IESP-UERJ Clayton M. Cunha Filho Tese
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Estudos Sociais e Polticos
Clayton Mendona Cunha Filho
A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-
popular na formao do Estado boliviano
Rio de Janeiro
2015
-
Clayton Mendona Cunha Filho
A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-popular na
formao do Estado boliviano
Tese apresentada como requisito parcial para
obteno do ttulo de Doutor, ao programa de
Ps-Graduao em Cincia Poltica do
Instituto de Estudos Sociais e Polticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Cesar Coelho Guimares
Rio de Janeiro
2015
-
Clayton Mendona Cunha Filho
A construo do horizonte plurinacional: liberalismo, indianismo e nacional-popular na
formao do Estado boliviano
Tese apresentada como requisito parcial para
obteno do ttulo de Doutor, ao programa de
Ps-Graduao em Cincia Poltica do
Instituto de Estudos Sociais e Polticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em 06 de maro de 2015.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Cesar Coelho Guimares (Orientador)
Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ
Profa. Dra. Maria Regina Soares de Lima
Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ
Prof. Dr. Breno Bringel
Instituto de Estudos Sociais e Polticos - UERJ
Profa. Dra. Ingrid Sarti
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Salvador Schavelzon
Universidade Federal de So Paulo
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AGRADECIMENTOS
A tentativa de elencar a todos que de alguma maneira contriburam para o sucesso de
qualquer empreendimento carrega sempre consigo o risco de ver-se trado pela memria e
acabar cometendo a injustia de esquecer-se de mencionar a algum que merecia ter sido
mencionado. Ciente de tais riscos, peo desde j desculpas queles a quem deveria agradecer
e porventura venha a olvidar.
Agradeo primeiramente a Cesar Guimares, meu orientador, pela confiana e
incentivo sempre presentes e a Ximena Soruco, coorientadora durante meu estgio de
doutorado-sanduche na Universidad Mayor de San Andrs (UMSA) em La Paz. Agradeo
tambm ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pela
bolsa que me permitiu dedicao plena ao doutorado, Fundao de Amparo Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela bolsa que me permitiu a realizao do mencionado
estgio de doutorado-sanduche entre maro e agosto de 2013 e ao Conselho Latino-
Americano de Cincias Sociais (CLACSO) pela bolsa-prmio concedida em 2010 nos marcos
Estado y formas de participacin y
representacin en Amrica Latina y el Caribe contemporneos
fui selecionado em 2009 quando ainda conclua o mestrado e que me facilitou sobremaneira
consolidar os achados da dissertao de mestrado e avanar nas hipteses de pesquisa iniciais
da tese de doutorado.
Agradeo tambm a toda minha famlia, em especial a meus pais, Clayton e Sulamita,
e meus irmos, Marlos e Thiago, por todo o apoio e carinho sem os quais todo esse esforo
teria sido impossvel. Agradeo em especial tambm a meu primo de sangue e irmo de
corao, Leonel Gois, com quem tive o prazer de dividir um apartamento durante parte
significativa de minha estadia no Rio de Janeiro para o doutorado.
professora Maria Regina Soares de Lima e todos os colegas e ex-colegas do
Observatrio Poltico Sul-Americano (OPSA) por esses vrios anos de convivncia,
aprendizagem e colaborao acadmica, cabendo meno especial aos meus grandes amigos
Fidel Prez Flores e Andr Luiz Coelho, com quem tenho e tive o prazer de compartilhar
interesses acadmicos comuns e a coautoria de diversos trabalhos que espero continuaro
ocorrendo; Josu Medeiros, que gentilmente se ofereceu para ler e comentar os captulos desta
tese em um momento crucial; e Guilherme Simes Reis e Flvio Pinheiro, que alm de
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grandes amigos e companheiros de aulas e bares gentilmente me hospedaram quando preciso
foi no Rio e em So Paulo respectivamente.
A Cesar Zucco e Daniela Campello, pelo grande exemplo acadmico e humano que
representaram na minha trajetria desde o mestrado at esse final de doutorado e pela
importante inspirao que aportaram no brilhante curso de poltica latino-americana
ministrado em 2009.1 ainda durante o mestrado. A todos os demais professores do IESP-
UERJ com quem tive o prazer e a honra de cursar disciplinas durante esse perodo, Fabiano
Santos, Joo Feres Jr., Thamy Pogrebinshi, Breno Bringel, Renato Boschi e Marcus
Figueiredo (in memoriam).
Ao meu orientador de graduao na UFC, Jawdat Abu-El-Haj, pela confiana em mim
sempre depositada e aos professores Bernadete Beserra (UFC), minha tutora de bolsa de
iniciao cientfica, Lucio Oliver (UNAM) e Mnica Martins (UECE), cujo papel em
consolidar em mim o interesse acadmico pela poltica latino-americana foi tambm bastante
importante em meus primeiros passos de vida universitria. A Gabriel Vitullo (UFRN),
Aragon Dasso Jr (UFRGS) e Gonzalo Rojas (UFCG), pela parceria intelectual e produtiva
colaborao acadmica passada, presente e vindoura no GT de Democracia na Amrica Latina
do CiSO e outros foros.
Aos meus amigos David Rgo, Flvio Carvalhaes, Ismael Pimentel, Alexis Corts,
Victor Mouro, Marcelo Martins, Daniela Vairo, Florencia Anta, Lorena Granja, Pedro Jr.,
Tiago Moreno, Rogrio Raposo, Guilherme Montenegro, Hector Ferreira, Manoel Neto,
os, Helena Martins e Tiago Rgis, a quem
sempre serei grato pelos diversos momentos de conversas, apoio, cervejas e cachaas
compartilhadas em diversos momentos desta trajetria e sem as quais esse trabalho tampouco
teria sido possvel. E a Dbora Thom, pelos mesmos motivos acima citados e ainda a crucial
ajuda logstica para a impresso e distribuio desta tese banca em face de minha ausncia
no Rio de Janeiro. Agradecimentos que estendo a toda a famlia Thom, que por muito tempo
foi e de certa forma sempre ser tambm a minha.
Aos meus amigos bolivianos Gilber Mamani, Bayardo Martnez Villarroel, Andrea
China Terceros, Tania Paz, Carlos, Ariel de la Rocha, e Angela Guerra e toda sua
famlia.
Ao professor da Universidad Mayor de San Simn (UMSS), Fernando Mayorga, por
toda a disposio em ajudar-me com contatos e ideias durante minha estadia boliviana apesar
de sua agenda bastante concorrida. Ao ento coordenador do departamento de Sociologia da
UMSA, Eduardo Paz Rada, pela acolhida durante o estgio de doutorado-sanduche. E aos
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professores Farit Rojas Tudela, da Universidad Catlica Boliviana (UCB), Fernando Garcs
(UMSS) e Fernando Garca Yapur (PNUD-Bolvia) por me concederem parte de seus
concorridos tempos para a realizao de conversas cujos insights e informaes aportadas
foram tambm cruciais para esta tese, alm de Xavier Alb, a quem por minha culpa no fui
capaz de buscar para uma conversa durante minha estadia em La Paz, mas que muito
gentilmente respondeu com extrema celeridade a consultas e questionamentos por correio
eletrnico quando j havia regressado ao Brasil e percebido meu imperdovel erro. Agradeo
ainda a Andrey Schelchkov, Pablo Stefanoni e Marta Irurozqui alguns de cujos trabalhos
inspiraram e iluminaram ideias desta tese e que muito gentilmente tambm me responderam a
questionamentos por correio eletrnico sobre fontes bibliogrficas, inclusive facilitando-me o
acesso a verses digitais de alguns textos importantssimos aqui utilizados.
Agradeo ainda a meus colegas bolivianistas Sue Iamamoto, Ana Carolina Delgado,
Renata Albuquerque de Moraes, Rodrigo Santaella Gonalves, Aiko Ikemura e Danilla
Aguiar por todas as conversas e trocas de ideias, aqui e alhures, sobre essa paixo acadmica
compartilhada pela Bolvia.
Ao Nelson Syozy, por sua inestimvel ajuda tcnica na edio de algumas das imagens
e figuras aqui reproduzidas.
E a todos aqueles outros que por inmeras razes diretas ou indiretas contriburam
para o xito desta tese, mas cujos nomes no foram citados, meus agradecimentos e sinceras
desculpas pela impossibilidade de lembrar de todos.
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In thinking about the state, we should not set aside the features of the society it addresses and
is constituted by, but consider the ways in which societal features influence political
institutions and mores
Ton Salman
El componente de la memoria colectiva en el registro ideolgico es sin duda ms grande de lo
que por lo comn se supone
Ren Zavaleta
As historians recognize, nation-building projects are not plucked from the heavens of pure
ideas or political imaginaries but are rooted in the earth of social history.
Brooke Larson
Se sostiene hoy una presuncin no solo injusta sino falsificadora del pasado, al suponer que la
Constitucin de 2009 es una construccin ideolgica nacida exclusivamente de la insurgencia
de los movimientos populares del perodo 2000-2005. En realidad fue un doble camino de
toma de conciencia; el que sigui el Estado a partir de la Revolucin [del 52] y la
comprensin de la complejidad cultural en 1994 y la insurgencia de sectores intelectuales del
mundo andino y de los llanos que entendieron que no se poda continuar con poderes
subrogados y delegados
Carlos Mesa
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RESUMO
CUNHA FILHO, Clayton M. A construo do horizonte plurinacional: liberalismo,
indianismo e nacional-popular na formao do Estado boliviano. 2014. 316f. Tese
(Doutorado em Cincia Poltica) Institudo de Estudos Sociais e Polticos, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
A presente tese busca compreender e explicar a formao do Estado Plurinacional da
Bolvia a partir do legado de smbolos, procedimentos e modelos de aquisio de legitimidade
deixados ao longo de sua histria e que podem ser agrupados em trs grandes matrizes
polticas: o liberalismo-constitucional, o indianismo-comunitrio e o nacional-popular. Assim,
o objetivo analisar como o legado destas trs matrizes polticas, atravs principalmente da
evoluo histrica de seus horizontes polticos e da memria de suas agendas e promessas
inconclusas acerca do Estado e da nao na Bolvia, influenciam o atual experimento
inaugurado em 2009 com a promulgao de sua atual Constituio Poltica do Estado (CPE).
