LAZZARINI, Sérgio. Reinventando o Capitalismo de Estado

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Aldo Musacchio e Sergio G. Lazzarini reinventando o capitalismo de estado O Leviatã nos negócios: Brasil e outros países tradução Afonso Celso da Cunha Serra

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Introdução da obra de sérgio lazzarini acerca do capitalismo de estado brasileiro

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Aldo Musacchio e Sergio G. Lazzarinireinventando ocapitalismo de estadoO Leviat nos negcios: Brasil e outros pasestraduo Afonso Celso da Cunha Serra75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 3 05/12/14 13:59Copyright 2014 by the President and Fellows of Harvard College Published byarrangement with Harvard University PressA Portfolio-Penguin uma diviso da Editora Schwarcz s.a.Graa atualizada segundo o Acordo Ortogrco da Lngua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.portfolio and the pictorial representation of the javelin thrower are trademarks of Penguin Group (usa) Inc. and are used under license. penguin is a trademark of Penguin Books Limited and is used under license.ttulo originalReinventing State Capitalism: Leviathan in Business, Brazil and BeyondcapaRobinson Friedefoto de capaCssio Vasconcellos/ #SambaPhotopreparaoLuciana Araujondice remissivoProbo PolettirevisoMarise S. Leal, Ana Maria Barbosa e Adriana Bairradareviso tcnicaJoo Mancel P. de Mello e Vinicius CarrascoDados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)Musacchio, AldoReinventando o capitalismo de Estado : o Leviat nos negcios : Brasil e outros pases / Aldo Musacchio e Sergio G. Lazzarini; traduo Afonso Celso da Cunha Serra 1a ed. So Paulo :Portfolio-Penguin, 2015.Ttulo original: Reinventing State Capitalism: Leviathan in Business, Brazil and Beyond.isbn 978-85-8285-004-61. Brasil Condies econmicas 2. Brasil Condies sociais 3. Brasil Poltica econmica 4. Capitalismo 5. Economia i. Lazzarini, Sergio G. ii. Ttulo.14-09452 cdd-330.15ndice para catlogo sistemtico:1. Capitalismo : Economia 330.15[2015]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.portfolio-penguin.com.bratendimentoaoleitor@portfoliopenguin.com.br75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 4 05/12/14 13:59sumrioIntroduo9I. A reinveno do capitalismo de Estado no mundo1.Ascenso e queda do Leviat como empreendedor35 2.Vises sobre o capitalismo de Estado74II. O Leviat como empreendedor e como investidor majoritrio no Brasil3.Evoluo do capitalismo de Estado no Brasil1034.O Leviat como gestor: So importantes os ceos deempresas estatais?1425.A queda do Leviat como empreendedor no Brasil1686.Domando o Leviat? Governana em empresaspetrolferas estatais19375018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 7 05/12/14 13:59III. O Leviat como investidor minoritrio7.O Leviat como acionista minoritrio2298.A tentao do Leviat: O caso Vale2549.O Leviat como emprestador: Bancos de desenvolvimentoe capitalismo de Estado27110.O Leviat como emprestador: Poltica industrial versuspoltica partidria300Concluso e ensinamentos322Agradecimentos341Notas345ndice remissivo39175018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 8 05/12/14 13:599introduoem maio de 2007, a jbs, empresa brasileira at ento relativamente desconhecida, adquiriu a Swift & Co por 1,4 bilho de dlares e, de uma hora para a outra, tornou-se a maior processadora de carnes do mundo. Dois anos depois, em setembro de 2009, a jbs fez ou-tra manobra surpreendente ao adquirir a Pilgrims Pride, tradicional processadora de carnes americana, por 2,8 bilhes de dlares. Onde uma empresa brasileira mais ou menos desconhecida teria obtido os fundos necessrios para nanciar essas aquisies? A resposta simples. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social empresa pblica federal brasileira, conhecida como bndes es-colheu a jbs como campe nacional e concedeu-lhe nanciamento para tornar-se ator dominante no mercado global de carne bovina e de frango. Em consequncia do investimento de 4 bilhes de dlares na jbs, o bndes acabou controlando 30,4% da composio acionria da empresa, tornando-se o maior acionista minoritrio da Swift e da Pilgrims Pride.1 Essas transaes, como muitas outras conduzi-das por governos e bancos de desenvolvimento em todo o mundo, suscitam questes interessantes. Os governos devem usar bancos de desenvolvimento, como o bndes, para apoiar empresas privadas? Os 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 9 05/12/14 13:5910reinventando o capitalismo de estadogovernos devem apoiar empresas privadas, tornando-se acionistas minoritrios? Quais so as implicaes desses investimentos para as empresas e para os pases? Em julho de 2010, enquanto a histria da jbs se desenrolava no Brasil, um consrcio de bancos de investimento no outro lado do mundo lanava a oferta pblica inicial (ipo) do Agricultural Bank of China (abc) nas Bolsas de Valores de Xangai e de Hong Kong. Tra-dicionalmente, o abc sempre atuara como banco poltico, ou seja, instituio nanceira que emprestava de acordo com os interesses dos lderes do Partido Comunista chins. Consequentemente, em 2008, mais de 25% de seus emprstimos eram considerados de liquidao duvidosa. Para consertar o abc antes do ipo, o governo socorreu a instituio nanceira, limpou seu balano patrimonial e reformulou seus processos de governana. O interesse dos investidores foi enorme. Tratava-se do maior IPO do mundo na poca. Levantou quase 22 bilhes de dlares em aes 15% do capital da empresa e, em dois meses, o valor das aes aumen-tou em quase 30% em relao ao preo de emisso. No estava claro, entretanto, se os investidores que compraram as aes sabiam onde estavam entrando. Eles estariam mal orientados? O governo chins merecia conana como investidor majoritrio? Em ambos os casos, os investidores se defrontavam com algo que era, sem dvida, capitalismo de Estado, mas no se podia negar que no era o mesmo capitalismo de Estado com que estavam acostuma-dos. Neste livro, estudamos a ascenso dessas novas formas, em que o Estado trabalha de mos dadas com os investidores privados em novos arranjos de governana. Denimos capitalismo de Estado como a inuncia difusa do governo na economia, seja mediante partici-pao acionria minoritria ou majoritria nas empresas, seja por meio do fornecimento de crdito subsidiado e/ou de outros privilgios a negcios privados. As novas variedades de capitalismo de Estado diferem dos modelos mais tradicionais, em que os governos so pro-prietrios e gestores de empresas estatais (soes),2 como extenses da burocracia pblica. Denominamos esse modelo tradicional Leviat como empreendedor.75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 10 05/12/14 