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HVMANITAS- Vol. XLIX (1997) 'PIRATAS EM BUARCOS' DIGRESSÃO ÉPICA NA ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA DO R FRANCISCO MACHADO - SJ (1629) OU REAVALIAÇÃO DOS CRITÉRIOS DE PRODUÇÃO LITERÁRIA DO SÉC. XVI CARLOTA MIRANDA URBANO Universidade de Coimbra Escritas sob a influência de um conjunto de preceitos e lugares-comuns vigentes no meio humanista do renascimento português, as orações de Sapiência do século XVI que têm vindo a ser estudadas 1 constituem um corpus vasto e riquíssimo, contributo notável para o estudo da evolução do ensino, da sociedade, do pensamento e da cultura no Portugal do seu tempo. Revisitar esta produção literária, bem como os estudos feitos a seu propósito será sempre útil ao investigador do humanismo. As orações de Sapiência do séc. XVII, porém, mais distantes da observância daqueles preceitos, não foram ainda objecto de um estudo sistemático. Talvez porque não foram publicadas e decerto porque são menos conhecidas, estas orações permanecem copiadas em volumes manuscritos como tanta outra literatura novilatina, mas valeria a pena conhecê-las mais profunda- mente pois documentam a evolução dos gostos e critérios de produção literária do seus contemporâneos e oferecem por vezes iluminação e esclarecimento sobre factos, acontecimentos e pessoas do seu tempo. O que à partida desperta mais interesse nestes textos é a sua evidente diferença em relação aos textos congéneres do séc. XVI. Podemos agora falar ' Estudos feitos por diversos investigadores na sua maioria orientados por Américo da Costa Ramalho que tem estimulado esta e muita outra investigação em torno da literatura novilatina em Portugal.

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  • HVMANITAS- Vol. XLIX (1997)

    'PIRATAS EM BUARCOS' DIGRESSÃO ÉPICA NA ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA DO

    R FRANCISCO MACHADO - SJ (1629) OU

    REAVALIAÇÃO DOS CRITÉRIOS DE PRODUÇÃO LITERÁRIA DO SÉC. XVI

    CARLOTA MIRANDA U R B A N O

    Universidade de Coimbra

    Escritas sob a influência de um conjunto de preceitos e lugares-comuns vigentes no meio humanista do renascimento português, as orações de Sapiência do século XVI que têm vindo a ser estudadas1 constituem um corpus vasto e riquíssimo, contributo notável para o estudo da evolução do ensino, da sociedade, do pensamento e da cultura no Portugal do seu tempo. Revisitar esta produção literária, bem como os estudos feitos a seu propósito será sempre útil ao investigador do humanismo.

    As orações de Sapiência do séc. XVII, porém, mais distantes da observância daqueles preceitos, não foram ainda objecto de um estudo sistemático. Talvez porque não foram publicadas e decerto porque são menos conhecidas, estas orações permanecem copiadas em volumes manuscritos como tanta outra literatura novilatina, mas valeria a pena conhecê-las mais profunda-mente pois documentam a evolução dos gostos e critérios de produção literária do seus contemporâneos e oferecem por vezes iluminação e esclarecimento sobre factos, acontecimentos e pessoas do seu tempo.

    O que à partida desperta mais interesse nestes textos é a sua evidente diferença em relação aos textos congéneres do séc. XVI. Podemos agora falar

    ' Estudos feitos por diversos investigadores na sua maioria orientados por Américo da Costa Ramalho que tem estimulado esta e muita outra investigação em torno da literatura novilatina em Portugal.

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    com mais propriedade da Oração de Sapiência do mestre de Retórica, Fran-cisco Machado, da Companhia de Jesus proferida na Universidade de Coimbra em 16292. Mesmo uma leitura superficial desta Oração nos permite admirar a sua originalidade e apreciar agradavelmente as diversões que o autor nos oferece.

    Habituado à unidade partilhada pelas orações de quinhentos que o modelo ciceroniano3 inspira, o leitor de hoje não pode deixar de se surpreender com o texto de Machado que, sem dúvida, nos revela o cansaço do estereótipo daqueles textos e a procura da novidade, quer no conteúdo, quer na forma. O discurso de Francisco Machado não cede o habitual destaque ao louvor de cada disciplina, e pouco ou nada diz de novo acerca de cada campo do saber. O que impressiona o leitor não é, pois, o tema, mas a argumentação. Na verdade, as disciplinas não constituem a matéria fundamental do discurso, elas são apenas o pretexto para descrições ou episódios mais ou menos longos que, esses sim, impressionam o leitor.

    A diferença deste texto decorre, pois, de uma opção do orador que, não isoladamente, mas no contexto da sua geração, denuncia a valorização do mouere e do delectare em prejuízo do docere4. Sem o sacrifício, porém, da unidade e coerência da oração que os princípios da harmonia, brevidade e equilíbrio clássicos inspiram, Francisco Machado revela uma clara preferência pelo recurso dos exempla e entre estes opta sobretudo pela narratio, evitando o abuso e o cansaço destas formas pelo recurso pontual à forma breuis e à descriptio5.

    Optando pela forma narrativa do exemplum6 Machado introduz autênticas

    2 Anniuersaria Sapientiae Commendatio apud Conimbricenses Académicos Anuo 1629 a P. F. Machado, Ms. Cód. 994, fols.279-286 da BGU catalogado em RAMALHO, Américo e NUNES, João de Castro, Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra relativos à Antiguidade clássica, Coimbra, 1945. Este texto foi por mim estudado na dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1996, trabalho policopiado.