A hiptese subjacente a de que o experimento plurinacional, em sua tentativa de resolver a
forte crise de legitimidade estatal trazida pela conjuntura crtica dos anos 2000-2005, se nutre
fortemente das agendas destas trs matrizes seja intencional e deliberadamente como no
caso do Indianismo e do Nacional-popular ou de maneira reticente como no caso do
Liberalismo - de forma a tentar reconciliar o Estado com sua altamente heterognea formao
social. A fim de verific-la, foi realizado um estudo de natureza eminentemente bibliogrfica
complementado por pesquisa de campo de seis meses a fim de traar a evoluo poltica das
trs matrizes em seus momentos constitutivos, horizontes e agendas e contrast-las com as
caractersticas institucionais assumidas pelo novo Estado Plurinacional, bem como a prtica
poltica dos principais atores bolivianos contemporneos. Dessa maneira, foi possvel
perceber o quanto de fato persistem no experimento refundacionista atual e na prtica poltica
corrente do pas uma mescla heterognea e com distintas nfases das agendas e prticas das
trs matrizes, representadas sobretudo no apego democracia como valor e procedimento; no
reconhecimento tnico-cultural trazido ao interior do Estado com a incorporao potencial
pelo mesmo de formatos institucionais comunitrios e a preservao de espaos autnomos de
deliberao; e na busca por participao poltica mais direta por parte do povo e na nfase
relativa soberania popular sobre os recursos naturais do pas e um maior intervencionismo
estatal na economia.
Palavras-chave: Estado Plurinacional. Matrizes polticas. Horizontes Polticos. Memria.
Liberalismo. Indianismo. Nacional-popular.
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RESUMEN
La presente tesis busca comprender y explicar la formacin del Estado Plurinacional
de Bolivia a partir del legado de smbolos, procedimientos y modelos de adquisicin de
legitimidad dejados a lo largo de su historia y que pueden ser agrupados en tres grandes
matrices polticas: el liberalismo-constitucional, el indianismo-comunitario y lo nacional-
popular. As, el objetivo es analizar cmo el legado de estas tres matrices, a travs
principalmente de la evolucin histrica de sus horizontes polticos y de la memoria de sus
agendas y promesas inconclusas acerca del Estado y de la nacin boliviana influencian al
presente experimento inaugurado en 2009 con la promulgacin de su actual Constitucin
Poltica del Estado (CPE). La hiptesis subyacente es la de que el experimento plurinacional,
en su tentativa de solucionar la fuerte crisis de legitimidad estatal desatada por por la
coyuntura crtica de los aos 2000-2005, se alimenta fuertemente de las agendas de estas tres
matrices - ya sea intencional y deliberadamente como en el caso del indianismo y del
nacional-popular o de manera vacilante como en el del liberalismo - de manera a intentar
conciliar al Estado con su abigarrada formacin social. A fin de verificarlo, fue realizado un
estudio de naturaleza eminentemente bibliogrfica complementado por investigacin de
campo de seis meses con el objetivo de trazar la evolucin poltica de las tres matrices en sus
momentos constitutivos, horizontes y agendas y contrastarlas con las caractersticas
institucionales asumidas por el nuevo Estado Plurinacional, bien como la prctica poltica de
los principales actores bolivianos contemporneos. De esa manera, fue posible observar
la persistencia en el experimento refundacional actual bien como en la prctica poltica
corriente del pas una mezcla heterognea y con distintos nfasis de las agendas y prcticas de
las tres tradiciones, representadas sobre todo en el apego a la democracia como valor y
procedimiento; en el reconocimiento tnico-cultural trado al interior del Estado
con la incorporacin potencial por el mismo de formatos institucionales comunitarios y la
preservacin de espacios autnomos de deliberacin; y en la bsqueda por participacin
poltica ms directa por parte del pueblo y en el nfasis sobre la soberana popular sobre los
recursos naturales del pas y una incrementada intervencin estatal en la economa.
Palabras-clave: Estado Plurinacional. Matrices polticas. Horizontes polticos. Memoria.
Liberalismo. Indianismo. Nacional-popular.
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ABSTRACT
The present thesis seeks to understand and explain the formation of the Plurinational
State of Bolivia from the legacy of symbols, procedures and models of legitimacy left
throughout its history and that can be grouped in three great political matrices: Constitutional-
Liberalism, Communitarian-Indianism and National-popular. Thus, the aim is to analyze how
the legacy of these three matrices influence - mainly through the historical evolution of their
political horizons and the memory of the uncompleted agendas and promises towards the
State and the nation in Bolivia - the current experiment inaugurated in 2009 with the
enactment of the current Constitution. The underlying hypothesis is that the plurinational
experiment, in its attempt to solve the strong State legitimacy crisis brought about by the
critical juncture of the years 2000-2005, feeds itself from these matrices' agendas - be it
intentionally and deliberately as in the case of Indianism and National-popular or reluctantly
as in the case of Liberalism - in order to reconcile the State with its motley social formation.
In order to assess it, a bibliographical study was conducted and complemented with a six-
months fieldwork in Bolivia in order to trace the political evolution of the three traditions in
their constitutive moments, agendas and horizons and contrast them with the institutional
characteristics assumed by the new Plurinational State and the political practice of
contemporary Bolivian actors. Thus, it was possible to notice indeed how persistent they are
in the country's ongoing re-foundational experiment and current political practice through an
heterogeneous and with different intensities mix of the agendas and practices of the three
matrices, represented especially through the attachment to democracy both as a value and a
procedure; an ethno-cultural recognition brought inside the State itself with the potential
incorporation of communitarian institutional forms and the preservation of autonomous
deliberative spaces; and the search for a more direct political participation by the people and
the emphasis on popular sovereignty over the country's natural resources and an increased
economic intervention by the State.
Keywords: Plurinational State. Political Matrices. Political Horizons. Memory. Liberalism.
Indianism. National-popular
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: Bolvia em 1825 ........................................................................................................ 27
Figura 2: Ocorrncia de Insurreies Polticas, 1825-1909 ..................................................... 51
Figura 3: Primeiras Maiorias por Departamento, 1980 e 2005 .............................................. 228
Figura 4: Vias de Acesso s AIOC ......................................................................................... 263
Quadro 1: Desafios Ps-Liberais Democracia Liberal ........................................................ 276
Figura 5: Situao das Cartas Orgnicas Municipais, junho de 2013 .................................... 278
Quadro 2: Situao dos Estatutos Autonmicos de Municpios em Converso AIOC,
Junho/2013 ............................................................................................................................. 280
Figura 6: Municpios onde mais de 75% da populao com mais de 15 anos se autoidentifica
com algum povo IOC ............................................................................................................. 281
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Autoidentificao com povos indgenas Censo 2001 .......................................... 104
Tabela 2: Resultados Eleitorais Ps-redemocratizao, Repblica da Bolvia ...................... 227
Tabela 3: Comparativo das Eleies 1980 / 2005, agregado nacional e por departamento ... 227
Tabela 4: Plebiscito para Converso em Municpio AIOC, 2009 .......................................... 261
Tabela 5: Composio e Formas de Eleio das ALD, 2010 ................................................. 271
Tabela 6: Autoidentificao com Naes ou Povos Indgena Originrio Camponeses, Censo
2012 ........................................................................................................................................ 285
Tabela 7: Resultados Eleitorais, Estado Plurinacional da Bolvia.......................................... 291
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AC - Assembleia Constituinte
ADN - Ao Democrtica Nacionalista
AFP - Administradora de Fundos de Penso
AIOC - Autonomia Indgena Originria Camponesa
ALD - Assembleia Legislativa Departamental
ALP - Assembleia Legislativa Plurinacional
ANMM - Associao Nacional da Minerao Mdia
AP - Assembleia Popular
APG - Assembleia do Povo Guarani
BIC - Bloco Independente Campons
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
CEPB - Confederao dos Empresrios Privados da Bolvia
CIDOB - Confederao de Povos Indgenas da Bolvia
CNTCB - Confederao Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolvia
COB - Central Operria Boliviana
COR - Central Operria Regional
CONAMAQ - Conselho Nacional de Markas e Ayllus do Qollasuyu
Conisur - Conselho Indgena do Sul
CONDEPA - Conscincia da Ptria
Comibol - Corporao Mineira da Bolvia
CPE - Constituio Poltica do Estado
CPESC - Coordenadora de Povos tnicos de Santa Cruz
CPEMB - Confederao de Povos tnicos Moxeos do Beni
CPN - Comit Poltico Nacional do MNR
CSCB - Confederao Sindical de Colonizadores da Bolvia
CSCIOB - Confederao Sindical de Comunidades Interculturais Indgena Originrias da
Bolvia
CSTB - Confederao Sindical de Trabalhadores da Bolvia
CSUTCB - Confederao Sindical nica de Trabalhadores Camponeses da Bolvia
CUD - Concertao de Unidade Democrtica
DS - Decreto Supremo
EGTK - Exrcito Guerrilheiro Tupaj Katari
FDC-SC - Federao Departamental de Colonizadores de Santa Cruz
FDMC-BS - Federao Departamental de Mulheres Camponesas Bartolina Sisa
FEJUVE - Federao de Juntas Vicinais
FIB - Frente de Esquerda Boliviana
FNMCB-BS -
FOL - Federao Operria Local
FOT - Federao Operria do Trabalho
FSB - Falange Socialista Boliviana
FSTMB - Federao Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolvia
FSUTC-SC - Federao Sindical nica de Trabalhadores Camponeses de Santa Cruz
Apiahuaiki Tumpa
FUB - Federao Universitria Boliviana
INRA - Instituto Nacional de Reforma Agrria
IOC - Indgena Originrio Campons
LAPOP - Latin American Public Opinion Project
-
LDJ - Lei de Delimitao Jurisdicional
LEC - Legio de Ex-Combatentes
LMAD - Lei Marco de Autonomias e Descentralizao "Andrs Ibez"
LPP - Lei de Participao Popular
MACOJMA - Marka de Ayllus e Comunidades Originrias de Jesus de Machaca
MAS - Movimento Ao Socialismo
MDS - Movimento Democrtico Social
MIP - Movimento Indgena Pachakutik
MIR - Movimento da Esquerda Revolucionria
MITKA - Movimento ndio Tupaj Katari
MNR - Movimento Nacionalista Revolucionrio
MNRI - Movimento Nacionalista Revolucionrio de Esquerda
MRTK - Movimento Revolucionrio Tupaj Katari
MRTKL - Movimento Revolucionrio Tupaj Katari de Liberao
MST - Movimento Sem Terra
MTD - Marcha por Territrio e Dignidade
NFR - Nova Fora Republicana
NPE - Nova Poltica Econmica
NPIOC - Naes e Povos Indgena Originrio Camponeses
OEP - rgo Eleitoral Plurinacional
ONG - Organizao No Governamental
OIT - Organizao Internacional do Trabalho
OTB - Organizao Territorial de Base
PCB - Partido Comunista Boliviano
PDC - Partido Democrata Cristo
PIR - Partido da Esquerda Revolucionria
PMC - Pacto Militar-Campons
Podemos - Poder Democrtico Social
POR - Partido Operrio Revolucionrio
PRA - Partido Revolucionrio Autntico
PRG - Partido Republicano Genuno
PRIN - Partido Revolucionrio da Esquerda Nacional
PRS - Partido Republicano Socialista
PSE - Partido Socialista do Estado
PSOB - Partido Socialista Operrio Boliviano
RADEPA - Razo da Ptria
TCO - Terras Comunitrias de Origem
TCP - Tribunal Constitucional Plurinacional
THOA - Taller de Historia Oral Andina
TIOC - Territrio Indgena Originrio Campons
TIPNIS - Territrio Indgena e Parque Nacional Isiboro-Scure
UCS - Unio Cvica Solidariedade
UDP - Unio Democrtica e Popular
UN - Unidade Nacional
YPFB - Jazidas Petrolferas Fiscais Bolivianas
-
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 16
1. A MATRIZ POLTICA DO LIBERALISMO -CONSTITUCIONAL .......................... 29
1.1 Das reformas bolivarianas consolidao da Repblica Oligrquica ................. 33
1.2 Do auge ao colapso da Repblica Oligrquica: conflitos intraelite e acelerao
das contradies no sistema ............................................................................................... 52
1.3 Ocaso e restaurao oligrquica: interldio militar e democracia pactuada ...... 70
1.4 Auge e queda do novo modelo: consolidao gonista, crise e colapso .................. 84
1.5 Horizontes do liberalismo-constitucional boliviano ............................................... 92
2. A MATRIZ POLTICA DO IN DIANISMO -COMUNITRIO .................................... 95
2.1 Indigenismo, Indianismo e horizontes polticos indgenas na Bolvia
contempornea .................................................................................................................... 96
