que se refere aos processos sociocognitivos envolvidos em produção e compreensão do discurso jurídico, utilizando a linguagem como forma de interação social, é possível destacar o papel dos conhecimentos, atitudes e outras representações mentais e a influência exercida por esse discurso sobre as opiniões das pessoas. Todos os conhecimentos construídos em sociedade são organizados na forma de crenças factuais ou avaliativas, sendo estas últimas as opiniões. Tais crenças decorrem do marco de cognições sociais, definido como um conjunto de idéias adquiridas e usadas pelo grupo social, pois decorrem de critérios e normas aceitos socialmente.
Considerando os estudos realizados por Van Dijk (9), pode-se dizer o relacionamento entre estruturas e contextos sociais do discurso jurídico não poder ser estabelecido sem serem tratadas as representações mentais sociais e individuais. As sociais, adquiridas e partilhadas, definem culturas e grupos sociais, de forma a organizar e m onitorar suas crenças e práticas sociais. Já as individuais explicam as razões de diferentes reações dos indivíduos diante do mesmo acontecimento. Para o autor, é a integração do estudo das dimensões cognitivas com as sociais que permite melhor compreensão das relações entre discurso e sociedade.
Dessa forma, quando discursa, um locutor não está meramente verbalizando palavras ou sentenças gramaticais de determinada língua. Ele o faz cm
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 141
determinado contexto (por exemplo: o juiz se expressa em um contexto que lhe permite julgar), em data e m om ento histórico específicos. Em síntese, analisar um discurso, como ação e interação em sociedade, compreende entendê-lo como uma complexidade de atos relativos a forma, significado e representações mentais, tanto quanto uma complexidade de funções sociais que definem os tipos de interação envolvidos.
Assim, se o discurso jurídico é visto como ação e interação, a produção e a compreensão de frases, palavras, estilo, retórica ou argumentação também podem ser consideradas ações que envolvem vários atos na prática social discursiva. Esses atos implicam, por exemplo, asserções, elogios, depreciações, acusações, de forma a argumentar e a contra-argumentar em defesa de opiniões resultantes de uma postura ideológica. São, portanto, atos intencionais ou desencadeados por outra ação intencional, em determinada situação.
Sentença de desclassificação
Para a caracterização da sentença de desclassificação, foi selecionada a fala de Oliveira Júnior (5), docente em Direito Processual da u c a m e analista processual do Ministério Público Federal, apresentada a seguir.
Oliveira Júnior inicia sua fala afirmando que,
por disposição constitucional, todos os crimes dolosos contra a vida e, também, os que, porventura, lhes forem conexos, são julgados pelo Tribunal do Júri, ante verificação da regra de competência absoluta, estatuída no art. 5o, XXXVIII, da c r f b c/c art. 7 8 ,1, do c p p .
O procedimento do júri, segundo o autor, é escalonado e tem duas fases. A primeira vai da denúncia até a sentença de pronúncia, que corresponde ao juízo de acusação ou de afirmação da culpa. A segunda situa-se entre o libe- lo-crime acusatório, que pressupõe o trânsito em julgado da sentença de pronúncia, e a realização do julgamento em plenário.
Pode ser que, na primeira fase, o magistrado, com base no instituto da emendatio libeli (art. 383 do c p p ) ' , profira decisão de desclassificação para o juízo singular do crime descrito pelo m p como afeto ao Tribunal do Júri, por considerar não haver a prática de crime doloso contra a vida. Só vai merecer atenção especial do magistrado se houver, na denúncia, crime conexo àquele
1 “Identificador de que o Juiz, q u an d o de sua decisão, não esta adstr ito à classificação dada ao cri m c pelo M inistério Público na peça exordial (art. 408 e parágrafo ún ico do c p p ) " (cf. 5).
142 Direito e Argumentação - Parte 2
que, em princípio, estava afeto ao Tribunal do Júri e que, por decisão desclas- sificatória sujeita a recurso, passou a ser de competência do juízo singular.
O autor cita, como exemplo,
uma denúncia em que se atribui ao réu a prática de homicídio doloso contra
a vida (art. 121 do CP), em concurso de crimes com desacato (art. 331 do CP),
sendo o crime de homicídio desclassificado para o crime de lesão corporal, este sabidamente de competência do Juiz singular e, não, do Tribunal de Júri.
Mesmo estando livre para decidir sobre o crime conexo, é prudente o magistrado não proferir julgamento sobre esse crime antes da ocorrência do trânsito em julgado da decisão desclassificatória (crime de homicídio). O autor esclarece que, caso seja dado provimento ao recurso, poderá ser devolvida a competência do júri para julgar tanto o crime de homicídio doloso contra a vida como o crime de desacato conexo.
Segundo o autor, se o magistrado optar por
proferir julgamento condenatório em relação ao crime conexo, antes do trânsito em julgado da decisão desclassificatória em relação ao crime de homicídio, provocará, em caso de provimento de eventual recurso interposto contra essa decisão, a nulidade absoluta de sua própria sentença em relação ao crime conexo por error in procedendo, ante a inevitável verificação de ter sido proferida
por juiz absolutamente incompetente, tudo a evidenciar a ausência de um dos pressupostos processuais subjetivos em relação ao juiz para o desenvolvimento válido e regular do processo, qual seja, a competência.
Argumentação
Para Petri (6), o discurso jurídico é um discurso argumentado e constituído de estratégias, à luz de valores que lhe são pretextos para fundamentar enunciados normativos. Além dessa autora, há, ainda, outros que tratam do assunto, a seguir apresentados de acordo com o encadeamento de conceitos por eles formulados.
É importante considerar, inicialmente, a afirmação de Koch de que “a interação social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade” (4, p. 17). Segundo a autora,
o homem, como ser dotado de razão e vontade, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso —
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 143
ação verbal dotada de intencionalidade - tenta influir sobre o comportamen
to do outro ou fazer com que compartilhe suas opiniões. É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do
termo. A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende "neutro”,
ingênuo, contém também uma ideologia - a da sua própria objetividade.