    3 Como o demonstra RAMALHO, Américo da Costa, "Cícero nas orações universitárias do Renascimento", Para a História do humanismo em Portugal, Coimbra, 1988, Vol. I, pp 31-47.

    4 Vd. CASTRO, Aníbal Pinto, Retórica e Teorização Literária em Portugal do Humanismo ao Neoclassicismo, Coimbra, 1973.

    5 Veja-se a propósito desta classificação LAUSBERG, Heinrich, Hund buch der literarischen rhetorik. Eine grund legung der literature wissenschast, Munchen, 1960, trad. J. P. Priesco, Madrid, 1966, reimp. 1990, tomo I, § 415 e 422.

    6 Ao uso deste recurso foi reconhecido sempre o valor, desde os autores clássicos ao textos do humanismo, passando pela pregação medieval. De entre a vasta bibliografia a este respeito veja-se por exemplo: FREIRE, José Geraldes, Commonitiones Sanctorum Patrum. Uma Nova colecção de apotegmas, Coimbra, 1974; COMPAGNON, Antoine, La seconde main ou le travail de la cita-tion, Paris, 1979; LE GOFF, Jacques, "Uexemplum et la rhétorique de la prédication aux Xllè et

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    digressões que lhe permitem revelar o seu talento e virtuosismo na capacidade de imaginar e compor os episódios. Um destes é o episódio do ataque de piratas holandeses à vila de Buarcos socorrida depois por um exército de mestres e alunos da Universidade de Coimbra. Este é um caso típico de argumentação absolutamente exterior à demonstração em causa.

    O tema que confere unidade à oração é o louvor das riquezas da Sabedoria e a demonstração de como elas são superiores a todas as outras e as únicas que devemos ter por verdadeiras. Vejamos como Francisco Machado estabelece a sua ligação com o episódio com que nos quer brindar.

    Depois do louvor do Direito no qual Francisco Machado usa o tópico já recorrente segundo o qual os estados prosperam e vivem em paz quando respeitam as leis sagradas e civis7, e o aplica a Portugal a quem não faltaria a

    XlVè siècles", Retórica e Poética tra i secoli duodécimo e quatordecimo, Spoleto, 1988, reimp. 1991 e SOARES, Nair de Nazaré Castro, "A literatura de sentenças no humanismo português: res et uerba", Actas do Congresso Internacional: Humanismo português na época dos Descobrimentos, Coimbra, 1993, pp 378-410.

    7 Veja-se um tratamento semelhante do Direito na Oração de Gonçalo de ABREU, Oratio Anniuersaria in laudem Sapientiae, habita in aula Regia anno Dni 1611, Ms códice 994, Foi. 49, BGU.

    'Pontificis et Caesarii iuirs peritissimi solitas etiam laudes exoptatis. Mitto Dyonisium leges...Utroque iure uigente /totius regni/politia uigebit: utroque iure florente, bene instituía Lusitânia'.

    "Desejais ainda os costumados louvores dos juristas, quer no direito dos Pontífices, quer dos Césares (...) Em ambos os direitos vicejando, prosperará o bom governo do inteiro reino. Em ambos os direitos florescendo, bem se ordena Portugal".

    Ε em ambos os direitos que reside a possibilidade de um governo florescente, em paz e segurança, e a grandeza das nações.

    Os autores das conhecidas orações dos séc. XV e XVI enaltecem esta qualidade do Direito: MOREIRA, Hilário, De omnium Philosophiae partium Laudibus et Studiis Oratio,

    introdução, tradução e notas de Albino de Almeida MATOS, Coimbra, 1990, p. 68: 'Nam qui status, quae hominum condido tuta in terris existeret, si leges non regnarent, fueritque humana cupiditas seueritate legum et metu iudiciorum illigata?'. op. cit. p.68. "Efectivamente que estado, que situação haveria na terra que se dissese segura, se não reinassem as leis, se a cobiça humana não fosse coarctada pelo rigor das mesmas e pelo rigor dos tribunais?" p. 69.

    MENESES, D. Pedro de, Oratio habita a Petro Menesio Comité Alcotini coram Emmanuele Sereníssimo Rege in Scholis Ulyxbonae, Tradução de Miguel Pinto MENESES, LISBOA, 1964, p. 88: 'Nam qui status, quae hominum conditio, tuta et libera in ténis uiueret, si leges suis uiribus subsistentes non regnauerent?'; "Com efeito, que estado, que condição humana poderia viver segura e livre na terra, se as leis não reinassem, firmes em suas forças?" p. 89.

    FERNANDES, Pedro, In doctrinarum omnium commendationem oratio, introdução, tradução e notas de Maria Manuela Pinto ALVELOS, Coimbra, 1965, dissertação de licenciatura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, trabalho policopiado, p. 128: 'Sine hac quomodo pietas, quomodo religio, quomodo excellens aliqua Respublica posset consistere?'. "Sem ela, como poderia subsistir a piedade, a religião ou qualquer governo excelente?" p. 129.

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    fazenda se guardasse o tesouro de sabedoria da justiça, o autor segue para uma digressão que aproveita o ensejo da alusão ao estado crítico do reino e à grandeza perdida de Portugal8.