2.2 Da Colnia Repblica: estruturao e persistncia do regime de convivncia.....
...................................................................................................................... 112
2.3 Tentativas de extino e resistncia comunitria: da grande ofensiva republicana
crise do sistema oligrquico .......................................................................................... 123
2.4
subordinada reemergncia tnica autnoma .............................................................. 137
2.5 Horizontes da matriz indianista-comunitria ....................................................... 151
3. A MATRIZ POLTICA DO NACIONAL -POPULAR ................................................. 156
3.1 Origens da matriz Nacional-Popular na Bolvia ................................................... 159
3.2 Da consolidao da repblica oligrquica crise do Chaco ................................ 170
3.3 Do Socialismo Militar Revoluo: ascenso do nacional-popular boliviano .. 177
3.4 A Revoluo de 1952: auge e queda do nacional-popular ................................... 189
3.5
nacional-popular boliviano .............................................................................................. 203
-
3.6 O quinqunio 2000-2005 e o renascimento do nacional-popular boliviano ....... 218
3.7 Horizontes da matriz nacional-popular ................................................................. 228
4. A CONSTRUO DO HORIZONTE PLURINACIONAL ........................................ 232
4.1 Do colapso do Estado refundao constitucional: a constituinte como
entroncamento institucional das trs matrizes .............................................................. 238
4.2 A construo do horizonte plurinacional como redefinio
.......................................................................................................................... 249
4.3 - Construo estatal abigarrada e novas instituies assimtricas: as autonomias
como chave e a constituio como cadeado .................................................................... 255
CONCLUSO: UTOPIAS, REALPOLITIK PLURINACIONAL E TENSES
REMANESCENTES ............................................................................................................ 272
REFERNCIAS ................................................................................................................... 294
-
16
Introduo
-se que, durante uma visita Frana nos anos 1970, o lder comunista chins Zhou
Enlai foi perguntado sobre sua opinio acerca da importncia histrica da Revoluo
(CUNHA FILHO,
2009, p. 18).
Com essas mesmas palavras, iniciei a escritura de minha dissertao de mestrado em
Cincia Poltica defendida em 2009 no ento Iuperj e com elas decido iniciar a introduo
desta tese de doutorado no atual IESP-UERJ porque a inteno com que tinham sido
utilizadas naquele contexto mantm-se praticamente inalterada neste de agora: enfatizar as
dificuldades inerentes anlise e estudo de temas extremamente recentes e de resultados
ainda inacabados e em andamento. Se naquela dissertao de mestrado busquei estudar os
elementos de legitimidade com os quais o governo de Evo Morales (ento ainda em seu
primeiro mandato) procurava construir seu bloco histrico em busca de transformaes na
excludente sociedade boliviana a partir da memria dos legados das matrizes polticas
indianista e nacional-popular, nesta tese procuro compreender e explicar a formao do
Estado Plurinacional da Bolvia inaugurado com a Constituio de 2009.
Em grande medida um desdobramento daquela dissertao e dos trabalhos levados a
cabo no interior do Observatrio Poltico Sul-Americano (OPSA/IESP-UERJ) ao qual ainda
me encontro vinculado na condio de pesquisador responsvel pela Bolvia, esta tese busca
aprofundar a compreenso do legado e das agendas histricas obtidas ou inconclusas das duas
matrizes polticas ali estudadas, e agregar uma terceira a do liberalismo para compreender
os contornos poltico-institucionais assumidos pelo novo Estado Plurinacional.
A incluso da matriz liberal como objeto de investigao desta tese no , contudo, um
desdobramento bvio e natural na medida em que o novo Estado Plurinacional foi construdo
aps um conturbado processo de lutas sociais que para muitos representou uma verdadeira
revoluo (por exemplo, ALMEYRA, 2011; DUNKERLEY, 2007b; GUTIRREZ
AGUILAR, 2008; HYLTON; THOMSON, 2007; STEFANONI; DO ALTO, 2006) tendo
precisamente o (neo)liberalismo como representao daquilo que se buscava transformar e
superar. Mas ainda que os atores que refundaram o Estado tenham buscado faz-lo
reivindicando de maneira mais ou menos explcita a memria, os projetos e legados das
matrizes indianista e nacional-popular e negando o liberalismo, a posio central ocupada por
este ao longo de quase toda a histria poltica boliviana (ver GOODALE, 2008) fez com que,
apesar de todo o peso oligrquico a ele associado, ele tenha deixado um conjunto de smbolos,
-
17
procedimentos e modelos de aquisio de legitimidade poltica dos quais a refundao
plurinacional dificilmente poderia escapar. Tal como descrito por Marx (1997, p. 21)
Assim, a presente tese buscar compreender o novo Estado Plurinacional da Bolvia a
partir no apenas das duas grandes matrizes polticas insurgentes (HYLTON; THOMSON,
2007) o nacional-popular e o indianismo-comunitrio que em suas histrias de contestao
ao excludente Estado liberal-oligrquico deixaram uma memria cujo resgate permitira a
construo dos fundamentos de legitimidade do bloco histrico liderado por Evo Morales e
seu partido Movimento Ao Socialismo (MAS) (ver CUNHA FILHO, 2009, 2011), mas
tambm a partir da incluso na anlise da prpria matriz liberal-constitucional. O objetivo
ser mostrar como as trs grandes matrizes polticas da histria boliviana deixaram legados,
agendas e marcos de legitimidade que se fizeram presentes na construo do novo artefato
institucional inaugurado em 2009.
matrizes
como trs grandes projetos de construo do Estado e da Nao no territrio do pas que aps
a independncia passaria a ser conhecido como Bolvia se deve a dois fatores principais. O
planejada de construo do Estado boliviano, que se bem como se ver nos captulos
seguintes de fato existiu em alguns momentos constitutivos chave da histria do pas, no foi
a regra e mesmo quando nessas excees, jamais pode ser levado a cabo tal como planejado
devido s vicissitudes da vida e luta poltica no pas. Como aponta Joachim Hirsch (2010, p.
36 7, itlicos no original),
o Estado [...] no nem o instrumento criado conscientemente pela classe dominante, nem a
corporificao de uma "vontade popular" democrtica, tampouco um sujeito ativo
autnomo. Ele bem mais uma relao social entre indivduos, grupos e classes, a
"condensao material de uma relao social de fora" [nas palavras de Poulantzas] (ver
tambm .
Assim, mesmo a matriz liberal cujos principais atores de fato tinham um projeto
consciente de reformulao radical das relaes sociais vigentes herdadas do perodo colonial
e que foram aqueles que por mais tempo detiveram o controle poltico do Estado, viram-se
constrangidos em seus objetivos por uma mirade de fatores (dentre os quais, como se ver, as
lutas e agendas das outras duas matrizes) que lhes impeliram a abortar ou modificar os planos
iniciais e assim foram gestando um Estado em muitas maneiras e graus diferente dos objetivos
iniciais. Apesar de tentarem vrias vezes redefinir a sua maneira as relaes sociais herdadas
-
18
uma e outra vez eles tinham que admitir publicamente que no podiam
1 (GOTKOWITZ, 2007, p. 19. Traduo nossa).
