Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM •...
Transcript of Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM •...
A navegaccedilatildeo consulta e descarregamento dos tiacutetulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis
UC Pombalina e UC Impactum pressupotildeem a aceitaccedilatildeo plena e sem reservas dos Termos e
Condiccedilotildees de Uso destas Bibliotecas Digitais disponiacuteveis em httpsdigitalisucptpt-pttermos
Conforme exposto nos referidos Termos e Condiccedilotildees de Uso o descarregamento de tiacutetulos de
acesso restrito requer uma licenccedila vaacutelida de autorizaccedilatildeo devendo o utilizador aceder ao(s)
documento(s) a partir de um endereccedilo de IP da instituiccedilatildeo detentora da supramencionada licenccedila
Ao utilizador eacute apenas permitido o descarregamento para uso pessoal pelo que o emprego do(s)
tiacutetulo(s) descarregado(s) para outro fim designadamente comercial carece de autorizaccedilatildeo do
respetivo autor ou editor da obra
Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Coacutedigo do Direito
de Autor e Direitos Conexos e demais legislaccedilatildeo aplicaacutevel toda a coacutepia parcial ou total deste
documento nos casos em que eacute legalmente admitida deveraacute conter ou fazer-se acompanhar por
este aviso
Arqueologias de Impeacuterio
Autor(es) Leatildeo Delfim (coord) Ramos Joseacute Augusto (coord) Rodrigues NunoSimotildees (coord)
Publicado por Imprensa da Universidade de Coimbra
URLpersistente URIhttphdlhandlenet10316245208
DOI DOIhttpsdoiorg1014195978-989-26-1626-1
Accessed 22-Jul-2021 121242
digitalisucptpombalinaucpt
58
Arqu
eolo
gias
de
Impeacute
rio
Coimbra
Del
fim
leatilde
o J
oseacute
Au
gu
sto
RA
mo
s N
uN
o s
imotilde
es R
oD
Rig
ues
(co
oRD
s)
Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)
Arqueologias de Impeacuterio
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS
OBRA PUBLICADA COM A COORDENACcedilAtildeO CIENTIacuteFICA
HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814
Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de
temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria
da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os
Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade
Breve nota curricular sobre os autores do volume
Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro
de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de
interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica
teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades
Digitais
Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto
Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)
doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico
Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade
Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria
do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em
vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade
Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e
coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas
Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica
Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos
da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da
cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio
do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em
Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo
(2ordf ed 2010)
Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de
investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee-se uma estruturaccedilatildeo de
categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento
da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca-se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria
egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da
Mesopotacircmia trata-se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise
da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em
dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio
feniacuteciosiro-palestinense recorre-se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas
elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta-se uma reflexatildeo sobre
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas
estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do
Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos
dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a
teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas
na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete-se sobre o papel e a
importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera
do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee-se uma genealogia conceptual para a ideia
de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo-se ainda uma ideia
de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio
HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814
Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de
temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria
da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os
Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade
Breve nota curricular sobre os autores do volume
Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro
de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de
interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica
teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades
Digitais
Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto
Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)
doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico
Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade
Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria
do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em
vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade
Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e
coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas
Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica
Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos
da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da
cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio
do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em
Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo
(2ordf ed 2010)
Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos
Estruturas EditoriaisSeacuterie Humanitas Supplementum
Estudos Monograacuteficos
ISSN 2182‑8814
Diretor PrincipalMain Editor
Delfim LeatildeoUniversidade de Coimbra
Assistentes Editoriais Editoral Assistants
Daniela DantasUniversidade de LisboaJoatildeo Pedro Gomes
Universidade de CoimbraMartim Aires HortaUniversidade de Lisboa
Comissatildeo Cientiacutefica Editorial Board
Carlos FabiatildeoUniversidade de Lisboa
Claacuteudia TeixeiraUniversidade de Eacutevora
Francisco CarameloUniversidade Nova de Lisboa
Inmaculada Vivas SaacuteinzUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid
Juan Luis Montero FenolloacutesUniversidad de La Coruntildea
Juan Pablo VitaCCHS‑CSIC Espantildea
Judith MossmanUniversity of Coventry
Luciacutea Diacuteaz‑IglesiasILC‑CCHS‑CSIC Espantildea
Paolo FedeliUniversitagrave degli Studi di Bari laquoAldo Mororaquo
Roberto NicolaiUniversitagrave di Roma laquoLa Sapienzaraquo
Sabino Perea YeacutebenesUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid
William J DominikUniversity of Otago
Todos os volumes desta seacuterie satildeo submetidos a arbitragem cientiacutefica independente
Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)Universidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa
Arqueologias de Impeacuterio
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS
Conceccedilatildeo Graacutefica GraphicsRodolfo Lopes Nelson Ferreira
Infografia InfographicsNelson Ferreira
Impressatildeo e Acabamento Printed byKDP
ISSN2182‑8814
ISBN978‑989‑26‑1625‑4
ISBN Digital978‑989‑26‑1626‑1
DOIhttpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1
Tiacutetulo Title Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire
Coords EdsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues
Editores PublishersImprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Presswwwucptimprensa_ucContacto Contact imprensaucptVendas online Online Saleshttplivrariadaimprensaucpt
Elaboraccedilatildeo de Iacutendices Index listing
Daniela DantasMartim Aires Horta
Coordenaccedilatildeo Editorial Editorial CoordinationImprensa da Universidade de Coimbra
copy Setembro 2018
Trabalho publicado ao abrigo da Licenccedila This work is licensed underCreative Commons CC‑BY (httpcreativecommonsorglicensesby30ptlegalcode)
POCI2010
Imprensa da Universidade de CoimbraClassica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis httpclassicadigitaliaucptCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra
Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos
Projeto UIDELT001962013 ‑ Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra eProjeto UIDHIS043112013 ndash Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa
Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire
Coordenadores editorsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues (coords)
Filiaccedilatildeo AffiliationUniversidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa Universidade de Lisboa
ResumoEste contributo portuguecircs para a discussatildeo da ideia de laquoImpeacuterioraquo consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee‑se uma estruturaccedilatildeo de categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia de laquoimpeacuterioraquo Aborda‑se o caso egiacutepcio focando‑se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir bem como a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia foca‑se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa e reflete‑se sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro palestinense recorre‑se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico‑religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta‑se uma reflexatildeo sobre Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por estudos sobre contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria sobre Jeremias e a defesa de uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei deste periacuteodo e ainda sobre os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk Sobre a Peacutersia lemos textos sobre a teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380‑82 e acerca das rainhas na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflecte‑se sobre o papel e a importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder Nos uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios propotildee‑se uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano trata‑se a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes analisa‑se as Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido e sugere‑se uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio
Palabras‑claveImpeacuterio Egiacutepcio Impeacuterio Assiacuterio Impeacuterio Babiloacutenico Impeacuterio Feniacutecio Impeacuterios Anatoacutelicos Impeacuterio Heleniacutestico Impeacuterio Romano
Abstract This Portuguese contribution to the debate on the concept of ldquoEmpirerdquo brings together 17 essays covering various areas and periods across Antiquity Biblical sources allow us to structure various categories and organize their related meanings as valuable paths to inform our understating of the idea of ldquoEmpirerdquo Egypt first serves as the opportunity to inquire the usefulness of ldquoEmpirerdquo as a concept within the larger discussion of periodization in History as well as the scope and limitations of its definitions as the observed political dissolution in the Late New Kingdom shows Regarding Ancient ldquoMesopotamian Empiresrdquo the first ldquoEmpirerdquo is usually attributed to the political formulas brought forth by the dynasty of Akkad which emerged before the hegemony of Babylon The underlying ideology to Hammurabirsquos social and military policies through two crucial moments in Babylonian History provides the ground to analyze the emergence of its first hegemony the war with Elam and the expedition to the Kingdom of Larsa Approaches to the Anatolian and the PhoenicianSyrian‑Palestinian territories follow a methodology focused on myth and religious narratives and the traces of political realities
found there as well as a reflection on the validity of ldquoimperialismrdquo when applied to the Phoenician colonial world Later Mesopotamian imperial formulas are analyzed within the context of violence military and ritual on Jeremias and the rationale for a heavenly justified submission of Judah to the so‑called ldquoNeo‑Babylonian Empirerdquo on Nabonidus the last king of this dynasty and on the diverging behavior of both Nabonidus and Cyrus to the cult of Marduk Herodotus a privileged source for the classical perception of eastern formulas displays the Persian Empire as the background for different Greek political proposals at play (famously in 380‑82) and informs us of the queenship and the queens of Ancient Persia Moreover the role and status of women in Hellenistic societies is further examined most notably in its relations to power The last four essays propose a conceptual genealogy for the idea of imperium through the Roman World from the representation Ancient Historiography creates of the processes structuring Roman ldquoimperialismrdquo and their agents the interpretation Suetonius proposes of imperial power and how it ought to be used to the validity of a certain notion of ldquoglobalizationrdquo applied to the Late Roman expanse
KeywordsEgyptian Empire Assyrian Empire Babylonian Empire Phoenician Empire Anatolian Empires Hellenistic Empires Ro‑man Empire
Coordenadores
Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investiga-dor do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teori-zaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades DigitaisOrcid ID 0000-0002-8107-9165 (leoflucpt)
Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972) doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Reli-giotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de tra-duccedilatildeo e coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidasOrcid ID 0000-0002-3247-2163 (joseramosletrasulisboapt)
Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou Iudaei in Vrbe Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) e Mitos e Lendas da Roma Antiga (2ordf ed 2010)Orcid ID 0000-0001-6109-4096 (nonniusflulpt)
Editors
Delfim F Leatildeo is Full Professor at the Institute of Classical Studies and researcher at the Centre for Classical and Humanistic Studies at the University of Coimbra His main areas of scientific interest are ancient history law and political theory of the Greeks theatrical pragmatics and the ancient novel He also has a deep interest in Digital Humanities
Joseacute Augusto Martins Ramos is an Emeritus Professor at the School of Arts and Humanities graduated in Theology (Catholic Institute of Toulouse 1969) Oriental and Biblical Sciences (Biblical Institute at Rome 1972) and has a PhD in Ancient History (University of Lisbon 1989) His main areas of research on which he has published extensively are Hebrew Akkadian Ugaritic History and Culture of Ancient Near-
Eastern Societies Ancient Near-Eastern Literature Comparative History of Religions Ancient Christianity Since 1972 has translated and coordinated various projects on the Bible and its Portuguese translations in collaboration with the Portuguese Biblical Society Difusora Biacuteblica and the Portuguese Episcopalian Conference
Nuno Simotildees Rodrigues is Professor at the University of Lisbon and researcher at the Centres for History and Classical Studies at ULisbon and for Classical and Humanistic Studies at University of Coimbra He has a PhD in Ancient History (Classical History) and his main scientific areas of research are Greek culture (Mythology and Religion) Roman society and politics (from the end of the Republic to the beginnings of the Principate) and also to the reception of Classical themes in cinema He has published ldquoIudaei in Vrberdquo Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) and Mitos e Lendas da Roma Antiga (2nd ed 2010)
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De imperiis 13Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno S Rodrigues
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteriaseguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio 21
(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)Joseacute A Ramos
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egipto em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo 37
(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)Joseacute das Candeias Sales
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio 57
(Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation on the brink of the 1st Millenium)
Rogeacuterio Sousa
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemoniaa ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina 75
(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)Maria de Faacutetima Rosa
laquoRei das Quatro RegiotildeesraquoSargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia 89
(lsquoKing of the four landsrsquo Sargon of Akkad and the imperial model in Mesopotamia)Marcel L Paiva do Monte
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita 107(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)Joatildeo Paulo Galhano
Imperialismo no Mundo Colonial Feniacutecio 139(Imperialism in the Phoenician colonial World)Elisa de Sousa
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigocomo discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio 155
(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the neo-Assyrian empire)
Marcel Paiva do Monte
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute 179
(To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of) of Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)
Joatildeo Pedro Vieira
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico 201(Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)Antoacutenio Ramos dos Santos
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk 209
(The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different approaches to the cult of god Marduk)
Maria de Faacutetima Rosa
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedotolei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica 221
(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)Carmen L Soares
Ser rainha na Peacutersia antiga 237(To be a Queen in Ancient Persia)Maria de Faacutetima Silva
Peri BasilissasEm torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas 257
(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)Nuno Simotildees Rodrigues
O Imperium da origem ao Principado 277(Imperium from origin to Principate)Filipe Carmo
A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente 295
(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)
Amiacutelcar Guerra
Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio 311(A look over imperial power in Suetonius)Joseacute Luiacutes Brandatildeo
Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado 331
(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)
Rodrigo Furtado
Iacutendice Teoniacutemico 347
Iacutendice Antroponiacutemico 349
Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico 356
Iacutendice de Fontes Antigas 363
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
13
Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis
O livro que agora se publica resulta de um seminaacuterio interdisciplinar de Histoacuteria Antiga organizado pelos Centros de Histoacuteria da Universidade de Lisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra1 O referido seminaacuterio decorreu na Universidade de Lisboa em trecircs momentos distribuiacutedos pelos seguintes subtemas ldquoFoacutermulas originaacuterias de Impeacuteriordquo ldquoImpeacuterios da era axialrdquo e ldquoImpeacuterios da globalizaccedilatildeordquo
O principal objetivo deste encontro que reuniu especialistas em Estudos da Antiguidade provenientes de seis Universidades portuguesas (Lisboa Coimbra Nova de Lisboa Porto Aberta e Eacutevora) foi refletir sobre o conceito de ldquoImpeacuteriordquo e a sua aplicaccedilatildeo aos momentos-chave da Histoacuteria Antiga do Egito ao Mundo Romano Se para este uacuteltimo caso a aplicaccedilatildeo de uma ideia que eacute na sua origem latinaromana natildeo coloca grandes problemas teoacutericos ou epistemoloacutegicos o mesmo natildeo se poderaacute dizer sobre todas as realidades poliacutetico-institucionais que antecedem o universo romano Com efeito como bem nota Filipe Carmo no texto que aqui se publica imperium eacute um conceito romano com uma evoluccedilatildeo proacutepria e uma aplicaccedilatildeo histoacuterica e historiograficamente especiacutefica pelo que apesar do pragmatismo e da sua utilidade enquanto ferramenta conceptual os historiadores como os arqueoacutelogos e os filoacutelogos devem estar conscientes dos perigos de anacronismo e das limitaccedilotildees epistemoloacutegicas que ele implica2 Isso natildeo obsta poreacutem que a matriz do que reconheceremos como modelo imperial romano remonte agrave Eacutepoca Preacute-Claacutessica como bem mostrou Francis Joannegraves3 Importa tambeacutem por isso refletir sobre a pertinecircncia e eficaacutecia do seu uso quando nos referimos a outras eacutepocas da Histoacuteria muito especialmente as que se definiram antes de Roma se ter assumido como uma macroestrutura poliacutetica que veio a trilhar de modo definitivo o caminho que a Humanidade tem vindo a percorrer desde entatildeo
Aleacutem disso importa ter tambeacutem presente como nota Christophe Badel4 que a noccedilatildeo de ldquoImpeacuteriordquo conhece nos dias de hoje interesse renovado por todos os que se interessam por geopoliacutetica e por cientistas e filoacutesofos poliacuteticos quando se debruccedilam sobre as formas contemporacircneas do nosso ldquouniverso globalizadordquo A
1 Esta investigaccedilatildeo foi realizada no acircmbito dos projetos UIDELT001962013 do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra e UIDHIS043112013 do Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa financiados pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia
2 Sobre esta problemaacutetica vide tambeacutem Jones 1951 Burchard 1957 Lintott 1981 Richard-son 1991 Martin 1995 Hurlet 2011 Hoeumlt-Van Cauwenberghe 2011 Cresci amp Gazzano 2018
3 Joannegraves 20114 Badel 2011 9
14
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis
perceccedilatildeo de que aquela eacute uma noccedilatildeo complexa manifesta-se no texto de Badel logo no iniacutecio quando o autor faz questatildeo de explicitar que ldquolrsquousage veut que lrsquoon distingue les deux sens du mot empire par le choix de la minuscule ou de la majuscule en deacutebut de mot LrsquoEmpire designe le regime politique monarchique et lrsquoempire la domination territoriale Nous utiliserons donc la minuscule sauf dans le cas drsquoun empire particulier puisqursquoalors il srsquoagit drsquoun nom propre Nous parlerons donc lsquodes empiresrsquo mais de lsquolrsquoEmpire romainrsquo5
Parece-nos que o alerta de C Badel enuncia jaacute as problemaacuteticas subjacentes ao tratamento desta questatildeo Eacute com ela no horizonte que vaacuterios especialistas se dedicaram jaacute ao tema analisando-a eg no contexto da histoacuteria mesopotacircmica e persa6 grega e heleniacutestica em geral7 e romana (vide referecircncias na nota 2 desta introduccedilatildeo8)
A esses estudos tambeacutem natildeo eacute estranho o conceito de ldquoimperialismordquo enquanto ideia radicada na historiografia do seacuteculo XIX sobretudo e influenciada pelas realidades poliacuteticas de entatildeo nomeadamente o ldquoImpeacuterio Britacircnicordquo Com efeito cedo nos apercebemos de que muito do que a historiografia da Antiguidade ainda hoje utiliza enquanto ferramenta conceptual para o tratamento das questotildees da poliacutetica e do domiacutenio e administraccedilatildeo de territoacuterios a essa realidade muito deve Tambeacutem neste campo deve o historiador estar alerta9
Este contributo portuguecircs para a discussatildeo da temaacutetica consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de estudo da Antiguidade A tiacutetulo de introduccedilatildeo Joseacute Augusto Ramos apresenta um texto intitulado ldquoMitologias teologias e taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuteriordquo com que pretende a partir das fontes biacuteblicas estruturar categorias e organizar semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia em debate
Para o caso egiacutepcio Joseacute das Candeias Sales escreve sobre ldquoOs Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de lsquoImpeacuteriorsquordquo texto que se foca na problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e na terminologia utilizada para a definir Com efeito as foacutermulas ldquoImpeacuterio Antigordquo ldquoImpeacuterio Meacutediordquo e ldquoImpeacuterio Novordquo satildeo por norma as usadas pelos egiptoacutelogos portugueses sendo que o autor se interroga e nos faz interrogar sobre a pertinecircncia da aplicaccedilatildeo do conceito de ldquoimpeacuteriordquo a estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia Rogeacuterio Sousa reflete acerca de ldquoComeccedilar de novo a lsquorepeticcedilatildeo do nascimentorsquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacuteniordquo sendo o seu ponto de partida a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Segundo o
5 Badel 2011 96 Joannegraves 20117 Gregor 1953 Ste Croix 1954 Mosseacute 2011 Peacutebarthe 2011 Martinez Segraveve 20118 Veja-se ainda Garnsey et Whittaker [1978] 20079 Veja-se Barroll 1980 e Le Roux 2011
15
Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues
autor esse periacuteodo partilha muitos aspetos com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no espaccedilo egiacutepcio do que noutros contextos poreacutem esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta nem foi acompanhada de uma crise cultural profunda como aparentemente se poderia supor Ainda assim o chamado Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo do que se convencionou chamar de ldquoRepeticcedilatildeo do Nascimentordquo
Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia contamos com a proposta de Maria de Faacutetima Rosa ldquoHammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divinardquo A autora foca-se na emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa O contributo de Marcel Paiva do Monte tem por tiacutetulo ldquolsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmiardquo Com este estudo M Monte reflete sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a vigecircncia de Akkad originou uma nova tradiccedilatildeo que estruturou e marcou definitivamente a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo um modelo de realeza que viria a ser objeto de emulaccedilatildeo por parte de muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia
Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro-palestinense contamos com os contributos de Joatildeo Paulo Galhano e de Elisa de Sousa Galhano escreve sobre ldquoA hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hititardquo Este estudo recorre a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas Assim analisam-se sobretudo os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas verificando-se apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo As narrativas hurritas trouxeram assim ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircncias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria da soberania Sousa apresenta uma reflexatildeo sobre ldquoImperialismo no mundo colonial feniacuteciordquo estudo que se centra na problemaacutetica da colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas Com efeito este processo teve um impacte profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemicos mas tambeacutem culturais
16
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis
nos territoacuterios ultramarinos da Feniacutecia A evidecircncia disso estaacute no facto de a heranccedila oriental se vir a sobrepor em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente como mostra a evidecircncia da cultura material por exemplo Neste sentido estamos perante relaccedilotildees de domiacutenio que poderatildeo ser interpretadas segundo a autora e na linha de estudos desenvolvidos por Garelli ou Liverani no acircmbito de uma ideia de ldquoimperialismo culturalrdquo
As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por quatro estudos Marcel Monte oferece-nos um texto sobre a ldquoDecapita-ccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoas-siacuteriordquo Com efeito em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo parece ter sido na Mesopotacircmia um ato de inusitada atrocidade mas com um propoacutesito simbologia e semioacutetica Assim atos como a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ou caput hostis seriam essencialmente mecanismos de propaganda a componente visiacutevel de uma sineacutedoque poderosa que manifestava a derrota do adversaacuterio e a ruiacutena de tudo o que isso representava para o vencedor Em siacutentese expressotildees de poder de uma estrutura que se queria hegemoacutenica A investigaccedilatildeo de Joatildeo Pedro Vieira leva por tiacutetulo ldquoBeber do Nilo ou do Eufrates O papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacuterdquo e estabelece a relaccedilatildeo entre o periacuteodo neobabiloacutenico e o espaccedilo dos Hebreus Com base em Jr 27-29 este estudo argumenta que Jeremias defendia uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico Suge-re-se ainda que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica daquele profeta poderaacute ter sido reco-nhecida pelas elites poliacuteticas neobabiloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu poder e domiacutenio sobre Judaacute O terceiro estudo deste grupo eacute da autoria de Antoacutenio Ramos dos Santos e tem por tema ldquoNaboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenicordquo Neste texto lemos sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei daquele periacuteodo bem como sobre a questatildeo do poder reacutegio nesse mesmo contexto Por fim ainda no acircmbito da Babiloacutenia fazendo jaacute a transiccedilatildeo para o universo persa Maria de Faacutetima Rosa daacute-nos a ler ldquoA queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao culto do deus Mardukrdquo texto com que a autora analisa algumas fontes cuneiformes que servem para explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk
Sobre a Peacutersia propriamente dita contamos com os trabalhos de Carmen Soares e de Maria de Faacutetima Silva Especialista em Heroacutedoto C Soares publica ldquoMonarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquicardquo Neste estudo a autora apoia-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380-82 e passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos leva a concluir sobre a inexistecircncia de uma figura modelar de monarca Heroacutedoto
17
Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues
oferece sim dos monarcas tanto ldquoretratos mistosrdquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um ldquoretrato purordquo (do tirano insolente Cambises) Igualmente perita nos textos do pater historiae M F Silva disserta acerca de ldquoSer rainha na Peacutersia Antigardquo Para isso poreacutem a autora recorre natildeo apenas agraves informaccedilotildees fornecidas por Heroacutedoto mas tambeacutem a outros textos gregos coevos ou posteriores como os de Eacutesquilo e Plutarco Com efeito estes satildeo os autores que em diferentes eacutepocas melhor retratam a vida na corte persa e a in-fluecircncia feminina que circundava os seus monarcas Mas eacute de salientar tambeacutem que apesar do muito que se sugere historicamente verdadeiro natildeo seraacute pouco o que ali lemos que teraacute sido composto sob as cores da fantasia e da ideologia do contexto poliacutetico-cultural dos autores desses textos
O periacuteodo heleniacutestico estaacute representado pelo estudo de Nuno Simotildees Rodrigues ldquoPeri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticasrdquo Com este trabalho o autor pretende refletir sobre o papel e a im-portacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder a partir do estudo de cinco casos Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito e Cleoacutepatra VII do Egito
Eacute ao periacuteodo romano que se dedicam os uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios O primeiro deles eacute da autoria de Filipe Carmo e consiste num ensaio em que o autor tenta estabelecer uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano Assim em ldquoO Imperium da origem ao principadordquo F Carmo comeccedila por assinalar o facto de originalmente e para al-guns autores o conceito se relacionar com o ldquopoder soberano de comandordquo um poder absoluto de vida e de morte ndash e por isso tambeacutem de implicaccedilotildees religiosas que se manifestavam na esfera dos auspicia ndash ao qual os ldquosuacutebditosrdquo deviam obedecer sem restriccedilotildees O estudo da evoluccedilatildeo do conceito ndash que para outros historiadores poderaacute ter tido origem no estabelecimento de uma hegemonia do Estado Romano sobre outros estados ou no comando militar de uma alianccedila ou ainda numa afirmaccedilatildeo de caraacutecter pessoal uma potecircncia carismaacutetica condu-cente ao ecircxito assumida pelo chefe ndash leva-nos a verificar a sua compatibilidade com a ideia de cidadania e naturalmente a natildeo entender a referida obediecircncia de um modo absoluto A aquisiccedilatildeo do imperium pelos magistrados superiores da cidade estaria por outro lado estreitamente associada a uma sucessatildeo de atos de natureza civil e religiosa cujo natildeo cumprimento adequado poria em causa a legitimidade do exerciacutecio de tal poder Para Carmo teraacute sido precisamente uma crise dessa legitimidade iniciada pela atomizaccedilatildeo do poder e derivada das con-quistas romanas e das guerras civis que conduziu numa fase posterior ndash atraveacutes das ditaduras de Sula e de Ceacutesar dos triunviratos e da criaccedilatildeo do principado ndash a uma reaccedilatildeo que levou agrave concentraccedilatildeo progressiva do imperium e agrave institucio-nalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas que jaacute satildeo proacuteximas dos conceitos modernos de ldquoimpeacuteriordquo e ldquoimperialismordquo Amiacutelcar Guerra analisa a problemaacutetica
18
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis
de ldquoA construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes das narrativas da conquis-ta romana do Ocidenterdquo Com este estudo A Guerra trabalha a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes Essa representaccedilatildeo parece depender de uma perspetiva enformada pela cultura greco-latina naturalmente bem como pelos seus paradigmas Deste modo o quadro que se transmite dos povos hispacircnicos deve ser sempre lido a partir dessa chave apresentando-se em oposiccedilatildeo agravequeles numa dicotomia que com frequecircncia se associa agrave oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie De qualquer modo verifica-se que a visatildeo desse mundo natildeo eacute necessa-riamente linear sendo que dispomos de um nuacutemero consideraacutevel de exemplos que ilustram a complexidade do panorama Neste sentido apresentam-se alguns exemplos em que de alguma forma se enuncia uma imagem reversa por um lado a arenga de Aniacutebal aos seus soldados antes da batalha do Ticino em que o general apresenta a sua perspetiva sobre o comportamento dos Romanos por outro referem-se alguns episoacutedios em que se potildee em evidecircncia o heroiacutesmo de mulheres hispacircnicas a comeccedilar pelo que ocorre entre os Braacutecaros no contexto da campanha galaica de Deacutecimo Juacutenio Bruto A Joseacute Luiacutes Brandatildeo cabe escrever acerca de ldquoUm olhar sobre o poder imperial em Suetoacuteniordquo Especialista nesse historiador latino Brandatildeo apresenta uma minuciosa anaacutelise das Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido Em Suetoacutenio esse eacute um poder que deve conduzir a um novo e melhor Estado como aquele fundado por Augusto mas que no entanto assenta numa sucessatildeo mal definida e imprevisiacutevel em que o destino desempenha um papel fulcral Com efeito esse poder sendo ilimitado e potencialmente incontrolaacutevel depende do caraacutecter de quem o possui podendo oscilar entre um comportamento tiracircnico e individualista e uma atitude pater-nal e por consequecircncia universalista que abarca todas as aacutereas de intervenccedilatildeo governativa todas as ordens e todos os povos Por fim Rodrigo Furtado propotildee uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio em ldquoPeregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizadordquo Com este estudo como nota o autor e perante incongruecircncias omissotildees lapsos e reconstruccedilotildees das fontes sobre Melacircnia-a-Antiga procura-se aduzir elementos que permitem concluir que Melacircnia partiu para o Oriente ca 374 no contexto das perseguiccedilotildees de Valentiniano I tendo primeiro rumado ao Egito e depois estabelecido na Palestina Deste modo R Furtado procura dar uma leitura da vida de Melacircnia num mundo que era jaacute ao seu modo globalizado e causa ao mesmo tempo que consequecircncia de uma administraccedilatildeo territorial de tipo ldquoimperialrdquo
Esperamos assim ir ao encontro das expectativas dos nossos leitores Devemos uma palavra de reconhecimento puacuteblico pelo meticuloso trabalho de ediccedilatildeo deste livro feito pelo Martim Aires Horta e pela Daniela Dantas investigadores juniores da aacuterea de Histoacuteria Antiga do CH-ULisboa De igual
19
Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues
modo haacute que fazer um agradecimento ao Nelson Henrique investigador do CECH-UC que fez a paginaccedilatildeo da obra e agrave Imprensa da Universidade de Coimbra que a acolheu na sua seacuterie ldquoHumanitas ndash Supplementumrdquo Uma palavra de reconhecimento ainda ao nosso colega Hermenegildo Fernandes que enquanto Diretor do CH-ULisboa apoiou esta ideia e possibilitou que ela tivesse corpo Para terminar resta-nos evocar a nossa saudosa Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira eminente classicista portuguesa e Mestra de todos noacutes que patrocinou este projeto desde o seu iniacutecio e para o qual contribuiu com uma proposta subordinada ao tiacutetulo vergiliano ldquoImperium sine finehelliprdquo Natildeo quiseram as Moirai contudo que nos deixasse escrito o texto que tanto nos prometia Fica o registo da nossa memoacuteria e da sua generosidade
Delfim F LeatildeoJoseacute A Ramos
Nuno Simotildees Rodrigues
20
Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis
Bibliografia
Badel C 2011 ldquoLes modegraveles impeacuteriaux dans lrsquoAntiquiteacuterdquo DHA 59-25Barroll M A 1980 ldquoToward a General Theory of Imperialismrdquo Journal of
Anthropological Research 36 (2)174-95Burchard J E 1957 ldquoSine Finerdquo Daedalus 86 (3)174-89Cresci L R amp Gazzano F 2018 laquoDe Imperiisraquo Lidea di impero universale e la
successione degli imperi nellantichitagrave Roma laquoLrsquoErmaraquo di BretschneiderGarnsey P e C R Whittaker eds (1978) 2007 Imperialism in the Ancient World
Cambridge Cambridge University PressGregor D B 1953 ldquoAthenian Imperialismrdquo GampR 22 (64)27-32Hoeumlt-Van Cauwenberghe C 2011 ldquoEmpire romain et heacutellenisme bilan
historiographiquerdquo DHA 5141-78Hurlet F 2011 ldquoRe(penser) lrsquoEmpire romain Le deacutefi de la comparaison
historiquerdquo DHA 5107-140Joannegraves F 2011 ldquoAssyriens Babyloniens Perses acheacutemeacutenides la matrice
impeacuterialerdquo DHA 527-47Jones A H M 1951 ldquoThe Imperium of Augustusrdquo JRS 41 (1-2)112-19Le Roux P 2011 ldquoLes empires antiques et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoirerdquo DHA 5 179-
89Lintott A 1981 ldquoWhat was the lsquoImperium Romanumrsquordquo GampR 28 (1)53-67Martin J 1995 ldquoThe Roman Empire Domination and Integrationrdquo JITE 151
(4)714-24Martinez-Seacuteve L 2011 ldquoLe renouveau des eacutetudes seacuteleucidesrdquo DHA 589-106Mosseacute C 2011 ldquoPeacutericlegraves et lrsquoimpeacuterialisme atheacutenien de Thucydide agrave
lrsquohistoriographie contemporainerdquo DHA 549-55Peacutebarthe C 2011 ldquoLrsquoempire atheacutenien est-il toujours un empire comme les
autresrdquo DHA 557-88Richardson J S 1991 ldquoImperium Romanum Empire and the Language of
Powerrdquo JRS 811-19Ste Croix G E M de 1954 ldquoThe Character of the Athenian Empirerdquo Historia
3 (1)141
21
Joseacute Augusto Ramos
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio1
(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)
Joseacute Augusto Ramos(joseramosletrasulisboapt ORCID 0000-0002-3247-2163)
Universidade de Lisboa Centro de Histoacuteria
Resumo - Apesar de o discurso poliacutetico das culturas orientais natildeo ter elaborado es-pecificamente o conceito de impeacuterio a historiografia assume que se podem exprimir com ele os dinamismos de vaacuterias das suas eacutepocas Na Biacuteblia o conceito de impeacuterio informa a sua concepccedilatildeo do tempo representando a realidade das muacuteltiplas subser-viecircncias histoacutericas bem como as suas configuraccedilotildees miacuteticas e teoloacutegicasPalavras-chave Egipto Assiacuteria Babiloacutenia Selecircucidas Romanos Quinto Impeacuterio
Abstract ndash Although the political speech of the Eastern cultures did not specifically elaborate the concept of empire historiography assumes that the dynamism of several of its epochs can be expressed with it In the Bible the concept of Empire informs its conception of time representing the reality of the multiple historical dominations as well as its mythic and theological configurations
Keywords Egypt Assyria Babylon Seleucids Romans Fifth Empire
Os textos recolhidos nesta ediccedilatildeo reportam-se a um horizonte de Histoacuteria Antiga em que o principal elemento ordenador da longa duraccedilatildeo histoacuterica eacute a ideia de impeacuterio As abordagens apresentadas tratam a questatildeo em diversas eacutepocas e em muacuteltiplas situaccedilotildees diversificadas Entretanto eacute realmente no vocabulaacuterio poliacutetico enraizado na eacutepoca do Impeacuterio Romano que esta designaccedilatildeo verdadeiramente se origina apesar de a ideia de impeacuterio ser significativa e muito frequentemente utilizada na historiografia para representar um ordenamento poliacutetico e formular siacutenteses histoacutericas a respeito de eacutepocas muito remotas E se eacute de Roma que lhe vem o nome de impeacuterio daiacute viraacute tambeacutem boa parte da definiccedilatildeo mais expliacutecita do conceito
Neste contexto romano com efeito as linhas de forccedila da semacircntica de impeacuterio definem-se a partir de um contexto militar onde uma figura de suces-so aparece rotulada de imperator e vai sendo sucessivamente projectada para uma funccedilatildeo poliacutetica de poder e soberania encontrando-se agrave cabeccedila de todo um
1 Este trabalho eacute financiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircn-cia e a Tecnologia no acircmbito do projecto UIDHIS043112013
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_1
22
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
universo geograacutefico e populacional que o imenso exeacutercito romano podia realmen-te representar Um tal sucesso e representatividade na vertente militar acrescido de um poder alargado intenso e dominador satildeo conotaccedilotildees caracteriacutesticas que se acentuam na ideia de impeacuterio no momento em que este conceito passa a ser transferido para outra entidade histoacuterica especiacutefica Mesmo natildeo constituindo nomenclatura poliacutetica expliacutecita dos mundos orientais preacute-claacutessicos o conceito e imagem dos impeacuterios tem-se mostrado muito naturalmente adequado para representar entidades poliacuteticas de especial impacte sobretudo tratando-se de uma forccedila poliacutetica externa que domina ou simplesmente condiciona e enquadra a histoacuteria de povos e naccedilotildees agrave sua volta Neste sentido o mundo oriental natildeo usou esta designaccedilatildeo mas de imediato sugeriu claramente que esta imagem e conteuacutedo se lhe podiam aplicar de forma adequada
Natildeo pode caber aqui a pretensatildeo de esquadrinhar toda a arqueologia orien-tal dos matizes que confluem para o conceito de impeacuterio definindo assim o conteuacutedo que precede e veio a informar a posterior designaccedilatildeo Eacute no entanto inegaacutevel que a cultura e a historiografia poliacutetica do Oriente desde havia muito tempo desenvolviam modalidades categoriais precursoras da ideia de impeacuterio Em convergecircncia com as anaacutelises e prestaccedilotildees que foram recolhidas neste volu-me temaacutetico apenas pretendemos valorizar o testemunho biacuteblico sobre a capa-cidade de sistematizaccedilatildeo da histoacuteria bem como das suas fases e realidades para as quais esta ideia aparece requisitada Este eacute provavelmente um dos aspectos em que a Biacuteblia oferece um horizonte mais pertinente sobre o seu mundo que abarca a totalidade do mundo preacute-claacutessico
Nos textos originais da Biacuteblia fala-se de reis e de reinos em termos concretos ou de realeza em abstracto mas nas traduccedilotildees e comentaacuterios em discurso mais historiograacutefico recorre-se frequentemente agrave designaccedilatildeo mais ampla de impeacuterio Para justificar esta equivalecircncia conceptual convergem os dados que caracterizariam o termo na semacircntica romana em que assentou o nome Isto eacute sublinha-se o poderio militar e uma soberania poliacutetica que tende para uma hegemonia com traccedilos de comportamento excessivo e de algum modo indevido e absoluto A utilizaccedilatildeo deste conceito implica por um lado uma avaliaccedilatildeo do processo histoacuterico visto pelos seus niacuteveis de sucesso e pelas suas dimensotildees de injusticcedila O discurso biacuteblico que se reporta a esta imagem toma-a como portadora de injusticcedila e de opressatildeo A voz eacute a dos oprimidos2 Todavia apesar desta negatividade frequentemente dramaacutetica os momentos nevraacutelgicos de hegemonia representados por potecircncias dominantes servem de maneira inteiramente loacutegica para sobre a linha dos impeacuterios assentar a mais eficaz periodizaccedilatildeo de toda a duraccedilatildeo histoacuterica como marcos no seu longo percurso
2 A injusta desumanidade deste poder absoluto estaacute na base do confronto entre o poder imperial romano e os primeiros cristatildeos Cf Jones 1992 5806-9
23
Joseacute Augusto Ramos
Neste espaccedilo funcionalmente delimitado apenas se podem sintetizar al-guns toacutepicos da imensa riqueza de matizes que este conceito chave eacute chamado a exercer na leitura ordenamento e representaccedilatildeo da histoacuteria humana que se espelha no horizonte da Biacuteblia
Impeacuterios de horizonte miacutetico
As mais marcantes figuras da Histoacuteria tendem naturalmente para garantir assento na galeria de formas miacuteticas da literatura essencial Dentro da Biacuteblia esta literatura miacutetica essencial da Histoacuteria na mais pertinente acepccedilatildeo que faz dela um universal humano encontra-se distendida ao longo dos primeiros 11 capiacutetulos do Geacutenesis E eacute precisamente ali que nos deparamos com a figura de Nimerod laquoo primeiro homem poderoso sobre a terraraquo3
Com este nome de Nimerod a concentrar em si diversas toponiacutemias e onomaacutesticas parece ter sido sintetizada e personificada a memoacuteria de virtua-lidades imperiais que o longo passado da Mesopotacircmia foi acumulando desig-nadamente as da Sumeacuteria e Babiloacutenia conjuntamente designadas com o nome de Chinear e ainda a Assiacuteria As conotaccedilotildees de forccedila e habilidade militar a significativa difusatildeo e ressonacircncia do seu poder bem como o caraacutecter inaugural e institucionalmente constituinte da sua imagem satildeo desde muito cedo caracte-riacutesticas chamadas a integrar o conceito de impeacuterio A origem desta personagem Nimerod comporta desde logo referecircncias africanas pois eacute apresentado como filho de Cam o segundo filho do miacutetico patriarca Noeacute de quem descenderiam as populaccedilotildees primitivas da regiatildeo nordeste do continente africano onde na antiguidade pontificou o Egipto faraoacutenico A sua memoacuteria poreacutem transcende o mundo egiacutepcio propriamente dito Mesmo que este desvio exagerado para os lados da Aacutefrica possa ser fruto de uma confusatildeo entre os cuchitas gentes de Aacutefrica e os cassitas gentes da Mesopotacircmia esta amplificaccedilatildeo geograacutefica com a consequente extensatildeo semacircntica enquadra-se bem como verdade proacutepria da miacutetica figura imperial de Nimerod4
O nome e a imagem de Nimerod parecem ter possibilidades de se ar-ticular nas profundidades da semacircntica histoacuterica com grandes figuras de poder real como Tukulti Ninurta do impeacuterio meacutedio assiacuterio e bem assim com representantes da mitologia do poder como sejam os proacuteprios deuses meso-potacircmicos Ninurta e Marduk A confluecircncia natural entre niacuteveis humanos e divinos do poder segundo a concepccedilatildeo oriental antiga eacute uma das caracteriacutes-ticas do conceito de impeacuterio Por essa razatildeo muitas memoacuterias da cultura me-sopotacircmica conservadas pelos hebreus podem confluir para dar conotaccedilotildees agrave
3 Cf Gn 108 1Cr 1104 Cf Gn 108-12 Speiser 1964 69-73
24
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
imagem de Nimerod5 No livro do profeta Miqueias6 contemporacircneo da fase ascendente do impeacuterio neo-assiacuterio Nimerod eacute associado precisamente com o impeacuterio assiacuterio
No interior de uma saga familiar e regional que dizia respeito ao clatilde patriarcal de Abraatildeo e Lot o mesmo bloco mesopotacircmico de um poder de intensa ressonacircncia e ampla repercussatildeo aparece representado pela foacutermula poliacutetica de uma pentaacutepole onde pontificam nomes de reis aos quais o tempo jaacute impusera formas de erosatildeo Por isso alguns daqueles nomes escapam agrave tentativa de identificaccedilatildeo com figuras histoacutericas conhecidas Era precisamente o que acontecia com o nome do proacuteprio Nimerod7 O impeacuterio unificado que aqui parece andar impliacutecito sob a forma de uma coligaccedilatildeo de reis eacute o de Amerafel rei de Chinear Arioc rei de Elassar Cadorlaomer rei de Elam Tidal rei de Goim A sequecircncia da narrativa8 acaba por colocar Cadorlaomer na posiccedilatildeo de lideranccedila e apresenta-o como a personificaccedilatildeo daquele grande poder que ameaccedilava o bem-estar da famiacutelia patriarcal de Abraatildeo Deste quadro resulta uma imagem ameaccediladora e ao mesmo tempo fraacutegil ateacute quase ao ridiacuteculo9 Estas satildeo caracteriacutesticas paradoxais que denotam biblicamente o conceito de impeacuterio
Tambeacutem neste caso como na anterior ocorrecircncia de Nimerod o concentra-do de referecircncias geograacuteficas e de nomes parece convergir bem com o aglomera-do miacutetico perceptiacutevel na referecircncia que se projeta para um tempo paradigmaacutetico das origens Eacute assim que acontece no iniacutecio das grandes narrativas miacuteticas da Mesopotacircmia10 A ideia de poder estaacute naquela narrativa marcada pela signifi-cativa aglomeraccedilatildeo de reis de grandes potecircncias enquanto Abraatildeo os enfrentava com as poucas centenas dos seus homens11
Face agrave grandeza do impeacuterio aparece a pequenez das forccedilas que lhe ofere-cem resistecircncia Neste desfasamento e evidente desequiliacutebrio de forccedilas consiste a grandeza do milagre Eacute a mesma foacutermula simboacutelica de desproporccedilatildeo que se verifica na confrontaccedilatildeo entre David e Golias12 O jogo desequilibrado entre o impeacuterio e as suas viacutetimas eacute sempre um campo de maravilha Esta capacidade de alimentar a expectativa de um milagre eacute a forccedila de resistecircncia dos condenados
5 Cf Machinist 1992 41116-1186 Mq 557 Gn 1418 Gn 144-99 Abraatildeo com os seus trezentos e dezoito servos a desbaratar a grande coligaccedilatildeo de reis com
seus exeacutercitos (Gn 1414-16) comporta uma situaccedilatildeo loacutegica que pode ter atractivos de maravi-lhoso mas eacute sem duacutevida humoriacutestica no seu desequiliacutebrio
10 A formula narrativa do ldquoquandordquo segundo as modalidades narrativas conhecidas no an-tigo Oriente traduz uma especiacutefica profundidade miacutetica e remete para o tempo primordial tal como acontece no iniacutecio das grandes narrativas de Atrahhasis e de Enuma elish
11 Gn 141412 1Sm 171-58
25
Joseacute Augusto Ramos
Eacute o que daacute resistecircncia ao pensamento apocaliacuteptico que assenta a sua resistecircncia numa atitude de tipo quietista e confiante13
Estas referecircncias poderiam mesmo ser um concentrado onde se acumulam as imagens dos inimigos de fora identificados simplesmente como inimigos de Abraatildeo e seus vizinhos podendo mesmo natildeo serem vizinhos entre si Com efeito o uacuteltimo nome daquele grupo de reis coligados o rei de Goim nome que quer dizer laquopovosraquo poderia mesmo estar ali jaacute como simples referecircncia geneacuterica aos outros povos tomados como diferentes e eventualmente como inimigos de Israel14 Estes inimigos podiam secirc-lo realmente ou virtualmente e podiam ateacute ser inimigos apenas paradigmaticamente O conceito biacuteblico de impeacuterio eacute o de um poder exterior condicionador e soberano Nem precisa forccedilosamente de ser uma foacutermula institucional especiacutefica e formal Por isso a Biacuteblia considera como impeacuterios certas realidades poliacuteticas que na realidade nos pode parecer que natildeo justificariam semelhante roacutetulo Uma boa parte das referecircncias biacuteblicas a forccedilas externas de hegemonia e domiacutenio situadas ao longo da histoacuteria dos hebreus podem caber neste modelo de designaccedilatildeo abrangente
Impeacuterios de horizonte histoacuterico
A histoacuteria biacuteblica natildeo proporcionou quase nunca ao povo dos hebreus a possibilidade de viverem como numa ilha em condiccedilotildees de autossuficiecircncia e de isolamento poliacutetico e cultural A longa duraccedilatildeo que nela aparece espelhada quer na sua realizaccedilatildeo concreta quer nos seus percursos de memoacuteria encontra-se explicitamente articulada em referecircncias maiores que lhe servem de enquadra-mento Eacute aqui que nos deparamos com as referecircncias aos impeacuterios numa funccedilatildeo natural que consiste em ir proporcionando definiccedilotildees e enquadramentos por meio dos quais o tempo histoacuterico se vai configurando O tempo dos hebreus e a sua narrativa histoacuterica satildeo recortados pelas transformaccedilotildees sucessivas de enquadramento em que uma potecircncia estrangeira se situa como referecircncia seja porque se afirma com hegemonia indirecta seja porque se constitui segundo a foacutermula de um domiacutenio directo Eacute o figurino dos impeacuterios predominantes que podem na realidade ser qualitativamente diferentes em versotildees boas ou maacutes mas que produzem sempre efeitos de condicionamento histoacuterico anaacutelogos sobre a vida dos povos e sobre a sua identidade
Nesta perspectiva a potecircncia poliacutetica e civilizacional que desde mais cedo e em eacutepoca histoacuterica serve de referecircncia incontornaacutevel para a histoacuteria dos hebreus eacute o Egipto cuja presenccedila continuada se recorta no horizonte da
13 Por muito que ande associada a imagens de combate a apocaliacuteptica eacute uma maneira de se confrontar com as injusticcedilas da Histoacuteria de maneira quietista isto eacute fazendo delas um manifesto sonante como declaraccedilatildeo de princiacutepios mas sem se organizar para a guerra
14 Cf Speiser 1964 105-9 Astour 1992 21057
26
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
eacutepoca preacute-monaacuterquica e se projecta por sobre todo o tempo dos patriarcas Com periacuteodos de maior ou menor domiacutenio este eacute um impeacuterio que suscita medo e manteacutem uma ameaccedila constante de opressatildeo Por outro lado e no entanto o Egipto tambeacutem oferece expectativas garantidas de esperanccedila e de vida A sua imagem enquanto referecircncia hegemoacutenica eacute por conseguinte de ressonacircncia ambivalente como o satildeo em geral e por sua natureza todos os impeacuterios As fases e coloridos com que se apresenta a histoacuteria sociopoliacutetica do Egipto nas suas sucessivas repercussotildees internacionais todas elas se repercutem de imediato e de forma muito concreta em vicissitudes praacuteticas de todo o geacutenero para a histoacute-ria da Biacuteblia Apesar dos altos e baixos mais ou menos notoacuterios e significativos que vatildeo conhecendo os 3000 anos de histoacuteria oferecem maleabilidade suficiente para que o Egipto possa marcar a sua presenccedila de forma continuada Mesmo quando natildeo lhe cabe o papel principal manteacutem-se por perto como forccedila impe-rial de segunda referecircncia e de recurso Eacute com efeito sob a eacutegide do Egipto que a histoacuteria biacuteblica se inicia O impacte desta imagem imperial do Egipto paira por cima da literatura essencial dos hebreus concentrada no Pentateuco
Desde o seacuteculo X ateacute agrave segunda metade do seacuteculo VII a C os hebreus viveram sob a hegemonia internacional e sucessivamente sob o domiacutenio do impeacuterio assiacuterio Na sua vizinhanccedila outras entidades poliacuteticas concretas podem natildeo chegar a merecer a designaccedilatildeo de impeacuterio apesar de mostrarem conteuacutedos e comportamentos sociais e poliacuteticos de grande relevacircncia Poderiacuteamos considerar aqui o impacte poliacutetico dos filisteus e dos feniacutecios Com efeito estes apresentavam ressonacircncias agressivas de alteridade cultural e poliacutetica e assumiam motivaccedilotildees especiacuteficas de concorrecircncia mas natildeo eram potecircncias de marcaccedilatildeo hegemoacutenica duraacutevel nem de amplitude significativa A sua sombra apreende-se com algum impacte por sobre os livros de Juiacutezes Samuel e Reis mas a sua conotaccedilatildeo eacute mais de vizinhos incoacutemodos que de impeacuterios dominantes
A partir da segunda metade do seacuteculo VIII a Assiacuteria servindo-se de uma foacutermula de afirmaccedilatildeo poliacutetica da Mesopotacircmia em eacutepoca mais recente afirma-se poderosamente no palco internacional onde as duas monarquias do Israel daquela altura tinham de se movimentar Alguns aspectos desta dimensatildeo imperial assiacuteria tornaram-se bastante visiacuteveis no reino do Norte a Samaria mais que no reino do Sul o de Judaacute A conquista militar e o recurso a uma metodologia radical de erradicaccedilatildeo da personalidade poliacutetica nacional satildeo o modelo mais sofisticado da sua estrateacutegia de domiacutenio como potecircncia imperial15 Eacute habitual que a historiografia considere o aparecimento subsequente dos samaritanos como uma transformaccedilatildeo de uma poliacutetica imperial que gerou um facto sociocultural e poliacutetico perene e persistente ateacute aos dias de hoje16 No
15 Cf 2Rs 1716 2Rs 17 624-41
27
Joseacute Augusto Ramos
horizonte do livro dos Reis das Croacutenicas e de Isaiacuteas eacute marcante o efeito da hegemonia e do domiacutenio exercidos pelos assiacuterios mesmo sobre o reino do Sul o de Judaacute que apesar de asseacutedios e cercos natildeo chegaram a conquistar17 Sobre os reinos dos hebreus a sua hegemonia foi curta mas foi profunda em consequecircncias de molde a transformar-se em memoacuteria paradigmaacutetica de impeacuterio opressor que ficou longamente registada na cultura biacuteblica18
A potecircncia imperial que se seguiu foi o impeacuterio neobabiloacutenico Historica-mente a Babiloacutenia tinha jaacute conhecido fases de modelo imperial anteriores no horizonte da Mesopotacircmia Para o horizonte poliacutetico dos hebreus no entanto esta uacuteltima Babiloacutenia a de Nabucodonosor eacute aquela que verdadeiramente in-teressa pois marca profundamente a experiecircncia do reino de Judaacute e cola-se agrave memoacuteria histoacuterica subsequente dos judeus A sua poliacutetica condiciona definitiva-mente o futuro cultural deste povo contribuindo decisivamente para a proacutepria configuraccedilatildeo das suas memoacuterias e da sua identidade com que se define As vaacuterias imagens da Babiloacutenia de fases anteriores podem ser culturalmente matriciais mas natildeo satildeo politicamente hegemoacutenicas para os hebreus Natildeo tinham por isso justificado para eles o tiacutetulo de impeacuterios Esta uacuteltima fase poreacutem apesar de ter sido bastante raacutepida foi absolutamente radical e mereceu por isso a designaccedilatildeo de potecircncia imperial na sua acepccedilatildeo mais intensa Por isso algumas das per-sonagens desta eacutepoca aparecem projectadas para o horizonte das linguagens e coordenadas mais marcantes do discurso biacuteblico sobre os imperialismos A sua fisionomia de cidade-impeacuterio oferece a foacutermula e designaccedilatildeo metafoacuterica para a cidade-impeacuterio que aparenta dominar o mundo tal como se recorta no horizon-te do Apocalipse19 Eacute nos livros de Jeremias e Ezequiel que podemos encontrar em registo de cariz contemporacircneo e dramaacutetico as vaacuterias tonalidades com que se pinta o impeacuterio neobabiloacutenico20 A segunda parte do livro de Isaiacuteas espelha o que o impeacuterio neobabiloacutenico deixou de sofrimento mas sugere jaacute muito daquilo que ele estaacute a permitir como esperanccedila21
Sem deixar de ter uma especiacutefica proeminecircncia simboacutelica que conser-vou durante seacuteculos na cultura biacuteblica o impeacuterio babiloacutenico foi rapidamente substituiacutedo pela presenccedila do impeacuterio persa que assumiu toda a sua expansatildeo poliacutetica e territorial Uma sua primeira fase transitoacuteria eacute culturalmente carac-terizada como medo-persa tendo a fase de domiacutenio da Meacutedia sido rapidamente ultrapassada Este impeacuterio persa ou aquemeacutenida durou por mais de dois seacuteculos e representou uma modalidade mais burocraacutetica administrativa e civilizacional
17 2Rs 1813-37 2Cr 32 Is 36-3718 O livro de Judite um romance histoacuterico provavelmente escrito no seacuteculo II a C trata
o proacuteprio rei neobabiloacutenico Nabucodonosor como se fosse um imperador da Assiacuteria (Jd 11)19 Ap 171820 Jr 34 37-39 Ez 1-1121 Is 40ss
28
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
do que militar Em mateacuteria de relacionamento poliacutetico e cultural a sua menta-lidade era mais aberta e colaborante que a dos dois impeacuterios mesopotacircmicos anteriores
Para as gentes do Oriente o tempo dos Persas manteacutem um modelo impe-rial pouco marcado do ponto de vista militar e natildeo muito exigente do ponto de vista econoacutemico Se excluirmos as relaccedilotildees com o Egipto e com a Greacutecia este modo de relacionamento do impeacuterio persa foi particularmente tranquilo comparativamente a outras aacutereas poliacuteticas e culturais Por isso se justifica o roacutetulo de uma eacutepoca de paz dos Aquemeacutenidas No panorama do Oriente este caso eacute um bom contributo para um conceito positivo dos impeacuterios Este impeacuterio persa serve de pano de fundo para os livros de Ageu Zacarias Esdras Neemias e enquadra uma fase de grande produtividade literaacuteria para a memoacuteria biacuteblica Durante os seacuteculos que durou para os hebreus o impeacuterio persa constituiu o en-quadramento para uma longa experiecircncia da comunidade hebraica como uma realidade sobretudo identificada com um modelo cultural centrada na funccedilatildeo do sumo sacerdote de Jerusaleacutem