    A fuga para este excurso não é gratuita, Machado não perde a oportunidade de, por meio deste artifício, trazer ao auditório, não um exemplum clássico, nem um outro inteiramente inaudito, mas um episódio conhecido da comunidade universitária que decerto se interessaria vivamente pela narrativa de um acontecimento que recentemente a envolvera9.

    O excurso é anunciado por uma máxima que Machado se propõe

    'reformar': se os antigos diziam que o dinheiro é o nervo da guerra, com mais

    propriedade o mesmo se diria da Sabedoria, pois já muitas guerras terão

    começado sem dinheiro mas nenhuma sem Sabedoria. Veteres belli neruos pecuniam appellarunt, nec immerito.

    Quemadmodum enim corpus neruis continetur, ac sustentatur, sic bellum

    pecunia. Rectius tamen belli neruos dicerent sapientiam, guia sine pe-

    cunia nonnunquam bellum inferri poterit, non uero sine sapientia.

    Tollite stipendia, uectigalia, commeatus, praemia, dona militaria;

    si una supersit sapientia, nihil eorum desiderabitur. Tollite signa, hastas,

    gládios clypeos: tollite reliquum armorum genus, si unus tantum

    sapientiae thesaurus non deficiat, haec omnia dimicabunt10.

    Os antigos chamavam ao dinheiro, e não sem fundamento, o nervo

    da guerra". Com efeito, assim como o corpo é mantido e suportado pelos

    s Este é um tópico recorrente na oração de Machado. A grandeza da Nação está projectada no passado. Era o tesouro da Sabedoria que outrora mantinha Portugal, 'grande nação', que contrasta com os tempos 'ruinosos' (tempus durum adeo, et calamitosum) a 'estreiteza da fazenda' (pecuniarum dificultaíe) e a fragilidade face aos ataques holandeses à costa portuguesa. Ε com esta fragilidade que o orador caracteriza Portugal sob os Habsburgos. Em outros passos do seu texto, Machado não perde a oportunidade de estimular no auditório, por um lado o 'aborrecimento' da situação presente que facilmente se associa à união das duas coroas, por outro sentimentos de auto-estima e dignidade nacionais, como o passo em que, fugindo ao lugar-comum do elogio do monarca (Filipe III), Machado se atreve a fazer o elogio de D.João III, emblema de um passado áureo, não só da Universidade, como do reino.

    9 CÍCERO aconselha o uso do exemplum no género epidictico, para o qual é útil a narrativa de factos surpreendentes e inauditos (Partitiones Oratoriae, XXI, 73) e no deliberativo, lembrando que os exempla podem ser antigos, e assim detentores de mais prestígio e autoridade, ou recentes, e desse modo mais conhecidos {Partitiones... XXVII, 96).

    10 Note-se o paralelismo da construção de frase. 11 Não encontrámos nos 'antigos' esta afirmação, mas algo muito semelhante, que decerto

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    nervos, também a guerra o é pelo dinheiro. Com mais razão, porém, diriam que a Sabedoria é o nervo da guerra, pois sem dinheiro, não poucas vezes poderá alguém ter começado uma guerra, não porém sem Sabedoria.

    Acabai com os soldos, com as rendas, com os lucros, com os prémios, com as recompensas militares; se apenas a Sabedoria subsistir, não se sentirá a falta de nenhuma destas coisas. Deitai mão dos estandartes, das lanças, das espadas afiadas, deitai mão de tudo o mais que são armas. Se somente o tesouro da Sabedoria vos não faltar, todas elas vos servirão12.

    Para demonstrar que a Sabedoria é o nervo da guerra e é, por isso, fun-damental à nação, Francisco Machado evoca então um caso que havia poucos meses sucedera envolvendo a Academia. Trata-se de um ataque de piratas holandeses a Buarcos, que devastou o lugar e profanou as igrejas.

    Depois de captar a atenção do auditório, Francisco Machado confronta-o com a crueza do sacrilégio infligido aos altares, sacrários e imagens de santos, movendo-o à indignação contra a desonra das imagens, descrevendo a sua destruição como se de corpos vivos se tratasse. A atenção que Machado dá ao quadro das imagens destruídas é, de resto, compreensível, pois a sua profanação era um 'rito' habitual nos ataques de piratas protestantes à nossa costa13. Dando

    Francisco Machado teve oportunidade de ler no primeiro volume da obra de André Rodrigues EBORENSE, Sententiae et Exempla ex probatissimis quibusque scriptoribus collecta, et per locos comunes digesta, per Andream Eborensem Lusitanum, Venetiis, MDLXXII:

    'Diuitiae nerui sunt rerum 'apud Diog. lib. I. "As riquezas são os nervos das cousas". Um autor contemporâneo de Machado, António Sousa de Macedo, usa também

    aquela expressão denunciando assim a sua popularidade na altura: 'as riquezas são as armas mais fortes, e o nervo da guerra...'. Cft. TORGAL, Luís Reis, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Coimbra, 1982, ρ 196, citando MACEDO, António Sousa de Macedo, Harmonia política dos documentos divinos com as conveniências d'Estado, 1651, pp 112-113.

    12 Estamos perante um passo pouco claro cuja tradução por isso mesmo se torna difícil. Terá o autor usado o mesmo verbo tollo nos seus dois valores opostos 'tirai' e 'tomai'por mero exercício escolar? Com efeito, não há oposição clara entre um período e outro: Se não houver recompensas materiais mas apenas a Sabedoria fôr o móbil da guerra, quem combate não sentirá a falta daquelas. Se pegarmos nas armas e a Sabedoria estiver connosco, mesmo que faltem as recompensas, todas as armas nos serão úteis, porque combateremos.