(ibid., p. 17)
É importante, também, no estudo da argumentação, a ideologia, já que, segundo Van Dijk (8), ela desempenha papel central na (re)produção dos processos persuasivos e tem natureza cognitiva, pois está representada na m emória das pessoas. No entanto, ao mesmo tempo, a ideologia tem natureza social, uma vez que é partilhada por outros membros do grupo, e é adquirida, formada e aplicada em situações sociais, segundo condições sociais e com conseqüências sociais.
Uma concepção ampla de argumentação é desenvolvida por Vignaux (10, 11). Para o autor, os processos argumentativos estão presentes em todas as operações da vida social, abandonando, assim, a idéia de a argumentação ser definida como o que está expresso por argumentos. Ele entende o domínio da argumentação para além do verossímil, da prova, de forma a abranger como o hom em focaliza algo no m undo para representá-lo como possível ou provável. Vignaux associa argumentação a discurso e busca justificar tal atitude declarando as operações da vida social implicarem a não-existência de discurso que, produzido em um contexto humano, não seja argumentativo. Logo, qualquer discurso implica um jogo de intenções e processos persuasivos, e, nesse sentido, o discurso é apresentado como um conjunto de estratégias destinadas a persuadir pessoas. Vignaux insiste que não basta tratar dos fenômenos de interação orador-auditório. Para o autor, é necessário, além disso, analisar um discurso partindo de um texto que o formalize.
Assim, toda argumentação é um conjunto de raciocínios decorrentes de reflexões que produzem uma afirmação, uma tese. Para haver um a tese, é necessário construir um problema e, para tanto, é preciso começar por duvidar do já conhecido. Trata-se de construir outra opinião que se oponha à já existente ou a complemente. Isso é possível quando se tem por ponto de partida idéias já admitidas e, ao argumentar, constroem-se outras idéias ainda não admitidas. A argumentação implica, portanto, articular idéia nova com idéias já aceitas, construindo mundos possíveis nos quais essas idéias possam conviver,
144 Direito e Argumentação - Parte 2
ou um m undo de representações prováveis, utilizando elementos do m undo real como prova da veracidade do proposto no discurso.
No caso da possibilidade, as idéias já admitidas são complementadas por idéias novas e, por essa razão, constroem m undos possíveis. No caso da probabilidade, parte-se de provas não generalizáveis, que, por isso, não constroem o necessariamente verdade, mas o provavelmente verdade.
Segundo Álvarez (1, p.26), do ponto de vista dialético, o texto da argumentação se move sobre probabilidades, nunca sobre certezas. Assim, a argumentação não trata do que é verdade, mas de crenças apresentadas como sociais ou individuais no discurso, e, por essa mesma razão, as relações estabelecidas no texto implicam crenças, possibilidades e probabilidades.
Estrutura argumentativa
A estrutura argumentativa é um dos pontos-chave deste estudo, pois, como já dito, nossa proposta está centrada na categorização do gênero sentença de desclassificação do discurso jurídico. Partindo dessa estrutura, são construídos os argumentos de legitimidade e reforço apresentados por Van Dijk (7) ao agrupar, na estrutura argumentativa, as categorias2: Justificação, Conclusão, Marco, Circunstância, Pontos de Partida, Fatos, Legitimidade e Reforço.
Segundo o autor, essas categorias podem ser modificadas conforme o tipo de argumentação. No caso do discurso jurídico, verifica-se a modificação da estrutura argumentativa proposta por Van Dijk (7) apontar, para a sentença de desclassificação, as seguintes categorias: Acontecimento, Opinião, Argumentação (fato, comentário - argumentos de possibilidade, de probabilidade e de legitimidade - , conclusão parcial - argumentos de legitimidade e de reforço - e conclusão final - argumentos de legitimidade e de reforço).
Aplicação
A título de exemplificação, apresentamos a aplicação das categorias apontadas em uma sentença de desclassificação extraída do Processo n. 17.901, do TJ - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, emitida em 9 de agosto de 1997 pelo Tribunal do Júri de Brasília (ver texto integral no Anexo, p. 151).
Nessa sentença de desclassificação,
2 Term os que designam categorias são escritos com iniciais maiúsculas.
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 145
Max Rogério Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Al
meida e Eron Chaves de Oliveira, todos qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público, como incursos nas sanções do art. 121, § 2o, I, III e IV> do Código Penal e art. Io da Lei n. 2.252/54 e art. 1° da Lei n. 8.072/90, porque, juntamente com o menor Gutemberg Nader Almeida Junior, jogaram substância inflamável e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, causando-lhe a morte.
Categorias
Acontecimento
Trata-se de um acontecimento desencadeador do processo argumentativo, no qual se projeta um modelo de situação que focaliza esse acontecimento pelo prisma da crueldade. Dessa forma, ativa-se o marco de cognição social dos brasileiros, que não aceita esse tipo de atitude.
(...) ao amanhecer, o grupo passou pela parada de ônibus onde dormia a vítima. Deliberaram atear-lhe fogo, para o que adquiriram dois litros de combustível em um posto de abastecimento. Retornaram ao local e enquanto Eron e
Gutemberg despejavam líquido inflamável sobre a vítima, os demais atearam fogo, evadindo-se a seguir.
Opinião
Como já afirmado, o acontecimento é focalizado pelo prisma da crueldade. A seguinte opinião (implícita) é a conclusão avaliadora resultante de tal focalização, que, todavia, pode ser modificada no decorrer do processo argumentativo: os acusados são culpados.
Argumentação
A argumentação do texto é construída, estrategicamente, tendo por base duas categorias: fato e comentário.