Na eacutepoca heleniacutestica e pela consciecircncia histoacuterica que se apercebe na lite-ratura biacuteblica a forma de impeacuterio que se pode descortinar em primeiro lugar eacute a do helenismo alexandrino Esta eacutepoca eacute de boa convivecircncia entre a cultura grega e a tradicional cultura biacuteblica a relaccedilatildeo eacute algo semelhante em termos de ecumenismo cultural ao que acontecera no tempo dos persas apesar de a mentalidade judaica nem sempre lhe retribuir com atitudes de igual simpatia Foi a era de helenismo otimista para os judeus
Depois dos primeiros cerca de cem anos mais sossegados e por isso com menos histoacuteria seguiu-se uma outra fase de helenismo que decorreu sob o domiacutenio poliacutetico dos selecircucidas de Antioquia Natildeo era muito vistoso mas foi particularmente incisivo no que diz respeito aos judeus Muito do que na Biacuteblia e no judeo-cristianismo foi ganhando forma ficou a dever-se ao periacuteodo de um seacuteculo e meio que medeia entre o tempo do helenismo dos selecircucidas e a en-trada em cena do uacuteltimo impeacuterio que afecta realmente a historiografia biacuteblica isto eacute o Impeacuterio Romano No acircmbito helenista temos grande convergecircncia do patrimoacutenio cultural biacuteblico com o mundo cultural de raiz grega expressa na traduccedilatildeo da Biacuteblia para o grego em Alexandria e em livros biacuteblicos como o de Daniel da Sabedoria os dois livros dos Macabeus e muitos outros O confronto com os impeacuterios gregos e romanos induz uma grande produtividade literaacuteria entre os hebreus onde se insere praticamente todo o Novo Testamento
Lucas autor dos textos de cariz mais claramente historiograacutefico para as origens do cristianismo assume o horizonte do impeacuterio romano com natura-lidade e algum entusiasmo como enquadramento histoacuterico para apresentar o
29
Joseacute Augusto Ramos
nascimento de Jesus22 Esta referecircncia de tonalidade aparentemente feliz parece destinada a evoluir com alguma satisfaccedilatildeo em direccedilatildeo ao ponto em que o cris-tianismo passaria a assumir os destinos antropoloacutegicos de todo o mundo repre-sentado pelo Impeacuterio Romano Esta feliz convergecircncia estava de algum modo preparada na assunccedilatildeo de importantes modalidades heleniacutesticas de cultura que fizeram do modelo de cristianismo que chegou ateacute noacutes um cristianismo de recep-ccedilatildeo grega Por isso o cristianismo parece assumir com naturalidade e consciecircncia o horizonte ecumeacutenico do impeacuterio romano como representando o acircmbito do humano universal Eacute esta a sensibilidade dos anos setenta do seacuteculo primeiro da nossa era que se espraia pela literatura lucana desde o Evangelho ateacute aos Atos dos Apoacutestolos Esta imagem unificada do mundo no horizonte de Roma poderia mais uma vez representar a versatildeo positiva da ideia de impeacuterio e um vislumbre de uma consciecircncia de globalizaccedilatildeo humanitaacuteria
Pelo contraacuterio eacute evidente que o livro do Apocalipse apenas vinte ou trinta anos depois das perspectivas positivas de Lucas sobre o impeacuterio romano estaacute jaacute bastante longe de pintar com as mesmas cores de agrado os sentimentos de desagrado que o impeacuterio romano provocava junto de muitos cristatildeos
Impeacuterios eventualmente omissos
Algumas fases da histoacuteria da Biacuteblia poderatildeo ter eventualmente ficado menos claras na memoacuteria que as vaacuterias geraccedilotildees retiveram e na historiografia que se foi fazendo Jaacute referimos que a memoacuteria histoacuterica da Biacuteblia eacute demasiado recente e natildeo teve amplidatildeo suficiente para poder conservar incidecircncias directas de impeacuterios de origem mesopotacircmica muito antiga A Mesopotacircmia e as regiotildees que lhe satildeo afins funcionam para o mundo biacuteblico muito mais como matriz do que como percurso compartilhado Os proacuteprios sumeacuterios tiveram momentos histoacutericos de teor imperial O impeacuterio acaacutedico tem significativas razotildees para justificar o papel pioneiro que lhe eacute reconhecido para a foacutermula dos impeacuterios E ateacute a cidade siacuteria de Ebla logo a seguir ao tempo de predomiacutenio acaacutedico se poderia gabar de um certo ascendente regional de caracteriacutesticas algo imperiais ainda no decurso do terceiro mileacutenio antes de Cristo
A mesma coisa se pode dizer da era histoacuterica de predomiacutenio regional que coube aos hititas que aconteceu numa eacutepoca em que estaria ainda muito em-brionaacuterio o processo de definiccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica que conduziu agrave formaccedilatildeo do grupo dos hebreus Com efeito estes hebreus conservaram memoacuterias dispersas dos hititas que eles designam com o nome de heteus As referecircncias a este povo satildeo jaacute memoacuterias radicadas no interior da histoacuteria das tribos hebraicas E se os hititas ou heteus marcam presenccedila na memoacuteria dos hebreus eles natildeo chegaram
22 Lc 21-6 31-3
30
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
no entanto a tempo de se apresentar com a definiccedilatildeo clara de um impeacuterio com-pleto que impotildee regras poliacuteticas e define e limita condiccedilotildees de vida
A mesma coisa se deve dizer de nuacutecleos de hegemonia internacional que afectaram de forma significativa algumas regiotildees geograficamente vizinhas da Biacuteblia mas que ali natildeo chegaram a implantar marcas notoacuterias de poder imperial Eacute o caso dos hurritas que mais uma vez aparecem em referecircncias intersticiais desfocadas com o nome de horritas O seu nome perde-se entre a imensidatildeo de povos referenciados no passado biacuteblico-cananaico Eacute evidentemente raacutepida a histoacuteria daquilo que natildeo foi mas a hipoacutetese de existirem eacutepocas de impeacuterios que o exerciacutecio da memoacuteria histoacuterica deixou omissos eacute um elemento igualmente importante
A questatildeo do condicionamento da histoacuteria biacuteblica pela acccedilatildeo de entidades poliacuteticas externas acaba por coincidir com as relaccedilotildees poliacuteticas que se verificam em relaccedilatildeo a qualquer entidade estrangeira que num dado momento ou de for-ma permanente tenha interferecircncia no teor de vida da sociedade hebraica Pode entrar nesta perspectiva de algum modo o caso de todos os povos que ao longo da Biacuteblia foram sendo objecto de um pronunciamento ou de juiacutezo histoacuterico ex-presso sob a forma de oraacuteculos profeacuteticos23 Nestes oraacuteculos de condenaccedilatildeo poliacute-tica estaacute marcado aquilo que eacute diferente e que eacute inimigo Por isso esses oraacuteculos se apresentam sob a forma de uma ameaccedila um juiacutezo negativo e condenatoacuterio sobre as actividades poliacuteticas desses povos Estes exemplos podem ser considerados como uma imagem desmultiplicada de todas as conotaccedilotildees negativas com que se caracteriza a ideia de impeacuterio Com isto se apresentam personificados todos os casos do outro que enquanto poder eacute visto como um inimigo
Os impeacuterios de horizonte apocaliacuteptico
O olhar caracteriacutestico que a apocaliacuteptica desenvolveu a respeito da Histoacuteria levou a que nesse ambiente o conceito de impeacuterio se tivesse cristalizado na sua forma mais representativa em toda a amplitude do horizonte biacuteblico e mesmo para toda a duraccedilatildeo do mundo Na sua forma cumulativa e evolutiva a apo-caliacuteptica desenvolveu uma visatildeo articulada e integral da Histoacuteria que poderia dar particular significado ao papel desempenhado pelas potecircncias poliacuteticas em torno a elas se organiza e decorre a vida das sociedades ao longo do tempo Vaacuterios textos de sabor apocaliacuteptico na eacutepoca de ouro desta produccedilatildeo literaacuteria que foi a partir do seacuteculo II a C cultivaram assim uma visatildeo integral da Histoacuteria e deleitaram-se em a expor de forma pormenorizada de modo a dar
23 Eacute muito frequente nos profetas o aparecimento de oraacuteculos de julgamento relativamente ao comportamento poliacutetico das naccedilotildees e cidades estrangeiras para com o povo de Israel Veja-se por exemplo Is 14-24 3446-47 Jr 25-38 46-51 Ez 25-31 Jl 4 Am 1-2 Na 2-3 Sf 1-2 Cf Ramos 2013 34-35
31
Joseacute Augusto Ramos
evidecircncia persuasiva agrave sua argumentaccedilatildeo Um caso vistoso deste recurso eacute o do Apocalipse das Semanas integrado na literatura do ciclo de Henoc24 A partir do tempo daquele patriarca antediluviano a histoacuteria do mundo futuro apresenta-se dividida em dez semanas A semana que representa o tempo do autor e da escrita desta narrativa que deve ter acontecido por volta de 160 aC eacute contada como sendo a oitava e esta eacute classificada como sendo a do grande sofrimento O traacutegico da Histoacuteria estaacute no presente Seguir-se-aacute a semana do desfecho e da destruiccedilatildeo vindo toda a marcha da Histoacuteria a culminar na semana eterna de um novo ceacuteu e uma nova terra isto eacute a reposiccedilatildeo da ordem ideal desejada para as sociedades e para o mundo
Tornou-se entretanto claacutessica na tradiccedilatildeo apocaliacuteptica uma formulaccedilatildeo destes impeacuterios que se revela essencial para o modo como decorrem os vaacuterios periacuteodos da Histoacuteria O livro de Daniel25 fez desta sequecircncia o esquema integral do tempo e instituiu-o de tal modo que este passou a servir de foacutermula perene para o pensamento apocaliacuteptico Mais do que uma sensibilidade miacutetica demasia-do ampla da Histoacuteria esta literatura concentrava-se numa visatildeo historiograacutefica e historiomeacutetrica de maior proximidade que incidia directamente sobre o contexto poliacutetico e afectava a vida dos hebreus26 Na eacutepoca em que isto estava a acontecer estes hebreus podem claramente ser jaacute designados com o nome de judeus Os impeacuterios desta histoacuteria apocaliacuteptica ficaram sintetizados numa sequecircncia inten-sa sob a forma de cinco impeacuterios Com eles se pretendia apresentar um esquema capaz de sintetizar todas as aventuras da histoacuteria humana antes da sua chegada agrave meta ideal que seria a de uma ordem universal garantida Eacute o desejo assumido como meta incontornaacutevel
O Impeacuterio Babiloacutenico em virtude dos acontecimentos paradigmaacuteticos da destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do exiacutelio em 587586 foi e ficaraacute a ser a referecircncia modelar O Impeacuterio Meacutedio eacute contabilizado como o segundo apesar de a sua incidecircncia directa sobre a histoacuteria da Judeia ser bastante mais modesta O terceiro eacute o Impeacuterio Persa O quarto eacute o impeacuterio que ocupa o tempo presente da escrita situado por volta de meados do seacuteculo II a C O quinto impeacuterio cor-responde ao tempo sobre o qual se projecta a antevisatildeo miacutetica do futuro Pode-mos dizer que o primeiro dos cinco impeacuterios representa a definiccedilatildeo histoacuterica de impeacuterio enquanto potecircncia maligna o segundo e o terceiro satildeo referecircncias de continuidade para exprimir a longa e paciente realidade que eacute a experiecircncia histoacuterica o quarto eacute aquele de que se faz uma narrativa pormenorizada e dra-maacutetica uma vez que ali eacute que se situam os graves problemas humanos cultu-rais e poliacuteticos dignos de condenaccedilatildeo que constituem a experiecircncia poliacutetica e
24 Integrado entre os cc 91 e 93 do Livro de Henoc Cf Collins 2010 101-5 Diez Macho 1984 15ss
25 Cf Dn 239ss 71 719-25 8-1126 Collins 2010 151-63
32
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
cultural da insatisfaccedilatildeo Desta maneira o impeacuterio do presente fica sobrecarre-gado com toda a injusticcedila e dramatismo que os seus oprimidos experimentam O quinto representa a radical mudanccedila de horizonte e de tonalidade literaacuteria eacute o impeacuterio do futuro pois comporta toda a utopia e todos os ideais Eacute a utopia paradisiacuteaca em coordenadas e modalidades completamente opostas agraves da Histoacuteria Este horizonte de utopia vai-se mantendo afastado por exigecircncias do proacuteprio estatuto da utopia apesar de a intensidade das expectativas continuar a sugerir sempre grande aproximaccedilatildeo e requerer muita urgecircncia Eacute de facto o sentimento de urgecircncia que caracteriza este estado de espiacuterito A vontade de proceder a uma intensa revisatildeo da Histoacuteria eacute em si mesma um processo de aceleraccedilatildeo e de impaciecircncia
Poreacutem como a utopia vai tardando em tornar-se realidade a soluccedilatildeo para os prolongamentos diferenciados consiste em ir procedendo a novas e sucessi-vas identificaccedilotildees para o quarto impeacuterio que domina cada eacutepoca presente dos sucessivos sujeitos da consciecircncia histoacuterica Eacute assim que assistimos ao longo de seacuteculos de Histoacuteria a sucessivas identificaccedilotildees do quarto impeacuterio27 Este tem sido o espaccedilo onde sucessivos autores em seacuteculos diferentes se tecircm esforccedilado por fazer uma releitura e apresentar uma reconstruccedilatildeo do processo histoacuterico ao longo dos seacuteculos Na primeira visatildeo de Daniel este quarto e terriacutevel impeacuterio era o dos Gregos de Alexandre Magno corporizados principalmente pela dinastia dos Selecircucidas Pouco depois jaacute em plena eacutepoca do Novo Testamento o quarto impeacuterio passou a ser identificado com o impeacuterio dos romanos Com o passar longo dos seacuteculos o proacuteprio cristianismo e ateacute o islamismo acabaram por ser considerados de algum modo herdeiros poliacuteticos do impeacuterio romano passaram desta maneira a ser igualmente considerados como sucedacircneos do quarto impeacute-rio No final da Idade Meacutedia pensadores judaicos como Abravanel mantinham--se ainda estritamente fieacuteis ao uso desta coordenada28
Mais uma vez identificada como quarto impeacuterio eacute ainda a fase em que se encontra a histoacuteria do mundo que no seacuteculo XVII o Padre Antoacutenio Vieira con-siderava ser a do seu tempo Por muito que o laquofilho de homemraquo que segundo Daniel29 recebe o poder correspondente ao quinto impeacuterio seja identificado com Cristo na hermenecircutica teoloacutegica do cristianismo as discussotildees de Vieira vatildeo inteiramente no sentido de perceber em que moldes se faraacute a transiccedilatildeo do estado de ainda quarto impeacuterio para o finalmente quinto impeacuterio30 Por essas alturas andava ele a sonhar com a ideia da transiccedilatildeo definitiva do quarto para o quinto impeacuterio e natildeo se cansava de elaborar foacutermulas precisas e modelos concretos para
27 Cf Asurmendi 2000 507-10 Ramos 2013 35-37 28 Cf Netanyahu 2012 261-6629 Dn 713-1430 Eacute agrave tarefa de definir as subtilezas desta transiccedilatildeo que Vieira consagra os longos tratados
que satildeo a Histoacuteria do Futuro e a Clavis Prophetarum
33
Joseacute Augusto Ramos
planear e preanunciar o quinto impeacuterio onde ele com a mesma intensidade e urgecircncia de sempre colocava o mundo novo do futuro
Os plurais e o singular
Em suma a categoria histoacuterica dos impeacuterios transformou-se numa foacutermula privilegiada para processar a mitologia do tempo Por meio deste conceito se concentram a alteridade e a tensatildeo com que se identifica a pluralidade das na-ccedilotildees Nesta linguagem em que se espelham os conflitos da convivecircncia histoacuterica encontra-se expressa uma versatildeo da alteridade que intensifica as dimensotildees da agressividade Eacute a pluralidade com as suas ressonacircncias negativas Os outros na medida em que constituem uma ameaccedila satildeo realmente assim multitudinaacuterios e confusos degenerados inimigos e opressivos Natildeo obstante isso existe tambeacutem a pluralidade com uma ressonacircncia positiva podendo mesmo ser levada ateacute ao ponto de utopia Eacute o conviacutevio plural e ateacute mesmo universal das naccedilotildees retratado com as conotaccedilotildees de conviacutevio que satildeo caracteriacutesticas da utopia
Deus faz parte de ambos os horizontes de utopia em que se exprime e se estrutura a Histoacuteria do mundo com horizontes de negativo e de positivo Ele eacute a utopia requerida pela necessidade de exigir a justiccedila e de restabelecer a ordem seguramente mais do que as mecacircnicas elaboradas para explicar a origem do mundo Deus estaacute no processamento e no desenvolvimento da Histoacuteria e do mundo mais que na procedecircncia ou origem do universo Os mitos de origem que sublinham a intervenccedilatildeo divina constituem na verdade verdadeiros tratados sobre a essecircncia das coisas e sobre o seu desenvolvimento histoacuterico
Por isso resulta biblicamente natural detectar-se alguma dialeacutectica entre a teologia e os impeacuterios como foacutermulas equivalentes aos vaacuterios estados de or-ganizaccedilatildeo da Histoacuteria Com efeito os impeacuterios satildeo coisas proacuteprias da Histoacuteria de Deus eacute o Reino Em mateacuteria de semacircntica fundamental Deus e a Histoacuteria assentam sobre os mesmos princiacutepios e partilham uma boa parte dos respecti-vos significados Eacute por isso que na Biacuteblia bem como nas culturas preacute-claacutessicas se fala sempre univocamente em reino tanto para a realeza divina utoacutepica como para as realezas histoacutericas A teologia poliacutetica da Mesopotacircmia articulava de forma tranquila e otimista a dimensatildeo divina e a realidade humana da reale-za31 Os dois campos semacircnticos que tambeacutem ali se podem claramente detectar encerram de qualquer modo uma dose de dialeacutectica que o proacuteprio conceito de realeza oriental e muito particularmente o da realeza biacuteblica partilhavam32
O choque ocorre entre o excesso das praacuteticas e do simbolismo imperial por parte das realezas humanas com incidecircncias restritivas nos direitos e na digni-dade dos suacutebditos humanos e o caraacutecter utoacutepico e inalienaacutevel em que assenta
31 Cf A famosa lista dos reis sumeacuterios em Kranmer 1977 361-6332 Cf Ramos 2005 14-18
34
Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio
a antropologia individual e social no acircmbito do Reino de Deus Eacute o caraacutecter absoluto da praacutetica poliacutetica como um excesso (hybris) de absolutismo em con-fronto com conotaccedilotildees incontornaacuteveis absoluto e dignidade que satildeo apanaacutegio e direito inalienaacutevel dos humanos Numa fronteira deste teor os conflitos satildeo frequentes e radicais Tanto mais que chega a ter-se a impressatildeo de existir uma incompatibilidade total e incontornaacutevel entre estas duas margens Precocemente na Biacuteblia esta sensibilidade chegou a levantar duacutevidas de se seria correto assu-mir a realeza como forma de governo apesar de ser uma foacutermula consagrada pela experiecircncia histoacuterica dos povos orientais As ressonacircncias absolutas que o conceito de monarquia concita pareciam contradizer a ideia de que tais valores absolutos soacute estariam representados de forma coerente pela realeza de Deus33 No final do seacuteculo XV o judeu lisboeta Isaac Abravanel tambeacutem considerava mais certa uma lideranccedila profeacutetico-carismaacutetica para um hipoteacutetico governo do povo dos hebreus de preferecircncia agrave monarquia34
Entretanto continuou a verificar-se claramente uma preferecircncia biacuteblico-cristatilde pela nomenclatura de rei e de reino aplicando a Deus e a Cristo o tiacutetulo de rei mais do que o de imperador Mesmo assim houve eacutepocas em que a soberania real de Cristo se acomodou igualmente bem ao conceito de impeacuterio tanto em linguagem grega (autokraacutetor pantokraacutetor) como latina O hino do estado-cidade do Vaticano continua a repetir o refratildeo Christus vincit Christus regnat Christus imperat No horizonte hermenecircutico do cristianismo e de acordo com a visatildeo hermenecircutica do Padre Antoacutenio Vieira o quinto impeacuterio identificava-se inteira-mente com o plano cristoloacutegico decorrendo uma natural cumplicidade para com o destino de Portugal e para com a funccedilatildeo do seu rei
33 Cf 1Sm 81-1834 Cf Ramos 2007 382-83
35
Joseacute Augusto Ramos
Bibliografia
Astour M A 1992 ldquoGoiimrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 2 ed D N Friedman 1057 New York Doubleday
Asurmendi J M 2000 ldquoDaniel y la apocaliacutetpicardquo In Historia narrativa apocaliacuteptica ed A Gonzaacutelez Lamadrid 507-10 Estella Editorial Verbo Divino
Collins John J 2010 A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica Satildeo Paulo Paulus EditoraDiez Macho A Apocrifos del Antiguo Testamento Tomo 4 Madrid Ediciones
CristiandadFriedman D N ed 1992 The Anchor Bible Dictionary New York DoubledayJones D L 1992 ldquoRoman imperial cultrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 5
ed D N Friedman 806-9 New York DoubledayKramer S N 1977 Os Sumeacuterios Lisboa Livraria BertrandMachinist P 1992 ldquoNimerodrdquo In Anchor Bible Dictionary Vol 4 ed D N
Friedman 1116-118 New York DoubledayNetanyahu B 2012 Dom Isaac Abravanel estadista e filoacutesofo Coimbra Ediccedilotildees
TenacitasRamos J A 2013 ldquoOraacuteculos biacuteblicos de fim projectados por sobre o fim de
Romardquo In A queda de Roma e o alvorecer da Europa ed Francisco de Oliveira Joseacute Luiacutes Brandatildeo Vasco Gil Mantas e Rosa Sanz Serrano 34-35 Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra
mdashmdashmdash 2007 ldquoDefinir o Messias segundo Abravanelrdquo In Rumos e escrita da Histoacuteria coord Maria de Faacutetima Reis 382-83 Lisboa Ediccedilotildees Colibri
mdashmdashmdash 2005 ldquoRei e Messias imagens contrapostas imagens sobrepostasrdquo In Turres Veteras VII Histoacuteria das figuras do poder 14-18 Torres Vedras Cacircmara Municipal de Torres Vedras
Speiser E A 1964 Genesis Garden City NY Anchor Bible
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
37
Joseacute das Candeias Sales
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo1
(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)
Joseacute das Candeias Sales(JoseSalesuabpt ORCID 0000-0003-1087-1478)
Universidade Aberta Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria
Resumo - No seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa convencionou-se uma divi-satildeo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuterioraquo isto eacute trecircs eacutepocas de grande estabilidade poliacutetica e apogeu civilizacional o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo Seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo do conceito de laquoimpeacuterioraquo para estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e propriedade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de resposta a estas questotildees que se desenvolve o presente texto A nossa reflexatildeo organiza-se em torno das caracteriacutesticas essenciais e definidoras da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso da antiga histoacuteria egiacutepcia
Palavras-chave Divisatildeo cronoloacutegica impeacuterio reino territoacuterio Estado administraccedilatildeo
Abstract ndash In the scope of the Portuguese scientific Egyptology it has been conventionally accepted the division of the history of the pharaonic civilization in three main periods designated as laquoEmpiresraquo ie three eras of great political stability and civilizational apex the Impeacuterio Antigo the Impeacuterio Meacutedio and the Impeacuterio Novo We could nevertheless ask ourselves if the application of the concept laquoEmpireraquo is adequate for these periods of the Egyptian history Is this the concept that within the lusophone context best expresses and discriminates the sense of what we intend to qualify Is this the term that conveys the most clarity and accuracy to the idea we pretend to express The present essay revolves essentially around the search for an answer to these questions Our reflection is organized around the essential characteristics of the concept of laquoEmpireraquo and the laquovalidityraquo of its use in the case of the ancient Egyptian history
Keywords Chronological division empire kingdom territory State administration
Tendo principalmente como referente a atuaccedilatildeo da instituiccedilatildeo real conven-cionou-se no seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa uma divisatildeo instrumental
1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_2
38
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica com um ou outro ajuste de pormenor em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuteriosraquo isto eacute trecircs eacutepocas de gran-de estabilidade poliacutetica esplendor cultural e apogeu civilizacional (o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo) correspondentes aos momentos prestigiosos ideais da histoacuteria intercalados por trecircs outros periacuteodos obscuros de decadecircncia e esfacelamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais econoacutemicas e culturais os laquoPeriacuteodos Intermediaacuteriosraquo (o Primeiro o Segundo e o Terceiro) como que excluiacutedos do plano ideal da sucessatildeo histoacuterica Precedendo o Impeacuterio Antigo reconhece-se um laquoPeriacuteodo Arcaicoraquo tambeacutem chamado laquoEacutepoca Tinitaraquo Ao Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio segue-se a laquoEacutepoca Baixaraquo e por fim a laquoEacutepoca Greco-Romanaraquo completando assim um quadro cronoloacutegico de mais de 3000 anos (c 3100 aC a 395 dC)
Tendo em mente estas laquoalternacircnciasraquo ou laquoflutuaccedilotildeesraquo do poder poliacutetico egiacutepcio antigo independentemente das fontes disponiacuteveis para o nosso conhe-cimento do passado egiacutepcio e da operacionalidade da organizaccedilatildeo dinaacutestica transmitida por Maneton e usada pelos egiptoacutelogos modernos seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo empiacuterica do conceito de laquoimpeacuterioraquo agraves eacutepocas consideradas gloriosas e memoraacuteveis da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute realmente o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e proprie-dade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de respostas a estas questotildees que nos propomos desenvolver o presente texto Nou-tras palavras a nossa reflexatildeo organiza-se em torno dos caracteres essenciais definidores da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso das divisotildees cronoloacutegicas egiacutepcias
1 O conceito de laquoimpeacuterioraquo - componentes analiacuteticas
Antes de se avanccedilar com qualquer tentativa de definiccedilatildeo conceptual eacute ne-cessaacuterio tomar consciecircncia de duas dificuldades consideraacuteveis inerentes a essa tentativa e que a podem frustrar a primeira que nem sempre o uso da designa-ccedilatildeo laquoimpeacuterioraquo recobre e define com o mesmo sentido e significado determina-das configuraccedilotildees poliacutetico-culturais do passado o que significa que eacute no fundo impossiacutevel estabelecer um conceito universalmente vaacutelido aplicado a todos os casos histoacutericos de todas as eacutepocas e lugares haacute sempre portanto um desfasa-mento entre a teorizaccedilatildeo e a anaacutelise particular A segunda derivada da primeira que haacute uma importante ambiguidade e flutuaccedilatildeo terminoloacutegica quando se usa o termo laquoimpeacuterioraquo que natildeo raro desenvolve ideias preconcebidas e cerceia a proacutepria anaacutelise e reflexatildeo comparativa ou especiacutefica No contexto lusoacutefono por exemplo este aspeto eacute significativo porque historicamente o pequeno laquoreinoraquo de Portugal esteve na base de um extenso e duradouro laquoimpeacuterio portuguecircsraquo com toda a deformaccedilatildeo conceptual e interpretativa que tal situaccedilatildeo pode provocar na
39
Joseacute das Candeias Sales
anaacutelise e perceccedilatildeo do fenoacutemeno quando aplicado a outras cronologias e geogra-fias Natildeo sendo o conceito neutro como natildeo satildeo outros (exs laquocidade-estadoraquo laquomonarquiaraquo laquoditaduraraquo laquotiraniaraquo laquodemocracia pluralistaraquo etc) os distintos elementos que para ele concorrem e que nele se conjugam de forma mais ou menos singular dificultam a sua utilidade e ateacute a sua definiccedilatildeo
Muitas vezes o uso do termo e conceito resulta de laquoassociaccedilotildees histoacutericasraquo estabelecidas por analogia ou por oposiccedilatildeo expliacutecita ou impliacutecita seja com o modelo claacutessico e estruturante de Roma (laquoEstado governado por um impera-dorraquo) seja com outros laquoimpeacuteriosraquo de outras localizaccedilotildees espaciais e temporais2 A aparente unicidade do vocaacutebulo pode pois e frequentemente faacute-lo dissimular a diversidade de sistemas poliacuteticos que recobre
Isto eacute particularmente relevante no que se refere agrave aplicaccedilatildeo ao Egito antigo pois os eruditos prussianos do seacuteculo XIX que o fizeram refletindo sobre os fundamentos do poder poliacutetico e da histoacuteria exprimiam de uma maneira mais ou menos assumida a nostalgia do I Reich Altes Reich Mittleres Reich e Neues Reich3 Na segunda metade do seacuteculo XIX a criacutetica aos trabalhos alematildees no-meadamente de autores franceses manteve e fixou poreacutem a terminologia com os termos Ancien Empire Moyenne Empire e Nouvel Empire usados e reproduzi-dos por exemplo pela historiografia portuguesa Saliente-se contudo que nunca os antigos Egiacutepcios ndash que organizaram e teorizaram sobre o seu proacuteprio lugar no universo ndash usaram um termo que significasse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo em-bora esse aspeto derive em parte do facto de eles muitas vezes natildeo necessitarem de denominar certas abstraccedilotildees de territorialidade4
Assim conscientes de que embora natildeo seja possiacutevel estabelecer um conceito de laquoimpeacuterioraquo clara e universalmente vaacutelido para abranger todos os exemplos histoacutericos conhecidos eacute possiacutevel poreacutem determinar os caracteres operatoacuterios do conceito mdash a sua laquodireccedilatildeo geralraquo digamos assim mdash que nos podem guiar tambeacutem na avaliaccedilatildeo da sua adequabilidade aos casos do Egito antigo
O campo conceptual de laquoimpeacuterioraquo afirma-se em parte por oposiccedilatildeo ao de laquoreinoraquo e eacute por isso mais ou menos consensual desde o seacuteculo XVIII que a
2 A estrutura desenvolvida pelo Impeacuterio Romano instituiu-se como um laquomodelo cognitivoraquo servindo de referecircncia para a anaacutelise de muitas das construccedilotildees ideoloacutegicas imperiais atraveacutes da Histoacuteria
3 Cf Duverger 1980 6 Vernus 2011 164 Cf Kemp 1978 7 Vernus 2011 20-38 Galaacuten 1995 4 Talvez o termo mais proacuteximo da ideia
de laquoimperialismoraquo seja swsx tASw isto eacute laquoampliar as fronteirasraquo um dos imperativos da funccedilatildeo faraoacutenica no sentido em que expressa o conceito de autoridade ou de influecircncia do faraoacute sobre os povos vizinhos (Cf Ibid 4 101-3 Vernus 2011 26) De igual modo a expressatildeo in Dw laquoadquirir fronteiras tomar as fronteiras dos inimigosraquo tanto no sentido geo-poliacutetico como econoacutemico pode tambeacutem apresentar o mesmo recorte conceptual (Cf Galaacuten 1995 102 103 128-32) No entanto a ausecircncia de termo concreto especiacutefico particular para denominar laquoimpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo significa que os antigos Egiacutepcios natildeo sentiam necessidade de se referir a estes fenoacutemenos ou processos de forma independente abstrata ou individualizada (Cf Kemp 1978 7)
40
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
definiccedilatildeo se pode efetuar como laquoum Estado vasto governado por um soacute titular e composto por vaacuterios povosraquo5 Esta definiccedilatildeo encerra em si mesma trecircs compo-nentes que em termos analiacuteticos podemos dividir em
1 O impeacuterio eacute politicamente associado agrave monarquia trata-se de um sistema poliacutetico onde o poder supremo eacute assumido por um soacute titular (rei e imperador) designado hereditariamente e apresentando um caraacutecter sagrado ou sacralizado
Natildeo obstante esta laquounidaderaquo teoacuterica de base eacute possiacutevel constatar na Anti-guidade vaacuterias modalidades histoacutericas em que o titular pode ser encarado como i) deus incarnado ii) simples mandataacuterio da(s) divindade(s) ou iii) servidor da(s) divindade(s)
Tomando exclusivamente em linha de conta esta decomposiccedilatildeo compo-nente da definiccedilatildeo eacute difiacutecil distinguir laquoreinoraquo e laquoimpeacuterioraquo ou distinguem-se mal um do outro uma vez que quer o rei quer o imperador podem assumir e desempenhar e muitas vezes o fizeram cocircnscios da sua importacircncia a funccedilatildeo sacerdotal
2 O impeacuterio tem como criteacuterio fundamental a extensatildeo territorial Quer dizer natildeo podendo a distinccedilatildeo entre laquoimpeacuterioraquo e laquoreinoraquo ser efetuado a partir das relaccedilotildees existentes entre o soberano e a(s) divindade(s) eacute a natureza do es-paccedilo sobre o qual se exerce a soberania que possibilita o estabelecimento de uma fronteira de delimitaccedilatildeo conceptual
No entanto o criteacuterio eacute vago eacute impossiacutevel ser-se completamente exato e preciso no que agrave territorialidade diz respeito um laquoimpeacuterioraquo eacute um grande reino e um laquoreinoraquo eacute um impeacuterio mais exiacuteguo mas qual eacute o limite exato para efetuar a distinccedilatildeo A partir de que superfiacutecie um territoacuterio deve ser considerado su-ficientemente extenso para tornar pertinente o uso do termo laquoimpeacuterioraquo Dito de outra forma embora seja um criteacuterio fundamental o criteacuterio da vastidatildeo espaacutecio-territorial do poder natildeo eacute suficiente para definir laquoimpeacuterioraquo
3 O impeacuterio implica a existecircncia de uma pluralidade de povos tendo pre-sente que a unidade populacional e linguiacutestica caracteriza em regra o laquoreinoraquo Este elemento deriva e relaciona-se com a vastidatildeo territorial dos impeacuterios aci-ma enunciado A distacircncia fiacutesica real do espaccedilo territorial pressupotildee a inevitaacutevel diversidade cultural a necessaacuteria deslocaccedilatildeo de homens e mercadorias (atraveacutes de estradas canais navegaacuteveis vias de comunicaccedilatildeo abundantes e diversificadas pistas no deserto e na montanha etc) a criativa difusatildeo de ideias e a obrigatoacuteria superaccedilatildeo dos obstaacuteculos fiacutesico-naturais (rios montanhas desertos cataratas oceanoshellip) que por sua vez exigem uma racional organizaccedilatildeo do espaccedilo com uma delimitaccedilatildeo de fronteiras e uma demarcaccedilatildeo de limites mais ou menos
5 Duverger 1980 8 Esta definiccedilatildeo esboccedila-se em oposiccedilatildeo agrave de laquoreinoraquo em norma concebido como um espaccedilo territorial menos extenso e assente numa unidade da naccedilatildeo sobre a qual se forma (Cf Ibid 8)
41
Joseacute das Candeias Sales
fixos agraves matildeos de um Estado centralizado e autoritaacuterio a uma escala macro laquomundialraquo em contraste com a que subjaz agrave loacutegica mais micro mais regional mais local de um laquoreinoraquo
Por natureza os impeacuterios satildeo plurinacionais reunindo vaacuterias etnias comu-nidades e culturas com diferentes graus de integraccedilatildeo ou coexistecircncia podendo a sua laquounidaderaquo assumir vaacuterias modalidades a) sobreposiccedilatildeo do poder imperial a outras autoridades anteriores (locais reais imperiaishellip) com completa ru-tura com os quadros locais e sua substituiccedilatildeo pelos representantes-delegados do poder central (vice-reis governadores saacutetrapas legados prefeitos etc) b) uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo laquounificaraquo os haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades
Teoricamente a manutenccedilatildeo de um impeacuterio com todas as suas contradiccedilotildees e conflitos internos exige que a unidade alcanccedilada natildeo importa o meacutetodo usa-do confira algumas vantagens ou privileacutegios aos povos-comunidades-culturas nele englobados Este eacute talvez o desiderato mais difiacutecil de alcanccedilar e de manter o desequiliacutebrio do sistema ocorre quando as comunidades-culturas natildeo tecircm consciecircncia dos seus ganhos (materiais e ou simboacutelicos) com a pertenccedila e per-manecircncia no todo imperial e por isso preferem atraveacutes de revoltas rebeliotildees ou revoluccedilotildees de feiccedilatildeo beacutelica frequentemente sangrenta furtar-se ao controlo central na procura de satisfazer as suas pulsotildees de autonomia e autodetermi-naccedilatildeo Hegemonia imperial e espiacuterito nacionalista satildeo incompatiacuteveis
Daiacute que a organizaccedilatildeo imperial obrigue quase sempre a uma pressatildeo e coerccedilatildeo administrativo-burocraacutetica e militar forte6 hierarquizada e bem oleada para garantir a perceccedilatildeo regular dos tributos e impostos o controlo das eventuais tendecircncias separatistas ou de desordem puacuteblica a funccedilatildeo ordenada dos domiacutenios juriacutedico e judiciaacuterio numa palavra o regular funcionando das instituiccedilotildees e do sistema imperial Como escreve G Woolf
laquoEmpires are political systems based on the actual or threatened use of force to extract surpluses from their subjectshellip Preindustrial empires could not support large governmental institutions and so secured their power by promoting a community of interest among eacutelites within the empire and a sense of imperial membership based on participation in ruler worship and adherence to imperial cultural and symbolic systems Economically however empires were first and foremost tributary structures and much of the limited energy at their disposal was devoted to ensuring adequate supplies of cash labour and agricultural produce from the areas under their controlraquo7
6 Necessaacuterios para estabelecer os impeacuterios os exeacutercitos satildeo-no tambeacutem para os conservar (Cf Ibid 20)
7 Woolf 1992 28
42
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
Dito de outra forma na linguagem de Maurice Duverger
laquoLe concept drsquoempire implique agrave la fois une stabiliteacute qui deacutepasse le cadre drsquoune occupation et le remplacement des liens personnels par un systegraveme de bureaucratie non heacutereacuteditaire nommeacutee et reacutevoqueacutee par le souverainraquo8
2 O caso histoacuterico do antigo Egito a sacralidade do faraoacute ndash tiacutetulos e epiacutetetos
Quando procuramos aplicar este esquema tripartido ao caso histoacuterico do antigo Egito deparamo-nos com algumas interessantes constataccedilotildees Desde logo a inequiacutevoca conclusatildeo que a tipologia de poder nos coloca perante uma personagem humana que centraliza em si todas as vertentes do poder O per aa literalmente laquoA Grande Casaraquo ou seja originariamente a designaccedilatildeo do palaacute-cio real (estrutura fiacutesica) daquele que o habitava (entidade fiacutesica concreta) e do Estado que dirige (entidade abstrata) eacute desde o iniacutecio da histoacuteria civilizacional egiacutepcia o exemplo claacutessico de um deus incarnado como rei
Esta ideia de um deus tangiacutevel correspondia agrave necessidade de uma imagem muito concreta real fiacutesica que estabelecesse e assumisse o papel de inter-mediaacuterio e interlocutor entre os deuses e os homens O faraoacute eacute com efeito simultaneamente um deus e um rei humano estando as dimensotildees divina e humana inextricavelmente misturadas na sua personalidade Como cabeccedila do Estado competia-lhe zelar pela ordem e justiccedila Como laquosenhor do cumprimento dos ritosraquo era o garante e promotor da liturgia da piedade e da religiosidade Tudo na esfera poliacutetica social e econoacutemica tinha na realeza (nesit) no Faraoacute (nesut) o seu guardiatildeo privilegiado
Na feliz expressatildeo de Erik Hornung o faraoacute era laquoum homem desempe-nhando o papel de um deusraquo9 ou como diz Pascal Vernus laquolaquola diviniteacute peut se reacuteveacuteler agrave travers luiraquo10 Dito de outra forma o rei era um ser humano sendo que o que era divino e lhe transmitia a sacralidade era o ofiacutecio da realeza A realeza eacute que era divina sendo o faraoacute uma imagem do divino capaz de se tornar pela sua correta atuaccedilatildeo na sua manifestaccedilatildeo A manutenccedilatildeo das rela-ccedilotildees harmoniosas entre a esfera da sociedade humana e a dos poderes sobre-naturais e divinos a tarefa de provisatildeo dos principais meios de subsistecircncia e seu normal funcionamento eram conferidas ao faraoacute dependiam dele como homem e como deidade incarnada11 O faraoacute era o elemento imprescindiacutevel da identidade egiacutepcia laquole roi repreacutesente le meacutedium ideacuteologique gracircce auquel la
8 Duverger 1980 139 Hornung 1992 35710 Vernus 1986 3011 Cf Sales 2001 365
43
Joseacute das Candeias Sales
civilisation eacutegyptienne a maintenu contre tous les aleacuteas son identiteacute pendant plus de trois milleacutenairesraquo12
O direito e a legitimidade do monarca estavam teoricamente fundados na sua natureza divina transmitida pelo sangue Segundo a doutrina egiacutepcia a monarquia fora criada e exercida inicialmente no comeccedilo dos tempos pelos deuses que reinavam na terra sendo depois confiada aos homens13 A heredita-riedade da instituiccedilatildeo real fundava-se no mito da escolha pelo deus solar cada sucessor do faraoacute reinante era laquoescolhidoraquo pelo demiurgo que nele perscrutara e vira laquodesde o ovoraquo as suas qualidades Em regra esta laquoescolharaquo obedecia ao princiacutepio da primogenitura masculina14
As listas reais comeccedilavam com os deuses Reacute Chu Geb e Osiacuteris que nos Primeiros Tempos haviam reinado na terra antes de se retirarem para os ceacuteus continuando com Hoacuterus o herdeiro do trono de Osiacuteris o uacuteltimo dos grandes deuses a governar na terra e de quem todos os faraoacutes histoacutericos descendiam15 A transmissatildeo da funccedilatildeo real pertenceria ao filho do faraoacute reinante e da sua esposa oficial embora por vaacuterios exemplos histoacutericos conhecidos sem a forccedila de uma lei incontestaacutevel ou incontestada16 A legitimaccedilatildeo do poder real tinha na proclamada divindade e filiaccedilatildeo divina do faraoacute uma sanccedilatildeo suplementar A origem divina do poder explica o princiacutepio do governo de um soacute a monarquia e a modalidade de transmissatildeo a feiccedilatildeo hereditaacuteria da mesma suportada pelo proacuteprio exemplo das divindades17
O faraoacute era por isso encarado como o laquoHoacuterus viventeraquo reincarnaccedilatildeo desse primeiro rei miacutetico confundindo-se em si as duas dimensotildees humana e divina O faraoacute era Hoacuterus e vice-versa No iniacutecio da eacutepoca histoacuterica a identificaccedilatildeo era jaacute total A divindade do rei era afirmada em funccedilatildeo da sua descendecircncia de Hoacuterus O tiacutetulo de Hor (laquoHoacuterusraquo) que disso guarda memoacuteria eacute mesmo o seu
12 Vernus 1986 32 Como diz Leclant laquoLa personnaliteacute de Pharaon est consubstantielle agrave lrsquoexistence de lrsquoEacutegypteraquo (Leclant 1980 50)
13 Cf Vernus 1986 2914 Cf Ibid 32-3315 Cf Ryholt 2004 138-916 Agrave falta de herdeiro masculino da esposa real ou seja de conflito na primogenitura
masculina a funccedilatildeo real foi passada a irmatildeos uterinos do faraoacute ou mesmo a princesas quais depositaacuterias do poder a transmitir aos seus esposos Neste uacuteltimo caso satildeo arrolaacuteveis e apenas para citar os casos mais conhecidos I) Merneit (ou Meritneit) no Periacuteodo Tinita c 2950 aC II) Neitikeret (em grego Nitocris) no final da VI dinastia (c 2184-2181 aC) III) Sebekkareacute Sebekneferu no final da XII Dinastia (1785-1782 aC) IV) Hatchepsut na XVIII Dinastia (1498-1483 aC) V) Tauseret na XIX dinastia (c 1192-c 1190 aC) e VI) Cleoacutepatra VII Filopator a uacuteltima descendente da dinastia laacutegida (51-30 aC) - Rice 2002 114 136 140 196-97 210 211 Clayton 1995 22-23 67 89 158-59 Desroches-Noblecourt 1986 201 Vernus Yoyotte 1988 94 153 154 Tyldesley 2006 33-34 63 74-75 78 84 86 98 163-66 212-15 245-47 Grimal 1998 62-63 107 249 331-33 Ratieacute 1979 26 64 214 e 314 Valbelle 1992 80 81 1998 216
17 Cf Hornung 1992 353-54
44
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
tiacutetulo mais antigo (desde as primeiras dinastias da Eacutepoca Tinita ndash reinado de Den) e foi usado ateacute agrave Eacutepoca Romana18
Aleacutem do tiacutetulo Hor muitos outros tiacutetulos e epiacutetetos usados pelo faraonato egiacutepcio pretendiam enfatizar a profunda sacralidade intriacutenseca ou adquirida do titular do poder casos de Sa Reacute laquofilho de Reacuteraquo (que antecedia a cartela com o nome do faraoacute) meri Amon ou merimen laquoamado de Amonraquo merireacute ou merenreacute laquoamado de Reacuteraquo meriptah laquoamado de Ptahraquo merihathor laquoamado de Hathorraquo ou um englobante e altissonante meri-netjeru laquoamado dos deusesraquo Comum eacute igualmente como referimos a partir do Impeacuterio Meacutedio a atribuiccedilatildeo da realeza agrave laquoescolharaquo (setep en) de determinada divindade setepenreacute laquoo escolhido de Reacuteraquo setepenimen laquoo escolhido de Amonraquo setepenptah laquoo escolhido de Ptahraquo etc Todos estes epiacutetetos parecem referir-se a aspetos do rei como manifestaccedilotildees das divindades e pretendem pois acentuar a sua carga sagrada e fazer dele de iure e de facto o representante dos deuses na terra19
A anaacutelise deste vetor da definiccedilatildeo de impeacuterio no contexto egiacutepcio natildeo eacute em nossa opiniatildeo suficiente para determinarmos qual a designaccedilatildeo mais correta (laquoreinoraquo ou laquoimpeacuterioraquo) para aplicar aos periacuteodos historicamente conhecidos como eacutepocas de centralizaccedilatildeo do poder Passemos entatildeo agrave consideraccedilatildeo do segundo componente semacircntico-conceptual da definiccedilatildeo a extensatildeo territo-rial
3 O caso histoacuterico do antigo Egito a unificaccedilatildeo territorial
Desde a I Dinastia a titulatura real enfatizava jaacute a componente territorial em dois dos nomes o nome de Nebti (Nbty laquoo das Duas Senhorasraquo) numa refe-recircncia directa a uma altura em que o Egito estava dividido em Baixo Egito (Ta--mehu) e Alto Egito (Chemau) cada um geograficamente bem delimitado e sob a proteccedilatildeo simboacutelica de uma deusa ou laquosenhoraraquo a deusa-cobra do Baixo Egito Uadjit e Nekhebet a deusa-abutre do Alto Egito20 e o praenomen prenome (nome de coroaccedilatildeo que surgia dentro de uma cartela antecedido pela expressatildeo laquoRei do Alto e do Baixo Egitoraquo (nesut bit) que agrave letra se pode traduzir como laquoO do junco e da abelharaquo ou seja a planta heraacuteldica do Sul e o animal-siacutembolo do Norte O primeiro destes nomes fazia parte das titulaturas reais desde finais do
18 Cf Sales 2001 365 2007b 105 196 Leprohon 2013 8 12-1319 Cf Leprohon 2013 720 Cf Ibid 13-14 Sobre o conceito de fronteira e de demarcaccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio no
Impeacuterio Antigo veja-se Espinel 1998 9-30 para o Impeacuterio Novo veja-se Galaacuten 1995 114-35 Veja-se tambeacutem a conceccedilatildeo egiacutepcia de espaccedilo terrestre (fronteiras unilaterais fronteiras desti-nadas agrave extensatildeo e fronteiras co-extensivas ao mundo terrestre) apresentada por Pascal Vernus (Cf Vernus 2001 25-29) Sobre as laquoestelas-fronteiriccedilasraquo internas e externas veja-se Vogel 2011 320-41
45
Joseacute das Candeias Sales
periacuteodo preacute-dinaacutestico21 O tiacutetulo laquoO do junco e da abelharaquo foi introduzido na I dinastia pelos faraoacutes Den e Adjib22
Mas natildeo era apenas pelos muacuteltiplos nomes da sua titulatura que o faraoacute se distinguia dos demais humanos Tambeacutem as coroas (hedjet decheret pschent kheprech atef hemhemet) os ceptros (hekat uas nekhakha uadj djed ames sekhem) as maccedilas hedj e menu o machado akhu) as vestes (chendjit) e outras insiacutegnias (nemes barba posticcedila cauda taurina serpente-uraeus selos) que usava isolavam-no como um homem engendrado pelo(s) deus(es)23
As coroas (khau) demonstravam tambeacutem a unificaccedilatildeo territorial realizada na figura do faraoacute A coroa branca chamada em egiacutepcio hedjet era uma oblonga e longa mitra usada na eacutepoca preacute-dinaacutestica pelo rei do Sul e fazia tambeacutem parte dos emblemas usados pela deusa Nekhebet a deusa protectora do Alto Egito A coroa vermelha chamada em egiacutepcio decheret ou net era em contrapartida ostentada pelo soberano do Baixo Egito e pela deusa Uadjit divindade tutelar do Baixo Egito24
Quando o faraoacute usava isoladamente a decheret ou a hedjet proclamava a sua soberania sobre a respetiva aacuterea geograacutefica que essa coroa identificava Aquando da unificaccedilatildeo do territoacuterio sob um soacute rei por volta de 3000 aC a uniatildeo dos Dois Paiacuteses foi simbolizada pela uniatildeo destas duas coroas formando a designada pschent (do grego ψχηt) apropriadamente chamada em egiacutepcio pa-sekhemeti laquoa poderosaraquo ou laquoas duas poderosasraquo25 O poder maacutegico que lhe estava associado como entidade divina transmitia aos seus portadores uma aureacuteola de sobrenaturalidade instituindo-os ao mesmo tempo em intermediaacute-rios privilegiados entre os deuses e os homens26 Naturalmente foi uma coroa utilizadiacutessima pelos faraoacutes egiacutepcios de todas as eacutepocas como nos atestam os vaacuterios registos iconograacuteficos numa clara proclamaccedilatildeo da sua universalidade no territoacuterio egiacutepcio Coerentemente o faraoacute era o laquosenhor das Duas Terrasraquo (neb taui)
Mesmo quando os reis do Egito alcanccedilaram uma dominaccedilatildeo poliacutetica sobre territoacuterios fora da esfera territorial tradicional nacional (caso da Nuacutebia ou dos territoacuterios no corredor siro-palestinense) nunca o faraoacute egiacutepcio adotou outras insiacutegnias de poder diferentes das tradicionais Nunca se apropriou de emble-mas de poder dessas aacutereas em seu proveito proacuteprio Por definiccedilatildeo e costume o faraoacute comportava-se como um laquoreiraquo e natildeo como um laquoimperadorraquo embora a
21 Neste caso desde a segunda parte da I Dinastia (reinados de Adjib e Semerkhet) ndash Cf Goebs 2007 283 Leprohon 2013 8
22 Cf Sales 2001 365 Jimeacutenez Fernandes Jimeacutenez Serrano 2008 38-39 Leprohon 2013 1723 Cf Graham 2001 166 Hornun 1992 341-4224 Cf Goebs 2001 323 2013 Collier 1996 26 Hornung 1992 34125 Cf Goebs 2001 323 Hornung 1992 34126 Cf Goebs 2001 2013
46
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
panegiacuterica ideologia o proclamasse como vitorioso (kA nxt nsw nxt nb nxt ity nxt Hqt nxt) laquosenhor de tudo o que o sol cobreraquo considerando que o seu domiacutenio se estendia laquoateacute agrave extremidade do ceacuteuraquo laquoateacute aos pilares do ceacuteuraquo e laquoaos domiacutenios da obscuridaderaquo27 Frequentemente somos noacutes devido a estes hiperboacutelicos qualificativos repletos de pretensatildeo maacutegica e totalizante que quali-ficamos de laquoimperadoresraquo faraoacutes que a tradiccedilatildeo egiacutepcia e a proacutepria Antiguidade contemporacircnea sempre consideraram numa loacutegica simplesmente real como laquoreisraquo (nesu) poderosos autoritaacuterios eacute certo mas apenas laquoreisraquo Somos noacutes que pelo discurso e pela repeticcedilatildeo impensada das foacutermulas de denominaccedilatildeo histoacuterica tornamos a ideia imperial consubstancial agrave de faraoacute
Adotando uma visatildeo muito restritiva do alcance conceptual da titulatura faraoacutenica e das coroas laquonacionaisraquo usadas laquoA Casa Granderaquo exercia a sua au-toridade sobre um territoacuterio limitado delimitado grosso modo o Alto e Baixo Egito a laquoterra amadaraquo (Ta-meri) situado entre o mar Mediterracircneo a norte e a primeira catarata a sul e confinado agrave estreita faixa entre os desertos liacutebico e araacutebico e aos oaacutesis contiacuteguos Neste sentido eacute suficiente a designaccedilatildeo laquoreinoraquo para definir a forma de dominaccedilatildeo poliacutetica dos faraoacutes Nada exige a designaccedilatildeo de laquoimpeacuterioraquo ou uma teoria ou doutrina de imperialismo
4 O caso histoacuterico do antigo Egito a extensatildeo territorial e a pluralidade de povos
Se considerarmos as aacutereas de dominaccedilatildeo egiacutepcia por exemplo durante a segunda parte da XVIII dinastia (sobretudo depois da actividade sistemaacutetica de Tutmeacutes III) eacute inquestionaacutevel que a dominaccedilatildeo egiacutepcia assente num complexo dispositivo militar se estendia a territoacuterios para laacute do espaccedilo tradicional do Egito caso da Nuacutebia28 e do Retenu (Rtnw)29 Da quarta catarata a sul ao Eufrates
27 Cf Leclant 1980 56 Galaacuten 1995 52-69 Mesmo quando um dos imperativos cardeais da funccedilatildeo faraoacutenica ou frase ritual eacute como vimos laquoampliar as fronteirasraquo (swsx tAS) mesmo quando teoricamente a jurisdiccedilatildeo do faraoacute abarca a totalidade do mundo terreno (laquoo que rodeia o discoraquo Snnt itn) e ele eacute um laquosenhor soberano do que rodeia o discoraquo (nbHqA n Snnt itn) e quando laquosob os seus peacutesraquo e laquoas suas sandaacuteliasraquo estatildeo os laquoNove Arcosraquo pesedjet 9 (designaccedilatildeo tradicional para os povos estrangeiros vencidos e submissos) o faraoacute eacute sempre pela antiga fraseologia um dominador das laquoDuas Terrasraquo (Cf Vernus 2011 2627 Kemp 1978 10-12)
28 Os territoacuterios situados a sul de Elefantina geralmente divididos em Uauat (Baixa Nuacutebia) e Kuch (Alta Nuacutebia) Na eacutepoca de Tutmeacutes III a dominaccedilatildeo egiacutepcia chegou ateacute agrave zona da 4ordf catara-ta do Nilo perto de Napata (Guebel Barkal) Veja-se Frandsen 1979 170-73 Kemp 1978 22-33
29 Nome dado pelos Egiacutepcios agrave regiatildeo norte do corredor siro-palestinense habitualmente designada por Aacutesia correspondente aos atuais territoacuterios do Liacutebano e parte da Siacuteria Agrave zona da Palestina meridional chamavam Retenu Superior (Retenu heret) Tutmeacutes III levou a cabo a submissatildeo da Siro-Palestina em dezassete campanhas militares (wDyt) Como escreve Bill Manley laquoPharaon srsquoy reacutevegravele le policier drsquoun Orient plus que chaotique ougrave il lui faut sans cesse srsquoimposerraquo (Manley 1998 70) Veja-se tambeacutem Morris 2005 37 39 116-26
47
Joseacute das Candeias Sales
havia um imenso espaccedilo para organizar e governar recolhendo tributos es-tabelecendo e mantendo guarniccedilotildees gerindo as riquezas em produccedilatildeo e em circulaccedilatildeo30 No entanto para se ser completamente rigoroso a Nuacutebia nunca se tornou uma parte integrante do reino egiacutepcio nem o faraoacute egiacutepcio alguma vez assumiu a lideranccedila directa sobre essas populaccedilotildees linguisticamente diferentes e a zona do Proacuteximo Oriente culturalmente muito forte socialmente muito sofisticada e militarmente dotada de bem treinados exeacutercitos foi dividida em protetorados deixando poder e autonomia aos habitantes que juraram fideli-dade aos Egiacutepcios e cujos jovens priacutencipes foram trazidos para a corte egiacutepcia como refeacutens para serem acostumados aculturados aos modos de ser e estar dos Egiacutepcios e educados nas suas formas administrativas e assim se tornarem vassalos leais31
A partir de Amenhotep II e Tutmeacutes IV o domiacutenio da Siro-Palestina foi assegurado essencialmente atraveacutes de paradas militares com um ou outro massacre associado destinadas a intimidar as populaccedilotildees locais e assim desin-centivar eventuais processos de sediccedilatildeo mais do que atraveacutes de accedilotildees firmes de cariz militar voltadas para o alargamento territorial32 A esta poliacutetica de gestatildeo dos territoacuterios (baseada na salvaguarda da estabilidade regional e no controlo das rotas comerciais) juntaram-se os casamentos poliacuteticos com princesas de Mitanni ou de Hatti33 O veiacuteculo de comunicaccedilatildeo da diplomacia (embaixadores mensageiros tradutores e inteacuterpretes) nunca foi a liacutengua dos laquodominadoresraquo o egiacutepcio mas sim o acaacutedico a liacutengua franca escrita com signos cuneiformes em tabuinhas de argila34
Na Siro-Palestina a autonomia a especificidade e a salvaguarda dos po-deres locais tornou impossiacutevel uma relaccedilatildeo de vassalagem perfeita e completa A intervenccedilatildeo egiacutepcia nos assuntos asiaacuteticos foi sempre limitada35 Daiacute que a
30 Cf Bryant 2000 235-4031 Cf Frandsen 1979 169-70 174-76 Kemp 1978 19 5632 Cf Morris 2005 127 e ss33 No periacuteodo rameacutessida este laquosistema mistoraquo ou laquosistema dual de administraccedilatildeoraquo pros-
seguiu com base na presenccedila de contingentes militares egiacutepcios no Levante e no governo de vassalos egipcianizados responsaacuteveis sobretudo pela coleta dos impostos e vigilacircncia dos terri-toacuterios Eacute no fundo o designado modelo da laquoElite Emulationraquo oposto ao tradicional modelo do laquoDirect Ruleraquo (Cf Higginbotham 2000 71-73 129-32 136-40 Morris 2005 9)
34 De facto apesar de o domiacutenio e influecircncia que em meados do seacuteculo XV aC a coroa egiacutepcia exercia sobre a Palestina e sobre parte de Siacuteria a liacutengua egiacutepcia natildeo conseguiu implantar--se ou impor como liacutengua administrativa nem sequer entre o faraoacute e os seus vassalos naqueles territoacuterios (Cf Galaacuten 2011 303)
35 Cf Vernus 2011 18 A xenofobia egiacutepcia que se baseava na ideia de que o centro do mun-do terrestre era o Egito (Egiptocentrismo) e se referia muitas vezes aos estrangeiros Asiaacuteticos como laquomiseraacuteveis Asiaacuteticosraquo nunca permitiu alcanccedilar grandes niacuteveis de interaccedilatildeo cultural na Palestina No fundo o domiacutenio dessas regiotildees estava sobretudo ao serviccedilo do papel teoloacutegico e ideoloacutegico fundamental da realeza egiacutepcia a reduccedilatildeo do caos agrave ordem do incriado ao criado do perifeacuterico ao central (Cf Kemp 1978 8 Vernus 2011 21-22)
48
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
laquoimpeacuterioraquo seja realmente preferiacutevel a noccedilatildeo de laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo36 Haacute quem use a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio informalraquo37
No caso da Nuacutebia havia o sistema do vice-rei representante-delegado de confianccedila do poder central alto-funcionaacuterio assistido por uma administraccedilatildeo de escribas especiacuteficos designado pelo tiacutetulo sa-nesu en Kuch laquofilho real de Kuchraquo (instituiacutedo no final da XVII Dinastia pelo faraoacute Kameacutes38 e em vigor ateacute agrave extinccedilatildeo da XVIII Dinastia e abandono da Nuacutebia) que natildeo apresentava poreacutem qualquer ligaccedilatildeo bioloacutegica agrave famiacutelia real egiacutepcia O territoacuterio foi sempre uma proviacutencia anexada dirigida e explorada intensivamente como tal39 A Baixa Nuacutebia Uauat foi a zona com uma sujeiccedilatildeo mais estreita mais vinculativa quase anexaccedilatildeo que justifica segundo alguns autores a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio formalraquo usada para a caracterizar40
No Impeacuterio Novo apesar de os textos e ilustraccedilotildees formais egiacutepcias enfa-tizarem de forma permanente e repetida uma filosofia de conquistas vitoacuterias e dominaccedilatildeo absolutas o espaccedilo territorial sob dominaccedilatildeo egiacutepcia natildeo foi portanto homogeacuteneo nem no tipo de administraccedilatildeo nem no niacutevel de presenccedila Houve significativas diferenccedilas entre a administraccedilatildeo da coroa egiacutepcia a sul e a norte a Aacutesia ocidental foi um territoacuterio de campanhas vassalagem e tributos e a Nuacutebia continuaccedilatildeo sul do vale do Nilo foi uma criaccedilatildeo administrativa41
No caso interno da administraccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio o paiacutes foi governado atraveacutes do sistema do vizirato centrado na figura iacutempar do vizir (tjati) o mais alto dignitaacuterio do paiacutes responsaacutevel maacuteximo pela maacutequina burocraacutetico-admi-nistrativa (destinado agrave estimativa da colheita e perceccedilatildeo dos correspondentes impostos agrave organizaccedilatildeo dos trabalhos coletivos agrave gestatildeo dos diversos recursos) designado pelo faraoacute laquoo segundo depois do rei na sala de entrada do Palaacutecioraquo42 Na XVIII Dinastia chegou a haver no Egito dois vizires um para o delta (laquovizir do Norteraquo) que residia em Mecircnfis Licht ou Pi-Ramseacutes e outro para o Alto Egito (laquovizir do Sulraquo) com sede em Tebas
Existirem dois vizires natildeo pode entatildeo ser entendido como uma marca ou sintoma de laquoimpeacuterioraquo ou de laquoimperialismoraquo Em nossa opiniatildeo natildeo porque a existecircncia do duplo vizirato natildeo tem a ver com a vastidatildeo territorial propriamente
36 Cf Leclant 1980 65 nota 1137 Cf Vernus 2011 18 Veja-se a laquorevisatildeo da bibliografiaraquo sobre o domiacutenio egiacutepcio no Levan-
te em Higginbotham 2000 2-6 onde entre outras satildeo mencionadas as contribuiccedilotildees de Helck Narsquoaman Edel Redford Weinstein Bartel e Frandsen
38 O primeiro laquofilho-real de Kuchraquo foi Turi39 Da Nuacutebia provinham produtos agriacutecolas madeiras gado e animais selvagens escravos
ouro marfim incenso e produtos exoacuteticos (peles de animais e penas de avestruz por exemplo) ndash Cf Kemp 1978 33 Tambeacutem em relaccedilatildeo aos Nuacutebios os Egiacutepcios natildeo mostravam respeito pela sua tecnologia religiatildeo ou costumes (CF Frandsen 1979 179)
40 Cf Vernus 2011 1841 Cf Galaacuten 2002 27 Kemp 1978 20 43-4442 Cf Sales 2001 871-72
49
Joseacute das Candeias Sales
dita (o espaccedilo interno egiacutepcio natildeo era maior do que fora em eacutepocas anteriores) ou com a existecircncia de uma pluralidade de povos e culturas (a populaccedilatildeo era natildeo obstante o ingresso de um ou outro contingente de estrangeiros basicamen-te a mesma) mas sim com a meticulosa e racional organizaccedilatildeo administrativa egiacutepcia talvez mais zelosa e empenhada em evitar alguns dos desmandos e atropelos do passado Somos noacutes que usamos o moderno conceito de laquoimperia-lismoraquo e o aplicamos agrave poliacutetica administrativa do Egito antigo e agraves suas laquoesferas de influecircnciaraquo43
Consideraccedilotildees finais
Utilizando a pluralidade de povos a diversidade cultural e a efetiva vasti-datildeo territorial como criteacuterios para a existecircncia de um laquoimpeacuterioraquo torna-se difiacutecil sustentar a ideia de um periacuteodo assim denominado na milenar histoacuteria do Egito antigo Mesmo a uacutenica eacutepoca que poderia ainda assim justificar melhor a de-signaccedilatildeo (o Impeacuterio Novo) natildeo se conforma integralmente agrave definiccedilatildeo operativa e institucional de laquoimpeacuterioraquo44