    13 Radicado em purismos bíblico-fundamentalistas (Dt 27, Sab 13 e Rom 1), era usual o comportamento iconoclasta dos 'reformados' ante a religiosidade católica nos conflitos religiosos da Reforma. Ficou paradigmático deste comportamento o 'saque de Roma' (1527) às mãos dos 'lanzichenechi' do, embora catolicíssimo Carlos V. Também entre nós se registara o mesmo

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    largas à expressão do seu horror pelas atrocidades que os piratas cometeram, Francisco Machado lança invectivas sobre os batavos e apela às emoções do auditório lançando sobre ele uma série de interrogações retóricas14 para concluir que o povo não lutou nem ofereceu resistência por meio da guerra porque faltou a Sabedoria.

    Mense quodam superiore, nuperrime quidem uidistis clarissimum

    huiusce rei documentum, qui autem non uidistis uacuas mihi praebete

    aures, et qui etiam uidistis: forsan meminisse iuuabit.

    Expugnant hostes per summum nostri nominis dedecus

    Buarchense oppidum: incolarum tectis iniectae suntflammae, nec sacris

    aedibus temperatum est. O audaciam immanem! Ingreditur

    impudentissimus Batauorum grex, seu potius terrarum fax15 templa

    sacratíssima, profanus religiosíssima sanctorum fana polluit, uiolat, et

    incestat, parietes Mos omnibus donariis, ornamentisque nudat, adyta

    diripit, aras expilat, sacraria depeculatur; Ma diuorum simulacra quae

    ego ob maximam suam dignitatem prae religione nominare non audeo,

    audacissimus demolitur, manus amputai, capita obtruncat, membra

    dissipai. O sentinamflagitiorum! Tu ingredi Mas domos ausa es? tu Ma

    sanctissima limina intrare? tu purissimis Numinibus os impurissimum

    ostendere? tu in tampias, etpulcherrimas Diuorum statuas tom Ímpias,

    etsceleratas manus iniicere? tu nequissima, improbissima, sceleratissima

    gens omnium mortalium (si tamenfas est inter homines locum aliquem

    tibi concedere) tu caelestium corpora mutilare ? quae nemopoterat sine

    comportamento contra a imagem: É o que sucede, por exemplo, no ataque de 1602, conforme o relato de STe MARIA, Nicolau, na Crónica da Ordem dos Cónegos regrantes do Patriarca St-Agostinho , Lisboa 1688, Livro IX p. 392: "& assi forão roubando tudo muito a seu salvo, & depois fizerão o mesmo nas Igrejas, e onde quebrarão todas as Imagens". Este comportamento repete-se depois em 1629 como relata Francisco Machado e confirma o testemunho de FARIA, op. cit foi. 256: "Saquearam os hereges a villa, deixando os sinaes desta impiedade nos templos e imagens...".

    14 Estas, no contexto de uma leitura global da Oração, parecem sobretudo destinadas a exaltar os sentimentos patrióticos humilhados naquele momento pelos ataques piratas, ataques facilitados pela crise política que se vivia e que por muitos era atribuída à união das duas coroas, vista como perda de Soberania. Nos últimos anos da monarquia dual, Portugal ressente-se da crise que a coroa espanhola atravessa e qualquer medida restritiva por mais sensata que seja é vista como forma de opressão, o que faz aumentar em portugal o descontentamento popular. Sucedem-se a um aumento da pressão fiscal de 1628 vários tumultos em Agosto de 1628, Julho e Setembro de 1629 e Julho de 1630. Cfr. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Lisboa, 1987-1989, Vol. IV, pp 109-112.

    l5Sic:/ex

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    horrore tangerei nemo sine religione adspicere? Ofacinus exsecrandum! O piaculum pro atrocitate sua expiandum nunquam satis!'6

    Non commemoro, auditores, fictum aliquod scelus, sed uerum,

    non auditum, sed uisum, testes laudo non quoscumque, sed locuple-

    tissimos: et quidforet, si me quoque testem possim producere? Testis

    etiam sum non auritus, sed oculatus. His oculis, his, inquam, oculis uidi

    obscurata diuorum lumina, uidi abscisa, mutilataque membra: his

    manibus, qua potui ueneratione, accepi tutelarium Numinum manus;

    sed quales accepi? Pro Deum immortalem, cur iniuriam adeo ímmanis-

    simam caelestibus tuis Matam non ulcisceris? Accepi Mas manus beatís-

    simas, quas in me saepiuspias, munificas, et liberales expertus fueram,

    semiustas, fractas, contaminatasque.

    Quid agitis Lusitani? Quid amplius moramini? O pudor! Vbi

    Lusitanorum inuicta gloria? Vbi maiorum uestrorum uirtus? Nemo est,

    qui arrogantium perfidorum supercilium conculcet ? Nemo: omnem Mi

    Lusitanorum potentiam suis pedibus conculcarunt. Nullus est, qui belli

    expedire audeat machinamenta? Nullus: omnium Mi audaciam prae-

    pidiuerunt. uixfuit, qui sceleratissimis se opponeret"'.

    Quid? Deerantpecuniae ? aderant. Quid?fugeruntmilites? aliqui

    dimicarunt. Quid? non erant arma? praesto erant. Quid ergo defuit?

    Sapientia}%.