13:5911introduoIdenticamos dois novos modelos de capitalismo de Estado que vo alm do modelo de Leviat como empreendedor. No modelo Le-viat como investidor majoritrio, assim como no exemplo do Agri-cultural Bank of China, o Estado ainda o acionista controlador, mas as empresas estatais apresentam caractersticas de governana dife-rentes que possibilitam a participao de investidores privados. No modelo Leviat como investidor minoritrio, o capitalismo de Estado adota forma mais hbrida, em que o Estado renuncia ao controle de suas empresas em favor de investidores privados, mas continua pre-sente, com participaes acionrias minoritrias, por meio de fundos de penso, de fundos soberanos e do prprio governo. Neste ltimo modelo, tambm inclumos a autorizao de emprstimos a empresas privadas por bancos de desenvolvimento e outras instituies nan-ceiras estatais. Em nossa opinio, portanto, o surgimento de campees nacionais, como a jbs, cuja expanso se baseou em capital subsidiado pelo governo do pas de origem, manifestao do modelo do Leviat como investidor minoritrio.3Os exemplos do Agricultural Bank of China e da jbs no so ex-cees curiosas. Conforme alguns clculos, as empresas sob controle governamental respondem por um quinto do total do valor de mercado das aes negociadas em Bolsas de Valores em todo o mundo.4 Na Itlia, por exemplo, as empresas estatais listadas em Bolsa (com participao acionria minoritria ou majoritria do governo) respondem por mais de 20% da capitalizao do mercado de aes. Na Grcia, a proporo chega a 30%, enquanto nos Pases Baixos e na Sucia est mais perto de 5%.5 Nos grandes mercados, como Rssia e Brasil, as empresas con-troladas pelo governo ou em que o Estado tem participao signicativa dominam as negociaes e respondem por algo entre 30% a 40% da capitalizao de mercado. Na China, as empresas em que o governo acionista controlador respondem por mais de 60% da capitalizao do mercado de aes.6 Alm disso, em nossas anlises de empresas estatais em numerosos pases emergentes (ver captulo 1), o modelo do Levia-t como investidor minoritrio predominante, abrangendo cerca de metade das empresas em que o governo tem participao acionria (as demais so estatais com participao acionria majoritria do Estado). 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 11 05/12/14 13:5912reinventando o capitalismo de estadoPortanto, muito provvel que os investidores globais pelo me-nos tenham considerado as empresas estatais como possveis alvos de investimentos. De fato, nove dos quinze maiores ipos do mundo entre 2005 e 2012 foram vendas de participaes acionrias mino-ritrias por estatais, a maioria delas de pases em desenvolvimento.7 Uma das razes pelas quais os investidores no temem comprar esses ttulos mobilirios o fato de os governos dividirem os rendimentos com eles, o que no mais das vezes resulta em retornos mais altos. Por exemplo, de acordo com um relatrio do Morgan Stanley, as aes de empresas estatais negociadas nas Bolsas de Valores da Europa, do Oriente Mdio, da frica e da Amrica Latina, entre 2001 e 2012, geraram retornos superiores [aos] do benchmark [ndices que lhes serviam de referncia].8Alm disso, as empresas que estudamos no so de modo algum pequenas. As estatais, tipicamente, esto entre as maiores companhias abertas dos mercados de aes dos pases em desenvolvimento. De fato, as grandes estatais tambm so algumas das empresas mais lucrativas do mundo. O nmero de estatais entre as cem maiores empresas da lista da Fortune Global 500, que classica as empresas por receita, aumentou de onze, em 2005, para 25, em 2010. Em 2005, no havia estatais entre as dez primeiras colocadas, mas, em 2010, j havia qua-tro Japan Port Holding, Sinopec e China National Petroleum (duas petroleiras estatais chinesas), e State Grid (concessionria de servios pblicos chinesa).9Muitos observadores, no entanto, veem com apreenso o surgimen-to de novas formas de capitalismo de Estado. O analista poltico Ian Bremmer10 caracteriza esse capitalismo como um sistema em que o Estado atua no papel de principal ator econmico e usa os mercados basicamente para ganhos polticos.11 Uma conferncia na Harvard Business School, reunindo fundadores e ceos de algumas das maiores empresas do mundo, identicou o capitalismo de Estado e seu apoio a campees nacionais como uma das dez mais importantes ameaas ao capitalismo de mercado.12 Os gestores de empresas privadas no raro se queixam de enfrentar concorrentes que contam com forte apoio ou subsdio dos governos locais. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 12 05/12/14 13:5913introduoEmbora nem todos os investidores e formuladores de polticas expressem a mesma apreenso,13 para muitos as preocupaes de-correm da vasta literatura terica e emprica, mostrando que, em mdia, as empresas estatais so menos ecientes que suas contra-partes do setor privado (ver, a ttulo de reviso, Megginson e Netter, 2001).14, 15 Nessa literatura, encontram-se trs explicaes amplas para a inecincia da propriedade estatal.16 De acordo com a viso de agncia,* as estatais so inecientes porque seus gestores carecem de incentivos poderosos e de monitoramento adequado, seja dos con-selhos de administrao, seja do mercado, ou simplesmente porque os gestores, para comear, foram mal selecionados.17 De acordo com a viso social, empresas estatais tm objetivos sociais que s vezes conitam com a rentabilidade. Por exemplo, podem ser incumbidas de maximizar o emprego ou de abrir unidades de produo deci-trias em reas pobres.18 De acordo com a viso poltica, as fontes de inecincia residem no fato de os polticos usarem as empresas estatais em proveito prprio ou para o benefcio de empresrios com boas relaes polticas. Alm disso, os gestores de grandes estatais no sofrem presso o suciente para apresentar resultados, pois sa-bem que o governo os socorrer se levarem as empresas falncia.19 A participao do Estado, portanto, alimentaria a mo espoliadora prejudicial ecincia econmica.20Em contraste, os defensores da viso de poltica industrial veem o investimento do Estado como maneira de promover o desenvolvimento alm do que seria possvel em condies de livre mercado. Desse ponto de vista, os governos deveriam ajudar as empresas a desenvolver novas capacidades, diminuindo as restries de capital,21 reduzindo os custos de pesquisa e desenvolvimento ou coordenando os recursos e as empre-sas em busca de novos projetos com maiores efeitos de externalidades *Problemas de agncia podem ocorrer em uma empresa quando h separao entre propriedade e controle, o que implica desalinho ou conito de interesses entre os gestores e os proprietrios ou acionistas. (N. E.) 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 13 05/12/14 13:5914reinventando o capitalismo de estadopositivas.