Fato
Na categoria Fato, apontam-se os seguintes fatos:
• Foi decretada a segregação preventiva dos acusados.• A prisão em flagrante foi relaxada.• Não houve perseguição.• Os réus foram localizados em virtude de diligências policiais.• Tão logo praticado o crime, os réus evadiram-se do local.
146 Direito e Argumentação - Parte 2
Comentário
Na categoria comentário, de caráter opinativo, tem-se a análise dos fatos voltada para a demonstração de tais fatos encontrarem um correspondente na lei, sendo, portanto, penalmente relevantes. Nesse sentido, apontam-se os seguintes comentários:
• Salvaguardar a ordem pública.• Evitar o descrédito do Poder Judiciário.• A liberdade não deve servir de incentivo a práticas similares.• Conveniência da instrução criminal.• Assegurar a integridade física dos réus e de seus familiares.• Salvaguardar a aplicação da lei penal.• Os acusados demonstraram que pretendiam furtar-se a eventual condenação.
Argumentos
Focaliza-se algo no m undo para representá-lo como possível ou provável. Constrói-se, assim, um percurso que vai da possibilidade à
Argumentos de Possibilidade
São utilizados argumentos baseados em crenças, recorrendo-se, estrategicamente, à maximização do m undo possível sim e à minimização do mundo possível não (m undo possível sim versus m undo possível não).
Mundo possível sim:• Os denunciados teriam agido para se divertir com a cena de um ser humano
em chamas. Foi, portanto, um motivo torpe que os levou a agir dessa forma.• A m orte foi provocada por fogo. “Adquiriram álcool combustível, que foi
parcialmente despejado sobre a pessoa que dormia, sendo ateado o fogo.”• Tinham consciência de que o álcool combustível é substância altamente
inflamável.• Os denunciados recorreram, portanto, a um meio cruel para agir.• A vítima foi atacada enquanto dormia. Os denunciados usaram esse recur
so, o que impossibilitou a defesa da vítima.• “Se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte
da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo. A pretendida desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri.”
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 147
«
M undo possível não:
“Ao avistarem a vítima no ponto de ônibus, tiveram a idéia de ‘pregar um susto para ver a vítima correr’.”“Ficaram assustados e saíram do local, tendo em vista a aproximação de um veículo, embora tivessem cogitado ajudar a vítima.”“Não esperavam que o fogo ‘tomasse a proporção que tom ou’.” “Resolveram dar um susto na vítima.”A brincadeira seria com uso de álcool e fósforos.”Ida ao posto de abastecimento para aquisição do combustível, que não se
ria utilizado por inteiro, razão pela qual Eron despejou o conteúdo de um dos litros em um gramado situado próximo à parada de ônibus.”
• “Enquanto Eron deixava cair o combustível sobre a vítima, um dos autores riscou precipitadamente o fósforo, m omento em que as labaredas subiram na direção de Eron, que se assustou e jogou o vasilhame no chão, tendo todos saído do local.”
• “Em nenhum momento passou pela cabeça que o fogo ‘pegasse com rapidez e queimasse toda a vítima’.”
• “A intenção era somente derramar o líquido sobre a vítima, a Fim de dar- lhe um susto para vê-la correr.”
• “Em m omento algum passou pela cabeça que a vítima poderia morrer, como também ficar lesionada.”
• “Imaginaram que a vítima fosse acordar e correr atrás do grupo para agredi-los.”
• “Os defendentes, ao realizarem as condutas, não previram o resultado m orte e sim a lesão corporal, ocorrendo crime preterdoloso.”
Argumentos de Probabilidade
No caso da probabilidade, parte-se de provas, mas elas não são generali-záveis e, por essa razão, não constroem o necessariamente verdade, mas oprovavelmente verdade. Nesse sentido:
• auto da prisão em flagrante de fls. 08/22;• boletins de vida pregressa de fls. 43 a 45;• relatório final de fls. 131/134;• laudo cadavérico de fls. 146 e seguintes;• laudo de exame de local e de veículo de fls. 172/185;
148 Direito e Argumentação - Parte 2
• exame em substância combustível de fls. 186/191;• termo de restituição de fls. 247;• continuação do laudo cadavérico, fls. 509;• termos de audiência de fls. 390/409,434/454 e 470/474;• carta precatória, fls. 485;• art. 406 do Código de Processo Penal;• alegações de fls. 512 e seguintes;• art. Io da Lei n. 2.252/54;• art. 129, § 3o, do Código Penal;• art. 121, § 3o, do mesmo Códex;• art. Io da Lei n. 2.252/54.
Argumentos de Legitimidade
Os argumentos de possibilidade e de probabilidade são usados, estrategicamente, como argumentos de legitimidade.
Conclusão Parcial
• “A assistência da acusação ratificou as razões finais do Ministério Público.”• “A defesa de Eron e Tomás pugnou pela desclassificação do ilícito.”• “A defesa do réu Max Rogério [...) pretende também a revogação da prisão
preventiva.”• Para a defesa de Antônio Novely, “o dolo do agente, ainda que eventual,
deve ser provado e não presumido”.
Argumentos de Legitimidade
O juiz sentenciante terá quatro opções: a pronúncia, porque determina o art. 408 do Código de Processo Penal que, se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o autor, irá pronunciá-lo, dando motivos do seu convencimento; a impronúncia, quando não se convencer da existência do crime ou de indício suficiente da autoria; a desclassificação, prevista no art. 410 do mesmo diploma, quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso daquele da competência do Tribunal do Júri e a absolvição sumária, quando ocorrente alguma causa de justificação, na forma do disposto no art. 411 do Código de Processo Penal.”“Assim, não tem razão a douta representante do Ministério Público quando afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri.”
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0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 149
• “Se por um lado é certo que também durante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da classificação penal, por outro não se pode negar vigência ao disposto no art. 410 do Código de Processo Penal.”
• “ [Afasta-se] a possibilidade de tratar-se somente de crime culposo, pois, no tipo culposo, o agente realiza um a ação cujo fim é lícito, mas, por não se conduzir com observância do dever de cuidado, dá causa a um resultado punível.”