    Ainda há meses, bem pouco há, disso vistes um claro exemplo. Vós que o não vistes, prestai-me os ouvidos ignaros; mas vós, também, que o vistes; quiçá lembrá-lo vos aproveite.

    Expugnam os inimigos, para suma desonra do nosso nome, a praça de Buarcos; aos telhados dos moradores se lançaram chamas; nem com as igrejas houve temperança.

    O desmedida ousadia! Entra a caterva desavergonhada dos batavos, a bem dizer, flagelo das nações, pelos templos consagrados; sujam pés profanos as sagradas capelas dos santos, arrombando, violando, desnudando aquelas paredes de seus ornamentos e preciosos ex-votos,

    16 Notem-se as imprecações lançadas para consternação do auditório. 17 Pergunta e resposta indignam o auditório. 18 Note-se a repetição da mesma questão e a uariatio nas respostas.

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    depredando altares, delapidando aras, despojando sacrários. Aquelas

    imagens dos santos que eu, por sua tão alta dignidade, por religião, não

    ouso nomear, arrogantemente deitam por terra decepando-lhes as mãos,

    destroncando-lhes as cabeças, dispersando-lhes os membros. O flagelo

    imundo! Ousaste entrar em aquelas santas moradas, transpor aqueles

    sagrados umbrais; ostentar a face imunda aos santos imaculados, deitar

    as ímpias, malvadas mãos a tão santas e formosas imagens de santos?

    Tu, entre os mortais a mais vil, iníqua, criminosa gente, (se é que entre

    os homens és digna de algum lugar) ousaste decepar os corpos da corte

    celestial que ninguém sem horror poderia tocar, que ninguém sem religião

    poderia contemplar? O execrável torpeza! O malvadez que por sua

    atrocidade nunca há-de ser expiada.

    Não é, senhores, algum crime imaginário que estou lembrando,

    mas um verdadeiro, não de que se ouviu, mas que se viu, não são

    quaisquer as testemunhas que invoco, mas de nomeada;e quê, se posso

    eu mesmo citar-me como testemunha? Sou-o, não pelo que ouvi, mas

    pelo que vi. Com estes olhos, com estes próprios olhos vi apagadas as

    luzes dos santos, vi-lhes soltos os membros decepados; com estas mãos,

    com quanta devoção pude, tomei as mãos dos santos nossos patronos, e

    em que estado as tomei! O Deus imortal, porque não vingais tão torpe

    injúria arremessada aos vossos santos? Aquelas mãos santíssimas que

    tantas vezes sentira era meu favor pias, generosas, liberais, meio

    queimadas as tomei, quebradas, profanadas.

    Que fazeis, Portugueses? Que esperais ainda? O vergonha! Onde

    está a glória invicta de Portugal? Onde a força dos vossos maiores?

    Ninguém há que abata a cabeça desses arrogantes, desses malvados?!

    Ninguém! Ε calcaram eles a seus pés todo o poderio dos portugueses.

    Ninguém há que se atreva contra as sua máquinas de guerra? Ninguém!

    Em todos tolheram a coragem. A custo alguém houve que aos malvados

    fizesse frente.

    Porquê? Faltava dinheiro? Dinheiro havia. Então porquê?

    Desertaram soldados? Alguns pelejaram. Então? Não havia armas? Logo

    as houve. Que faltou então? A Sabedoria.

  • PIRATAS EM BUARCOS 235

    Um segundo ataque a Buarcos vem demonstrar que só a Sabedoria soube fazer frente à ofensiva protestante, provando assim que foi mais forte o poder das Letras que o poder do dinheiro. Vejamos porquê: a Academia soube do assalto e lança-se Mondego abaixo sob o comando do próprio Reitor. Era tal o terror que inspirava este exército de Sabedoria que o próprio Gerião, monstro que domina o Mondego, se rende e entrega as suas armas para auxílio do combate19. A este exército não faltavam a coragem nem vontade de lutar, o que não chega a fazer, porque o inimigo, à visão de tais forças, desiste do combate e deita-se ao mar em fuga.

    Renunciantur Academiae in oppidum infelix secunda irruptio

    barbarorum. Quae alacritas? quae promptitudo? Vix belli signum

    Palladia ab arce Illustrissimus Rector extulit: iam Academia in armis.

    Quis ad amnem concursus? tantus ac tam praeceps, ut non defuerint

    qui, labente uestigio, pectore tenus mergerentur ; quasi uero a Martio

    calore uelint refrigerari. Jam cymbas exercitus conscendit, rostratas

    magis naues, quam cymbas indicares: iam Mondam qua velis, qua remis,

    qua contis findunt: Oceanum non Mondam appelares. Quam hórrida

    belli fácies? pulsantur tympana, perstrepunt litui, personant tubae,

    crispantur uexilla. Aer fulminai in glandes, liquescit inplumbum, soluitur

    in fulgura, conflatur in nebulas, ruit in tonitrua20. Iam classis uniuersa

    praeterlabitur Academicum illud Geryonispromontorium. Quo euentu?