Quando observamos as inuacutemeras representaccedilotildees artiacutesticas da realeza e constatamos por um lado os tamanhos desproporcionados entre o faraoacute e os seus suacutebditos ou estrangeiros inimigos45 e por outro a sua equiparaccedilatildeo com as dimensotildees em que satildeo figurados os (outros) deuses concluiacutemos que elas indiciam jaacute ou comprovam a consideraccedilatildeo do faraoacute como indiviacuteduo superior como deus universal por direito proacuteprio Tambeacutem aqui sacralidade e divindade se misturam
Natildeo vemos neste periacuteodo nada que se aproxime de uma uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo unifique ou pretenda unificar os distintos haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades Independentemente da personalidade do detentor do poder a instituiccedilatildeo monaacuterquica egiacutepcia reenviava mais para modelos arquetiacutepicos e estereotipados do passado interno egiacutepcio do que para (novas) dominaccedilotildees geograacutefico-culturais-linguiacutesticas resultantes das (novas) hegemonias conseguidas no devir histoacuterico
Talvez por isso os antigos Egiacutepcios nunca usaram um termo que signifi-casse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo Talvez por isso a realeza (nesit) tenha sido sempre concebida como a demonstraccedilatildeo de laquoqualidades reaisraquo natildeo laquoimperiaisraquo Talvez por isso o faraoacute fosse sempre um neb taui (laquoSenhor das Duas Terrasraquo) mesmo quando pela vitoacuteria militar conquista outras terras massacrando real ou simbolicamente as suas populaccedilotildees (Nuacutebios Liacutebios ou Asiaacuteticos) ou pela forccedila
43 Cf Kemp 1978 744 Cf Vernus 2011 1745 Apesar de este cacircnone tambeacutem ser aplicado aos altos funcionaacuterios na sua relaccedilatildeo com os
seus dependentes ou servos interessa-nos aqui observaacute-lo apenas na oacuteptica do faraonato
50
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
da coerccedilatildeo econoacutemico-financeira as tutela Talvez por isso a designaccedilatildeo mais conveniente e correta para expressar as fortes dominaccedilotildees impostas pelo poder faraoacutenico nesses periacuteodos historicamente considerados de relevo seja laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo Talvez por isso as formas usadas pela historio-grafia anglo-saxoacutenica (Old Kingdom Middle Kingdom New Kingdom) italiana (Antico Regno Medio Regno Nuovo Regno) e em certas tendecircncias recentes da investigaccedilatildeo em liacutengua espanhola (Reino Antiguo Reino Medio Reino Nuevo) sejam mais correctas deslocando todo o campo conceptual para o lado de laquorei-noraquo em vez de para o de laquoimpeacuterioraquo
51
Joseacute das Candeias Sales
Bibliografia
Andreu Guillemette 1996 ldquoLe vizirrdquo In AAVV LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du Seuil 63-65
Arauacutejo Luiacutes Manuel 2001 ldquoDa teoria agrave praacutetica o exerciacutecio do poder real no Egito faraoacutenicordquo Clio 533-57
Arauacutejo Luiacutes Manuel e Nuno Simotildees Rodrigues 2006 As comunicaccedilotildees na Antiguidade Lisboa Fundaccedilatildeo Portuguesa das Comunicaccedilotildees
Baines John e Jaromir Malek 1984 Atlas of Ancient Egypt Oxford Phaidon Press Ltd
Bryan Betsy M 2000 ldquoThe Eighteenth Dynasty before the Amarna Period c1550-1352 BCrdquo In The Oxford History of Ancient Egypt ed I Shaw 235-40 New York Oxford University Press
Bonhecircme Marie Ange e Annie Forgeau 1998 Pharaon Les Secrets du pouvoir Paris Armand Colin
Carreira Joseacute Nunes 2001 ldquoLegitimaccedilatildeo do poder no Egito Faraoacutenicordquo Clio 519-33
Clayton Peter 1995 Chronique des pharaons Lrsquohistoire regravegne par regravegne des souverains et des dynasties de lrsquoEacutegypte ancienne Paris Casterman
Collier Sandra 1996 The crowns of the Pharaoh their development and significance in ancient Egyptian kingship Los Angeles University of California
Daumas Franccedilois 1998 ldquoHistoire peacuteriode pharaoniquerdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 179-99 Paris Encyclopaedia Universalis Albin Michel
Derchain Philippe 1962 ldquoLe role du roi drsquoEgypte dans le maintien de lrsquoordre cosmiquerdquo In Le Pouvoir et le Sacreacute 61-73 Bruxelles Universiteacute Libre de Bruxelles
Desroches-Noblecourt Christiane 1986 La femme au temps des pharaons Paris Stock Laurence Pernoud
mdashmdashmdash 1996 Ramsegraves II la veacuteritable histoire Paris Eacuteditions PygmalionDiego Espinel Andreacutes 1998 ldquoFronteras y demarcaciones del territorio Egipcio
en el Reino Antiguo Egyptian frontiers and landmarks during the Old Kingdomrdquo In Stvdia Historica Historia Antigua 169-30 Salamanca Ediciones Universidad de Salamanca
Donadoni Sergio dir 1994 O Homem Egiacutepcio Lisboa Editorial PresenccedilaDrioton Eacutetienne e Jacques Vandier 1975 LrsquoEgypte ndash des origines agrave la conquecircte
drsquoAlexandre 5ordf ed Paris Presses Universitaires de FranceDuverger Maurice 1980 ldquoLe concept drsquoempirerdquo In AAVV Le concept drsquoempire
52
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
5-23 Paris Presses Universitaires de FranceFavard-Meeks Christine e Dimitri Meeks 1986 ldquoLrsquoheacuteritiegravere du Deltardquo In
Alexandrie IIIe siegravecle av J-C Tous les savoirs du monde ou le recircve drsquouniversaliteacute des Ptoleacutemeacutees 28-33 Paris Eacuteditions Autrement
Frandsen Paul John 1979 ldquoEgyptian Imperialismrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires (Mesopotamia 7) ed M T Larsen 167-90 Copenhagen Akademisk Forlag
Gaacutelan Joseacute Manuel 2011 ldquoInteacuterpretes y traducciones en el Egipto Imperialrdquo Semata Ciencias Sociais e Humanidades 23295-313
mdashmdashmdash 2002 El Imperio Egipcio Inscripciones ca 1550-1300 a C Barcelona Edicions de la Universitat de Barcelona Editorial Trolla
mdashmdashmdash 1995 Victory and Border Terminology related to Egyptian Imerialism in the XVIIIth Dynasty Hildesheimer Gersteben Verlag
Gardiner Alan 1961 Egypt of pharaohs An Introduction Oxford Clarendon Press
Goebs Katja 2013 ldquoCrowns Egyptrdquo In The Encyclopedia of Ancient History ed R S Bagnall K Brodersen C B Champion A Erskine S R Huebner 1847-49 London Blackwell Publishing
mdashmdashmdash 2007 ldquoKinshiprdquo In The Egyptian World ed Toby Wilkinson 275-95 London New York Routledge
mdashmdashmdash 2001 ldquoCrownsrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 1 ed D B Redford 321-26 Oxford Oxford University Press
mdashmdashmdash 1998 ldquoSome Cosmic aspects of the royal crownsrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists Cambridge 3-9 September 1995 ed C J Eyre Leuven 447-60 Leuven Peeters
Graham Geoffrey 2001 ldquoInsigniasrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 2 ed D B Redford 163-67 Oxford Oxford University Press
Grimal Nicolas 2000 ldquoLes oasis di deacutesert libyque lrsquoeau la terre et la sablerdquo Comptes rendus des Seacuteances de lrsquoanneacutee ndash Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres 144 (2)909-40
mdashmdashmdash 1988 Histoire de LrsquoEacutegypte ancienne Paris FayardHigginbotham Carolyn R 2000 Egyptianization and elite emulation in
Ramesside Palestine governance and accomodation on the imperial periphery Leiden Boston Koumlln Brill
Henry Roger 2003 Synchronized Chronology Rethinking Middle East Antiquity A Simple Correction to Egyptian Chronology Resolves The Major Problems In Biblical And Greek Archaeology New York Algora
Hobson Christine 1987 Exploring the world of pharaohs A complete guide to ancient Egypt London Thames amp Hudson
53
Joseacute das Candeias Sales
Hornung Erik 1992 ldquoLe pharaonrdquo In Lrsquohomme eacutegyptien dir Sergio Donadoni 337-73 Paris Eacuteditions du Seuil
Hornung Erik Rolf Krauss e David A Warbuton eds 2006 Ancient Egyptian Chronology Leiden Boston Brill
Husson Geneviegraveve e Dominique Valbelle 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Eacutegypte Des premiers pharaons ax empereurs romains Paris Arman Colin
Jimeacutenez Fernandez Juan e Alejandro Jimeacutenez Serrano eds 2008 Historia de Egito ndash Manetoacuten Madrid Akal
Kemp Barry J 1989 Ancient Egypt anatomy of a civilization London Routledgemdashmdashmdash 1978 ldquoImperialism and Empire in New Kingdom Egyptrdquo In Imperialism
in the Ancient World The Cambridge University Research Seminar eds P D A Garnsey e C R Whittaker 7-57 Cambridge Cambridge University Press
Lalouette Claire 1991 Au royaume drsquoEacutegypte Les temps des rois-dieux Paris Fayard
mdashmdashmdash 1986 Thegravebes ou la naissance drsquoun empire Paris Fayardmdashmdashmdash 1985 Lrsquoempire des Ramsegraves Paris FayardLeclant Jean 1980 ldquoLes ldquoempiresrdquo et lrsquoimpeacuterialisme de lrsquoEacutegypte pharaoniquerdquo
In AAVV Le Concept drsquoempire 49-68 Paris Presses Universitaires de France
Leprohon Ronald 2013 The Great Name Ancient Egyptian royal titulary Atlanta Society of Biblical Literature
Loprieno Antonio 1998 ldquoLe pharaon reconstruit La figure du roi dans la litteacuterature eacutegyptienne au Ier milleacutenaire avant J-Crdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1424-24
Malek Jaromir 1997 ldquoLa division de lrsquohistoire drsquoEacutegypte et lrsquoEacutegyptologie modernerdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1386-17
Manley Bill 1998 Atlas historique de lrsquoEgypte ancienne De Thegravebes agrave Alexandrie la tumultueuse eacutepopeacutee des pharaons Paris Eacuteditions Autrement
Morris Ellen Fowles 2005 The architecture of imperialism Military bases and the evolution of foreign policy in Egyptrsquos New Kingdom Leiden Brill
OrsquoConnor David e David P Silvermann 1995 Ancient Egyptian Kingship Leiden Brill
Posener Georges 1960 De la diviniteacute du pharaon Cahiers de la Socieacuteteacute Asiatique 15 Paris Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres
Posener Georges Serge Sauneron e Jean Yoyotte dir 1970 Dictionnaire de la civilisation eacutegyptienne Paris Fernand Hazan
Quirke Stephen 1990 Who were the Pharaohs A history of their names with a
54
Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo
list of cartouches London The British Museum PublicationsRachet Guy 1987 LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du FeacutelinRaiteacute Suzanne 1979 La reine Hatchepsout Sources et problegravemes Leiden BrillRice Michael 2002 Whorsquos who in Ancient Egypt London New York RoutledgeRyholt Kim 2004 ldquoThe Turin King-Listrdquo Aumlgypten und Levante 14135-55Sales Joseacute das Candeias 2008 Poder e Iconografia no antigo Egipto Lisboa
Livros Horizontemdashmdashmdash 2007a Estudos de Egiptologia Temaacuteticas e Problemaacuteticas Lisboa Livros
Horizontemdashmdashmdash 2007b ldquoAs foacutermulas protocolares egiacutepcias ou formas e possibilidades do
discurso de legitimaccedilatildeo no antigo Egiptordquo Cadmo 16101-24mdashmdashmdash 2005 Ideologia e propaganda real no Egipto ptolomaico (305-30 a C)
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkianmdashmdashmdash 2001a ldquoFaraoacuterdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 364-
68 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 2001b ldquoVizirrdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 871-
73 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 1997 A ideologia real egiacutepcia e acaacutedica Representaccedilotildees do poder poliacutetico
preacute-claacutessico Lisboa Editorial EstampaShaw Ian 2000 ldquoIntroduction Chronologies and cultural change in Egyptrdquo
In The Oxford history of Ancient Egypt 1-16 London Oxford University Press
Shaw Ian e Paul Nicholson 1995 British Museum dictionary of Ancient Egypt London British Museum Press
Tyldesley Joyce 2006 Chronicle of the queens of Egypt From early dynastic times to the death of Cleopatra London Thames amp Hudson
Valbelle Dominique 1998 Histoire de lrsquoEacutetat pharaonique Paris Presses Universitaires de France
mdashmdashmdash 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Egypte Des premiers pharaons aux empereurs romains Paris Armand Colin
mdashmdashmdash 1990 Les neuf arcs LrsquoEacutegyptien et les eacutetrangers de la Preacutehistoire agrave la conquecircte drsquoAlexandre Paris Armand Colin
Vandersleyen Claude 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 2 ndash De la fin de lrsquoAncien Empire agrave la fin du Nouvel Empire Paris Presses Universitaires de France
Vercoutter Jean 1998 ldquoPharaonrdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 296-300 Paris Enciclopaeligdia Universalis Albin Michel
mdashmdashmdash 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 1 ndash Des origines agrave la fin de lrsquoAncien
55
Joseacute das Candeias Sales
Empire Paris Presses Universitaires de FranceVernus Pascal 2011 ldquoLos barbechos del demiurgo y la soberaniacutea del faraoacuten
El concepto de ldquoimperiordquo y las latencias de la creacioacutenrdquo In El Estado en el Mediterraacuteneo antiguo Egito Grecia Roma comps M Campagno J Gallego e C G Garcia Mac Gaw 13-43 Buenos Aires Mintildeo y Daacutevila
mdashmdashmdash 1986 ldquoLe concept de monarchie dans lrsquoEgypte anciennerdquo In Les monarchies dir E L Ladurie 29-42 Paris Presses Universitaires de France
Vernus Pascal e Jean Yoyotte 1988 Les Pharaons Paris MA EacuteditionsVogel Carola 2011 ldquoThis Far and Not a Step Further The Ideological Concept
of Ancient Egyptian Boundary Stelaerdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3ndash7 May 2009 320-41 Leiden Boston Brill
Weinstein James M 1981 ldquoThe Egyptian Empire in Palestine A Reassessmentrdquo Bulletin of the American Schools of Oriental Research 2411-28
Wilkinson Toby 1999 Early Dynastic Egypt London RoutledgeWoolf Greg 1992 ldquoImperialisme empire and the integration of the Roman
economyrdquo World Archaeology 23 (3)283-93
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
57
Rogeacuterio Sousa
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica
do Egito na viragem para o I Mileacutenio1 (Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation
on the brink of the 1st Millenium)
Rogeacuterio Sousa(solarbenugmailcom ORCID 0000-0002-8253-1707)
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de HistoacuteriaCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos Universidade de Coimbra
Resumo - A desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo partilha muitos aspetos em comum com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no Egito do que noutros contextos esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta ou acom-panhada por uma crise cultural profunda Ainda assim o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo atraveacutes da accedilatildeo combinada de Herihor - e dos seus sucessores no reino do Sul ndash e de Ramseacutes XI no reino do Norte
Palavras-chave Repeticcedilatildeo do Nascimento Herihor Ramseacutes XI
Abstract ndash The political disintegration occurred in Egypt at the end of the New Kingdom has much in common with the crisis that affected the civilizations of the Mediterranean basin in the transition from the Bronze Age to the Iron Age Much better documented in Egypt than elsewhere this transition did not irrupt violently with a sense of cultural crisis Nevertheless the Third Intermediate Period presents a completely distinct political organization of Egypt that seems to have been put in place during the laquoRepetition of birthsraquo through a combined action of Herihor and his successors in the South and Ramses XI in the North
Keywords Repetition of birth Herihor Ramses XI
O fim da XX dinastia (c 1100 aC) e do Impeacuterio Novo foi grandemente deter-minado pelas ondas de choque provocadas pelas grandes migraccedilotildees causadas pela queda do mundo miceacutenico e do impeacuterio hitita Embora o Egito tenha sido atingido apenas marginalmente por estes fenoacutemenos a verdade eacute que a batalha de Ramseacutes III contra os Povos do Mar representa um choque de civilizaccedilotildees que apesar da vitoacuteria obtida natildeo se traduziu de forma alguma no afastamento do inimigo2 Agraves
1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013 e do projecto UIDELT001962013
2 Os liacutebios constituem uma presenccedila influente no Egito Embora as incursotildees dos Mechuech e dos Libu tivessem sido repelidas por Merenptah e Ramseacutes III muitos imigrantes
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_3
58
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
populaccedilotildees liacutebias autoacutectones juntaram-se mercenaacuterios oriundos dos chamados laquoPovos do Marraquo que se instalaram cada vez com mais expressatildeo no Delta3 desen-volvendo uma aristocracia militar que havia de marcar indelevelmente a geografia poliacutetica e militar do Egito4 Adicionalmente muitos imigrantes continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios5
O domiacutenio dos Mechuech no Egito eacute assim equivalente agrave irrupccedilatildeo dos Etruscos na Itaacutelia ou dos Doacuterios na Greacutecia ou dos Filisteus na Palestina Em todos estes casos os processos de penetraccedilatildeo das novas populaccedilotildees foram acom-panhados pela incapacidade crescente do poder central em garantir a conectivi-dade poliacutetica desencadeando uma regionalizaccedilatildeo crescente com as populaccedilotildees locais entregues a si mesmas6
O final do Impeacuterio Novo eacute portanto antes de mais a expressatildeo de um fenoacute-meno global que afetou todo o Proacuteximo Oriente e Mediterracircneo desde a Iacutendia ao Egeu Internamente este fenoacutemeno traduziu-se na desintegraccedilatildeo do aparelho burocraacutetico real a qual se acelerou na proporccedilatildeo directa do empobrecimento das populaccedilotildees Sabe-se que uma seacuterie de maacutes colheitas ocorreram durante o reinado de Ramseacutes VII e prosseguiram com os seus sucessores levando a um aumento do preccedilo do trigo e a periacuteodos de fome7 O empobrecimento foi geral e a ineficaacutecia da administraccedilatildeo central agravou-o ainda mais gerando-se como refere Jan Assman uma crise de penetraccedilatildeo e de distribuiccedilatildeo Toda a infraestrutura crucial para o fun-cionamento de uma economia redistributiva estava agrave beira do colapso os bens natildeo chegavam aos armazeacutens reais e o abastecimento proporcionado por estes armazeacutens era insuficiente daiacute resultando fome instabilidade social e empobrecimento geral
Os reinados de Ramseacutes IX Ramseacutes X e Ramseacutes XI representam o momento mais grave desta tendecircncia Como os seus antecessores da XIX e da XX dinastia o faraoacute governava a partir da sua capital Pi-Ramseacutes situada no Delta oriental longe portanto dos principais centros locais do Egito e aparentemente sem capacidade real de intervenccedilatildeo neste processo
Sintomaticamente nem as obras reais de grande importacircncia simboacutelica e poliacutetica como a construccedilatildeo dos tuacutemulos reais foram poupadas No reinado de
continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado (Wainwright 1962 89-99) No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios (Taylor 2000 335)
3 Assmann 2002 2814 Este fenoacutemeno eacute visiacutevel atraveacutes da onomaacutestica as famiacutelias mais influentes tanto no norte
como no sul apresentam indiviacuteduos com nomes aparentemente de origem liacutebia A presenccedila liacutebia poderaacute ser mais expressiva sobretudo se admitirmos que sob nomes egiacutepcios se ocultem tambeacutem indiviacuteduos de origem liacutebia (Taylor 2000 335)
5 Taylor 2000 3356 Assmann 2002 2817 Trigger et al 1983 228
59
Rogeacuterio Sousa
Ramseacutes IX o fornecimento deficiente de geacuteneros aos trabalhadores dos tuacutemulos reais iria mesmo motivar uma greve consubstanciada num vigoroso movimento reivindicativo em Deir el-Medina que levou os operaacuterios a dirigirem-se ao sumo sacerdote de Aacutemon apresentando-lhe as suas queixas8 Segundo a do-cumentaccedilatildeo eles acabaram por ser pagos com o trigo retirado do celeiro dos templos de Montu quando tal pagamento competia agraves autoridades laquocivisraquo sob as ordens diretas do vizir de entatildeo Khamon Nos reinados de Ramseacutes X (KV 18) e de Ramseacutes XI (KV 4) a situaccedilatildeo foi aparentemente ainda pior jaacute que nenhum dos tuacutemulos foi terminado
Durante este periacuteodo a regiatildeo de Tebas foi assolada por grupos armados provenientes do deserto ocidental originando um periacuteodo criacutetico de violecircncia e fome que mais tarde seria evocado como o laquoano das hienasraquo Estes grupos tinham provavelmente origem liacutebia mas eacute provaacutevel que vivessem no Egito haacute vaacuterias geraccedilotildees e que em algum momento tivessem estado ao serviccedilo do proacute-prio faraoacute Sabe-se que Ramseacutes III na continuaccedilatildeo de idecircnticas atitudes tomadas pelos seus antecessores tinha instalado vaacuterias coloacutenias de liacutebios e de siacuterios no paiacutes alguns deles servindo como mercenaacuterios no exeacutercito9
A situaccedilatildeo de crise geral no entanto tinha tornado perigosos estes grupos que aproveitando a debilidade crescente do sistema pilhavam as populaccedilotildees mais vulneraacuteveis As incursotildees depredatoacuterias no territoacuterio tebano motivaram mesmo o abandono de Deir el-Medina cujos aldeotildees se refugiaram no com-plexo funeraacuterio de Ramseacutes III de Medinet Habu entretanto transformada em cidadela fortificada
A anarquia crescente foi agravada pela corrupccedilatildeo dos funcionaacuterios gerando um processo que se reforccedilava mutuamente Quanto maior era a ineficaacutecia do apa-relho burocraacutetico real maior era a corrupccedilatildeo o que gerava ainda mais ineficaacutecia Este processo eacute exemplarmente demonstrado pelo saque organizado aos tuacutemulos da necroacutepole Este processo eacute documentado no Papiro Abbott o qual conserva uma seacuterie de relatoacuterios relativos a roubos que tiveram lugar no ano 16 de Ramseacutes IX O escacircndalo estalou aparentemente devido agrave rivalidade entre o governador de Tebas Paser e o governador da necroacutepole Pauer-reacute Em face das denuacutencias o vizir Khaemuaset ordenou uma comissatildeo para investigar as alegaccedilotildees10 Dos dez tuacutemulos investigados apenas o de Amen-hotep I se apresentava entatildeo intacto Todos os restantes haviam sido espoliados em todo ou em parte11
8 Em Arauacutejo 1999 153 nota 269 Arauacutejo 1999 11510 A respeito dos roubos efetuados na necroacutepole ver Goelet 1996 107-2711 Clayton 1994 171 Foi em Deir el-Medina que foi encontrada a documentaccedilatildeo referente
aos roubos aos tuacutemulos reais Os culpados foram julgados no templo de Maet situado junto ao templo de Montu em Karnak O vizir Khaemuaset o governador de Tebas Paser o sumo sacer-dote de Aacutemon Amen-hotep e o governador da necroacutepole Pauer participaram no julgamento dos culpados que foram severamente punidos
60
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Apesar da investigaccedilatildeo judicial em curso o saque continuou ao longo dos anos seguintes prolongando-se ateacute ao reinado de Ramseacutes XI durante o qual se registaram roubos no Vale das Rainhas em Medinet Habu e no Ramesseum12 Em tempos de escassez as riquezas ocultas na necroacutepole constituiacuteam portanto um foco criacutetico de instabilidade para a regiatildeo tebana
Perante o recuo da administraccedilatildeo central foi nos templos que se manteve em funcionamento uma administraccedilatildeo local que aliviada da supervisatildeo fa-raoacutenica oferecia o terreno ideal para a actividade de funcionaacuterios corruptos Satildeo conhecidos excessos cometidos por sacerdotes em Elefantina relatados no Papiro de Turim 188713 Esta tendecircncia atingiu certamente proporccedilotildees bem mais significativas em torno dos grandes templos do Egito onde a riqueza era ainda muito significativa O templo de Aacutemon detinha dois terccedilos da terra araacutevel do Egito noventa por cento da frota fluvial oitenta por cento das oficinas O seu controlo da economia do paiacutes era absoluto e tornou-se inevitaacutevel que o sumo sacerdote de Aacutemon adquirisse um peso poliacutetico sem precedentes
Numa cerimoacutenia ocorrida no ano 10 de Ramseacutes IX no templo de Aacutemon em Karnak o sumo pontiacutefice Amen-hotep foi cumulado de favores alguns dos quais consistiam na transferecircncia dos tributos destinados ao proacuteprio faraoacute para o tesouro do templo de Aacutemon Esta cerimoacutenia foi gravada no muro situado entre o seacutetimo e o oitavo pilone em Karnak Nela pode ver-se Amen-hotep diante do faraoacute Ramseacutes IX e facto inusitado ambos satildeo representados com o mesmo tamanho algo que noutros tempos teria sido inaceitaacutevel e anoacutemalo tendo em conta todas as convenccedilotildees milenares da ideologia real egiacutepcia14
Esta demonstraccedilatildeo de poder foi apenas o preluacutedio de um longo pontificado Amen-hotep sucedera ao seu irmatildeo mais velho Nesiamon15 Sintomaticamente agrave medida que o aparelho burocraacutetico real se degradava a cultura de meacuterito que antes ditava o acesso aos cargos de topo da hierarquia era agora substituiacuteda pelo caraacutecter hereditaacuterio dos mesmos Guindado no cargo pela legitimidade conferida pela sua linhagem familiar Amen-hotep manteve-o durante o reinado de Ramseacutes X acumulando-o com o cargo de intendente dos trabalhos no domiacutenio de Aacutemon grande intendente do palaacutecio real e tal como o seu pai chefe dos sacerdotes de todos os deuses
12 Ver Dodson 2012 1013 Arauacutejo 1999 118 14 Uma outra representaccedilatildeo ilustra Amen-hotep oferecendo um elemento floral do culto de
Montu ao faraoacute o qual aparece na imagem com o mesmo tamanho que o sumo sacerdote de Aacutemon Arauacutejo 1999 154 nota 34 Ver tambeacutem Černyacute 1965 629
15 Arauacutejo 1999 113 Ver tambeacutem Bierbrier 1975 3-13 A famiacutelia de Amen-hotep estava unida com outra famiacutelia importante que descendia de Bakenkhonsu (sumo sacerdote de Aacutemon no tempo de Ramseacutes III)
61
Rogeacuterio Sousa
1 O golpe militar de Panehesi
Esta tendecircncia foi brutalmente interrompida pelo golpe militar liderado por Panehesi o Vice-rei de Kuch Uma carta endereccedilada pelo faraoacute Ramseacutes XI a Pahenesi datada do Ano 17 atesta as boas relaccedilotildees entre ambos e seguramente antecede o eclodir daquele evento16 Provavelmente incentivado pelo proacuteprio faraoacute17 Panehesi o homem forte do momento ataca posiccedilotildees rebeldes ao norte de Tebas dominando Hardai a capital da XVII sepat do Alto Egito Na sequecircncia desta intervenccedilatildeo Panehesi fez o impensaacutevel e depocircs o sumo sacerdote Amen-hotep laquosem que nele houvesse faltaraquo18 Embora eventualmente sancionado pelo proacuteprio faraoacute o golpe desencadeou uma oposiccedilatildeo e indignaccedilatildeo tal que Amen-hotep foi reconduzido novamente nas suas funccedilotildees
Apesar de documentado em vaacuterias fontes incluindo o proacuteprio texto autobiograacutefico de Amen-hotep este acontecimento marcante para a evoluccedilatildeo poliacutetica registada ao longo da XXI dinastia e todo o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio possui uma dataccedilatildeo muito incerta mas eacute provaacutevel que tenha ocorrido antes do Ano 19 de Ramseacutes XI portanto antes da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo19
O certo eacute que ambos os protagonistas deste episoacutedio viram a sua importacircn-cia poliacutetica esfumar-se daiacute em diante Na sequecircncia deste incidente o poderoso Panehesi eacute repelido para laacute das fronteiras meridionais da Nuacutebia e perde desde entatildeo toda a sua influecircncia em Tebas20 passando doravante a ser qualificado com o pejorativo determinativo de laquoinimigoraquo21 Amen-hotep por outro lado viu daiacute em diante secundarizado o seu estatuto Desconhece-se o destino final de Amen--hotep mas as escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no seu tuacutemulo que se erguia imponente em Dra Abu el-Naga natildeo revelaram qualquer vestiacutegio de ter sido usado22
2 A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo
No Ano 19 de Ramseacutes XI os documentos tebanos passam a ser datados de acordo com uma nova era a Uhem-mesut a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo23 Eacute o caso do Papiro Mayer A que faz referecircncia ao laquoAno 1 da Repeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo ou do Papiro Abbott que alude ao laquoAno 1 primeiro mecircs de Akhet dia 2
16 Dodson 2012 1517 Arauacutejo 1999 115 Tambeacutem em Kitchen 1986 24718 PBM EA10383 sect25 Em Dodson 2012 1519 Dodson 2012 1420 Černyacute 1965 633 Ver Taylor 2000 33121 Dodson 2012 1622 Cooney 2011 10 23 A expressatildeo whm-mswt (uhem-mesut) laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo derivava segundo
Gardiner de uma foacutermula metafoacuterica alusiva ao renascimento ciacuteclico da lua Em Gardiner 1961 127 Tambeacutem em Arauacutejo 1999 124
62
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
correspondendo ao Ano 19 (de Ramseacutes XI)raquo24Era a terceira vez na histoacuteria egiacutepcia que ocorria uma laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-
mentoraquo A primeira ocorreu com Amenemhat I (1991 aC) e a segunda com Seti I (1295 aC) A expressatildeo havia sido usada para proclamar esses reinados como o iniacutecio de uma nova era No Egito o interesse em assegurar a continuidade era em geral mais forte do que o desejo de mudanccedila Iniciar um periacuteodo de gover-naccedilatildeo proclamando-o como um renascimento correspondia a um desejo firme de afirmar uma rutura com o passado recente Amenemhat I havia usado esta expressatildeo para se distanciar do Primeiro Periacuteodo Intermediaacuterio e Seti I para se distanciar do periacuteodo amarniano e de algum modo buscavam o regresso a uma certa laquoortodoxiaraquo No entanto ao contraacuterio das anteriores a nova proclamaccedilatildeo de um renascimento natildeo evocava o regresso a um sistema de governaccedilatildeo previa-mente existente Pelo contraacuterio anunciava uma nova era que verdadeiramente se distinguia de tudo quanto havia existido previamente25 Esta era de renasci-mento natildeo corresponde a um periacuteodo de florescimento cultural mas representa uma das mais importantes viragens da histoacuteria egiacutepcia
3 Herihor e a formulaccedilatildeo da teocracia de Aacutemon
A historiografia deste periacuteodo eacute bastante problemaacutetica A reconstruccedilatildeo atualmente mais consensual faz coincidir o Ano 1 da laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo com o iniacutecio do pontificado de Herihor pelo que se deduz que a nova contagem do tempo eacute implementada apoacutes o afastamento se natildeo definitivo pelo menos efetivo de Amen-hotep daquele cargo
A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon afigura-se por-tanto em clara rutura com o estatuto anteriormente detido por Amen-hotep o qual devia a legitimidade do seu cargo agrave sua linhagem familiar A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon contradiz esta tendecircncia jaacute que natildeo soacute natildeo apresenta qualquer genealogia como natildeo seguira sequer uma carreira sacerdotal preacutevia os seus tiacutetulos mencionam unicamente o cargo de superinten-dente dos carros de guerra e o de hauti (comandante do exeacutercito do Egito)26 Eacute portanto na qualidade de chefe militar que Herihor assume o pontificado tebano
A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon coroava portanto uma carreira militar mais do que sacerdotal27 Deste modo eacute legiacutetimo questio-nar ateacute que ponto Herihor representaria efetivamente os interesses do templo de Aacutemon28 A nomeaccedilatildeo de Herihor representou portanto uma rutura profunda
24 Arauacutejo 1999 116 Para outras fontes para a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo ver tambeacutem Černyacute 1927 194-98
25 Assmann 2002 28926 Arauacutejo 1999 12127 Clayton 1994 17128 Tradicionalmente Herihor eacute visto como o arauto do clero de Aacutemon Veja-se Arauacutejo 1999
63
Rogeacuterio Sousa
nesta ordem e originou seguramente uma reaccedilatildeo no seio do clero tebano A nova contagem do tempo que decorria da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo de certa forma sancionava e legitimava o caraacutecter excecional da eleiccedilatildeo de Herihor e muito pro-vavelmente foi implementada para consolidar a rutura com o passado recente
A partir de Herihor os sumo sacerdotes de Aacutemon seriam doravante gene-rais chefes militares cuja origem egiacutepcia eacute na maior parte dos casos altamente questionaacutevel Contrariando os privileacutegios das linhagens locais e alicerccedilando o seu poder na forccedila militar a nova linhagem de sumo pontiacutefices introduzia uma rutura profunda na organizaccedilatildeo do clero amoniano rutura essa que parece ter servido os interesses do faraoacute29
A formulaccedilatildeo de uma nova era e de um monarca em Tebas fazia inaugurar uma nova relaccedilatildeo poliacutetica com Ramseacutes XI Estas relaccedilotildees que antes eram domeacutes-ticas assumiam agora o caraacutecter de relaccedilotildees entre estados30 E no entanto natildeo resultou desta cisatildeo o aumento de hostilidade entre Tebas e o Norte Muito pelo contraacuterio Uma espeacutecie de concordata caracterizou as suas relaccedilotildees poliacuteticas A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo utilizava os instrumentos da diplomacia internacio-nal tatildeo eficazmente elaborados ao longo do periacuteodo ramseacutessida para assegurar o domiacutenio da tensatildeo interna a qual continuou a originar incidentes ao longo de toda a XXI dinastia31
A nomeaccedilatildeo de Herihor teve portanto um significado poliacutetico indissociaacutevel da declaraccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo como uma nova era Herihor empe-nhou-se desde logo na estabilizaccedilatildeo da necroacutepole tebana essencial para controlar a regiatildeo Natildeo eacute certamente por acaso que a maior parte da documentaccedilatildeo referente agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo se relacione com julgamentos relacionados com os roubos efetuados na necroacutepole32 e com as retumulaccedilotildees reais as quais aparentemente se iniciaram sob o seu comando Registos do seu reinado satildeo frequentes entre os restauros feitos agraves muacutemias e aos atauacutedes reais descobertos no tuacutemulo TT 32033
116 Tambeacutem Černyacute 1965 63429 Sinais da resistecircncia a estas medidas iriam continuar a fazer-se sentir no clero tebano pelo
menos ateacute o pontificado de Menkheperreacute altura em que os uacuteltimos focos de resistecircncia parecem ter sido definitivamente eliminados
30 Assmann 2002 28931 A morte aparentemente prematura de Masaharta parece ter sido acompanhada por
distuacuterbios na regiatildeo tebana os quais teratildeo culminado nos acontecimentos narrados na Estela do Banimento que assinala o regresso de Menkheperreacute a Tebas com o intuito expliacutecito de repor a ordem laquofoi ao sul em valor e vitoacuteria para pacificar a terra e suprimir o seu inimigoraquo (Arauacutejo 1999 141) Em seguida na sequecircncia de uma decisatildeo oracular Menkheperreacute anuncia o regresso de exilados (Goff 1979 66)
32 A este respeito ver Peet 193033 As inscriccedilotildees feitas nas faixas mortuaacuterias das muacutemias reais sobretudo nas de Ramseacutes II e
de Seti I satildeo fontes de informaccedilatildeo decisivas para a cronologia da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo O restauro destas muacutemias teria sido ordenado por Herihor provavelmente na sequecircncia da profanaccedilatildeo dos seus tuacutemulos
64
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Ateacute ao Ano 5 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo nem Herihor em Tebas nem Smendes em Tacircnis detecircm ainda qualquer prerrogativa real como se depreende do relato patente na Viagem de Uenamon Datam ainda desta fase as campa-nhas de decoraccedilatildeo do templo de Khonsu o deus lunar filho de Aacutemon erguido no recinto do templo de Aacutemon-Reacute em Karnak Na sala hipoacutestila do templo de Khonsu Herihor enverga trajes sacerdotais mas eacute representado agrave mesma escala do faraoacute Ramseacutes XI executando os mesmos gestos lituacutergicos em princiacutepio reservados unicamente ao faraoacute Note-se que nem mesmo o sumo sacerdote Amen-hotep havia sido apresentado desta forma34
Contudo no Ano 6 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) verifica-se a assunccedilatildeo da realeza por parte de Herihor e a consequente eleiccedilatildeo de Piankh como sumo sacerdote de Aacutemon no Ano 7 Com a sua aclamaccedilatildeo real uma nova contagem do tempo eacute adicionada desta feita baseada nos anos de reinado de Herihor Esta viragem eacute documentada na decoraccedilatildeo do paacutetio colu-nado do templo de Khonsu em Karnak onde Herihor figura jaacute ataviado como um faraoacute e dotado de uma titularia real35 E no entanto o seu nome de coroaccedilatildeo - nome de rei do Alto e do Baixo Egito - natildeo era outro senatildeo o do seu cargo o de sumo sacerdote de Aacutemon A adoccedilatildeo deste tiacutetulo como nome de rei do Alto e do Baixo Egito o mais importante e significativo da titulatura real e aquele que melhor condensava a quintessecircncia do programa de reinado do faraoacute indica que Herihor integrava o cargo de sumo sacerdote de Aacutemon na sua definiccedilatildeo como laquofaraoacuteraquo o que parece refletir o desejo de reunir num uacutenico indiviacuteduo a autori-dade civil militar e religiosa Mas natildeo eacute tudo Ao adotar as prerrogativas reais Herihor iniciou como era habitual uma nova contagem do tempo atraveacutes dos seus proacuteprios anos de reinado36
A introduccedilatildeo de uma nova contagem do tempo (que se adiciona agrave contagem da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo e do reinado de Ramseacutes XI) estaacute entre as mais significativas medidas adotadas por Herihor assinalando a autonomia poliacutetica do territoacuterio de Tebas em relaccedilatildeo agrave governaccedilatildeo de Ra-mseacutes XI A adoccedilatildeo da titulatura real de Herihor surge portanto como uma consequecircncia decorrente da formulaccedilatildeo de um novo ciclo poliacutetico O tiacutetulo de sumo sacerdote inscrito na cartela real tem um papel chave na definiccedilatildeo deste novo laquoestadoraquo tebano seria na qualidade de pontiacutefice que Herihor iria adotar as prerrogativas reais submetendo a sua estrateacutegia poliacutetica aos dita-mes superiores do culto de Aacutemon Em suma a proclamaccedilatildeo do estatuto real de Herihor traduz a implementaccedilatildeo em pleno de um novo sistema poliacutetico em Tebas a teocracia de Aacutemon
34 Dodson 2012 2235 Clayton 1994 17136 James et Morkot 2010 255
65
Rogeacuterio Sousa
Ao associar o cargo de sumo pontiacutefice com o exerciacutecio do poder real este novo sistema poliacutetico tinha uma loacutegica concentracionaacuteria Tradicionalmente o sistema egiacutepcio assentava na separaccedilatildeo estrita entre a monarquia e o exerciacutecio de responsabilidades administrativas Era um facto sem precedentes que um rei fosse sumo sacerdote e chefe militar37 O novo sistema poliacutetico a teocracia de Aacutemon assentava portanto na concentraccedilatildeo de todos os poderes num uacutenico indiviacuteduo que era acima de tudo um chefe militar
4 Piankh e o fim da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo
Ao que tudo indica Herihor teve uma extensa prole No paacutetio colunado do templo de Khonsu em Karnak um extenso cortejo liderado por Nedjemet a sua mulher apresenta 19 filhos e 19 filhas38 Apesar disso no Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) um ano apoacutes a assunccedilatildeo da realeza por Herihor seria Piankh a ser eleito sumo sacerdote de Aacutemon
Eacute sintomaacutetico que a sucessatildeo do sumo pontiacutefice natildeo se tenha traduzido na implementaccedilatildeo de uma nova contagem do tempo como era a regra no sistema de sucessatildeo faraoacutenico o que demonstra bem a demarcaccedilatildeo de poderes entre He-rihor e Piankh39 Durante o seu pontificado Piankh autointitula-se o laquogeneral do faraoacuteraquo expressatildeo que se pode aplicar tanto a Herihor como a Ramseacutes XI40 e que de resto se justificava em pleno jaacute que ao longo do seu curto pontificado Piankh parece ter desempenhado sobretudo o papel de chefe militar empenhando-se em campanhas militares dirigidas na Nuacutebia reclamando o cargo de vice-rei de Kuch As suas campanhas militares mantiveram-no no encalccedilo de Panehesi mas o con-trolo dos preciosos recursos de Kuch ndash as minas de ouro e as rotas caravaneiras com a Aacutefrica subsaariana ndash estava perdido41
Adicionalmente Piankh empenhou-se em assegurar a eliminaccedilatildeo dos opo-sitores ao regime Numa carta dirigida a Nedjemet Piankh natildeo hesita em referir despreocupadamente o seu envolvimento no assassinato de dois poliacutecias42 ciente da sua autonomia em relaccedilatildeo ao poder real laquoQuanto ao faraoacute (vida sauacutede e pros-peridade) como poderia ele aqui chegar E a quem eacute o faraoacute ainda superiorraquo43
37 O rei natildeo se limitava a delegar estas funccedilotildees num oficial eleito nas cuacutepulas da hierar-quia estas responsabilidades estavam bem delimitadas Nem estes cargos eram atribuiacutedos aos membros da famiacutelia real A exceccedilatildeo era o cargo de general supremo cargo que soacute se tornou prevalente no periacuteodo ramseacutessida e era exercido pelo priacutencipe herdeiro Os vizires (um para o Sul e outro para o Norte) e o sumo sacerdote de Aacutemon eram recrutados de outras famiacutelias Em Assmann 2002 290
38 Dodson 2012 34-2539 James et Morkot 2010 25540 Goff 1979 5441 Taylor 2000 33142 Dodson 2012 3243 PBerlim 10487 (LRL21)
66
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Em todo o caso apesar da atitude insolente as relaccedilotildees de Piankh com Ramseacutes XI mantiveram-se com aparente normalidade Uma inscriccedilatildeo datada do Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo redigida no pavilhatildeo de Amen-hotep II em Karnak faz referecircncia ao laquorei do Alto e do Baixo Egito Menmaetreacute-setepena-monraquo Ramseacutes XI mencionando um oraacuteculo solicitado por Piankh44
Piankh e Ramseacutes XI parecem ter morrido sensivelmente na mesma altura45 Piankh faleceu no Ano 10 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 28 de Ramseacutes XI Ano 5 de Herihor) e Ramseacutes XI no Ano 11 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo Refletindo os ventos de mudanccedila impostos por Herihor na ne-croacutepole tebana Ramseacutes XI natildeo parece ter sido sepultado no tuacutemulo que havia sido preparado para si no Vale dos Reis (KV 4) As pesquisas desenvolvidas em 1979-1980 por John Romer ao serviccedilo do Museu de Brooklyn apontam para a possibilidade do tuacutemulo ter permanecido inacabado e que o faraoacute natildeo tenha sido de facto aiacute sepultado A verdade eacute que a muacutemia de Ramseacutes XI natildeo foi encontrada em nenhum dos esconderijos tebanos usados para inumar as muacutemias reais do Impeacuterio Novo46
Doravante Pinedjem I filho de Piankh iria assumir o pontificado tebano e a contagem do tempo prosseguiu com o reinado de Herihor o qual poderaacute ainda ter-se prolongado por mais 15 anos47 Durante o pontificado de Pinedjem I eacute notoacuterio que o tuacutemulo de Ramseacutes XI foi usado como oficina para reciclar material funeraacuterio proveniente dos tuacutemulos KV 20 (Hatchepsut) KV 34 (Tutmeacutes III) e presumivelmente KV 38 (Tutmeacutes I)48 refletindo a mudanccedila dramaacutetica da poliacutetica oficial tebana relativamente ao culto dos antepassados reais
No Norte Smendes ascendeu ao trono inaugurando a XXI dinastia Tambeacutem o sumo pontiacutefice tebano Pinedejm I acabaria por assumir aberta-mente prerrogativas reais (no Ano 16 de Herihor)49 e seratildeo na praacutetica os seus descendentes que iratildeo reger os destinos das Duas Terras Psusennes I em Tacircnis e Menkheperreacute em Tebas
44 Goff 1979 52 Inscriccedilatildeo e traduccedilatildeo em Nims 1948 157-6245 Clayton 1994 17646 Clayton 1994 171 Ver tambeacutem Reeves 199047 James et Morkot 2010 25548 A cacircmara funeraacuteria do tuacutemulo de Ramseacutes XI apresentava um poccedilo no lugar onde o
sarcoacutefago havia de ser depositado No fundo do poccedilo foram encontradas peccedilas fragmentadas provenientes de equipamentos funeraacuterios de diversos faraoacutes fragmentos de loiccedila de faianccedila azul com o nome de Hoacuterus de Tutmeacutes I e de Ramseacutes II fragmentos de gesso dourado alguns espoliados do atauacutede de Tutmeacutes III estilhaccedilos de estatuetas funeraacuterias reais provenientes do KV 34 dois deles com o nome de coroaccedilatildeo de Tutmeacutes III fragmentos de um atauacutede feminino real possivelmente pertencente a Hatchepsut e trecircs estatuetas funeraacuterias de Ramseacutes IV (Wilkinson 1996 173)
49 Pinedjem I apresenta o tiacutetulo de rei no Templo de Khonsu bem como na inscriccedilatildeo do Ano 8 do seu reinado e na inscriccedilatildeo do Ano 16 (de Herihor) sendo entatildeo Masaharta sumo pontiacutefice (Goff 1979 56)
67
Rogeacuterio Sousa
Com Smendes I (1069-1043) em Tacircnis e Pinedjem I (1070-1032) em Tebas as referecircncias agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo terminam Chegara ao fim a Uhem--mesut que durara apenas doze anos (1080-1069) 50 ao longo dos quais uma transiccedilatildeo eficaz para uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica foi plenamente assegurada Natildeo se conhece ainda qualquer vestiacutegio acerca do local de enterramento do faraoacute Herihor nem tatildeo-pouco de Ramseacutes XI os grandes obreiros desta transformaccedilatildeo poliacutetica mas eacute muito possiacutevel que ambos tenham sido sepultados no mesmo tuacutemulo coletivo ainda por localizar
5 A Ramificaccedilatildeo do poder
Embora em segundo plano na trama historiograacutefica da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo o papel desempenhado por Ramseacutes XI parece ter sido decisivo numa reforma que iria transformar o exerciacutecio do poder ao longo de todo o Ter-ceiro Periacuteodo Intermediaacuterio Embora silencioso eacute o seu vulto que se adivinha decisivo nos bastidores da cena poliacutetica para a afirmaccedilatildeo dos chefes militares liacutebios no contexto tebano e para a subsequente redefiniccedilatildeo do poder poliacutetico no Egito Em boa verdade o clero amoniano foi decepado da sua cuacutepula - os sumo sacerdotes de Aacutemon ndash e foi subordinado ao domiacutenio de chefes militares que embora egipcianizados natildeo conseguiam ou natildeo queriam disfarccedilar a sua origem liacutebia
A alianccedila entre o faraoacute e os chefes militares de origem liacutebia coloca grandemente em causa a imagem frequentemente divulgada de Ramseacutes XI como um monarca fraco Os dados satildeo longe de serem conclusivos mas eacute uma forte possibilidade a ter em conta o envolvimento direto do faraoacute nos acontecimentos que levaram agrave deposiccedilatildeo de Amen-hotep e agrave subsequente expulsatildeo de Panehesi para a Nuacutebia Num soacute golpe os dois homens fortes do momento foram afastados Estes factos desencadearam uma forte tensatildeo em Tebas e levariam agrave implementaccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo dos Nascimentoraquo que mais natildeo foi do que um haacutebil e eficaz sistema para implantar na mais elevada hier-arquia tebana a casta militar laquoliacutebiaraquo que manifestou sempre uma fidelidade inquestionaacutevel ao faraoacute
No iniacutecio da XXI dinastia o Egito era constituiacutedo por dois estados que aplicavam entre si os princiacutepios do relacionamento diplomaacutetico fomentando estreitos laccedilos familiares Os sumo sacerdotes de Aacutemon detinham autoridade sobre todo o Alto Egito desde Uauat (regiatildeo norte da Nuacutebia) ateacute El-Hiba (a sul do Faium) 51 A jurisdiccedilatildeo praacutetica dos faraoacutes que reinavam em Tacircnis (Djanet em egiacutepcio) abrangia o Delta e a regiatildeo do Faium A fronteira formal entre os dois estados foi delimitada em El-Hiba a sul do braccedilo do Nilo que desagua no Faium
50 Arauacutejo 1999 13051 Taylor 2000 331
68
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Sinal que esta fronteira natildeo era apenas simboacutelica eacute a construccedilatildeo de fortalezas nesta aacuterea52
Tacircnis a nova capital do Delta era a sede espiritual da nova linhagem real inteiramente construiacuteda com materiais reutilizados da antiga capital ramseacutessida Pi-Ramseacutes A sacralidade do seu estatuto foi robustecida com a sua eleiccedilatildeo como necroacutepole real Tebas no sul era a sede inquestionaacutevel da nova teocracia de Aacutemon o qual era o verdadeiro rei do Egito Neste siste-ma poliacutetico as decisotildees eram formalizadas atraveacutes de consulta oracular por ocasiatildeo do Festival da Divina Audiecircncia sediada em Karnak53 A Viagem de Uenamon documenta cruamente ateacute que ponto o novo sistema implementado em Tebas com ecircxito se desfasara da realidade poliacutetica internacional Quando o poderoso deus tebano encomendou uma nova barca sagrada Herihor confiou a Uenamon a importante missatildeo de adquirir madeira de cedro em Biblos mas aparentemente natildeo achou relevante incluir na bagagem do fiel emissaacuterio a prata necessaacuteria ao pagamento da preciosa madeira Diante do Priacutencipe de Biblos Uenamon natildeo pocircde senatildeo avanccedilar como retribuiccedilatildeo a simples mas generosa promessa de muitos e felizes anos de vida concedidos pelo poderoso Aacutemon ao Senhor de Biblos Este no entanto viu-se na obrigaccedilatildeo de lembrar a Uenamon como os seus antepassados haviam negociado trocando a madeira pela prata A situaccedilatildeo acabou por ser desbloqueada por Smendes que assegurou o paga-mento exigido pela madeira54 A situaccedilatildeo ilustra soberbamente o desfasamento atingido pelo sistema poliacutetico tebano o qual se baseava num isolamento cultu-ral e civilizacional sem precedentes
Apesar de entidades poliacuteticas distintas os dois reinos eram no entanto lideradas manifestamente pela mesma famiacutelia55
Com a bipolarizaccedilatildeo do Egito em dois reinos a XXI dinastia eacute em grande medida um preluacutedio para a organizaccedilatildeo poliacutetica do chamado laquoperiacuteodo liacutebioraquo (XXII-XIV dinastias) o qual na praacutetica eacute iniciado com Herihor O monopoacute-lio do poder que sempre havia caracterizado o Egito deu lugar a um sistema de alianccedilas no qual os vaacuterios pequenos estados se protegiam uns dos outros por forccedilas militares proacuteprias56 O monopoacutelio dos impostos foi substituiacutedo por tributos A laquofeudalizaccedilatildeoraquo da burocracia egiacutepcia foi uma consequecircncia da ascen-satildeo dos liacutebios agraves posiccedilotildees de topo da sociedade egiacutepcia57 O Egito natildeo escapou portanto aos efeitos que afetaram a queda dos impeacuterios do Bronze58
52 Taylor 2000 33353 Taylor 2000 33254 Assmann 2002 29455 Goff 1979 7056 Taylor 2000 338-4657 Assmann 2002 29658 Assmann 2002 296
69
Rogeacuterio Sousa
Este processo contudo natildeo foi visto como uma sujeiccedilatildeo a um poder estrangeiro algo que soacute seraacute verdadeiramente sentido sob a dominaccedilatildeo assiacuteria e persa Nem tatildeo pouco a desintegraccedilatildeo poliacutetica foi sentida como um tempo de caos como ateacute aiacute sempre acontecera e a fragmentaccedilatildeo do paiacutes natildeo originou qualquer elaboraccedilatildeo sobre a inversatildeo da ordem coacutesmica
A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo fundou uma nova estrutura poliacutetica muito diferente da que havia caracterizado os impeacuterios do Bronze Eacute neste curto periacuteodo temporal e aparentemente sem as convulsotildees sociais e militares que caracterizaram esta transiccedilatildeo noutros quadrantes que se reorganizou o exerciacutecio do poder e se reformou o quadro teoloacutegico que o legitimava garantindo assim a reactualizaccedilatildeo do complexo sistema faraoacutenico no contexto das civilizaccedilotildees da Idade do Ferro
A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo consistiu portanto num periacuteodo de transiccedilatildeo em que com uma surpreendente agilidade e rapidez se procedeu agrave reforma das milenares estruturas poliacuteticas do Egito e se criaram as fundaccedilotildees que haveriam de garantir a manutenccedilatildeo do Egito no mapa poliacutetico e civilizacional do Mediterracircneo por mais de um mileacutenio
70
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Bibliografia
Assmann J 2002 The Mind of Egypt History and meaning in the time of the Pharaohs Cambridge MA London Harvard University Press
Arauacutejo L 1999 O clero do deus Aacutemon no Antigo Egipto Lisboa Ediccedilotildees CosmosBarguet P 1962 Le Temple d Aacutemon-Recirc agrave Karnak Essai dacuteExeacutegegravese Le Caire
Institut Franccedilais drsquoArchaeologie OrientaleBickerstaffe D 2009 Refugees for Eternity The Royal Mummies of Thebes Vol
4 London Canopus PressBierbrier M 1975 The late New Kingdom in Egypt (c 1300-664 BC) A genealogical
and chronological investigation Warminster Aris amp PhilipsČernyacute J 1965 ldquoEgypt from the dead of Ramesses III to the end of the 21st
Dynastyrdquo In The Cambridge Ancient History II (The Middle East and the Aegean Region c 1300-1000 BC) ed I E S Edwards C J Gadd N G L Hammond e E Sollberger 606-57 Cambridge Cambridge University Press
mdashmdashmdash 1946 ldquoStudies in the chronology of the twenty-first dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 3224-30
mdashmdashmdash 1927 ldquoA note on the acuteRepetition of births rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 15194-98
Cooney K 2011 ldquoChanging burial practices at the end of the New Kingdom Defensive adaptations in tomb commissions coffin commissions coffin decoration and mummificationrdquo Journal of the American Research Center in Egypt 473-44
Clayton P 1994 Chronicle of the Pharaohs The reign-by-reign record of the rulers and Dynasties of Ancient Egypt London Thames amp Hudson
Dodson A 2012 Afterglow of Empire Egypt from the fall of the New Kingdom to the Saite Renaissance Cairo New York The American University Press
Elias J 1993 ldquoCoffin inscription in Egypt after the New Kingdom A Study of Text Production and Use in Elite Mortuary Preparationrdquo Dissertaccedilatildeo de Doutoramento apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago
Epigraphic Survey 1979-1981 Scenes and Inscriptions in the court and the first Hypostyle hall The Temple of Khonsu 2 vols Chicago Oriental Institute Publications
Gardiner A 1961 Egypt of the Pharaohs An Introduction London Oxford New York Oxford University Press
Goedicke H 1975 The Report of Wenamun Baltimore John Hopkins Near Eastern Studies
71
Rogeacuterio Sousa
Goelet O 1996 ldquoA new ldquorobberyrdquo papyrus Rochester Mag 513461rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 82107-27
Goff B 1979 Symbols of Ancient Egypt in the Late Period Twenty-first Dynasty The Hague Paris New York Mouton Publishers
James P e R Morkot 2010 ldquoHerihor s kingship and the High Priest of Amun Piankhrdquo Journal of Egyptian History 3 (2)231-60
Kitchen K 1986 The Third Intermediate Period in Egypt Warminster Aris amp Phillips
mdashmdashmdash 1982-1983 ldquoFurther thoughts on Egyptian chronology in the Third Intermediate Periodrdquo Revue drsquoEgyptologie 3459-69
mdashmdashmdash 1965 ldquoOn the chronology and history of the New Kingdomrdquo Chronique drsquoEgypte 40310-22
Lefebvre G 1929 Histoire des Grands Precirctres dacute Aacutemon de Karnak jusqursquo a la XXI dynastie Paris Paul Geuthner
Nims C 1948 ldquoAn Oracle dated in the acuteRepetition of Births rdquo Journal of Near Eastern Studies 7157-62
Niwinski A 1979 ldquoProblems in the Cronology and genealogy of the XXI dynasty New proposals for their interpretationrdquo The Journal of the American Research Center in Egypt 1649-68
Peet E 1930 The Great Tomb Robberies of the Twentieth Egyptian Dynasty being a critical study with translations and commentaries of the papyri in which these are recorded Oxford Clarendon Press
mdashmdashmdash 1928 ldquoThe chronological problems of the Twentieth Dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 1452-72
Polz D 2001 ldquoThebesrdquo In Oxford Encyclopaedia of Ancient Egypt Vol 3 ed D Redford 384-87 Cairo The American University in Cairo Press
Reeves N 1990 The Valley of the Kings The decline of a royal necropolis London New York Kegan Paul International
Taylor J 2000 ldquoThe Third Intermediate Periodrdquo In The Oxford History of Ancient Egpyt ed I Shaw 330-68 Oxford Oxford University Press
mdashmdashmdash 1998 ldquoNodjmet Payankh and Herihor The end of the New Kingdom reconsideredrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists ed C Eyre 1144-55 Leuvein Peeters
Trigger B B Kemp D OacuteConnor e A Lloyd 1983 Ancient Egypt A social history Cambridge Cambridge University Press
Wainwright G A 1962 ldquoThe Meshweshrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 4889-99
72
Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio
Fig 1 ndash Herihor na qualidade de sumo pontiacutefice oficia diante de Mut (esquerda) e Ramseacutes XI diante de Khonsu (direita) Sala hipostila do Templo de Khonsu em Karnak
Fig 2 ndash Entronizaccedilatildeo do faraoacute Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak
73
Rogeacuterio Sousa
Fig 3 ndash Cortejo liderado por Nedjemet (em cima agrave direita) dos filhos e filhas de Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
75
Maria de Faacutetima Rosa
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina1
(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)
Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)
Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores
Resumo - Este estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia
Palavras-chave Babiloacutenia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemonia
Abstract ndash This brief study intends to analyze the ideology underlying the social and military policies carried out by Hammu-rabi at two crucial moments in the history of Babylon These two episodes the war against Elam and the attack against the kingdom of Larsa constitute a turning point in the reign of Hammu-rabi and highlight the beginning of his hegemonic ascent
Keywords Babilonia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemony
Este breve estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas so-ciais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia
Alguns autores consideram que no seu apogeu o territoacuterio governado por Hammu-rabi constituiacutea um verdadeiro laquoimpeacuterioraquo2 O periacuteodo inaugurado pelo monarca em cerca de 1763 aC3 seria marcado pela preponderacircncia da Babiloacute-nia e viria a terminar apenas em 1595 aC com a tomada da cidade pelos hititas
1 Abreviaturas usadas AbB ndash Altbabylonische Briefe ARM ndash Archives Royales de Mari CH ndash laquoCoacutedigoraquo de Hammu-rabi LAPO ndash Litteacuteratures anciennes du Proche-Orient RA ndash Revue drsquoAssyriologie et drsquoArcheacuteologie Orientale RIME ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Early Periods
2 Veja-se Charpin 2003 105-6 O autor considera que segundo os criteacuterios que geralmente definem um impeacuterio isto eacute a diversidade etnolinguiacutestica a extensatildeo territorial e o exerciacutecio de um poder forte e centralizado eacute possiacutevel designar a Babiloacutenia do final do reinado de Hammu-rabi como impeacuterio
3 Data da anexaccedilatildeo de Larsa
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_4
76
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
1 Os primeiros anos de reinado
Hammu-rabi pertencia a uma das vaacuterias dinastias amorritas que se haviam instalado na bacia mesopotacircmica Quando o soberano subiu ao poder em 1792 aC a Babiloacutenia tinha pouco mais de um seacuteculo e cobria uma extensatildeo territo-rial pouco significativa comparativamente agraves grandes potecircncias da altura4
As fontes de que dispomos para estudar o iniacutecio do reinado de Hammu-rabi satildeo muito escassas5 A julgar pela designaccedilatildeo atribuiacuteda aos primeiros anos do seu governo Hammu-rabi teria feito algumas incursotildees em territoacuterios vizinhos De entre estas accedilotildees militares destacam-se a tomada de Isin e Uruk (no 7ordm ano do reinado) e a conquista do Malgiucircm (no 10ordm ano do reinado) Contudo o facto de vermos estes territoacuterios retomarem a sua anterior suserania6 ou reconquistarem a sua independecircncia7 indica-nos que constituiacuteram accedilotildees pontuais sem grandes efeitos praacuteticos e pouco vocacionadas para uma verdadeira ambiccedilatildeo expansionista
A conjuntura poliacutetica de entatildeo marcada ateacute 1775 aC pelo domiacutenio de Samsicirc-Addu soberano do reino da Alta Mesopotacircmia e a posiccedilatildeo geograacutefica da Babiloacutenia localizada entre as potecircncias de Larsa e de Ešnunna teratildeo constituiacutedo entraves a uma possiacutevel expansatildeo Hammu-rabi teraacute por conseguinte con-centrado os seus esforccedilos no desenvolvimento interno promovendo a coesatildeo criando infraestruturas e sobretudo consolidando a sua relaccedilatildeo com o mundo divino Na designaccedilatildeo atribuiacuteda aos anos do seu reinado satildeo vaacuterias as referecircn-cias agrave construccedilatildeo de templos e agraves doaccedilotildees de tronos e de estaacutetuas aos deuses
2 Os anos das grandes convulsotildees
A morte de Samsicirc-Addu em 1775 aC inicia um periacuteodo de relativo equiliacute-brio entre as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico Apoacutes alguns anos
4 Cf Ibid 445 De entre estas destacam-se algumas inscriccedilotildees reais e documentos de arquivos privados
Para aleacutem destes textos a designaccedilatildeo dos anos do reinado de Hammu-rabi eacute um elemento importante que nos permite conhecer os principais acontecimentos poliacuteticos militares ou reli-giosos A partir de 1775 aC as fontes que testemunham com maior rigor as poliacuteticas diplomaacute-ticas de Hammu-rabi provecircm do palaacutecio real de Zimricirc-Licircm Os Arquivos Reais de Mari (ARM) abrangem o periacuteodo em que se desenrolam as principais guerras na bacia da Mesopotacircmia e terminam no ano de 1762 aC precisamente quando a cidade eacute tomada por Hammu-rabi No que respeita agrave administraccedilatildeo interna destaca-se a correspondecircncia trocada entre Hammu-rabi e os seus altos funcionaacuterios Šamaš-haṣir e Sicircn-iddinam Esta documentaccedilatildeo retrata o periacuteodo consequente agrave anexaccedilatildeo do reino de Larsa e as medidas tomadas para proceder agrave sua integraccedilatildeo no territoacuterio babiloacutenico
6 As cidades de Isin e de Uruk estavam no iniacutecio na posse de Larsa O soberano Ricircm-Sicircn teria reconquistado as possessotildees pouco tempo apoacutes a tomada de Hammu-rabi
7 O Malgiucircm dominava um sector importante do rio Tigre e controlava o fornecimento de aacutegua a Larsa Tal como se passou relativamente agraves possessotildees de Isin e de Uruk tambeacutem o reino do Malgiucircm se teria libertado pouco tempo depois do jugo de Hammu-rabi
77
Maria de Faacutetima Rosa
a situaccedilatildeo comeccedila a tornar-se cada vez mais propiacutecia a possiacuteveis ambiccedilotildees ex-pansionistas No entanto caso Hammu-rabi alimentasse algumas esperanccedilas de expansatildeo territorial as mesmas ver-se-iam comprometidas apoacutes a entrada em cena de um poder poliacutetico que ateacute entatildeo se mantivera agrave margem dos problemas da Mesopotacircmia o Elam De facto quando em 1765 aC8 o sukkal9 do Elam10 decide atacar o reino de Ešnunna Hammu-rabi coloca-se a seu lado envian-do os seus contingentes para ajudar na conquista da cidade O que o soberano certamente natildeo esperava era que apoacutes a vitoacuteria o sukkal se instalasse no trono dessa cidade Ora a razatildeo principal pela qual Hammu-rabi o auxiliara devera--se ao facto de pretender retomar as antigas cidades de Mankisum e Upi Estas possessotildees teriam pertencido agrave Babiloacutenia no reinado do seu avocirc Apil-Sicircn antes de caiacuterem nas matildeos do rei de Ešnunna