• “Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o crime de lesões corporais seguidas de morte, denominado preterdoloso, em que há dolo quanto à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio. A linha divisória entre ambos é tênue. Cumpre trazer a lição dos doutrinadores a respeito do que sejam as duas figuras em cotejo.”
Argumentos de Reforço
São citados: Assis Toledo, Heleno Fragoso, Frank, Fernando AlmeidaPedroso, Albani Pecoraro, Alberto Silva Franco.
Conclusão Final
Conforme afirmado, a opinião inicial poderia ser modificada no decorrerdo processo argumentativo, o que realmente ocorreu, chegando-se ao seguinte:
• “Ocorrência do crime preterintencional e não do homicídio.”• “ [Desclassificação] da imputação de homicídio doloso.”
Argumentos de Legitimidade
São retomados os argumentos de possibilidade e de probabilidade da categoria Argumentos e transformados em argumentos de legitimidade.
Argumentos de Reforço
Arts. 408, § 4o, e 410, do Código de Processo Penal.
Considerações finais
Pela aplicação das categorias propostas para o gênero sentença de desclassificação do discurso jurídico, pode-se verificar, na articulação do uso efetivo da língua com cognição, discurso e sociedade, como a juíza reformula a representação mental ocorrente de seus leitores, persuadindo-os.
150 Direito e Argumentação - Parte 2
A argumentação do texto é construída, estrategicamente, tendo por base duas categorias, fato e comentário, partindo de um acontecimento desenca- deador do processo argumentativo. Nesse acontecimento, é projetado um modelo de situação que o focaliza por determ inado prisma, sendo a opinião a conclusão avaliadora resultante de tal focalização. Na categoria com entário, de caráter opinativo, tem-se a análise do fato voltada para a dem onstração de tal fato encontrar correspondente na lei, sendo, portanto, penalmente relevante.
Dessa forma, são utilizados argumentos baseados em crenças, construindo, para o leitor, conhecimentos factuais a respeito do acontecimento e, ao mesmo tempo, m undos possíveis. A estratégia argumentativa, para construção da opinião do leitor, é a maximização de um m undo possível em relação a ou tro, seguindo um percurso que vai da possibilidade à probabilidade.
O discurso jurídico é apresentado, então, como um conjunto de estratégias persuasivas tratadas por usos textuais argumentativos, agrupados com base na estrutura da argumentação, modificada pelo uso dos argumentos de probabilidade e possibilidade como argumentos de legitimidade.
É importante ressaltar a categoria conclusão subdividir-se em parcial e final, havendo, em ambas, continuação do processo argumentativo, com argumentos de legitimidade e reforço. Na conclusão parcial, há argumentos de legitimidade e de reforço, estes apresentados por citações de doutrinadores. Na conclusão final, são retomados argumentos de possibilidade e de probabilidade da categoria argumentos, transformados em argumentos de legitimidade, e artigos do Código de Processo Penal, corno argumentos de reforço.
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 151
ANEXO
Sentença de desclassificação selecionada para aplicação
MAX ROGÉRIO ALVES, ANTÔNIO NOVELY CARDOSO DE VILA- NOVA, TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA E ERON CHAVES DE OLIVEIRA, todos qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público, como incursos nas sanções do art. 121, § 2o, I, III e IV, do Código Penal e art. Io da Lei n. 2.252/54 e art. Io da Lei n. 8.072/90, porque, juntamente com o m enor Gutemberg Nader Almeida Junior, jogaram substância inflamável e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, causando-lhe a morte.
Narra a inicial da acusação que, ao amanhecer, o grupo passou pela parada de ônibus onde dormia a vítima. Deliberaram atear-lhe fogo, para o que adquiriram dois litros de combustível em um posto de abastecimento. Retornaram ao local e, enquanto Eron e Gutemberg despejavam líquido inflamável sobre a vítima, os demais atearam fogo, evadindo-se a seguir.
Três qualificadoras foram descritas na denúncia: o motivo torpe, porque os denunciados teriam agido para se divertir com a cena de um ser humano em chamas; o meio cruel, em virtude de ter sido a morte provocada por fogo, e o uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, que foi atacada enquanto dormia.
A inicial, que foi recebida por despacho de 28 de abril de 1997, veio acompanhada do inquérito policial instaurado na Ia Delegacia Policial. Do caderno informativo constam, de relevantes, o auto de prisão em flagrante de fls. 08/22, os boletins de vida pregressa de fls. 43 a 45 e o relatório final de fls. 131/134. Posteriormente vieram aos autos o laudo cadavérico de fls. 146 e seguintes, o laudo de exame de local e de veículo de fls. 172/185, o exame em substância combustível de fls. 186/191, o termo de restituição de fls. 247 e a continuação do laudo cadavérico, que está a fls. 509.
O Ministério Público requereu a prisão preventiva dos indiciados. A prisão em flagrante foi relaxada, não configurada a hipótese de quase flagrância, por não ter havido perseguição, tendo sido os réus localizados em virtude de diligências policiais. Na mesma oportunidade foi decretada a segregação preventiva dos acusados, com fundamento na necessidade de salvaguardar a ordem pública, evitar o descrédito do Poder Judiciário, para que a liberdade não servisse de incentivo a práticas similares. Além da garantia da ordem pública, a prisão foi decretada por conveniência da instrução criminal, para assegurar a integridade física dos réus e de seus familiares e para salvaguardar a aplica
152 Direito e Argumentação - Parte 2
ção da lei penal, porquanto tão logo praticado o crime os réus evadiram-se do local, demonstrando que pretendiam furtar-se a eventual condenação.
MM. Juiz Federal da 10a Vara oficiou noticiando ter prolatado decisão firmando a respectiva competência para apreciar e julgar os autos da ação penal. Suscitado conflito de competência, o processo ficou paralisado. Julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi declarado competente o Juízo de Direito da Vara do Tribunal do Júri.