E nessas tentativas (parcialmente) frustradas de redefinio social e construo estatal,
desenvolveu-se o que Brooke Larson (2004, p. 40. Traduo nossa)
confli2, padres discursivo-legais de interao entre o Estado e sujeitos polticos reativos a
tais planos de redefinio social atravs dos quais este Estado era frequentemente forado a
renegociar suas bases de legitimidade perante tais sujeitos. O que nos traz segunda razo da
matrizes
da nao bolivianos: mutatis mutandis, o processo se assemelha bastante ao descrito pelo
historiador E. P. Thompson (1979)
motins de subsistncia relacionados ao preo do trigo na Inglaterra do sculo XVIII. Na
transio economia industrial moderna de livre mercado, os setores populares ingleses
sentiam-
tradio instituda de paternalismo e proteo social em torno do trigo cuja violao punha,
perante seus olhos, em questo a prpria legitimidade do Estado. Assim, seguindo a
denominao proposta por Thompson pela sua similitude com o caso boliviano3, opto por
cham- matrizes
busco reconstruir nos captulos 1, 2 e 3 geraram foram, alm de demandas e agendas muitas
vezes (parcialmente) inconclusas, padres e fontes de legitimao do Estado boliviano os
quais, como buscarei demonstrar no captulo 4, influenciaram e condicionaram os contornos
possveis da refundao estatal empreendida pela Assembleia Constituinte (AC) que faria
nascer o atual Estado Plurinacional da Bolvia.
Antes de passar reconstruo das trs matrizes propriamente ditas, entretanto,
necessrio antecipar algumas consideraes sobre a prpria formao social e estatal
bolivianas durante a colnia e em seu convulsivo processo de independncia. Aps a
conquista do Imprio Inca, do qual grande parte da atual Bolvia fazia parte, a Coroa
espanhola estabeleceu um sistema indireto de governo atravs das chamadas encomiendas.
Grandes extenses territoriais eram concedidas a encomendeiros, juntamente com toda a
populao indgena nela contida, que eram ento oficialmente responsveis por catequizar os
ndios e tinham o direito de explorar sua mo de obra mediante o pagamento de impostos e o
fornecimento de mo de obra e auxlio militar Coroa. Os caciques indgenas, entretanto,
1 O texto em
2
3 Algo j reconhecido em grande medida pela bibliografia boliviana e bolivianista desde pelo menos o seminal
trabalho de Tristn Platt (1982).
-
19
tiveram sua nobreza reconhecida e atuavam como intermedirios entre os encomendeiros (e
por extenso a Coroa) e o resto da populao aborgene, sendo responsveis pelo
recolhimento de tributos e reunio de mo de obra para a mita4.
No entanto, o sistema no era totalmente confivel para a Espanha na medida em que
muitos encomendeiros se tornavam demasiadamente poderosos e lutavam entre si por maiores
poderes e autoridade. Especialmente aps a descoberta das imensas jazidas de prata de Potos
nos anos 1540, tornou-se imperativo a montagem de um sistema mais eficiente e confivel
para a explorao das imensas riquezas que se anunciavam. A fundao em 1561 da Real
Audincia de Charcas, rgo jurdico-administrativo responsvel pela maior parte do territrio
correspondente Bolvia (ento chamada de Alto Peru), dependente do Vice-Reino do Peru,
mas com certo grau oficial de autonomia e cujas funes de governo frequentemente se
superpunham s daquele, foi uma primeira tentativa de racionalizao do sistema
administrativo colonial. Mas foi o vice-rei Francisco de Toledo quem desenharia o novo
sistema colonial entre 1574-77 a partir de reformas que buscaram, ao mesmo tempo,
sistema administrativo de padres ibricos e integrar as comunidades indgenas ao mercado
colonial (KLEIN, 1992, 2003; MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008; SAIGNES, 1999;
THORNTON, 2011).
Toledo buscou concentrar as comunidades indgenas que viviam espalhadas por
grandes territrios em redues de geografia semelhante ao urbanismo castelhano de ento.
Como forma de diminuir algo do poder dos caciques, criou uma srie de postos civis anlogos
aos existentes na Espanha, como prefeitos e corregedores, cujas autoridades se sobrepunham
ao poder soberano dos caciques sobre as comunidades. Mas para garantir o controle sobre
essas mesmas comunidades e sua aquiescncia extrao de tributos e trabalho necessrios
para a colnia, o vice-rei manteve em grande medida o papel dos caciques como
intermedirios entre os dois mundos e com a manuteno de altos graus de autonomia interna
s comunidades conquanto seguissem cumprindo com suas obrigaes coloniais tributrias e
de fornecimento de mo de obra s minas. Como ser visto nos captulos 1 e 2, esse sistema
de soberania territorial indireta e pacto colonial de reciprocidade seriam mantidos ainda
durante muito tempo na Repblica independente por razes de necessidade fiscal e
4 Trabalhos forados prestados pelos indgenas Coroa, em geral nas minas. A mita fora uma incorporao pelo
sistema colonial do sistema pr-existente de trabalhos coletivos rotativos obrigatrios que as comunidades
deviam prestar ao Imprio Inca.
-
20
dissoluo formal e jurdica das comunidades indgenas, essa autonomia de facto seria
mantida em muitos lugares do extenso territrio boliviano que, por um motivo ou outro em
geral, ausncia de recursos econmicos de interesse estratgico imediato , no eram objeto
de ateno do poder pblico e suas instituies. Mesmo j avanado o sculo XX, s vsperas
da Revoluo de 1952 e em muitos casos tambm ainda alm dela (como ser visto no
5 (IRUROZQUI, 2000a)
6 (MALLOY, 1970) para
diferenciar entre aqueles atores e grupos sociais e polticos plenamente integrados ao que se
poderia qualificar como sistema poltico nacional, propriamente boliviano, e no meramente
local e com pouca vinculao com as disputas nacionais, correspondendo estes ltimos
durante a maior parte de sua histria maior parte do territrio e da populao bolivianos.
Foi a persistncia to profunda dessa situao de desconexo ftica entre o Estado e
seu territrio e a maioria de seus cidados7 que levou o socilogo Ren Zavaleta a cunhar o j
clebre conceito de formao social abigarrada8: a sociedade boliviana seria composta, na
verdade, por muitas sociedades e civilizaes justapostas, com tempos socioeconmicos
distintos e na qual nenhuma delas capaz de impor sua hegemonia completamente sobre as
outras (ver SANTAELLA GONALVES, 2012; TAPIA, 2002; ZAVALETA MERCADO,
2009b). Ao mesmo tempo em que possua setores capitalistas modernos e conectados
economia mundial, como os enclaves mineiros, a Bolvia ostentava inmeras comunidades
isoladas e com economias de subsistncia no capitalista ou pouqussimo integradas ao
mercado nacional9. O encadeamento entre essas vrias sociedades e economias seria mnimo,
muitas vezes meramente formal e era nessa caracterstica peculiar, cujas origens remontam
em grande medida ao legado colonial espanhol (preservado durante a maior parte do perodo
republicano), que Zavaleta identificava a origens das frequentes crises de hegemonia pelas
quais passava o pas.
Embora o conceito tenha em alguma medida se tornado um chavo reificado, que de
to repetido s vezes se presta a confuses e exageros, como quando Luis Tapia (2011b, p.
5
6
7
somente se torna uma realidade aps a Revoluo de 1952. At ento, a cidadania boliviana muito mais do que
um direito era um privilgio de poucos
passava a servir como uma distino quase de casta, separando aqueles que a detinham do restante das massas
brbaras e ignaras (ver IRUROZQUI, 1996, 2000a, 2004). 8 Abigarrado, em espanhol, seria traduzido ao portugus como variegado, feito de retalhos justapostos. Como a
traduo parece perder um pouco do sentido original, opto por manter o termo no original. 9 O qual, num sentido pleno do termo, era virtualmente inexistente durante a maior parte da histria boliviana,
salvo para alguns produtos especficos como a coca, utilizada como estimulante pelos trabalhadores mineiros.
-
21
48) afirma que a Bolvia seria apenas o nome formal de um pas referido apenas a sua
sociedade dominante e sem maiores vinculaes com suas multi-sociedades subalternas10
,
com as devidas matizaes a noo de que a Bolvia uma sociedade abigarrada continua
sendo um conceito chave para a compreenso das dinmicas polticas do pas e de sua
tentativa de refundao institucional enquanto Estado Plurinacional, como ser visto no
captulo 4. Se na alvorada do sculo XXI a formao social boliviana talvez j no seja to
abigarrada quanto o fora em pocas pretritas em termos de uma desconexo to profunda
entre seus elementos constituintes, havendo j fortes indcios de que se possa falar em um
Estado e uma sociedade efetivamente nacionais (ainda que esta permanea profundamente
plural e heterognea), algo que se conecta fortemente com a discusso do abigarrado em
termos poltico-instuticionais o fenmeno que George Gray Molina (2008, p. 110.Traduo
nossa) 11
.
[S]em dvidas um dos mais persistentes legados do domnio colonial espanhol na
12 (GRAY MOLINA, 2008, p. 112), o Estado boliviano
teve que ir se construindo no como costuma acontecer, fruto de um processo linear de
expanso territorial da soberania de um ncleo pr-existente, mas sim em um lento processo
de negociao de limites e fronteiras da legitimidade da ao estatal frente a soberanias locais
protoestatais constitudas. Comunidades indgenas autnomas de jure ou de facto, caudilhos e
elites regionais locais frequentemente em disputa entre si e mais contemporaneamente
sindicatos mineiros e camponeses frequentemente detinham na prtica a soberania territorial
em suas regies, bem como a legitimidade local frente ao seu exerccio de funes e aes
tidas como tipicamente estatais. Isto no quer dizer que o Estado boliviano tenha abdicado de
10
O que, como se ver no captulo 4, inexato e contradito pelos nmeros das pesquisas de opinio pblica.