A presenccedila do sukkal em territoacuterio mesopotacircmico impunha algumas restriccedilotildees agrave accedilatildeo poliacutetica de Hammu-rabi Eacute que Ṣiwa-palar-huhpak era natildeo soacute rei do Elam como tambeacutem suserano de vaacuterios reinos siro-mesopotacircmicos entre os quais a Babiloacutenia As tensotildees entre ambos tecircm iniacutecio quando o sukkal fazendo valer a sua autoridade endereccedila a Hammu-rabi uma carta exigindo a libertaccedilatildeo das cidades recentemente reconquistadas O tom autoritaacuterio com que Ṣiwa-palar-huhpak se lhe dirige denota o esfriar das relaccedilotildees entre ambos laquoAs cidades que deteacutens natildeo satildeo minhas Liberta-as e submete-te ao meu jugo Senatildeo pilharei o teu paiacutesraquo11
A recusa de Hammu-rabi precipita a guerra que rapidamente se espalha por todo o mundo siro-mesopotacircmico Eacute precisamente este conflito que atinge uma dimensatildeo laquomundialraquo que vai catapultar Hammu-rabi para um lugar de primeiro plano na cena poliacutetica internacional e marcar o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia
Esta ascensatildeo eacute bastante ceacutelere Podemos dizer que no espaccedilo de escassos quatro anos o rei da Babiloacutenia se consegue afirmar como o soberano mais po-deroso da Mesopotacircmia Um aspeto que nos possibilita compreender o impacto das suas conquistas durante este periacuteodo eacute precisamente a titulatura que ele vai adotando Ora aquando da derrota do Elam no 30ordm ano do seu reinado
8 A data da queda de Ešnunna natildeo eacute consensual Em Charpin e Ziegler 2003 248 Domi-nique Charpin considera que a derrota do reino de Ibacircl-picirc-El II data de 1765 aC Todavia a intensidade do intercacircmbio de presentes entre o sukkal e alguns monarcas siacuterios nos dois anos precedentes poderaacute ser testemunho de que a mesma teraacute ocorrido numa data anterior De facto este intercacircmbio poderaacute ter sucedido a tomada da cidade e o reforccedilo das relaccedilotildees entre os aliados
9 sukkal ou sukkalmah eacute o tiacutetulo do governador do Elam10 O reino do Elam localizava-se na parte ocidental do atual Iratildeo nos montes Zagros locali-
zados a este da Mesopotacircmia O forte poder do Elam representava uma ameaccedila constante para a Mesopotacircmia
11 A3618 l 21rsquo-24rsquo (texto editado em Charpin 1999 122 n 37)
78
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
Hammu-rabi era simplesmente conhecido como o laquorei da Babiloacuteniaraquo A este tiacutetulo ele vai adicionando sucessivamente
- O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo apoacutes a anexaccedilatildeo do reino de Larsa que tem lugar no 31ordf ano do reinado
- O tiacutetulo de laquorei de todo o paiacutes amorritaraquo apoacutes a derrota do reino de Mari12 que tem lugar no 32ordf ano do seu reinado
- O tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo (isto eacute do laquouniversoraquo) que o soberano adota a dada altura do seu reinado e que eacute aquele que melhor expressa as suas pretensotildees hegemoacutenicas e laquouniversaisraquo13
Resta-nos referir que entre a anexaccedilatildeo do reino de Larsa e a destruiccedilatildeo de Mari14 Hammu-rabi se apodera da cidade de Ešnunna15 anulando assim os dois poderes que teriam no iniacutecio constituiacutedo entraves agrave sua expansatildeo Larsa e Ešnunna
21 A derrota do ElamO ataque do sukkal do Elam natildeo se teria limitado agrave Babiloacutenia Outros esta-
dos foram afetados pela ofensiva elamita nomeadamente os pequenos reinos da regiatildeo da Jazira16 Estes paiacuteses estavam unidos por laccedilos de alianccedila aos poderosos reinos siro-mesopotacircmicos O soberano de Mari por exemplo teria desde cedo imposto uma poderosa rede de aliados (de vassalos) na regiatildeo do delta do rio Habur Como suserano competia-lhe prestar apoio militar aos seus vassalos O proacuteprio rei de Mari Zimricirc-Licircm seria por sua vez um laquoservoraquo do rei do Yamhad um importante centro de poder a oeste da Siacuteria Ora esta complexa teia de rela-ccedilotildees diplomaacuteticas obrigava a que em caso de guerra todos aqueles que tinham contraiacutedo uma alianccedila enviassem os seus contingentes militares para prestar auxiacutelio aos seus aliados Assim aquando do iniacutecio do conflito tanto Hammu--rabi como os monarcas da regiatildeo da Jazira recorreram agraves suas vaacuterias alianccedilas na esperanccedila de obterem apoio militar Compreendemos entatildeo o porquecirc desta guerra se ter espalhado tatildeo depressa por todo o Proacuteximo Oriente
12 O reino de Mari que controlava todo o sector do meacutedio Eufrates caracterizava-se pelo seu forte dimorfismo social Um dos aspetos que marca o reinado de Zimricirc-Licircm eacute a luta constante pela coesatildeo social e pela pacificaccedilatildeo interna As grandes tribos amorritas de entatildeo os bensima-litas e os benjaminitas teriam exercido um papel determinante no desenvolvimento interno e na poliacutetica externa do reino Apoacutes a queda de Larsa e de Ešnunna Mari passou a constituir o uacuteltimo grande reino amorrita que faltava a Hammu-rabi conquistar para se poder declarar rei do paiacutes de Amurru
13 Veja-se RIME 343 l 1-5 e 348 l 414 A conquista ocorre em 1762 aC no 31ordm ano do reinado de Hammu-rabi15 Ešnunna reconquista a sua independecircncia apoacutes a derrota do Elam pelas forccedilas aliadas
de Hammu-rabi A populaccedilatildeo do reino elege entatildeo como rei um general chamado Ṣillicirc-Sicircn As relaccedilotildees entre o novo soberano de Ešnunna e Hammu-rabi satildeo de iniacutecio amigaacuteveis No entanto divergecircncias poliacuteticas teratildeo levado a um distanciamento
16 Regiatildeo localizada no Norte entre os rios Eufrates e Tigre
79
Maria de Faacutetima Rosa
O Elam viria a ser derrotado cerca de um ano apoacutes os primeiros confrontos O facto de a batalha mais importante se ter desenrolado em territoacuterio babiloacuteni-co mais precisamente na cidade de Hicircricirctum contribuiu para que Hammu-rabi saiacutesse desta guerra laquopan-amorritaraquo como o grande vencedor Em grande parte podemos dizer que os esforccedilos de uniatildeo das tropas e de apelo agrave accedilatildeo partiram do proacuteprio Hammu-rabi Eacute ele quem incita o seu homoacutelogo Zimricirc-Licircm a escrever--lhe constantemente de modo a possibilitar uma accedilatildeo conjunta que pudesse travar a incursatildeo do Elam17 Eacute ele tambeacutem quem exerce pressatildeo junto dos seus aliados18 para que os seus contingentes militares se reuacutenam e ponham fim agrave guerra Natildeo obstante como lugar-tenente da sua divindade e devoto do mundo divino Hammu-rabi eacute o primeiro a reconhecer que a tatildeo almejada vitoacuteria soacute fora possiacutevel laquocom o poder supremo dos grandes deusesraquo19
De facto neste episoacutedio transparece uma ideologia de guerra muito clara segundo a qual o soberano agia segundo a ordem divina ou seja defendendo o interesse dos deuses Natildeo soacute a vitoacuteria lhes eacute atribuiacuteda como tambeacutem a proacutepria razatildeo pela qual Hammu-rabi se envolvera na guerra Uma vez que se tratara de um ataque o rei babiloacutenico vira-se obrigado a defender o seu territoacuterio Todavia ele soacute o fizera apoacutes Enlil descortinar os desiacutegnios do elamita Com efeito eacute do seguinte modo que se expotildee o motivo da guerra a um grupo de mensageiros elamitas
laquoO vosso senhor (sukkal do Elam) transgrediu o limite do juramento dos seus deuses e tenciona pecar e agir com inimizade Que ele venha e que Enlil veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo do seu coraccedilatildeo (= as suas intenccedilotildees)raquo20
O que sobressai nesta exposiccedilatildeo eacute precisamente o facto do sukkal do Elam ter sido primeiramente sujeito a um laquoexameraquo por parte de Enlil O deus tecirc-lo-ia posto agrave prova apoacutes a transgressatildeo da vontade divina isto eacute do seu juramento Hammu-rabi era ainda um ator passivo nesta contenda O mesmo soacute teria agido
17 Eacute no Norte (na regiatildeo de influecircncia do rei de Mari) que a ameaccedila do Elam tem mais impacto Zimricirc-Licircm encontrava-se em viagem pelo Oeste quando tiveram iniacutecio os conflitos na Mesopotacircmia Os documentos ARM VI 51 e 52 e ARM XXVIII 7 8 e 9 testemunham esta ausecircncia de Zimricirc-Licircm e atestam a frequecircncia com que Hammu-rabi fazia chegar informaccedilotildees ao seu homoacutelogo porventura sublinhado a urgecircncia do seu regresso
18 Na praacutetica quem reuacutene a maior parte das tropas eacute Zimricirc-Licircm Contudo eacute Hammu-rabi quem o pressiona para a convocaccedilatildeo dos exeacutercitos e quem no fim recebe os louros Agrave Babiloacutenia teriam chegado vaacuterios contingentes mariotas As tropas fornecidas pelo Yamhad e pelo Zalma-qum (tambeacutem por intermeacutedio do monarca mariota) ter-se-iam deslocado para Kurdacirc com a intenccedilatildeo de travarem a ameaccedila do Elam no Norte
19 Veja-se a designaccedilatildeo atribuiacuteda ao 30ordm ano do seu reinado laquoano em que Hammu-rabi o rei o poderoso o amado de Marduk afastou o exeacutercito do Elam com o poder dos grandes deuses (hellip) e consolidou as fundaccedilotildees de Sumer e Akkadraquo
20 ARM XXVI2 370 l 15rsquo-17rsquo
80
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
apoacutes a decisatildeo de Enlil e a aprovaccedilatildeo dos deuses que lhe teriam entatildeo conferido o seu laquopoder supremoraquo Como o documento afirma o sukkal destabilizara a ordem poliacutetica e social da Babiloacutenia e por extensatildeo a proacutepria ordem divina Isto porque o juramento constituiacutea o ato mais importante aquando da conclusatildeo de uma alianccedila Era este passo que selava a uniatildeo entre os dois contraentes ao inscrever a ordem dos respetivos reinos na proacutepria ordem celeste
Questionamo-nos acerca desta referecircncia a Enlil Tratando-se de um deus supremo do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico podemos especular se o apelo a esta divin-dade especiacutefica natildeo estaraacute relacionado com o facto de ele estar muito associado ao exerciacutecio do poder Segundo alguns autores a guerra teraacute despertado senti-mentos de uma espeacutecie de laquonacionalismoraquo mesopotacircmico21 Como referimos o conflito ter-se-ia estendido por todo o mundo siro-mesopotacircmico ou seja pelo mundo amorrita Podemos dizer que pela primeira vez na Mesopotacircmia en-contramos indiacutecios concretos de uma noccedilatildeo do laquooutroraquo do estrangeiro22 E este foi certamente um dos aspetos que contribuiu para o prestiacutegio de Hammu-rabi apoacutes a vitoacuteria De facto natildeo eacute apenas a Babiloacutenia que sai vencedora da guerra mas todo o mundo amorrita Hammu-rabi emerge assim como o benfeitor dos amorritas como aquele que triunfara sobre a ameaccedila da instauraccedilatildeo do caos no Proacuteximo Oriente
A importacircncia do deus Enlil pode ser testemunhada no proacutelogo do famo-so laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi A inscriccedilatildeo aiacute gravada inicia com a seguinte afir-maccedilatildeo laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil (ellilūtum) sobre toda a populaccedilatildeoraquo23 Ora para que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk pudesse governar a populaccedilatildeo do paiacutes ter-lhe-ia sido outorgado pelos grandes deuses o ellilūtum Este poder divino no fundo o poder supremo o poder de exercer a realeza24 eacute bastante sintomaacutetico do lugar primordial que Enlil ocupava no panteatildeo mesopotacircmico Como deus supremo Enlil seria capaz de corresponder ao sentimento de identidade ao poder e agrave uniatildeo que Hammu--rabi esperava porventura obter dos deuses e dos mesopotacircmios neste periacuteodo inicial das hostilidades
Por outro lado tendo Enlil em seu poder as tabuinhas do destino25 pode-mos tambeacutem considerar que esta referecircncia estaria associada agrave sua capacidade
21 Sobre este aspeto veja-se o estudo Charpin et Durand 199122 Uma carta dos Arquivos Reais de Mari testemunha esta noccedilatildeo Um chefe noacutemada dirige-se
a Zimricirc-Licircm afirmando que se porventura os elamitas chegassem agraves margens do Eufrates facil-mente se distinguiriam dos amoritas tal como as formigas brancas se distinguiam das negras (A3080 texto editado em Durand 1990 104-6) Ver tambeacutem LAPO 17 733
23 CH Proacutelogo I l 3-8 e 11-1324 Segundo Sanmartiacuten et Loacutepez 1993 278 a ellilūtum era a laquodignidade o poder e a posiccedilatildeo
de Enlilraquo sinoacutenimo de laquodivindade supremaraquo25 Na mitologia mesopotacircmica Enlil era o detentor das tabuinhas do destino onde estavam
inscritos os destinos (šīmtum) de todos
81
Maria de Faacutetima Rosa
de antever certos acontecimentos futuros de conhecer as intenccedilotildees e os destinos de todos Eacute pois a Enlil que se apela para que veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo isto eacute os sentimentos verdadeiros ou falsos do sukkal
A intervenccedilatildeo dos deuses natildeo se limitava ao simples ato de legitimar a guerra Sem o apoio da divindade muito dificilmente o rei se sagraria vencedor Nesta ideologia o deus natildeo eacute um mero espectador do conflito Pelo contraacuterio ele participa nele ativamente e eacute precisamente a sua presenccedila que dita a derrota do inimigo Assim quando Hammu-rabi consegue afastar os exeacutercitos elamitas da Mesopotacircmia e libertar a Babiloacutenia da sua pesada ameaccedila eacute no mundo divino que se encontra a explicaccedilatildeo para o sucedido Como se recorda num documento mais tardio
laquohellip ele (o elamita) planeou devorar o paiacutes da Babiloacutenia Se o deus do meu senhor26 natildeo tivesse aparecido ele teria agido durante longo tempo como se a semente do paiacutes da Babiloacutenia natildeo tivesse sido criadaraquo27
O interlocutor pretende sublinhar a mudanccedila observada na atitude do rei de Elam apoacutes a guerra Esta mudanccedila devera-se agrave apariccedilatildeo do deus que impedira o elamita de conquistar a Babiloacutenia Eacute a intervenccedilatildeo da divindade que altera as intenccedilotildees do sukkal fazendo com que este aceite a semente (a vida) do paiacutes de Hammu-rabi
A rejeiccedilatildeo da existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia e a tentativa da sua anula-ccedilatildeo acusaccedilotildees de que Ṣiwa-palar-huhpak era alvo satildeo muito significativas do atentado que o mesmo cometia contra Hammu-rabi e contra a esfera celeste Isto porque paralelamente agrave outorga do ellilūtum a Marduk os deuses laquopronun-ciaram o nome sublime da Babiloacutenia e atribuiacuteram-lhe preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundoraquo28
Na Mesopotacircmia laquopronunciar o nomeraquo equivalia a fixar o destino signi-ficava atribuir uma funccedilatildeo a algueacutem ou definir a natureza de uma determinada coisa A bem-aventuranccedila da Babiloacutenia teria entatildeo sido decretada pelos deuses O destino de Marduk a quem havia sido dado o poder unia-se assim ao destino da Babiloacutenia cidade que os deuses haviam eleito Negar a existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia significava portanto negar a palavra pronunciada pelos deuses A puniccedilatildeo do sukkal ultrapassava assim o domiacutenio da justiccedila terrena vendo-se a esfera celeste envolvida na aplicaccedilatildeo do castigo29 Em suma a hegemonia que
26 O laquomeu senhorraquo referido no texto natildeo eacute Hammu-rabi mas sim um dos seus aliados que teraacute participado na guerra ndash Zimricirc-Licircm Todavia o que aqui importa sublinhar eacute a importacircncia da participaccedilatildeo dos deuses nos destinos humanos
27 A1931 l 8-11 (texto editado em Charpin 1999 126 n 53)28 CH Proacutelogo I l 16-1929 No documento ARM XXVIII 1 a desavenccedila entre as tropas elamitas e ešnunnitas suas
aliadas que teria em grande parte ditado a ruiacutena do Elam eacute descrita como partindo de uma
82
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
Hammu-rabi viria a alcanccedilar para a Babiloacutenia natildeo era senatildeo o cumprimento da vontade divina prevista e inscrita na ordem coacutesmica
O favoritismo que os deuses haviam concedido agrave Babiloacutenia explicava-se tam-beacutem pelo facto do seu soberano ser laquoo piedoso o devoto suplicante dos grandes deusesraquo30 Trata-se de uma relaccedilatildeo de complementaridade Porque Hammu-rabi era reverente e temente aos deuses porque ele cumpria os rituais as divindades outorgavam-lhe poderes engrandeciam a sua realeza e elevavam-no perante os demais Eacute o proacuteprio Hammu-rabi quem o indica laquoEu sou Hammu-rabi rei da justiccedila a quem Šamaš deu a verdade (kīnātum)raquo31
O deus Šamaš divindade solar mesopotacircmica estava muito associado aos conceitos de verdade de justiccedila e de equidade Era uma divindade na qual se projetavam as noccedilotildees de ordem e os ideais que possibilitavam a manutenccedilatildeo da harmonia coacutesmica O principal fundamento da ordem era precisamente o exer-ciacutecio da justiccedila Como tal Šamaš estava tambeacutem muito associado agrave adivinhaccedilatildeo e aos oraacuteculos que ditavam as normas a cumprir para alcanccedilar esse equiliacutebrio Por isso natildeo eacute de estranhar que Šamaš fosse um dos deuses mencionados aquando dos juramentos que se realizavam com o intuito de selar os acordos diplomaacuteticos
A ordem internacional assentava no cumprimento de acordos e tratados diplomaacuteticos Durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi precisava de ga-rantir que as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico estavam do seu lado e que tinham um objectivo comum a derrota dos elamitas O soberano teria entatildeo procedido a uma seacuterie de negociaccedilotildees diplomaacuteticas com vista agrave conclusatildeo de alianccedilas poliacuteticas Ao seu homoacutelogo mariota Hammu-rabi pro-metera laquoPor ele (Zimricirc-Licircm) eu erguerei a minha matildeo para Šamaš Far-me-aacutes jurar32 diante de Šamašraquo33 A importacircncia deste juramento explica-se como dissemos pelo facto do futuro transgressor se tornar responsaacutevel perante as divindades Como vimos teria sido devido agrave transgressatildeo de um juramento idecircntico que o Elam sofrera o desaire imposto por Hammu-rabi No fundo estes acordos constituiacuteam um meio de impor a ordem e de legitimar o poder de accedilatildeo do rei em caso de traiccedilatildeo
Em suma para que se conservasse a ordem poliacutetica e a ordem coacutesmica Hammu-rabi teria de vencer a guerra contra o Elam Era esta a vontade dos grandes deuses E eacute aqui que tem iniacutecio o seu caminho ateacute agrave hegemonia Na verdade as ambiccedilotildees hegemoacutenicas do monarca babiloacutenico fazem-se sentir
accedilatildeo divina laquoos nossos deuses instalaram a hostilidade entre o Elam e Ešnunna Todos tiveram medo deles mas (agora) o deus ocupa-se delesraquo (l 5rsquo-6rsquo)
30 CH Proacutelogo IV l 64-6631 CH Epiacutelogo XXV R l 95-9832 O juramento eacute realizado na Babiloacutenia na presenccedila dos embaixadores mariotas33 A4626 l8rsquo-10rsquo (texto editado em Charpin 1990b 111)
83
Maria de Faacutetima Rosa
logo apoacutes o final do conflito quando o mesmo expressa a vontade de se instalar no trono de Ešnunna34 vagado apoacutes a retirada dos elamitas No entanto as suas expectativas sairiam goradas uma vez que a populaccedilatildeo do reino escolheria para a sua chefia um general saiacutedo do seio do exeacutercito de seu nome Ṣillicirc-Sicircn
22 A conquista de LarsaDepois do contratempo em Ešnunna Hammu-rabi decide voltar-se para
o sul para o reino de Larsa O ataque ao seu homoacutelogo ocorre no rescaldo da guerra contra o Elam Para Hammu-rabi a urgecircncia desta ofensiva explicava-se devido agrave necessidade de garantir a paz da Babiloacutenia e de impedir que a ordem do reino se diluiacutesse Eacute que segundo o mesmo Ricircm-Sicircn fizera vaacuterias incursotildees no seu paiacutes perturbando a sua estabilidade interna A justificaccedilatildeo da guerra eacute apresentada pelo proacuteprio Hammu-rabi do seguinte modo laquoldquoO homem de Lar-sa desrespeitou o meu paiacutes fazendo pilhagens () Depois de os grandes deuses terem afastado a garra do elamita deste paiacutes eu olhei pelo bem-estar do homem de Larsa (concedendo-lhe) numerosos favores mas ele natildeo me recompensou esses favores Agora eu queixei-me a Šamaš e a Marduk e eles responderam--me continuamente ldquosimrdquo Eu natildeo iniciei este ataque sem (o consentimento d)a divindaderdquoraquo35
Na realidade o ataque a Larsa devera-se natildeo tanto a este motivo mas sim ao facto de Ricircm-Sicircn ter adotado uma postura algo imparcial durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi esperava na altura contar com o auxiacutelio militar de Larsa Contudo os exeacutercitos aliados prometidos por Ricircm-Sicircn nunca teriam chegado a territoacuterio babiloacutenico Esta atitude poderaacute ser explicada pelo facto de Ricircm-Sicircn estar unido ao sukkal do Elam atraveacutes de laccedilos dinaacutesticos
De qualquer forma Hammu-rabi natildeo agira sem antes consultar os deuses O ataque surge justificado pelas pilhagens operadas por Ricircm-Sicircn em territoacuterio babiloacutenico A guerra era necessaacuteria para garantir a ordem poliacutetica e a estabilida-de No epiacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi encontramos uma afirmaccedilatildeo que expressa muito bem a ideologia subjacente a estas accedilotildees militares Hammu-rabi afirma laquodevido ao poder que Marduk me concedeu eu aniquilei os inimigos em cima e em baixo acabei com as batalhas e providenciei o bem-estar do paiacutesraquo36 Como vemos o propoacutesito da guerra era aniquilar os inimigos era acabar com os possiacuteveis perturbadores da paz A guerra natildeo era senatildeo um meio de permitir ao rei garantir a ordem interna
34 Veja-se o documento A257 (= LAPO 16 300) l 8-10 Zimricirc-Licircm expressa o seu apoio relativamente agraves pretensotildees de Hammu-rabi laquoSe a populaccedilatildeo de Ešnunna te der o seu consen-timento exerce tu proacuteprio a realeza no paiacutes de Ešnunnaraquo
35 ARM XXVI2 385 l 8rsquo-15rsquo36 CH epiacutelogo XXIV R l 28-34
84
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
Contudo a guerra era tambeacutem uma accedilatildeo que carecia da aprovaccedilatildeo divi-na37 Assim sendo a ofensiva contra Larsa soacute teria ganho forccedila apoacutes Šamaš e Marduk responderem constantemente laquosimraquo agraves perguntas (agraves vaacuterias consultas oraculares) de Hammu-rabi laquoSimraquo o soberano tinha a aprovaccedilatildeo dos deuses laquoSimraquo a guerra era necessaacuteria e justificada Šamaš e Marduk satildeo referidos no documento como os deuses tutelares dos dois paiacuteses em confronto o reino de Larsa e a Babiloacutenia
Para compreendermos melhor o papel que cabia ao soberano na guerra recuperamos novamente a parte inicial do proacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi
laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil sobre toda a populaccedilatildeo () (quando) pronunciaram o nome sublime da Babiloacutenia e lhe atribuiacuteram preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundo () Entatildeo () An e Enlil pronunciaram o meu nome para assegurar o bem-estar da populaccedilatildeoraquo38
Assim sendo natildeo soacute o destino de Marduk estava intimamente associado ao destino da Babiloacutenia como ambos eram indissociaacuteveis do proacuteprio destino de Hammu-rabi Se os deuses haviam decretado a supremacia da Babiloacutenia a Hammu-rabi seu soberano estava destinada a hegemonia perante os demais a realeza dos laquoquatro cantos do mundoraquo
Concluindo para ordenar o mundo os grandes deuses An e Enlil teriam nomeado um chefe supremo Marduk A esta medida juntara-se a elevaccedilatildeo da sua morada na terra a Babiloacutenia e a designaccedilatildeo de um lugar-tenente ndash algueacutem que pudesse honrar Marduk e simultaneamente desempenhar o seu papel no mundo terreno A pessoa escolhida para assumir essa funccedilatildeo fora Hammu-rabi A ele competia-lhe zelar pelo bem-estar da populaccedilatildeo defender o territoacuterio de Marduk e assegurar a paz Era seu dever tomar as disposiccedilotildees necessaacuterias de modo a responder convenientemente ao laquosimraquo dado pela divindade
A guerra contra Larsa teraacute durado mais de seis meses39 Apoacutes um prolongado cerco agrave capital a notiacutecia da vitoacuteria chegava finalmente ao soberano laquoHoje o deus
37 A intervenccedilatildeo da divindade na guerra tinha tambeacutem como fim aplacar eventuais receios do soberano A inquietaccedilatildeo do monarca no momento que precede o conflito eacute per-cetiacutevel no texto ARM XXVI2 379 laquoHammu-rabi estaacute receoso porque o inimigo pelo qual Šamaš perguntou eacute numerosoraquo Sublinhamos que Ricircm-Sicircn eacute posto agrave prova precisamente por Šamaš o deus da justiccedila (ou seja o deus pergunta por ele) Ora porque Šamaš decide fazer Ricircm-Sicircn pagar pelas suas desonestidades e pela sua conduta traiccediloeira Hammu-rabi na qualidade de laquofavoritoraquo dos deuses como aquele em quem recaiacutea a tarefa de agradar a Šamaš e a Marduk eacute impelido para o combate Em uacuteltima anaacutelise eacute a vontade divina que o rei cumpre
38 CH proacutelogo I l 3-8 11-13 27 e 45-4939 Como indica Mieroop 1993 63 eacute possiacutevel que o reino se encontrasse enfraquecido laquoIt
is more likely that to the contrary the second half of Rim-Sinrsquos reign was one of weakness allowing Babylon to organize military incursions deep into Larsarsquos territoryraquo
85
Maria de Faacutetima Rosa
do meu senhor marchou agrave frente das tropas do meu senhor A lanccedila do malfeitor e do inimigo foi quebrada A cidade de Larsa foi tomadaraquo40 Hammu-rabi torna-se entatildeo senhor de toda a zona meridional da Mesopotacircmia procedendo agrave integra-ccedilatildeo do antigo reino de Larsa no territoacuterio babiloacutenico Foi este o momento em que se diluiu o equiliacutebrio poliacutetico existente ateacute entatildeo no mundo siro-mesopotacircmico Ao conquistar o Sul e ao declarar-se senhor do paiacutes de Sumer e Akkad41 Hammu--rabi transformou-se no monarca mais poderoso da Mesopotacircmia
A reputaccedilatildeo alcanccedilada por Hammu-rabi eacute percetiacutevel nas diversas movi-mentaccedilotildees que ocorreram apoacutes a vitoacuteria Confrontados com o poder redobrado da Babiloacutenia alguns monarcas decidiram prescindir de antigas alianccedilas para se juntarem a Hammu-rabi42 Outros como Ṣillicirc-Sicircn aproveitaram a oportunidade para concluir acordos de paz pendentes43 Comeccedilou assim a desenhar-se um novo quadro poliacutetico-diplomaacutetico e a estabelecer-se uma conjuntura poliacutetica favoraacutevel agrave ascensatildeo do soberano da Babiloacutenia
3 A consolidaccedilatildeo do reino
Ao mesmo tempo que prossegue o seu percurso poliacutetico e militar conqui-stando Ešnunna destruindo Mari e jaacute no final do reinado tomando Ashur e a zona do Šubartum Hammu-rabi procede agrave gestatildeo e consolidaccedilatildeo do seu ter-ritoacuterio Um aspeto importante neste esforccedilo de consolidaccedilatildeo eacute a integraccedilatildeo do territoacuterio do antigo reino de Larsa na Babiloacutenia
O estabelecimento da ordem poliacutetica no territoacuterio recentemente con-quistado ter-se-ia operado em duas vertentes diferentes Porque Šamaš havia concedido a laquoverdaderaquo a Hammu-rabi competia-lhe exercer a justiccedila sobre a populaccedilatildeo O proacuteprio o afirma
laquo(eu sou) o sol da Babiloacutenia aquele que faz aparecer a luz sobre o paiacutes de Sumer e Akkad o rei que impotildee obediecircncia aos quatro cantos do mundo () Quando Marduk me encarregou de impor a ordem e de ensinar a reti-datildeo ao paiacutes eu coloquei a verdade (kittum) e a justiccedila (mīšarum) na boca do paiacutesraquo44
40 ARM XXVI2 386 l 6rsquo-10rsquo41 O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo era de facto utilizado pelo senhor de toda a
regiatildeo sul da Mesopotacircmia Ricircm-Sicircn utilizara-o durante largos anos ateacute agrave sua queda agraves matildeos de Hammu-rabi (veja-se RIME 4 273 e ss)
42 Eacute o caso de Atamrum rei do Andarig Hammu-rabi ter-se-aacute conseguido impor lenta-mente regiatildeo norte afastando dessa zona os seus concorrentes mais diretos Veja-se Charpin et Ziegler 2003 233-34
43 As negociaccedilotildees para a conclusatildeo da paz entre a Babiloacutenia e Ešnunna teriam sido adiadas aquando da guerra contra Larsa Cf Ibid 227-28 e 232
44 CH proacutelogo V l 5-12 e 14-23
86
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
Estes dois termos kittum e mīšarum traduzem genericamente a ideia de laquojusticcedilaraquo Contudo as palavras provecircm de raiacutezes que tecircm sentidos diferentes e como tal exprimem ideias algo distintas
mīšarum proveacutem de uma raiz que tem o sentido de laquo(re)ordenarraquo45 Ora o que Hammu-rabi pretende quando chega ao trono de Larsa eacute precisamente comeccedilar do zero repor a ordem poliacutetica e social Para isso o soberano decreta um eacutedito (eacutedito-mīšarum) cuja finalidade eacute a remissatildeo das diacutevidas econoacutemicas e a libertaccedilatildeo daqueles que haviam caiacutedo na escravidatildeo Num domiacutenio mais ideoloacutegico o eacutedito pretendia estabelecer um novo comeccedilo restaurar e reforccedilar a ordem sociopoliacutetica O propoacutesito da medida era que Hammu-rabi se apresentas-se perante os habitantes de Larsa como um rei justo e benevolente46
Todavia ao contraacuterio do que esta ideia possa levar a crer a imposiccedilatildeo de Hammu-rabi em Larsa natildeo passa por anular as infraestruturas existentes De facto num plano mais ligado ao conceito de kittum de algo que eacute laquopermanenteraquo que eacute laquoestaacutevelraquo47 Hammu-rabi assegura uma certa continuidade poliacutetica Quando chega a Larsa o monarca afirma-se como se de um natural sucessor de Ricircm-Sicircn se tratasse Ao seguir as normas vigentes e possibilitar a manutenccedilatildeo das institui-ccedilotildees existentes Hammu-rabi aproxima-se dos seus cidadatildeos Podemos testemu-nhar este esforccedilo de continuidade num documento enviado por Hammu-rabi ao governador de Larsa laquoInvestiga o caso deles Determina a sentenccedila que lhes deve ser aplicada de acordo com as leis que estatildeo em vigor no Yamutbal48raquo
Os dois conceitos natildeo se anulam pelo contraacuterio eles satildeo complementares E satildeo ideias como estas que Hammu-rabi potildee em praacutetica de modo a anexar Larsa pacificamente e a evitar a eclosatildeo de revoltas A Babiloacutenia passa entatildeo a constituir um territoacuterio contiacutenuo e unificado Esta obra centralizadora explica em grande medida o sucesso de Hammu-rabi que no final do seu governo se torna senhor de um vasto domiacutenio territorial A sua hegemonia estendia-se entatildeo desde o Golfo Peacutersico ateacute agrave zona do Sindjar A supremacia alcanccedilada por Hammu-rabi possibilitar-lhe-ia adotar o tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo
45 Tem um sentido dinacircmico ao contraacuterio de kittum Veja-se Botteacutero 1987 330-3146 Era uma medida comum no mundo amorita O proacuteprio Hammu-rabi teria proclamado
um mīšarum depois de ser entronizado na Babiloacutenia47 De acordo com a laquoleiraquo48 Nome pelo qual era conhecido o antigo reino de Larsa AbB 13 10 l 9-12
87
Maria de Faacutetima Rosa
Bibliografia
Bonechi M 1993 ldquoConscription agrave Larsa apregraves la Conquecircte Babyloniennerdquo MARI 7129-64
Botteacutero J 1987 Meacutesopotamie Lrsquoeacutecriture la raison et les dieux Paris Eacuteditions Gallimard
Bouzon E 1986 As Cartas de Hammurabi Petroacutepolis Vozesmdashmdashmdash 1980 O coacutedigo de Hammurabi Petroacutepolis VozesCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de
Francemdashmdashmdash 2000 ldquoLettres et procegraves paleacuteo-babyloniensrdquo In Rendre la justice en
Meacutesopotamie Archives judiciaires du Proche-Orient ancien (IIIe-Ier milleacutenaires avant J-C) ed F Joannegraves 69-111 Saint-Denis Presses Universitaires de Vincennes
mdashmdashmdash 1999 ldquoHammu-rabi de Babylone et Mari nouvelles sources nouvelles perspectivesrdquo In Babylon Focus mesopotamischer Geschichte Wiege fruumlher Gelehrsamkeit Mythos in der Moderne Colloquien der Deutschen Orient-Gesellschaft 2 ed J Renger 111-30 Saarland Saarbruumlcker Druckerei und Verlag
mdashmdashmdash 1990a ldquoLes eacutedits de ldquorestaurationrdquo des rois babyloniens et leur applicationrdquo In Du pouvoir dans lrsquoantiquiteacute mots et reacutealiteacute ed Cl Nicolet 13-24 Genegraveve Librairie Droz
mdashmdashmdash 1990b ldquoUne alliance contre lrsquoElam et le rituel du lipit napištimrdquo In Contribution agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 109-18 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations
mdashmdashmdash 1987 ldquoLes deacutecrets royaux agrave lrsquoeacutepoque paleacuteo-babylonienne agrave propos drsquoun ouvrage reacutecentrdquo AfO 3436-44
Charpin D e J-M Durand 1991 ldquoLa suzeraineteacute de lrsquoempereur (sukkalmah) drsquoElam sur la Mesopotamie et le lsquonationalismersquo amorriterdquo In Meacutesopotamie et Elam Actes de la XXXVIegraveme Rencontre Assyriologique Internationale (Gand 10-14 Julho 1989) ed L De Meyer e H Gasche 59-66 Ghent University of Ghent
Charpin D F Joannegraves S Lackenbacher e B Lafont 1998 Archives Eacutepistolaires de Mari 12 (Archives Royales de Mari XXVI) Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations
Charpin D e N Ziegler eds 2003 Mari et le Proche-Orient agrave lrsquoeacutepoque amorrite ndash Essai drsquohistoire politique FM V (Meacutemoires de NABU 6) Paris Socieacuteteacute pour lrsquoeacutetude du Proche-Orient ancien
Durand J-M 1997-2000 Documents Eacutepistolaires du Palais de Mari vol 1-3 LAPO 16-18 Paris Les Eacuteditions du Cerf
88
Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina
mdashmdashmdash 1990 ldquoFourmis blanches et fourmis noiresrdquo In Contribuition agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 101-8 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations
Finet A 1973 Le Code de Hammurabi LAPO 6 Paris Les Eacuteditions du CerfFrayne D 1990 Old Babylonian Period (2003-1595 BC) RIME 4 Toronto
University of Toronto PressLacambre D 1997 ldquoLa Bataille de Hiricirctumrdquo MARI 8431-54Peterson J 2016 ldquoThe Literary Corpus of the Old Babylonian Larsa Dynasties
New Texts New Readings and Commentaryrdquo In Studia Mesopotamica 3 ed M Dietrich K A Metzler e H Neumann Muumlnster Ugarit-Verlag
Sanmartiacuten J e J Loacutepez 1993 Mitologiacutea y Religioacuten del Oriente Antiguo Vol I Egipto-Mesopotamia Sabadell Editorial Ausa
Sasson J M 1995 ldquoKing Hammurabi of Babylonrdquo In Civilizations of the Ancient Near East ed J M Sasson 901-15 New York Scribners
Mieroop Van de 2005 King Hammurabi of Babylon A Biography Oxford Blackwell Publishing
mdashmdashmdash 1993 ldquoThe reign of Rim-Sinrdquo RA 8747-69Soldt W H van ed 1994 Letters in the British Museum Part 2 Transliterated
and Translated Altbabylonische Briefe in Umschrift und Uumlbersetzung Vol 13 Leiden Brill
89
Marcel L Paiva do Monte
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia1 (lsquoKing of the Four Quarters Sargon of Akkad and the imperial model in
Mesopotamia)
Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)
CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc
Resumo - Eacute habitual ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de laquoprimeiro dos impeacuteriosraquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a sua vigecircn-cia deu origem a uma nova tradiccedilatildeo que estruturou a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo (ca 2334-2279 aC) um modelo de realeza emulado muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia Eacute a esta dimensatildeo cultural da figura de Sargatildeo de Akkad considerada num tempo longo que este trabalho daraacute relevo Por esse motivo seraacute colocado em segundo plano o contexto histoacuterico em que decorreu o seu reinado devido agrave relevacircncia do papel de Akkad nas tradiccedilotildees intercul-turais e milenares acerca do seu impeacuterio
Palavras-chave Sargatildeo de Akkad Impeacuterio Proacuteximo Oriente Antigo Cultura poliacutetica
Abstract ndash It is common to attribute to the Dynasty of Akkad (ca 2334-2154 BCE) the status of laquofirst empireraquo In fact although its widespread rule across the Ancient Near East reveals a continuity with earlier realities it gave origin to a new tradition that structured Mesopotamian political culture and tradition in centuries to come Akkad not only became a paradigm for universal rule but its first king and founder Sargon (ca 2334-2279 BCE) was turned into a model of kingship frequently emulated in many political entities that emerged afterwards in Mesopotamia This work will focus thus on the long-term cultural dimension of the figure of Sargon of Akkad For that reason and because of the millennial and intercultural traditions about the laquoempireraquo of Akkad the proper historical context of Sargonrsquos reign will only serve as a secondary background
Keywords Sargon of Akkad Empire Ancient Near East Political Culture
1 Abreviaturas usadas CAH I2 ndash The Cambridge Ancient History Vol 1 Parte 2 RIMA 1 ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Vol 1 KUB ndash Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli LAPO 3 ndash Inscriptions royales Sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) MDP XI ndash Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites UET I ndash Ur Excavations Texts I Royal Inscriptions
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_5
90
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
1 As fontes
Poucos monumentos produzidos no tempo de Sargatildeo sobreviveram ateacute aos nossos dias Uma uacutenica estela fragmentada conteacutem a sua representaccedilatildeo com o nome inscrito diante da sua figura barbada2 Quanto a fontes escritas primaacuterias pouco mais que algumas inscriccedilotildees em objetos votivos dedicados por Enḫeduanna sua filha podem ser enumeradas3 Poreacutem existem vaacuterias coacutepias de inscriccedilotildees reais efetuadas em periacuteodos posteriores que se consideram ter sido produzidas no seu tempo Eacute o caso de alguns documentos babiloacutenicos do II mileacutenio aC (periacuteodo paleo-babiloacutenico) depositados no templo de Enlil em Nippur o Ekur4 O facto de a capital por ele fundada a cidade de Akkad (ou Agade) natildeo ter sido ainda encontrada pela Arqueologia impede-nos tambeacutem de aceder a arquivos e monumentos que poderiam aiacute existir5
Aleacutem destas coacutepias de inscriccedilotildees originais a grande maioria dos textos relacionados com o primeiro rei de Akkad forma o corpus de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que reflete com fiabilidade discutiacutevel o contexto histoacuterico da formaccedilatildeo do seu laquoimpeacuterioraquo Essas referecircncias textuais satildeo antes de mais uma construccedilatildeo literaacuteria e ideoloacutegica desenvolvida em torno de Sargatildeo ao longo da Antiguidade que o transformaram numa personagem cujas origens e accedilatildeo adquirem contor-nos quase miacuteticos
Por esse motivo a maior parte destes textos pode ser considerada como sendo mais relevante para o estudo das intenccedilotildees dos seus autores e das conce-ccedilotildees vigentes acerca do poder de Akkad ao longo da Antiguidade no tempo em que foram produzidos do que para o estudo do tempo a que se reportam6 A sua utilidade eacute por isso maior para o estudo das maneiras como tais conceccedilotildees das eacutepocas em que esses textos foram redigidos influenciaram o desenvolvimento de uma cultura poliacutetica tradicional na Mesopotacircmia
A tradiccedilatildeo acerca do primeiro rei de Akkad foi transmitida atraveacutes de vaacuterios geacuteneros textuais desde a epopeia ateacute ao geacutenero chamado pseudo-autobiograacutefi-co7 Por outro lado podem ser tambeacutem referidas listas de reis8 e compilaccedilotildees
2 Louvre Deacutepartement des Antiquiteacutes Orientales Sb1 Consultar Amiet 1976 9-17 e Nigro 1998 85-102
3 Enḫeduanna foi nomeada por Sargatildeo como sacerdotisa do templo de NannaSursquoen em Ur UET 1 23 271 LAPO 3 IIA1c-d Amiet 1976 15 fig 10
4 Exemplos em LAPO 3 IIA1a-b 5 O que eacute notado por Mario Liverani (Liverani 1993a 6) Sobre as possiacuteveis localizaccedilotildees da
cidade de Akkad ver Wall-Romana 19906 Cf Liverani 1993b 41-67 Van de Mieroop 1999 3287 Westenholz 1997 33-49 textos 1 e 2 Westenholz integra todavia este geacutenero no plano
mais geral da laquoliteratura-narucircraquo (Westenholz 1983 327 nota 7)8 A Lista de Reis Sumeacuteria Jacobsen 1934 Rowton 1960 156-62 Michalowski 1983 237-
48
91
Marcel L Paiva do Monte
de signos divinatoacuterios que em particular mostram como o modelo de poder corporizado por Sargatildeo foi considerado como um repositoacuterio de precedentes uacuteteis para orientar as accedilotildees dos soberanos mesopotacircmicos9
Um exemplo da influecircncia que a memoacuteria acerca de Sargatildeo de Akkad exerceu enquanto fonte ancestral de legitimaccedilatildeo do poder pode ser observado numa inscriccedilatildeo de Samsicirc-Addu I (ca 1814-1775 aC) soberano da regiatildeo que seria mais tarde a Assiacuteria10 Este rei afirma ter restaurado uma parte do templo Emašmaš de Niacutenive dedicado a Ištar e que havia sido fundado por Maništušu rei de Akkad e um dos sucessores de Sargatildeo Samsicirc-Addu reclama o meacuterito de ter restaurado o templo que se encontrava delapidado
laquo e que laquonenhum dos reis que me precederam reconstruiu desde a queda de Akkad ateacute agrave minha soberaniaraquo11
Em outro extremo temporal a continuidade da feiccedilatildeo veneraacutevel do funda-dor de Akkad como elemento de uma cultura tradicional pode ser demonstrada por um documento bastante tardio que narra a histoacuteria de Naboacutenides uacuteltimo monarca da Babiloacutenia antes da conquista aquemeacutenida em 539 aC Este texto conta como Naboacutenides encontrou no Ebabbar o templo de Šamaš na cidade de Sippar vaacuterias inscriccedilotildees de Narām-Sicircn e uma estaacutetua danificada onde estaria representado o proacuteprio Sargatildeo de Akkad12 Naboacutenides ordenou que a imagem fosse reparada e que lhe fossem prestadas as devidas homenagens
laquoEle viu nesse recinto sagrado uma estaacutetua de Sargatildeo pai de Narām-Sicircn me-tade da sua cabeccedila desaparecera e estava tatildeo deteriorada que a sua face estava irreconheciacutevel Dada a reverecircncia [de Naboacutenides] pelos deuses e o seu respeito pela realeza convocou artesatildeos restaurou a cabeccedila dessa estaacutetua e recolocou--lhe uma face Ele natildeo alterou a sua localizaccedilatildeo mas colocou-a no Ebabbar e consagrou-lhe oblaccedilotildeesraquo13
Vaacuterias satildeo as versotildees neoassiacuterias e neobabiloacutenicas de epopeias e croacutenicas que nos informam acerca das tradiccedilotildees relacionadas com Sargatildeo Este cor-pus textual que eacute secundaacuterio mas vasto e diversificado14 inclui redaccedilotildees em
9 Cf exemplos e bibliografia em Goetze 1947 253-65 (sobre Sargatildeo 254-57) Ver tambeacutem acerca dos signos divinatoacuterios em contexto de hepatoscopia Liverani 1988 256-62
10 Conhecido como reino da laquoAlta Mesopotacircmiaraquo com capital em Šubat-Enlil11 RIMA 1 A0392 i 14-2212 J-J Glassner (Glassner 2004 312) indica que este documento deveraacute ter sido redigido jaacute
no periacuteodo selecircucida ou mesmo na eacutepoca dos Partos (seacutecs IV-III aC)13 RIMA 1 A0392 i 14-2214 Para uma listagem do corpus de fontes documentais primaacuterias e secundaacuterias acerca de
Sargatildeo consultar Westenholz 1997 3-5
92
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
Sumeacuterio Acaacutedico15 Hitita e Hurrita16 demonstrando assim que a grande ampli-tude da transmissatildeo das histoacuterias e tradiccedilotildees acerca de Sargatildeo natildeo se limitou agrave Mesopotacircmia e que persistiu muito aleacutem do periacuteodo paleo-babiloacutenico
Seguindo uma opiniatildeo corrente pode afirmar-se que a transmissatildeo das histoacuterias acerca de Sargatildeo e por conseguinte do modelo de realeza que este configurava se efetuara natildeo somente por via textual entre as elites cultas e po-derosas de templos e palaacutecios17 mas tambeacutem atraveacutes da oralidade integrando o que pode ser considerado como o folclore popular mesopotacircmico18
2 As origens e a ascensatildeo
As origens do fundador de Akkad satildeo envoltas em misteacuterio A versatildeo neoas-siacuteria do texto pseudo-autobiograacutefico conhecido como a Lenda de Sargatildeo diz-nos que este teraacute nascido numa localidade chamada Azupirānu situada algures nas margens do Eufrates19 Natildeo conheceu o pai20 mas afirma que o irmatildeo do seu pai vivia laquonas montanhasraquo Quanto agrave sua matildee ao que consta era uma sacer-dotisa (entum) que por alguma razatildeo obscura teraacute lanccedilado o filho agrave corrente do rio dentro de um cesto impermeabilizado com betume Vogando nas aacuteguas do Eufrates o bebeacute foi recolhido por um laquojardineiroraquo ou laquocarregador de aacuteguaraquo chamado Aqqi Este teraacute adotado a crianccedila e ter-lhe-aacute ensinado o seu ofiacutecio Deste modo quando o menino cresceu seguiu a profissatildeo do pai adotivo21
A partir deste ponto eacute a versatildeo mais antiga desta histoacuteria em liacutengua su-meacuteria22 que oferece outras informaccedilotildees Atraveacutes dela ficamos a saber que sobre Sargatildeo teraacute recaiacutedo o olhar favoraacutevel da deusa Inanna o que lhe teraacute permitido alcanccedilar um alto posto oficial como laquocopeiroraquo (MUgraveŠKAUL) na corte do rei de Kiš Ur-Zababa
Entretanto revela-nos a histoacuteria que Sargatildeo teraacute tido um sonho com ca-raacutecter profeacutetico segundo o qual a deusa Inanna causava a morte a Ur-Zababa
15 No grande corpus textual de Amarna no Egito estaacute incluiacuteda uma versatildeo em liacutengua acaacutedica da epopeia O Rei da Batalha o šar tamḫarim (Westenholz 1997 102-33 texto 9B)
16 Sobre os textos hititas sobre os reis de Akkad podemos referir os trabalhos de H Guumlterbock (Guumlterbock 1934 1938 e 1969) Referecircncias em textos hurritas relacionados com Sargatildeo KUB XXVII 38 KUB XXXI 3 apud Westenholz 1997 11-13 Speiser 1952 101
17 Oppenheim 1964 capiacutetulo 318 Drews 1974 387-9319 Utilizamos a ediccedilatildeo de Joan G Westenholz (Westenholz 1997 38-49 texto 2) a que
a autora chama de Sargon Birth Legend Esta versatildeo compotildee-se de vaacuterios documentos neoassiacuterios e um manuscrito neobabiloacutenico (ver paacuteginas 38-39)
20 A versatildeo em liacutengua sumeacuteria desta histoacuteria fornece uma variante o seu pai chamar-se-ia Larsquoibum (Cooper e Heimpel 1983 76 l 11rsquo)
21 Westenholz 1997 38-41 ls 1-1122 Redigida entre o periacuteodo de Ur III e o periacuteodo paleo-babiloacutenico Ver Cooper e Heimpel
1983 67-82
93
Marcel L Paiva do Monte
afogando-o num laquorio de sangueraquo23 O significado do sonho era oacutebvio o favor divino estaria prestes a ser retirado ao rei de Kiš e o dom da realeza concedido ao proacuteprio Sargatildeo laquoAn e Enlil com as suas ordens divinas ordenaram com autoridade que a sua realeza [de Ur-Zababa] fosse alienada que a prosperidade do seu palaacutecio fosse retiradaraquo24
Como bom servidor do seu soberano Sargatildeo ter-se-aacute apressado a relatar o sonho que o afligira a Ur-Zababa Consciente do significado desta revelaccedilatildeo oniacuterica e da ameaccedila que ela representava para o seu reinado Ur-Zababa utiliza vaacuterios subterfuacutegios para afastar o seu copeiro Um deles consistia em fazer com que este cometesse um sacrileacutegio no exerciacutecio das suas funccedilotildees Segundo a Croacute-nica do Esagila redigida jaacute no periacuteodo neoassiacuterio Ur-Zababa teraacute ordenado a Sargatildeo que fizesse uma modificaccedilatildeo irregular nas oferendas cuacutelticas ao templo do deus Marduk o Esagila Este desobedecendo ao seu soberano e recusando--se a cometer o sacrileacutegio foi visto com bons olhos por Marduk que por esse motivo lhe dera a laquosoberania sobre as Quatro Regiotildees [do mundo]raquo (LUGAL-ut kibrat arbarsquoi iddin-šu)25
Retomando a versatildeo em Sumeacuterio da Lenda de Sargatildeo o rei de Kiš aleacutem deste subterfuacutegio tecirc-lo-aacute enviado com uma mensagem ateacute Lugalzagesi o rei de Uruk A histoacuteria deixa impliacutecito que a missiva dirigida ao soberano estrangeiro seria provocatoacuteria Ur-Zababa esperaria que o mensageiro (Sargatildeo) fosse morto pelo teor da mensagem
Poreacutem tendo fracassado esta tentativa de Ur-Zababa contra Sargatildeo este apercebendo-se da ameaccedila e da traiccedilatildeo do seu proacuteprio soberano desencadeia uma revolta da qual sai vitorioso Por conseguinte retira o poder ao rei de Kiš e apropria--se do trono cumprindo a revelaccedilatildeo que a deusa lhe havia dado em sonhos
Eacute a partir desse momento que como parece ser oacutebvio adota o nome pelo qual ficou conhecido Sargatildeo eacute a grafia em liacutengua portuguesa do nome Šarru-kicircnu (ou Šarru-kēn) que significa em Acaacutedico laquorei verdadeiroraquo ou melhor laquorei legiacutetimoraquo26 A ecircnfase sobre este atributo real contido no nome atesta a necessi-dade de afirmaccedilatildeo da legitimidade de um poder obtido pela forccedila e de modo irregular27
23 Cooper e Heimpel 1983 77 l 14 (fragmento 3N T 296)24 Cooper e Heimpel 1983 76 ls 8rsquo-9rsquo (frag TRS 73)25 Glassner 2004 266-67 l 58 texto 38 O tema central desta versatildeo tardia eacute a piedade
mostrada pelos soberanos em relaccedilatildeo ao templo de Marduk na Babiloacutenia Eacute oacutebvio que esta versatildeo refunde certos detalhes substituindo por exemplo Inanna por Marduk de modo a dotaacute-la de um significado mais proacuteximo do seu tempo
26 O nome laquoSargatildeoraquo entra na liacutengua portuguesa tal como na generalidade das liacutenguas modernas por influecircncia do Antigo Testamento Poreacutem o texto biacuteblico natildeo se refere ao fundador de Akkad mas sim a Sargatildeo II rei assiacuterio do I mileacutenio aC (722-705 aC) a propoacutesito da conquista de Ashdod (ver Is 20)
27 Como referido em CAH 12 419 o nome de laquoRei Legiacutetimoraquo natildeo teria certamente sido dado a Sargatildeo aquando do seu nascimento
94
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
3 A legitimaccedilatildeo do poder
A usurpaccedilatildeo do poder por parte de Sargatildeo acentua a imagem de laquoarri-vistaraquo que a tradiccedilatildeo lhe associou Neste quadro o seu percurso ateacute agrave realeza poderia apenas ser justificada pelo seu meacuterito pessoal e ainda mais impor-tante pela escolha divina A este propoacutesito eacute interessante analisar as suas origens agrave luz de uma conceccedilatildeo que conheceu grande continuidade na tradiccedilatildeo literaacuteria e cultural mesopotacircmica a condiccedilatildeo do ser laquocivilizadoraquo como sendo oposta a um estado laquobaacuterbaroraquo aplicado a comunidades natildeo identificadas com o sedentarismo com a agricultura e a vida urbana Este elemento foi essencial na construccedilatildeo de uma identidade laquocivilizadaraquo nas sociedades mesopotacircmicas ao longo da sua histoacuteria28 Eacute possiacutevel que esteja tambeacutem presente na Lenda de Sargatildeo concorrendo justificar o seu poder e explicar a sua ascensatildeo Um exemplo eacute o caso da Epopeia de Gilgameš na qual Enkidu29 representa um homem que natildeo pertencia ao mundo civilizado Criado pelos deuses como a antiacutetese de Gilgameš o soberano de Uruk Enkidu nascera laquonas montanhasraquo e natildeo conhecia o patildeo nem a cerveja produtos que simbolizavam a vida seden-taacuteria e agriacutecola Assim Enkidu um homem selvagem comia antes como as feras suas semelhantes
laquoCertamente eacute Enkidu nascido nas montanhas () patildeo colocaram diante dele cerveja colocaram diante dele Enkidu natildeo comeu o patildeo mas olhou des-confiado Como comer patildeo Enkidu natildeo sabia como beber cerveja nunca lhe havia sido mostradoraquo30
A Enkidu eacute assim atribuiacuteda uma natureza proacutexima dos animais e natildeo com-pletamente humana ndash leia-se laquohumanoraquo como laquocivilizadoraquo31 Ao modus vivendi das comunidades noacutemadas que desde cedo se estabeleceram na Mesopotacircmia era associado por estas expressotildees literaacuterias produzidas em contexto urbano e letrado este desconhecimento da agricultura Se a pastoriacutecia era a actividade de subsistecircncia privilegiada pelos noacutemadas estes excluiacuteam tambeacutem de um modo geral uma plena vivecircncia da realidade urbana32
28 Sobre este assunto consultar Pongratz-Leisten 2001 195-3129 Esta caracterizaccedilatildeo de Enkidu ocorre sobretudo ao longo das tabuinhas I e II
Consultaacutemos a ediccedilatildeo de A George (George 1999 especialmente 5-11 Tab 1 e 12-13 Tab 2)30 George 1999 12-13 Tab 2 A certas populaccedilotildees habitando em contextos marginais
relativamente ao mundo urbano da Mesopotacircmia eram tambeacutem associadas estas caracteriacutesticas laquobaacuterbarasraquo No texto conhecido como A Geografia de Sargatildeo os homens de Karzina satildeo apresentados como laquocomedores de carne () cujas barrigas natildeo conhecem o patildeo cozido nem a cervejaraquo (Horowitz 1998 75 ls 57-59)
31 Pongratz-Leisten 2001 202-332 Segundo A Geografia de Sargatildeo os Lullubu laquonatildeo conhecem a construccedilatildeoraquo (Horowitz
1998 73 linha 52)
95
Marcel L Paiva do Monte
Habitar em cidades era um criteacuterio que se refletia nos textos literaacuterios que colocava os noacutemadas numa posiccedilatildeo marginal face agrave civilizaccedilatildeo Embora a historiografia tenha desde haacute deacutecadas matizado uma oposiccedilatildeo radical entre no-madismo e sedentarismo33 certo eacute que nas cidades se situavam duas referecircncias fundamentais para a definiccedilatildeo do ser civilizado o templo e a realeza Assim um texto do periacuteodo da III dinastia de Ur conhecido como O Casamento de Martu traduz claramente o estereoacutetipo associado aos noacutemadas Martu ou Amorritas O noacutemada laquoque vive em montanhas natildeo conhece as moradas dos deusesraquo eacute nele descrito como algueacutem que laquohabita em tendas fustigadas pelo vento e pela chu-varaquo algueacutem que laquodurante a sua vida natildeo tem uma casaraquo e que por conseguinte laquoquando morrer natildeo seraacute enterradoraquo34
A vida laquoem tendasraquo segundo estas expressotildees culturais provenientes de meios urbanos impedia que o culto aos deuses decorresse de um modo apropriado pelo facto de ela impedir a existecircncia de templos que lhes servissem de morada e que se constituiacutessem como referecircncias espaciais e identitaacuterias da comunidade Impediria tambeacutem o culto domeacutestico aos antepassados pois era entendido como impossiacutevel a quem vivesse em habitaccedilotildees moacuteveis a tradicional inumaccedilatildeo dos mortos debaixo dos pisos das habitaccedilotildees35 Entender-se-ia tambeacutem que a vida fora das cidades implicaria a inexistecircncia da instituiccedilatildeo real e da sua expressatildeo fiacutesica mais visiacutevel o palaacutecio sem o qual natildeo se conceberia existir a ordem a intermediaccedilatildeo exercida pelo rei entre os planos terreno e divino ou mesmo a aplicaccedilatildeo da justiccedila36
A Lenda de Sargatildeo nas suas diferentes versotildees poderaacute conter tambeacutem um elemento de legitimaccedilatildeo do primeiro rei de Akkad se a perspetivarmos agrave luz destes paracircmetros da cultura mesopotacircmica De facto segundo estas histoacuterias Sargatildeo natildeo conhecera o pai nem a matildee e por essa razatildeo natildeo possuiria antepas-sados a quem pudesse prestar o culto domeacutestico ou sancionar a sua pertenccedila a uma terra ou uma casa Por outro lado era tambeacutem uma espeacutecie de laquonoacutemadaraquo pois o berccedilo onde fora depositado pela matildee que o abandonou vogava sem rumo definido ao sabor do Eufrates
Todavia ao ser recolhido por Aqqi um jardineiro e ao aprender o seu ofiacutecio Sargatildeo pocircde ser introduzido numa das artes mais importantes da civilizaccedilatildeo a
33 Rowton 1973 201-15 Do mesmo modo a ideia de uma pretensa dicotomia intransponiacutevel entre Sumeacuterios e Semitas ndash como a que opotildee noacutemadas e sedentaacuterios ndash de uma natureza laquoracialraquo dos seus conflitos ou mesmo a teoria de uma laquoinvasatildeoraquo semita sobre a Baixa Mesopotacircmia em violenta rutura com a realidade sumeacuteria satildeo vetores de um paradigma haacute muito abandonado Consultar Jacobsen 1939 485-95
34 Foi consultada a traduccedilatildeo de Klein 1997 113-116 Cf o texto chamado A Geografia de Sargatildeo dos habitantes de Karzina o texto afirma que estes laquonatildeo conhecem o enterramentoraquo isto eacute o culto aos mortos (Horowitz 1998 75 l 58)
35 A inumaccedilatildeo dos familiares mortos por baixo dos pisos domeacutesticos pelo menos entre o periacuteodo Dinaacutestico Antigo e o periacuteodo paleo-babiloacutenico associava-se ao kispum ou seja aos rituais e libaccedilotildees aos espiacuteritos das familiares Consultar Postgate 1992 98-101
36 Pongratz-Leisten 2001 204
96
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
agricultura A recolha da crianccedila agrave deriva no rio a sua adoccedilatildeo e posterior acesso a um cargo oficial na corte do rei de Kiš podem ser consideradas como etapas na sua integraccedilatildeo plena na sociedade civilizada Talvez seja pertinente considerar que A Lenda de Sargatildeo ao incluir estes estereoacutetipos servia igualmente para explicar o sucesso do fundador de Akkad um homem que apesar de nascido entre laquobaacuterbarosraquo e de possuir uma origem que o colocava agrave margem de uma legitimidade dinaacutestica convencional teria sido capaz de estabelecer um impeacuterio sobre parte significativa do Proacuteximo Oriente
4 As conquistas
Apoacutes a sua tomada do poder em Kiš Sargatildeo inicia assim a sua senda de conquistas37 A primeira fase da sua expansatildeo seria marcada pelo confronto com Lugalzagesi (ca 2340-2316) Este reinando a partir da cidade de Uruk exer-ceu uma hegemonia efeacutemera sobre o paiacutes de Sumer O reinado de Lugalzagesi representa um importante precedente para o impeacuterio de Akkad38 Iniciando a sua ascensatildeo como ensi de Umma conquistara Lagaš Ur Larsa e Nippur ob-tendo finalmente a realeza sobre a cidade de Uruk Dominando toda a Baixa Mesopotacircmia Lugalzagesi proclamou-se laquoRei do Paiacutesraquo (LUGAL KALAMMA) Poreacutem assume tambeacutem um horizonte de poder concedido pelo deus Enlil que ultrapassava os estreitos limites da Sumeacuteria
laquoQuando Enlil o rei de todos os paiacuteses [KURKUR] concedeu a Lugalzagesi a realeza no paiacutes e a justificou aos olhos do paiacutes quando colocou todos os paiacuteses ao seu serviccedilo e quando do Levante ao Poente os submeteu agrave sua leiraquo39
Lugalzagesi antes da sua derrota agraves matildeos de Sargatildeo declarava assim exercer o poder laquodesde o Mar Inferior pelo Tigre e o Eufrates ao Mar Superiorraquo40 A ascensatildeo da dinastia de Akkad teraacute adotado como sua esta amplitude poliacutetica revelada no discurso de poder de Lugalzagesi concre-tizando-a e alargando-a Deste modo se justifica a posiccedilatildeo de M Liverani quando afirma que o impeacuterio de Akkad em vez de ser considerado como um laquoponto de partida de um processoraquo deve antes ser entendido como um culminar ou ponto de chegada41 As proacuteprias inscriccedilotildees reais de Sargatildeo che-gadas ateacute noacutes atraveacutes das suas coacutepias paleo-babiloacutenicas atestam a sua vitoacuteria sobre Lugalzagesi
laquoSargatildeo o rei de Akkad [] rei de Kiš ungido de Anum o rei do Paiacutes vigaacuterio
37 Ver mapa em anexo elaborado segundo os dados de M Liverani (Liverani 1988 233)38 Consultar CAH 12 420-2139 LAPO 3 94 (IH2b)40 Ibid41 Liverani 1993a 4
97
Marcel L Paiva do Monte
de Enlil venceu a cidade de Uruk e destruiu a sua muralha Desafiou Uruk numa batalha e aprisionou Lugalzagesi o rei de Uruk no decurso da batalha levou-o numa coleira ateacute agrave Porta de Enlilraquo42
Vencendo aquele que exercia hegemonia sobre a Sumeacuteria Sargatildeo herda tam-beacutem o poder que aquele exercera sobre a Baixa Mesopotacircmia Como o seu ante-cessor assume o tiacutetulo de laquorei de Kišraquo vangloriando-se de ter vencido um total de laquotrinta e quatro batalhasraquo Estabelecendo o seu controlo sobre as cidades sumeacuterias consta que efetuou um gesto simboacutelico com grande significado apoacutes a conquista de Lagaš que viria a ser repetido por diversos soberanos assiacuterios do I mileacutenio aC o primeiro rei de Akkad laquolavou as suas armas no marraquo43 afirmando desse modo a sua capacidade de alcanccedilar um dos limites do mundo conhecido o Golfo Peacutersico e de usufruir do comeacutercio que por essa via entrava na Mesopotacircmia
Com efeito o domiacutenio do traacutefego de produtos atraveacutes da Mesopotacircmia era uma das consequecircncias das conquistas de Sargatildeo Este declara que apoacutes a sua vitoacuteria na Baixa Mesopotacircmia os barcos de Meluḫḫa Magan e Tilmun subindo o Eufrates jaacute poderiam acostar no laquocais de Akkadraquo44 Esta declaraccedilatildeo transformar-se-ia num topos recorrente do discurso poliacutetico e ideoloacutegico em seacuteculos posteriores a capacidade do soberano em fazer canalizar para o centro do seu poder os produtos originaacuterios de regiotildees perifeacutericas natildeo apenas bens de luxo mas tambeacutem mateacuterias-primas escassas na Mesopotacircmia como eram os casos da pedra ou da madeira No entanto o controlo do fluxo de mercadorias natildeo se teria limitado ao Golfo Peacutersico ou laquoMar Inferiorraquo o acesso a vias de co-municaccedilatildeo dirigidas para Norte ao longo do curso dos rios Tigre e Eufrates constituiacuteram tambeacutem um alvo da dinacircmica expansionista de Sargatildeo De facto este afirma que com a anuecircncia do deus Dagan se apropriara do laquopaiacutes superiorraquo e das cidades siacuterias de Tuttul Mari Yarmuti e Ebla importantes entrepostos no fluxo comercial que atingia a Norte a laquoFloresta dos Cedrosraquo e as laquoMontanhas da Prataraquo designaccedilotildees que equivaliam agraves cadeias montanhosas da Siacuteria do Norte e do Liacutebano assim como agrave cadeia do Tauro no Sul da Anatoacutelia
laquoSargatildeo o rei prosternou-se em Tuttul orando diante de Dagan Dagan deu--lhe o paiacutes superior Mari Yarmuti e Ebla ateacute agrave Floresta dos Cedros e agraves Mon-tanhas da Prataraquo45
Apesar desta afirmaccedilatildeo de um alcance de poder que chegava ateacute agrave Anatoacute-lia devemos talvez ver aqui mais o reflexo de uma capacidade de obtenccedilatildeo de
42 LAPO 397 (IIA1a 1-28)43 LAPO 397 (IIA1a 29-63)44 LAPO 399 (IIA1b)45 LAPO 399 (IIA1b 17-35)
98
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
produtos por via comercial Contudo uma epopeia de que subsistem diversas versotildees46 vulgarmente conhecida como O Rei da Batalha atribui a Sargatildeo de Akkad uma expediccedilatildeo militar ateacute ao reino de Purušḫḫanda47 Segundo esta epo-peia da qual seguimos a versatildeo de Amarna (II mileacutenio aC) mercadores teriam pedido auxiacutelio a Sargatildeo contra Nur-Daggal o rei dessa cidade que os assediava com violecircncia e traiccedilotildees