O genitor da vítima foi admitido como assistente do Ministério Público, conforme despacho de fis. 286.
Os réus foram interrogados. Max Rogério afirmou que, ao avistarem a vítima no ponto de ônibus, tiveram a idéia de “pregar um susto para ver a vítima correr”. Adquiriram álcool combustível, que foi parcialmente despejado sobre a pessoa que dormia, sendo ateado o fogo. Asseverou que ficaram assustados e saíram do local, tendo em vista a aproximação de um veículo, embora tivessem cogitado ajudar a vítima. Alegou ter consciência de que o álcool combustível é substância altamente inflamável, mas que não esperavam que o fogo “tomasse a proporção que tom ou”, (fls. 292/294)
Antônio Novely Cardoso de Vilanova argumentou que resolveram dar um susto na vítima, que a brincadeira seria com uso de álcool e fósforos. Mencionou a ida ao posto de abastecimento para aquisição do combustível, que não seria utilizado por inteiro, razão pela qual Eron despejou o conteúdo de um dos litros em um gramado situado próximo à parada de ônibus. Assevera que, enquanto Eron deixava cair o combustível sobre a vítima, um dos autores riscou precipitadamente o fósforo, momento em que as labaredas subiram na direção de Eron, que assustou-se e jogou o vasilhame no chão. Narrou que entre os acusados houve o comentário de que “a vítima pegou fogo demais”. Mencionou ter consciência de ser o álcool combustível substância altamente inflamável, mas alegou que sua intenção, como a dos demais, era somente derramar o líquido sobre a vítima, a fim de dar-lhe um susto para vê-la correr, sendo que em m omento algum lhe passou pela cabeça que a vítima poderia morrer, como também ficar lesionada. Assegurou que a intenção era só dar um susto na vítima.
Tomás Oliveira de Almeida, interrogado em Juízo, também relatou que ao ser avistada a vítima surgiu a idéia de atear-lhe fogo para que esta corresse. Confirmou que adquiriram os dois litros de álcool combustível e que, após darem mais algumas voltas, dirigiram-se ao local do crime, onde decidiram esvaziar um dos vasilhames, pois entenderam que não haveria necessidade de utilização dos dois litros de álcool. Afirmou ter sido Eron quem despejou o líquido na vítima e que, ao riscarem os fósforos, a labareda foi em
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 153
direção à garrafa que estava nas mãos de Eron, que a soltou, tendo todos saído do local. Afirmou também ter consciência de que o álcool combustível é substância altamente inflamável, mas que em nenhum m omento lhe passou pela cabeça que o fogo “pegasse com rapidez e queimasse toda a vítima”.
O acusado Eron, ao ser ouvido, informou que todos assentiram na idéia de atear fogo à pessoa que estava no abrigo, para o que adquiriram álcool combustível. Alegou que todos imaginaram que a vítima fosse acordar e correr atrás do grupo para agredi-los. Argumentou ter derramado o conteúdo de um dos vasilhames no gramado e que estava jogando o líquido nos pés da vítima quando iniciou o fogo, “que subiu de baixo para cima”, vindo em direção às suas mãos. Asseverou ter largado o vasilhame, saindo do local às pressas.
Todos os réus apresentaram as defesas prévias, que estão a fls. 337/379, requerendo a realização de diligências. Algumas delas foram deferidas, não o sendo a instauração de incidente de insanidade mental, além da oitiva de testemunha que não constava do rol apresentado com as alegações preliminares.
Na fase instrutória foram ouvidas nove testemunhas arroladas pela acusação e trinta e uma pelas defesas, conforme assentadas em termos de audiência de fls. 390/409, 434/454 e 470/474.
A fls. 485 está carta precatória expedida para depoimento de testemunha de defesa residente em Pau Brasil - Bahia.
Na oportunidade do art. 406 do Código de Processo Penal, o Ministério Público e as defesas apresentaram alegações finais. A Promotora de Justiça, por entender presentes os requisitos necessários à pronúncia, manifestou-se pelo julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, mantidas as qualificadoras e a imputação de corrupção do menor. Asseverou que, “se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a m orte da vítima, no mínim o assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo. A pretendida desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri”.
A assistência da acusação ratificou as razões finais do Ministério Público.A defesa de Eron e Tomás pugnou pela desclassificação do ilícito, argu
m entando que a prova produzida leva à inconteste conclusão de que os de- fendentes, ao realizarem as condutas, não previram o resultado morte e sim a lesão corporal, ocorrendo crime preterdoloso. Pretende o afastamento das qualificadoras, caso pronunciados os réus e a impronúncia com relação ao crime previsto no art. Io da Lei n. 2.252/54.
Na mesma linha, a defesa do réu Max Rogério. Nas alegações, que tecem comentários à personalidade do acusado, diante das informações obtidas
154 Direito e Argumentação - Parte 2
quando da oitiva das testemunhas de defesa, pretende também a revogação da prisão preventiva.
Nas alegações finais apresentadas, a defesa de Antônio Novely rechaça os argumentos do Ministério Público e argumenta que o dolo do agente, ainda que eventual, deve ser provado e não presumido. [...] desclassificação para o ilícito previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal ou no art. 121, § 3o, do mesmo Códex e a impronúncia em relação ao crime descrito no art. Io da Lei n. 2.252/54.
É o relatório. Decido.Finda a instrução, apresentadas as alegações finais, o Juiz sentenciante
terá quatro opções: a pronúncia, porque determina o art. 408 do Código de Processo Penal que, se o juiz se convencer da existência do crime e indícios de que o réu seja o autor, pronuncia-lo-á, dando os motivos do seu convencimento; a impronúncia, quando não se convencer da existência do crime ou de indício suficiente da autoria; a desclassificação, prevista no art. 410 do mesmo diploma, quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso daquele da competência do Tribunal do Júri; e a absolvição sumária, quando ocorrente alguma causa de justificação, na forma do disposto no art. 411 do Código de Processo Penal.