* 22 De acordo com essa viso, a criao de novas capacidades na economia local exige a mo solidria do governo para mitigar todos os tipos de falhas de mercado. O objetivo deste livro no avaliar o grau de acerto das diferentes vises, tampouco pretende testar se as empresas privadas so mais e-cientes que as estatais. O propsito deste livro compreender (a) como o mundo veio a adotar novas formas de capitalismo de Estado e (b) em que circunstncias essas novas formas superam alguns dos problemas salientados pela literatura e solucionam insucincias do mercado que inibem o desenvolvimento. Embora cada captulo proponha e verique hipteses explcitas relacionadas com diferentes vises do papel das empresas estatais, o livro como um todo trata das nuances da inter-veno do Estado e das condies que tornam essa atuao mais ou menos ecaz.23Alm disso, no tentamos argumentar que a privatizao no seja poltica desejvel. Achamos, porm, que o retrocesso em relao s privatizaes plenas em grandes mercados desenvolvidos e em desen-volvimento torna relevante o estudo de novas formas de capitalismo de Estado. Isto , mesmo que as novas formas de propriedade estatal que estudamos sejam uma segunda melhor soluo [second-best], elas em geral so solues politicamente aceitveis. Nos mercados emer-gentes, os governos depararam com forte oposio poltica a progra-mas de privatizao abrangentes. Shirley24 mostra que, na Amrica Latina, a rejeio popular privatizao aumentou entre a dcada de 1990 e comeo da dcada de 2000. Nos pases do bric, os programas de privatizao quase pararam no Brasil e na ndia e vm prosseguin-*Uma atividade gera externalidades positivas quando seus benefcios sociais vo alm dos benefcios gerados para os agentes que desempenham essa atividade. o caso de pesquisa e desenvolvimento que induzem inovaes. Por exemplo, uma inovao produzida por uma empresa do setor A pode beneciar empresas do setor B, e os retornos sociais associados inovao (os benefcios lquidos da empresa do setor A, que promoveu a inovao, e os benefcios gerados para as empresas do setor B, que utilizaro a inovao) so maiores que o retorno privado, isto , que os benefcios lquidos gerados pela empresa do setor A. (N. E.)75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 14 05/12/14 13:5915introduodo em ritmo gradual na China e na Rssia, com esses governos agora preferindo privatizar apenas pequena parcela do capital prprio de suas grandes estatais. Por m, tampouco argumentamos que as novas variedades de ca-pitalismo de Estado so universalmente melhores que as anteriores. Ressaltamos que as novas variedades tambm tm limites quando se trata de refrear a tentao do governo de intervir politicamente nas empresas. No modelo em que o Leviat investidor majoritrio, por exemplo, o governo ainda investidor controlador e, na falta de freios e contrapesos, pode ser levado a intervir em setores estrat-gicos, como energia, minerao e servios de utilidade pblica. No modelo em que o Leviat acionista minoritrio, os investimentos de capital prprio ou as concesses de emprstimos podem na verdade beneciar capitalistas com ligaes polticas em vez de empresas com restries nanceiras.A reinveno do capitalismo de EstadoComo evoluram as novas formas de capitalismo de Estado nos lti-mos anos? Para alguns observadores, a ascenso do capitalismo de Estado ao proscnio dos mercados globais consequncia da crise nanceira global que comeou em 2008. Bremmer,25 por exemplo, v a crise como um abalo que levou ao ressurgimento alarmante do capitalismo de Estado. Parte da preocupao decorre do fato de que, mesmo numa economia liberal como a dos Estados Unidos, a crise levou o governo a socorrer empresas como a General Motors e a aig, um grande grupo segurador, tornando-se acionista minoritrio daquela e acionista majoritrio desta. Como mostram os exemplos do Agricultural Bank of China e da jbs, contudo, o capitalismo de Estado estava vivo e ativo e at em expanso antes da crise.26 Empresas de propriedade estatal e operadas pelo governo foram privatizadas em massa nas dcadas de 1980, 1990 e no comeo da dcada de 2000, mas a participao e a inuncia do Estado nessas empresas prosseguiu. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 15 05/12/14 13:5916reinventando o capitalismo de estadoO capitalismo de Estado atingiu o auge na dcada de 1970, quando os governos europeus estatizaram grande nmero de empresas. Mais ou menos na mesma poca, os governos de pases em desenvolvimento estatizaram empresas ou criaram dezenas ou centenas de novas empre-sas, passando condio de proprietrios desses empreendimentos. Em consequncia, no nal da dcada de 1970, a produo das estatais como proporo do pib alcanou 10% em economias mistas e quase 16% nos pases em desenvolvimento. Em seguida, entre os anos 1970 e a virada para o sculo xxi, os governos mudaram a maneira como controlavam e gerenciavam as empresas. Na dcada de 1980, os governos e as agncias multilaterais zeram experincias de reformas nas estatais como meio para ate-nuar as diculdades nanceiras com que defrontavam as empresas e os prprios Estados. As autoridades pblicas tentaram mudar a governana, estabelecer contratos de desempenho com as empresas e com os gestores e desenvolver programas de treinamento para os seus executivos.27Esses esforos, porm, foram inteis, e o custo poltico da privati-zao comeou a parecer pequeno em comparao com as perdas que aigiam as empresas estatais. Por exemplo, em consequncia dos cho-ques do petrleo da dcada de 1970 e do aperto de liquidez do comeo da dcada de 1980, as estatais de todo o mundo incorreram em perdas mdias equivalentes a 2% do pib, cifra que alcanava 4% nos pases em desenvolvimento.28 Esses prejuzos por m se converteram em dcits nos oramentos nacionais, que acabaram explodindo quando as taxas de juros dispararam nos Estados Unidos, em 1979, e depois que os mer-cados de emprstimos se fecharam para os pases em desenvolvimento na esteira do calote da dvida do Mxico, em 1982.29 Finalmente, em consequncia desses choques macroeconmicos e da queda do bloco socialista, os governos acabaram privatizando milhares de empresas,30 abrindo suas economias para o comrcio internacional e, aos poucos, desmantelando os controles de capital. No entanto, como a privatizao desenfreada envolvia altos custos polticos, algumas estatais foram privatizadas apenas em par-te. Em todo o mundo, os governos se tornaram acionistas controla-75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 16 05/12/14 13:5917introduodores ou investidores minoritrios de grande nmero e de grande va-riedade de empresas, como se v com clareza no estudo de Bortolotti e Faccio31 sobre empresas estatais nos pases da ocde (Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico), assim como nas evidncias que apresentamos no captulo 1 referentes a amostra mais ampla de pases. Por volta de 2005, enquanto pases como Austr-lia, ustria, Blgica, Chile, Dinamarca, Nova Zelndia, Eslovnia e Reino Unido possuam menos de cinquenta estatais controladas pelo governo, outros pases como Canad, Finlndia, Frana, Grcia, It-lia, Israel, Noruega e Sucia tinham de cinquenta a cem. Repblica Tcheca, Alemanha, Coreia, Mxico, Polnia e Espanha, por sua vez, tinham mais de cem dessas empresas. Relatrio mais recente da ocde32 descobriu que as empresas estatais tinham capital prprio total de 1,4 trilho de dlares, do qual 61% era representado por companhias em que o governo detinha participaes minoritrias. Mercados emergentes, como Rssia e China, tinham milhares de estatais, e outros como Brasil, ndia, Polnia e frica do Sul tinham mais de duzentas estatais, no nvel federal, e muitas outras nos trs nveis: federal, estadual ou municipal. Portanto, a organizao do capitalismo de Estado e da propriedade estatal que observamos na virada para o sculo xxi o desfecho de um longo processo de mudana, com a adoo gradual do que se aprendeu ao longo de trinta anos de pesquisas sobre governana e teorias de agncia,33 e aps muitas dcadas de experimentao com reformas de estatais e privatizaes plenas e parciais.* 34Estamos conscientes de que, no passado, a composio acionria das empresas estatais nos Estados Unidos e na Europa em geral inclua governos na condio de minoritrios.35 No sculo xxi, entretanto, as estruturas de propriedade de muitas estatais se ajustaram a regras mais *As teorias de agncia estudam mecanismos que tm por objetivo mitigar problemas relacionados ao desalinho de interesses entre um principal (por exemplo, o conselho de administrao de uma empresa) e agentes que tomem decises em seu nome (como os gestores da empresa). (N. E.) 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 17 05/12/14 13:5918reinventando o capitalismo de estadorigorosas de governana e a exigncias mais severas para a listagem das empresas em Bolsas de Valores. Novas variedades de capitalismo de EstadoNossa conceituao de novas formas de capitalismo de Estado, portan-to, cheia de nuanas para evitar as vises dicotmicas que permeiam parte da literatura. Bremmer36 trata o capitalismo de Estado como modelo geral de capitalismo, imbricado com uma forma idealizada de economia de mercado liberal em que o governo no intervm na direo das empresas nem na alocao do crdito. Para ns, h mais tons de cinza entre os extremos. Ampliamos, portanto, o espectro da interveno do Estado para incluir no s o modelo em que o Leviat empreendedor controlando e gerenciando as empresas estatais37 , mas tambm os modelos em que o Leviat investidor majoritrio ou investidor minoritrio (ver gura I).38Figura I. Variedades de capitalismo de Estado: Modelos de organizao alternativosLeviat como empreendedor (proprietrio/gestor)Propriedade e controle total das empresas estatais pelo Estado, com autonomia e transparncia limitadas. Leviat como investidor majoritrioEmpresas parcialmente privatizadas com controle estatal majoritrio (por exemplo, estatais de capital aberto, com mais autonomia e transparncia). Empresas holding de propriedade estatal (state-owned holding companies SOHCs).Leviat como investidor minoritrioEmpresas parcialmente privatizadas com capital prprio residual e minoritrio estatal. Participaes minoritrias de SOHCs.Empresas que recebem emprstimos e capital prprio de bancos de desenvolvimento estatais. Empresas com investimentos de fundos soberanos (Sovereign Wealth Funds, SWFs) e de outros fundos controlados pelo Estado (por exemplo, fundos de penso e empresas seguradoras). EmpresasprivadasCapitalismo de Estado ps-199075018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 18 05/12/14 13:5919introduoNo modelo do Leviat como investidor majoritrio, o governo con-verte em empresa ou lista em Bolsa de Valores empreendimentos p-blicos ou estatais. Essa uma forma de privatizao parcial em que o Estado retm o controle acionrio enquanto atrai investidores priva-dos minoritrios. Embora haja amplas variaes na congurao de governana dessas empresas, as estatais de capital aberto tendem, em geral, a ter relativa autonomia nanceira, gesto prossional, conselhos de administrao com alguns membros independentes e auditoria das demonstraes nanceiras por auditores independentes. Em alguns casos, os governos exercem o controle como investidores majoritrios por meio das denominadas empresas holding de propriedade estatal (sohcs) estruturas de propriedade piramidais em que o governo proprietrio majoritrio da empresa, que, ento, detm participaes majoritrias ou minoritrias no capital prprio de outras empresas.39Os governos tambm podem inuenciar indiretamente a economia, atuando como acionista minoritrio e fornecedor de emprstimos de empresas privadas. Esse o modelo que denominamos Leviat como investidor minoritrio. Trata-se de capitalismo de Estado mais matiza-do e hbrido em que participantes privados gerenciam a empresa que o governo deseja apoiar com recursos nanceiros. Em nossa opinio, esse modelo de capitalismo de Estado est menos sujeito aos problemas de agncia e s injunes sociais que aigem as empresas sob a proprieda-de e o controle integral do governo. Alm disso, a interveno poltica tambm deve ser baixa ou mnima (embora presente) nessa forma de propriedade estatal.40A participao minoritria do Estado em empresas fenmeno cres-cente em todo o mundo. Argumentamos que vrios so os canais pelos quais os Estados atuam como acionistas minoritrios, como manter diretamente aes residuais em empresas parcialmente privatizadas e usar empresas holding de propriedade estatal para manter partici-paes minoritrias em vrias empresas controladas por investidores privados. Nesse modelo, os governos tambm usam bancos de desen-volvimento, fundos soberanos (swfs) e outros fundos controlados pelo Estado (como fundos de penso e seguradoras) para emprestar ou in-vestir em empresas privadas. Na ndia, por exemplo, a Life Insurance 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 19 05/12/14 13:5920reinventando o capitalismo de estadoCorporation praticamente atua como empresa holding do governo com investimentos em torno de 50 bilhes de dlares em setembro de 2011. No Brasil, como mostra o exemplo da jbs, o bndes injetou dinheiro ativamente em empresas locais. Para resumir as diferenas entre os vrios modelos de capitalismo de Estado, a tabela i explica as principais fontes de inecincia em empresas estatais, de acordo com a viso de agncia, com a viso social e com a viso poltica de como essas falhas poderiam ser abordadas pelo Leviat nos modelos de investidor