laquoJuraacutemos lealdade pelo nome de Sargatildeo rei do Universo e por isso partimos [para Purušḫḫanda] agora enfrentamos violecircncia e natildeo somos heroacuteisraquo48
Sargatildeo ansioso pelo combate e atraiacutedo pelas riquezas dessa regiatildeo ndash onde existiria uma laquogrande montanharaquo feita de laacutepis-lazuacuteli e ouro ndash enceta a demo-rada e difiacutecil marcha ateacute Purušḫḫanda acompanhado pelos seus guerreiros Vencendo Nur-Daggal reza a histoacuteria que o rei de Akkad permanece na regiatildeo por trecircs anos49
O proacuteprio Sargatildeo natildeo refere nas suas inscriccedilotildees que resumem as suas conquistas qualquer campanha a esta regiatildeo da Anatoacutelia Por esse motivo as opiniotildees dividem-se quanto agrave historicidade desta epopeia Mario Liverani por exemplo recusa historicidade a estas informaccedilotildees atribuindo-lhe o valor de um modelo poliacutetico e ideoloacutegico a ser seguido Esta perspetiva confere maior relevacircncia ao tempo em que o texto foi redigido e agraves intenccedilotildees dos seus autores do que agrave tentativa de encontrar o que se costuma designar como historical kernel ie um nuacutecleo de informaccedilotildees contidas numa histoacuteria lenda epopeia ou mito que possa considerar-se ser baseado em acontecimentos histoacutericos concretos50
Por fim Sargatildeo afirma ter submetido agrave sua autoridade o Elam51 onde reina-va a dinastia de Awan Deve ser notado poreacutem que a influecircncia da dinastia de Akkad sobre essa regiatildeo pode ser atestada historicamente atraveacutes de um tratado segundo o qual um rei de Awan se submetia politicamente a Narām-Sicircn (ca 2291-2255 aC) um dos mais importantes sucessores de Sargatildeo52
Eacute bastante difiacutecil contudo aferir a real amplitude das conquistas e expe-diccedilotildees efetuadas por Sargatildeo A existecircncia de um texto chamado A Geografia
46 As diferentes versotildees ou recensotildees enumeradas por Westenholz 1997 10247 Este situar-se-ia possivelmente perto da atual cidade de Aksaray (Turquia) numa regiatildeo
jaacute proacutexima da Anatoacutelia Central Ver bibliografia em Liverani 1993b 52 nota 2848 Traduzido a partir de Westenholz 1997 114 l 1849 Westenholz 1997 131 ls 27-2850 Liverani 1993b 52-56 Para algumas referecircncias bibliograacuteficas a favor e contra esta
posiccedilatildeo consultar paacuteginas 52-53 nota 2951 LAPO 397 (IIA1a 1-34) Acerca da expediccedilatildeo de Sargatildeo ao Elam consultar Liverani
1988 234-3652 Publicado pela primeira vez em MDP XI lxxxviii Ver tambeacutem Briend et al 1992 8-10
99
Marcel L Paiva do Monte
do Impeacuterio de Sargatildeo53 que enumera as regiotildees controladas pelo fundador de Akkad acentua a controveacutersia em vez de esclarecer as duacutevidas Este texto apenas conhecido por duas tabuinhas54 enumera as regiotildees controladas por Sargatildeo e procura atraveacutes da discriminaccedilatildeo de distacircncias medir a amplitude do impeacuterio Natildeo desejando entrar na discussatildeo das suas fontes ou redaccedilatildeo primaacute-ria55 podemos apenas dizer que se trata de um texto de composiccedilatildeo complexa que conteacutem elementos que remetem para realidades pertencentes ao III II e I mileacutenios aC como por exemplo os topoacutenimos que enumera56 Todavia eacute consensual considerar-se este texto como a expressatildeo de um ideal de laquoimpeacuterio universalraquo corporizado pela figura de Sargatildeo de Akkad
A centralidade de Akkad e a sua capacidade de dominar militarmente uma vasta amplitude geograacutefica reflete-se nas inscriccedilotildees reais de Sargatildeo atraveacutes das quais este afirma manter em permanecircncia uma forccedila beacutelica que o limitado hori-zonte das cidades-estado sumeacuterias parecia nunca ter sido capaz de sustentar o rei de Akkad afirma manter laquo5400 homens comendo a sua refeiccedilatildeo diante dele todos os diasraquo57 Eacute por essa dinacircmica guerreira e por um poder de natureza caris-maacutetica que Sargatildeo unifica pela primeira vez toda a Mesopotacircmia58 fornecendo aos futuros soberanos dessa regiatildeo uma base ideoloacutegica que ajudaria a justificar a reivindicaccedilatildeo de um horizonte de poder laquouniversalraquo
6 Sargatildeo amp Sargatildeo
Um dos exemplos que ilustram a continuidade da influecircncia que a figura do fundador de Akkad exerceu sobre as conceccedilotildees da realeza na Mesopotacircmia eacute a adoccedilatildeo do seu nome por alguns reis posteriores59 Dois reis assiacuterios escolheram como seus nomes reacutegios o nome de Sargatildeo O mais importante foi Sargatildeo II monarca cujo papel foi marcante na expansatildeo assiacuteria da segunda metade do I mileacutenio aC Este como o seu homoacutenimo de Akkad usurpou o trono assiacuterio por volta de 722 aC apoacutes a morte de Salmanasar V cujo reinado durou pouco menos de cinco anos (726-722 aC) O facto de Sargatildeo II ter chegado ao trono de modo irregular antes de lhe ser exigido que consolidasse internamente o seu poder pela forccedila permite entender o motivo pelo qual este adotara o nome do fundador de Akkad consolidar um poder receacutem-adquirido e afirmar uma
53 Transliteraccedilatildeo traduccedilatildeo e estudo em Horowitz 1998 67-9554 Um manuscrito do periacuteodo neoassiacuterio encontrado em Aššur (Ass 13955rb) e um
manuscrito neobabiloacutenico hoje no Museu Britacircnico (BM 64382) Van de Mieroop 1999 33055 Ver bibliografia e resumo das posiccedilotildees em Van de Mieroop 1999 330-3156 Van de Mieroop 1999 33157 LAPO 399 (IIA1b 17-35)58 Liverani 1988 252-56 acentua o carisma guerreiro dos reis de Akkad como uma das
principais inovaccedilotildees da cultura poliacutetica trazidas por Sargatildeo agrave Mesopotacircmia59 Frahm 2005 46-50 nordm 2
100
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
legitimidade atraveacutes do nome inequiacutevoco de Šarru-kicircn ou laquorei legiacutetimoraquo como vimos acima60
Sargatildeo II como o fundador de Akkad resolveu construir uma nova capi-tal a que chamou Dūr-Šarrukicircn a laquoFortaleza de Sargatildeoraquo localizada na atual Khorsabad61 A fundaccedilatildeo de uma nova capital construiacuteda ex nihilo procurava instituir uma rutura com uma realidade poliacutetica anterior que proporcionasse um afastamento de contextos de poder tradicional que continham de forma latente ou aberta focos de oposiccedilatildeo62 Sargatildeo II poderaacute ter decidido a construccedilatildeo dessa nova cidade como meio de se afastar de uma atmosfera potencialmente conspirativa por parte de elites tradicionais que residiriam em boa parte em antigas capitais como Aššur ou Kalḫu onde teriam grande influecircncia
Natildeo sendo um expediente poliacutetico invulgar no Proacuteximo Oriente Antigo podemos afirmar com certeza que esta seria a mesma estrateacutegia que Sargatildeo pretendera seguir quando fundara a cidade de Akkad Esta seria o siacutembolo mais visiacutevel de rompimento com a tradicional realidade poliacutetica da Sumeacuteria que se caracterizava antes da experiecircncia de Lugalzagesi na fragmentaccedilatildeo em cidades-estado Esta cidade que pretendia certamente ser considerada como o laquocentroraquo do mundo que correspondesse agraves conquistas de Sargatildeo ainda natildeo foi revelada pelo esforccedilo arqueoloacutegico No entanto presume-se que estivesse situada numa zona de transiccedilatildeo entre a Alta e a Baixa Mesopotacircmia perto de Bagdad63
A Croacutenica do Esagila64 a que jaacute nos referimos e a chamada Croacutenica dos Reis Antigos65 relatam a fundaccedilatildeo de uma nova cidade por Sargatildeo diante de Akkad sua capital Estes textos refletem a atribuiccedilatildeo de um significado ao passado de um modo que era comum natildeo apenas na literatura babiloacutenica mas na proacutepria historiografia produzida no Oriente Antigo em geral o favor divino e o compor-tamento dos reis para com os deuses eram fatores determinantes na definiccedilatildeo do destino dos homens No caso concreto destas duas croacutenicas os seus autores pretendiam interpretar o percurso histoacuterico de vaacuterias dinastias mesopotacircmicas segundo o comportamento dos soberanos face ao Esagila o templo de Mar-duk na cidade da Babiloacutenia Este era o criteacuterio essencial para explicar a queda
60 Acerca da importacircncia do nome como veiacuteculo da essecircncia das coisas na cultura mesopotacircmica e em especial relativamente aos nomes dos reis cf Van de Mieroop 1999 329-30 (sobre a homoniacutemia de Sargatildeo de Akkad e Sargatildeo II da Assiacuteria)
61 Consultar as actas do coloacutequio dirigido por A Caubet (1995)62 Joffe 1998 549-80 O autor analisa entre outros o caso particular de Ducircr-Sharrukicircn
(Ibid 562)63 Consultar mapa em anexo Poderia estar mais propriamente entre Sippar e Kiš (Joffe
1998 556) Ver ainda Wall-Romana 199064 Glassner 2004 263-68 (texto 38)65 Glassner 2004 268-71 (texto 39)
101
Marcel L Paiva do Monte
e ascensatildeo de reis e dinastias66 incluindo Sargatildeo e outros dos seus sucessores como Narām-Sicircn
A Croacutenica dos Reis Antigos segue o fio das tradiccedilotildees literaacuterias acerca de Sar-gatildeo de Akkad ao relatar como o favor de Marduk recaiacutera sobre ele permitindo que este governasse laquoos paiacuteses como um soacuteraquo67 Todavia apoacutes aludir agraves suas con-quistas e agrave amplitude do seu domiacutenio o texto revela que o rei decide construir uma nova cidade reacuteplica da cidade de Babiloacutenia diante da sua capital Akkad
laquoEle [Sargatildeo] levou terra do ldquofosso de argilardquo de Babiloacutenia e construiu perto de Akkad uma reacuteplica [da cidade] de Babiloacutenia Por causa desta (falta) por ele cometida o grande senhor Marduk enfurecido diminuiu o seu povo atraveacutes da fome Desde Oriente ateacute ao Ocidente houve uma revolta contra ele e ele foi afligido com ldquoinsoacuteniardquoraquo68
Segundo estas croacutenicas este ato seria iacutempio e sacriacutelego pois Sargatildeo fun-dando desse modo uma cidade estaria a competir com a grandeza de Babiloacutenia e mais do que isso a substituir-se aos proacuteprios deuses ao encetar esse ato en-tendido como laquodemiuacutergicoraquo Como afirma M Van de Mieroop laquoThe building of a new city by a mortal man was considered to be an act of hybris to the Mesopotamians only gods were allowed to found citiesraquo69
Este tom negativo foi interpretado por este autor como uma criacutetica indireta natildeo ao fundador de Akkad mas ao proacuteprio Sargatildeo II da Assiacuteria Esta basear-se--ia no acontecimento inusitado que foi a morte de Sargatildeo II em combate em 705 aC e a natildeo recuperaccedilatildeo do seu cadaacutever Tal facto teria privado o rei dos ritos fuacutenebres e constituiacutea um sinal aos olhos de muitos dos seus contemporacircneos de uma puniccedilatildeo divina devido a uma falta que este houvesse cometido Falta o laquopecadoraquo que pode estar relacionado com a sua usurpaccedilatildeo do poder e a sua tentativa de imunizaccedilatildeo relativamente a oposiccedilotildees internas ao construir uma nova cidade de raiz e ao estabelecer nela a capital do impeacuterio assiacuterio Por ou-tro lado natildeo seraacute por acaso que esta memoacuteria construiacuteda acerca de Sargatildeo de Akkad retome forccedila no momento em que a Assiacuteria empreende um movimento de expansatildeo que a iria tornar paulatinamente o precedente para os impeacuterios do I mileacutenio aC como o neobabiloacutenico e o persa aquemeacutenida
Estes dois textos satildeo exemplos pungentes da complexidade das tradiccedilotildees literaacuterias no Proacuteximo Oriente Antigo Expressam uma utilizaccedilatildeo inteligente de uma tradiccedilatildeo cultural e poliacutetica antiga no sentido de estabelecer um criteacuterio
66 Estes textos refletem o anacronismo destes elementos ao associaacute-los agrave personagem de Sargatildeo de Akkad Este facto denuncia o propoacutesito interpretativo desta composiccedilatildeo literaacuteria agrave luz do tempo em que foi produzida
67 Ver supra nota 2468 Glassner 2004 271 texto 3969 Van de Mieroop 1999 338
102
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
valorativo para as accedilotildees dos soberanos de que Sargatildeo de Akkad constituiria elemento fundamental Esse criteacuterio estabelecia como valor positivo a emulaccedilatildeo das conquistas de Sargatildeo Uma passagem de um texto eacutepico com ele relaciona-do inscrito num texto do periacuteodo paleo-babiloacutenico revela de modo expliacutecito a natureza modelar do fundador de Akkad No final do texto este exorta qualquer soberano que lhe queira seguir os seus passos a imitaacute-lo laquoSargatildeo instrui as suas tropas lsquoOh o rei que me quiser igualar ndash onde eu fui que ele tambeacutem vaacutersquoraquo70
Consideraccedilotildees finais
A figura de Sargatildeo de Akkad ultrapassou em muito a sua dimensatildeo histoacuteri-ca concreta Ao longo de muitos seacuteculos a memoacuteria que sobre ele foi construiacuteda transformou-o numa personagem modelar e numa referecircncia poliacutetica e cultural incontornaacutevel Parte integrante e essencial dessa memoacuteria era a tradiccedilatildeo que lhe atribuiacutea a conquista das laquoQuatro Regiotildeesraquo isto eacute do mundo Esta expressatildeo apesar de nunca ter feito parte da sua titulatura durante o seu reinado traduz um horizonte universalista de poder reclamado por diversas entidades poliacuteticas surgidas no Proacuteximo Oriente Antigo Ainda que a amplitude das suas conquis-tas possa ter sido exagerada e alargada pela tradiccedilatildeo literaacuteria que construiu agrave sua volta uma verdadeira res gesta foi Sargatildeo de Akkad assim como a dinastia que fundou o responsaacutevel se natildeo pela concretizaccedilatildeo desse ideal de poder pelo menos agrave cristalizaccedilatildeo da sua ideia
70 Sargatildeo o Heroacutei Conquistador Westenholz 1997 76-77 texto 6 ls 120-123
103
Marcel L Paiva do Monte
Bibliografia
Amiet Pierre 1976 Lrsquoart drsquoAgadeacute au Museacutee du Louvre Paris Eacuteditions des Museacutees Nationaux
Brandenstein C G ed 1934 Kultische Texte in hethithischer und churrischer Sprache (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag
Edwards I E S C J Gadd e N G L Hammond eds (1971) 2006 The Cambridge Ancient History Early History of the Middle East Vol 1 Parte 2 Reimpressatildeo Cambridge The Cambridge University Press
Caubet A ed 1995 Khorsabad le palais de Sargon II roi drsquoAssyrie Actes du colloque organiseacute au Museacutee du Louvre par le Service Culturel le 21 et 22 janvier 1994 Paris La Documentation Franccedilaise
Cooper J e W Heimpel 1983 ldquoThe Sumerian Sargon Legendrdquo Journal of the American Oriental Society 10367-82
Drews R 1974 ldquoSargon Cyrus and Mesopotamian Folk Historyrdquo Journal of Near Eastern Studies 3387-93
Frahm E 2005 ldquoObservations on the Name and Age of Sargon II and Some Patterns on Assyrian Royal Onomasticsrdquo NABU 246-50
Gadd C J e Leon Legrain eds 1928 Ur Excavations Texts Royal Inscriptions Vol 1 London British Museum Museum of the University of Pennsylvania
George A 1999 The Epic of Gilgamesh A New Translation London Penguin Books
Glassner J-J 2004 Mesopotamian Chronicles Atlanta Society of Biblical Literature
Goetz A 1947 ldquoHistorical Allusions in Old Babylonian Omen Textsrdquo Journal of Cuneiform Studies 1253-65
Grayson A K ed 1987 The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods vol 1 Assyrian Rulers of the Third and Second Millennia BC (to 1115 BC) Toronto University of Toronto Press
Guumlterbock H 1969 ldquoEin neues Bruchstuumlck der Sargon-Erzaumlhlungsbquo Koumlnig der Schlachtrdquo Muskellunge der Deutsch Orient-Gesellschaft zoos Berlin 10114-26
mdashmdashmdash 1934 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Erster Teil Babylonien)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 421-91
mdashmdashmdash 1938 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Zweiter Teil Hethiter)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 4445-145
104
lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia
Horowitz W 1998 Mesopotamian Cosmic Geography Winona Lake Eisenbrauns
Jacobsen Thorkild 1934 The Sumerian King List (Assyriological Studies 11) Chicago Oriental Institute of the University of Chicago
Joffe A 1998 ldquoDisembedded capitals in Western Asian Perspectiverdquo Comparative Studies in Society and History 40549-80
Klein J 1997 ldquoThe God Martu in Sumerian Literaturerdquo In Sumerian Gods and their Representations ed L Finkel e M Geller 99-116 Groumlningen Styx
Liverani Mario 1988 Antico Oriente Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1993a ldquoAkkad an Introductionrdquo In Akkad The First World Empire
Structure Ideology Traditions ed M Liverani 1-10 Padova Sargon srlmdashmdashmdash 1993b ldquoModel and Actualization The Kings of Akkad in the Historical
Traditionrdquo In Akkad The First World Empire Structure Ideology Traditions ed M Liverani 41-67 Padova Sargon srl
Michalowski Piotr 1983 ldquoHistory as Charter Some Observations on the Sumerian King Listrdquo Journal of the American Oriental Society 103237-48
Nigro Lorenzo 1998 ldquoTwo steles of Sargon iconology and visual propaganda at the beginning of royal Akkadian reliefrdquo Iraq 6085-102
Oppenheim A L 1964 Ancient Mesopotamia Portrait of a Dead Civilization Chicago The University of Chicago Press
Pongratz-Leisten Beate 2001 ldquoThe Other and the Enemy in the Mesopotamian Conception of the Worldrdquo In Melammu Symposia II Mythology and Mythologies Methodological Approaches to Intercultural Influences ed R Whiting 195-231 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project
Postgate John Nicholas 1992 Early Mesopotamia Society and Economy at the Dawn of History London New York Routledge
Puech Emile Jacques Briand e Reneacute Labrun 1992 Traiteacutes et Serments dans le Proche-Orient Ancien (Supplement aux Cahiers Eacutevangile 81) Paris Les Editions du Cerf
Rowton M B 1960 ldquoThe Date of the Sumerian King Listrdquo Journal of Near Eastern Studies 19156-62
mdashmdashmdash 1973 ldquoUrban Authonomy in a Nomadic Environmentrdquo Journal of Near Eastern Studies 32201-15
Scheil V 1911 Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites Paris Ernest Leroux
Sollberger E e J-R Kupper eds 1971 Inscriptions royales sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) Paris Centre National de la Recherche Scientifique Les Eacuteditions du Cerf
105
Marcel L Paiva do Monte
Speiser E 1952 ldquoSome Factors in the Collapse of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 7297-101
Sturm J e Otten H eds 1939 Historische und religioumlse Texte (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag
Van de Mieroop Marc 1999 ldquoLiterature and Political Discourse in Ancient Mesopotamia Sargon II of Assyria and Sargon of Agaderdquo In Munuscula Mesopotamica Festschrift fuumlr Johannes Renger (AOAT 267) ed B Boumlck E Cancik-Kirschbaum e T Richter 327-39 Muumlnster Ugarit-Verlag
Wall-Romana Christophe 1990 ldquoAn Areal Location of Agaderdquo Journal of Near Eastern Studies 49205-45
Westenholz Joan G 1983 ldquoHeroes of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 103327-36
mdashmdashmdash 1997 Legends of the Kings of Akkade The Texts Winona Lake Eisenbrauns
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
107
Joatildeo Paulo Galhano
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita1
(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)
Joatildeo Paulo Galhano(jptsgalhanogmailcom ORCID 0000-0003-4934-2696)
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria
laquoAssim disse Ḫupašiya a InaralsquoSe me deito contigo irei e cumprirei o desejo do teu coraccedilatildeorsquo
E ele deitou-se com elaraquo2
Resumo - No presente estudo pesquisaacutemos os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacute-dos mitoloacutegicos hititas Apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia verificaacutemos que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interde-pendecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo Jaacute o Mito de Illuyanka apresenta uma modalidade mitoloacutegica diferente assente na luta entre um deus e uma forccedila maacute As narrativas hurritas trouxeram ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircn-cias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria do poder O mito O Desaparecimento do Deus Sol parece cru-zar elementos conceptuais que se podem encontrar nos mitos de divindades ausentes mas tambeacutem outros que satildeo tiacutepicos da mitologia de origem hurrita
Palavras-chave Hititas Hurritas mitos influecircncia
Abstract ndash In this research article we looked for the hurrianization processes of the hittite mythological contents After the analysis of the ethnic hurrianization of the Anatolian territory we confirmed that in the myths of disappearing gods there is an idea of interdependence and correlation of divine agents as well as a non-hierarchical tendency in the arrangement of the ancient Anatolian pantheon The Illuyanka Tales show a different mythological mode based in the fight between a god and an evil power The Hurrian myths have brought to the Anatolian pantheon some narrative structures that include the idea of divine kingship of emphasis on the familial order and of differentiation of the power levels Besides the Hurrian myths have included a wide temporal dimension and the literary play-acting of power The myth of The Disappearance of the Sun God seems to join elements found in the myths of disappea-ring gods and other ingredients typical of the Hurrian mythology
Keywords Hittites Hurrians myths influence
1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013
2 CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 24 e ss
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_6
108
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
A histoacuteria hitita3 tem tido uma periodizaccedilatildeo similar agrave de outros reinos do Proacuteximo Oriente Antigo (em sentido lato) designadamente o egiacutepcio dando lugar agrave divisatildeo em Reino Antigo Reino Meacutedio e Reino Novo4 Alguns preferem simplificar o esquema e reduzir a histoacuteria hitita a duas fases principais o Reino Antigo e o Reino Novo propondo a cisatildeo no iniacutecio do reinado de Tudḫaliya I ou seja no final do seacutec XV ou iniacutecio do seacutec XIV aC5 Esta periodizaccedilatildeo se reflete uma viragem na orientaccedilatildeo poliacutetica hitita que a partir de Tudḫaliya I estaacute sob o desiacutegnio da conquista de terras longiacutenquas na Siacuteria e no oeste da Anatoacutelia natildeo daacute relevo ao momento de realizaccedilatildeo imperial conseguido com Šuppiluliuma I cuja maior concretizaccedilatildeo aconteceu no domiacutenio da diplomacia e da estrateacutegia militar laquointernacionalraquo resultando na anexaccedilatildeo do reino hurrita do Mitanni e de vastas zonas no norte da Siacuteria
A cultura religiosa e literaacuteria hitita do periacuteodo imperial ficou marcada por um elevado grau de fusatildeo da matriz autoacutectone hatiana com os aportes miacutetico--religiosos hurritas siriacuteos e mesopotacircmicos situaccedilatildeo que derivou dos contactos continuados das populaccedilotildees autoacutectones com os povos vizinhos do leste e sudeste da Anatoacutelia Este processo culminaria na integraccedilatildeo do Mitanni e do norte da Siacuteria nos domiacutenios hititas para aleacutem dos territoacuterios disputados a sudoeste com o reino de Arzawa Por essa via a histoacuteria cultural hitita ficou superlativamente marcada pela integraccedilatildeo de elementos hurritas a ponto de no periacuteodo imperial a cultura mitoloacutegica hurrita ser tatildeo hitita quanto a matriz hatiana originaacuteria da Anatoacutelia
Interessa entatildeo perceber o que significou a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas no que trata das conceccedilotildees de poder com o propoacutesito de compreender o que mudou com a assimilaccedilatildeo e adiccedilatildeo de estruturas narrativas mitoloacutegicas hurritas agrave matriz hatiana tenham sido ou natildeo acompanhadas de processos de sincretismo religioso Para tal importa comeccedilar por convocar os elementos histoacuterico-geograacuteficos que teratildeo possibilitado aquela hurritizaccedilatildeo
3 Por Hititas designa-se o que na literatura de expressatildeo inglesa surge denominado laquoHittitesraquo e na aacuterea alematilde laquoHethiterraquo Por Hatianos os povos anatoacutelios indiacutegenas que viveram na Anatoacutelia antes da chegada dos Indo-Europeus Sobre a problemaacutetica do nome dos povos da Anatoacutelia cf Galhano 2012 4-6
4 Horst Klengel (1998) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita das aumlltere Reich (ateacute Telipinu) das ldquomittlererdquo Reich (de Taḫurwaili ateacute Tudḫaliya II) e das neue Reich (Groszligreichszeit) (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II) Tambeacutem Harry Hoffner (2009 xi) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita Old Kingdom (de c 1600 a c 1400 ie ateacute Muwattalli I) Early New Kingdom (ldquoMiddle Kingdomrdquo) (de Tudḫaliya I (II) ateacute Tudḫaliya II (III)) e New Kingdom (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II)
5 Trevor Bryce (2005 6) segue esta periodizaccedilatildeo Segundo Gary Beckman laquo[] there was no coherent Middle Kingdom period of Hittite history nor an abrupt transition to the Empire Rather a single royal family ndash or perhaps clan ndash ruled Ḫatti from start to finishraquo (Beckman 2007 110) As datas indicadas no presente texto satildeo todas aC razatildeo para se dispensar esta elucidaccedilatildeo em referecircncias posteriores
109
Joatildeo Paulo Galhano
pelo menos ateacute Tudḫaliya IV quando o impeacuterio hitita estaacute ainda plenamente vigoroso
1 Poliacutetica e etnicidade
O local da futura Ḫattuša aparece com vestiacutegios de ocupaccedilatildeo humana pelo menos desde meados do III mileacutenio a par de outros pequenos reinos da Anatoacutelia central junto do rio posteriormente conhecido pelos Hititas por Maraššantiya o Haacutelis dos Gregos Ainda antes da viragem para o segundo mileacutenio teratildeo chegado agrave Anatoacutelia grupos populacionais Luvitas Palaiacutetas e Nesitas todos de matriz linguiacutestica indo-europeia6 Esta primeira incorporaccedilatildeo de elementos indo-europeus numa provaacutevel matriz autoacutectone hatiana teraacute produzido uma primeira amaacutelgama cultural mais por adiccedilatildeo do que por efetiva fusatildeo cultural dadas as persistecircncias linguiacutesticas natildeo indo-europeias no Ḫatti dos seacuteculos posteriores No periacuteodo do estabelecimento de feitorias assiacuterias na zona leste da Anatoacutelia7 nos primeiros seacuteculos do II mileacutenio nota-se uma forte compo-nente eacutetnica indo-europeia em Kaneš8 uma das mais importantes feitorias de comerciantes assiacuterios poreacutem nesse mesmo periacuteodo poderatildeo ter logo surgido elementos hurritas na Anatoacutelia central9
A incorporaccedilatildeo de populaccedilotildees hurritas na aacuterea anatoacutelica embora resul-tando inicialmente muito possivelmente das viagens de sacerdotes e adivinhos hurritas10 teve como causa importante a deportaccedilatildeo de tropas derrotadas nos confrontos militares posteriores tornando a guerra num importante processo de hurritizaccedilatildeo daquela aacuterea A primeira unificaccedilatildeo poliacutetica do Ḫatti protago-nizada por Pitḫana e Anitta em torno de Kaneš bem como o fim da maior parte das feitorias assiacuterias poderatildeo ter sido causadas precisamente pela intervenccedilatildeo
6 Klengel 1998 20 Bryce 2005 10-147 Designa-se laquofeitorias assiacuteriasraquo o que surge habitualmente denominado laquocoloacutenias assiacuteriasraquo
seguindo uma justa sugestatildeo de Maria de Lurdes Palma no decurso da primeira sessatildeo do coloacutequio Arqueologias de Impeacuterio em 26 de novembro de 2010 Em alematildeo eacute usada a designaccedilatildeo Handelsniederlassungen (Klengel 1998 21 ss)
8 Klengel 1998 24 laquoErste Hinweise auf die Anwesenheit von Bewohnern mit einer indoeuropaumlischen Sprache stammen vor allem aus Kaniš das mit dem in hethitischen Texten bezeugten Neša gleichgesetzt werden darfraquo Natildeo nos referimos aqui ao aporte hurrita nem agrave tese controversa de a liacutengua hurrita poder pertencer agrave famiacutelia indo-europeia Ilse Wegner por exemplo designa a liacutengua hurrita e a liacutengua do Urartu esta aparentada com a primeira de laquoldquoisoliertenrdquo Sprachenraquo (cf Wegner 2007 35)
9 Collins 2007 31-32 Bryce 2005 15 Mogens Trolle Larsen data o aparecimento da cidade--estado de Kaneš c 2250 (Larsen 2015 xi) de acordo com Gojko Barjamovic laquowhen and how Assyrian trade in Anatolia began is lost in time Direct textual evidence goes back to the early years of the reign of king Ikunum (1934-1921 BC) but a network of Assyrian trading colonies in Anatolia may have been established generations earlierraquo (Barjamovic 2011 1)
10 Bryce 2005 18
110
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
de elementos populacionais hurritas do sudoeste11 cedo se estabelecendo a tensatildeo hurro-hitita em territoacuterio anatoacutelico12 Ḫattušili I cuja orientaccedilatildeo poliacutetica levaria a expansatildeo hitita para o norte da Siacuteria13 estaria tambeacutem condenado ao confronto com os Hurritas do Mitanni designadamente em torno de Uršu En-quanto os esforccedilos militares hititas estavam concentrados na zona de Arzawa os Hurritas atacaram a Anatoacutelia deixando incoacutelume apenas a cidade de Ḫattuša14 Em resposta Ḫattušili I avanccedilou militarmente para leste e chegou mesmo a atravessar o Eufrates seguindo-se o saque de despojos de guerra para Ḫattuša sem ser conseguido um domiacutenio permanente sobre essas regiotildees A guerra surge tambeacutem neste caso como elemento propiciador do contacto eacutetnico entre Hur-ritas e anatoacutelicos15
Nesta primeira fase da histoacuteria hitita antes de Tudḫaliya I o conviacutevio com culturas natildeo anatoacutelicas natildeo se limitaria ao Mitanni e ao norte da Siacuteria dado que Muršili I legiacutetimo sucessor de Ḫattušili I poria fim agrave dinastia de Ham-murabi com a breve conquista de Babiloacutenia em 153116 Este avanccedilo militar pode bem ter tido a ajuda dos futuros governantes babiloacutenicos no acircmbito de uma estrateacutegia de alianccedila laquointernacionalraquo de Muršili I com os Cassitas motivada pela ameaccedila hurrita17 Durante a governaccedilatildeo de Telipinu (c 1510-1490) recomeccedilam as expediccedilotildees contra as proximidades do receacutem-criado reino do Kizzuwatna em Ḫaššuwa Zizzilipa e Lawazantiya18 Esta incursatildeo militar natildeo daria lugar agrave invasatildeo do Kizzuwatna pretendendo-se evitar novas hostilidades do Mitanni Em todo o caso as movimentaccedilotildees populacionais de semi-noacutemadas entre o Kiz-zuwatna e o Ḫatti continuaram apoacutes a morte de Telipinu o que pode deduzir-se a partir do tratado estabelecido entre um dos monarcas hititas posteriores a Telipinu (talvez Ḫantili II) e Paddatiššu rei do Kizzuwatna19 A integraccedilatildeo de elementos eacutetnicos hurritas na Anatoacutelia pode assim ter ocorrido tambeacutem na ausecircncia de guerra
11 Bryce 2005 6112 Cf Beckman 2007 109-10 laquoThe origins of the Old Kingdom and the process of its
consolidation remain obscure to us but it may now be recognized that Luwian and Hurrian influence was already present to a significant degree in the early Hittite state We must therefore abandon any remnants of the view that a pristine Indo-European culture was gradually ldquoOrientalizedrdquo in early Anatolia At least during the period covered by the available texts Ḫatti was always a multicultural civilizationraquo
13 Klengel 1998 4414 CTH 4 Anais de Ḫattušili I obv i 24-26 (Carreira 1999 48) CTH refere-se agrave numeraccedilatildeo
dos textos anatoacutelicos seguida em Laroche 197115 Carreira 2009 1416 Eder-Renger 2007 6717 CTH 19 Edicto Constitucional de Telipinu i 28 e ss (Carreira 1999 55) Bryce 2005 99
cf Klengel 1998 64 e ss18 Klengel 1998 79 Bryce 2005 10419 CTH 26 (KUB 341 17-20) trad em Liverani 2001 66-67 tambeacutem em Beckman-Hoffner
1999 11 e ss
111
Joatildeo Paulo Galhano
A conquista hitita de Alepo iniciada por Ḫattušili I e concluiacuteda por Muršili I provocou a desagregaccedilatildeo das estruturas de poder no norte da Siacuteria facto que teraacute potenciado a infiltraccedilatildeo de Hurritas nesse espaccedilo territorial travada apenas com o avanccedilo de Tutmeacutes I ateacute ao Eufrates A interrupccedilatildeo desta poliacutetica de expansatildeo egiacutepcia durante o reinado de Hatchepsut permitiria uma grande expansatildeo mitanniana para oeste permitindo que Alepo se tornasse um reino vassalo do Mitanni de Parrattarna20 Os avanccedilos militares egiacutepcios na aacuterea do Mitanni criaram condiccedilotildees para que Zidanta II (ou Ḫuzziya II) estabelecessem um pacto hitito-egiacutepcio dado que aqueles avanccedilos militares se mostravam uacuteteis para conter a ameaccedila hurrita no norte da Siacuteria e apenas vagamente perigosos para pocircr em crise o territoacuterio anatoacutelio
Com Tudḫaliya I inicia-se um novo periacuteodo na histoacuteria poliacutetica do Ḫatti essencialmente marcado pelo conflito aberto com os reinos vizinhos da Anatoacutelia do Bronze Recente assim se preparando o periacuteodo imperial hitita de Šuppiluliuma I meio seacuteculo mais tarde Nesta fase observa-se jaacute uma grande presenccedila hurrita nos assuntos poliacuteticos hititas nomeadamente aquando da que-rela sucessoacuteria e da rebeliatildeo de Muwa bastante apoiada militarmente pelos Hur-ritas do Mitanni21 A hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia tinha jaacute atingido um tal estado de maturidade que tornava os grupos dominantes da sociedade hitita permeaacuteveis agrave influecircncia hurrita No reinado de Tudḫaliya I o esforccedilo de guerra a oeste contra a Confederaccedilatildeo de Aššuwa enfraqueceu as fronteiras hititas a norte e a leste po-tenciando a inimizade do reino de Išuwa um territoacuterio laquotampatildeoraquo entre o Ḫatti e o Mitanni As campanhas militares de Tudḫaliya I naquele reino bem como no norte da Siacuteria facilmente teratildeo permitido a integraccedilatildeo de novos sujeitos hurritas na Anatoacutelia Aliaacutes a hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia ocorrida apoacutes Tudḫaliya I ocorre tambeacutem no espaccedilo linguiacutestico e religioso22
Jaacute com Arnuwanda I no trono hitita o novo rei do Mitanni tentou domi-nar novamente o norte da Siacuteria Poreacutem a situaccedilatildeo geopoliacutetica incluiacutea agora o interesse egiacutepcio de Tutmeacutes IV nessa regiatildeo Estabelecer-se-ia entatildeo um acordo mitano-egiacutepcio resultando na divisatildeo da Siacuteria em duas zonas de influecircncia a norte de Qadeš do Amurru e de Ugarit a intervenccedilatildeo seria hurrita ficando os territoacuterios a sul sob alccedilada egiacutepcia Tal acabaria por reforccedilar a presenccedila poliacutetica e consequentemente eacutetnica hurrita no norte da Siacuteria A habilidade poliacutetica e
20 Bryce 2005 116-1721 Bryce 2005 12122 Watkins 2001 51 laquoHittite religion and the pantheon underwent a profound Hurritization
from the Middle Hittite period onwards and the language played a major role in ritual and cult with numerous loanwords of varying degrees of assimilationraquo Klengel 1998 113 laquoDurch die enge Verbindung mit Kizzuwatna wurde zweifellos auch der Einfluszlig hurritischer Kultur auf Ḫatti verstaumlrkt der sich vielleicht auch im hurritischen Namen der Gemahlin des Tutḫalija Nikkalmati [] in den Namen spaumlterer Koumlniginnen sowie auch Zweitnamen der Groszligkoumlnige zeigtraquo
112
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
diplomaacutetica de Šuppiluliuma I (c 135550-1320) daria expressatildeo concreta ao imperialismo hitita cuja maior expansatildeo passaria pela inclusatildeo de territoacuterios mitannianos no Ḫatti Aliaacutes Šuppiluliuma I alimentou dissensotildees internas no Mitanni e aliou-se agrave Babiloacutenia cassita por meio do seu casamento com uma filha de Burnaburiaš II com o objetivo uacuteltimo de derrotar aquele reino As con-quistas de Šuppiluliuma I na primeira campanha siacuteria incliuriam Alepo Mukiš Niya Araḫtu Qatna e Nuhašše (a norte de Aba apenas ficaria por conquistar Karkemiš)23 Seguindo a poliacutetica de Tudḫaliya I Šuppiluliuma I deportou as famiacutelias reais dos conquistados para Ḫattuša inscrevendo a cultura dos venci-dos no centro poliacutetico do Ḫatti vencidos esses que vinham de aacutereas fortemente hurritizadas inclusive do proacuteprio Mitanni
Soacute na segunda campanha siacuteria tambeacutem conhecida como Segunda Guerra Siacuteria ou Guerra Hurrita Šuppiluliuma I conseguiria submeter de vez o Mitanni e conquistar definitivamente Karkemiš A profundidade da hurritizaccedilatildeo neste momento histoacuterico do Ḫatti pode ser exemplarmente observada no facto de Piyaššili filho de Šuppiluliuma I indicado como vice-rei em Karkemiš ter adotado o nome hurrita Šarri-Kušuḫ ou ainda no facto de Šuppiluliuma I ter deixado os templos de Kubaba e da divindade LAMMA intactos apoacutes a conquista de Karkemiš se a primeira deusa originaacuteria da Alta Mesopotacircmia era cultuada na Anatoacutelia desde o Reino Antigo a segunda era uma divindade tipicamente hurrita24 com ocorrecircncia na mitologia do Ciclo de Kumarbi ambas convivendo agora tanto em Karkemiš como em Ḫattuša A fusatildeo eacutetnica hurro-hitita estava jaacute convertida em cultura siro-anatoacutelica de variada composiccedilatildeo
As vice-realezas criadas por Šuppiluliuma I em Alepo e Karkemiš ambas governadas por filhos de Šuppiluliuma I Telipinu na primeira e Šarri-Kušuḫ na segunda incluiacuteam tambeacutem a direccedilatildeo religiosa tarefa igualmente desempenhada por Telipinu nos mais importantes centros religiosos da Siacuteria25 A instituiccedilatildeo da vice-realeza surge assim como instrumento de permanecircncia da cultura hitita fora da Anatoacutelia e como porta de entrada da cultura hurrita no poder hitita Ou seja a proacutepria vice-realeza hitita teraacute hurritizado a Anatoacutelia
O reinado de Muršili II (c 1318-1290) para aleacutem dos esforccedilos militares a oeste associados agrave continuidade da poliacutetica deportacional seguida desde Tudḫaliya I26 ficou marcado pelo caso de Tawannanna a uacuteltima esposa de Šuppiluliuma I que permanecia como tawannanna em exerciacutecio ainda no reinado daquele soberano
23 Bryce 2005 16124 Hoffner 1998 111 Note-se poreacutem que a divindade dLAMMA era hurrita mas de origem
mesopotacircmica25 Bryce 2005 18826 Cf por exemplo relativamente agrave populaccedilatildeo de Katḫaituwa CTH 61 Anais Completos de
Mursili II Ano 2 (Carreira 1999 75)
113
Joatildeo Paulo Galhano
sendo simultaneamente sacerdotisa-šiwanzanni27 A acusaccedilatildeo de Tawannanna de introduzir divindades simultaneamente babiloacutenicas e hurritas em Ḫattuša no caso a divindade LAMMA cujo templo de Karkemiš fora poupado por Šuppiluliuma I aquando da Guerra Hurrita mostra bem como a hurritizaccedilatildeo do espaccedilo hitita chegara jaacute ao acircmago do poder poliacutetico28 Aliaacutes a confirmaccedilatildeo da elevada hurritizaccedilatildeo do Ḫatti no tempo de Muršili II vem logo a seguir com o seu casamento com Tanu-ḫepa uma princesa de provaacutevel origem hurrita cujo nome se relaciona com a paredra do deus hurrita Tešub Ḫebat
Tambeacutem o futuro Ḫattušili III ainda enquanto dirigente militar na Siacuteria se uniria agrave hurrita Puduḫepa na cidade kizzuwatniana de Lawazantiya sob a eacutegide da deusa mesopotacircmica Ištar29 um verdadeiro siacutembolo do conuacutebio eacutetnico e cultural do Ḫatti imperial30 Puduḫepa cujo nome tambeacutem parece remeter para a deusa hurrita Ḫebat ordenou a recoleccedilatildeo e organizaccedilatildeo de textos religiosos do impeacuterio tendo propiciado uma profunda revisatildeo dos rituais e das cerimoacutenias hititas ou agora melhor designadas hurro-hititas O programa religioso de Puduḫepa teraacute mesmo incluiacutedo a recitaccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi perante fun-cionaacuterios do palaacutecio e dos templos de Ḫattuša31 A assimilaccedilatildeo de divindades hurritas no panteatildeo hitita dava lugar a diversos processos de sincretismo sendo exemplo a identificaccedilatildeo da hurrita Ḫebat com a hatiana Deusa Sol de Arinna32
O impeacuterio hitita teria o seu uacuteltimo momento de gloacuteria com Tudḫaliya IV nomeado rei pelo seu pai ainda em vida A predominacircncia hurro-hitita na
27 Friedrich 1991 195 sv indica a traduccedilatildeo laquoGottesmuterraquo assim como Bryce 2005 447 n 71 propotildee a traduccedilatildeo laquomother of the godraquo Tawannanna seria assim sacerdotisa da deusa matildee hitita
28 Cf CTH 70 (KUB 144 ii 3ndash12) Muršili II Sobre o Caso Tawannanna laquoOacute deuses natildeo vedes como ela [Tawannanna] transformou a casa do meu pai na lsquocasa de pedrarsquo [ie num mausoleacuteu] do Deus Tutelar [LAMMA] e a lsquocasa de pedrarsquo do deus Algumas coisas ela trouxe da Terra de Šanḫara [ie de Babiloacutenia] Outras no Ḫatti [hellip] trouxe para a populaccedila Ela natildeo deixou nadahellip A casa do meu pai ela destruiuraquo (apud Bryce 2005 208) Eacute notaacutevel que Muršili II se refira agrave divindade LAMMA como uma divindade da laquoTerra de Šanḫararaquo (Babiloacutenia) a repulsa de Muršili II dirige-se agrave divindade por ser babiloacutenica e natildeo hurrita Tal opccedilatildeo revela o quatildeo a cultura hurrita estava jaacute arraigada na Anatoacutelia a ponto de a natureza tambeacutem hurrita de LAMMA ter de ser ignorada por Muršili para que o efeito poliacutetico desejado fosse obtido o afastamento de Tawannana
29 Cf CTH 81 Apologia de Ḫattušili sect 9 (Carreira 1999 138-39)30 Ḫattušili III e Puduḫepa surgem representados no monumento de Fraktin sendo
Puduḫepa aiacute designada por laquofilha do paiacutes de Kizzuwatna amada pelos deusesraquo (cf Yigit 2016 61-62) laquoThe Fraktin monument [] which has figures and hieroglyph inscriptions on the rock wall is 1 km from the Zamantı River southeast of the Develi dates back to the period where the Hittite Kingdom was at its strongest period and was under the greatest Hurrian influence The monument describes king Hattusili III who lived in the 13th century BC and his wife Puduhepe was the most important factor in the spread of Hurrian culture over the Hittite landsraquo (Yigit 2016 61-62)
31 Bryce 2002 22832 Cf CTH 384 Oraccedilatildeo de Puduḫepa agrave Deusa Sol de Arinna (Pritchard 1969 393)
114
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
cultura anatoacutelica com integraccedilatildeo de alguns elementos mesopotacircmicos se pode ser exemplificada pelo facto de o antepenuacuteltimo rei hitita ser simultaneamente sacerdote de Ištar e do Deus Tempestade de Nerik tem o seu maacuteximo expoente em Yazılıkaya o santuaacuterio ao ar livre que existindo desde o iniacutecio do Reino Antigo atinge o seu maior desenvolvimento neste periacuteodo O panteatildeo hurrita surge aiacute como o panteatildeo hitita por excelecircncia com a tripla representaccedilatildeo de Tudḫaliya IV junto ao seu deus patrono Šarruma o laquodeus da montanharaquo filho de Tešub e Ḫebat as duas divindades hurritas supremas O cortejo de divindades hurritas representado em Yazilikaya concretiza plenamente o programa religio-so iniciado por Puduḫepa e Ḫattušili III
Apoacutes o colapso do impeacuterio hitita e do abandono progressivo de Ḫattuša no final do seacutec XIII33 para aleacutem das persistecircncias poliacutetico-hititas em meio cultural hurrita como se verificou por exemplo em Karkemiš a heranccedila cultural a que agrave falta de melhor termo se pode chamar hurro-hitita persistiu nalguns reinos neo-hititas Em Tabal zona de forte influecircncia eacutetnica luvita tambeacutem foi cul-tuada a deusa Kubaba cujo principal centro de culto se localizou em Karkemiš natildeo obstante a sua origem alti-mesopotacircmica e o seu culto anatoacutelico no periacuteodo inicial do reino hitita
2 Da desordem agrave concoacuterdia
Boa parte da mitologia hitita mais antiga estaacute embutida em rituais destinados a superar momentos de crise atraveacutes da repeticcedilatildeo ritual de um acontecimento primordial entatildeo invocado um mugawar ou entatildeo enquadra-se em festivais religiosos do Estado hitita de que eacute exemplo o Mito de Illuyanka O mito do Desaparecimento de Telipinu34 pode ser considerado paradigma dos mitos de divindades ausentes Iniciando-se com o desaparecimento da divindade por razotildees indeterminadas segue-se com a descriccedilatildeo da interrupccedilatildeo do curso normal da natureza provocada pela ausecircncia do deus A repeticcedilatildeo ritualizada associada ao mugawar traz de novo o deus e com ele o restabelecimento da ordem natural das coisas A ausecircncia de Telipinu provoca sofrimento natildeo apenas no plano humano mas tambeacutem na esfera divina35 O sofrimento metaforicamente
33 laquoArchaeological evidence indicates widespread devastation by fire in the capital ndash on the royal acropolis in the temples of both Upper and Lower Cities and along stretches of the fortifications This has conjured up the scenario of a royal capital succumbing all at one time to violent destruction in an all-consuming conflagration However Dr Seeher the current director of excavations at Hattusa has come to a rather less dramatic conclusion His scenario is one of gradual abandonment of the capital firstly by its royal family and leading members of the palace bureaucracy who took with them all their valuable and portable possessions including the kingdomrsquos most important official records They must have done so once it became clear that the capital was doomedraquo Bryce 2005 345
34 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu35 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 5-9 (Garciacutea Trabazo 2002 111) laquoA
115
Joatildeo Paulo Galhano
provocado pelo fumo atinge igualmente homens e deuses que ficam tatildeo sufocados nos seus altares como homens e animais o ficam nos seus habitates36
Haacute assim uma interdependecircncia no plano divino expressa no mito do Desaparecimento de Telipinu ainda que Telipinu natildeo seja colocado em niacutevel hierarquicamente superior aos outros deuses A ausecircncia da divindade revela a sua importacircncia para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio coacutesmico sobressaindo assim uma ideia de harmonia perdida quando uma das divindades se ausenta Essa mesma correlaccedilatildeo ocorre no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade37 quando sucede um desaparecimento similar ou ateacute nos mitos do Deus Tempestade de Kuliwišna38 do Deus do Escriba Pirwa39 e do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili40 A conceccedilatildeo de concoacuterdia entre deuses nos mitos de divindades ausentes que se expande para o plano humano tende assim a caracterizar o poder do ponto de vista mitoloacutegico como uma harmonia quase natildeo hieraacuterquica assente na necessidade que os deuses tecircm uns dos outros todos satildeo imprescindiacuteveis para que haja equiliacutebrio e abundacircncia no plano divino O proacuteprio facto de todos os deuses participarem no banquete organizado pelo Deus Sol41 denota a ausecircncia de rivalidade divina Tal situaccedilatildeo pode estar relacionada com a pouca especulaccedilatildeo teoloacutegica ou mesmo com a ausecircncia de uma teologia em sentido estrito nos periacuteodos anteriores a Ḫattušili III e a Puduḫepa42
A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos de divindades ausentes assume por vezes registos de complementaridade funcional reconhecendo-se uma dependecircncia da conjunccedilatildeo das divindades para obter benefiacutecios Tal sucede no passo do mito As Fiandeiras Infernais associado ao Ritual Para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio43 onde se relaciona o par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ambos fenoacutemenos celestes divinizados
neblina tomou as janelas o fumo [tomou] a casa os lenhos consumiram-se na lareira os deuses sufocaram-se [nos altares] tambeacutem as ovelhas no curral [e] as vacas sufocaram-se no estaacutebulo a ovelha abandonou o seu cordeiro e a vaca abandonou o seu viteloraquo
36 Situaccedilatildeo semelhante ocorre por exemplo no mito do Deus do Escriba Pirwa (CTH 328) (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)
37 CTH 325 Desaparecimento do deus Tempestade sect5 A i 16-21 (Hoffner 1998 21)38 CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108)39 CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa KUB 3332 ii 5rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990
107) Situaccedilatildeo semelhante se observa no mito Anzili e Zukki (CTH 333) com a diferenccedila que a desordem coacutesmica natildeo eacute provocada pelo desaparecimento de um deus mas causada pela irritaccedilatildeo de Anzili e de Zukki cf Bernabeacute 1987 72 ss
40 CTH 327 O Desaparecimento do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili sect3 A iii 1-4 (Hoffner 1998 25) laquo[O Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili()] sentou-se numa cadeira-šarpas de madeira [hellip] A neblina libertou [a janela] [O fumo] libertou [a casa] O altar estava de novo em harmonia [Acima dele] os deuses estavam em harmoniaraquo cf sect8 D 10-17
41 Cf CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108) e CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa obv i 15rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)
42 Bryce 2002 14543 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio
116
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
laquolsquo[hellip] e invoquei a (deusa) Trono minha amiga lsquoNatildeo (eras) tu minha amiga do rei Proporciona-me essas aacutervores e (eu) as cortareirsquordquo E a Deusa Trono responde ao rei ldquoCorta-os corta(-os) A Deusa Sol e o Deus Tempestade proporcionaram-tosrdquoraquo44
Por vezes aquela conceccedilatildeo natildeo hieraacuterquica do poder divino daacute lugar a uma certa pusilanimidade divina como se pode observar no passo do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu em que o Deus Tempestade sente medo e anguacutestia pelo desaparecimento do Deus Lua45 Observa-se aqui a ausecircncia de uma conceccedilatildeo de poder competitivo e belicoso antes se promovendo uma certa humanizaccedilatildeo das divindades pois o Deus Tempestade surge aqui afastado de um ideal de coragem e valentia beacutelica desembocando mesmo na pusilanimidade do medo
Nas relaccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes tambeacutem haacute lugar para a superioridade de algumas entidades sempre sem recurso agrave categoria de realeza para estratificar o divino Pode ter-se Ḫannaḫanna como exemplo dessa discriminaccedilatildeo dado ser esta deusa que no mito do desaparecimento de Telipinu ordena ao Deus Tempestade que procure o deus ausente46 Concebe-se assim uma certa diferenciaccedilatildeo poliacutetica na laquosociedaderaquo divina porventura de-calcando a importacircncia poliacutetica da tawananna hitita Poreacutem a discriminaccedilatildeo positiva desta deusa parece assentar na sua natureza de sage conselheira47 A discriminaccedilatildeo de Ḫannaḫanna no meio divino evidencia tambeacutem a projeccedilatildeo das relaccedilotildees familiares de autoridade dos antepassados no campo do mito
44 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio A obv i 34-38 (Garciacutea Trabazo 2002 489) Nova referecircncia ao par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ocorre no mesmo mito em A obv ii 47-49 (Garciacutea Trabazo 2002 499) tambeacutem noutros mitos de divindades que desaparecem surgem referecircncias a outros pares divinos como por exemplo o par Deus Tempestade ndash Deusa Sol de Arinna nos fragmentos CTH 335
45 CTH 727 A Lua Caiacuteda do Ceacuteu C obv ii 10-14 (Garciacutea Trabazo 2002 261) A mesma ideia em A obv ii 16-21 Nova referecircncia ao medo e agrave anguacutestia do Deus Tempestade surge na parte ritual do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu (CTH 727 C rev iii 10rsquo-11rsquo) ainda que aqui com a possibilidade destas emoccedilotildees se referirem ao efeito das accedilotildees do Deus Tempestade no plano humano num comum momento de projeccedilatildeo das preocupaccedilotildees humanas no divino Cf Garciacutea Trabazo 2002 265
46 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 29-32 (Garciacutea Trabazo 2002 115) cf ainda CTH 324 Desaparecimento de Telipinu E obv ii 15rsquo-16rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 117) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara sect3 B ii 4-9 (Hoffner 1998 30)
47 Eg CTH 336 Mitos da deusa Inara sectsect1-2 ii 1-10 (Hoffner 1998 31) A diferenciaccedilatildeo positiva de Ḫannaḫanna enquanto conselheira saacutebia tambeacutem pode ser observada na parte final de CTH 336 (Mitos da Deusa Inara sectsect4-6 A rev 2-13 Hoffner 1998 32) laquoQuando estiveres perante o Deus Sol natildeo faccedilas de novo [hellip] tudo Tu iraacutes e encontraraacutes [hellip] Tu diraacutes [hellip] Quando o Deus Sol disser lsquoTu faz alguma coisarsquo ele diz lsquoTu [hellip]rsquo Mas se ele nada disser deixa-o estar em silecircncio()rdquo O Deus Guerra respondeu ldquoMas se eu natildeo for a lado nenhum que devo levarrdquo Ḫannaḫanna respondeu-lhe ldquoAno a ano continua a ir para campanhas militaresrdquo As trecircs crianccedilas da Serva Feminina [perguntaram] a Ḫannaḫanna ldquoEspera que devo levarrdquo [Ḫannaḫanna respondeu] ldquoIde [hellip] Natildeo vaacutes [hellip]rdquoraquo
117
Joatildeo Paulo Galhano
Aliaacutes o seu nome significa literalmente laquomatildee da matildeeraquo ou seja laquoavoacuteraquo48 tendo a sua autoridade paralelo na figura do avocirc do Deus Tempestade referido no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade49 Contudo a toacutenica dos mitos de divindades ausentes estaacute na relativa igualdade e capacidade de convivecircncia entre deuses
O caraacutecter natildeo hieraacuterquico e coletivo do poder nos mitos de divindades ausentes parece divergir da conceccedilatildeo de superioridade do Deus Tempestade no interior do panteatildeo anatoacutelico pois cedo foi considerado garante da ordem coacutesmica e supremo protetor da laquoTerra do Ḫattiraquo com o rei a desempenhar a funccedilatildeo de seu deputado na terra50 Poreacutem tal posiccedilatildeo manifestada cultualmente natildeo teve correspondecircncia mitoloacutegica com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol como mais agrave frente se discutiraacute Releva ainda que as relaccedilotildees entre deuses de acordo com os mitos de divindades ausentes excluam de todo a categoria de rei divino Mesmo em situaccedilatildeo de policefalia divina na sua essecircncia as conceccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes natildeo incluem o exclusivismo do mando
3 O deus e a serpente
A harmonia essencial dos mitos de divindades ausentes excluindo o mito do Desaparecimento do Deus Sol51 natildeo tem paralelo noutros mitos anatoacutelicos antigos No Mito de Illuyanka52 a harmonia divina daacute lugar agrave modalidade de luta entre um deus e uma forccedila maacute Em ambas as versotildees do Mito de Illuyanka o Deus Tempestade derrotado pela serpente num primeiro combate procura uma segunda oportunidade para reaver a sua superioridade beacutelica perante o terriacutevel ofiacutedio Na primeira versatildeo Inara procura a ajuda do humano Ḫupašiya e na se-gunda versatildeo o Deus Tempestade recorre a uma humana agrave laquofilha de um pobreraquo para engendrar um filho que o ajudaraacute a reaver os olhos e o coraccedilatildeo que perdeu no primeiro combate Em ambas as versotildees se pode presenciar uma modalidade de luta de recuperaccedilatildeo do poder em ambas se instrumentalizando um humano como estrateacutegia de recuperaccedilatildeo do poder No entanto esta instrumentalizaccedilatildeo varia da primeira para a segunda versatildeo do mito na primeira eacute uma deusa que usa um humano Ḫupašiya na segunda um deus socorre-se de uma mulher a laquofilha de um pobreraquo No primeiro caso o divino feminino instrumentaliza o humano masculino no segundo caso o divino masculino instrumentaliza o feminino humano
48 Cf Friedrich 1991 50 sv ḫanna-49 Cf CTH 325 Desaparecimento do Deus Tempestade sect9 A i 34-36 (Hoffner 1998 21)50 Bryce 2002 143 cf Gurney 1954 14051 CTH 32352 CTH 321
118
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
A ausecircncia de tensatildeo no exerciacutecio do poder revelada nos mitos de divin-dades ausentes transforma-se assim numa conceccedilatildeo de poder repetidamente ameaccedilado e recuperado conceccedilatildeo que decorreraacute da ligaccedilatildeo deste mito ao Purulli um dos mais importantes festivais anuais do calendaacuterio hitita Tatildeo im-portante que Muršili abandonou uma campanha militar para o celebrar tendo como propoacutesito revigorar as terras depois do duro inverno e assim assegurar a persistecircncia da chuva necessaacuteria agraves culturas Desta forma o combate ritual entre o Deus Tempestade e Illuyanka cujo nome parece significar laquoserpenteraquo53 sim-boliza o triunfo da vida sobre a morte da fertilidade sobre a seca ie a vitoacuteria do bem sobre o mal
Da perspetiva de conceccedilatildeo de poder a derrota inicial do Deus Tempestade natildeo implica ainda um problema de obtenccedilatildeo de realeza divina dada a diferente categoria dos opositores por um lado um deus por outro uma forccedila hostil O motivo inicial da luta poderaacute antes ser interpretado como uma luta pelo controlo das aacuteguas necessaacuterias agrave agricultura em que o Deus Tempestade domina as aacuteguas pluviais e a serpente as aacuteguas subterracircneas ateacute porque o ritual associado ao mito se desenvolveria junto a uma fonte sendo assim uma projeccedilatildeo na conceccedilatildeo do divino da luta humana pela aacutegua a fundamental preocupaccedilatildeo do festival Pu-rulli54 Em essecircncia o Mito de Illuyanka constitui uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo do poder com preponderacircncia da divindade em detrimento da forccedila maacute Natildeo deixa de ser significativo que o nome do opositor do deus Illuyanka seja um lexema de significaccedilatildeo geral indicando apenas o seu ofidiomorfismo ao passo que o nome hitito-luvita do Deus Tempestade Tarḫunza signifique laquoo poderosoraquo55 Contudo a posiccedilatildeo do Deus Tempestade perante os seus pares varia de acordo com o seu sucesso perante Illuyanka Apoacutes a derrota inicial na primeira versatildeo do mito o Deus Tempestade parece ser abandonado pelos restantes deuses e assim conta apenas com a fidelidade de sua filha Inara56 Poreacutem apoacutes vencer a serpente restabelece-se a sua autoridade e a sua reputaccedilatildeo de deus capaz e poderoso57 numa situaccedilatildeo semelhante ao reconhecimento do poder de David pelo Deus dos Hebreus apoacutes haver consolidado a sua soberania poliacutetica58
O opositor do Deus Tempestade tambeacutem natildeo aparece caracterizado como especialmente dotado de poder Na primeira versatildeo do mito Illuyanka
53 Garciacutea Trabazo 2002 85 n 2754 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 40-41 Macqueen 1959 17555 O nome Tarḫunt- ou Tarḫu(na) deriva da raiacutez tarḫ- que significa laquopoderraquo Garciacutea Trabazo
2002 37 No Mito de Illuyanka ocorrem os sumerogramas dU e dIM(-)56 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 41 Cf CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 11-14 (Garciacutea
Trabazo 2002 86-87)57 CTH 321 Mito de Illuyanka B obv i 17rsquo-18rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 89) laquoChegou o Deus
Tempestade e matou a serpente E os deuses estavam com eleraquo58 2Cr 11 laquoSalomatildeo filho de David consolidou-se no seu reino O Senhor seu Deus estava
com ele e engrandeceu-o no poderraquo
119
Joatildeo Paulo Galhano
eacute imobilizada pela accedilatildeo do humano Ḫupašiya natildeo por algueacutem especialmente poderoso e em consequecircncia da sua gulodice Tal como noutras aacutereas mi-toloacutegicas a serpente eacute vista como um glutatildeo desfavorecido pela estupidez agrave semelhanccedila do que conta Opiano na Halieutica59 acerca de como Patilde de Coacuterico enganou Tiacutefon oferecendo-lhe um banquete de peixe assim conseguindo que o monstro saiacutesse do seu covil para depois ser atacado por Zeus60 A estupidez dos opositores ao poder contudo tem registo tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas designadamente no que diz respeito a Ullikummi e a Ḫedammu como teremos oportunidade de verificar
Natildeo deixa de ser notaacutevel que a luta entre o Deus Tempestade e Illuyanka esteja estruturada em torno de dois princiacutepios um celeste representado pelo Deus Tempestade e um ctoacutenico representado pela serpente oposiccedilatildeo esta que apareceraacute tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas ainda que travestida de dinastias reinantes em competiccedilatildeo Ainda que o Mito de Illuyanka centre a sua atenccedilatildeo sobre o Deus Tempestade natildeo pode negligenciar-se o papel de Inara que segundo pesquisas recentes natildeo teria um papel subordinado na mitologia associada ao Purulli61 Esta posiccedilatildeo reforccedila a ideia de que o poder nos mitos anatoacutelicos antigos eacute tendencialmente horizontalizado ainda que perturbado por forccedilas maacutes Ainda assim natildeo possui aquela estrutura verticalizada das narrativas hurritas importadas para o Ḫatti
4 Realeza verticalizaccedilatildeo e ciclo complexo
Diversos textos em liacutengua hurrita foram incorporados na cultura hitita designadamente fragmentos de pressaacutegios textos histoacutericos e histoacuterico-mitoloacutegicos diversos rituais listas de divindades e outros textos62 Concomitantemente com a hurritizaccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica da Anatoacutelia diversas narrativas mitoloacutegicas hurritas foram integradas na matriz hitita provocando fenoacutemenos de adiccedilatildeo assimilaccedilatildeo e sincretismo miacutetico e religioso O mais importante aporte tem hoje o nome de Ciclo de Kumarbi Composto por cinco laquocantosraquo mais um ndash O Canto de Kumarbi63 O Canto do Deus LAMMA64 O
59 Opp H 315-2560 Bernabeacute 1987 32 A Bernabeacute aponta ainda a semelhanccedila de Illuyanka com Tiacutefon em
Apolodoro (163) que prova os laquofrutos efeacutemerosraquo e por isso fica debilitado61 Hoffner 1998 1062 Dentre os textos hurritas mencionados avultam os rituais designadamente da seacuterie itkalzi
e itkaḫḫe bem com o importante Ritual de Allaituraḫi (CTH 780) este uacuteltimo existente tambeacutem em versatildeo hitita (cf Wegner 2007 30 e ss) cf CTH 774-791
63 CTH 34464 CTH 343
120
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
Canto de Prata65 O Canto de Ḫedammu66 e o Canto de Ullikummi67 a que se adicionou recentemente O Canto da Libertaccedilatildeo68 ndash tem por tema principal a ascensatildeo de Tešub agrave realeza divina seguida da sua resistecircncia aos ataques que sofre por parte de vaacuterios opositores uma boa parte conduzida por Kumarbi O tiacutetulo dado a todo o ciclo reflete o facto de a maior parte das narrativas que o integram constituirem a estoacuteria do ressentimento de Kumarbi perante a perda da realeza ganha por Tešub logo no Canto de Kumarbi O ressentimento cujo importantiacutessimo papel histoacuterico foi jaacute evidenciado por Marc Ferro69 assume o papel de motor em todo O Ciclo de Kumarbi