Assim, não tem razão a douta representante do Ministério Público quando afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri. Se por um lado é certo que também durante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da classificação penal, por outro não se pode negar vigência ao disposto no art. 410 do Código de Processo Penal.
Os acusados foram denunciados porque, ao praticarem o crime, teriam agido com animus necancii, na forma do dolo eventual. É o que consta da peça acusatória:
No dia 20 de abril de 1997, por volta de cinco horas, na EQS 703/704 - W3 Sul -
Brasília - DF, os denunciados, juntamente com o menor de idade Gutemberg Nader Almeida Junior, mataram Galdino Jesus dos Santos, índio Pataxó, contra o
qual jogaram substância inflamável, ateando fogo a seguir, assumindo claramen
te o risco de provocar o resultado morte.
Nas alegações finais, o Ministério Público argumentou: “se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo”.
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 155
Não se contende sobre autoria e materialidade do ilícito. Os acusados assumiram a responsabilidade pela prática delituosa. A confissão está corroborada pela ampla prova trazida aos autos. Já a materialidade está patenteada no laudo de exame cadavérico. As fotografias anexadas à peça técnica demonstram as lesões sofridas pela vítima do crime e que, certamente, lhe causaram sofrimento atroz. A conduta dos agentes, sem dúvida, deixou a todos indignados, tal a reprovabilidade da selvagem “brincadeira”, independentemente de tratar-se de mendigo ou índio - ambos seres humanos.
Assim, o único ponto controvertido é o elemento subjetivo. Deve ser salientado que a vontade é elemento integrante do tipo penal. Importante saber se os réus quiseram o resultado m orte ou assumiram o risco de produzi-lo, para fixar a competência constitucional deste Tribunal do Júri, ou se ocorreu outro crime com resultado morte, hipótese em que competente para julgamento o juízo singular.
A atividade hum ana é um acontecimento finalista, não somente causai. Toda conduta humana é finalisticamente dirigida a um resultado. Nosso Código Penal é finalista. Neste sentido o entendimento jurisprudencial:
Após a reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, operada em 1984, a
análise do elemento subjetivo que move a conduta do agente de qualquer delito é medida que se impõe em razão da Lei, eis que o Diploma Penal Substantivo adotou como seu corolário a teoria da Ação Finalista. (TJDF, rel. Des.
Hermenegildo Gonçalves)Hoje, pela doutrina de Welzel (Das deutsche Strafrecht), a denominada “teoria
finalista da ação”, adotada por nosso CP, a culpa integra o tipo. (REsp. n.
40.180/MG, rel. Min. Adhemar Maciel)
A denúncia veio fundada no dolo eventual. Pretendem os réus a desclassificação do ilícito, seja para o crime de lesões corporais seguidas de morte, previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal, para tipo do art. 121, § 3o, ou o do art. 250, § 2o, do mesmo diploma. Desde já afasto a possibilidade de tratar-se somente de crime culposo, pois, no tipo culposo, o agente realiza uma ação cujo fim é lícito mas, por não se conduzir com observância do dever de cuidado, dá causa a um resultado punível. E atear fogo em pessoa que dormia no abrigo de ônibus, para assustá-la, à evidência não é atividade lícita. Também não pode ser aceita a pretendida capitulação do ilícito como incêndio culposo. Os acusados confessaram que atearam fogo na vítima. E o tipo
156 Direito e Argumentação - Parte 2
do crime dc incêndio é a vontade deliberadamente dirigida ao incêndio dc alguma coisa, tendo o agente consciência e vontade de produzir uma situação de perigo comum. Um ser hum ano não é coisa, seja ele índio ou mendigo.
Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o crime de lesões corporais seguidas de morte, denominado “preterdoloso”, em que há dolo quanto à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio. A linha divisória entre ambos é tênue. Cumpre trazer a lição dos doutrinadores a respeito do que sejam as duas figuras em cotejo.
Em suma, há dolo eventual quando o agente prevê como provável e não apenas como possível o resultado e o tenha conscientemente aceito. A situação psíquica do agente em relação ao fato deve ser deduzida das circunstâncias do fato e do caráter dos agentes. No julgamento do AC n. 285.215 - TA- CRIM SP, o Rel. Silva Franco deixou assentado:
O momento volitivo se manifesta na esfera do subjetivo, no íntimo do agente e, deste modo, não é um dado da realidade que possa ser diretamente apreendido. Mas isto não significa que não possa ser extraído do caráter do agente e
de todo o complexo de circunstâncias que cercaram seu atuar.
Traçados os balizamentos, tarefa mais árdua é a de pesquisar, no caso concreto, o animus que conduziu os agentes ao crime. Coloca-se o julgador à frente do dilema: “Queriam os jovens matar aquele que dormia no abrigo de ônibus ou fazer uma brincadeira cujo resultado foi mais grave do que o desejado?” Para obter a difícil resposta sobre o elemento subjetivo, um dos meios a considerar é a potencialidade lesiva do meio empregado, dado bastante relevante. O fogo pode matar, e foi o que ocorreu, mas sem dúvida não é o que normalmente acontece.
No julgamento do Habeas Corpus n. 7.651/97, o Des. Joazil Gardes deixou consignado:
Se perguntarmos: tiro mata? Veneno mata? Enforcamento (esganadura) mata?
Afogamento mata? A resposta inevitável será: mata; mas, se perguntarmos: queimadura mata?, a resposta até mesmo de médicos que não sejam especia
listas em queimados, invariavelmente será: queimadura não mata, isto porque
toda a sorte de queimadura, produzida por fogo ou por substâncias dc efeito análogo, é possível de ser tratada, sendo natural avistarmos pelas ruas e salões
sociais pessoas com rostos, membros e corpos deformados por queimaduras.