Mesmo em um ano altamente conflitivo e que para muitos se inseria em uma conjuntura plenamente
revolucionria como foi 2004, 85% da populao afirmara sentir
(VERDESOTO; ZUAZO, 2006, p. 33), dado estatstico que no mostrava variaes significativas mesmo
diante da autoidentificao positiva dos respondentes com identidades tnicas. Pelo contrrio, em alguns casos
como na autoidentificao enquanto quchua, embora pequena a tendncia era inclusive de reforo ao
sentimento de pertencimento comunidade nacional boliviana (VERDESOTO; ZUAZO, 2006, p. 37). Mas
mesmo em perodos bastante anteriores (ver ALB; BARRIOS SUVELZA, 2007, p. 36), como durante a
presidncia de Manuel Isidoro Belzu (1848-1855), o presidente que consolidou os smbolos nacionais
bolivianos (bandeira, braso e hino nacional), h registros historiogrficos de busca pelo presidente do reforo
de sua legitimidade poltica atravs da adoo de atos simblicos embebidos nas tradies indgenas e, o que
pelas massas indgenas do pas (ver THIESSEN-REILY, 2008). Eram sem dvidas elementos bastante
massificar somente aps a Revoluo de 1952 (ALB;
BARRIOS SUVELZA, 2007, p. 169), mas que so importantes de reconhecer e considerar a fim de no cair
em simplificaes excessivas ou exageros demasiados sobre a ideia de ausncia de uma bolivianidade capaz de
- 11
O texto em lngua estrangeira : 12
-standing legacies from Spanish
colonial rule in present-
-
22
frequentemente adotava uma espcie de mando indireto atravs de proxies que ocupavam um
legitimidade precisavam ser frequentemente renegociadas (GRAY MOLINA, 2008, p. 112).
Ainda segundo Gray Molina (2008, p. 120. Traduo nossa), contemporaneamente o
devido incapacidade de alcanar a populao, mas
devido falha em adquirir uma legitimidade vinculante quando o faz13
. Segundo ele, teria se
desenvolvido no pas um modus vivendi entre Estado e sociedade fortemente marcado por
legitimidades conflitantes que, atravs dessa perene renegociao bilateral da legitimidade,
teria conseguido evitar no pas graus elevados de violncia poltica, guerras civis prolongadas
ou conflitos tnicos exacerbados apesar dos notrios ndices de pobreza extrema,
desigualdades sociais, fragmentao tnica e desequilbrios econmicos regionais. Mas por
outro lado, tambm teria sido incapaz de gerar um ncleo comum de legitimidade, fazendo
com que conflitos que envolvam mais do que um ncleo territorial de proto-soberania (e,
portanto, de legitimao) inevitavelmente derivem em demonstraes de fora e aes de
protesto poltico direto, pois a soluo passaria inevitavelmente por uma poltica crua de
demonstrao e exerccios de fora, ainda que a mesma viesse posteriormente a ser
r de reformas e aes legislativas.
ltimo pas sul-americano a consolidar sua independncia em 1825, o territrio da
atual Bolvia fora, no entanto, pioneiro nas lutas independentistas. J no perodo 1780-1 partes
do atual territrio boliviano (entre outros, Chayanta, Oruro, Tupiza e La Paz) foram
importantes epicentros da grande sublevao anticolonial pan-andina liderada em diferentes
fases por heris indgenas como Jos Gabriel Condorcanqui (Tupac Amaru II), Toms Katari,
Julin Apaza (Tupaj Katari) e Bartolina Sisa (HYLTON; THOMSON, 2007; KLEIN, 1992,
2003; MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008; THOMSON, 2002). Embora a
historiografia oficial tenha por muito tempo negado o carter precursor de tais revoltas no
processo independentista (THOMSON, 2002, 2003), como ser visto no captulo 2 as
sublevaes do final do sculo XVIII foram importantes momentos constitutivos que
delinearam importantes partes do horizonte poltico indianista contemporneo e cuja memria
seria devidamente resgatada e ativamente mobilizada por intelectuais e lderes polticos
indgenas da Bolvia ps-52. Mas mesmo desconsiderando o papel precursor de tais
sublevaes, ainda a partir da historiografia oficial o pas continua pioneiro no incio do
13
ach the population
-
23
processo independentista tendo sido o primeiro a emitir no uma, mas duas proclamas
independentistas em 1809: a de 25 de maio na atual cidade de Sucre, sede da Real Audincia
de Charcas e proclamada pelos prprios ouvidores da Audincia; e a de 16 de julho na cidade
de La Paz14
, liderada entre outros pelo mestio Pedro Domingo Murillo.
Dentro do contexto da ocupao napolenica da Pennsula Ibrica na Europa, que
resultou no aprisionamento do monarca espanhol Fernando VII e na fuga da famlia real
da
Audincia proclamaram seu desconhecimento da autoridade do vice-rei Liniers e a
constituio de um governo independente em Charcas. O argumento utilizado era a doutrina
Francisco Xavier, localizada na mesma cidade da Audincia, e que se baseando nas doutrinas
de So Toms de Aquino proclamava que a autoridade governamental provinha do povo e que
o rei governava em seu nome; desaparecendo o rei, a soberania voltava ao povo e somente
este poderia tomar determinaes. Assim, com o pretexto da priso de Fernando VII, os
ouvidores da Audincia de Charcas proclamaram a independncia da mesma e enviaram
emissrios a outras cidades sob sua jurisdio para informar dos sucessos ali ocorridos. Foi,
entretanto, um acontecimento quase completamente restrito prpria burocracia da audincia
e sem maiores consequncias ou aes populares (KLEIN, 2003, p. 912; MESA; GISBERT;
MESA GISBERT, 2008, p. 24850).
J a proclama emancipatria pacenha, por sua vez, embora tenha se valido do mesmo
silogismo alto peruano como pretexto para proclamar a independncia, foi um evento mais
radical e de maior participao popular. Aproveitando-se da procisso religiosa da Virgem de
Carmem, os revolucionrios de La Paz detiveram ao intendente Tadeo Dvila e convocaram a
uma assembleia pblica (cabildo) que declarou a conformao de uma Junta Tuitiva
independente sob a presidncia de Domingo Murillo e que contou, inclusive, com a
participao de trs representantes indgenas em nome das provncias de Yungas, Omasuyos e
Sorata. A Junta foi, entretanto, brutalmente esmagada por tropas realistas enviadas desde
Cusco e maioria de seus lderes, incluindo Domingo Murillo, foram executados, esquartejados
e seus restos exibidos em locais pblicos de diversas localidades (KLEIN, 2003, p. 923;
MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008, p. 2512; WHITEHEAD, 2001, p. 24).
14
Quito, no atual Equador, tambm se rebelaria em 1809, mas apenas em dezembro e Buenos Aires iniciaria seu
processo independentista apenas no ano seguinte, em maio de 1810 (MESA; GISBERT; MESA GISBERT,
2008, p. 248).
-
24
Entretanto, a luta independentista prosseguiu no pas atravs de guerrilhas rurais
algumas das quais conseguiram, por algum momento, deter o poder e controle territorial
conformando-se em proto-estados conhecidos na histria boliviana como as republiquetas.
Todas elas, com exceo da republiqueta de Ayopaya15
, entretanto, foram suprimidas pelas
tropas realistas ao longo das lutas de independncia que passaram ento a ser travadas sob
comando principal de foras estrangeiras que j haviam conseguido consolidar sua
emancipao do domnio colonial espanhol, primeiro os Exrcitos Auxiliares de Buenos Aires
e logo as tropas colombianas de Bolvar e Sucre. A relao entre as republiquetas e as tropas
estrangeiras ao longo do processo, sobretudo as argentinas, no esteve livre de tenses, j que
se bem as mesmas procuraram se auxiliar mutuamente, por vezes havia desconfianas entre
suas lideranas e a percepo (no sem fundamentos) de que as tropas auxiliares perseguiam
objetivos prprios e no necessariamente congruentes com o desejo local por autonomia e
emancipao. A lgica inescapvel da guerra de independncia ditava s tropas
independentistas estrangeiras a necessidade de buscar recursos de onde pudessem ser
extrados, como a Casa da Moeda de Potos, e a empreender aes de terra arrasada quando
necessitavam bater em retirada frente s ofensivas realistas que geravam forte rechao das
populaes locais que arcavam com o pior da devastao de uma guerra longa e arrastada e
percebiam tais aes, muitas vezes, como mera pilhagem e conquista. Alm disso, lderes das
republiquetas como Miguel Lanza de Ayopaya ou Manuel Ascencio Padilla em La Laguna16
que durante muito tempo representaram a nica resistncia local ao poder espanhol eram por
vezes tratados como meros subordinados apesar do valor e lealdade demonstrados nos campos
de combate, at serem abandonados prpria sorte quando os interesses portenhos j no
rioridade. Tais contradies, no entanto,
ajudaram a consolidar uma espcie de sentimento protonacional em Charcas que, em ltima
instncia, acabou determinando a formao em seu territrio de uma repblica independente
em 1825 (ver Figura 1) apesar dos desejos de anexao do mesmo por Buenos Aires ou dos
projetos de Simn Bolvar de uni-la ao Peru (ver ROCA, 2011).
Essa narrativa resumida de parte do processo independentista boliviano importante
por algumas razes. A primeira, porque a experincia das republiquetas, de ampla
15
Liderada por Miguel Lanza, a Republiqueta de Ayopaya chegou a controlar uma rea de aproximadamente
1400km2 e conseguiu perdurar por todo o longo perodo de lutas independentistas e chegou mesmo a
conquistar e ocupar La Paz pouco antes da chegada das tropas lideradas pelo Marechal Antonio Jos de Sucre. 16
A Republiqueta de La Laguna foi liderada por Manuel Ascencio Padilla e sua esposa Juana Azurduy de
Padilla e contou com ampla participao popular, incluindo indgenas, na regio norte de Chuquisaca. A
republiqueta foi derrotada na chamada Batalha de La Laguna em 13 de setembro de 1816 com a morte de
Manuel Ascencio Padilla. Sua esposa, entretanto, conseguiu escapar e continuou realizando importantes aes
de guerrilha em cooperao com outras republiquetas ainda em resistncia.