A introduccedilatildeo do tema da competiccedilatildeo pelo lugar de rei entre os deuses surge como um dos mais importantes contributos hurritas para a mitologia anatoacutelica o que pode bem ter sido mais-valia para os reis hititas visto pro-mover a proacutepria instituiccedilatildeo da realeza humana atraveacutes da congeacutenere divina70 No Canto de Kumarbi estabelece-se uma sucessatildeo real divina iniciada por Alalu seguida por Anu e Kumarbi e finalizada com Tešub Diferentemente de toda a mitologia hitita antiga as narrativas mitoloacutegicas hurritas introduzem a ideia de geraccedilotildees de deuses que governam uns apoacutes os outros com a particu-laridade das geraccedilotildees mais novas de deuses lutarem com as mais velhas pela obtenccedilatildeo do assento real
A sucessatildeo real do Canto de Kumarbi narra como o poder andou de matildeo em matildeo ateacute ser finalmente estabelecido por Tešub dando iniacutecio a uma nova era divina com a particularidade de a instabilidade do poder antes de Tešub o conseguir derivar da tensatildeo entre duas linhagens de soberanos com Alalu e Kumarbi a representar uma famiacutelia e Anu e Tešub a representar outra Assim a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas passou tambeacutem pela importa-ccedilatildeo do tema da rivalidade familiar entre divindades diferentemente do que se passa por exemplo no Mito de Illuyanka em que a oposiccedilatildeo natildeo eacute entre famiacutelias divinas mas sim entre um princiacutepio de bem o Deus Tempestade e outro de mal Illuyanka
As duas famiacutelias divinas em competiccedilatildeo representam as duas esferas baacutesi-cas da mitologia hurrita o mundo inferior e o domiacutenio celeste Se o proacuteprio nome Anu significa laquoceacuteuraquo quando Alalu eacute afastado do trono foge para a laquoTerra Escuraraquo E Anu quando tenta escapar a Kumarbi dirige-se para o ceacuteu71 Esta
65 CTH 36466 CTH 34867 CTH 34568 Recente nuacutemero CTH 789 A ediccedilatildeo standard do texto eacute de Neu 1996 Ateacute 1971 apenas o
Canto de Kumarbi o Canto do Deus LAMMA e o Canto de Ullikummi eram considerados partes integrantes do Ciclo de Kumarbi (Hoffner 1998 40)
69 Ferro 200970 Bryce 2002 22871 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 12-14 18-22 (Garciacutea Trabazo 2002 163-65)
121
Joatildeo Paulo Galhano
rivalidade entre aquelas duas esferas o ceacuteu e o mundo inferior ganha relevacircncia na sua continuidade no conjunto de figuras miacuteticas que alinham por um lado ou por outro ao longo de todo o Ciclo de Kumarbi Alalu Mukišanu (vizir de Kumarbi) o Grande Deus Mar Impaluri (vizir do Deus Mar) Šertapšuruḫi (filha do Deus Mar) Ḫedammu Daganzipa (Terra) Prata Ullikummi as Di-vindades Irširra e provavelmente Upelluri alinham pelo lado de Kumarbi ao passo que Anu TašmišuŠuwaliyatta Ḫebat Takiti (serva de Ḫebat) ŠawoškaIštar os touros divinos Šerrišu e Ḫurri o Deus Sol o Deus Lua o Deus Guerra Aštabi o rio Aranzaḫ (irmatildeo de Tešub) o deus montanha Kanzura KAZAL e NAMḪEacute estatildeo do lado de Tešub72 Este conflito de base familiar ou dinaacutestica pode evidenciar o sentido inicial de um anterior mito antes de chegar agrave forma hurrita literariamente elaborada que chegou aos Hititas dado que este pode bem ser vestiacutegio de um anterior mito ritualizado cuja estrutura central passaria pela oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e as do mundo superior com o triunfo destas uacuteltimas73
A importacircncia das ideias de linhagem e de famiacutelia no Ciclo de Kumarbi pode ser observada por exemplo no Canto de Prata quando Prata se sente enver-gonhado por ser reputado oacuterfatildeo74 Nesse episoacutedio sublinha-se a importacircncia da paternidade e da linhagem familiar para a afirmaccedilatildeo laquosocialraquo do deus no mundo divino refletindo essa mesma relevacircncia no plano humano atraveacutes do habitual fenoacutemeno de projeccedilatildeo mitoloacutegica de inquietaccedilotildees terrenas Aliaacutes neste passo o poder paternal parece sobrepor-se ao poder real pois a matildee de Prata sublinha o temor reverencial que o filho deve ter perante o seu pai mas natildeo perante Tešub o rei em exerciacutecio Concomitantemente no Ciclo de Kumarbi a preponderacircncia das relaccedilotildees familiares com especial ecircnfase no papel do pai observa-se ainda
laquoDurante nove anos contados Alalu foi rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Alalu vencendo-o a ele a Alalu E este fugiu diante dele e para baixo da Terra Escura [hellip] Durante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteuraquo
72 Hoffner 1998 4173 Bryce 2002 22574 CTH 364 Canto de Prata sectsect 32-33 (Hoffner 1998 49) laquoPrata [bateu] a um rapaz oacuterfatildeo
[com] um pau O rapaz oacuterfatildeo respondeu mal a Prata ldquoOacute Prata porque [nos estaacutes a bater] Porque nos bates Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutesrdquo [Agora quando Prata ouviu estas palavras] ele comeccedilou a chorar Chorando Prata foi para sua casa Prata comeccedilou por repetir as palavras a sua matildee ldquoOs rapazes a quem eu bati em frente do portatildeo desafiaram-me Eu bati a um rapaz com um pau e ele respondeu-me mal Ouve oacute minha matildee as palavras que o rapaz oacuterfatildeo me disse lsquoPorque [nos] estaacutes a bater [Porque nos] bates [Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutes]rsquo [hellip] [resposta da matildee de Prata] ldquo[O teu pai() eacute Kumarbi] o pai da cidade de Urkiš [Elehellip] e ele vive em Urkiš [hellip] as causas legais de todas as terras ele [satisfatoriamente] resolve() O teu irmatildeo eacute Tešub Ele eacute rei no ceacuteu E ele eacute rei na terra A tua irmatilde eacute Šawoška e ela eacute rainha em Niacutenive Tu [natildeo] deves recear nenhum [outro deus] soacute um deus [deves recear Ele (ie Kumarbi) agita] as terras inimigas e os animais selvagensraquo
122
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
no facto de no Canto de Prata Tešub medir as suas proacuteprias capacidades com as do pai de Prata apoacutes este conseguir temporariamente a realeza75 Kumarbi o pai de Prata continua a ser a medida e o termo de comparaccedilatildeo para a decisatildeo de Tešub em combater ou natildeo
Tambeacutem no Canto de Ḫedammu se pressente a importacircncia do instituto da paternidade no estabelecimento das relaccedilotildees de poder entre as divindades especialmente quando Kumarbi o rei deposto num periacuteodo em que tudo indica que Tešub estaacute no poder pretende realizar uma alianccedila poliacutetica com o Deus Mar continuando a intitular-se laquopai dos deusesraquo pretendendo manter o seu ascen-dente atraveacutes desta titulatura76 Aliaacutes Kumarbi volta a recorrer a esta titulatura no Canto de Ullikummi77 A oposiccedilatildeo de famiacutelias divinas no Ciclo de Kumarbi cada uma delas com uma alocaccedilatildeo proacutepria pode tambeacutem ser encarada como paralela ao ocorrido no Mito de Illuyanka em que o Deus Tempestade repre-senta a esfera celeste e Illuyanka o mundo inferior
O facto de no Canto de Kumarbi o poder ser sempre transmitido pela via belicosa ateacute chegar a Tešub pode tambeacutem representar mitologicamente a belicosidade do poder poliacutetico no domiacutenio hurrita ou por outro lado fazer en-tender a narrativa mitoloacutegica como meio de representaccedilatildeo do extraordinaacuterio em relaccedilatildeo agrave ordem poliacutetica humana fazendo do mito transformado em narrativa uma representaccedilatildeo do traumaacutetico com a memoacuteria coletiva a guardar o mais doloroso ou perigoso para a comunidade agrave semelhanccedila do mais fundo registo dos insucessos na memoacuteria individual um reflexo do instinto de preservaccedilatildeo Tambeacutem neste aspeto as narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas se distinguem dos mitos anatoacutelicos antigos dada a toacutenica na superaccedilatildeo da desordem (nos mitos associados a rituais do tipo mugawar) ou na vitoacuteria do bem sobre o mal (no Mito de Illuyanka) centrando os mitos hititas antigos na soluccedilatildeo para o distuacuterbio mais do que no registo do traumaacutetico
O Canto de Kumarbi assemelha-se ao Mito de Illuyanka no facto de ambos comeccedilarem por favorecer o princiacutepio ctoacutenico e acabarem por outorgar a vitoacuteria ao princiacutepio celeste A narrativa mitoloacutegica hurrita dado que apresenta Anu como um cobarde que foge do combate por si iniciado dirigindo-se para o ceacuteu na sequecircncia do que Kumarbi o traz de novo ao combate parece favorecer inicialmente a linhagem de Kumarbi mas posteriormente outorga o triunfo agrave
75 CTH 364 Canto de Prata sectsect 51-52 (Hoffner 1998 50) laquo[Tašmišu comeccedilou] por dizer a Tešub ldquoNatildeo [eacute possiacutevel()]que tu trovejes Tu [natildeo] sabes [comohellip] Na()hellip [Prata()] tornou-se rei e [agora] ele [conduz()] todas as divindades com um aguilhatildeo() de madeira de pistachordquo Tešub [comeccedilou por] responder ao seu vizir ldquoVaacute vamos e comamos [hellip] O nosso pai [Kumarbi()] natildeo derrotou [Prata() Seraacute que noacutes] agora [vamos derrotar] Pratardquoraquo
76 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 93 (Hoffner 1998 53)77 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 6 A ii 1-8 (Hoffner 1998 57)
123
Joatildeo Paulo Galhano
linhagem celeste ie a Tešub78 De igual modo no Mito de Illuyanka a serpente vence o primeiro combate com o Deus Tempestade mas este acaba por obter a vitoacuteria final O poder obtido pelo deus celeste Tešub no final da sucessatildeo real no Canto de Kumarbi surge sempre ameaccedilado por descendentes de Kumarbi Ullikummi resulta da uniatildeo sexual de Kumarbi com um rochedo Ḫedammu muito possivelmente eacute filho de Kumarbi e Šertapšuruḫi Prata descende de Kumarbi e de uma humana mortal e mesmo LAMMA pode talvez ser filho de Kumarbi79 Assim a complexidade das narrativas mitoloacutegicas hurritas natildeo parece ter paralelo nos mitos anatoacutelicos antigos com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol
Natildeo obstante a derrota inicial do deus celeste colocando em risco a sua vitoacuteria final pode constituir um paralelo entre o Mito de Illuyanka e parte do Ciclo de Kumarbi Assim como o Deus Tempestade eacute derrotado inicialmente tambeacutem Tešub no Canto de Ullikummi80 eacute derrotado por Ullikummi no pri-meiro combate entre eles
A hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas concretizou-se tambeacutem na adoccedilatildeo de mais complexas estruturas de poder agora repartido por vaacuterias instacircncias natildeo obstante a introduccedilatildeo tambeacutem hurrita da categoria de realeza divina No Canto do Deus LAMMA o poder real surge vinculado a um poder moderador concretizado em Ea o deus mesopotacircmico da sabedoria adotado pelos Hurritas do Mitanni81 Perante a arrogacircncia de LAMMA durante o seu breve reinado no ceacuteu Ea que antes o havia designado rei depotildee-no do trono divino num ato caracterizador de Ea como poder moderador da realeza um tanto agrave semelhanccedila do ugaritiano Ilu nos textos do Ciclo de Balsquolu mormente no mito da Luta Entre Balsquolu e Yammu82 Tambeacutem no Canto de Ḫedammu Ea intervecircm na refrega entre Kumarbi e Tešub advertindo-os e fazendo questatildeo de dizer que tambeacutem a ele chamam laquoreiraquo83 Poreacutem a moderaccedilatildeo exercida por
78 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 18-26 (Garciacutea Trabazo 2002 165-67) laquoDurante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteu Por detraacutes aproximou-se dele Kumarbi e agarrou Anu pelos peacutes e puxou-o para baixo desde o ceacuteu Mordeu os seus muacutesculos a sua virilidade uniu-se como o bronze com as entranhas de Kumarbiraquo
79 Cf Hoffner 1998 4180 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 40-42 e 49 (Hoffner 1998 61-63) A tabuinha que
conteria a derrota inicial de Tešub face a Ullikummi estaacute bastante fragmentada e natildeo permite uma completa leitura deste episoacutedio contudo o facto de no sect49 Tešub se preparar para novo combate com Ullikummi demonstra que o primeiro enfrentamento natildeo foi favoraacutevel ao deus celeste
81 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sectsect 6-8 A iii 1-38 (Hoffner 1998 47-48)82 KTU 11 12 KTU refere-se agrave numeraccedilatildeo dos textos ugaritianos seguida em Dietrich-Loretz-
-Sanmartiacuten 1995 Trad de KTU 11-12 em Olmo Lete 1981 157-7783 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 61-62 (Hoffner 1998 52)
124
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
Ea natildeo estaacute livre de protesto especialmente da parte de Kumarbi que decide criar Ḫedammu com o propoacutesito de derrubar o rei divino em exerciacutecio julgando assim escapar agrave anterior reprimenda de Ea dirigida a obter a conciliaccedilatildeo entre Tešub e Kumarbi84
O papel de moderador na luta pelo poder no Canto de Ḫedammu evoluiraacute para a tomada de partido por Tešub no Canto de Ullikummi Tašmišu aconselha Tešub derrotado no primeiro combate contra Ullikummi a procurar a ajuda de Ea85 que entatildeo descobre o segredo do poder de Ullikummi o apoio do seu peacute no ombro direito de Upelluri Ea e as Divindades Primevas usam entatildeo a faca de cobre primeva antes usada na separaccedilatildeo o ceacuteu da terra para arrancar Ulli-kummi do seu apoio em Upelluri86 facilitando assim o laquocaminho para o poderraquo de Tešub Poreacutem a accedilatildeo de Ea em prol de Tešub natildeo segue sem arrependimento visto que apoacutes o enfraquecimento de Ullikummi Ea entristece-se ao ver as mortes provocadas pela luta entre Tešub e o monstruoso filho de Kumarbi87
A estruturaccedilatildeo do poder nos mitos hurritas incluiu natildeo soacute a conceccedilatildeo de poderes moderadores caso de Ea mas tambeacutem de instacircncias de poderes con-selheiros como o de Šerrišu no Canto de Kumarbi que aconselha Tešub a natildeo amaldiccediloar os deuses e especialmente Ea88 A mesma instacircncia de poder con-selheiro pode ser encontrada na figura do vizir seja do rei em exerciacutecio seja de Kumarbi Quando Ullikummi se aproxima dos portotildees de Kummiya a cidade de Tešub Tašmišu irmatildeo e vizir do rei aconselha-o a pedir ajuda a Ea89 De certo modo esta ativa instacircncia conselheira dos mitos hurritas eacute paralela agrave funccedilatildeo de Ḫannaḫanna nalguns mitos de divindades ausentes90 O conselho que o poder em exerciacutecio obteacutem deriva tambeacutem em poder sancionatoacuterio quando se trata de Kumarbi Depois de este se unir a uma rocha Ullikummi acaba por nascer com a ajuda das Deusas Destino e das Deusas Matildee91 estas que para Kumarbi lhe
84 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)85 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 A ii 17-26 (Hoffner 1998 56)86 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 56-60 A iii 1-39 (Hoffner 1998 63-64)87 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 65 A iv 9-12 (Hoffner 1998 64)88 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 20 A iii 30-39 (Hoffner 1998 45) laquoO touro Šerrišu
respondeu a Tešub ldquoMeu senhor porque os estaacutes a amaldiccediloar [hellip oshellip] deuses Meu senhor porque os [estaacutes a amaldiccediloar] Porque estaacutes a amaldiccediloar tambeacutem Ea Ea ouvir-te-aacute [hellip] comhellip Natildeo eacute assim [hellip] eacute grande O mal eacute grande como a terra Poderoso() para ti [eacutehellip] [hellip] viraacute Tu natildeo seraacutes capaz de levantar [o teu()] pescoccedilo()rdquoraquo
89 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 48-49 A ii 10-19 (Hoffner 1998 62-63)90 Eg CTH 336 Mitos da Deusa Inara d) sectsect 1-2 2-12 (Hoffner 1998 31)91 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 11-12 A iii 10-18 (Hoffner 1998 57-58 para uma
traduccedilatildeo diferente Garciacutea Trabazo 2002 193-95) laquo[Ashellip] mulheres fizeram-na dar agrave luz As Deusas Destino e as Deusas Matildee [ergueram a crianccedila] e colocaram[-na] nos joelhos de Kumarbi Kumarbi comeccedilou [a divertir-se com] a crianccedila e comeccedilou por o limpar() e ele deu [agrave crianccedila()] um nome adequado Kumarbi comeccedilou por dizer para si mesmo ldquoQue nome [hei-de dar] agrave crianccedila que as Deusas Destino e as Deusas Matildee me deram Ele saiacuteu do corpo como um eixo Portanto que Ullikummi seja o seu nomeraquo (trad minha)
125
Joatildeo Paulo Galhano
deram o filho mais que a rocha donde saiu Ullikummi O ato competitoacuterio de Kumarbi tem assim sancionamento ou legitimaccedilatildeo divina
A mitologia hurrita concebe o poder tambeacutem como alianccedila de vaacuterias instacircncias Para aleacutem das intervenccedilotildees de Ea ora em prol de Tešub ao enfraquecer Ullikummi92 ora ajudando Kumarbi a libertar-se do seacutemen de Anu93 tambeacutem o banquete preparado pelo Deus Mar para Kumarbi no Canto de Ullikummi94 exemplifica o modo como o tema da alianccedila poliacutetica preside a boa parte do conflito entre Kumarbi e Tešub Jaacute o Deus Sol alinha pela facccedilatildeo de Tešub sendo o primeiro a ver Ullikummi dirige-se ao rei celeste para lhe dar conta do perigo que se aproxima apoacutes o que Tešub oferece um banquete ao Deus Sol95 fazendo do simpoacutesio o momento ideal de realizaccedilatildeo das alianccedilas poliacuteticas
A guerra promovida por Kumarbi em resultado do seu ressentimento pela perda de poder implica tambeacutem uma mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na maior parte do Ciclo de Kumarbi satildeo criados monstros ou deuses para fazer frente a Tešub Prata LAMMA Ḫedammu e Ullikummi lutam em vez de Kumarbi Pode ver-se esta situaccedilatildeo como paralela ao Mito de Illuyanka onde tambeacutem se indicia uma certa mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na primeira versatildeo deste mito o Deus Tempestade eacute ajudado por Ḫupašiya Aliaacutes a estupi-dez da serpente que se deixa enganar pela sua gulodice surge tambeacutem como paralela agrave estupidez de Ullikummi caracterizado pela cegueira e surdez uma mais-valia do ponto de vista de Kumarbi dado que nessa situaccedilatildeo fiacutesica natildeo ficaria vulneraacutevel agraves seduccedilotildees de Šawoška96 as mesmas a que Ḫedammu natildeo consegue resistir97
A conceptualizaccedilatildeo do poder nas narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas passou ainda pela introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada visiacutevel natildeo soacute no facto de o poder ser sucessivamente transmitido durante quatro geraccedilotildees de deuses em intervalos de nove anos98 mas tambeacutem na valorizaccedilatildeo da sageza dos antepassados como ocorre no Canto de Ullikummi quando Tašmišu e Tešub procuram Ea com o propoacutesito de conhecer as laquopalavras antigasraquo aquelas dos antepassados divinos e que agora se convertem em instrumentos divinatoacuterios necessaacuterios para conhecer o ponto fraco de Ullikummi99
A integraccedilatildeo da mitologia hurrita tambeacutem trouxe para solo anatoacutelico uma nova dimensatildeo de encenaccedilatildeo literaacuteria do poder Logo na abertura do Canto de Kumarbi o sentido reverencial do poder surge quase graficamente reproduzido
92 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 60-63 A iii 30-55 (Hoffner 1998 64)93 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 13 A ii 39-54 (Hoffner 1998 43)94 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 (Hoffner 1998 57)95 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner 1998 59-60)96 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 35-37 B ii 5-30 (Hoffner 1998 60-61)97 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 111 ndash 152 (Hoffner 1998 53-54)98 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 e ss (Hoffner 1998 42 e ss)99 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 e ss A ii 17 e ss ( Hoffner 1998 63)
126
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
numa cena de serviccedilo ao rei em exerciacutecio
laquoHaacute muito tempo nos primeiros anos Alalu era rei no ceacuteu Alalu estava sen-tado no trono e o pesado Anu o primeiro entre os deuses permanecia perante ele Ele inclinava-se aos peacutes dele (de Alalu) e colocava-lhe na matildeo taccedilas de bebidaraquo100
Tal como sucederaacute quando Anu estaacute no trono e Kumarbi no lugar de Anu101 a hierarquizaccedilatildeo divina tem aqui um registo literaacuterio de verdadeira encenaccedilatildeo do movimento das divindades no espaccedilo real com o ministrum que oferece bebidas ao rei subservientemente inclinado perante ele Cena similar ocorre no Canto de Ullikummi quer nas jaacute citadas cenas de banquete entre o Deus Mar e Kumarbi e entre o Deus Sol e Tešub102 quer no episoacutedio em que Šawoška e Tešub sobem de matildeos dadas ao monte Ḫazzi para observar Ullikumi numa visatildeo que faz Tešub deixar transparecer a sua ira atraveacutes das feiccedilotildees do rosto103 A encena-ccedilatildeo do sentido reverencial do poder tem ainda um peculiar episoacutedio no Canto de Ullikummi quando o vizir de Tešub Tašmišu beija trecircs vezes os joelhos e quatro vezes os tornozelos de Ea104
No iniacutecio do Canto do Deus LAMMA a encenaccedilatildeo do poder evolui mesmo para uma maior dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina quando LAMMA conse-gue ferir Šawoška no peito e fazer Tešub cair do ceacuteu
laquo[hellip] Enquanto Šawoška falava [com o seu irmatildeo Tešub] a seta de LAMMA [voou] e atravessou() Šawoška no peito Uma segunda seta de LAMMA [voou] Eles [Tešub e Šawoška] apressaram-se em direccedilatildeo ao carro para [hellip] [mas a seta de LAMMA] atravessou [hellip] de tal forma quehellip natildeo pocircde maishellip eles natildeo puderam fugir LAMMA obrigou [hellip] Ele tomou [hellip] e [hellip] atraacutes de Tešub A pedra [foi()] atraacutes de Tešub Ela bateu no ceacuteu e abalou [o ceacuteu como se fosse um pano] de tal modo que [Tešub] caiu [do ceacuteu] LAMMA [hellip] e tomou as reacutedeas e o [chicote] das matildeos de Tešubraquo105
O registo mitoloacutegico hurrita inclui assim uma dimensatildeo dramaacutetica da luta divina similar ateacute a alguns episoacutedios homeacutericos Aliaacutes o poder surge ateacute simbolicamente mediado no caso pelas laquoreacutedeasraquo e pelo laquochicoteraquo de Tešub
100 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 A i 5-11 (Hoffner 1998 42)101 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 3 A i 12-17 (Hoffner 1998 42)102 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 e sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner
1998 57)103 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 32 B i 14-28 (Hoffner 1998 60)104 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 52 A ii 17-12 (Hoffner 1998 63) dado o estado
fragmentaacuterio da tabuinha que contecircm esta parte do texto eacute possiacutevel que o autor de tais atos seja Tešub e natildeo Tašmišu
105 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sect 1-2 A i 2-20 (Hoffner 1998 46)
127
Joatildeo Paulo Galhano
demonstrando que a sofisticaccedilatildeo narrativa hurrita passou tambeacutem por uma maior mediaccedilatildeo
A dimensatildeo encenada do poder na mitologia hurrita incluiu tambeacutem mar-cas de introspeccedilatildeo numa verdadeira encenaccedilatildeo dos dilemas interiores de exerciacute-cio do poder como acontece num dos fragmentos do Canto de Ḫedammu106 mas eleva a encenaccedilatildeo literaacuteria a um grau superlativo com a introduccedilatildeo de elementos musicais na narrativa especialmente com a referecircncia aos instrumentos musicais designados por arkammi e galgaturi cuja natureza exata se desconhece ainda que parecendo serem de bronze107 Aliaacutes a associaccedilatildeo da muacutesica ao contrapoder repete-se no Canto de Ullikummi quando o Deus Mar organiza um banquete para Kumarbi onde estatildeo muacutesicos devidamente equipados com laquoinstrumentos de Ištarraquo108
A dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas ganha um focirclego maior com a amplificaccedilatildeo da estrutura sentimental dos agentes divinos atribuindo com frequecircncia registos emocionais humanos agraves principais divindades No Canto de Kumarbi Tešub entristece-se quando sabe da contestaccedilatildeo de Kumarbi agrave sua receacutem obtida realeza mas move-se imediatamente para um registo de arrogacircn-cia julgando-se superior a todos os deuses incluindo a Ea109 A emotividade de Tešub tem uma expressatildeo humanizada ainda mais evidente no seu choro cujas laquolaacutegrimas correm como torrentesraquo apoacutes ouvir a descriccedilatildeo de Ḫedammu da boca de Šawoška110 e depois de saber as novidades acerca de Ullikummi pelo Deus Sol111 A humanizaccedilatildeo do divino tem um desenvolvimento posterior no Canto da Libertaccedilatildeo em que Tešub tem como adversaacuterio natildeo um monstro criado por Kumarbi mas a sua situaccedilatildeo de pobreza e diacutevidas ou seja uma oposiccedilatildeo desper-sonalizada que pode tornar vulneraacutevel ateacute o rei divino em exerciacutecio112
Em resumo relativamente agraves conceccedilotildees de poder associadas agraves narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas pode concluir-se que da hurritizaccedilatildeo resultou a intro-duccedilatildeo da categoria de realeza no concerto divino integrada num contexto de
106 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)107 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 11 (Hoffner 1998 51) laquoldquo[hellip] [O Deus Mar()] ouviu e o
seu espiacuterito regozijou-se() Ele [apoiou()] o seu peacute num banco Eles puseram um ritatildeo na matildeo do Deus Mar O grande Deus Mar comeccedilou por responder a Kumarbi ldquoO nosso acordo estaacute estabelecido Kumarbi Pai dos deuses Vem ateacute minha casa dentro de sete dias e [eu dar-te-ei] Šertapšuruḫi minha filha cujo comprimento eacute [hellip] e cuja largura eacute uma milha [Tu beberaacutes()] Šertapšuruḫi como uma doce natardquo Quando Kumarbi ouviu (isto) o seu [espiacuterito] regozijou-se A noite caiacuteu [hellip] Eles levaram o grande Deus Mar da casa de Kumarbi acompanhado pela (muacutesica dos) brocircnzeos instrumentos arkammi e galgaturi e acompanharam-no a sua casa (Aiacute) ele sentou-se numa boa cadeira feita de [hellip] O Deus Mar esperou sete dias por Kumarbiraquo
108 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 8 A ii 14-19 C ii 7-21 (Hoffner 1998 57)109 CTH 344 Canto de Kumarbi sectsect 18-19 A iii 2-29 (Hoffner 1998 44)110 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 51-52 (Hoffner 1998 52)111 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 30-32 B i 1-28 (Hoffner 1998 60)112 CTH 789 Canto da Libertaccedilatildeo sectsect 42-46 ii 4rsquo ndash 21rsquo (Hoffner 1998 75)
128
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
rivalidades divinas de base familiar em que a instituiccedilatildeo da paternidade ou o modelo patriarcal surge com destacado relevo Aleacutem disso as estruturas de po-der associadas ao mundo divino complexificaram-se com a inserccedilatildeo de poderes moderadores conselheiros e sancionatoacuterios integrados em alianccedilas poliacuteticas que associaram a verticalidade do mando agrave dimensatildeo coletiva do poder com frequecircncia disputado atraveacutes de mediadores divinos ou de criaccedilotildees monstruo-sas A superlativa encenaccedilatildeo do poder a que se associa o recurso ao siacutembolo como mediador literaacuterio de representaccedilatildeo a par da dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas surge como um importante contributo hurrita agrave mitologia dos Hititas
Riqueza e complexidade anatoacutelica antigaResta agora discutir se o aporte hurrita agrave mitologia hitita foi de todo
inovador face agrave natureza de mitos anatoacutelicos antigos mais complexos como o Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar No primeiro destes dois mitos o Deus Mar enfrenta o Deus Tempestade atraveacutes de um processo radicalmente diferente do que ocorre nas narrativas hurritas o Deus Tempestade enfrenta o problema do desaparecimento do Deus Sol de forma atiacutepica pela presenccedila de uma forccedila negativa designada pela palavra hitita ḫaḫḫima traduziacutevel para inglecircs por laquoFrostraquo113 para castelhano por laquoLetargoraquo114 para italiano por laquoGeloraquo115 e para portuguecircs por laquoGeadaraquo ou laquoGeloraquo116
O mito do Desaparecimento do Deus Sol conceptualiza o poder divino como um combate entre um princiacutepio de vida concretizado no Deus Tempestade e um princiacutepio de morte materializado em ḫaḫḫima ou seja tal como sucede nos mitos hurritas olha-se para o poder divino como resultado de uma oposiccedilatildeo inicialmente caracterizada como rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade Poreacutem diferentemente das narrativas mitoloacutegicas hurritas o desiacutegnio deste combate natildeo estaacute na obtenccedilatildeo do lugar cimeiro de rei dos deuses Parece haver mais semelhanccedilas com o tiacutepico mito associado ao ritual mugawar em que uma divindade desaparece e depois urge encontrar para que a ordem coacutesmica seja restabelecida ainda que difira deste tipo de mitos anatoacutelicos antigos pelo facto de o desaparecimento do Deus Sol natildeo ter causa ou origem indeterminada mas decorrer da disputa entre o Deus Mar e o Deus Tempestade a fim de se saber qual dos dois eacute o mais forte117
Ao desaparecimento do Deus Sol segue-se o aparecimento do seu contraacuterio ḫaḫḫima uma forccedila paralisante e bloqueadora do crescimento da vegetaccedilatildeo que parece pocircr em causa o poder do Deus Tempestade ainda que sem qualquer
113 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Hoffner 1998 27 e ss)114 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Bernabeacute 1987 62 e ss)115 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 63 e ss)116 Galhano 2010 351117 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sectsect 1-2 A i 1-10 (Hoffner 1998 27)
129
Joatildeo Paulo Galhano
disputa por um hipoteacutetico lugar de rei divino A natureza inversa dos efeitos de ḫaḫḫima comparativamente aos efeitos do Deus Sol118 fazem dele mais do que uma forccedila negativa a ausecircncia de uma forccedila divina positiva jaacute que ḫaḫḫima eacute o que estaacute quando o Deus Sol natildeo estaacute ou seja um negativo do Deus Sol sem estatuto de laquodeusraquo Neste aspeto pode ser encontrada alguma semelhanccedila entre o Mito de Illuyanka e o mito do Desaparecimento do Deus Sol em virtude de em ambos os textos se tratar de uma luta entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal ainda que a serpente do Mito de Illuyanka seja uma forccedila positivamente maligna ao passo que ḫaḫḫima se apresenta como ausecircncia de uma forccedila divina benigna o Deus Sol
Para lidar com o problema de ḫaḫḫima o Deus Tempestade envia con-secutivamente outras entidades divinas o Vento (irmatildeo do Deus Tempestade) o deus da guerra ZABA4BA4 o deus LAMMA e finalmente Telipinu (filho do Deus Tempestade) todos derrotados por ḫaḫḫima Na parte final do texto hoje perdida supotildee-se que num enfrentamento final protagonizado pelo Deus Tem-pestade ḫaḫḫima fosse finalmente vencido119 Tambeacutem neste aspeto se podem encontrar semelhanccedilas com as narrativas mitoloacutegicas hurritas a mediaccedilatildeo na luta pelo poder verificada nas narrativas hurritas (em que Kumarbi se opotildee a Tešub por intermeacutedio dos deuses Prata e LAMMA e dos monstros Ḫedammu e Ullikummi) tem paralelo no facto do Deus Tempestade enfrentar ḫaḫḫima tam-beacutem atraveacutes da mediaccedilatildeo de outras divindades (Vento ZABA4BA4 LAMMA e Telipinu)
Tambeacutem o Deus Mar luta por intermeacutedio de ḫaḫḫima ou seja de forma igualmente indireta A mediaccedilatildeo na luta pelo poder surge assim como mais um denominador comum agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas e ao mito do Desapare-cimento do Deus Sol Pode ateacute ressalvar-se que na leitura de alguns hititoacutelogos o real opositor do Deus Tempestade natildeo seria o Deus Mar mas sim o Deus Sol que se teria ausentado talvez propositadamente para testar o poder do seu pai (do Deus Tempestade) atraveacutes da sua ausecircncia ie da presenccedila de ḫaḫḫima120 Em todo o caso a oposiccedilatildeo ocorre sempre entre dois deuses que se enfrentam por intermeacutedio de outros divindades ou natildeo
O Desaparecimento do Deus Sol interessa bastante em razatildeo de nele se cru-zarem os dois motivos baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga o tema da luta do Deus Tempestade com um adversaacuterio que natildeo obstante o sucesso inicial acaba derrotado como no Mito de Illuyanka e o tema da ausecircncia da divindade que provoca o desaparecimento de todos os bens da terra apenas regressando com a realizaccedilatildeo de um ritual do tipo mugawar O facto de na base do desaparecimento
118 Razatildeo pela qual a traduccedilatildeo para Portuguecircs poderia ser laquoGeloraquo de forma semelhante agrave soluccedilatildeo de traduccedilatildeo para Italiano
119 Cf Pecchioli Daddi-Polvani 1990 58-59120 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 60
130
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
do Deus Sol estar a rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade coloca o mito do Desaparecimento do Deus Sol exatamente na interseccedilatildeo entre os mitos anatoacutelicos antigos e as narrativas mitoloacutegicas hurritas
O paralelo do Desaparecimento do Deus Sol com o Mito de Illuyanka parece contudo ter limites significativos visto que se neste uacuteltimo a luta se daacute entre o senhor das aacuteguas pluviais (o Deus Tempestade) e o detentor das aacuteguas subter-racircneas (Illuyanka) no mito do Desaparecimento do Deus Sol a rivalidade existe entre o Deus Tempestade enquanto senhor das aacuteguas doces e o soberano das aacuteguas salgadas o Deus Mar ainda que em ambos os casos venccedila o detentor das aacuteguas mais uacuteteis aos fins agriacutecolas Curiosamente em ambas as narrativas haacute preocupaccedilatildeo em preservar os olhos do Deus Tempestade121 instrumento essen-cial da sua accedilatildeo Natildeo obstante o paralelo do mito do Desaparecimento do Deus Sol com os outros mitos de divindades ausentes parece ser mais significativo do que aquele com o Mito de Illuyanka ateacute porque em ambos haacute recurso aos conselhos de Ḫannaḫanna122
Por responder fica a questatildeo de saber se foi o mito do Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo deu origem aos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga ou se inversamente foram estes temas que fundindo-se e sofrendo contaminaccedilatildeo hurrita produziram o mito do Desaparecimento do Deus Sol A intuiccedilatildeo diria que a simplicidade (dos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga) teraacute antecedido a complexidade daquele mito relativo ao Deus Sol assim se estabelecendo uma hipoteacutetica cronologia relativa da mitologia anatoacutelica O problema torna-se de mais difiacutecil resoluccedilatildeo se lembrarmos que a presenccedila de ar-caiacutesmos linguiacutesticos e a existecircncia de um fragmento in ductus original em hitita antigo datam o mito do Desaparecimento do Deus Sol de um periacuteodo bastante recuado na histoacuteria hitita O problema complica-se em virtude de nos mitos de divindades ausentes os efeitos do desaparecimento da divindade se darem numa realidade socioeconoacutemica mais complexa e estruturada do que no mito do desaparecimento do Deus Sol123 assim se colocando este mito em fase anterior agravequeles Efetivamente se a maior parte dos mitos de divindades ausentes tem o seu referente quer no campo quer nos homens casas altares de deuses e recin-tos de animais no Desaparecimento do Deus Sol esses referentes estatildeo apenas na realidade agriacutecola e pastoral
Para laacute das rivalidades divinas presentes no Desaparecimento do Deus Sol importa saber se aiacute os poderes estatildeo mais verticalizados agrave maneira das narrativas mitoloacutegicas hurritas ou mais horizontalizados como sucede na generalidade dos mitos de divindades ausentes A estrateacutegia seguida pelo Deus Mar para
121 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28) e CTH 321 Mito de Illuyanka (segunda versatildeo) sectsect 21 e ss D iii 2 e ss (Hoffner 1998 13)
122 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28)123 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-63
131
Joatildeo Paulo Galhano
enfrentar o Deus Tempestade como visto passa pela ocultaccedilatildeo do Deus Sol o que poderia significar que do ponto de vista do Deus Mar o Deus Sol seria mais forte e superior do que o seu proacuteprio pai o Deus Tempestade assim se configurando uma situaccedilatildeo similar ao Canto de Kumarbi em que as geraccedilotildees mais jovens de deuses satildeo mais poderosas do que as mais antigas A parte final do mito contudo demonstra que esta perspetiva do Deus Mar eacute errada dado que presumivelmente o Deus Tempestade acabaraacute por derrotar ḫaḫḫima
Se o Deus Sol surge em primeiro lugar nas listas de divindades registadas nos tratados hititas124 e se no mito do Desaparecimento de Telipinu ele eacute apeli-dado de laquogrande Deus Solraquo125 ou mesmo de laquoDeus Sol dos Deusesraquo noutros loci126 em nenhuma passagem dos mitos anatoacutelicos antigos ele surge qualificado como rei dos deuses ainda que a funccedilatildeo de juiz e de dispensador da justiccedila que lhe eacute comummente adstrita o coloque num patamar superior em relaccedilatildeo aos humanos e em particular ao rei do Ḫatti assim cumprindo a sua funccedilatildeo de laquopas-tor da humanidaderaquo por intermeacutedio do rei127 Ou seja a organizaccedilatildeo do poder no Desaparecimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade dos mitos de divindades ausentes do que com a riacutegida verticalidade do mando das narrativas mitoloacutegicas hurritas
A estruturaccedilatildeo mitoloacutegica em ciclo visiacutevel nas narrativas hurritas se estaacute praticamente ausente da mitologia anatoacutelica antiga pode ter ocorrido no Desa-parecimento do Deus Sol e no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar A razatildeo de tal possibilidade prende-se com a coincidecircncia de figuras divinas em ambas as narrativas (o Deus Sol o Deus Tempestade Telipinu o Deus Mar e a sua filha) e com o facto de a filha do Deus Mar ser dada como esposa a Telipinu no mito Te-lipinu e a Filha do Deus Mar e surgir no Desaparecimento do Deus Sol a chamar o seu pai laquodo ceacuteuraquo para onde teria ido apoacutes ser dada como esposa a Telipinu128
O tema deste hipoteacutetico ciclo estaria centrado na luta entre o Deus Mar e o Deus Tempestade em que a refrega entre as duas divindades no Desapareci-mento do Deus Sol teria tido um preacutevio episoacutedio de negociaccedilatildeo entre o Deus Mar e o Deus Tempestade cujo mediador eficaz teria sido Telipinu ao conseguir ganhar uma esposa e fazer com que o Deus Sol regressasse ao seu lugar habitual A proposta de leitura dos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a
124 Gurney 1954 139125 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu sect 2 A i 4-6 (Hoffner 1998 18)126 CTH 671 Sacrifiacutecio e Oraccedilatildeo ao Deus Tempestade de Nerik sect 9 rev 11-17 (Hoffner 1998
24) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara e) sect 4 A rev 2-5 (Hoffner 1998 32)127 Bryce 2002 141-42 Šuppiluliuma adotou a titulatura de laquoMinha majestade Šuppiluliuma
Grande Rei Rei do Ḫatti Heroacuteihellipraquo em que a expressatildeo laquoMinha Majestaderaquo corresponde ao heterograma dUTUŠI que contecircm o elemento de ligaccedilatildeo ao Deus Sol hitita cujo ideograma era dUTU assim se evidenciando quer a importacircncia do Deus Sol para o exerciacutecio da justiccedila terrena quer a quase identificaccedilatildeo do rei com aquele deus (Cf Beckman 2002 37-41)
128 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-62
132
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
Filha do Deus Mar como ciclo que se pode reputar razoaacutevel foi mesmo alargada no sentido de incluir tambeacutem o mito do Desaparecimento de Telipinu que daria sequecircncia agravequeles dois textos Esta inclusatildeo contudo tem pouca sustentaccedilatildeo dado que neste uacuteltimo a divindade natildeo desaparece em consequecircncia de alguma luta divina como ocorre no Desaparecimento do Deus Sol e em Telipinu e a Filha do Deus Mar mas antes por motivos imprevistos e desconhecidos que natildeo satildeo sequer relacionaacuteveis com alguma falta humana129
Em todo o caso a fixaccedilatildeo da trama inicial do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar na tensatildeo entre dois deuses ndash o Deus Tempestade e o Deus Mar ndash ainda que possa ser mera reflexatildeo mitoloacutegica sobre fenoacutemenos naturais aproxima tambeacutem este mito das narrativas hurritas cujo tema principal estaacute na disputa entre Kumarbi e Tešub ainda que naquele mito sem quaisquer preocupaccedilotildees pela realeza divina Verifica-se ainda outra analogia do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar com as narrativas mitoloacutegicas hurritas relativa agrave instacircncia do poder conselheiro se nas narrativas hurritas essa instacircncia surge concretizada por exemplo em Šerrišu e Tašmišu que aconselham Tešub no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar eacute Ḫannaḫanna quem interveacutem para dar conselhos ao Deus Tempestade relativos ao pagamento do dote ao Deus Mar130 A caracterizaccedilatildeo de Ḫannaḫanna como um poder conselheiro no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar tem confirmaccedilatildeo no Desaparecimento do Deus Sol em que o Deus Tempestade apoacutes ver frustradas todas as tentativas de derrotar o Deus Mar atraveacutes de terceiros decide procurar justamente Ḫannaḫanna
O facto de o Deus Mar entregar a sua filha a Telipinu juntamente com a libertaccedilatildeo do Deus Sol pode revelar uma estrateacutegia de aproximaccedilatildeo do Deus Mar ao Deus Tempestade ou seja o Deus Mar pode ter usado o casamento de sua filha como estrateacutegia de obtenccedilatildeo de poder assim se aproximando da divindade que ele proacuteprio qualifica de poderosa Esta leitura aproxima o mito Telipinu e a Filha do Deus Mar da segunda versatildeo do Mito de Illuyanka em que tambeacutem o casamento serve de expediente para a obtenccedilatildeo de poder no caso o casamento do filho do Deus Tempestade com a filha de Illuyanka com o objetivo de reaver os olhos e o coraccedilatildeo perdidos no primeiro combate com a serpente
Finalmente em abono da riqueza da mitologia anatoacutelica antiga segura-mente comparaacutevel agrave fertilidade de conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder das narrativas hurritas pode ainda ver-se que a accedilatildeo maleacutefica de ḫaḫḫima no Desaparecimento do Deus Sol tem um episoacutedio similar no mito O Conjuro da Atadura em que tambeacutem a forccedila maleacutefica Grande Rio surge como agente principal das complica-ccedilotildees sofridas quer no mundo agriacutecola e pastoral quer na esfera humana com a
129 Galhano 2010 349-58130 CTH 322 Telipinu e a Filha do Deus Mar sectsect 5-6 A ii 6-25 (Hoffner 1998 26-27)
133
Joatildeo Paulo Galhano
particularidade de neste mito tambeacutem o Deus Tempestade participar na accedilatildeo maleacutefica que prejudica natildeo soacute homens e animais mas tambeacutem a divindade LAMMA131
Consideraccedilotildees finais
A hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio hitita derivou de um longo processo de contactos populacionais entre Hititas e Hurritas tendo iniacutecio bem cedo na histoacuteria da Anatoacutelia A guerra e a poliacutetica expansionista dos Hititas foram dos principais agentes propiciadores deste intercacircmbio eacutetnico ainda que a hurritiza-ccedilatildeo populacional da Anatoacutelia tambeacutem tenha ocorrido em tempo de paz entre Ḫattuša e o Mitanni A ingerecircncia egiacutepcia no norte da Siacuteria designadamente com o estabelecimento do acordo mitano-egiacutepcio no reinado de Arnuwanda reforccedilou a presenccedila hurrita nas fronteiras do reino hitita preparando a substan-ciaccedilatildeo do perfil hurro-hitita da cultura anatoacutelica no tempo de Šuppiluliuma I As instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais mormente a vice-realeza promoveram ainda mais essa condicionada fusatildeo cultural entre Hurritas e Hititas Desta perspetiva deve valorizar-se o papel de elementos como Puduḫepa na amalgamaccedilatildeo cultural dos setores hurrita e hitita desembocando mais tarde jaacute com Tudḫaliya IV no siacutembolo da hurritizaccedilatildeo religiosa hitita por excelecircncia os relevos de Yazılıkaya
Vimos que nos mitos anatoacutelicos de divindades ausentes exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol e a outros mitos menores sobressaem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo divina alinhadas pelo diapasatildeo da necessidade de harmonia celeste para o bom andamento da ordem coacutesmica ainda que estes primeiros mitos da Anatoacutelia estejam ligados a rituais destinados a superar momentos de crise A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos se tambeacutem assume registos de complementaridade no reconhecimento de pares divinos como eacute exemplo a dupla formada pelo Deus Tempestade e pela Deusa Sol chega a associar uma certa pusilanimidade a alguns agentes divinos Em todo o caso alguns deuses do panteatildeo autoacutectone da Anatoacutelia parecem ter algum ascendente sobre outras divindades como acontece exemplarmente com Ḫannaḫanna
A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos de divindades ausentes dissipa-se no seu quase contemporacircneo Mito de Illuyanka132 onde se observa uma modalidade de luta do Deus Tempestade com uma forccedila maacute generi-camente designada laquoserpenteraquo Aiacute a luta pelo poder simboliza a vitoacuteria do bem sobre o mal mas tambeacutem a competiccedilatildeo pelo domiacutenio das aacuteguas subterracircneas
131 CTH 390 O Conjuro da Atadura (Bernabeacute 1987 86-87)132 Cf Galhano 2010 349-58 onde se argumenta pela posteridade do Mito de Illuyanka em
relaccedilatildeo aos mitos de divindades ausentes fundamentando-se tal proposta no facto de no Mito de Illuyanka haver uma conceccedilatildeo teodiceica inexistente nos mitos de divindades ausentes
134
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
e das aacuteguas pluviais reconhecendo-se a superior valia das segundas para fins agriacutecolas O Mito de Illuyanka ostenta uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo de poder perdido por parte do Deus Tempestade que aquando da sua primeira derrota eacute abandonado pelo coletivo divino apenas recuperando a sua reputaccedilatildeo depois de um segundo combate com a serpente Tal aspeto demonstra que a solidariedade divina dos mitos de divindades ausentes estaacute ali desaparecida
Com a adoccedilatildeo das narrativas mitoloacutegicas hurritas cujo aporte maior se concretizou no Ciclo de Kumarbi eacute introduzida a ideia de realeza divina dispu-tada em sucessivas conjunturas geracionais Uma vez Tešub nomeado rei divino o Ciclo de Kumarbi desenvolve o ressentimento de Kumarbi por ter sido destro-nado O poder surge aiacute integrado em duas linhagens familiares de divindades cada uma delas associada ou ao domiacutenio celeste ou ao mundo inferior sendo possiacutevel que esta base familiar da disputa possa ter tido um referente arcaico em mitos que reviviam e ritualizavam a oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e potecircncias de ordem celeste Assim as narrativas mitoloacutegicas hurritas adotadas pelos Hititas valorizam o horizonte familiar A belicosidade associada agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas se pode ser considerada um reflexo do con-texto poliacutetico hurrita em permanente tensatildeo com Ḫattuša tem tambeacutem fortes possibilidades de consubstanciar uma forma narrativa de registo do traumaacutetico coisa que natildeo acontece nem no Mito de Illuyanka nem nos mitos de divindades ausentes (exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol) que na sua essecircncia tendem a valorizar a superaccedilatildeo da crise e a vitoacuteria das forccedilas celestes favoraacuteveis agrave agricultura
A complexificaccedilatildeo que resultou da integraccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi no Ḫatti traduziu-se na adoccedilatildeo de diferentes instacircncias de poder Dentre as mais importantes destacaacutemos natildeo soacute a instacircncia do poder moderador e legitimante concretizado no deus Ea mas tambeacutem os niacuteveis de poder conselheiro encor-pados tanto em Šerrišu como nos vizires do poder e do contrapoder factos que permitiram estabelecer um paralelo com a conceccedilatildeo de poder associada agrave deusa Ḫannaḫanna dos mitos de divindades ausentes Aquela instacircncia do poder conselheiro deriva em poder sancionatoacuterio das Deusas Destino e das Deusas Matildee junto de Kumarbi especialmente no momento de criaccedilatildeo de Ullikummi Em todo o caso a ideia de alianccedila de vaacuterias instacircncias de poder subjaz a toda a mitologia do Ciclo de Kumarbi A mitologia de origem hurrita encena assim uma conceccedilatildeo de poder divino coletivo ainda que bastante hierarquizado e multi-estruturado O ressentimento de Kumarbi ao resultar na criaccedilatildeo de monstros maleacuteficos e de divindades concorrentes de Tešub demonstrou ainda que as narrativas do Ciclo de Kumarbi conceptualizaram as lutas pelo mando como uma accedilatildeo mediada do opositor ao poder
A multi-estruturaccedilatildeo do poder nas narrativas de origem hurrita incluiu ainda a introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada Esta conceptualiza-ccedilatildeo dos governos divinos foi tambeacutem acompanhada de uma nova dimensatildeo
135
Joatildeo Paulo Galhano
literaacuteria do poder em diversas ocasiotildees representada de forma extremamente graacutefica A encenaccedilatildeo literaacuteria levada a cabo nas narrativas mitoloacutegicas hurri-tas ganhou uma dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina ainda maior atraveacutes da fixaccedilatildeo de cenas de pungente belicosidade divina e com a adoccedilatildeo literaacuteria de siacutembolos do poder Esta encenaccedilatildeo literaacuteria sem paralelo na mitologia anatoacute-lica antiga incluiu mesmo registos de introspeccedilatildeo divina trazendo os dilemas interiores do exerciacutecio do poder para o niacutevel mitoloacutegico No Ciclo de Kumarbi haacute ainda um adicional registo dramaacutetico com a introduccedilatildeo de elementos mu-sicais e com a estruturaccedilatildeo sentimental dos deuses em tons frequentemente humanizados
Natildeo obstante a variedade das conceccedilotildees de poder visiacuteveis nas narrativas mitoloacutegicas hurritas alguns mitos anatoacutelicos antigos mostram tambeacutem uma extraordinaacuteria riqueza e complexidade conceptual A luta entre deuses tem registo quer no mito do Desaparecimento do Deus Sol quer no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar ainda que sem recurso agrave categoria hurrita de rei divino Esta competiccedilatildeo apresenta semelhanccedilas com o Mito de Illuyanka pelo facto de tambeacutem nos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar haver uma oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal concretizado em ḫaḫḫima
As conceccedilotildees de poder no mito do Desaparecimento do Deus Sol satildeo comparaacuteveis aos registos das narrativas hurritas em virtude de em ambos os casos a competiccedilatildeo divina ocorrer atraveacutes da mediaccedilatildeo de outros agentes rivais dirigidos pelos oponentes principais O mito do Desaparecimento do Deus Sol estaacute mesmo na exata interseccedilatildeo conceptual dos mitos anatoacutelicos antigos com as narrativas hurritas visto cruzar os temas da ausecircncia divina tiacutepica dos mitos de divindades ausentes e da luta de um deus com uma forccedila maacute caracteriacutestica do Mito de Illuyanka com a conceptualizaccedilatildeo do poder em rivalidade essencial ao Ciclo de Kumarbi
Natildeo se podendo saber se foi o mito O Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo originou os temas mais elementares da mitologia anatoacutelica antiga ndash a ausecircncia divina e a oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e uma forccedila maacute ndash ou se inversamente foram esses temas que se fundiram e deram origem agravequele mito posteriormente enriquecido com o tema hurrita da rivalidade divina natildeo se pode estabelecer com seguranccedila uma cronologia relativa da mitologia hurro-hitita Contudo pode afirmar-se que a estruturaccedilatildeo do poder no Desapa-recimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade da generalidade dos mitos anatoacutelicos antigos do que com a verticalidade do poder das narrativas do Ciclo de Kumarbi A estruturaccedilatildeo narrativa em ciclo visiacutevel no Ciclo de Ku-marbi pode tambeacutem ter tido paralelo na mitologia anatoacutelica antiga dado que o mito do Desaparecimento do Deus Sol pode ser a consequecircncia diegeacutetica de Telipinu e a Filha do Deus Mar O texto Telipinu e a Filha do Deus Mar conteacutem tambeacutem outros ingredientes comuns ao Ciclo de Kumarbi designadamente a
136
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
conceptualizaccedilatildeo de poderes conselheiros na orquestra divinaEm suma se a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos trouxe para solo
anatoacutelico novas estruturas de sentido assentes em novas conceccedilotildees de poder a mitologia anatoacutelica antiga continha jaacute uma grande diversidade de ingredientes conceptuais razatildeo pela qual natildeo exageramos o valor do aporte hurrita agraves conce-ccedilotildees de poder da mitologia anatoacutelica mais antiga
137
Joatildeo Paulo Galhano
Bibliografia
Barjamovic Gojko 2011 A Historical Geography of Anatolia in the Old Assyrian Period Copenhagen Museum Tusculanum Press
Beckman Gary 2007 ldquoFrom Ḫattuša to Carchemish The Latest on Hittite Historyrdquo In Current Issues and the Study of the Ancient Near East ed Mark W Chavalas Claremont California Regina Books
mdashmdashmdash 2002 ldquolsquoMy Sun-Godrsquo Reflections of Mesopotamian Conceptions of Kingship among the Hittitesrdquo In Ideologies as Intercultural Phenomena Proceedings of the Third Annual Symposium of the Assyrian and Babylonian Intellectual Heritage Project Held in Chicago USA October 27-31 2000 ed A Panaino e G Pettinato 37-43 Milano Universitagrave di Bologna
Beckman Gary e Harry Hoffner eds 1999 Hittite Diplomatic Texts 2ordf ed Atlanta Georgia Scholars Press Society of Biblical Literature
Bernabeacute Alberto 1987 Textos Literarios Hetitas Madrid Alianza EditorialBiacuteblia Sagrada 1995 Lisboa Difusora BiacuteblicaBryce Trevor 2005 The Kingdom of the Hittites Oxford Oxford University Pressmdashmdashmdash 2002 Life and Society in the Hittite World Oxford Oxford University PressCarreira Joseacute Nunes 2009 Mitos e Lendas Hititas Lisboa Colibrimdashmdashmdash 1999 Historiografia Hitita Lisboa Colibri Centro de Histoacuteria da
Universidade de LisboaCollins Billie Jean 2007 The Hittites and their World Atlanta Society of Biblical
LiteratureDietrich Manfried Oswald Loretz e Joaquiacuten Sanmartiacuten eds 1995 The
Cuneiform Alphabetic Texts from Ugarit Ras Ibn Hani and other places (KTU) Muumlnster Ugarit-Verlag
Eder W e J Renger eds 2007 Chronologies of the Ancient World Names Dates and Dynasties Leiden Boston Brill
Ferro Marc 2009 O Ressentimento na Histoacuteria Lisboa Editorial TeoremaFriedrich Johannes 1991 Kurzgefaszligtes Hethitisches Woumlrterbuch Heidelberg
Carl Winter ndash UniversitaumltsverlagGalhano Joatildeo Paulo 2012 Espaccedilo Tempo e Poder nos Mitos do Ḫatti de Ugarit
e de Hesiacuteodo Uma Morfologia Comparativa Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Antiga apresentada agrave Universidade de Lisboa
mdashmdashmdash ldquoRepresentaccedilotildees e usos humanos nos mitos anatoacutelicos antigosrdquo Cadmo 20347-67
Garciacutea Trabazo Joseacute Virgilio 2002 Textos Religiosos Hititas Mitos Plegarias y Rituales Madrid Trotta
138
A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita
Gurney O R 1954 The Hittites Harmondsworth Penguin BooksGuumlterbock Hans G H Hoffner Jr e Theo van den Hout 2002-2013 The Hittite
Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol Š Fascicles 1 2 e 3 Chicago The Oriental Institute
mdashmdashmdash 1997 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol P Chicago The Oriental Institute
mdashmdashmdash 1989 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol L-N Chicago Oriental Institute
Hoffner Harry 2009 Letters from the Hittite Kingdom Atlanta Society of Biblical Literature
mdashmdashmdash 1998 Hittite Myths 2ordf ed Atlanta Georgia Scholar PressKlengel Horst 1998 Geschichte des hethitischen Reiches Leiden BrillLaroche Emmanuel 1971 Catalogue des Textes Hittites Eacutetudes et Commentaires
Paris KlincksieckLarsen Mogens Trolle 2015 Ancient Kanesh A Merchant Colony in Bronze Age
Anatolia Cambridge Cambridge University PressLiverani Mario 2001 International Relations in the Ancient Near East 1600 ndash
1100 BC New York ndash BasingstokeMacQueen J G 1959 ldquoHattian Mythology and Hittite Monarchyrdquo Anatolian
Studies 9171-88Neu Erich ed trad e comentaacuterio 1996 Das hurritische Epos der Freilassung
I Untersuchungen zu einem hurritisch-hethitischen Textensemble aus Ḫattuša Wiesbaden Harrassowitz Verlag
Olmo Lete G del 1981 Mitos y Leyendas de Canaan Segun la Tradicion de Ugarit Madrid Ediciones Cristiandad
Pecchioli Daddi Franca e Anna Maria Polvani 1990 La Mitologia Ittita Brescia Paideia Editrice
Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament 3ordf ed Princeton New Jersey Princeton University Press
Rieken E Daniel Schwemer Gerfrid Muumlller Doris Prechel e Gernot Wilhelm dir 2009- Mythen der Hethiter in Hethitologie Portal Mainz Em httpswwwhethportuni-wuerzburgde
Watkins Calvert 2001 ldquoAn Indo-European linguistic area and its characteristics Ancient Anatoliardquo In Areal Diffusion and Genetic Inheritance ed P Aikhenvald e R Dixon 44-63 Oxford Oxford University Press
Wegner Ilse 2007 Einfuumlhrung in die hurritisch Sprache 2 uumlberarbeite Auflage Wiesbaden Harrassowitz Verlag
Yigit Turgut 2016 ldquoThe political and cultural meanings of the Hittite empire period rock monumentsrdquo Athens Journal of History 2 (1)59-67
139
Elisa de Sousa
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio (Imperialism in the Phoenician colonial world)
Elisa de Sousa(esousacampusulpt 0000-0003-3160-108X)
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras UNIARQ-Centro de Arqueologia
laquoInformal imperialism can exist without colonialism but colonialism cannot exist without imperialismraquo
B Bush
Resumo - A colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas teve um impacto muito profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemi-cos mas tambeacutem culturais nos territoacuterios ultramarinos A heranccedila oriental iraacute sobrepor-se em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente atraveacutes de relaccedilotildees de domiacutenio que podem ser interpretadas no acircmbito de um imperialismo cultural
Palavras-chave Feniacutecios Indiacutegenas Colonizaccedilatildeo Cultura
Abstract ndash The Phoenician colonization in the Central and Western Mediterranean and in the Atlantic shores had a deep impact in the overseas ter-ritories not only in terms of society and economy but also in the cultural scene The oriental heritage will overlapse in many occasions the previous indigenous substratum through relations of dominance that can be interpreted under the concept of imperial culturalism
Keywords Phoenician Indigenous Colonization Culture
1 Introduccedilatildeo
O presente artigo resulta de um desafio que foi lanccedilado por ocasiatildeo do Se-minaacuterio Interdisciplinar de Histoacuteria Antiga Arqueologias de Impeacuterio ndash Impeacuterios da Era Axial relacionado com a questatildeo da existecircncia ou natildeo de uma qual-quer vertente de cariz imperialista no quadro da diaacutespora feniacutecia do Extremo Ocidente A resposta a esta problemaacutetica natildeo eacute naturalmente faacutecil de abordar considerando a escassez de dados histoacutericos e tambeacutem arqueoloacutegicos sobre as-petos especiacuteficos do processo de colonizaccedilatildeo feniacutecia do Mediterracircneo Central e das regiotildees mais ocidentais sobretudo no quadro de eventuais conflitos que se possam ter gerado entre estes grupos e as populaccedilotildees locais Ao que tudo indica natildeo teraacute existido um componente de cariz marcadamente militar no quadro destes contactos nem sequer uma forte intenccedilatildeo de conquista territorial destes
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_7
140
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
novos territoacuterios por parte dos colonos orientais pelo menos numa fase inicial1 Contudo eacute inegaacutevel que a expansatildeo de valores culturais de matriz orientalizante atinge um alcance verdadeiramente notaacutevel tendo em diversos cenaacuterios quase obliterado as tradiccedilotildees autoacutectones Com efeito e sobretudo a partir do seacuteculo VIII e VII aC que corresponde agrave fase de maacuteximo apogeu deste fenoacutemeno co-lonial surge em todo o Ocidente Mediterracircneo e em parte do litoral atlacircntico uma autecircntica koineacute orientalizante que se iraacute manter durante mais de duzentos anos
A difusatildeo da cultura semita nestes territoacuterios longiacutenquos prendeu-se ne-cessariamente com a existecircncia de relaccedilotildees de domiacutenio e de poder2 desiguais entre os receacutem-chegados e as comunidades autoacutectones com quem entraram em contacto Neste sentido torna-se entatildeo possiacutevel falar de um imperialismo feniacutecio de cariz essencialmente cultural3 que de certa forma se impocircs sobre sistemas socioculturais preacute-existentes
Naturalmente estas relaccedilotildees natildeo tiveram um caraacutecter exclusivamente unilateral sofrendo as proacuteprias comunidades feniacutecias instaladas nos territoacuterios ultramarinos metamorfoses que iratildeo configurar ainda durante a primeira me-tade do 1ordm mileacutenio aC diferentes quadros culturais No entanto a existecircncia e sobrevivecircncia de um substrato de matriz oriental constitui uma evidecircncia inegaacutevel nas margens mediterracircneas e atlacircnticas do Ocidente do Velho Mundo
2 A Feniacutecia e os antecedentes da colonizaccedilatildeo
A existecircncia de um imperialismo cultural feniacutecio natildeo foi um fenoacutemeno que se verificou exclusivamente no quadro da colonizaccedilatildeo ocidental
Apesar das cidades feniacutecias do Oriente se terem configurado ao longo da sua histoacuteria como entidades fundamentalmente autoacutenomas e independentes eacute possiacutevel identificar certas conjunturas onde um ou vaacuterios destes nuacutecleos conse-guiram alcanccedilar um certo poder hegemoacutenico
A partir da chamada crise de 1200 aC e sobretudo durante quase toda a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC a principal protagonista destes episoacutedios foi a cidade de Tiro Em finais do 2ordm mileacutenio aC e na sequecircncia das profundas transformaccedilotildees e reestruturaccedilotildees econoacutemicas poliacuteticas sociais e comerciais que iratildeo afetar o Proacuteximo Oriente durante os momentos iniciais da Idade do
1 Contudo outras formas de agressatildeo satildeo equacionaacuteveis no acircmbito da interaccedilatildeo entre comunidades autoacutectones e os agentes colonizadores como foi jaacute defendido por Wagner 2005 178
2 Bush 20063 Neste trabalho eacute utilizada uma definiccedilatildeo simplificada de uma terminologia criada a partir
da segunda metade do seacuteculo XX denominada de laquoimperialismo culturalraquo e com implicaccedilotildees sobretudo no campo do poacutes-colonialismo Sobre a problemaacutetica relativa agrave multiplicidade de abordagens e interpretaccedilotildees relativas a este conceito ver Tomlinson 1991
141
Elisa de Sousa
Ferro4 este centro urbano parece ter emergido como uma das principais en-tidades comerciais da aacuterea substituiacutedo ao que parece o papel anteriormente desempenhado por Ugarit5