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 157
Por outro lado, mais um dado importante evidenciou-se durante a instrução. É que, apesar de terem adquirido dois litros de combustível, logo que chegaram ao locus delicti o conteúdo de um dos vasilhames foi derramado na grama. O laudo de exame de local dem onstra a afirmativa, principalmente a fotografia de fls. 182. A prova técnica, por seu turno, também vem ao encontro da versão dos acusados de que os fósforos foram acesos precipitadamente, enquanto Eron derramava o líquido inflamável sobre a vítima, fazen- do-o largar abruptamente o vasilhame. A fls. 173 dos autos está consignado que “sob o bando do abrigo havia um recipiente plástico, opaco, na cor verde, com as inscrições ‘LUBRAX SJ ÓLEO PARA MOTORES A GASOLINA E ÁLCOOL’-V olum e 1.000 ml, vazio, que se encontrava com a parte superior comburida”.
No interrogatório Antônio Novely afirmou:
(...) que nesse instante alguém cuja identidade o interrogando não se recorda
riscou precipitadamente um fósforo e o jogou na direção do pano, momento em que este começou a pegar fogo e as labaredas subiram na direção de Eron, o qual estava com o litro de combustível em suas mãos; que o interrogando es
tava ao lado de Eron e pôde sentir as labaredas de fogo bem próximo de si e
nesse instante Eron assustou-se e jogou o litro de combustível no chão; que nesse instante todos os quatro correram (...)
O acusado Eron confirmou:
(...) que concomitantemente alguém riscou um fósforo, sem que o interrogan
do saiba quem foi, momento em que iniciou-se o fogo, “que subiu de baixo
para cima”, vindo em direção à mão do interrogando, que imediatamente soltou a garrafa e saiu correndo (...)
As testemunhas que presenciaram a fuga dos réus informaram o estado de ânimo dos mesmos após os fatos: estavam todos afobados. José Maria Gomes asseverou que “quando viu os elementos atravessando correndo a via W3 Sul eles pareciam estar com muita pressa e desesperados”.
Assiste razão à defesa do acusado Antônio Novely quando afirma que desespero e afobação não se coadunam com aqueles que agem com animus necandi.
O caráter dos agentes foi exposto durante a instrução criminal. Por outro lado, as declarações prestadas imediatamente após os fatos demonstram que não havia indiferença na ocorrência do resultado.
158 Direito e Argumentação - Parte 2
Assim, analisada como um todo, a prova dos autos demonstra a ocorrência do crime preterintencional e não do homicídio. A ação inicial dos réus, sem qualquer dúvida, foi dolosa. Não há como afastar a conclusão de que, ao atearem fogo na vítima para assustá-la, sabiam que iriam feri-la. O resultado m orte, entretanto, que lhes escapou à vontade, a eles só pode ser atribuído pela previsibilidade. Qualquer infante sabe dos perigos de mexer com fogo. E também sabe que o fogo queima, ainda mais álcool combustível, líquido altamente inflamável. Os réus também têm este conhecimento. Entretanto, mesmo sabendo perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado, não está presente o dolo eventual. Uma frase constante do depoimento de Max, no auto de prisão em flagrante, sintetiza o que realmente ocorreu. Está a fls. 15: “pegou fogo demais, a gente não queria tanto”. Como já enfocado, assumir o risco não se confunde, em hipótese alguma, com previsibilidade do resultado. Assumir o risco é mais, é assentir no resultado, é querer ou aceitar a respectiva concretização. E necessário que o agente tenha a vontade e não apenas a consciência de correr o risco. E o “ter a vontade” é elemento subjetivo que está totalmente afastado pela prova dos autos, que demonstrou à sociedade que os acusados pretendiam fazer uma brincadeira selvagem, ateando fogo naquele que presumiram ser um mendigo, mas nunca anuíram no resultado morte. Tem razão o Ministério Público quando afirma que “não se brinca com tamanha dor nem de um animal, quanto mais de um desprotegido ser humano”. Acrescento que a reprovabilidade da conduta mais se avulta quando estreme de dúvidas que os acusados tiveram muitas e variadas oportunidades de desistir da selvagem diversão. Por outro lado, agiram de forma censurável, pois, após avistarem a vítima no ponto de ônibus da EQ 703/704 Sul, deslocaram-se a um posto de abastecimento distante do local, nas quadras 400, para adquirir o combustível, dizendo que o faziam porque havia um carro parado por falta de combustível. O acusado Antônio Novely, no interrogatório, asseverou:
(...) que o interrogando não se recorda de quem partiu a idéia de dar o susto
na vítima, sabendo dizer que todos concordaram com a idéia; (...) que em se
guida alguém teve a idéia de que o susto seria aplicado com uso de álcool e fósforos, porém o interrogando não sabe dizer de quem partiu a idéia, mas todos
concordaram com a mesma; que assim combinados, todos se dirigiram para
um posto de gasolina, localizado na 405 sul, salvo engano; que ali chegando todos desceram do veículo e se dirigiram ao frentista alegando que tinham um
carro ali próximo sem combustível e precisariam de um vasilhame para levar
0 Uso dos Argumentos na Prática do Direito 159
até o carro; que o frentista sugeriu que todos olhassem em um latão de lixo
próximo, a fim de procurarem um vasilhame vazio; que todos procuraram e o interrogando não se recorda quem achou os dois litros de óleo vazio, os quais encheram de álcool combustível; [...) que não foram de imediato ao encontro
da vítima, já que depois da compra do combustível ainda rodaram um certo tempo pelas ruas da cidade a fim de procurarem algo para fazer [...] (fls.