majoritrio e de investidor minoritrio. Somos, no entanto, cautelosos porque, mesmo que esses novos modelos de capitalismo de Estado tenham melhorado os incentivos e o monitoramento dentro da empresa e, em alguns casos, tenham blindado as estatais contra interferncias polticas diretas, os gover-nos ainda podem intervir e, em alguns casos, de fato intervm. Esses novos modelos tm seus limites e, em alguns casos, podem entrar em colapso quando a tentao do governo para intervir se torna irresistvel, por exemplo, durante grave crise econmica ou antes de eleio muito acirrada. Como analisamos em todo o livro, reduzir a interveno po-ltica no modelo em que o governo acionista majoritrio ou reduzir os problemas de agncia no modelo em que acionista minoritrio depender no s da garantia de observncia, no mbito privado, dos direitos dos investidores (por exemplo, com base nos prprios estatu-tos da empresa e por meio da capacidade dos mercados de aes e das agncias de rating de evitar abusos contra os acionistas minoritrios), mas tambm das protees legais e regulatrias que atam as mos do governo e evitam interferncias discricionrias. Nos dois ltimos captulos do livro, atentamos para alm do envol-vimento do governo como acionista majoritrio ou minoritrio a m de examinar os casos em que os governos usam bancos de desenvolvimento de propriedade estatal para oferecer s empresas privadas emprstimos subsidiados a longo prazo. Os bancos de desenvolvimento, em especial, so veculos importantes, e pouco estudados, de participao minorit-ria do Estado. Essas instituies devem ser intermedirios nanceiros relativamente autnomos, especializados em prover crdito de longo 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 20 05/12/14 13:59Teoria da ineficincia da empresa estatalTabela I. Teorias das eficincias e ineficincias das empresas estataisViso socialViso polticaO Leviat como empreendedor(isto , proprietrio e gestor)O Leviat como investidor majoritrioDuplo resultado (por exemplo, maximizao do lucro juntamente com outros objetivos sociais, como inflao baixa ou emprego alto). Maximizao do valor para os acionistas suscetvel de interferncias polticas, se a empresa no estiver isolada. Probabilidade de conflitos se a busca da lucratividade pelos acionistas minoritrios se chocar com a busca de objetivos sociais e polticos pelos governos. Horizonte de longo prazo; governo como investidor paciente que tolera perdas. Probabilidade de objetivos de mais curto prazo: os mercados geralmente so impacientes com os prejuzos; as presses do mercado, no entanto, podem ajudar a evitar presses de curto prazo resultantes dos ciclos polticos. Gestores profissionais, selecionados pelo conselho de administrao. O governo exerce forte influncia sobre o investidor majoritrio. O Leviat como investidor minoritrioMaximizao do valor para os acionistas. Minimizao da interveno do governo em busca de objetivos sociais (exceto nos casos em que os governos retm capacidade de interveno residual). Predomnio do curto prazo para agradar os analistas de mercado e os investidores. Gestores profissionais selecionados pelo conselho de administrao. A opinio do governo s importa quando ele acionista importante ou quando entra em conluio com outros acionistas.Nomeao dos CEOs com base em outros critrios que no o mrito (por exemplo, ligaes polticas). O efeito reduzido se a empresa estiver imune a intervenes polticas. Pouca interferncia poltica na gesto, a no ser nos setores em que o governo tem a tentao de intervir (por exemplo, setores de recursos naturais) e quando o governo entra em conluio com outros acionistas minoritrios. Os governos usam as empresas estatais para atenuar os ciclos econmicos (por exemplo, admitir mais ou demitir menos trabalhadores que o necessrio). No h risco claro de falncia (os governos provavelmente as socorrero). Grandes limitaes oramentrias, exceto quando a empresa escolhida como campe nacional. Nesse caso pode ser socorrida se for considerada grande demais ou importante demais para falir. (continua)Poucas limitaes oramentrias (socorro pelo governo). 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 21 05/12/14 13:59Teoria da ineficincia da empresa estatalTabela I. (continuao)Viso de agnciaO Leviat como empreendedor(isto , proprietrio e gestor)O Leviat como investidor majoritrioOs gestores tm poucos incentivos.Maior probabilidade de remunerao por desempenho, de bnus e de opes sobre aes (os incentivos talvez no sejam to poderosos quanto os de empresas privadas). Difcil avaliar o desempenho (os indicadores financeiros no so suficientes, no fcil medir os objetivos sociais e polticos). Os preos das aes e os ndices financeiros funcionam como critrios de avaliao do desempenho. A satisfao e o feedback dos clientes atuam como indicadores de qualidade dos bens e/ou servios. Conselho de administrao com alguns membros independentes e alguns nomeados polticos; dependendo dos nmeros, talvez promova o equilbrio de foras entre o governo e o CEO. O governo, porm, pode cooptar membros do conselho de administrao. O Leviat como investidor minoritrioIncentivos poderosos.Preos das aes e ndices financeiros como principais critrios de avaliao do desempenho.O conselho de administrao atua como principal do CEO, enquanto este exerce suas funes como agente daquele (monitoramento/punio; a eficcia pode variar).Mau monitoramento: inexistncia de conselho de administrao (cujas funes so exercidas pelos ministros) ou predomnio de conselho de administrao constitudo com base em critrios polticos (poucos freios e contrapesos). Os conselhos de administrao podem demitir gestores com mau desempenho.O conselho de administrao pode demitir gestores com mau desempenho. No h punio clara para os gestores que apresentam mau desempenho. Melhoria da transparncia; em vrios casos, as demonstraes financeiras seguem normas de contabilidade nacionais ou internacionais. Melhoria da transparncia; na maioria dos casos, as demonstraes financeiras seguem normas de contabilidade nacionais ou internacionais. Falta de transparncia: informaes financeiras incompletas. Teoria da ineficincia da empresa estatalTabela I. (continuao)Viso de agnciaO Leviat como empreendedor(isto , proprietrio e gestor)O Leviat como investidor majoritrioOs gestores tm poucos incentivos.Maior probabilidade de remunerao por desempenho, de bnus e de opes sobre aes (os incentivos talvez no sejam to poderosos quanto os de empresas privadas). Difcil avaliar o desempenho (os indicadores financeiros no so suficientes, no fcil medir os objetivos sociais e polticos). Os preos das aes e os ndices financeiros funcionam como critrios de avaliao do desempenho. A satisfao e o feedback dos clientes atuam como indicadores de qualidade