    Obstupescit Geryon Hispaniae quondam terror, ac dominator,

    deponuitfurorem, clauam abiicit, submittit capita, Rectorem Academiae

    praesentit, fortiorem agnoscit, Herculem alterum ueneratur, amicum se

    praedicat, non hostem, triremes Mas suas, bellica tormenta, hastas,

    19 Reunir o gado deste monstro com três corpos que vivia numa ilha do Ocidente (Eriteia) terá sido um dos 'trabalhos de Hércules'. No seu estudo, "O Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, Agente da Tradição clássica no início do séc. XVII", publicado na BIBLOS, Sebastião Tavares de PINHO dá notícia da representação da écloga Gerion no final do ano lectivo de 1612, curiosamente o ano da entrada de Francisco Machado no noviciado da Companhia em Coimbra. Gerião é o gigante dominado por Hércules algures no extremo Ocidente, região "por muitos identificada com uma parte da Península Ibérica". Segundo o artigo citado, a acção passa-se na região entre Lisboa e Coimbra, representadas pelos rios Tejo e Mondego. Monda prologus é precisamente o símbolo da Região dominada por Gerião, tirano de toda a Hispânia.

    Em Maio de 1629, o Colégio das Artes dedica uma representação desta écloga ao Reitor da Universidade. Estaria portanto viva na memória do orador e dos seus ouvintes, a imagem deste monstro do Mondego, dominador do "Académico promontório".

    20 Note-se a gradatio.

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    O testemunho de Manuel Severim de Faria vem confirmar a existência deste ataque bem como a origem dos piratas. Com efeito, Joaquim Veríssimo Serrão22 na sua História de Portugal fala-nos de um ataque de ingleses a Buarcos em fins de Maio, mas nas fontes23 que indica não encontrámos qualquer referência à origem das "quatro naus inimigas (que) botaram gente em Buar-cos"24. A obra de Faria vem pois confirmar o testemunho de Francisco Machado segundo o qual os inimigos eram holandeses.

    A este ataque, como afirma Machado "a custo alguém houve que (...) fizesse frente"; por isso, a série de questões que o orador levanta ao auditório para que este conclua que a Sabedoria é o "nervo da guerra", tem o seu fundamento. Com efeito, a população da costa não se defendeu devidamente, como afirmam António dos Santos Rocha25 e Veríssimo Serrão26. Houve gente que não quis combater e por isso foi castigada.

    António dos Santos Rocha e Veríssimo Serrão fazem-nos crer que teria havido somente um ataque a Buarcos no ano de 1629, o que transformaria a secunda irruptio de que nos fala Machado em um artifício literário bem excogitado, para comprovar que, com a assistência da Sabedoria — da Academia 'em pessoa'— todas as guerras seriam vitoriosas. Mais uma vez, porém, o manuscrito de Faria faz luz sobre esta questão e confirma a versão de Francisco Machado, referindo uma tentativa de ataque a 7 de Junho e o pronto auxílio de Coimbra de onde acudiram o Corregedor com gente da cidade, fidalgos e nobres e o Reitor da Universidade com alguns mestres por capitães de 420 estudantes27. Foi a este segundo ataque, e não ao de Maio, como afirma Veríssimo Serrão, que acorreu a Academia.

    22 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, in Historia de Portugal, vol. IV, ρ 108, fala-nos de uma "incursão armada dos ingleses" a Buarcos.

    23 Uma carta régia de 6 de Julho de 1629 publicada na Collecção Chronologica da Legislação portuguesa , compilada e anotada por José Justino Andrade e SILVA, Lisboa, 1854-1857,9vols,pp 152-153.

    24 Collecção ...op. cit, p. 153, carta régia de 6 de Julho de 1629. 25 ROCHA, António dos Santos, "Considerações sobre o estado económico da Figueira no

    século XVII" in Materiais para a Historia da Figueira da Foz no sec. XVIIeXVIII, Figueira, Casa Minerva, 1893, p. 62, citando a fonte:"sobre o que resultou da devassa que o Desembargador João Carreiro de Almada tirou do sucesso de Buarcos" se recomenda: "E porque é justo e conveniente que as pessoas que naquela ocasião não cumpriram com sua obrigação sejam castigadas, para exemplo de outros, fareis que os que forem achados culpados, se livrem ordinariamente, diante do corregedor da Comarca de coimbrã". Livro de Correspondência do desembargador do paço, foi. 86 in Collecção Cronológica da Legislação portuguesa 1627-1633 ρ 156.

    16 SERRÃO, op. cit. vol. IV, p. 108 "houve gente que não quis combater". 27FARIA, op. cit. foi. 256.

  • PIRATAS EM BUARCOS 239

    " 'Contudo logo aos 7 de Junho, vendo outra semelhante bonança,

    deram mostras de querer sair em terra, porem como já o mal passado nos

    tinha feito vigilantes, foi logo dado rebate em Coimbra, donde acudiram

    com suma presteza o Corregedor com a gente da cidade, de Infantaria

    por mar, e os de Carvalhos / em que estavãom os fidalgos, e nobres / por

    terra. O Reytor da Universidade Francisco de Brito de Meneses se

    embarcou também em quize barcas com os estudantes que então havia,

    que por ser no fim do anno erão já poucos, mas ainda assy passarão de

    420 de que forão por Cappitães D. André de Almeida, o Doutor Fran-

    cisco Roiz de Valladares, D. António da Silvr.s, Franc.c8 Cabral, e Nuno

    da Cunha, Estêvão da Cunha; sargentos Gaspar Pinto da Fonseca, e

    Jerónimo da Silva: o General de todos era o mesmo Reytor que ia diante

    em corpo com um bastão na mão."28

    Ε bastante curioso este episódio, sobretudo pelo tom épico que Machado

    lhe confere, a ponto de já imaginarmos o exército académico na luta, quando de

    facto ele não chega a combater graças à desistência dos piratas que regressam

    ao mar. Na verdade, o inimigo chega a desembarcar mas presta-se a abandonar

    a terra e fazer-se ao mar, e também o manuscrito de Faria atribui a fuga ao

    temor inspirado pelo exército vindo de Coimbra:

    "Foy este esquadrão notabelicimo assy pela qualidade da gente ,

    pois nelle encerrava a flor da fidalguia e letras deste reyno, como pelo

    valor e armas que levarão. Sem duvida que a noticia delle fez voltar aos

    inimigos as costas pois desembarcando de seis ou sete vellas mais de

    quinhentos homens, se tomarão a embarcar com maior presteza do que

    vierão. Ε assy podemos dizer que foi este maior vencimento que o de

    César, pois sem os nossos serem vistos, só com a fama fizerão fugir os

    inimigos."29

    A evocação desta aventura no início do novo Ano Académico foi decerto

    bem acolhida pelo auditório, quer pelos que nela teriam participado, quer pelos

    que estando ausentes de Coimbra, porventura já de férias, agora ouviam com

    atenção a empolgada narrativa dos acontecimentos. Não faltou a Machado a

    28 FARIA, op. cit. foi. 256. 25FARIA, op. cit. foi. 256, f e v.

  • 240 CARLOTA MIRANDA URBANO

    habilidade para a integrar no tema da oração de modo a que não viesse a despropósito, nem careceu de empenho na descrição exaltada do estado em que ficou Buarcos. Na verdade, Francisco Machado não exagera quando afirma que ele próprio viu tal desolação, como pode confirmar, de novo, o manuscrito de Faria ao referir o contributo material para o exército que o P. Reitor da Companhia enviou a Buarcos, pelo P. Francisco Machado. Este teria, pois, assistido ao espectáculo desolador dos resultados do ataque de finais de Maio, que seriam ainda visíveis a 7 de Junho.

    "O provimento para toda esta gente mandou largamente dar o Cabido por o cónego Jacinto Pereira, e os senhores Inquiridores por o Deputado Pedro de Baecça, a quem acompanharão os officiaes do Santo officio e o P. Reytor da Companhia pelos Pes Francisco Machado e António da Rocha"30

    Assim, a partir de uma experiência própria, Machado constrói a sua argumentação, adequando devidamente o exemplum à causa, pois como argumento exterior ele não tem qualquer valor se a relação entre ambos não fôr sustentada31. Coube ao seu engenho estabelecer essa relação de modo a que o exemplo se apresentasse com origem na mesma unidade temática da causa em questão: o valor da Sabedoria. O ataque dos piratas a Buarcos e o posterior auxílio da Academia foi bem usado como 'exemplum adpersuadendum', para persuadir o auditório da importância da Sabedoria na salvação da respublica.

    No uso preferencial da forma narrativa do exemplum, Machado segue afinal um gosto da sua época que continua na esteira da tradição medieval da arte de Pregar. O exemplum entre os restantes instrumentos de Retórica apontados pelas Artes Praedicandi, é decerto dos que lhe merecem mais destaque e que mais beneficiam a Oratória sagrada na Idade Média32. No dizer de Le Goff3, os

    "FARIA, op. cit. foi. 256 v. 31 Cfr. QUINTILIANO, Institutio Oratoriae, V, XI, I. 32 Veja-se a este propósito DELCORNO, Cario, Exemplum e Letteratwa tra Medioevo e

    Rinascimento, Bologna, 1989. Esta tendência de 'amplificação' do exemplum em narrativa verifica-se, p. ex. na evolução

    do apotegma, que de simples máxima ou de sentença de carácter gnómico se transforma em '"longas narrações que se vão assemelhando a uma novela". Cfr. FREIRE, José Geraldes, Commonitiones Sanctorum Patrwn. Uma nova colecção de apotegmas, Coimbra, 1974, ρ 100.

    33 Cfr. LE GOFF, op. cit. pp. 22-23.

  • PIRATAS EM BUARCOS 241

    sécs. XIII e XIV assistem a uma renovação na arte de pregar que valorizará o exemplum narrativo em que a história, e não o sujeito, constitui o centro das atenções, um exemplum acessível às massas, proposto como história edificante e instrumento de salvação.

    Nas orações de Sapiência do séc. XVI verificamos o mesmo gosto pelo recurso aos exempla que a Cultura de Contra Reforma favorece, não só na edição de colecções de sentenças e exempla dos clássicos tão gratas aos humanistas, mas também na reedição das velhas summae que recolhiam exempla isolados do seu contexto literário, para dotar os pregadores de instrumentos de trabalho mais eficazes34. Nestas orações, porém, os exempla que encontramos são na sua maioria de fonte clássica e constituem breves episódios, por vezes, mesmo, uma breve referência nominal e pouco mais, expurgados de qualquer contributo pessoal do orador na sua apresentação. Este recurso literário cumpria apenas a sua missão de enriquecer e evitar a monotonia do louvor das disciplinas, conferir autoridade à argumentação, mostrar a erudição do orador e instruir o ouvinte.

    Neste momento a criação literária, longe ainda do mito romântico da originalidade, decorre de um 'effet de rèpètition,' na expressão de Fumaroli35, da procura de novas formas expressivas reinterpretadas, sempre voltadas para os modelos clássicos da época. Apresença destes modelos no texto de F. Machado é ainda visível, não só na mundividência humanista geral que revela, mas mesmo no excerto em causa, cuja harmonia discursiva decorre das repetições, antíteses, assonâncias, do paralelismo simétrico das construções, um dos traços mais característicos do estilo ciceroniano36, dentro das normas do equilíbrio e da brevidade.