-
25
participao popular e quase todas (sobretudo a de La Laguna) com grande participao
indgena serve para mostrar que os caminhos que o pas independente tomaria de excluso
sistemtica de sua populao aborgene de sua vida poltica nacional no era uma necessidade
histrica inexorvel e talvez por isso mesmo a historiografia oficial boliviana, uma vez
perodo mesmo omitido o registro dessa participao indgena na luta pela independncia. Em
segundo lugar, porque tambm alude aos primrdios da formao dos horizontes de
camaradagem horizontal e destino compartilhado apontados por Benedict Anderson (2006)
oligrquica posterior independncia tenha limitado a amplitude de incluso nessa
comunidade imaginada a uma parcela nfima da populao, de modo a permitir que se falasse
17 (DEMELAS, 1980. Traduo nossa), como se ver no captulo 1 ela deixou
mesmo assim um legado de smbolos, rituais e procedimentos de legitimidade que
contriburam para a percepo de existncia de um pas e sem os quais talvez de fato a Bolvia
fosse mesmo hoje apenas um nome formal referente apenas a sua sociedade dominante como
exagera Tapia (2011b, p. 48). E por ltimo, porque a memria de alguns de seus
acontecimentos, desta vez j no como mero peso das geraes mortas como descrito por
Marx (1997, p. 21), mas como recuperao e mobilizao consciente e necessria para a luta
emancipatria como a define Walter Benjamin em suas teses Sobre o Conceito de Histria
(apud. LWY, 2005) ser fundamental para os atores das matrizes insurgentes indianista e
nacional-popular. Para Benjamin, que concebia a histria como um anjo com as costas
voltadas para o futuro e constantemente soprado adiante pelos ventos do passado, a luta
transformadora alimenta- vizados, e no do ideal dos
(apud. LWY, 2005, p. 108). A histria, para ele, seria como uma
foram vencidos ou esquecidos [...], por no terem podido se realizar continuam latentes e
18 (TAPIA, 2002, p. 32) por essa fasca.
em grande medida por aceitar como vlido o paradigma benjaminiano sobre o
carter da histria e sua influncia nas lutas polticas presentes que esta tese se estrutura a
partir da busca em suas trs grandes matrizes polticas das razes e horizontes de que se nutre
17
18
lvidados
-
26
o atual experimento institucional do Estado Plurinacional inaugurado em 2009. A noo de
que h de fato na histria poltica boliviana tradies to arraigadas ao ponto de poderem ser
-19
(WHITEHEAD, 2001, p. 35.
Traduo nossa) no indita. Por exemplo, o citado Laurence Whitehead (2001) aponta para
a prpria constituio da Audincia de Charcas e a proclamao independentista dos
matriz liberal-constitucionalista no pas
matriz de
participao popular e atuao poltica direta, muitas vezes ultrapassando os canais
institucionais excludentes e que culminaria na Revoluo de 1952, matriz esta que ser aqui
tratada no captulo 3 sob o nome de nacional-popular. Forrest Hylton e Sinclair Thomson
(2007), por sua vez, j trataram dos impactos das memrias das lutas nacional-popular e
indgena sobre a conjuntura crtica do quinqunio 2000-2005, enquanto Silvia Rivera (1987)
j abordara os impactos do que ela chama de memria longa (referente ao passado colonial) e
curta (referente reforma agrria conduzida aps a Revoluo de 1952) sobre os horizontes
de luta indgena-camponesa da Bolvia contempornea. Maristella Svampa (2007), por sua
vez, j especulara se o mencionado quinqunio e sua confluncia de indianismo e nacional-
popular no teria sido j um momento constitutivo suficientemente potente para converter a
curta a influenciar os horizontes polticos do pas.
ir
aos projetos e agendas inconclusas das trs matrizes e seus legados enquanto fontes possveis
semntica que se adequa perfeitamente ao sentido aqui buscado: como notam Hylton e
Thomson (2007, p. 31), horizonte no apenas uma projeo futura de expectativas e
possibilidades, mas em arqueologia significa tambm as diversas camadas sobrepostas de
terra e vestgios humanos cuja escavao o ofcio dessa cincia. Esse duplo sentido, ao
mesmo tempo uma projeo futura e uma acumulao de camadas do passado, torna a palavra
horizonte perfeita para expressar essa noo dos legados das trs matrizes polticas bolivianas
na conformao do atual Estado Plurinacional na medida em que este obviamente um
projeto institucional com aspiraes de futuro, mas tambm e este o argumento desta tese
uma espcie de entroncamento dos legados deixados pelas matrizes pretritas, tanto como
19
-
-
27
peso opressor inescapvel das geraes passadas (MARX, 1997, p. 21) quanto como busca
consciente e recuperao ativa de agendas inconclusas (BENJAMIN apud. LWY, 2005).
Certamente o maior pensador boliviano do sculo XX, Ren Zavaleta Mercado
considerava que o presente poltico podia ser muito melhor explicado atravs da inquisio de
sua gnese histrica que pela descrio de suas instituies e atores sociais contemporneos.
Zavaleta desenvolveu assim a noo de momento constitutivo, processos e conjunturas
normalmente marcados por algum tipo de crise intensa (guerra, mortalidade, depresso
econmica aguda) nos quais se produzem os marcos dentro dos quais se enquadrar a luta
poltica e as estruturas sociais de determinada polis pelos seguintes anos (ver TAPIA, 2002, p.
293 304). Assim, seguindo o mtodo zavaletiano, o que se buscar nos captulos 1, 2 e 3,
respectivamente, ser perscrutar a histria poltica das trs matrizes polticas aqui
denominadas de liberalismo-constitucional, indianismo-comunitrio e nacional-popular em
busca de seus momentos constitutivos e o legado por elas deixados em termos de projetos e
agendas de construo do Estado boliviano para, no captulo 4, tentar mostrar como a sntese
das mesmas influenciou os contornos institucionais concretos do Estado Plurinacional
inaugurado em 2009. Por fim, na concluso busco analisar at que ponto este novo Estado
poder ser bem-sucedido em alcanar aquilo que, como aponta Gray Molina (2008), mais
falta fez a seus antecessores: a constituio de um ncleo comum de legitimidade
institucional.
Figura 1: Bolvia em 1825
-
28
Fonte: Reproduzido de Hylton e Thomson (2007, p. vii).
-
29
1. A matriz poltica do liberalismo-constitucional
Embora seja possvel argumentar que em certo sentido, no apego a um governo
constitucional regido por leis, antecedentes importantes datem da prpria colnia e da
instituio da Audincia de Charcas como rgo governante do territrio hoje correspondente
ao pas (WHITEHEAD, 2001, p. 223), com a fundao da independente Repblica Bolvar
em 1825, posteriormente renomeada para Repblica da Bolvia, que se consolida o
nascimento da matriz poltica liberal boliviana. O prprio processo de independncia no pas,
assim como o dos demais pases da Amrica Hispnica, est marcado em suas origens pelas
controvrsias derivadas da ocupao da Espanha pelas tropas napolenicas, com a priso do
monarca Fernando VII e a revoluo liberal das Cortes de Cdiz na primeira dcada do sculo
XIX. Ainda que em geral os processos independentistas tenham sido deflagrados justamente
pela recusa formal da aceitao do constitucionalismo liberal proposto em Cdiz e as
proclamas de lealdade ao monarca absoluto capturado (ROCA, 2011), o processo das lutas
independentistas tomaria uma dinmica prpria atravs da qual por volta de sua concluso
todos os novos Estados fundados estavam fortemente influenciados - ao menos em um nvel
formal e retrico - pelos ideais associados ao liberalismo europeu e defendidos pelos
principais prceres do Exrcito Libertador de Simn Bolvar.
No caso da Bolvia, que inclusive adotou tal nome em homenagem ao Libertador e
como forma de facilitar a obteno de seu beneplcito consolidao da proclamao de uma
repblica independente no territrio da antiga Audincia de Charcas20
, essa influncia bvia
desde sua primeira constituio, outorgada pelo prprio Bolvar com a inteno declarada de
ser a constituio mais liberal j tida por um pas (ver KOHL, BENJAMIN H.; FARTHING,
2006, p. 41; URIOSTE NARDIN, 2009, p. 71). As reformas propostas por Bolvar eram
extremamente ambiciosas e buscavam liquidar com as estruturas coloniais herdadas, como os
privilgios da Igreja ou as estruturas de posse comunal de terras indgenas e os impostos
20
Em suas ideias de unio continental, Bolvar favorecia pessoalmente a constituio de um nico Estado
independente nos territrios que hoje formam Peru e Bolvia. Entretanto, as experincias de autogoverno
propiciadas pela longa existncia da Audincia de Charcas (fundada em 1561) com atribuies que muitas
vezes se sobrepunham s do Vice-Reino do Peru (e nos ltimos anos da colnia ao de Buenos Aires), alm de
vicissitudes prprias da dinmica mesma da longa e arrastada guerra de independncia no solo boliviano
ocasionaram o surgimento de um embrio de sentimento nacional percebido pelo Marechal Sucre e que o levou
a acatar o desejo local de constituio de um Estado independente apesar das resistncias de Bolvar. A escolha
do nome teria sido uma forma de tentar atrair suas simpatias ao projeto a partir da homenagem (ROCA, 2011).
-
30
corporativos por eles pagos, sem no entanto preocupar-se com entender como funcionavam
realmente na prtica as estruturas sociais, polticas e econmicas no novo pas.
Como logo constataria o Marechal Antnio Jos de Sucre, brao direito de Bolvar e
primeiro presidente a exercer de fato a presidncia boliviana (1825-28)21
, a realidade concreta
do novo pas logo imporia claros limites e resistncias ao ambicioso projeto de reformas
liberais, mesmo entre grupos pensados como beneficirios diretos das mesmas. Por exemplo,
os decretos de Bolvar de 1824 e 1825 estabeleciam que os indgenas seriam os proprietrios
individuais das terras que ocupavam e aboliam o status corporativo das comunidades
indgenas e o tributo indgena, com a inteno de assim eliminar o que ele via como um
oneroso e discriminador resqucio colonial e integrar os indgenas como cidados plenos da
nova repblica. Entretanto, as reformas foram resistidas pelos prprios indgenas tanto pela
inadequao da quantidade de terras individuais a ser recebidas aos padres andinos de
agricultura vigentes, quanto pelo temor a um novo status individual desconhecido e sem as
protees corporativas comunitrias de que gozavam. De qualquer forma, a prpria situao
econmica desastrosa do novo pas se encarregaria de sepultar os projetos de reforma: com a
economia em runas pela longa guerra de independncia, com as minas abandonadas e sem
capital suficiente para sua recuperao, o Estado boliviano tinha no tributo indgena a nica
fonte de ingressos com que podia contar com segurana naquele momento, de modo que
Sucre abortou a ambiciosa reforma agrria bolivariana pelo pragmtico motivo da
dependncia fiscal (ver KLEIN, 1993, 2003; LANGER, 1988; LANGER; JACKSON, 1997;
MESA; GISBERT; MESA GISBERT, 2008).