Esta hegemonia tiacuteria chegou em determinados momentos a ultrapassar a mera esfera cultural e comercial revestindo-se de um caraacutecter inclusivamente poliacutetico aproveitando o decreacutescimo do poder egiacutepcio sobre a regiatildeo6 Natildeo eacute portanto de estranhar que esse nuacutecleo tenha constituiacutedo anos mais tarde um dos principais impulsionadores na empresa colonial feniacutecia no Ocidente7
Eacute ainda durante os momentos iniciais da Idade do Ferro no Proacuteximo Orien-te a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC que se verificam os primeiros indiacutecios desta poliacutetica expansionista tiacuteria que exerce uma influecircncia que se iraacute tornar progressivamente mais evidente no vale de Jezrael Os dados arqueoloacute-gicos recolhidos nesta aacuterea particularmente no quadro da composiccedilatildeo dos es-poacutelios funeraacuterios da necroacutepole de Achziv evidenciam uma importante presenccedila tiacuteria que teraacute tido como principais objetivos o controle de importantes recursos agraacuterios industriais e tambeacutem comerciais8 Paralelamente eacute tambeacutem durante esta fase que se observam quantidades muito significativas de importaccedilotildees tiacuterias em algumas aacutereas de Chipre como eacute o caso da necroacutepole de Paleopaphos Skales cuja intensidade conduziu inclusivamente agrave admissatildeo da existecircncia de grupos feniacutecios nos centros urbanos da regiatildeo9 Tal fenoacutemeno poderia ser tambeacutem uma realidade em Creta concretamente em Kommos10
Contudo e apesar desta crescente influecircncia tiacuteria no Proacuteximo Oriente a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC o cenaacuterio poliacutetico parece revestir-se de um caraacutecter ainda pouco centralizado onde a iniciativa privada teria uma importacircncia acrescida11 situaccedilatildeo que parece alterar-se em momentos sucessi-vos12
Com efeito os monarcas tiacuterios das primeiras centuacuterias do 1ordm mileacutenio aC transformaram a cidade numa das principais potecircncias mariacutetimas e comer-ciais do Proacuteximo Oriente13 capaz de controlar e monopolizar os principais mercados e rotas comerciais da aacuterea Os tiacutetulos que ostentavam por exemplo Hiram I (970969-936 aC) Rei de Tiro e da Feniacutecia e Ithobaal I (887-856 aC) Rei dos Sidoacutenios satildeo indicadores da primazia da cidade sobre os restantes
4 Para uma siacutentese atualizada ver Ruiz-Gaacutelvez Priego 20135 Aubet 20006 Finkelstein e Piasetzky 2009 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 e 1167 Aubet 19948 Aubet 20009 Karageorghis 1983 Bikai 1983 Aubet 2000 80 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12510 Aubet 2000 Shaw 199811 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12512 Galaacuten e Ruiz-Gaacutelvez 200713 Aubet 2008 182-83
142
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
nuacutecleos feniacutecios Tal realidade transparece inclusivamente na existecircncia de uma confederaccedilatildeo entre Tiro e Sidoacuten durante os seacuteculos IX e VIII aC onde parecem ter sido os reis tiacuterios os que exerceram de forma efetiva o poder14 A influecircncia poliacutetica de Tiro sobre outras cidades feniacutecias como Biblos verifica--se pela fundaccedilatildeo de um estabelecimento comercial tiacuterio (Botrys) no interior no territoacuterio giblita15 Tambeacutem em aacutereas mais longiacutenquas como o norte da Siacuteria e Ciliacutecia a existecircncia de nuacutecleos fundados por Tiro parece ter desencadeado uma forte influecircncia poliacutetica e cultural a julgar por algumas estelas e inscriccedilotildees recuperadas Por outro lado cabe natildeo esquecer o controle de algumas cidades da aacuterea israelita em consequecircncia do tratado estabelecido entre Hiram I e Salomatildeo16 Recentes investigaccedilotildees sobre a veracidade histoacuterica destes relatos biacuteblicos tecircm posto em questatildeo vaacuterios aspetos ateacute entatildeo assumidos entre os quais as aparentes relaccedilotildees de igualdade aiacute sugeridas entre a monarquia tiacuteria e a israelita Com efeito os dados arqueoloacutegicos que tecircm sido recolhidos na regiatildeo parecem contrariar as informaccedilotildees escritas17 indicando que Tiro teraacute exercido um domiacutenio efetivo sobre estes territoacuterios sendo inclusivamente proposto que os proacuteprios reis israelitas estariam de certa forma dependentes da casa real tiacuteria18
Este incremento da posiccedilatildeo hegemoacutenica de Tiro durante os iniacutecios do 1ordm mileacutenio aC respondeu claramente a condicionantes econoacutemicas estrateacutegi-cas O controle de redes comerciais e da exploraccedilatildeo de aacutereas essenciais para a obtenccedilatildeo de recursos quer metaliacuteferos quer agriacutecolas teratildeo sido os principais motivos que subjazem agrave preeminecircncia de Tiro face agraves restantes cidades feniacutecias e outras aacutereas do Proacuteximo Oriente
Mesmo a partir do seacuteculo IX aC quando a pressatildeo assiacuteria se faz sentir de forma mais substancial no Proacuteximo Oriente as cidades feniacutecias parecem ter continuado a usufruir de um estatuto privilegiado19 situaccedilatildeo que eacute justificada pela importacircncia destes nuacutecleos no quadro dos principais circuitos comerciais da regiatildeo Com efeito os tributos entregues por Tiro aos monarcas assiacuterios satildeo verdadeiramente impressionantes quer em diversidade quer em quantidade o que mostra a riqueza da cidade durante esta fase20 Mesmo as campanhas militares assiacuterias no norte da Siacuteria que aparentemente teratildeo condicionado o acesso das metroacutepoles feniacutecias agraves mateacuterias-primas da Anatoacutelia21 natildeo teratildeo tido impactos insuperaacuteveis no quadro econoacutemico e comercial destes nuacutecleos quiccedilaacute
14 Markoe 2000 3915 Aubet 1994 5016 Aubet 1994 53 e 7617 Finkelstein e Silberman 2007 Liverani 2005 Martiacuten Ruiz 201018 Martiacuten Ruiz 2010 26 Ruiz e Wagner 2005 10819 Markoe 2000 40 Aubet 200820 Jankowska 1969 Zaccagnini 1984 Bunnens 1985 Aubet 2008 18321 Aubet 1994 54
143
Elisa de Sousa
devido justamente agrave aquisiccedilatildeo de outros recursos estrateacutegicos derivados da poliacutetica colonial ultramarina que seria nesta altura jaacute uma realidade22
A reestruturaccedilatildeo da rede comercial das cidades feniacutecias e o seu redireccio-namento progressivamente sistemaacutetico face aos circuitos ocidentais que garan-tiam mateacuterias-primas essenciais para a induacutestria do Proacuteximo Oriente teraacute tido o seu iniacutecio ainda durante o seacuteculo X aC intensificando-se sobretudo a partir da centuacuteria seguinte23 possivelmente em consequecircncia dos esforccedilos em manter o seu imperialismo comercial no Proacuteximo Oriente e para fazer face agrave crescente pressatildeo tributaacuteria assiacuteria
Estes primeiros contactos entre o mundo feniacutecio-chipriota e o Extremo Ocidente encontram-se arqueologicamente plasmados nas extraordinaacuterias des-cobertas realizadas recentemente em Huelva24 e tambeacutem pela proacutepria presenccedila em contextos coevos de materiais supostamente produzidos nesta mesma aacuterea25 no Proacuteximo Oriente como eacute o caso das fiacutebulas de tipo Huelva descobertas em Meggido26 e nos contextos funeraacuterios de Achziv27 e do tuacutemulo 523 de Amathus28 Estas evidecircncias arqueoloacutegicas de contactos entre o Proacuteximo Oriente e o Ex-tremo Ocidente tecircm sido associadas a acontecimentos histoacutericos descritos nos textos biacuteblicos que ocorreram sobretudo durante o final do reinado de Hiram I em concreto as expediccedilotildees a Tarsish realizadas em parceria com Salomatildeo29
Para aleacutem destes passos iniciais no Extremo Ocidente a reestruturaccedilatildeo da poliacutetica econoacutemica e comercial tiacuteria refletiu-se paralelamente tambeacutem na fun-daccedilatildeo de outras coloacutenias no Mediterracircneo durante o uacuteltimo quartel do seacutec IX aC30 Em 820 aC a fundaccedilatildeo de Kition na ilha de Chipre permitiu o controlo dos recursos de cobre da ilha e das suas redes comerciais31 Poucos anos depois e de acordo com os dados das fontes claacutessicas em 814 e 813 aC momentos que se parecem aproximar das recentes dataccedilotildees raacutedio carboacutenicas obtidas em escavaccedilotildees recentes32 os tiacuterios fundaram Cartago metroacutepole que se tornou num ponto es-trateacutegico para o acesso aos recursos e redes comerciais do Mediterracircneo Central e tambeacutem um nuacutecleo de apoio para a exploraccedilatildeo dos territoacuterios mais ocidentais
22 Mederos Martiacuten 2006 Aubet 2008 Nuntildeez 201523 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 28-2924 Gonzaacutelez de Canales Serrano et Llompart 200525 Mederos 199626 Finkelstein e Piasetzky 2006 Ruiz Galvez 2013 13727 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12028 Karageorghis 198729 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 2930 A fundaccedilatildeo de Auza presumivelmente localizada no litoral liacutebio seria anterior a esta
data tendo ocorrido durante o reinado de Ihobaal (887-856 aC) No entanto a inexistecircncia de dados arqueoloacutegicos que permitam confirmar a sua antiguidade e a proacutepria existecircncia justificam a sua omissatildeo neste trabalho
31 Aubet 1994 5532 Docter et al 2005
144
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
Ateacute aos meados do seacuteculo VIII aC Tiro parece ter mantido a sua autono-mia hegemonia e prestiacutegio comercial no Proacuteximo Oriente33 Eacute apenas a partir deste momento quando verifica uma maior pressatildeo tributaacuteria e uma poliacutetica expansionista agressiva por parte do impeacuterio assiacuterio que a situaccedilatildeo se altera podendo ter gerado uma intensificaccedilatildeo da colonizaccedilatildeo ultramarina Durante os reinados de Tiglatpilaser III e Sargatildeo II34 as campanhas militares assiacuterias resultaram na conquista de vaacuterias aacutereas da costa feniacutecia tendo como consequecircn-cia a reduccedilatildeo dos territoacuterios de exploraccedilatildeo deportaccedilotildees e inclusive perda de alguma autonomia poliacutetica ainda que Tiro tenha permanecido grosso modo independente35 Contudo a instabilidade carecircncias alimentares e de mateacuterias--primas assim como as fortes pressotildees demograacuteficas e tributaacuterias parecem ser os principais fatores que desencadeiam uma nova vaga colonial que atingiu o Mediterracircneo Central e Ocidental e chegou inclusivamente e ainda que de for-ma indireta ao litoral atlacircntico36 A principal justificaccedilatildeo para uma tatildeo extensa diaacutespora tem sido a necessidade de captar recursos estrateacutegicos provavelmente metaliacuteferos indisponiacuteveis em aacutereas mais proacuteximas No caso concreto da Peniacuten-sula Ibeacuterica para aleacutem dos recursos auriacuteferos e estaniacuteferos atlacircnticos conveacutem recordar a riqueza argentiacutefera da zona de Huelva (Rio Tinto) sendo esta uma das aacutereas nevraacutelgicas do mundo feniacutecio ocidental37 Contudo as pressotildees demograacute-ficas que seguramente se teratildeo sentido no Proacuteximo Oriente durante esta fase poderatildeo tambeacutem explicar esta intensificaccedilatildeo do fenoacutemeno colonial assim como a instalaccedilatildeo de novos nuacutecleos em aacutereas mais afastadas dos principais recursos mineiros como ocorre por exemplo na aacuterea de Maacutelaga38
Independentemente das referecircncias das fontes claacutessicas que estabelecem o iniacutecio desta colonizaccedilatildeo ainda em finais do 2ordm mileacutenio aC39 este processo estaacute arqueograficamente atestado apenas a partir sobretudo do seacuteculo IX e de for-ma mais intensiva e sistemaacutetica durante os seacuteculos VIII e VII aC Com efeito eacute partir destes momentos que se comprova a presenccedila feniacutecia em locais como Uacutetica Leptis Magna Hippo Hadrumetum Cartago (Tuniacutesia) Motya Solunto Palermo (Siciacutelia ndash Itaacutelia) Nora Sulcis Tharros Bithia Caralis (Sardenha ndash Itaacute-lia) Ceuta Mogador Lixus (Marrocos) Caacutedis Castillo de Dontildea Blanca Huelva
33 Aubet 2008 18534 Markoe 2000 41-4435 Aubet 1994 60 Aubet 2008 18636 Arruda 1999-2000 Dietler 2009 737 Aubet 1994 242-24338 Wagner e Alvar 1989 e 2003 Wagner 2005 18339 Veleio Pateacuterculo situa a fundaccedilatildeo de Gadir (atual Caacutedis) cerca de 80 anos depois da
queda de Troacuteia (1110 ou 1104 aC) sendo Uacutetica na costa tunisina fundada pouco mais tarde (1100 aC) Por sua vez Pliacutenio indica que Lixus na costa marroquina possuiacutea um templo dedicado a Melkart ainda mais antigo que o de Gadir pelo que seria o estabelecimento mais antigo da diaacutespora feniacutecia no Ocidente
145
Elisa de Sousa
Carambolo Sevilha Cerro Macareno Carmona Morro de Mezquetilla Chor-reras Cerro del Villar Cerro del Prado Toscanos Maacutelaga Cerro Alarcoacuten Sexi Abdera La Fonteta (Espanha) Tavira Castelo de Castro Marim Abul Alcaacutecer do Sal Setuacutebal Lisboa Almaraz Santareacutem Santa Olaia (Portugal) e tambeacutem nas ilhas de Pantelaacuteria Lampedusa Gozo e Malta40
3 Os contactos coloniais
A maior parte dos territoacuterios atingidos pela vaga colonizadora feniacutecia eram jaacute ocupados por comunidades indiacutegenas do Bronze Final Apesar de estas uacutelti-mas serem notavelmente diversificadas em termos poliacuteticos sociais e culturais os dados existentes ateacute ao momento indicam que partilhavam estrateacutegias econoacute-micas baseadas sobretudo na agricultura e pecuaacuteria e apesar de manterem em vaacuterios casos contactos de iacutendole comercial com outras aacutereas mediterracircneas41 os impactos sofridos ateacute entatildeo natildeo satildeo comparaacuteveis aos que se iratildeo verificar com a instalaccedilatildeo efetiva de colonos orientais no territoacuterio
Independentemente do grau de complexidade sociocultural que as culturas do Bronze Final possam ter atingido nos momentos que precederam o iniacutecio da colonizaccedilatildeo feniacutecia eacute inegaacutevel a sua inferioridade tecnoloacutegica em relaccedilatildeo aos receacutem-chegados Esta disparidade teraacute constituiacutedo um dos principais fatores de impacto durante os primeiros contactos estabelecidos
Com efeito as comunidades que fundaram as novas coloacutenias feniacutecias de-tinham o conhecimento de tecnologias mais avanccediladas como por exemplo a produccedilatildeo de ceracircmicas a torno de objetos de pasta viacutetrea o uso do moinho giratoacuterio e a reduccedilatildeo do ferro Os modelos arquiteturais utilizados eram com-pletamente distintos estando consubstanciados por exemplo em construccedilotildees de planta retangular e em arquiteturas mais complexas do que as utilizadas pelas populaccedilotildees indiacutegenas42 Sobre as suas praacuteticas culturais e religiosas quer de acircmbito domeacutestico quer de acircmbito mais institucional satildeo ainda poucos os da-dos disponiacuteveis ainda que os existentes indiquem clivagens muito significativas com as tradiccedilotildees autoacutectones particularmente no quadro do aparato cerimonial arquitetura religiosa e conotaccedilotildees simboacutelicas
As relaccedilotildees estabelecidas entre feniacutecios e as elites das comunidades locais podem ter sido iniciadas nos paracircmetros da troca de keimelia que estabelecem natildeo soacute viacutenculos meramente econoacutemicos mas tambeacutem de forte iacutendole sociocul-tural43 que teratildeo aberto redes comerciais futuras44 Tais ligaccedilotildees parecem ter tido
40 Aubet 1994 146-4941 Para uma siacutentese atualizada deste processo ver Ruiz Galveacutez Priego 201342 Arruda 2010 43943 Mauss 1970 Parise 2000 29-3044 Aubet 1994 123 125-26
146
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
consequecircncias avassaladoras no interior da dinacircmica quotidiana das populaccedilotildees autoacutectones Se por um lado o incremento de elementos considerados de prestiacute-gio poderaacute ter intensificado certas divisotildees sociais preacute-existentes beneficiando as elites locais45 tais produtos teratildeo constituiacutedo simultaneamente veiacuteculos de difusatildeo da cultura feniacutecia nos territoacuterios ultramarinos46 A desigualdade das trocas estabelecidas natildeo eacute nesta perspetiva uma questatildeo a considerar dado que o significado de produtos e objetos tem de ser necessariamente avaliado nos contextos socioculturais em que circula
Cabe tambeacutem natildeo esquecer que a instalaccedilatildeo de comunidades orientais im-plicou a trasladaccedilatildeo de costumes e praacuteticas poliacuteticas sociais religiosas e cultu-rais47 que natildeo passaram seguramente despercebidas agraves comunidades indiacutegenas A sua influecircncia teraacute tido repercussotildees na estrutura interna destas sociedades num processo geralmente denominado por laquoorientalizaccedilatildeoraquo48 das comunidades ocidentais Com efeito as principais divindades do panteatildeo feniacutecio oriental Baal Melkart e Astarteacute foram transpostas para os ambientes coloniais existin-do indiacutecios que permitem estabelecer que em determinadas aacutereas tais cultos teratildeo sido tambeacutem adotados pelos grupos indiacutegenas49
Por outro lado a necessidade de aplicar novas tecnologias de forma a incre-mentar a exploraccedilatildeo dos recursos locais sobretudo metaliacuteferos teraacute estado na origem da instalaccedilatildeo de autecircnticos bairros feniacutecios em povoados indiacutegenas de vaacuterias aacutereas despoletando em definitivo o processo de laquoorientalizaccedilatildeoraquo50
Por uacuteltimo e natildeo menos importante a provaacutevel existecircncia de alianccedilas poliacuteticas sistemaacuteticas entre as comunidades autoacutectones e os grupos orientais possivelmente substanciadas em laquomatrimoacutenios mistosraquo teraacute seguramente contribuiacutedo para este processo51 dando origem a novas geraccedilotildees educadas em grande parte no quadro dos valores culturais semitas
Com efeito em pouco tempo os elementos culturais de cariz orientalizante seratildeo aqueles que iratildeo marcar o registo arqueoloacutegico das aacutereas colonizadas du-rante a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC
Em alguns casos conhecidos como por exemplo no litoral atlacircntico da Peniacutensula Ibeacuterica o mundo indiacutegena dos iniacutecios do mileacutenio praticamente desapareceu quando se iniciaram os contactos coloniais52 Os modelos de po-voamento colapsaram as estrateacutegias de exploraccedilatildeo do territoacuterio alteraram-se
45 Delgado Hervaacutes 2008 3246 A utilizaccedilatildeo destes bens de prestiacutegio eacute particularmente observaacutevel por exemplo nos
contextos funeraacuterios do sul da Andaluzia e Extremadura espanhola47 Beleacuten Deamos 200948 Dietler 2009 2349 Beleacuten Deamos 200950 Delgado Hervaacutes 2008 Aubet 201251 Ruiz Galvez Priego 2013 23652 Arruda 2014 531
147
Elisa de Sousa
a cultura material transformou-se e os ritos e costumes funeraacuterios adquiriram novas particularidades que se prendem mais com costumes semitas que com as tradiccedilotildees da Idade do Bronze Com efeito uma parte muito significativa dos povoados de altura dos iniacutecios do 1ordm mileacutenio foram abandonados aquando da instalaccedilatildeo de gentes orientais no territoacuterio e nos casos em que se observou uma continuidade a arquitetura e a cultura material assumiram a partir de entatildeo um caraacutecter marcadamente oriental53
Eacute provaacutevel que estas populaccedilotildees autoacutectones tenham sido pelo menos em parte absorvidas pelos nuacutecleos de habitat ocupados durante os momentos ini-ciais da Idade do Ferro Quer em locais de cariz mais indiacutegena quer em centros de natureza colonial observa-se em maior ou menor quantidade a presenccedila de produccedilotildees ceracircmicas que se inscrevem ainda nas tradiccedilotildees do Bronze Final54 No entanto a sua relevacircncia parece diminuir progressivamente ao longo do tempo atingindo percentagens muito reduzidas durante os finais da primeira metade do 1ordm mileacutenio aC
Uma situaccedilatildeo muito similar eacute tambeacutem evidente em outras aacutereas do Mediterracirc-neo como no sul da Sardenha onde as notaacuteveis estruturas nuraacutegicas que caracte-rizam as fases finais da Idade do Bronze desta aacuterea parecem ter sido abandonadas salvo algumas exceccedilotildees durante os iniacutecios da Idade do Ferro55 coincidindo com a fase inicial da instalaccedilatildeo permanente de populaccedilotildees orientais no territoacuterio
Eacute contudo ainda difiacutecil determinar se estas alteraccedilotildees se relacionam diretamente com a evoluccedilatildeo da poliacutetica colonial semita que adquire nestes momentos um caraacutecter efetivo e permanente ou se teratildeo sido uma consequecircn-cia de fatores de instabilidade internos despoletados no quadro dos contactos preacute-coloniais
Consideraccedilotildees finais
Os dados que a anaacutelise histoacuterica e arqueoloacutegica tem vindo a revelar jaacute natildeo permitem defender que a presenccedila feniacutecia nos territoacuterios coloniais se limitou a meras transaccedilotildees de cariz comercial e agrave necessidade de obtenccedilatildeo de mateacuterias--primas Os contactos que estas comunidades estabeleceram com as populaccedilotildees indiacutegenas alteraram de forma definitiva e irremediaacutevel o contexto poliacutetico social e cultural dos grupos intervenientes
Mesmo admitindo um caraacutecter essencialmente paciacutefico que teraacute deter-minado a natureza desses contactos56 a laquoconquistaraquo destas aacutereas longiacutenquas
53 Veja-se por exemplo o caso da aacuterea de Huelva e do Vale do Guadalquivir no sul do territoacuterio peninsular
54 Arruda 1999-2000 Azuar et al 1998 Gonzaacutelez Prats 1998 Rouillard et al 2007 Aubet et al 1999 Delgado e Ferrer 2007 Torres Ortiacutez et al 2014 Sousa 2015 e 2016
55 Ruiz Galvez Priego 200556 Este caraacutecter laquopaciacuteficoraquo tem contudo vindo a ser discutido no contexto da colonizaccedilatildeo
148
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
transformou-se numa realidade Ainda que os mecanismos dessa difusatildeo natildeo tenham adotado os cacircnones das verdadeiras potecircncias imperiais do mundo antigo definidos sobretudo pela imposiccedilatildeo de relaccedilotildees de domiacutenio atraveacutes de meios poliacuteticos e militares a laquoculturaraquo feniacutecia converteu-se numa laquoarmaraquo de eficaacutecia extraordinaacuteria na legitimaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da presenccedila oriental nos territoacuterios colonizados
Determinar a verdadeira intencionalidade desta laquoconquista silenciosaraquo eacute uma questatildeo difiacutecil de abordar Com a eventual exceccedilatildeo de Cartago as coloacute-nias feniacutecias no Mediterracircneo Central Ocidental e do Atlacircntico nunca deram indiacutecios de poliacuteticas territoriais agressivas e a componente militar parece estar em grande parte ausente no projeto de expansatildeo Os intuitos de cariz essencial-mente comercial que subjazem a este processo poderatildeo ter amenizado numa primeira fase eventuais confrontos com as comunidades locais uma vez que as transaccedilotildees seriam beneacuteficas pelo menos nos quadros sociopoliacuteticos superiores para ambas partes intervenientes A difusatildeo de valores culturais orientais pode ser encarada como uma consequecircncia espontacircnea da fixaccedilatildeo de gentes feniacutecias em novos territoacuterios O seu efeito foi contudo evidente dado que resultou na criaccedilatildeo de uma koine cultural orientalizante que em algumas zonas como eacute o caso do ocidente Atlacircntico do territoacuterio peninsular57 soacute seraacute substituiacuteda com a romanizaccedilatildeo
Com efeito durante a fase inicial da Idade do Ferro (seacutec IX a VI aC) a cultura material do litoral do Mediterracircneo Central e Ocidental assim como da fachada atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e de Marrocos reveste-se de caracte-riacutesticas que satildeo facilmente rastreaacuteveis na sua geacutenese ao mundo oriental ainda que possam ter adquirido posteriormente feiccedilotildees mais regionais No quadro das produccedilotildees ceracircmicas dominam os vasos feitos a torno que se integram nas principais categorias morfo-funcionais do mundo semita (ceracircmicas de engobe vermelho acircnforas de transporte de produtos alimentares vasos de armazena-mento com decoraccedilotildees pintadas etc) Os modelos arquitetoacutenicos substanciados em estruturas de planta ortogonal por vezes organizadas em torno a paacutetios cen-trais e as proacuteprias teacutecnicas construtivas utilizadas revestem-se tambeacutem elas de um claro cariz oriental encontrando-se difusas por todas as aacutereas directa ou in-diretamente afetadas pela diaacutespora feniacutecia Mesmo no plano religioso funeraacuterio e cultual satildeo frequentes as manifestaccedilotildees que se podem relacionar diretamente com esse processo como se verifica pela adoccedilatildeo de cacircnones orientais na cons-truccedilatildeo de edifiacutecios religiosos nas evidecircncias do culto de divindades do Proacuteximo Oriente e na ampla disseminaccedilatildeo de praacuteticas e ritos funeraacuterios feniacutecios58
feniacutecia ocidental ndash Wagner 200557 Arruda 1999-2000 Sousa 201658 Entre outros Arruda 1999-2000 Aubet 1994 Frankestein 1997 Loacutepez Castro 2007
Ruiz Mata et Celestino Peacuterez 2001
149
Elisa de Sousa
Contudo reconstituir a histoacuteria de periacuteodos tatildeo remotos e em territoacuterios tatildeo perifeacutericos face aos nuacutecleos primaacuterios da produccedilatildeo de documentos escritos esbarra inevitavelmente na ausecircncia de dados concretos que permitam confir-mar ou refutar modelos interpretativos O registo arqueoloacutegico por si soacute eacute em grande parte insuficiente na medida em que os dados que se podem extrair des-tes vestiacutegios do passado satildeo pela sua natureza muito limitados A dificuldade de avaliar a multiplicidade do seu significado e de compreender o seu contexto cultural nas vaacuterias dimensotildees existentes entre o indiviacuteduo e a comunidade pode por vezes desmotivar tentativas de interpretaccedilatildeo do passado
Compreender a verdadeira essecircncia dos primeiros contactos estabelecidos entre colonos feniacutecios e comunidades indiacutegenas torna-se assim numa tarefa virtualmente impossiacutevel Eacute inegaacutevel que os grupos intervenientes neste processo satildeo heterogeacuteneos na sua composiccedilatildeo Cada comunidade indiacutegena envolve um grau de complexidade que escala divisotildees sociais no seu interior Entre escravos agricultores metalurgistas sacerdotes e elites poliacutetico-sociais oscilam valores costumes e praacuteticas culturais assim como a sua interpretaccedilatildeo de fenoacutemenos contemporacircneos Os proacuteprios grupos feniacutecios natildeo satildeo por outra parte uma entidade homogeacutenea Apesar do peso que Tiro seguramente exerceu na diaacutespora para Ocidente a presenccedila de indiviacuteduos com origens distintas quer em termos geograacuteficos (Sidoacuten Biblios Chipre e mesmo de outras aacutereas do Mediterracircneo) quer em termos sociais implica uma multiplicidade cultural que mal consegui-mos ainda interpelar59
Por outro lado eacute tambeacutem indiscutiacutevel que os contactos entre estes grupos heterogeacuteneos natildeo se revestiram de um caraacutecter unilateral e que a sociedade dos colonizadores foi alterada estruturalmente pelas ligaccedilotildees com a multiplicidade de comunidades autoacutectones As diferentes aacutereas orientalizadas exibem com efeito num curto periacuteodo temporal caracteriacutesticas proacuteprias que permitem a sua ulterior individualizaccedilatildeo
No entanto e apesar de todas as condicionantes previamente indicadas a sobrevivecircncia de elementos culturais feniacutecios nos territoacuterios colonizados e a desestruturaccedilatildeo dos sistemas preacute-existentes refletem a difusatildeo e predomiacutenio de valores costumes e praacuteticas orientais sobre outras comunidades60 No acircmbito destas relaccedilotildees desiguais de domiacutenio e poder laquoculturalraquo pensamos que eacute possiacutevel legitimar a existecircncia de um imperialismo feniacutecio no seu mundo colonial que teraacute vigorado ateacute aos meados do 1ordm mileacutenio aC
59 Beleacuten Deamos 2009 19760 Arruda 1999-2000 2014
150
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
Bibliografia
Arruda Ana Margarida 2014 ldquoA oeste tudo de novo Novos dados e outros modelos interpretativos para a orientalizaccedilatildeo do territoacuterio portuguecircsrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 512-35 Lisboa Uniarq ndash Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
mdashmdashmdash 2010 ldquoFeniacutecios no territoacuterio actualmente portuguecircs e nada ficou como antesrdquo In El Carambolo 50 antildeos de un tesoro 439-52 Sevilla Universidad de Sevilla
mdashmdashmdash 1999-2000 Los feniacutecios en Portugal Feniacutecios y mundo indiacutegena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI aC) Cuadernos de Arqueologiacutea Mediterraacutenea 5-6 Barcelona Publicaciones del Laboratorio de Arqueologiacutea de la Universidad Pompeu Fabra
Aubet Maria Eugenia 2012 ldquoEl barrio comercial fenicio como estrategia colonialrdquo Rivista di Studi Fenici 40 (2)221-36
mdashmdashmdash 2008 ldquoPolitical and economical implications of the new phoenician chronologiesrdquo In Beyond the homeland Markers in Phoenician chronology ed C Sagona 179-91 Leuven Peeters
mdashmdashmdash 2000 ldquoAspects of Tirian trade and colonization in the Eastern Mediterraneanrdquo Munsterche Beitrage zur Antiken Handelsgeschichte 19 (1)70-120
mdashmdashmdash 1994 Tiro y las colonias feniacutecias de Occidente Edicioacuten ampliada y puesta al diacutea Barcelona Criacutetica
Aubet Maria Eugenia P Carmona E Curiagrave A Delgado A Fernaacutendez Cantos e M Paacuterraga 1999 Cerro del Villar 1 El asentamiento fenicio en la desembocadura del rio Guadalhorce y su interaccioacuten con el hiterland Sevilla Junta de Andalucia
Azuar R P Rouillard E Gailledrat F Sala Selleacutes e A Badie 1998 ldquoEl asentamiento orientalizante e ibeacuterico antiacuteguo de laquoLa Rabitaraquo (Guardamar del Segura Alicante) Avance de las excavaciones 1996-1998rdquo Trabajos de Prehistoria 55 (2)111-26
Beleacuten Deamos M 2009 ldquoPhoenicians in Tartessosrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 193-228 Chicago Chicago University Press
Bikai P M 1983 ldquoThe Imports from the Eastrdquo In Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus ed V Karageorghis Vol 2 396-406 Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut
Bunnens G 1985 ldquoLe luxe pheacutenicien drsquoapregraves les inscriptions royales assyriennesrdquo Studia Phoenicia 3121-33
Bush B 2006 Imperialism and postcolonialism Harlow Pearson Education
151
Elisa de Sousa
Delgado Hervaacutes A 2008 ldquoColonialismos fenicios en el sur de Iberia Historias precedentes y modos de contactordquo In De Tartessos a Manila Siete estuacutedios coloniales y poscoloniales 19-32 Valencia Universidad de Valencia
Delgado A e M Ferrer 2007 ldquoCultural Contacts in Colonial Settings The construction of New Identities in Phoenician Settlements of the Western Mediterraneanrdquo Stanford Journal of Archaeology 518-42
Dietler M 2009 ldquoColonial Encounters in Iberia and the Western Mediterraneanrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 3-48 Chicago Chicago University Press
Docter R H Niemeyer A J Nijboer e J Van der Plicht 2005 ldquoRadiocarbon dates of animal bones in the earliest levels of Carthagerdquo In Oriente e Occidente metodi e discipline a confront Riflesioni sulla cronologia dellrsquoetaacute del Ferro in Italia ed G Bartoloni e F Delpino 557-77 Roma Istituti Editoriali Poligrafici Internazionali
Finkelstein I e N A Silberman 2007 David y Salomoacuten en busca de los reyes sagrados de la Biblia y las raices de la tradicioacuten occidental Madrid Siglo XXI
Filkensten I e E Piasetvsky 2009 ldquoRadiocarbon-dated destruction layers a skeleton for Iron Age chronology in the Levantrdquo Oxford Journal of Archaeology 28 (3)255-74
mdashmdashmdash 2006 ldquo14C and Iron Age chronological debate Rehov Khibet-en-Nahas Dan and Megiddordquo Radiocarbon 48 (3)373-86
Frankenstein S 1997 Arqueologia del colonialismo El impacto fenicio y griego en el sur de la Peninsula Iberica y el suroeste de Alemania Barcelona Criacutetica
Galaacuten E e M Ruiz-Galveacutez Priego 2007 ldquoWriting ciphers self-consciousness and private trade at the eve of the Phoenician colonizationrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 229-37 Lisboa Uniarq Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
Gonzaacuteles de Canales F L Serrano e J Llompart 2005 El emporio fenicio precolonial de Huelva (ca 900-770 aC) Madrid Biblioteca Nueva
Jankowska N B 1969 ldquoSome problems of the economy of the Assyrian empirerdquo In Ancient Mesopotamia Socio-economic History A Collection of Studies by Soviet Scholars 253-76 Moscow USSR Academy of Science
Gonzaacutelez Prats A 1998 ldquoLa Fonteta El asentamiento fenicio de la desembocadura del riacuteo Segura (Guardamar Alicante Espantildea) Resultados de las excavaciones de 19961997rdquo Rivista di Studi Fenici 26 (2)191ndash28
Karageorghis V 1987 ldquoChronique des fouilles et deacutecouvertes agrave Chypre 1986rdquo Bulletin de Coacuterrespondence Helleacutenique 111 (2)663-733
mdashmdashmdash ed 1983 Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut
152
Imperialismo no mundo colonial feniacutecio
Liverani Mario 2005 Maacutes Allaacute de la Biblia Historia Antigua de Israel Barcelona Criacutetica
Castro J L Loacutepez ed 2007 Las ciudades fenicio-puacutenicas en el Mediterraacuteneo Occidental Almeria Universidad de Almeria Centro de Estudios Fenicios y Punicos
Markoe Glenn 2000 Phoenicians Berkeley University of California PressMartiacuten Ruiz J A 2010 ldquoHiram I rey de Tirordquo Herakleion 37-35Mauss M 1970 The Gift Forms and functions of Exchange in archaic societies
London Cohen and WestMederos Martiacuten A 2006 ldquoFenicios en Huelva en el siglo X AC durante el
reinado de Hiratildem I de Tirordquo Spal 15167-88mdashmdashmdash 1996 ldquoLa conexiacuteon levantino-chipriota Indicios de comercio atlaacutentico
com el Mediterraacutenel Oriental durante el Bronce Final (1150-950 a C)rdquo Trabajos de Prehistoria 52 (5)95-115
Nuacutentildeez F J 2015 ldquoReflexiones sobre la cronologia de los iniacutecios de la Edad del Hierro en el Mediterraacuteneo ocidental y sus problemasrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 4123-37
Parise N 2000 La nacita della moneta Segni premonetari e forme archaiche dello scambio Roma Donzelli editore
Shaw J 1998 ldquoKommos in Southern Crete na Aegean barometer for East-West interconnectionsrdquo In Eastern Mediterranean Cyprus- Dodecanese-Crete 16th ndash 6th cent BC ed V Karageorghis e N Stampolidis 13-28 Atenas Universidade de Creta A G Leventis Foundation
Sousa E 2016 ldquoA Idade do Ferro em Lisboa uma primeira aproximaccedilatildeo a um faseamento cronoloacutegico e agrave evoluccedilatildeo da cultura materialrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 42167-85
mdashmdashmdash 2015 ldquoThe Iron Age occupation of Lisbonrdquo Madrider Mitteilungen 56109-38
Rouillard P E Gailledrat e F Sala Selleacutes 2007 Lrsquoeacutetablissement protohistorice de La Fontenta (fin VIIIe ndash fin VIe siegravecle av J C) Madrid Casa de Velaacutezquez
Ruiz L A e C Wagner 2006 ldquoDavid Salomoacuten e Hiran de Tiro una relacioacuten desigualrdquo Isimu 8107-12
Ruiz-Galveacutez Priego M 2013 Con el feniacutecio en los talones Los inicios de la Edad del Hierro en la cuenca del Mediterraacuteneo Barcelona Bellaterra Arqueologiacutea
mdashmdashmdash ed 2005 Territorio nuraacutegico y paisaje antiguo La meseta de Pranemuru (Cerdentildea) en la Edad del Bronce Madrid Universidad Complutense
153
Elisa de Sousa
Ruiz Mata D e S Celestino Peacuterez eds 2001 Arquitectura oriental y Arquitectura orientalizante en la Peniacutensula Ibeacuterica Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientificas
Tomlinson J 1991 Cultural Imperialism a critical introduction London Continuum
Torres Ortiacutez M E Loacutepez Rosendo J M Gener Basallote M A Navarro Garciacutea e J M Pajuelo Saacuteez 20014 ldquoEl material ceracircmico de los contextos fenicios del ldquoTetaro Coacutemicordquo de Caacutediz un anaacutelisis preliminarrdquo In Los Fenicios en la Bahiacutea de Caacutediz Nuevas investigaciones ed M Botto 51-82 Pisa Roma Fabrizio Serra
Wagner C 2005 ldquoFenicios en el Extremo Occidente conflito y violencia en el contexto colonial arcaicordquo Revista Portuguesa de Arqueologia 8 (2)177-92
Wagner C e J Alvar 2003 ldquoLa colonizacioacuten agriacutecola en la Peniacutensula Ibeacuterica Estado de la cuestioacuten y nuevas perspectivasrdquo In Ecohistoria del paisaje agrario La agricultura fenicio-puacutenica en el Mediterraacuteneo 187-203 Valencia Universitat de Valencia
mdashmdashmdash 1989 ldquoFenicios en Occidente la colonizacioacuten agriacutecolardquo Rivista di Studi Fenici 1761-102
Zaccagnini C 1984 ldquoLa circolazione dei beni di lusso nelle fonti neo-assirerdquo Opus 3235-47
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
155
Marcel L Paiva do Monte
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio1
(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the Neo-Assyrian empire)
Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)
CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc
Resumo - Em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo eacute um ato de inusitada atrocidade cujo propoacutesito eacute sobretudo simboacutelico e semioacutetico Ato de propa-ganda elemento de rituais ou signo de triunfo a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ndash componente visiacutevel fundamental da identidade e do ser ndash eacute uma sineacutedoque poderosa que manifesta a sua derrota e a ruiacutena de tudo o que representa para o vitorioso Neste trabalho satildeo expostas reflexotildees sobre o papel da caput hostis como instrumento discursivo do poder poliacutetico na Assiacuteria do I mileacutenio aC estabelecendo diferentes significados produzidos pelas suas modalidades de expressatildeo visual e textual
Palavras-chave Decapitaccedilatildeo Guerra Assiacuteria Assurbaniacutepal Teumman
Abstract ndash In military or venatory contexts of violence decapitation is a startling atrocity with a mostly symbolic and semiotic purpose An act of propaganda element of rituals or sign of triumph the appropriation of an enemyrsquos severed head ndash a crucial visible component identity and self ndash acts as a powerful synecdoche that manifests its physical defeat and the ruin of everything he stands for to the victor In this work are presented a few reflections concerning the role of the caput hostis as discoursive instrument of political power in Assyria during the 1st millennium BCE establishing some of the different meanings produced by several modes of textual and visual expressions
Keywords Decapitation Warfare Assyria Ashurbanipal Teumman
A decapitaccedilatildeo de um inimigo e a exibiccedilatildeo da sua cabeccedila como trofeacuteu tem um significado autoevidente a derrota e humilhaccedilatildeo de um homem e a suprema
1 Abreviaturas usadas CAH III-2 1991 ndash The Cambridge Ancient History Vol 3 part 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC OIP 2 ndash Luckenbill D D 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) RIMA 2 ndash Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) RINAP 31 ndash Grayson A Kirk Novotny Jamie (eds) 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 SAA IV ndash Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) SAA IX ndash Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) SAA XI ndash Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) ARAB ndash Luckenbill D D 1968 Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_8
156
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
vitoacuteria de outro Utilizando essa demonstraccedilatildeo o vitorioso afirma dispor com-pletamente do adversaacuterio atraveacutes do seu corpo A cabeccedila do inimigo prova cabal da vitoacuteria converte-se tambeacutem num signo que a reifica que a torna visiacutevel e sensiacutevel imprimindo-a nas mentes de todos a quem tal exibiccedilatildeo pudesse ser dirigida
Estas observaccedilotildees serviratildeo aqui como mote a um estudo mais especiacutefico de um caso que permite observar num contexto histoacuterico concreto um exemplo da construccedilatildeo do imaginaacuterio acerca do rei no impeacuterio neo-assiacuterio Este rei idea-lizado Assurbaniacutepal seraacute contrastado com a imagem mais mundana de outro monarca que era natildeo apenas estrangeiro mas tambeacutem inimigo da Assiacuteria (logo um laquoanti-reiraquo) Teumman rei do Elam De tal comparaccedilatildeo resulta inevitaacutevel a derrota do Elamita cujo destino seria catastroacutefico desmascarado e exposto pela retoacuterica assiacuteria tambeacutem o relato da sua morte violenta e os seus restos mortais foram utilizados como veiacuteculos de propaganda uma oportunidade para refor-ccedilar a feiccedilatildeo imaginada positiva poderosa e legiacutetima do rei da Assiacuteria Este tema do argumentaacuterio poliacutetico neo-assiacuterio surge em representaccedilotildees visuais e textuais elaboradas entre os seacuteculos X e VII aC A decapitaccedilatildeo de Teumman durante a batalha de Til Tuba e a representaccedilatildeo de escribas assiacuterios inventariando o nuacutemero de inimigos mortos atraveacutes da contagem das suas cabeccedilas empilhadas satildeo dois aspetos diferentes do mesmo topos visual embora com significados opostos que alternam entre conhecimento (epistegraveme) e obliacutevio atributos de vitoacuteria e de derrota respetivamente
1 O teatro da violecircncia
A guerra e a vitoacuteria militar eram temas privilegiados na representaccedilatildeo do poder nos mais variados contextos geograacuteficos e culturais do Proacuteximo Oriente antigo Nesse acircmbito temaacutetico geral a violecircncia e a mutilaccedilatildeo de inimigos der-rotados eram elementos retoacutericos frequentes no registo iconograacutefico e textual A guerra e a sua violecircncia conduzida pelo poder integravam um discurso que acentuava a componente militar da realeza refletindo a capacidade do soberano de conservar e alargar natildeo apenas o territoacuterio mas tambeacutem a disponibilidade de recursos materiais Refletia tambeacutem de uma forma apologeacutetica a imposiccedilatildeo da paz domeacutestica e da tranquilidade externa pelo uso da forccedila Tal discurso expressava uma cultura poliacutetica com elementos comuns em vaacuterios contextos no Proacuteximo Oriente pese embora as diferenccedilas culturais por vezes profundas entre regiotildees como o Egito a Siacuteria ou a Mesopotacircmia
A decapitaccedilatildeo do inimigo enquanto topos iconograacutefico seria algo inco-mum na Mesopotacircmia ao contraacuterio do que sucedia por exemplo em certas regiotildees da Siacuteria Neste quadro o tema constituiria mais um dos vetores da in-fluecircncia cultural siro-hitita sobre a Assiacuteria como foi exposto por Rita Dolce que
157
Marcel L Paiva do Monte
seguindo caminhos abertos por Irene J Winter2 fornece uma perspetiva acerca da adoccedilatildeo do tema do inimigo decapitado nas inscriccedilotildees reais e na iconografia assiacuteria Como modelos e antecedentes para esta influecircncia artiacutestica e discursiva Dolce refere peccedilas iconograacuteficas siacuterias como o laquoestandarteraquo de Ebla ou esculturas produzidas no reino siro-hitita de Carchemiš3
Na Assiacuteria de facto este tema comeccedila a ser mais identificaacutevel nas inscri-ccedilotildees reais ao mesmo tempo que pela primeira vez surge o geacutenero analiacutestico durante o reinado de Tiglat-Falasar I4 Desde entatildeo vaacuterios reis assiacuterios relatam nas suas inscriccedilotildees com maior ou menor frequecircncia as crueldades incluindo a decapitaccedilatildeo infligidas sobre os inimigos derrotados Apesar de tais atos natildeo serem praticados de forma sistemaacutetica mas seletiva de acordo com o grau de ofensa cometida contra o poder assiacuterio e a relaccedilatildeo com ele preacute-existente5 a sua representaccedilatildeo nos programas artiacutesticos e nas inscriccedilotildees reais passam a assumir alguma preponderacircncia
Aššurnaṣirpal II foi um dos reis que utilizou com maior fulgor nos seus textos analiacutesticos o relato das seviacutecias punitivas perpetradas contra populaccedilotildees hostis Eacute possiacutevel citar como exemplo uma campanha que este efetuou contra o reino de Bicirct-Adini durante a qual ordenou o esfolamento de um grande nuacutemero de oficiais e soldados Ao proacuteprio rei inimigo a mesma medida foi aplicada antes de os seus restos mortais serem exibidos como sinal de vitoacuteria6 Referindo-se a outra ocasiatildeo Aššurnaṣirpal II apresenta mais um exemplo de um rol mais diversificado de tormentos cometidos contra inimigos insubmissos
laquoQueimei muitos cativos entre eles Capturei muitos soldados vivos a alguns cortei os braccedilos e as matildeos a outros cortei os narizes as orelhas e as extremidades Arranquei os olhos de muitos soldados Fiz uma pilha com os vivos e uma outra com cabeccedilas Pendurei as suas cabeccedilas em aacutervores em torno da cidaderaquo7
Num dos relevos esculpidos do palaacutecio de Aššurnaṣirpal II em Kalḫu eacute possiacutevel observar uma cena na qual cabeccedilas de inimigos satildeo objetos de mofa tal como num jogo soldados assiacuterios descontraem atirando-as uns para os outros Enquanto decorre tal brincadeira muacutesicos tocam os seus instrumentos confer-indo um certo lirismo agrave cena de escaacuternio do inimigo8
2 Dolce 2004 121-32 Winter [1982] 2010 1525-62 Ver tambeacutem Reade 1979 335 Harmanşah 2007 69-99
3 Ver as figs 5-11 em Dolce 2004 124-294 Grayson 1981 38 Tadmor 1997 325-38 (especialmente 327-28) Liverani 1988 763-655 Reed 2007 106 Cf Reade 1979 332-346 RIMA 2 A 01011 i 89-937 RIMA 2 A 01011 i 116-18 8 British Museum BM 124550 (fig 1)
158
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
Todavia a puniccedilatildeo de um vencido constituiacutea geralmente um espetaacuteculo puacuteblico mais sofisticado Como este que teraacute tido lugar no reinado de Assaradatildeo apoacutes a sua vitoacuteria contra Sarduaris rei do Urarṭu e Abdi-Milkuti rei de Siacutedon aliados contra a Assiacuteria
laquoPara que o poder de Aššur meu senhor se tornasse manifesto pendurei as suas cabeccedilas nos ombros dos seus nobres e com cacircnticos e muacutesica desfilei pela praccedila de Niacuteniveraquo9
Aleacutem da apropriaccedilatildeo do saque obtido pela guerra o esfolamento a imo-laccedilatildeo a mutilaccedilatildeo de olhos e membros sem esquecer a decapitaccedilatildeo eram alguns dos atos que os textos descreviam e que materializavam de forma pungente a forccedila do mando da Assiacuteria Tais supliacutecios eram cometidos como castigos mas tambeacutem serviam o intuito de propagar uma mensagem intimidatoacuteria junto de inimigos externos fossem estes reais ou meramente potenciais Pretendia-se assim que a fama do poder assiacuterio precedesse a marcha dos seus exeacutercitos A es-sas accedilotildees bem se adequa a expressatildeo de A T Olmstead que haacute muitas deacutecadas qualificou este tipo de discurso e de exerciacutecio de poder praticado pelos Assiacuterios como um modo de calculated frightfulness10
Esta brutalidade exercida pelo poder que ocorria sem duacutevida no plano da realidade e era projetada no plano da representaccedilatildeo literaacuteria e iconograacutefica adequa-se agrave qualificaccedilatildeo de laquofesta punitivaraquo que Michel Foucault atribuiu agrave pena e tortura capital aplicadas nos contextos por ele estudados11 Entre os objectivo da teatralizaccedilatildeo em torno de muitos supliacutecios infligidos sobre os corpos de solda-dos e reis inimigos natildeo estaria alheia a tentativa de gerar o temor e de dissuadir as revoltas um dos laquoefeitos positivosraquo que Foucault postula surgirem com a demonstraccedilatildeo da capacidade de violecircncia do poder
Esperar-se-ia que esses efeitos fossem gerados no contexto assiacuterio pela exibiccedilatildeo da violecircncia como laquotaacutetica poliacuteticaraquo12 que passaria tambeacutem em uacuteltimo plano pela execuccedilatildeo de um programa artiacutestico e pela utilizaccedilatildeo de uma retoacuterica textual e visual que induzisse determinados comportamentos por parte dos seus recetores13
Os efeitos da continuidade do emprego destes mecanismos de intimidaccedilatildeo ao longo da expansatildeo assiacuteria podem ser exemplificados por um trecho extraiacutedo
9 ARAB II sect 51410 Olmstead 1918 209-6311 Foucault 1975 1512 Foucault 1975 3113 Essas reaccedilotildees seriam naturalmente distintas consoante os observadores fossem estes
membros da elite proacutexima do poder pessoas de baixa extracccedilatildeo que tivessem o privileacutegio de en-trar num palaacutecio assiacuterio ou mesmo dignitaacuterios refeacutens ou prisioneiros estrangeiros reverecircncia ou identificaccedilatildeo por parte de uns temor e admiraccedilatildeo por parte de outros
159
Marcel L Paiva do Monte
da ceacutelebre Carta ao deus Aššur documento redigido no reinado de Sargatildeo II Este texto pertencente ao geacutenero literaacuterio das laquocartas aos deusesraquo relata a sua oitava campanha desencadeada contra as regiotildees montanhosas que rodeavam a Assiacuteria junto ao Urarṭu e agrave Meacutedia Um trecho escolhido serve como demons-traccedilatildeo do efeito dissuasor que se esperava provocar pela fama da capacidade militar assiacuteria
laquoContra Parsuaš me dirigi Os chefes da terra de Namri Sangibuti Bicirct-Abdadani e da terra dos poderosos Medos sabendo da vinda da minha expediccedilatildeo ndash como a devastaccedilatildeo das suas terras que tivera lugar no ano anterior estava ainda na sua memoacuteria o terror abateu-se sobre elesraquo14
A menccedilatildeo a estas brutalidades exercidas sobre os vencidos surge nas fontes textuais geralmente apoacutes a referecircncia agrave accedilatildeo beacutelica propriamente dita Natildeo se tratando assim de atos de guerra tout court seriam entendidos tambeacutem como a execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial equivalente agrave pena capital (dicircn napištim) uma das prerrogativas que na Mesopotacircmia era tradicionalmente exclusiva do rei Por isso mesmo num diferente niacutevel semacircntico laquocrimeraquo e laquocriminosoraquo eram expressotildees aplicadas tambeacutem a inimigos externos sobre os quais recairia a laquopenaraquo ou castigo laquojudicialraquo ndash a guerra punitiva cuja execuccedilatildeo se concebia como autorizada encorajada e confiada pelos deuses ao rei15
De facto do ponto de vista ideoloacutegico o rei assiacuterio afirmava-se como laquoo rei que com a ajuda de Aššur e de Šamaš os deuses que nele confiam age justa-menteraquo šarru ša ina tukūlti dAššur u dŠamaš ilāni tikli-šu mešeriš16 ou como o laquoguardiatildeo do que eacute correto e amante da justiccedilaraquo naṣir kitti u rarsquoim mešari17 Neste sentido a guerra natildeo era apenas concebida como fenoacutemeno unicamente situado num plano poliacutetico e militar mas apresentada como a justa retribuiccedilatildeo perante um casus belli cuja culpa recairia sempre no adversaacuterio segundo o discurso ideoloacutegico estruturante das inscriccedilotildees reais18 O inimigo era visto como um laquocri-minosoraquo um laquopecadorraquo o uacutenico responsaacutevel pelo seu proacuteprio castigo sofrido agraves matildeos do rei assiacuterio que mais natildeo faria do que agir como verdugo dos deuses na terra19 Senaquerib justifica desta forma a sua primeira campanha desencadeada
14 Extraiacutedo da ediccedilatildeo de Thureau-Dangin 1912 3915 Uma siacutentese fundamental sobre a guerra como ato de justiccedila em Oded 1992 29-4416 Aššurnaṣirpal II RIMA 2 A01011 i 2217 Senaquerib OIP 2 23 H2 i 4-518 Oded 1992 3019 Tal conceccedilatildeo do monarca como instrumento como arma de guerra utilizado pela divin-
dade eacute um elemento comum nas culturas do Proacuteximo Oriente antigo Ressurge com frequecircncia no Antigo Testamento por exemplo no oraacuteculo do profeta Isaiacuteas contra os Assiacuterios que satildeo designados pelas palavras de Yahweh como laquovara da minha coacuteleraraquo laquobastatildeo do meu furorraquo e como um laquomachadoraquo manejado pelo proacuteprio Deus (Is 10 5-16) Cf o versiacuteculo em que Yahweh vitupera a hybris do rei da Assiacuteria que na perspetiva do profeta biacuteblico contraria a confianccedila nas
160
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
contra os rebeldes caldeus na Babiloacutenia comandados por Marduk-apla-iddina liacuteder da tribo de Bicirct-Yakīn Este eacute apresentado como um laquo[instigador] de revoltas [baranū] um maquinador de traiccedilatildeo [karaš surrāti] causador de males [epeš limutti] cuja vilania eacute grande [ša anzilla-šu kabtu]raquo20
Seguindo Bustenay Oded pode entender-se este contraste entre os atributos do soberano assiacuterio com os dos seus adversaacuterios como um elemento moral de justificaccedilatildeo para a guerra Legitimar-se-ia assim a expansatildeo militar atraveacutes de laquoargumentos eacuteticosraquo que a explicavam e enquadravam numa conceccedilatildeo de laquoguerra justaraquo21 Esses argumentos faziam parte de um discurso e de uma retoacuterica que refletia os paracircmetros ideoloacutegicos que sustentavam a expansatildeo militar assiacuteria natildeo apenas por intermeacutedio de textos como as inscriccedilotildees reais mas tambeacutem com o recurso a imagens e peccedilas monumentais que preenchiam os palaacutecios assiacuterios22
2 Assurbaniacutepal vs Teumman
Um dos conjuntos monumentais assiacuterios mais importantes pela sua riqueza narrativa e execuccedilatildeo artiacutestica eacute constituiacutedo por vaacuterios ortoacutestatos esculpidos em baixo-relevo que pertenciam ao Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive construiacutedo por Senaquerib Este complexo palaciano fora utilizado mais tarde pelo seu neto As-surbaniacutepal que nele concentrou tambeacutem os esforccedilos da sua produccedilatildeo simboacutelica Parte desse esforccedilo resultou nos relevos que retratam a batalha de Til Tuba travada contra os Elamitas no ano de 653 (ou 664) aC episoacutedio culminante de uma conjuntura agitada no quadro do difiacutecil relacionamento entre a Assiacuteria e o Elam23
Apoacutes um periacuteodo de paz inaugurado ainda no reinado de Assaradatildeo24 Urtaku rei do Elam fora deposto por um indiviacuteduo chamado Teumman que se dispocircs a desencadear o conflito latente com a Assiacuteria Teumman eacute designado com
divindades e conta apenas com a sua arrogacircncia e poder laquoAcaso gloriar-se-aacute o machado contra quem o manejaraquo (Is 1015) ie o rei mortal contra a entidade divina que o instrumentaliza
20 OIP 248 A1 621 O objectivo desta argumentaccedilatildeo era segundo Bustenay Oded laquoto endow moral sanction
to Assyrian violence by presenting it as the punishment for evildoersraquo (Oded 1992 44)22 Reade 1979 329-43 Bachelot 1991 109-28 Ataccedil 2006 69-101 Algumas publicaccedilotildees
sobre os relevos assiacuterios Barnett 1970 Reade 1998 e Collins 200823 British Museum ME 124801a-c figs 2-4 Sala XXXIII do palaacutecio Sudoeste de Niacutenive Ver
Reade 1979 329-43 Watanabe 2004 103-14 Reed 2007 101-30 Bahrani 2008 22-55 sobre a batalha consultar Fales 2010 202-5 que defende a data de 664 aC Uma siacutentese da conjuntura e das relaccedilotildees entre a Assiacuteria e o Elam Brinkman 1965 161-66 Boardman et al 1991 47-53 147-54
24 Um inqueacuterito oracular (SAA IV 74) dirigido ao deus Šamaš pedido por Assaradatildeo mos-tra as duacutevidas que o lado assiacuterio alimentava sobre a sinceridade da oferta de paz enviada por Urtaku rei do Elam laquoŠamaš grande senhor dai-me uma resposta firme e positiva sobre o que eu vos estou a perguntar se Urtaku rei do Elam enviou a sua proposta para fazer a paz com Assaradatildeo rei da Assiacuteria ndash enviou ele na verdade do seu coraccedilatildeo [ina kitti libbi-šu] palavras verdadeiras e honestas de paz a Assaradatildeo rei da Assiacuteriaraquo
161
Marcel L Paiva do Monte
desprezo por Assurbaniacutepal como algueacutem laquosemelhante a um demoacutenioraquo tamšil gallē25 Apoacutes o rei assiacuterio ter recusado a solicitaccedilatildeo de Teumman para que aquele extraditasse para o Elam os filhos do rei elamita deposto refugiados na Assiacuteria26 travar-se-ia uma batalha em Til Tuba um local situado nas margens do rio Ulaya jaacute bem no interior do Elam
A batalha eacute vividamente retratada nos relevos do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive atraveacutes de uma composiccedilatildeo narrativa complexa e dinacircmica com um grande cuidado no detalhe nos seus elementos figurativos e em cenas individualizadas que retratam a violecircncia do combate27 Por toda a parte soldados elamitas satildeo chacinados e empurrados para o rio que transporta inuacutemeros cadaacuteveres na sua correnteza O proacuteprio Assurbaniacutepal afirma que laquocom os seus cadaacuteveres bloqueei o rio Ulayaraquo28
Neste sentido o combate um acontecimento histoacuterico e as aacuteguas do rio elemento fiacutesico e concreto de uma paisagem real servem como perfeitas metaacuteforas para a funccedilatildeo intemporal atribuiacuteda agrave realeza de combater o caos e expulsar o inimigo da ordem civilizada que o rei tinha a obrigaccedilatildeo de estabe-lecer ou restaurar Este elemento aquaacutetico para onde era empurrado o exeacutercito elamita levava os mortos expulsos de volta para a esfera do caos do indistinto identificando-se de algum modo com a accedilatildeo de um laquodiluacutevioraquo (abūbu)
Assurbaniacutepal o rei assiacuterio estaacute no entanto ausente dos relevos que ex-potildeem o combate de Til Tuba Pelo contraacuterio em todo o conjunto da composiccedilatildeo Teumman eacute um elemento constante O rei do Elam e a sua cabeccedila surgem em vaacuterias accedilotildees que ocorrem ao longo da composiccedilatildeo Decapitado diante do proacuteprio filho29 por um soldado comum a sua cabeccedila eacute transportada ao longo de vaacuterios momentos da narrativa visual para ser entregue ao rei assiacuterio O momento em que se consuma tal encomenda natildeo surge representado visualmente mas tal se afirma textualmente nos anais de Assurbaniacutepal30 e na epiacutegrafe inscrita sobre uma das cenas da batalha que representa um soldado servindo agora como correio transportando velozmente a cabeccedila
laquoCabeccedila de Teumman rei do Elam que no meio da batalha um soldado comum do meu exeacutercito cortou Para me dar as boas novas despacharam-na velozmente para a Assiacuteriaraquo31
25 Piepkorn 1933 60-61 B iv 7426 Piepkorn 1933 61-63 B iv 87-9927 Ver abaixo figs 2-428 Piepkorn 1933 68-69 B v 97 Ver ARAB II sect 1072 Russell 1999 159 3529 O seu filho Tammaritu sofreria o mesmo destino que o pai laquoCom o encorajamento de
Aššur e Ištar matei-os As suas cabeccedilas eu cortei um diante do outroraquo (Gerardi 1988 31)30 Piepkorn 1933 61 B vii 61 laquoa cabeccedila cortada de Teumman que um soldado comum do
meu exeacutercito decapitouraquo nikis qaqqadi Teumman ša ikkisu aḫurū ummanatē-ia31 Citado a partir de Gerardi 1988 29 Cf Russell 1999 159 10a
162
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
De facto a cabeccedila do malogrado rei elamita eacute a componente principal de todos os paineacuteis aos quais confere coerecircncia narrativa32 A sua importacircncia enquanto princiacutepio fundamental de toda a composiccedilatildeo eacute reafirmada poreacutem em outro painel de relevo celebrizado pela designaccedilatildeo de Cena do Banquete neste relevo em abrupto contraste com a desordem violenta da batalha Assurbaniacutepal e a sua consorte satildeo representados em ameno bivaque num espaccedilo paciacutefico nos jardins de um palaacutecio onde aves plantas e aacutervores servos e muacutesicos compotildeem uma cena que se pode qualificar como idiacutelica33 No interior desse espaccedilo de tran-quilidade a cabeccedila de Teumman surge pendurada numa aacutervore introduzindo na composiccedilatildeo um aspeto contraditoacuterio Que niacuteveis de significado se podem aferir de todo este conjunto artiacutestico
A cabeccedila de um rei no plano simboacutelico eacute uma sineacutedoque representando a sua comunidade de suacutebditos a sua verdadeira quase literal caput regni Por este motivo o rei assume uma qualidade abstrata idealizada ou imaginada Se essa imaginaccedilatildeo acerca do rei incorre num certo grau de objetificaccedilatildeo por parte de muitos dos que com ele convivem e que agrave sua volta gravitam em proximidade ela tornar-se-ia mais forte pelo contraacuterio agrave medida que o sujeito que o imagina se acha social e geograficamente mais distante Essa abstraccedilatildeo de um modo comum aos mais diversos contextos histoacutericos e culturais do poder poliacutetico seria encorajada pelos rituais do poder pelo protocolo e outros mecanismos sociais que instituiacuteam juriacutedica e socialmente essa distacircncia entre o soberano e os outros seres humanos incluindo os seus suacutebditos34
A cabeccedila do rei do Elam que governava um paiacutes distante hostil e poderoso possuiria certamente essa feiccedilatildeo indistinta e imaginada nas mentes dos Assiacuterios que a dado momento se tornaram seus inimigos A sua forccedila como ideia seria naturalmente maior entre os soldados comuns do exeacutercito assiacuterio que ao contraacuterio das elites e populaccedilotildees residentes nas capitais teriam tambeacutem pouco ou nenhum conhecimento direto e concreto do seu proacuteprio soberano Assurbaniacutepal tambeacutem ele envolto numa espeacutecie de laquoneacutevoaraquo ritual sacra e protocolar do poder35
Teumman surge representado em modo metafoacuterico no relatoacuterio de um oraacuteculo remetido a Assurbaniacutepal relacionado diretamente com esta conjuntura de conflito O Elamita parece ser comparado a uma serpente (ṣerru) que o deus comunica o oraacuteculo teria arrancado do interior de uma arma (uma maccedila ou bastatildeo narrsquoamtu) e laquocortado aos pedaccedilosraquo
laquoPalavras sobre os Elamitas [o] deus diz assim ldquoFui e vimrdquo Ele disse cinco vezes seis vezes e depois ldquoVim do bastatildeo Arranquei a serpente que estava no
32 Watanabe 2004 103-1433 British Museum ME 124920 (fig 5) Consultar Bahrani 2008 22-55 34 Liverani 1979 302-335 Acerca da vida do rei em contexto de corte consultar Liverani 2009 81-91
163
Marcel L Paiva do Monte
seu interior cortei-a aos pedaccedilos e quebrei o bastatildeordquo Ele disse ldquoDestruirei o Elam O seu exeacutercito seraacute arrasado ao niacutevel da terrardquoraquo36
Atraveacutes deste oraacuteculo a divindade assegurava ao rei assiacuterio que o inimigo como um animal dissimulado e perigoso (uma serpente escondida dentro de uma arma) seria derrotado e deixaria de representar uma ameaccedila Esta metaacute-fora natildeo referindo a decapitaccedilatildeo do Teumman parece situar-se num momento anterior agrave sua morte em batalha e agrave derrota final do Elam em Til Tuba Poreacutem eacute sugestiva acerca do modo como o inimigo era comparado com uma serpente cuja decapitaccedilatildeo poderia trazer a vitoacuteria agrave Assiacuteria37
A decapitaccedilatildeo de Teumman adquire assim um valor simboacutelico poderoso o Elam a entidade coletiva que o sustinha perde a sua caput reacutegia o que significa a perda simboacutelica da sua identidade poliacutetica e da sua independecircncia Este ato promove uma alteraccedilatildeo na qualidade de ente imaginado do rei elamita a partir do momento em que este perde a vida e a cabeccedila nas margens do Ulaya a sua di-mensatildeo abstrata comeccedila a desvanecer-se Teumman o rei do Elam transforma-se gradualmente aos olhos dos seus inimigos e conquistadores em Teumman um homem