    Não podemos, porém, deixar de ver neste texto marcas de novas tendências na hierarquização dos critérios de produção literária. Desviando-se da função eminentemente didáctica destes exercícios retóricos, Machado opta pela 'amplificação' do exemplum em narrativa e dele faz uso no contexto de uma retórica de persuasão dirigida ao pathos, insistindo sobretudo no delectare e também no mouere, "apelo aristotélico à afectividade do auditório"37. A descrição intensamente emotiva que Machado faz neste excerto, bem como as

    «DELCORNO, op. cit. ρ 14. 35 FUMAROLI, Marc, ρ 46. 3f'Cfr. LAURAND, Études sur le style des Discours de Cicéron, Paris, 1926, Tomo II, pp

    126-135. "LEGOFF, op. cit.p 12.

    16

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    invectivas e as interrogações que lança, são claramente dirigidas à moção dos afectos dos que o ouvem38. A apresentação de tom épico do exército da Sabedoria não serve apenas a argumentação do seu valor inexcedível mas serve também a curiosidade do auditório que pode deleitar-se e deixar voar.a imaginação pelo desempenho do exército que quase vê combater e em que eventualmente participou39.

    Pensamos que resulta destas novas tendências também o surpreendente entusiasmo e o empenho que Machado revela pela sua contemporaneidade. Ele não só recorre a figuras do seu tempo para referir como exemplos de verdadeiros cultores da sabedoria — é o caso do Tycho Brahe40 — como se serve de aconte-cimentos que envolveram a Academia para os usar como exempla, de que este episódio que analisámos constitui decerto o caso mais curioso41.

    A opção de Francisco Machado pelo recurso, na argumentatio, aos factos contemporâneos que tornam o seu exercício retórico a vários títulos interessante, não só contribui modestamente para o conhecimento da cultura e da história do seu tempo, mas é reveladora daquelas tendências. A apresentação exclusiva do

    38 Têm especial efeito neste objectivo a repetição de uma frase ou de perguntas. 39 O paralelo desenvolvido pelo orador, entre o reitor e os estudantes, por um lado, e o

    general com seu exército por outro, não é em absoluto fruto da criatividade do orador, pois a Universidade apresentava, neste tempo, um carácter militar que já não encontramos na outras Universidades da Europa depois da organização dos exércitos permanentes. Vide BRAGA, Teófilo, Historia da universidade de Coimbra, Tomo II, 1895 pp 489-490 .

    Não é a primeira vez que a Academia presta auxílio militar: STS MARIA, Nicolau de, op. cit. Livro IX p. 392 dá testemunho do socorro que a Universidade se presta a levar, sob o comando do reitor D. Afonso Furtado de Mendonça às gentes de Buarcos por ocasião de um ataque a Buarcos de "huns ingrezes, hereges & ladrões" em 1602.

    Temos notícias de outras actividades militares do Reitor com estudantes na consolidação da Restauração da Independência: GOMES, Joaquim Ferreira, em Estudos para a História da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1991, diz-nos que em 1640 o Reitor Manuel Saldanha comanda um batalhão de 630 estudantes para o Alentejo, e remete-nos para FIGUEIROA, Francisco Carneiro, Memórias da Universidade de Coimbra, 1937, pp 135 e ss.

    40 Ao contrário de outros modelos de dedicação à Sabedoria nas suas várias disciplinas, Tycho Brahe não é um clássico, mas um contemporâneo de Francisco Machado (n. 1546, f. 1601). Este astrónomo dinamarquês, notável homem de Ciência dos finais do séc. XVI, sob o mecenato de Frederico II da Dinamarca construiu um observatório astronómico no seu castelo de Uraniburgo onde ensinou por doze anos, até que o sucessor do seu Mecenas lhe retirou a pensão anual, obrigando--o assim a retirar-se para a Alemanha. O seu intenso trabalho de observação proporcionou avanços consideráveis no campo da Astronomia.

    41 No seu texto encontramos outras referências ao tempo cronológico da oração. Ε o caso, por exemplo, das referências à participação de professores de Coimbra na Junta dos prelados em Tomar contra o Judaísmo que inaugurou as suas sessões em Maio de 1629, ou ainda à polémica e arrastada questão do pagamento das rendas da Universidade às Escolas Menores, ou Colégio das Artes, onde o R Francisco Machado era mestre.

  • PIRATAS EM BUARCOS 243

    passado clássico como fonte inesgotável de recursos literários, cede a atenção, também humanista, ao tempo presente, na tentativa de tornar o costumado exercício retórico mais agradável e de mostrar ao auditório o virtuosismo do orador.

    O recurso a 'fontes materiais' do exemplum pouco vulgares e o facto de Machado se preocupar, não tanto em documentar a sua argumentação com os exempla a que recorre, mas em enriquecer o seu texto com pequenas histórias surpreendentes e cativantes, escolhidas mais para deleitar que para instruir, inscreve-se sem dúvida no fenómeno geral do cansaço dos estereótipos e da busca de novas expressões estéticas. Merece pois uma investigação sistemática a vasta produção literária em língua latina desta época, tantas vezes, porque pouco conhecida, julgada com base em preconceitos que urge desconstruir.