Aps sua renncia presidncia em 1828 provocada em grande medida, entre outros
motivos, pela forte resistncia das elites locais a tentativas de reformas que ameaavam
alguns de seus privilgios o pas ingressaria em um perodo relativamente longo no qual o
liberalismo boliviano entraria numa espcie de refluxo ideolgico, sendo deixados de lado
projetos mais ambiciosos de reforma com intenes plenamente programticas de liquidar
com os legados no-liberais herdados da colnia pela nova repblica. Com a presidncia do
Marechal Andrs de Santa Cruz (1829- entre os ideais
universais de modernidade proclamados pela repblica e heranas coloniais como as
comunidades indgenas de facto autnomas seria inclusive formalizado em 1831, com lei
aprovada que declarava os indgenas proprietrios de todas as terras que houvessem ocupado
por um prazo mnimo de dez anos, mantendo a cobrana do imposto indgena colonial e que
21
Bolvar foi declarado seu primeiro presidente, mas no chegou a exercer na prtica o cargo que lhe fora
designado, abdicando em favor de Sucre (ver MESA GISBERT, 2006).
-
31
-se na negao dos decretos promulgados entre 1824 e 1825 pelo
22 (LANGER, 1988, p. 62. Traduo nossa). A partir da, com algumas pequenas
alteraes como os decretos de Jos Ballivin (1841-47) em 1842 que estabeleceram que a
propriedade das terras comunais pertencia ao Estado, embora sua posse aos indgenas
estivesse assegurada em
nacional sairia do primeiro plano da agenda poltica at pelo menos a dcada de 1860 quando
retornaria com fora total. Durante o perodo, o grande alvo da matriz liberal boliviana se
concentraria principalmente em temas econmicos, com a pugna pela implementao de um
regime econmico livre-cambista em oposio a preocupaes mercantilistas de consolidao
de um mercado nacional defendidas por nomes como o prprio Santa Cruz e Manuel Isidoro
Belzu (1848-55) depois dele (ver LANGER, 1988; SCHELCHKOV, 2007; ZAVALETA
MERCADO, 2008). Mas cada vez mais essas ideias iriam perdendo a batalha ideolgica com
o livre-cambismo que se consolidaria como o modelo econmico do pas e a espinha dorsal da
matriz liberal boliviana at o retorno das preocupaes com a modernizao de suas estruturas
sociais mais profundas que, como veremos, no voltaria apenas por preocupaes
programticas ou compromissos plenamente ideolgicos.
Mas j durante esse perodo, no entanto, alm das discusses econmicas a matriz
liberal local tambm foi se assentando mesmo atravs dos defensores de polticas
econmicas protecionistas que, como ser visto no captulo 3, dariam incio ao embrio da
matriz nacional-popular boliviana por meio da consolidao dos elementos simblicos de
deteno legtima do poder estatal prprios do iderio liberal como a realizao de eleies, a
proclamao de constituies, a existncia de parlamentos e a separao de poderes. Ainda
que at a consolidao do primeiro sistema de partidos do pas a partir de 1880 o golpe de
Estado tenha sido a forma por excelncia de acesso ao poder e mesmo a partir da as fraudes
eleitorais tambm tenham sido regra e o prprio golpe como possibilidade de tomada do
poder nunca tenha sido totalmente descartada como atestariam seu retorno em 1899 e 1920
o fato que mesmo o mais autoritrio dos caudilhos militares nunca abdicou de recorrer
promulgao de uma nova constituio e convocao do parlamento como forma de
legitimar ex post sua deteno do poder poltico nacional, razo pela qual opto por chamar
aqui tal matriz de liberal-constitucional. E como nas disputas intraelite pelo poder as faces
perdedoras sempre denunciavam os abusos, atropelos e descumprimentos das regras
22
O texto em lngua
-
32
discursos acusatrios em torno do que deveriam realmente ser e como deveriam realmente ser
operados foram contribuindo para sedimentar uma imagem do que deveriam ser a repblica e
a democracia legtimas. O que, por vias tortas, acabaria sendo o maior e mais duradouro
legado da matriz liberal-constitucional boliviana ao pas (ver IRUROZQUI, 2000a, 2004,
2011; PERALTA RUIZ; IRUROZQUI, 2000).
Ao longo desse perodo de expanso das polticas econmicas de livre-mercado que
coincide com a lenta, mas firme recuperao da atividade mineira associada a capitais
internacionais e com ela o aumento da influncia poltica dos grandes magnatas mineiros
o pas foi consolidando suas instituies em um formato republicano-oligrquico, com
eleies censitrias e critrios excludentes de cidadania poltica que deixavam oficialmente de
fora maior parte de sua populao e que com alteraes persistiria at o sculo XX, sendo
totalmente superado apenas com a Revoluo de 1952. Obviamente que essa profunda
oligarquizao da Repblica da Bolvia contradizia os ideais de igualdade e liberdade
universais celebrados nos discursos e objetivos oficiais da mesma. Mas ainda que no seja o
foco de interesse principal deste captulo discutir o quanto desses contornos concretos se
devem ou no a faltas de compromisso verdadeiros com os preceitos programticos dessa
ideologia ou a sua apropriao meramente retrica e com fins interesseiros por parte da elite
nacional, creio caber aqui uma pequena digresso terica sobre c
de determinados segmentos populacionais ao mesmo tempo em que proclama ideais
universais de incluso. Como explica o filsofo poltico Uday Mehta (1997), a universalidade
do liberalismo se baseia em uma espcie de antropologia filosfica que reputa ao homem
certas capacidades inatas:
as proclamas universais [do liberalismo] podem ser feitas porque derivam de certas
caractersticas comuns a todos os seres humanos. Centrais dentre essas caractersticas
antropolgicas ou fundantes para a teoria liberal so as alegaes de que todos so
naturalmente livres, que so iguais nos aspectos morais relevantes, e finalmente que so
racionais. Pode-se assim dizer que o ponto de partida para as prescries polticas e
institucionais da teoria liberal um mnimo antropolgico ou denominador antropolgico
comum23 (MEHTA, 1997, p. 63. Traduo nossa).
O problema que permite a excluso sistemtica de segmentos sociais determinados ao
mesmo tempo em que se proclamam ideais universais de igualdade que esse denominador
antropolgico comum depende de qualificativos para a definio de quem os cumpre que
23
characteristics that are common to all human beings. Central among these anthropological characteristics or
foundations for liberal theory are the claims that everyone is naturally free, that they are in the relevant moral
respects equal, and finally that they are rational. One might therefore say that the starting point for the political
and institutional prescriptions of liberal theory is an anthropological minimum or an anthropological common
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esto firmemente enraizados em definies culturais especficas. Assim que essa
racionalidade exigida para a participao como igual nos critrios de cidadania poltica
invariavelmente esteve associada a uma definio ligada aos ideais eurocntricos de
civilizao que negavam de partida qualquer possibilidade de racionalidade a coletivos como
escravos, populaes aborgenes, mulheres, menores de idade ou demais segmentos
subalternos aos quais sempre era possvel reputar por irracionais e, portanto, excludos da
comunidade poltica cidad plena (ver tambm POSTERO, 2007). Seria essa caracterstica,
que Mehta identifica como inerente s premissas tericas do liberalismo desde John Locke e
passando pelos demais prceres dessa corrente intelectual como James e John Stuart Mill, a
que teria permitido a essa corrente intelectual submeter pases inteiros ao jugo colonial sem
contradizer formalmente seus ideais polticos e excluir durante muito tempo imensos
segmentos populacionais da vida poltica nacional.
No caso boliviano, ela serviria para justificar a posio poltica subalterna no apenas
da maioria indgena
civilizatria, sempre podia ser tida por incapaz de exercer racionalmente seus direitos
polticos por supostamente estar submetida vontade dos caciques comunitrios ou dos
patres nas haciendas , mas tambm dos artesos supostamente submetidos ao arbtrio dos
mestres das oficinas s quais se vinculavam, das mulheres submetidas ao arbtrio de seus
maridos etc., embora como ser visto adiante essa excluso poltica nunca tenha sido
completa e em suas contradies tenha favorecido as condies para a implementao do
ideal democrtico no pas e para o nascimento e consolidao da matriz nacional-popular.
1.1 Das reformas bolivarianas consolidao da Repblica Oligrquica
Quando Antnio Jos de Sucre, o Marechal de Ayacucho, assumiu a presidncia da
Bolvia em 1826, o brao direito do Libertador Simn Bolvar estava comprometido a levar
adiante as reformas sociais e polticas iniciadas por seu mentor e amigo visando liquidar
plenamente com o passado colonial e moderniz-lo a partir de ideais liberais e republicanos.
Entretanto, a magnitude do alcance das reformas almejadas somada fragilidade das
capacidades institucionais do novo Estado independente, a resistncia de interesses
estabelecidos e o ainda indefinido balano geopoltico entre os novos pases com fronteiras
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em disputa conspiraram para o fracasso da mais profunda tentativa de romper com o passado
colonial em nome de ideais e princpios liberais.
Como j mencionado, o prprio Bolvar decretara em 1824 e 1825 uma reforma
agrria que pretendia transformar os indgenas em proprietrios individuais de suas terras e
abolia suas obrigaes coloniais como o trabalho forado (mita) e o tributo indgena, mas que
ao mesmo tempo acabava com suas distines corporativas como a existncia legal das
comunidades. Isto acabou gerando resistncias s mudanas por parte dos prprios indgenas,
sobre quem as obrigaes coloniais eram certamente uma carga onerosa, mas que temiam as
incertezas da mudana de status e seu nivelamento jurdico com a sociedade crioula que lhes
oprimia. A reviso da histria boliviana, especialmente a partir do surgimento de importantes
intelectuais indgenas e do fortalecimento da matriz indianista no pas sobretudo a partir do
Katarismo (ver captulo 2), tem criticado severamente os decretos bolivarianos por tentar
impor valores e estruturas fundirias de matriz eurocntricos sobre a organizao tradicional
agrcola andina, mas se verdade que uma razo fundamental do fracasso destas reformas foi
o seu grande desconhecimento da realidade concreta realmente existente, preciso reconhecer
que sua inspirao era claramente progressista. Os objetivos ltimos dos decretos de Bolvar
eram possibilitar a incorporao de sua grande massa indgena como cidados plenos da nova
repblica, embora a forma escolhida tenha realmente pecado por um idealismo talvez
excessivo que o fez tentar implementar uma reforma baseada em princpios ideolgicos
De qualquer maneira, Sucre partiu dos decretos bolivarianos e dos efeitos de renncia
fiscal neles contidos para desenhar seu primeiro grande projeto, a reforma do sistema
tributrio nacional. Alm do tributo indgena que representava cerca de 60% da arrecadao
(KLEIN, 2003, p. 1045) , o sistema tributrio colonial inclua uma srie de impostos e taxas
de carter regressivo, que incidiam desproporcionalmente sobre os setores da populao e
desincentivavam o comrcio e a produo ao estabelecer monoplios e taxar o consumo.