dos bens e/ou servios. Conselho de administrao com alguns membros independentes e alguns nomeados polticos; dependendo dos nmeros, talvez promova o equilbrio de foras entre o governo e o CEO. O governo, porm, pode cooptar membros do conselho de administrao. O Leviat como investidor minoritrioIncentivos poderosos.Preos das aes e ndices financeiros como principais critrios de avaliao do desempenho.O conselho de administrao atua como principal do CEO, enquanto este exerce suas funes como agente daquele (monitoramento/punio; a eficcia pode variar).Mau monitoramento: inexistncia de conselho de administrao (cujas funes so exercidas pelos ministros) ou predomnio de conselho de administrao constitudo com base em critrios polticos (poucos freios e contrapesos). Os conselhos de administrao podem demitir gestores com mau desempenho.O conselho de administrao pode demitir gestores com mau desempenho. No h punio clara para os gestores que apresentam mau desempenho. Melhoria da transparncia; em vrios casos, as demonstraes financeiras seguem normas de contabilidade nacionais ou internacionais. Melhoria da transparncia; na maioria dos casos, as demonstraes financeiras seguem normas de contabilidade nacionais ou internacionais. Falta de transparncia: informaes financeiras incompletas. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 22 05/12/14 13:5923introduoprazo, geralmente subsidiado, para promover a industrializao ou -nanciar projetos de infraestrutura.41 No entanto, as implicaes dessa atuao dos bancos de desenvolvimento em termos de comportamento e de desempenho tm sido negligenciadas na literatura, embora existam 286 bancos de desenvolvimento operando em 117 pases, alguns deles muito grandes, com boa sade nanceira (como o KfW, da Alema-nha; o Korea Development Bank; e o bndes, do Brasil). Em contraste, dispe-se de vasta literatura que mostra como bancos comerciais, de propriedade estatal, no funcionam bem por terem objetivos sociais e polticos que os impedem de tornar-se lucrativos.42, 43 No examina-mos minuciosamente os bancos comerciais neste livro, porque eles se concentram principalmente no fornecimento de crdito para famlias e de capital de giro para empresas. Estamos interessados, isto sim, na anlise dos bancos de desenvolvimento, que concedem emprstimos de longo prazo para promover a industrializao ou para construir a infraestrutura, razo por que tendem a associar-se intimamente ao pro-cesso de desenvolvimento econmico.44O Brasil como estudo de casoEmbora apresentemos uma anlise geral das novas formas de capita-lismo de Estado, grande parte de nossos estudos empricos minuciosos sobre suas implicaes se baseia em dados do Brasil, no nvel de em-presas. Duas so as razes pelas quais achamos que o Brasil um bom contexto em que se pode estudar a evoluo do capitalismo de Estado. Primeiro, a ascenso do capitalismo de Estado no Brasil semelhante ao que ocorreu em outros pases do mundo ocidental e no Leste Asitico no comunista, onde, parte por acaso e parte de propsito, os governos acabaram controlando e gerenciando centenas de empresas entre as dcadas de 1960 e 1980.45 Portanto, usamos o caso do Brasil para mos-trar como os acontecimentos externos resultaram em transformaes na maneira como os governos intervieram na gesto e na propriedade das empresas, culminando com grande desmantelamento do Leviat como modelo de empreendedorismo. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 23 05/12/14 13:5924reinventando o capitalismo de estadoSegundo, o Brasil teve e ainda tem todos os diferentes modelos de capitalismo de Estado que queremos estudar e dispe de dados acu-mulados ao longo de dcadas sobre o funcionamento dessas formas. Por meio de ampla variedade de arquivos pblicos e privados, conse-guimos compilar bancos de dados minuciosos com diversas variveis nanceiras para estudar o desempenho das maiores empresas estatais e privadas do Brasil entre 1973 e 2009. Com esses dados fecundos sobre as empresas brasileiras, testamos uma srie de hipteses especcas relacionadas com o estudo. Por exem-plo, comparamos o comportamento de empresas privadas e estatais antes e depois dos choques de 1979-82 e mostramos que as estatais ajustaram os nveis de emprego com mais lentido e, portanto, enfren-taram maiores prejuzos ao longo da dcada de 1980. Ou seja, usamos o caso detalhado do Brasil para argumentar que a grande crise do Leviat como modelo de empreendedorismo aconteceu em grande parte porque as empresas estatais no conseguiram ajustar-se aos choques drsticos das dcadas de 1970 e 1980, e, portanto, sangraram continuamente as nanas do governo. Alm disso, usamos o caso brasileiro para descrever as mudanas in-troduzidas na governana das estatais, especialmente depois da dcada de 1990. Pesquisas como as de Bortolotti e Faccio46 e da ocde47 mostram como os governos se mantiveram como acionistas majoritrios ou mi-noritrios depois das privatizaes da dcada de 1990. Esses estudos, contudo, no examinam os arranjos de governana corporativa dentro das estatais. Consideramos importante examinar como os arranjos de governana mudaram. Com efeito, achamos que as prescries normati-vas decorrem do exame dos estatutos que tornaram as empresas estatais menos propensas a problemas de agncia ou a intervenes polticas. No captulo 3, mostramos detalhadamente a transformao da governana nas estatais em que o governo brasileiro acionista majoritrio, e, no captulo 6, realizamos estudos ainda mais detalhados dos arranjos de go-vernana pela empresa petrolfera nacional, a Petrobras, em comparao com outras empresas petrolferas nacionais em todo o mundo. O caso brasileiro tambm oferece insights singulares sobre o mo-delo em que o Leviat investidor minoritrio. A grande relevn-75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 24 05/12/14 13:5925introduocia do bndes na economia brasileira oferece um caso fecundo para estudar os bancos de desenvolvimento e seu papel como veculos de investimento do Estado na forma de participaes acionrias minoritrias em empresas privadas. Portanto, com base em dados minuciosos sobre investimentos no majoritrios do bndespar (o brao de investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social bndes), entre 1995 e 2009, fizemos estudos empricos sobre o impacto dessas operaes no comportamento das empresas. Ao examinar como o bndes seleciona as empresas-alvo e o efeito de seus emprstimos nas empresas receptoras, em termos de desempenho e investimentos, analisamos de que maneira o Leviat pode atuar como emprestador. Nosso argumento geralNosso livro expe trs argumentos gerais. Primeiro, sustentamos que os governos aprenderam que precisam de esquemas de propriedade e de regimes de governana mais sustentveis para as empresas estatais. Nossa narrativa histrica sustenta que, em consequncia da crise de ns dos anos 1970 e princpios dos 1980, o modelo de propriedade e gesto das estatais pelo governo tornou-se muito ineciente e conver-teu-se em nus para as nanas pblicas. Os governos reestruturaram seus portflios de empresas, privatizaram aquelas em que no tinham razo poltica para operar e mudaram a estrutura societria de muitas nas quais realmente queriam manter participao (por exemplo, em-presas estratgicas, com altas rendas oriundas de petrleo, minrios e servios de utilidade pblica). Alguns Estados, entretanto, conclu-ram que, a m de desenvolver modelos mais sustentveis para essas empresas, precisavam envolver o setor privado no monitoramento e nanciamento das estatais, assim como no compartilhamento dos prejuzos desses empreendimentos. Isso signicava que o Estado tinha de dividir a gesto e as rendas. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 25 05/12/14 13:5926reinventando o capitalismo de estadoFigura II. Comparao do desempenho de empresas privadas e de empresas com 10% a 50% de participao estatal nos pases do bric, com base no retorno sobre os ativos, 2007-9 fonte: Criada pelos autores com base em dados da Capital IQ. Esses dados resumem o desempenho das empresas estatais e das empresas privadas entre as 125 maiores empresas com aes negociadas em Bolsas de Valores do Brasil, da Rssia, da ndia e da China. observao: O grfico exclui valores externos.Segundo, em vez de debater o que melhor, se a propriedade estatal ou a privada, sugerimos que h grande heterogeneidade em cada mo-delo. Em outras palavras, parte de nosso argumento que a amplitude das variaes no permite generalizaes. Admitimos, contudo, que as empresas estatais mal gerenciadas esto sujeitas a interferncias polticas, mas tambm encontramos muitas estatais nas quais, depois de mudanas em suas prticas de governana, os governos atuam como investidores, no como gestores. Tambm so muitos os casos de pro-priedade estatal minoritria que efetivamente ajudam as empresas a desenvolver novos projetos lucrativos, ao lado de outros de apoio injus-ticvel a campees nacionais com ligaes polticas. Ver, por exemplo, na gura ii, a ampla variao de desempenho em empresas privadas e em empresas nas quais o governo acionista majoritrio ou minori-Retorno sobre os ativos (ROA)Priv.10% 50% Priv.10% 50% Priv.10% 50% Priv.10% 50%Brasil 2024ChinandiaRssia75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 26 05/12/14 13:5927introduotrio. Em sntese, qualquer tentativa genrica de armar se a proprie-dade estatal boa ou m no capta necessariamente os matizes e as modulaes das formas organizacionais que emergem da reinveno do capitalismo de Estado documentada neste livro. Empreendemos basicamente um esforo de descoberta, nas estatais, das fontes de he-terogeneidade no nvel da empresa. Terceiro, argumentamos que os novos modelos de propriedade estatal, que denominamos Leviat como investidor majoritrio e Le-viat como investidor minoritrio, sero mais ou menos ecazes em decorrncia de numerosas condies que esmiuamos ao longo do livro e resumimos na concluso. Por exemplo, se a privatizao total de uma estatal no for possvel, o governo pode e deve pelo me-nos melhorar os mecanismos de proteo da governana para mitigar problemas de agncia e de interveno poltica. Sustentamos que os novos modelos de propriedade estatal sero mais ecazes quando se associarem a arranjos de governana que impeam prticas abusivas pelos acionistas controladores no s quando o governo inves-tidor majoritrio, mas tambm quando investidor minoritrio e os acionistas privados so capazes de desviar fundos da empresa. Assim, em nossa opinio, ao adotar o modelo em que o Leviat investidor minoritrio, os governos devem mirar empresas privadas com boa governana e severas restries nanceiras. Com o passar do tempo, medida que se desenvolvem os mercados de capitais locais, o Estado deve sair progressivamente da empresa, restringindo a participao estatal a casos em que o nanciamento de projetos com grandes ex-ternalidades positivas muito arriscado ou rduo demais para ser executado por capitais privados. Em outros termos, o aspecto contrafatual de nossa defesa do modelo do Leviat como investidor majoritrio que, sem freios e contrapesos contra os abusos do governo como acionista controlador, at empresas estatais listadas em Bolsas de Valores, com participao acionria pri-vada minoritria, podem acabar tornando-se as estatais inecientes do passado, com preos controlados, endividamento excessivo e necessida-des inndveis de cobertura de seus prejuzos com recursos pblicos. Ou seja, se o governo retira as rendas e transgride a parceria com o 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 27 05/12/14 13:5928reinventando o capitalismo de estadosetor privado, muito possvel que assuste os investidores e regrida situao da dcada de 1980. J o aspecto contrafatual de nossa sustentao do modelo do inves-tidor minoritrio mais complexo. Argumentamos que os investimen-tos ou emprstimos do governo em empresas com oportunidades de investimento, mas que no tm controle nanceiro, no compensaro o custo de oportunidade dos fundos pblicos. O governo, portanto, estaria em melhores condies usando seus recursos de investimento para apoiar empresas com controle nanceiro e capacidades latentes, em vez de grandes grupos ou campees nacionais, capazes de nanciar os prprios projetos por meio de seus mecanismos de capitalizao. Alm disso, quando os mercados nanceiros so mais desenvolvidos, os investimentos do governo em capital prprio talvez sejam necess-rios apenas no caso de empresas com projetos complexos, que sejam arriscados ou muito difceis de ser nanciados por intermedirios nanceiros privados. Tentamos manter as abordagens metodolgica e narrativa do livro to abrangentes quanto possvel para facilitar a conversa com amplo conjunto de setores. Entretanto, fomos to rigorosos quanto pudemos em nosso trabalho emprico para tentar convencer os cticos de nossos argumentos. Apesar de tudo, certo que alguns leitores no se dei-xaro convencer por nosso trabalho estatstico simplesmente porque governos no optam por controlar a propriedade de empresas nem por intervir em empresas privadas de maneira aleatria. Em outras palavras, as anlises deste livro no so casuais. Por esta razo, estamos muito conscientes de que nosso trabalho pode padecer de problemas de vis de seleo e que nossos resultados devem ser interpretados com cuidado, uma vez que no estamos tratando de causalidade no sentido mais estrito. Em todos os captulos que envolvem trabalho estatstico, inclumos uma seo explicativa de como o vis de seleo pode afetar nossos resultados e adicionamos uma