296/297)
Por mais ignóbil que tenha sido a conduta irresponsável dos acusados, não queriam eles, nem eventualmente, a morte de Galdino Jesus dos Santos. A emoção e indignação causadas pelo trágico resultado não podem afastar a razão. Assim, os réus devem ser julgados e punidos unicamente pelo crime cometido, que, salvo entendimento diverso do MM. Juiz competente, é o de lesões corporais seguidas de morte. Inexistente o animus necandi (por não terem os acusados querido o trágico resultado ou assumido o risco de produzi-lo, repita-se), está afastada a competência do Tribunal do Júri, devendo os autos ser encaminhados a uma das Varas Criminais, a que couber por distribuição.
Por último cumpre examinar se deve ou não persistir a custódia cautelar dos acusados, diante da desclassificação do ilícito.
Em princípio, salvo entendimento diverso do MM. Juiz a quem couber o julgamento do feito, os réus deverão responder pelo crime previsto no art. 129, § 3o, do Código Penal, verbis:
Art. 1 2 9 - (...|
§ 3o Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o
resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo.
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
A nova capitulação que se delineia não é afiançável e, como sabido, o fato de os réus serem primários e de bons antecedentes não pode, por si só, desautorizar a prisão fundamentalmente decretada. Por outro lado, persistem, ao menos parcialmente, os motivos que levaram à segregação cautelar. Acrescento que a 2'1 Turma Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria, negou habeas corpus impetrado em favor de Max Rogério Alves. Assim, não vislumbrando qualquer maltrato a preceito constitucional que justifique antecipação da decisão que o juiz da causa venha a tomar, deixo de examinar o pedido de liberdade provisória para não subtrair do Juízo competente a direção do processo.
160 Direito e Argumentação - Parte 2
Diante do exposto e com fundamento nos arts. 408, § 4o, e 410 do Código de Processo Penal, desclassifico a imputação de homicídio doloso contra Max Rogério Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida e Eron Chaves Oliveira e declino da competência para uma das Varas Criminais, determinando que, após o decurso do prazo recursal e feitas as anotações de estilo, remetam-se os autos à Distribuição.
P.R.I.Brasília, 9 de agosto de 1997.Sandra de S. M.de F. Mello
Referências bibliográficas
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VIIA Argumentatividade
nos Discursos Jurídicos: Intertextos e Interdiscursos
Aparecida Regina Borges Sellan
O encontro com o direito é diversificado» às vezes conflitivo e incoerente, às vezes linear e conseqüente. Estudar o direito é, assim, uma atividade difícil, que exige não só acuidade, inteligência, preparo, mas também encantamento,
intuição, espontaneidade. [...] Por tudo isso, o direito é 11111 mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana. Suas raízes estão encerra
das nesta força oculta que nos move a sentir remorso quando agimos indig
namente e que se apodera de nós quando vemos alguém sofrer uma injustiça. Introduzir-se ao estudo do direito é, pois, entronizar-se num mundo fantás
tico de piedade e impiedade, de sublimação e perversão, pois o direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como 11111 instrumento para propósitos ocultos e inconfessáveis.
Estudá-lo sem paixão é como sorver um vinho precioso para saciar a sede. Mas estudá-lo sem interesse pelo seu domínio técnico, seus conceitos, seus princí
pios, é inebriar-se numa fantasia inconseqüente. Isto exige, pois, precisão e rigor científico, mas também abertura para o humano, para a história, para o so
cial, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como obra sempre por acabar. (3, p.25)
O discurso jurídico, em razão do universo no qual está inscrito, uma área específica profissional, e das práticas sociais também específicas que ordena, pode ser compreendido, ainda que envolto em grande complexidade, como um discurso técnico. Dessa maneira, está sujeito à análise de sua produção como processo e produto em busca de sua regularidade. Por evidenciar suas condições de produção, pelo reconhecimento dos sujeitos participantes e suas atitudes, em
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determinado lugar e tempo, tal discurso reflete os paradigmas que o legitimam. Por esse raciocínio, Proença postula que “pensar no direito é envolver-se num turbilhão de idéias que se complementam ou se contrapõem; idéias nossas ou de outros, além de nossas paráfrases de idéias alheias” (11, p.42).
Tais palavras referenciam este estudo por apontarem para o que se considera textualidade jurídica, pela construção da argumentação por meio de recursos próprios da linguagem humana, circunscrita a uma prática discursiva social na qual se vê presentificar um conjunto de outros textos e de outros discursos. Por essa razão, a intertextualidade, em sentidos amplo e restrito, e a interdiscursividade são as bases deste estudo.
Argumentatividade e discurso jurídico
Segundo Pardo (9, p. 119), o discurso jurídico é essencialmente organizado por um texto argumentativo. Nessa acepção, compreende-se o texto como a manifestação lingüística do discurso. Para a autora,
um texto necessita ir delineando algum argumento, uma necessidade do falan
te de predicar algo, sobre o que depois possa voltar a predicar, de modo a aten
der aos fins de um contexto no qual se circunscreve a própria situação de fala, a necessidade de um dizer, com caráter pragmático [tradução nossa].
Lavandera (7) postula a criação de um texto avançar mediante estratégias interdependentes essencialmente pragmáticas, chamadas argumentativas. Para a autora, argumentatividade não coincide com argumentação nem a im plica. Um texto pode construir-se com estratégias argumentativas e não chegar a construir uma argumentação. Por sua visão, a argumentatividade é, pois, um conceito pragmático; a argumentação, um conceito semântico. As estratégias argumentativas estão dirigidas para o texto poder ter continuidade. Podem estar implementadas por recursos distintos, mas sua função definida cria um espaço lingüístico para o mesmo emissor poder prosseguir.
Vignaux (12) define o discurso argumentativo como o que, partindo de uma situação determinada do falante no seio de uma formação social, assinala uma posição desse falante acerca de um tema ou um conjunto de temas que reflita - de maneira direta, não direta ou disfarçada - sua posição na formação social considerada. Por essa concepção, pode-se compreender a posição do falante, proposta pelo autor, estar sempre determinada por um outro, ao qual o orador pode apelar ou não, mas que intervém como referencial de-