Aps 1825, a reforma tributria se tornou necessria por duas razes. Era imperativo
simplificar e modernizar a complicada, desigual e ineficiente estrutura tributria colonial para
torn-la compatvel com os princpios republicanos. Com a mesma importncia, a reforma
tributria era tambm necessria para suprir os crescentes custos do governo independente, de
modo que as novas instituies polticas pudessem sobreviver o primeiro e crtico ano24
(LOFSTROM, 1970, p. 281. Traduo nossa).
24
It was imperative
to simplify and modernize the complicated, inequitable, and inefficient colonial tax structure, to make it
conform with republican principles. Equally important, tax reform was needed to provide for the growing costs
of independent government,
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O tributo indgena j havia sido abolido pelo decreto de Bolvar de 1825, que ademais
imposto direto e universal consistindo de um
imposto pessoal, um imposto sobre a propriedade e um imposto de renda para os indivduos
25 (LOFSTROM, 1970, p. 282. Traduo nossa)
que seria implementada em carter experimental por um ano, prazo aps o qual o parlamento
do novo pas deveria decidir. Em janeiro de 1826, o presidente Sucre emitiu uma resoluo
reforma revolucionria e prometia modernizar a estrutura tributria do Estado ao estabelecer a
26 (KLEIN, 2003, p. 107. Traduo nossa).
De acordo com a resoluo presidencial, deveria ser elaborada uma listagem geral de todos os
habitantes do pas por canto e provncia de modo a servir de base ao imposto pessoal e uma
comisso especial seria criada para realizar a avaliao de todas as propriedades rurais e
urbanas sobre as quais incidiria o imposto de propriedade. Em fevereiro do mesmo ano, o
presidente Sucre ainda aboliu ou reduziu significativamente os impostos incidindo sobre os
produtos alimentcios e em agosto foram abolidos impostos sobre o comrcio conhecidos
como alcabalas e reduzidas as taxas sobre o comrcio de coca, ndigo e manufaturados com a
inteno de estimular a produo. Com o mesmo objetivo, j havia sido abolido o monoplio
estatal sobre o tabaco.
Entretanto, as resistncias ao novo cdigo tributrio no se fizeram esperar. O
principal foco de crticas era a abolio do tributo indgena e sua substituio por uma taxao
universal que incidiria sobre um grande universo de pessoas que jamais havia pagado
Abusos
cometidos pelas autoridades locais encarregadas da avaliao das propriedades tambm
contriburam para aumentar as resistncias, de modo que o governo chegou a crer que poderia
revert-las atravs de um maior controle sobre esses funcionrios, o que foi tentado com lei de
julho de 1826. Mas a persistncia dessa oposio social crescente que impediu a
concretizao do cadastro fiscal necessrio para o novo modelo somada forte queda na
arrecadao levaria o governo a iniciar uma volta atrs j em agosto, quando o Congresso
aprovou uma lei reinstalando temporariamente o tributo indgena e prorrogando em seis
meses a vigncia de alguns tributos indiretos. Mas mesmo isso foi insuficiente para calar as
crticas e em dezembro a reforma foi praticamente revertida ao status quo ante, com a
25
and an income tax for individuals engaged in 'the sciences, ar 26
-
36
abolio da contribuio pessoal, o reestabelecimento pleno do tributo indgena e a converso
do imposto sobre propriedades em uma taxa cobrada a partir dos valores informados
voluntariamente pelos prprios proprietrios (ver KLEIN, 2003, p. 107; LOFSTROM, 1970,
p. 285 6).
Alm das dificuldades provocadas pela resistncia social reforma, foi decisiva para
seu aborto a severa situao fiscal do novo Estado, com uma economia estagnada e incapaz de
gerar os recursos necessrios para sua sustentao. Sucre estava ciente do caos econmico e
vinha tentando reviver a indstria mineira boliviana atravs de incentivos ao investimento de
capitais estrangeiros e da reestruturao da Casa da Moeda e do Banco Real de San Carlos,
entidade estatal responsvel pela compra e revenda de ouro e prata. Mas se a reestruturao
desses dois organismos estatais de interveno no setor mineiro conseguiu ser bem sucedida,
as medidas de incentivo atrao de capitais estrangeiros mostraram-se insuficientes diante
da magnitude dos custos envolvidos em reativar as minas abandonadas e inundadas num
contexto em que a mo de obra barata indgena tradicionalmente utilizada no pas se
encontrava indisponvel pela abolio da mita. Mas foram tambm em parte esses fracassos e
a consequente necessidade urgente de encontrar recursos que levaram Sucre a sua reforma de
mais profundo e duradouro sucesso: o ataque Igreja.
Embora a constituio bolivariana tenha mantido o catolicismo como culto oficial,
tanto Sucre como Bolvar eram, em coerncia com o liberalismo por ambos professados,
anticlericais e na busca por encontrar recursos com os quais sustentar o novo Estado o
Marechal de Ayacucho buscou destruir de vez o poder poltico da Igreja no pas atravs da
confiscao dos dzimos arrecadados e das terras da Igreja. Sucre ordenou ainda o fechamento
da maioria dos monastrios e conventos e na prtica converteu ao clero que permaneceu em
funcionrios pblicos do Estado. Embora em termos fiscais o ataque Igreja no tenha sido
suficiente para as necessidades do Estado, tanto pela grande magnitude destas quanto pela
estagnao econmica que impediu maiores arrecadaes com o leilo das terras confiscadas,
em termos polticos, as reformas eclesisticas de Sucre foram um sucesso absoluto. [...] Como
resultado, a Igreja se tornou um ator dependente e passivo pelo resto do sculo. Alm disso, a
Bolvia foi poupada dos horrores dos conflitos religiosos experimentados por muitas das
repblicas da Amrica e mostrou uma tolerncia religiosa incomum para os padres latino-
americanos27 (KLEIN, 2003, p. 109. Traduo nossa; ver tambm LANGER; JACKSON,
1997; LOFSTROM, 1970).
27
ms, the Sucre church reforms were a total success. [...] As a
result, the church became a dependent and passive actor in the affairs of the state for the rest of the century.
Furthermore, Bolivia was spared the horrors of the religious conflicts that were experienced by many of the
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Em agosto de 1828, no entanto, Sucre seria ferido na tentativa de conter um motim
militar (era a terceira sublevao de tropas enfrentada pelo marechal) e, desiludido,
renunciaria presidncia desenhada por Bolvar para ser ocupada de forma vitalcia e deixaria
o pas em um exlio voluntrio. A queda de Sucre, que sempre teve uma presidncia
politicamente instvel ao longo de seus cerca de trs anos como mandatrio, certamente foi
muito influenciada pelo descontentamento gerado por sua ampla agenda de reformas, mas
outros fatores tambm tiveram importncia.
Em primeiro lugar, disputas pelo prprio poder em si e pelo controle de cargos
estratgicos tidos como recompensa legtima esperada por membros da elite com participao
importante no processo anterior de independncia. No processo que Lofstrom (1973) chama
buscava substituir a todos os espanhis por patriotas indicados por comits locais, mas o mau
desempenho de muitos dos novos funcionrios incluindo notveis prceres locais da
independncia como o ex-guerrilheiro da republiqueta de Ayopaya, Jos Miguel Lanza, ou
Casimiro Olaeta nos cargos para os quais haviam sido designados deixara Sucre
desapontado com a capacidade administrativa local. Assim, a poltica fora revertida em prol
de uma maior centralizao das nomeaes nas mos de Sucre, as quais passaram a ser feitas
em favor cada vez maior de oficiais do Exrcito Libertador, veteranos companheiros de armas
do marechal.
As reformas econmicas e sociais empreendidas por Sucre foram inspiradas no pensamento
liberal e tinham como objetivo ltimo a destruio dos vestgios do Estado patrimonial
espanhol. Mas para poder ter a mais remota chance de sucesso, esse programa de reformas de
inspirao democrtica teve que ser imposto sociedade Alto Peruana da maneira mais
antidemocrtica possvel, virtualmente eliminando a participao dos Alto Peruanos28
(LOFSTROM, 1973, p. 197. Traduo nossa; ver tambm PERALTA RUIZ; IRUROZQUI,
2000, p. 38).
Alm da oposio prpria natureza das reformas, o ressentimento por seu alijamento
dos altos cargos administrativos e o fato de que elas eram implementadas por mos
estrangeiras includas as do prprio Sucre logo se tornariam um pretexto imperdvel de
converter a oposio a elas em uma questo nacional, na oposio ao controle do novo pas
por filhos de outras ptrias. E uma terceira razo importante, mas tambm relacionada a essa
questo nacional tem a ver com o equilbrio geopoltico do continente. A presena do brao
direito de Simn Bolvar na presidncia de um pas cuja independncia fora aceita a
28
liberal thought and had as their ultimate goal the destruction of the vestiges of the Spanish patrimonial state. In
order to have a remote chance of success, however, this democratically inspired reform program had to be
imposed on Upper Peruvian society in a most undemocratic fashion, virtually eliminating the participation of
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contragosto tanto pelo Peru quanto pela Argentina era uma fonte constante de tenso na
poltica dos vizinhos, ainda mais quando cerca de 8000 soldados do Exrcito Libertador
permaneciam aquartelados no territrio da Bolvia. Assim, o pas se viu imerso nas disputas
geopolticas que tomavam conta de um continente de fronteiras ainda incertas, disputas essas
que incidiam nas conspiraes internas e que contriburam para a queda de Sucre e a expu