srie de testes para minimizar essas inuncias ou, quando possvel, para garantir que no nos esto induzindo a essas concluses. Por exemplo, se estudamos o efeito dos investimentos do governo em capital prprio, no desempenho e nas despesas de capital de empresas privadas, fazemos questo de examinar 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 28 05/12/14 13:5929introduoque caractersticas orientam a seleo de empresas para descartar a possibilidade de que os governos estejam escolhendo de antemo em-presas de alto desempenho. Usamos tcnicas de pareamento e outras vericaes de robustez para garantir que nossos resultados no sejam impulsionados exclusivamente pelo vis de seleo. Viso geral do livroOs primeiros trs captulos desenvolvem nosso argumento de maneira geral, descrevendo a histria global do capitalismo de Estado e ofere-cendo possveis explicaes para as origens e implicaes dos novos modelos de capitalismo de Estado. O captulo 1 um relato histrico da ascenso, queda e reinveno do capitalismo de Estado em todo o mundo no sculo xx. Descrevemos os esforos dos governos da Europa e dos pases em desenvolvimento, em vrias pocas, para melhorar o desempenho das empresas estatais e enfatizamos a evoluo do capita-lismo de Estado como processo de aprendizado, de tentativa e erro, e, em grande parte, como resposta a choques econmicos. Terminamos a histria com a explicao de como as crises do Leviat como empreen-dedor desembocou nas polticas de privatizao da dcada de 1990. O captulo 2 rev a literatura e as implicaes decorrentes de cada viso das empresas estatais para cada um dos modelos de proprieda-de que estudamos. As vises so material de construo das hipteses testveis apresentadas nos captulos subsequentes. No captulo 3, tomamos o Brasil como estudo de caso. Primeiro narramos com mincias a histria macroeconmica que levou rein-veno do capitalismo de Estado no pas, durante as dcadas de 1980 e 1990, e exploramos algumas das variaes entre as empresas estatais brasileiras. Tambm descrevemos a transformao das estatais no Bra-sil depois do processo de privatizao. No captulo 4, estudamos os ceos como fonte de variao no desem-penho das soes. No modelo Leviat como empreendedor, os governos tinham poucas alavancas para inuenciar o desempenho das empresas estatais. Nessas condies, os governos, portanto, tendiam a substituir 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 29 05/12/14 13:5930reinventando o capitalismo de estadoos ceos sempre que quisessem mudar o desempenho das empresas. Esses esforos, porm, parecem ter sido inteis, pois mostramos que os ceos, na verdade, exerciam muito pouca inuncia sobre o desempenho das estatais, exceo de altos executivos que frequentaram univer-sidades de elite. Esses ceos de elite realmente levavam as empresas a apresentar melhor desempenho que a mdia das empresas estatais. No captulo 5, examinamos de que forma o modelo do Leviat como empreendedor entrou em colapso na dcada de 1980. Mostramos que as estatais, ao enfrentar choques econmicos, adotam polticas bem diferentes daquelas das empresas privadas. Enquanto estas tendem a demitir trabalhadores para ajustar a capacidade de produo, em face de redues na demanda agregada (ou seja, reduzem o efetivo de pessoal para melhorar a produtividade e diminuir a produo), as em-presas estatais demitem muito menos trabalhadores ou at contratam outros. A literatura que compara empresas estatais e privadas geral-mente pressupe que as diferenas de desempenho entre as duas so sempre amplas. Mostramos que essas diferenas de desempenho eram, na verdade, menores antes da dcada de 1980 e depois se ampliaram em tempos de diculdade econmica.48O captulo 6 examina os arranjos de governana corporativa que os governos adotaram em suas empresas petrolferas nacionais (national oil companies nocs) depois de mudanas na estrutura de proprie-dade para atrair investidores privados minoritrios. Estudamos as ca-ractersticas bsicas da governana em trinta nocs bem como a exten-so em que algumas dessas empresas impuseram algumas restries importantes ao acionista controlador o governo. Imergimos, ento, em estudo mais detalhado de trs petrolferas nacionais Pemex, Pe-trobras e Statoil e examinamos as relaes entre cada governo e a respectiva empresa. Esses casos enfatizam a importncia de conferir autonomia nanceira aos gestores e, ao mesmo tempo, impor freios e contrapesos ao poder do governo. O captulo 7 comea com nosso exame do Leviat como acionista minoritrio. Estudamos, de incio, os efeitos dos investimentos minori-trios do governo em empresas privadas usando base de dados detalha-da dos investimentos em capital prprio do banco de desenvolvimento 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 30 05/12/14 13:5931introduonacional do Brasil, o bndes, entre 1995 e 2009. Consideramos que esses investimentos produziram efeitos positivos entre 1995 e 2002, mas no depois de 2002. Uma de nossas explicaes para a falta de impacto positivo aps 2002 que, talvez, o rpido desenvolvimento do mercado de capitais local, depois daquele ano, tornou os emprstimos do governo menos importantes para reduzir as limitaes nanceiras com que em geral se defrontavam as empresas brasileiras. O captulo 8 um estudo de caso das relaes do governo com a Vale, gigante de minerao brasileira, em que o governo do Brasil investidor minoritrio. Analisamos, aqui, os limites do Leviat como investidor minoritrio. Explicamos por que, entre 2009 e 2011, as presses do governo sobre a Vale para investir em usinas siderrgicas culminaram com a demisso de um ceo muito bem-sucedido. O captulo leva adian-te nosso estudo das circunstncias que podem facilitar a interveno do governo, mesmo quando este acionista minoritrio. Argumentamos que em indstrias com altas rendas econmicas os governos podem recorrer a coalizes com atores quase estatais, como fundos de penso de empresas estatais, para intervir na administrao. O captulo 9 introduz a discusso sobre o papel dos bancos de desen-volvimento e apresenta uma narrativa histrica do papel desempenha-do pelo bndes na industrializao do Brasil. Usando dados de 2002 a 2009, o captulo 10 mostra que o bndes est emprestando para grandes empresas, que so capazes de obter capital em outras fontes. Tambm lanamos luz sobre o processo por meio do qual o banco seleciona as empresas-alvo. A concluso traz a compilao de algumas lies de nossos estu-dos. Concentramos o foco numa anlise das condies sob as quais cada um dos modelos de capitalismo de Estado ecaz ou inecaz. Conclumos com uma seo prtica, destinada a polticos e a gestores incumbidos de dirigir empresas, bancos de desenvolvimento e outras organizaes estatais. 75018_Reinventando_o_capitalismo_05.indd 31 05/12/14 13:59