A apropriaccedilatildeo final do corpo de Teumman eacute demonstrada nos textos onde Assurbaniacutepal faz relatar como cuspiu na sua cabeccedila cortada38 como a exibiu na cidade de Arbela39 e pelas ruas de Niacutenive colocando-a aos ombros de Dunānu um dos aliados de Teumman que foram capturados40 Em pompa triunfal por entre muacutesica e laquoalegriaraquo o saque do Elam e os inimigos da Assiacuteria foram assim exibidos perante a populaccedilatildeo
laquoA cabeccedila de Teumman rei do Elam pendurei ao pescoccedilo de Dunanu () Com o saque do Elam e os despojos de Gambulu que ao comando de Aššur as minhas matildeos capturaram ndash com cantores e muacutesica entrei em Niacutenive por entre exclamaccedilotildees de alegria [ina ḫidāte]raquo41
Assurbaniacutepal teraacute depois consagrado a cabeccedila do seu inimigo aos deuses efetuando sobre ela libaccedilotildees de vinho em contexto ritual42 Eacute notoacuteria a seme-lhanccedila deste ato com as libaccedilotildees efetuadas sobre os cadaacuteveres dos leotildees mortos
36 SAA IX 8 (traduccedilatildeo portuguesa em Caramelo 2002 205-6) 37 Sugestatildeo de Francisco Caramelo Acerca dos oraacuteculos assiacuterios acerca desta conjuntura
poliacutetico militar consultar Caramelo 2002 232-4038 Bonatz 2004 94 Russell 1999 160 1139 Sobre a parada em Arbela ver referecircncias em tabuinhas cuneiformes que se planeavam
transpor para epiacutegrafes de relevos em ARAB II sectsect 1041 1043 1045 e 107140 Ver imagem 66 em Russell 1999 181 = British Museum ME 12480241 Piepkorn 1933 72-73 B vi 50-56 Ver Russel 1999 160-6142 Bonatz 2004 98-99 Russell 1999 161 14
164
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
pelo rei assiacuterio conforme eacute visiacutevel em vaacuterios dos seus relevos que representam a caccedila como actividade reacutegia43 A este propoacutesito afirma Dominik Bonatz que a oferta da cabeccedila de Teumman aos deuses seria um ritual poliacutetico inaugurado por Assurbaniacutepal que introduz assim de forma algo destoante uma actividade laquoprimitivaraquo no seio de uma sociedade urbana e estatal complexa44
Estas manifestaccedilotildees rituais em agradecimento aos deuses seriam consid-eradas como a prova cabal do ponto de vista ideoloacutegico e religioso da justiccedila da causa de Assurbaniacutepal e do apoio divino a ele dispensado O rei assiacuterio aliaacutes teria recebido a resposta agraves suas preces e duacutevidas atraveacutes de consultas oraculares
laquoIštar ouviu os lamentos que lhe dirigi e disse ldquoNatildeo temasrdquo [la tapallaḫ] e confortou o meu coraccedilatildeoraquo
Pelo contraacuterio ao rei elamita teriam surgido pressaacutegios nefastos dizem os textos assiacuterios provavelmente com engenho criativo e retoacuterico que um eclipse surgira no Elam prevendo a sua derrota45 e que um acidente teria deixado Teumman com alguns problemas de sauacutede O incauto Teumman apresentado como descrente do poder dos deuses ou pelo menos convencido que teria a sua ajuda teria ignorado todos estes avisos a sua proacutepria maacute-feacute e imoralidade teriam atraiacutedo a vinganccedila divina laquoTeumman maquinou males [limutti] o deus Sicircn planeou para ele portentos nefastosraquo46
A sua derrota e decapitaccedilatildeo seriam o corolaacuterio da sua impiedade e atos de injusticcedila Eacute entatildeo que aquilo que era indistinto abstrato imaginado (Teumman rei do Elam) se transformava em algo puacuteblico e conhecido as suas feiccedilotildees reais incluindo as suas caracteriacutesticas fiacutesicas concretas e proacuteprias (por exemplo as rugas a textura e cor da pele eventuais assimetrias do rosto)47 tornam-no aos olhos dos que o podem agora contemplar na sua destruiccedilatildeo num ser humano exposto no seu momento mais fraacutegil e vulneraacutevel A exibiccedilatildeo puacuteblica da cabeccedila do rei elamita destroacutei o mito da sua realeza mas natildeo a sua identidade humana em contraste com o soberano assiacuterio a quem os deuses teriam conferido laquoforccedila virilidade e um exaltado poderraquo dunnu zikrūtu emuqān ṣirāti48 Ao contraacuterio do que defende Davide Nadali relativamente agrave representaccedilatildeo do laquoinimigoraquo em geral Teumman natildeo eacute viacutetima de um annullamento49 Pelo contraacuterio a exibiccedilatildeo triunfal
43 Como eacute notado por Bonatz 2004 98 Ver Reade 1998 72-7944 Bonatz 2004 10045 Piepkorn 1933 B v 4-8 Ver Apecircndice de Joachim Mayr na mesma obra 105-946 Piepkorn 1933 62-63 B v 3-547 Os paineacuteis revelam um pormenor interessante a representaccedilatildeo da cabeccedila de Teumman
revela uma certa calviacutecie depois de cair o seu capacete Eacute especialmente visiacutevel em ME 124801a (registo superior) = fig 4
48 Piepkorn 1933 28-29 B i 1149 Nadali 2011-2003 53-57
165
Marcel L Paiva do Monte
dos seus restos mortais iluminava aquilo que por ser apenas imaginado estava oculto Expotildee-se assim aquilo que na perspetiva assiacuteria era um comportamento subversivo e hostil uma obstinaccedilatildeo ilegiacutetima na fuga ao controlo pelo rei assiacuterio natildeo pertencendo ao domiacutenio da ordem e do cosmos Teumman ao deixar de ser apenas uma ideia ou personagem imaginado de um rei inimigo estrangeiro passa a ser algo conhecido logo conquistado A vitoacuteria obtida contra ele e contra o Elam adquiria assim uma dimensatildeo laquoepisteacutemicaraquo que se pode abstrair atraveacutes da metaacutefora da exposiccedilatildeo e manipulaccedilatildeo impune dos seus restos mortais50
A fase final deste processo de humanizaccedilatildeo ou banalizaccedilatildeo de Teumman eacute natildeo obstante rica em significado A representaccedilatildeo onde o rei assiacuterio eacute re-tratado em convivecircncia tranquila com a sua consorte no jardim rodeados de muacutesicos aves e plantas inclui a imagem da cabeccedila do malogrado rei elamita pendurada numa aacutervore como trofeacuteu51 O propoacutesito deste contraste eacute oacutebvio ao caos da batalha de Til Tuba nas margens de um rio transformado em escoadouro de cadaacuteveres num espaccedilo de desordem e confusatildeo e onde o rei inimigo ainda surge como um ser vivente sucede a ordem e a tranquilidade representada pelo jardim onde Assurbaniacutepal beberica com a sua esposa Nesse jardim Teumman ainda existe mas apenas enquanto resto mortal soacute com o inimigo neste estado derrotado morto e banalizado seria possiacutevel o advento da paz e a construccedilatildeo de um espaccedilo poliacutetico e coacutesmico de ordem Pois enquanto aquele respirasse seriam a chacina o combate e a morte a imperar
A utilizaccedilatildeo do espaccedilo como elemento discursivo natildeo eacute verbalizada de modo expliacutecito poreacutem torna-se evidente que os lugares de algum modo se transformam em atributos da realeza ndash o jardim de Assurbaniacutepal eacute um siacutem-bolo ou uma metaacutefora para o ideal do mundo controlado pela Assiacuteria ameno proacutespero fecundo pacato52 Em oposiccedilatildeo o lugar onde se desenrola a batalha contra os Elamitas situado fora dos domiacutenios assiacuterios eacute um espaccedilo de morte de fuga em estouro nele corre um rio o Ulaya que como o Lethes romano faz escorrer para o apsucirc ie para o esquecimento para o torpor do obliacutevio que caracterizava o marido de Tiamat as veleidades de Teumman em comparar-se a Assurbaniacutepal
3 Vencer fazer esquecer
Em certos contextos do Proacuteximo Oriente antigo decepar e reunir partes dos cadaacuteveres de soldados inimigos como um meio de facilitar a contagem das baixas infligidas parece ter sido uma praacutetica comum Recordemos o Egito em que era costume cortar natildeo somente as matildeos direitas dos inimigos mortos mas
50 Liverani 1979 30751 Bonatz 2004 99-100 (cf Caramelo 2003 92)52 Ver as observaccedilotildees em Caramelo 2003 92
166
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
tambeacutem os seus oacutergatildeos sexuais A espoliaccedilatildeo da virilidade e da forccedila vital do inimigo deveraacute ser vista como um instrumento de caraacutecter laquomaacutegico-punitivoraquo que consubstanciava a vitoacuteria53
Na arte palaciana assiacuteria a decapitaccedilatildeo do inimigo como elemento discur-sivo e propagandiacutestico eacute ainda patenteada em cenas que representam uma dupla de escribas fazendo o trabalho de contagem de cabeccedilas cortadas Este topos visual aparece em diversos relevos assiacuterios a maior parte deles originaacuterios do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive A contagem das cabeccedilas e natildeo dos corpos parece ter sido uma forma de facilitar esse inventaacuterio jaacute que nessas representaccedilotildees as cabeccedilas satildeo empilhadas diante dos escribas Efetuando um gesto de contagem estes registam as quantidades aferidas em tabuinhas de argila folhas de perga-minho ou papiro e em laquotaacutebuas de ceraraquo (lērsquou)54
Ao contraacuterio da decapitaccedilatildeo de Teumman cujo significado poliacutetico e sim-boacutelico eacute evidente nestes exemplos entendidos a partir de uma anaacutelise prelimi-nar descritiva a accedilatildeo que intentam representar aparenta ser mais prosaica natildeo possuindo qualidades simboacutelicas especiais55 Na aparecircncia tratar-se-ia de um ato puramente administrativo pois os exeacutercitos assiacuterios em tracircnsito contavam com escribas que cumpriam tarefas burocraacuteticas e logiacutesticas tais como o raciona-mento e distribuiccedilatildeo de equipamento o registo de tributos e de saque e mesmo o registo de baixas tantas as proacuteprias como as do inimigo56
No entanto a anaacutelise deste tema iconograacutefico permite-nos alcanccedilar out-ros niacuteveis de significado Um deles eacute a vitoacuteria sobre o inimigo por via da sua decomposiccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo O conteuacutedo semacircntico destas imagens pretendia mostrar que o exeacutercito inimigo ainda que numeroso passara a ser atomizado pela acumulaccedilatildeo das suas baixas em pilhas disformes Eacute disso sintomaacutetico que em vaacuterias dessas imagens as cabeccedilas decapitadas surjam em associaccedilatildeo com os frutos do saque efetuado pelos Assiacuterios como armas mobiliaacuterio e toda a sorte de outros bens57
Reduzir o inimigo a um objecto de tratamento estatiacutestico equivalia a transformaacute-lo numa entidade anoacutenima58 Tal eacute a interpretaccedilatildeo de Davide Nadali que postula acertadamente que as cabeccedilas dos guerreiros adversaacuterios antes isoladas mas integradas na completude fiacutesica do seu ser e corpo perdem a sua personalidade e individualidade ao serem acumuladas como objetos Misturan-do-se confundindo-se com muacuteltiplas outras identidades numa massa amorfa o
53 Segundo Arauacutejo 2010 102-454 Dois exemplos de imagens de relevos do British Museum BM 124955-7 de Senaquerib
(fig 6) e ME 124825 (fig 7) de Assurbaniacutepal Sobre este tema iconograacutefico consultar ainda Russell 1991 292 nota 36 e o trabalho mais recente de Julian Reade (Reade 2012)
55 Bonatz 2004 9956 Saggs 1963 148 Reade 201257 Fig 7 ME 124825 Cf Nadali 2001-2003 6658 Bonatz 2004 93
167
Marcel L Paiva do Monte
inimigo torna-se segundo as palavras de Nadali laquoirreconheciacutevel e reduzido a um mero objectoraquo sobre o qual incidia a accedilatildeo militar assiacuteria59
Esvaziando-se a identidade do inimigo desta forma simboacutelica pode assim notar-se uma metaacutefora para a imersatildeo no laquocaos primordialraquo em que a inexistecircn-cia das coisas se definia antes de mais pela ausecircncia de uma forma de um nome de uma identidade De facto se Teumman um inimigo com um estatuto reacutegio pode ser visto ainda como um personagem importante na narrativa construiacuteda pelos produtores destas representaccedilotildees textuais e visuais os seus soldados pelo contraacuterio poderatildeo ser nelas considerados como meros figurantes Esta indis-tinccedilatildeo ou perda de individualidade do inimigo atraveacutes da morte equivale ao seu obliacutevio Neste contexto o esquecimento absoluto do derrotado constituiacutea uma inversatildeo da possibilidade que o vitorioso dispunha de perpetuar os seus laquofeitosraquo atraveacutes da celebraccedilatildeo monumental do registo literaacuterio e da construccedilatildeo da sua memoacuteria ndash isto eacute da sua sobrevivecircncia para laacute da morte
Reflexos sobre o obliacutevio do inimigo como um estado equiparado agrave sua morte absoluta surgem amiuacutede nos textos analiacutesticos A sua fuga ainda que bem-sucedida pode ser entendida como uma laquosaiacuteda de cenaraquo da Histoacuteria de acordo com a visatildeo oficial assiacuteria Sargatildeo II no seu oitavo palucirc (714 aC) duran-te a sua campanha militar contra Manneus e Medos derrotou Mitatti da terra de Zikirtu Depois de a sua capital Parda ser destruiacuteda Mitatti fugiu com o seu povo laquopara natildeo mais ser vistoraquo60
Por sua vez Šuzubu alias Mušēzib-Marduk liacuteder dos rebeldes caldeus teria fugido sozinho durante a quarta campanha do reinado de Senaquerib (700 aC) O pavor causado pela perspetiva de uma batalha contra os exeacutercitos assiacuterios tecirc-lo-ia feito escapar sozinho nunca mais tendo havido notiacutecia do seu paradeiro laquoEle fugiu sozinho como um lince [kima azari] e nunca se soube o seu paradeiroraquo61
O obliacutevio contudo poderaacute natildeo ser apenas considerado como metaacutefora para a morte ou fuga apavorada do inimigo como resultado da conquista e da vitoacuteria sobre o adversaacuterio a deportaccedilatildeo de populaccedilotildees eacute tambeacutem envolvida num dis-curso ideoloacutegico que lhe pode ser associado62 Esta praacutetica que se tornou bastante mais usual a partir do reinado de Tiglat-Falasar III63 consistia na deslocaccedilatildeo forccedilada de comunidades que viviam em territoacuterios conquistados pelos Assiacuterios e tornados depois em proviacutencias como meio de puniccedilatildeo de aproveitamento de
59 Nadali 2001-2003 66 laquonumerosi corpi acefali e denudati di nemici ormai irriconoscibili e ridotti a meri oggetiraquo
60 ARAB II sect 19 Fuchs 1993 110 Ann sect 12761 RINAP 31 nordm 15 ls iv 23 Se Šuzubu escapou como laquoum linceraquo um animal selvagem
Lulicirc rei de Siacutedon havia fugido no ano anterior (701 aC) para Chipre laquocomo um peixeraquo kima nūni iparšid
62 Nadali 2001-2003 56-5763 A melhor siacutentese sobre este tema Oded 1979
168
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
recursos humanos e como forma de destruir a identidade poliacutetica da comunidade afetada As populaccedilotildees deportadas espoliadas da sua personalidade proacutepria en-quanto membros de uma entidade poliacutetica passavam a ser integradas no interior do mundo controlado pelos Assiacuterios concebido como um espaccedilo onde imperava a ordem exigida para o equiliacutebrio coacutesmico e terreno
Ao niacutevel discursivo a ideia dessa integraccedilatildeo podia ocorrer por exemplo na absorccedilatildeo dos deportados pela proacutepria populaccedilatildeo assiacuteria Tal eacute refletido na ex-pressatildeo laquocontei-os entre as gentes da Assiacuteriaraquo itti nišē māt Aššur amnu-šunūti64 Estas expressotildees convencionais revelam que de algum modo estas gentes eram consideradas subsumidas imersas ainda que ao niacutevel discursivo e ideoloacutegico no conjunto dos suacutebditos do soberano Importa referir que a deportaccedilatildeo era um momento privilegiado para a atuaccedilatildeo dos escribas assiacuterios pois as deslocaccedilotildees de pessoas por territoacuterios vastos implicavam um aparato logiacutestico sofisticado e um esforccedilo organizativo acentuado para a sua realocaccedilatildeo posterior O registo escrito das famiacutelias e indiviacuteduos deportados com suas origens e destinos65 eacute um sinal de como a sua absorccedilatildeo na ordem assiacuteria era mais um aspeto da dimensatildeo episteacutemica da conquista
A estas observaccedilotildees deve ser adicionada uma outra os temas da con-tagem de tributos e dos restos mortais de inimigos como signos de vitoacuteria e a contagem de populaccedilotildees deportadas ref letem natildeo somente uma dimensatildeo simboacutelica de um discurso baseado na violecircncia mas tambeacutem uma faceta burocraacutetica do exerciacutecio do poder A natureza administrativa do poder complementa ao niacutevel discursivo a dimensatildeo religiosa heroica e carismaacuteti-ca do soberano revelando a complexidade da ideologia e cultura poliacutetica no impeacuterio neo-assiacuterio Natildeo era apenas o pathos da guerra ndash o furor a agressivi-dade e a coragem fiacutesica dos soldados Assiacuterios face ao inimigo ndash o uacutenico meio de demonstrar como fazem os relevos ninivitas onde se espraia a batalha de Til Tuba a capacidade e justeza do poderio da Assiacuteria a sua organizaccedilatildeo enquanto estado era um elemento racional que reforccedilava a sua imagem de superioridade
Consideraccedilotildees finais
A exibiccedilatildeo da cabeccedila de Teumman como um dos protagonistas do pro-grama monumental de Assurbaniacutepal e o tema da acumulaccedilatildeo de cabeccedilas de soldados inimigos mortos contribuem para banalizar e depreciar o inimigo em
64 Isto se afirma por exemplo acerca de Caldeus do Sul da Mesopotacircmia recolocados por Tiglat-Falasar III em diferentes proviacutencias assiacuterias apoacutes as suas campanhas na Babiloacutenia laquoe contei-os juntamente com o povo da Assiacuteria Sobre eles impus tal como aos Assiacuterios o jugo de Aššur meu senhorraquo (ARAB I sect 764)
65 Ver por exemplo os registos compilados em SAA XI cap 8
169
Marcel L Paiva do Monte
contraste com a projeccedilatildeo da majestade do soberano assiacuterio e da forccedila dos seus exeacutercitos cuja accedilatildeo era objecto de justificaccedilatildeo ideoloacutegica e moral
Todavia devemos identificar uma diferenccedila significativa nestes dois modos de tratamento simboacutelico e artiacutestico do tema do inimigo decapitado por um lado se Teumman atraveacutes da sua cabeccedila cortada eacute humanizado ao ser despido da sua aura reacutegia ao ser-lhe retirada a maacutescara da realeza os seus soldados pelo contraacuterio eram desumanizados e equiparados a objetos A sua morte equivalia agrave sua expulsatildeo para o caos primordial que o rei assiacuterio como qualquer soberano mesopotacircmico tinha o dever de combater66
Entre estas duas perspetivas se observa uma tensatildeo entre o ato de expor de trazer agrave luz e conhecer o inimigo conquistado (logo a sua transformaccedilatildeo em algo familiar que jaacute natildeo provoca tensatildeo ou medo) e o discurso que provoca simbolicamente o seu esquecimento a sua imersatildeo no obliacutevio e no caos Se como objetos de um registo contabiliacutestico que os agregava de modo indistinto os comuns soldados eram despidos da sua identidade e como tal remetidos ao obliacutevio os seus reis passariam a integrar a gesta narrativa da expansatildeo assiacuteria os seus nomes recordados como derrotados ou submetidos nas inscriccedilotildees que glorificavam os monarcas de Aššur
A inclusatildeo do tema da decapitaccedilatildeo dos inimigos nos programas artiacutesticos dos palaacutecios assiacuterios constituiacutea um ato comunicativo endereccedilado natildeo jaacute a partir da periferia como taacutetica psicoloacutegica que respondia a necessidades militares directa no terreno mas sim no centro do poder Este controlo sobre as imagens e representaccedilotildees assumia-se como uma siacutentese de uma forma de exerciacutecio de poder que refletia uma seleccedilatildeo cuidada e uma dimensatildeo propagandiacutestica67 Seria intenccedilatildeo dos produtores dessas representaccedilotildees linguiacutesticas e natildeo-linguiacutesticas (isto eacute o rei e a elite mais proacutexima do poder) provocar determinadas respostas nos observadores Poreacutem integrando-se no aparato simboacutelico dos palaacutecios e capitais assiacuterias estes relatos e imagens adquiriam uma dimensatildeo performa-tiva e maacutegico-religiosa que traduzia de modo mais sofisticado os paracircmetros ideoloacutegicos que o poder assiacuterio tencionava consubstanciar Assim esperar-se-ia que a representaccedilatildeo do inimigo morto tendo mais do que apenas um propoacutesito simboacutelico o mantivesse nesse estado de uma forma maacutegica68
Nestes elementos discursivos eacute notoacuterio um paradoxo o desencadear da guerra como actividade geradora de paz a celebraccedilatildeo da ordem coacutesmica pro-videnciada pelo soberano tornada possiacutevel apenas muitas vezes afrontando o ordaacutelio caoacutetico da batalha e por fim a exposiccedilatildeo da violecircncia e da crueldade infligida sobre corpos humanos pelo poder instituiacutedo ndash algo que a desejaacutevel
66 Reade 1979 332 Nadali 2001-200367 Reade 1979 329-43 Liverani 1979 297-31768 Nadali 2001-2003 64 Bahrani 2004 115-19
170
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
laquonormalidaderaquo da vida social aconselha agrave ocultaccedilatildeo ndash como forma de enaltecer a quietude de uma vida submissa e obediente Todavia estas contradiccedilotildees assim constatadas satildeo apenas aparentes e de resto estabelecidas a partir da nossa proacutepria perspetiva Guerra vs paz ordem vs caos o rei guerreiro vs o rei pastor piedoso para com o seu povo natildeo seriam antinomias tatildeo oacutebvias na visatildeo assiacuteria Estes opostos segundo paracircmetros culturais mais latos do Proacuteximo Oriente antigo coexistiriam na realidade mundana e divina desde a origem do mundo fazendo parte da sua estrutura e da sua loacutegica mais profunda
171
Marcel L Paiva do Monte
Bibliografia
Arauacutejo Luiacutes Manuel de 2010 ldquoA luta pela sobrevivecircncia no Egipto a expulsatildeo dos lsquoPovos do Marrsquordquo In A Guerra na Antiguidade Vol 3 ed A Ramos dos Santos e Joseacute Varandas 97-150 Lisboa Centro de Histoacuteria da Faculdade de Letras Caleidoscoacutepio
Ataccedil Mehmet-Ali 2006 ldquoVisual Formula and Meaning in Neo-Assyrian Relief Sculpturerdquo The Art Bulletin 88 (1)69-101
Bachelot Luc 1991 ldquoLa fonction politique des reliefs neacuteo-assyriensrdquo In Marchands diplomates et empereurs eacutetudes sur la civilisation meacutesopotamienne offertes agrave Paul Garelli ed Dominique Charpin e Francis Joannegraves 109-28 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations
Bahrani Zainab 2008 Rituals of War The Body and Violence in Mesopotamia New York Zone Books
mdashmdashmdash 2004 ldquoThe Kingrsquos Headrdquo Iraq 66115-19Barnett R D 1970 Assyrian Palace Reliefs in the British Museum London
Trustees of the British MuseumBonatz Dominik 2004 ldquoAshurbanipalrsquos headhunt an anthropological
perspectiverdquo Iraq 6693-102Boardman J I E S Edwards N G L Hammond et E Sollberger eds 1991
Cambridge Ancient History Vol 3 parte 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC 2ordf ed Cambridge Cambridge University Press
Brinkman J A 1965 ldquoElamite Military Aid to Merodach-Baladanrdquo Journal of Near Eastern Studies 24 (3)161-66
Caramelo Francisco 2003 ldquoOs jardins reais na Assiacuteria uma reproduccedilatildeo idealizada da naturezardquo Revista da Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas 1585-92
mdashmdashmdash 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia
Collins Paul 2008 Assyrian Palace Sculptures London British Museum PressDolce Rita 2004 ldquoThe lsquohead of the enemyrsquo in the sculptures from the palaces of
Nineveh an example of lsquocultural migrationrsquordquo Iraq 66121-32 Foster Benjamin R 1996 Before the Muses an Anthology of Akkadian Literature
2ordf ed 2 vols Bethesda CDL PressFoucault Michel 1975 Surveiller et Punir Naissance de la Prison Paris
GallimardGrayson A K 1981 ldquoAssyrian Royal Inscriptions Literary Characteristicsrdquo In
Assyrian Royal Inscriptions New Horizons in Literary Ideological and
172
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
Historical Analysis Papers of a Symposium held in Cetona (Siena) June 26-28 1980 ed F M Fales 35-47 Roma Istituto per LrsquoOriente
Harmanşah Oumlmuumlr 2007 ldquoUpright stones and building narratives formation of a shared architectural practice in the Ancient Near Eastrdquo In Ancient Near Eastern Art in Context Studies in Honor of Irene J Winter by her students ed J Cheng e M H Feldman 69-99 Leiden Boston Brill
Liverani Mario 2009 ldquoThe King in the Palacerdquo Orientalia 78 (1)81-91mdashmdashmdash 1988 Vicino Oriente Antico Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1979 ldquoThe Ideology of the Assyrian Empirerdquo In Power and Propaganda
A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 297-317 Kobenhavn Akademisk Forlag
Luckenbill D D 1968a Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press
mdashmdashmdash 1968b Ancient Records of Assyria and Babilonia 2 vols New York Greenwood Press
mdashmdashmdash 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) Chicago University of Chicago Press
Nadali Davide 2001-2003 ldquoGuerra e morte lrsquoannullamento del nemico nella condizione del vintordquo Scienze dellrsquoAntichitagrave 1151-70
Oded Bustenay War Peace and Empire Justifications for War in Assyrian Royal Inscriptions Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag
mdashmdashmdash 1979 Mass Deportations and Deportees in the Neo-Assyrian Empire Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag
Olmstead A T 1918 ldquoThe Calculated Frightfulness of Ashur-nasir-apalrdquo Journal of the American Oriental Society 38209-63
Piepkorn A C 1933 Historical Prism Inscriptions of Ashurbanipal I ndash Editions E B1-5 D and K Chicago University of Chicago Press
Reade Julian 2012 ldquoVisual Evidence for the Status and Activities of Assyrian Scribesrdquo Leggo Studies Presented to Frederick Mario Fales on the Occasion of His 65th Birthday (Leipziger Altorientalische Studien 2) ed G B Lanfranchi D Morandi Bonacossi C Pappi e S Ponchia 699-717 Wiesbaden Harrassowitz
mdashmdashmdash (1998) 2007 Assyrian Sculpture Reimpressatildeo London The British Museum Press
mdashmdashmdash 1979 ldquoIdeology and Propaganda in Assyrian Artrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 329-43 Copenhaga Akademisk Forlag
Reed Stephanie 2007 ldquorsquoBlurring the Edgesrsquo A Reconsideration of the Treatment of Enemies in Ashurbanipalrsquos Reliefsrdquo In Ancient Near Eastern Art in
173
Marcel L Paiva do Monte
Context Studies in Honor of Irene J Winter by her Students ed J Cheng e M H Feldman 101-30 Leiden Boston Brill
Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) Vol 2 de The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Toronto Buffalo London Toronto University Press
Grayson A Kirk e Jamie Novotny eds 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 (The Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period 31) Winona Lake Eisenbrauns
Russell John Malcolm 1999 The Writing on the Wall Studies in the Architectural Context of Late Assyrian Palace Inscriptions Winona Lake Eisenbrauns
mdashmdashmdash 1991 Sennacheribrsquos Palace Without Rival at Nineveh Chicago The Chicago University Press
Starr I ed 1990 Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) Helsinki Helsinki University Press
Parpola S ed 1997 Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) Helsinki Helsinki University Press
Fales F M e J N Postgate eds 1995 Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) Helsinki Helsinki University Press
Saggs H W F 1963 ldquoAssyrian Warfare in the Sargonid Periodrdquo Iraq 25145-54Tadmor Hayim 1997 ldquoPropaganda Literature Historiography Cracking the
Code of the Assyrian Royal Inscriptionsrdquo In Assyria 1995 Proceedings of the 10th Anniversary Symposium of the Neo-Assyrian Text Corpus Project Helsinki September 7-11 1995 ed S Parpola e R M Whiting 325-36 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project
Thureau-Dangin Franccedilois 1912 Une relation de la huitiegraveme campagne de Sargon II Paris Geuthner
Watanabe C W 2004 ldquoThe lsquoContinuous Stylersquo in the narrative schemes of Ashurbanipalrsquos reliefsrdquo Iraq 66103-14
Winter Irene J [1982] 2010 ldquoArt as Evidence for Interaction Relations between the Neo-Assyrian Empire and North Syria as Seen from the Monumentsrdquo In On Art in the Ancient Near East Vol 1 Of the First Millennium BCE 525-62 Leiden Brill
Wiseman Donald J 1953 ldquoAssyrian writing-boardsrdquo Iraq 173-13
174
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
Fig 2 Batalha de Til Tuba (detalhe) Assurbaniacutepal Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Mu-seum ME 124801b copy The Trustees of the British Museum
Fig 1 Palaacutecio de Aššurnasirpal Kalḫu (Nimrud) British Museum ME 124550 copy The Trustees of the British Mu-seum
175
Marcel L Paiva do Monte
Fig 4 A cabeccedila de Teumman sendo despachada para junto do rei assiacuterio British Museum ME 124801a copy The Trustees of the British Museum
Fig 3 Teumman sendo decapi-tado por um soldado as-siacuterio Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Muse-um ME 124801c copy The Trustees of the British Museum
176
Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio
Fig
5 O
Ban
quet
e A
ssur
baniacute
pal
Palaacute
cio
Sudo
este
de
Niacuten
ive
Bri
tish
Mus
eum
ME
1249
20
copy Th
e Tr
uste
es o
f the
Bri
tish
Mus
eum
177
Marcel L Paiva do Monte
Fig 6 Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124955-7 copy The Trustees of the Brit-ish Museum
Fig 7 Escribas contando ca-beccedilas e tributos Palaacute-cio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124825 copy The Trustees of the British Museum
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
179
Joatildeo Pedro Vieira
Beber do Nilo ou do Eufrates O papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do
imperium neobabiloacutenico em Judaacute1 (To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of)
Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)
Joatildeo Pedro Vieira(jpferreiravieiragmailcom ORCID 0000-0002-0318-9297)
Universidade de Lisboa
Resumo - Com base em Jr 27-29 o presente estudo argumenta que Jeremias defendia a submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute perante o Impeacuterio Neobabiloacutenico e que a sua intervenccedilatildeo sociopoliacutetica poderaacute ter sido reconhecida pelas elites poliacuteticas neoba-biloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu imperium sobre Judaacute
Palavras-chave Poliacutetica ideologia Jeremias Impeacuterio Neobabiloacutenico Judaacute
Abstract ndash Relying mainly on Jr 27-29 the present study contends that Jeremiah upheld Judahrsquos divinely ordained submission to the Neo-Babylonian Empire and that its socio-political action may have been acknowledged by the Neo-Babylonian elites as a means of legitimating and enforcing Neo-Babylonian rule over Judah
Keywords Politics ideology Jeremiah Neo-Babylonian Empire Judah
Introduccedilatildeo
A presente contribuiccedilatildeo pretende explorar e problematizar a dimensatildeo poliacutetico-ideoloacutegica inerente agrave tradiccedilatildeo textual jeremiana na perspetiva da expansatildeo poliacutetico-militar neobabiloacutenica na Palestina e das suas repercussotildees poliacuteticas e ideoloacutegicas entre as elites sociopoliacuteticas judaiacutetas Para tal propoacutesito seraacute necessaacuterio discernir linhas de pensamento e atuaccedilatildeo tanto no que se refere agraves entidades editoriaisredacionais envolvidas na textualizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo jeremiana como no que se reporta agrave presumiacutevel intervenccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias enquanto agente histoacuterico A investigaccedilatildeo da atividade profeacutetica jere-miana sob o prisma de uma accedilatildeo protetora construtiva mas igualmente criacutetica e socialmente relevante da instituiccedilatildeo real enquanto epicentro da sociedade hierosolimita e representante da ordem divina em linha com os paralelos profeacute-ticos mariotas e neoassiacuterios seraacute um dos seus vetores estruturantes2
1 Abreviaturas usadas KAI (Donner-Roumlllig 2002) HALOT (Khoeler-Baumgartner 2000) SAA (Parpola-Watanabe 1988)
2 De Jong 2007 2011 A exiguidade do espaccedilo disponiacutevel natildeo permite tratar com o necessaacuterio desenvolvimento os muacuteltiplos pressupostos e aproximaccedilotildees conjeturais que fundamentam estruturalmente a presente contribuiccedilatildeo Em siacutentese assume-se que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_9
180
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
A dimensatildeo poliacutetica e ideoloacutegica da tradiccedilatildeo textual jeremiana
A tradiccedilatildeo textual jeremiana representada principalmente pelas famiacutelias textuais alexandrina (LXX) e massoreacutetica (TM) eacute atravessada por muacuteltiplas tensotildees e contradiccedilotildees interpretativas resultantes da incorporaccedilatildeo de materiais diversos e ideologicamente contraditoacuterios ou mesmo antagoacutenicos Este caraacutecter compoacutesito e polifoacutenico da tradiccedilatildeo levou os inteacuterpretes agrave inferecircncia de vaacuterios estratos redacionais intervenccedilotildees editoriais configuraccedilotildees de interesses ideo-logias e grupos sociopoliacuteticos conflituantes situados em Judaacute na Babiloacutenia e no Egito
Respondendo possivelmente a um conflito de autoridade e legitimidade religiosa e sociopoliacutetica sobre a Judaacute poacutes-monaacuterquica a visatildeo dos dois cestos de figos (Jr 24) conserva um dos textos mais poleacutemicos e fraturantes da tradiccedilatildeo construindo um discurso manifestamente dicotoacutemico e exclusivista marcado pela bipolarizaccedilatildeo hiperboacutelica da comunidade3 De acordo com este texto apenas os grupos deportados em 597 aC equacionados com os figos oacutetimos beneficiam da eleiccedilatildeo divina e da sua promessa de restauraccedilatildeo enquanto Sedecias os seus altos oficiais os hierosolimitas remanescentes e os exilados no Egito equacio-nados com os figos peacutessimos intragaacuteveis se tornam no alvo de uma retoacuterica de execraccedilatildeo excluiacutedos e condenados ao oproacutebrio e ao extermiacutenio
A tradiccedilatildeo jeremiana dispotildee igualmente de materiais heuriacutesticos tex-tual redacional e literariamente heterogeacuteneos diretamente reportaacuteveis agrave conflituosidade sociopoliacutetica hierosolimita durante a crise de 609-586 aC com especial incidecircncia no periacuteodo de 597-586 aC Jr 2210-30 deixa en-trever atitudes jeremianas historicamente verosiacutemeis relativamente a Joacaz II (Šallum) Josias Joaquim e Joaquin Jr 28-29 evidencia a existecircncia de expetativas restauracionistas provavelmente centradas na figura reacutegia de Joaquin tanto em Judaacute como nas comunidades exiacutelicas babiloacutenicas expotildee a posiccedilatildeo de Jeremias quanto agrave relaccedilatildeo entre Judaacute e o Impeacuterio Neobabiloacutenico e sugere o desenvolvimento de fortes clivagens poliacuteticas e ideoloacutegicas Jr 38 retrata em particular o grau de inf luecircncia dos altos-oficiais reacutegios na conduccedilatildeo do estado judaiacuteta e a difiacutecil gestatildeo do officium regis nos momentos finais da monarquia daviacutedida
histoacuterica de Jeremias natildeo se teraacute desenvolvido em conformidade eou representaccedilatildeo nem de um cacircnone (proto-)deuteronoacutemico de caraacutecter centralizador exclusivista monoteiacutesta e fortemente intolerante nem de um reformismo josiano implementado nessas linhas nem de qualquer movimento poliacutetico-religioso de iacutendole reformista assente nessa ideologia (contra eg Holladay 1986-89 11-10 Albertz 1994a 195-242 Sweeney 2001 137-70 Leuchter 2006 2008)
3 Veja-se Ez 1115
181
Joatildeo Pedro Vieira
O Reino de Judaacute no contexto poliacutetico internacional de 626-582 a C
Considerando a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre c 734 e 586 aC e apesar do longo periacuteodo de dominaccedilatildeo neoassiacuteria eacute liacutecito afirmar que pelo menos parte substancial das elites sociopoliacuteticas judaiacutetas nunca se teraacute verdadeiramente conformado com a submissatildeo de Judaacute a uma potecircncia mesopotacircmica De facto sempre que criadas circunstacircncias poliacuteticas favoraacuteveis (705-701 630-620 601-597 588-586 aC) os grupos de decisatildeo hierosolimitas procuraram sacudir o jugo mesopotacircmico Os seus caacutelculos estrateacutegicos envolveram invariavelmente uma outra potecircncia regional ndash o Egito ndash a uacutenica teoricamente capaz de garantir a proteccedilatildeo externa e oferecer apoio poliacutetico-militar efetivo aos estados palestin-enses
Com a complexificaccedilatildeo do cenaacuterio geopoliacutetico internacional a partir da deacutecada de 620 aC a gestatildeo da poliacutetica externa judaiacuteta passou a caracterizar--se por uma alternacircncia forccedilosa e sinuosa de fidelidades poliacuteticas entre Egito saiacuteta e Babiloacutenia com consequecircncias internas amiuacutede dramaacuteticas O efeacutemero periacuteodo de autonomia poliacutetica controlada de Judaacute possibilitado pelo eclipse da hegemonia neoassiacuteria entre 626 e 609 aC e a concomitante ascensatildeo do Egito4 terminou drasticamente no 2ordm semestre de 609 Necao II ordenou a execuccedilatildeo (provaacutevel) de Josias5 a deportaccedilatildeo de Joacaz II a nomeaccedilatildeo coerciva de Joaquim e a imposiccedilatildeo de um avultado tributo (2 Rs 2329-34) Poreacutem a hegemonia egiacutep-cia sobre a Palestina foi de curta duraccedilatildeo Derrotados na batalha de Qarkemiš no 2ordm semestre de 605 aC os exeacutercitos egiacutepcios foram perseguidos e trucidados em Ḫamat e nos finais de 604 aC Nabucodonosor II voltava agrave Palestina para submeter ou destruir os recalcitrantes6 Joaquim natildeo teraacute tido outra opccedilatildeo senatildeo reconhecer a suserania neobabiloacutenica
A repulsatildeo das forccedilas de Nabucodonosor II agraves portas do Egito em finais de 601 aC criou a oportunidade para a rejeiccedilatildeo da hegemonia neobabiloacutenica em Judaacute7 No 1ordm trimestre de 597 aC Judaacute sofria as consequecircncias da sublevaccedilatildeo Apoacutes um cerco natildeo superior a 2 meses Jerusaleacutem capitulava pacificamente A cida-de e o estado judaiacuteta foram por isso poupados mas a famiacutelia real elites dirigentes e parte dos sectores militares e produtivos da cidade foram deportados Joaquin foi destituiacutedo e substituiacutedo por Sedecias e a cidade foi parcialmente espoliada8
O realinhamento mesopotacircmico de Judaacute revelou-se fraacutegil O ressurgimento
4 Veja-se Narsquoaman 2005 365-69 Miller-Hayes 2006 446-47 Schipper 20115 Narsquoaman 2005 381 Talshir 19966 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 frente ll 2-13 Glassner 2005 226-29 Wiseman 1956 23-28
66-69 Lipschits 2005 37-407 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 5-7 Glassner 2005 228-29 Wiseman 1956 29-31
70-71 Lipschits 2005 49-518 2Rs 2410-18 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 12-13 Glassner 2005 230-31 Wiseman
1956 32-35 72-73
182
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
poliacutetico-militar do Egito na Siacuteria-Palestina a partir de c 595 aC e o relativo afas-tamento da Babiloacutenia do cenaacuterio ocidental convenceram parte determinante das elites dirigentes hierosolimitas a furtarem-se novamente ao jugo mesopotacircmico o mais tardar em 588 aC num clima de progressiva agudizaccedilatildeo das clivagens poliacutetico-ideoloacutegicas internas Nos finais desse ano ou iniacutecios de 587 aC as forccedilas neobabiloacutenicas regressavam a Jerusaleacutem O receio de uma intervenccedilatildeo militar egiacutepcia levou ao levantamento provisoacuterio do cerco contudo pronta-mente retomado9 No veratildeo de 586 aC apoacutes ano e meio de cerco e muacuteltiplas depredaccedilotildees e destruiccedilotildees ao longo do territoacuterio judaiacuteta as forccedilas neobabiloacutenicas forccedilaram a entrada na cidade10 Seguiram-se deportaccedilotildees execuccedilotildees pilhagens com especial destaque para o palaacutecio e o templo e menos de um mecircs depois a destruiccedilatildeo sistemaacutetica da cidade Sedecias foi severamente punido e deportado a monarquia daviacutedida abolida e Judaacute provincializado sob a direccedilatildeo de um alto--oficial judaiacuteta Gedalyāhucirc b rsquoĂḥicircqām (Godolias)11
Godolias natildeo foi capaz de unificar os remanescentes em torno do governo sedeado em Miṣpah a norte de Jerusaleacutem sob observaccedilatildeo neobabiloacutenica Pou-cos meses depois da sua nomeaccedilatildeo um grupo dissidente liderado por Ismael de ascendecircncia real e apoiado por Balsquoalicircs de Amon regressou a Judaacute para derrubar o governo provincial e eventualmente restaurar a monarquia daviacutedida Godolias e os representantes da autoridade neobabiloacutenica teratildeo sido assassinados12 Apesar disso as forccedilas ismaelitas acabaram por ser repelidas e parte dos sobreviventes na nova capital dispersa por receio de represaacutelias tendo no Egito um dos principais destinos de exiacutelio13 Em 582 aC os neobabiloacutenios moveram a uacuteltima campanha militar conhecida no Sul da Palestina extraindo de Judaacute uma terceira leva de de-portados14 e acentuando a depressatildeo social poliacutetica e econoacutemica em que haviam mergulhado Judaacute e sobretudo Jerusaleacutem15
A intervenccedilatildeo poliacutetico-religiosa de Jeremias
Jr 2 Yahweh rsquoĕlōhicircm lebaddekā16
Jr 218 oferece um possiacutevel ponto de partida relativamente agrave conceptuali-zaccedilatildeo das relaccedilotildees poliacuteticas entre Judaacute e as potecircncias estrangeiras na tradiccedilatildeo jeremiana laquoIsraelraquo eacute retoacuterica e interrogativamente interpelado com a questatildeo laquoE agora que ganhas em seguir o caminho do Egito para beber das aacuteguas do Šihocircr
9 Jr 375 7-9 1110 Jr 393 526-7 2Rs 25311 2Rs 257-22 Jr 396-9 (TM) Jr 407 5210-26 29 (TM)12 2Rs 2525 Jr 411-313 2Rs 2526 Jr 4314 Jr 5230a (TM)15 Lipschits 2003 2005 186-27116 2Rs 1919
183
Joatildeo Pedro Vieira
Que ganhas em seguir o caminho da Assiacuteria para beber das aacuteguas do Nāhārraquo Como e em que sentido interpretar esta interrogaccedilatildeo Em que medida reflete o pensamento e a accedilatildeo de Jeremias
O v 18 insere-se na periacutecope constituiacuteda pelos vv 14-19 e numa unidade mais vasta delimitada por 21 e 4417 e centrada na temaacutetica da infidelidade de Israel a Yahweh O etnoacutenimo laquoIsraelraquo seraacute melhor entendido como designaccedilatildeo metoniacutemica para Judaacute e particularmente Jerusaleacutem ndash esta uacuteltima identificaccedilatildeo eacute jaacute sugerida por 22a (laquoVai e proclama a Jerusaleacutemraquo gt LXX) No contexto de 214-19 a imagem de Israel eacute construiacuteda atraveacutes de um leacutexico que enfatiza a servidatildeo humilhaccedilatildeo fraqueza dependecircncia assim como a destruiccedilatildeo da terra e do povo A infidelidade a Yahweh eacute equacionada com o faacutetuo recurso a duas potecircncias poliacuteticas internacionais metonimicamente evocadas atraveacutes dos potamoacutenimos Šihocircr (=Nilo ou um seu braccedilo oriental LXX Gecircocircn) referente ao Egito e Nāhār (=Eufrates) referente agrave Assiacuteria
A passagem natildeo esclarece qual a motivaccedilatildeo ou natureza desse recurso limitando-se a especificar que Israel bebe da aacutegua desses rios e a exprimir a inutilidade dessa accedilatildeo (mah lāk lederek hellip dativo de interesse) Ao procurar satisfazer a sua sede buscando conforto e salvaccedilatildeo nas aacuteguas desses caudalosos rios Judaacute abandonou e desprezou Yahweh laquofonte de aacuteguas vivasraquo (213bα2) A dupla interrogaccedilatildeo seraacute provavelmente um reflexo da flutuaccedilatildeo da poliacutetica exter-na judaiacuteta entre a fidelidade ao Egito e a fidelidade ao Impeacuterio Neobabiloacutenico ndash metonimicamente representado pelo etnoacutenimo laquoAssiacuteriaraquo18 ndash no periacuteodo 604-588 aC Acerca da primeira potecircncia afirma o v 16 considerado intrusivo por alguns autores que os filhos de Nōp e de Taḥpanḥēs laquoraparatildeoraquo19 a cabeccedila de Israel Um pouco antes o v 15 apresentava o Impeacuterio Neobabiloacutenico sob a imagem de leotildees os quais rugiam contra Israel e incendiaram e despovoaram as suas cidades sugerindo uma referecircncia aos acontecimentos de 597 aC
Partindo do pressuposto de que qualquer ato comunicativo profeacutetico ou escribal visaria cumprir genericamente um criteacuterio de relevacircncia maacutexima a referecircncia agrave destruiccedilatildeo e despovoamento de Judaacute e a projeccedilatildeo da humilhaccedilatildeo e dececcedilatildeo egiacutepcia num futuro proacuteximo enquadrar-se-atildeo mais adequadamente num periacuteodo criacutetico presumivelmente situado entre 597 e 588 aC Esta opccedilatildeo interpretativa natildeo estaacute poreacutem isenta de dificuldades ndash eg a referecircncia ale-gavelmente vaga e imprecisa (poeacutetica) agrave Babiloacutenia num periacuteodo em que dela havia jaacute um conhecimento direto e manifesto20 Natildeo obstante a assunccedilatildeo de um contexto preacute-609 aC com base na vaga alusatildeo agrave agressatildeo egiacutepcia (v 16) tornaria
17 Holladay 1986-89 162 Lundbom 1999 249 veja-se Albertz 2003 32818 Veja-se Lm 5619 Conjeturalmente revocalizado yerōlsquoucirck por McKane [1986] 2001 36-37 Lundbom 1999
269 272 ou yerēlsquoucirck preferido por Holladay 1986-89 151 contra Bartheacutelemy 1986 466-6720 Veja-se Jr 27-29
184
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
aparentemente pouco inteligiacutevel a poliacutetica externa hesitante de Judaacute alegada por Jr 218 e historiograficamente corroborada para os periacuteodos 604-601 e 595-588 aC21 O v 16 seraacute melhor entendido enquanto projeccedilatildeo da intervenccedilatildeo egiacutepcia de 609 aC na oacutetica dos acontecimentos de 597-586 aC
Jr 236-37 oferece informaccedilatildeo adicional acerca do modo como a relaccedilatildeo en-tre Judaacute o Egito saiacuteta e o Impeacuterio Neobabiloacutenico era concebida A inconstacircncia e infidelidade de Israel cuja identidade estaacute impliacutecita nos vv 33-37 sob a forma de um alocutaacuterio feminino22 haviam jaacute trazido a humilhaccedilatildeo do paiacutes agraves matildeos da Assiacuteria e resultaratildeo numa nova humilhaccedilatildeo agraves matildeos do Egito Daiacute23 sairaacute Israel com as matildeos sobre a cabeccedila (v 37a) uma manifestaccedilatildeo de desgraccedila e desespero sendo possiacutevel que o texto se reporte ao envio de emissaacuterios ao Egito no acircmbito de negociaccedilotildees para garantir o apoio saiacuteta contra o domiacutenio neobabiloacutenico Efe-tivamente eacute Yahweh quem traz o oproacutebrio a Israel ao rejeitar os seus aliados (v 37a)
As passagens acima tratadas defendem agrave semelhanccedila de Is 301-7 e Os 711-13 121-2 uma perspetiva teo-ideoloacutegica segundo a qual Judaacute deve rejeitar qualquer alianccedila poliacutetica com potecircncias estrangeiras e particularmente no caso vertente com o Egito Semelhante perspetiva se pode encontrar em Is 301-7 Nem o Egito nem o Impeacuterio Neobabiloacutenico se apresentam como alternativa a Yahweh Ambas as potecircncias agrediram e humilharam significativamente Judaacute no passado e o Egito voltaria certamente a fazecirc-lo pelo que qualquer das opccedilotildees equivalia claramente a um ato de traiccedilatildeo e infidelidade poliacutetico-religiosa temaacuteticas fortes em Jr 21 ndash 44 Estaacute aqui subjacente a convicccedilatildeo numa relaccedilatildeo de privileacutegio e fidelidade entre Yahweh e o seu povo ndash e natildeo entre Yahweh e o rei ndash especialmente caracteriacutestica de Dt e da linguagem dita laquodeuteronomistaraquo de tradiccedilotildees profeacuteticas como Is Os e Am
Embora soacute parcialmente reflitam a dinacircmica do debate poliacutetico interno em Jerusaleacutem no contexto de 594-588 aC os textos acima tratados satildeo surpreen-dentes na tradiccedilatildeo jeremiana agrave luz da atuaccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias descrita em secccedilotildees como Jr 201-6 211-10 27-29 ou 37-38 onde a tradiccedilatildeo atribui ao profeta uma intervenccedilatildeo ativa fraturante e incisiva perante a realeza e as elites sociopoliacuteticas e religiosas hiersolimitas em defesa da urgente submissatildeo de Judaacute ao domiacutenio neobabiloacutenico como ordem poliacutetica divinamente sancionada por Yahweh Qual das atitudes poliacuteticas representaraacute mais fielmente a atividade sociopoliacutetica de Jeremias Eacute em Jr 27-29 onde repousam algumas das tradiccedilotildees presumivelmente mais antigas24 (apesar de grandes interpolaccedilotildees redacionais25)
21 Sharp 2003 115-1622 Veja-se Jr 232a23 Lundbom 1999 293-94 296 contra McKane [1986] 2001 55 Holladay 1986-89 111124 Veja-se eg De Jong 201225 Veja-se infra e eg modelo redacional de Albertz 2003 312-45
185
Joatildeo Pedro Vieira
que o esforccedilo de interpretaccedilatildeo seguinte se focaraacute privilegiando os testemunhos textuais fornecidos pela versatildeo alexandrina26
Jr 27-29 a submissatildeo agrave Babiloacutenia como imperativo divinoJr 27 a conferecircncia hierosolimita de 593 aC e o jugo da BabiloacuteniaJr 2727 relata uma intervenccedilatildeo profeacutetica de Jeremias no contexto do conveacute-
nio poliacutetico-diplomaacutetico que teraacute reunido em Jerusaleacutem sob provaacutevel instigaccedilatildeo egiacutepcia os emissaacuterios dos estados do Edom Moab Amon Tiro e Siacutedon O conveacutenio teraacute sido animado por um forte sentimento antibabiloacutenico e destinar--se-ia a discutir a insurreiccedilatildeo dos estados participantes contra a hegemonia neobabiloacutenica28 A dataccedilatildeo apresentada por TM v 1 (gtLXX) estaacute manifestamente incorreta (texto conflato) uma vez que os acontecimentos se referem ao reinado de Sedecias e natildeo de Joaquim devendo assumir-se aqui com base na ligaccedilatildeo temaacutetica e narrativa iacutentima entre Jr 27-28 um periacuteodo algo anterior ao quinto mecircs do ano 4 de Sedecias (Jr 281aα-β (TM))29 ie algures entre abrilmaio e setembro de 593 aC30
Carregando correias e cangalhos31 sobre o pescoccedilo Jeremias interpela os emissaacuterios afirmando-lhes que Yahweh criador no justo exerciacutecio do seu poder confiara ao rei da Babiloacutenia32 a soberania sobre a criaccedilatildeo e laquoestes paiacutesesraquo (vv 5-6) e ordenara a todos os povos e reinos o dever sagrado de carregar a canga ou jugo (lsquoōl) da Babiloacutenia e servir o seu rei (v 8) Os emissaacuterios satildeo ainda dissuadidos de confiarem nos agentes profeacuteticosdivinatoacuterios que defendem aconselham ou preveem a resistecircncia agrave Babiloacutenia ou o insucesso desta (v 9) a palavra daqueles eacute lapidarmente classificada de falsa (šeqer) e ilegiacutetima (vv 9-10) Soacute a submissatildeo poderaacute evitar o exiacutelio e a destruiccedilatildeo (vv 8 11)
26 O presente trabalho assume que LXX ndash cujo ideal-tipo textual reconstruiacutedo por Ziegler (1957) natildeo soacute eacute comparativamente mais breve que o ideal-tipo massoreacutetico em c 14 como apresenta uma disposiccedilatildeo de materiais significativamente diferente ndash testemunha indiretamente uma fase anterior e heuristicamente preferiacutevel da tradiccedilatildeo textual jeremiana em linha com Janzen (1973) Tov (1997 2003 143) Bogaert (2003) e De Jong (2011 484-87) entre outros e contra eg Lundbom (1999 57-63 2010 1-9) Cf a posiccedilatildeo mais prudente de Stipp 2010 106-7
27 Para a reconstruccedilatildeo do texto hebraico hipoteticamente subjacente a Jr 27 (LXX) veja-se Janzen 1973 Ziegler 1957 Stulman 1985 1986 86-89 Tov 1999 Rabin et al 1997 Bogaert 2003 Crawford et al 2008 De acordo com Stulman (1986 129) a versatildeo massoreacutetica conserva um texto c 73 mais longo que a Vorlage proto-massoreacutetica hipoteacutetica de LXX
28 Lipschits 2005 63-64 Malamat 2001 311-13 Kahn 2007 508-9 2008 143-4429 Janzen 1973 1430 Para uma perceccedilatildeo da correspondecircncia aproximada entre os calendaacuterios judaiacuteta neoba-
biloacutenico e juliano e dos problemas inerentes veja-se Parker et Dubberstein 1956 Galil 1996 108-15 2010
31 Sobre a interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo dos termos mocircṭāh mocircsērāh e lsquoōl veja-se HALOT sv mocircṭāh mocircsērāhlsquoōl Holladay 1986-89 2119-20 Becking 2004 151-52 Foreman 2011 190-95
32 O antropoacutenimo laquoNabucodonosorraquo eacute muito provavelmente omitido em todo o capiacutetulo 27 na versatildeo alexandrina
186
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
Tomando Sedecias por destinataacuterio (circunstancial A 2ordf p pl eacute inconsis-tente e subentende antes um coletivo e natildeo um indiviacuteduo) o oraacuteculo seguinte (vv 12 14-15) retoma o imperativo de submissatildeo ao rei da Babiloacutenia e reenfatiza a falsidade dos profetas O uacuteltimo oraacuteculo endereccedilado ao povo e sacerdotes (vv 16-20 22) omite qualquer referecircncia direta ao imperativo de submissatildeo para se consagrar exclusivamente agrave argumentaccedilatildeo contra os laquofalsosraquo profetas rejeitada a sua comissatildeo divina (v 17) e desafiados a interceder junto de Yahweh (v 18) O objetivo deste derradeiro oraacuteculo eacute evidente deslegitimar e rejeitar qualquer ma-nifestaccedilatildeo profeacutetica que anunciasse a restauraccedilatildeo da parafernaacutelia cultual levada para a Babiloacutenia em 597 aC (vv 16 19-20 21)33
Jr 27 (LXX) em perspetiva torna-se clara a preponderacircncia de duas te-maacuteticas de importacircncia estruturante (a) a submissatildeo voluntaacuteria agrave Babiloacutenia enquanto condiccedilatildeo sine qua non para a integridade e sobrevivecircncia de Judaacute e sobretudo (b) o laquofalsoraquo profetismo diretamente ligado agrave impugnaccedilatildeo da tese da submissatildeo Ao longo dos trecircs oraacuteculos eacute esta uacuteltima temaacutetica ndash mais nitida-mente em TM ndash que apresenta maior relevo No entanto no terceiro oraacuteculo TM confere visibilidade a uma terceira temaacutetica que aiacute desempenha um papel dominante mas natildeo menos irrelevante na oacutetica da accedilatildeo simboacutelica introduzida pelos vv 2-3 o regresso dos objetos do templo de Jerusaleacutem
Efetivamente TM incorpora uma seacuterie de adiccedilotildees redacionais que apro-fundando o deacutefice de coesatildeo interna de Jr 27 jaacute detetaacutevel na versatildeo alexandrina e assumindo uma provaacutevel perspetiva exiacutelica ou mesmo poacutes-exiacutelica ndash Jr 5217 20 e 2 Rs 2513 estatildeo aparentemente subentendidos e a adiccedilatildeo do v 19bβ indica Jerusaleacutem como espaccedilo de referecircncia dos autores (bālsquoicircr hazzōrsquot)34 ndash acentuam natildeo soacute a falsidade do anuacutencio do regresso dos objetos do templo projetando a sua restauraccedilatildeo por accedilatildeo divina num futuro indefinido como tambeacutem a longa duraccedilatildeo do domiacutenio neobabiloacutenico (v 7 gt LXX) Neste contexto natildeo seraacute for-tuito que Sedecias Jerusaleacutem e Judaacute como nota Sharp35 sejam implicitamente excluiacutedos da promessa de paz explicitamente formulada aos emissaacuterios e reis estrangeiros (v 11) O terceiro oraacuteculo contradiz inclusivamente o sentido das secccedilotildees anteriores eliminando a hipoacutetese de salvaccedilatildeo pela submissatildeo inicial-mente apresentada e transformando tacitamente a desobediecircncia e o exiacutelio em certezas (vv 19-22)
O horizonte exiacutelico ou poacutes-exiacutelico sugerido pela intensa atividade redacio-nal detetada em Jr 2716-22 (TM) eacute igualmente extensiacutevel agraves unidades anteriores do capiacutetulo e em particular agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo Agrave semelhanccedila de Jr 239-32 a rejeiccedilatildeo do profetismo assume em Jr 279-18 (TM) um aspeto
33 Veja-se 2Rs 2413 (TM)34 Bogaert 2003 64 Carroll 2006 2530-3735 Sharp 2013
187
Joatildeo Pedro Vieira
manifestamente poleacutemico operando no sentido natildeo soacute da vilificaccedilatildeo e deslegi-timaccedilatildeo dos agentes profeacuteticos e sua responsabilizaccedilatildeo pela cataacutestrofe de 586 aC36 como tambeacutem da promoccedilatildeo da superioridade e autenticidade do muacutenus profeacutetico jeremiano A poleacutemica contra os laquofalsosraquo profetas jaacute enraizada na fase textualredacional testemunhada por LXX e assinalada noutros capiacutetulos pela traduccedilatildeo de nebicircrsquoicircm por pseudoprophecirctai quando aplicado a antagonistas37 insere-se no quadro ideoloacutegico de passagens como Ez 138-10 e Zc 132-6 natildeo fazendo provavelmente parte do nuacutecleo primitivo de Jr 2738
Jr 28 o confronto com Hananias e as esperanccedilas restauracionistasEacute em Jr 28 que a poleacutemica contra os profetas que apoiam a resistecircncia agrave
Babiloacutenia e anunciam o regresso de Joaquin dos exilados e dos objetos do tem-plo atinge um dos seus momentos mais marcantes na tradiccedilatildeo jeremiana Jr 28 relata um presumiacutevel confronto entre Jeremias e Ḥănanyāh b lsquoAzzucircr (Hananias) ocorrido no templo de Yahweh e datado do quinto mecircs do ano 4 de Sedecias ie aprox entre agosto e setembro de 593 aC (vd supra)
Conforme observado a propoacutesito de Jr 27 o momento era particularmente sensiacutevel do ponto de vista da poliacutetica externa judaiacuteta Por um lado a subleva-ccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC ainda que de curta duraccedilatildeo e logo seguida de uma campanha agrave Siacuteria39 alimentara esperanccedilas na derrocada do impeacuterio e na consequente repatriaccedilatildeo dos deportados que continuariam a ecoar tanto nas comunidades exiacutelicas como em Judaacute Por outro o Egito comeccedilava a reafirmar a sua influecircncia na Siacuteria-Palestina e Judaacute no acircmbito do conveacutenio internacional de Jerusaleacutem discutia externa e internamente a eventualidade cada vez mais certa de uma insurreiccedilatildeo As conversaccedilotildees poliacutetico-diplomaacuteticas e o recru-descimento da agitaccedilatildeo sociopoliacutetica testemunhados por Jr 27-28 ter-se-atildeo desenvolvido sem conhecimento do desfecho da campanha militar vitoriosa do Egito contra o Kuš cujas notiacutecias teratildeo chegado a Elefantina por volta de 10 de II Šemu do ano 3 de Psameacutetico II ie 26-10-593 aC40 No entanto eacute provaacutevel que os acontecimentos em Jerusaleacutem pressupusessem o conhecimento de que
36 Veja-se Jr 531 810 206 1411-1637 Jr 267 8 11 16 281 291 8 mas tambeacutem 27938 Veja-se McKane 1996 685-708 Carroll 2006 2530-3739 Segundo a Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 21-24 Nabucodonosor enfrentou uma
sublevaccedilatildeo entre Kislev e Tebet do seu ano 10 (ie dezembro de 595 ndash fevereiro de 594) a qual teraacute exigido a sua intervenccedilatildeo direta Entre Tebet e Adar do mesmo ano (meados de janeiro ndash meados de abril) Nabucodonosor teraacute marchado triunfalmente pelo Ḫatti numa campanha de meacutedio alcance com o objectivo dissuadir qualquer intuito de sublevaccedilatildeo nas proviacutencias oci-dentais (Glassner 2004 230-31 Wiseman 1956 73-74)
40 Kahn 2008 147 Talvez esse desconhecimento ajude a explicar parcialmente o facto de o Egito se manter fora do horizonte impliacutecito inerente ao relato do confronto entre Jeremias e Hananias
188
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
a campanha fora desencadeada e talvez mesmo a expectativa de um desenlace favoraacutevel ao Egito41
Hananias anuncia de forma contundente que Yahweh quebraraacute a cangajugo (lsquoōl) do rei da Babiloacutenia e faraacute regressar a Jerusaleacutem num prazo de 2 anos natildeo soacute os objetos do templo como igualmente Joaquin e os exilados de Judaacute (vv 2-3) Reafirmando retoricamente o anuacutencio de Hananias sob a forma de uma epiacutetrope (v 7) ndash mas omitindo (intencionalmente) a referecircncia a Joaquin ndash Jeremias capta a atenccedilatildeo do seu antagonista para rapidamente alegar que conquanto os profetas desde sempre (min halsquoocirclām) tivessem profetizado sobre a guerra (lemilḥāmāh v 8 TM expande a sequecircncia para completar a triacuteade laquoguerra fome e pesteraquo) contra grandes potecircncias soacute quando a palavra do pro-feta que anunciava a paz (šālocircm) se concretizasse se saberia que esse profeta cuja accedilatildeo natildeo beneficiava da autoridade da tradiccedilatildeo fora verdadeiramente enviado por Yahweh (v 9)
Hananias reage agressivamente reiterando a sua mensagem atraveacutes da subversatildeo fiacutesica e performativa da accedilatildeo jeremiana ndash a trave (cangalhos Heb mocircṭāh ne gr kloioi) da canga que Jeremias carregava eacute arrancada e quebrada (v 10) ndash e da reafirmaccedilatildeo do fim da hegemonia neobabiloacutenica por intervenccedilatildeo divina (v 11) Publicamente humilhado e desmantelada a sua argumentaccedilatildeo Je-remias retira-se42 A reacuteplica a Hananias surge pouco tempo depois atraveacutes de dois oraacuteculos de tom vincadamente acusatoacuterio e poleacutemico o primeiro reafirmando contundentemente a hegemonia neobabiloacutenica atraveacutes da imagem renovada da canga de ferro (vv 13-14) o segundo rejeitando a comissatildeo divina de Hananias e anunciando imprecatoriamente a sua morte (vv 15-17)
O contraste entre os vv 6-9 e 12-16 relativamente agrave atitude de Jeremias eacute conspiacutecuo e argumenta no sentido da secundariedade do uacuteltimo segmento43 estreitamente ligado agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo (a ele acresce muito prova-velmente o v 17) Esta temaacutetica configura um estrato redacional jaacute presente em LXX ndash Hananias eacute aqui classificado de pseudoprophecirctes (v 1) ndash mas aprofundado em TM pela adiccedilatildeo de v 16bβ Hananias eacute condenado agrave morte porque profetizou a rebeliatildeo (sārā) contra Yahweh44 Aleacutem disso a adiccedilatildeo sistemaacutetica do tiacutetulo nābicircrsquo em TM vv 5 6 10 12 15 17 reflete uma fase avanccedilada do processo de construccedilatildeo da imagem profeacutetica paradigmaacutetica de Jeremias vincando a sua superioridade e autoridade contra todos os restantes profetas caracterizados pela falsidade da
41 A conjugaccedilatildeo das informaccedilotildees fornecidas pelas inscriccedilotildees de Abu Simbel e pela Carta de Aristeias (Fernaacutendez Marcos 1983 13-14 2000 41 Thackeray 1904 2-4) sugerem a participaccedilatildeo de tropas auxiliares judaiacutetas na campanha saiacuteta contra o Kuš (Albertz 2003 97 Freedy ndash Redford 1970 476 contra Kahn 2007 2008 145-46)
42 Possivelmente secundaacuterio para McKane 1996 721-2243 Com De Jong 2012 e McKane 1996 72544 Veja-se Dt 136 Hibbard 2011 348
189
Joatildeo Pedro Vieira
sua comissatildeo e da sua mensagem45Caso se reconheccedila valor heuriacutestico miacutenimo agrave representaccedilatildeo narrativa de
Jr 28 cuja versatildeo mais antiga estaraacute conservada em LXX o confronto entre Jeremias e Hananias testemunha um recrudescimento significativo de tensotildees divergecircncias e conflitos de natureza sociopoliacutetica e ideoloacutegica em Jerusaleacutem acerca do domiacutenio neobabiloacutenico sobre Judaacute A intervenccedilatildeo antibabiloacutenica de Hananias sugere que sectores importantes da sociedade hierosolimita incluin-do parte das suas elites dirigentes acalentavam a esperanccedila na restauraccedilatildeo de Joaquin e no regresso dos exilados e dos objetos do templo siacutembolo da plena restauraccedilatildeo de Judaacute Para esses sectores a reversatildeo ao statu quo ante passaria necessariamente pela destruiccedilatildeo do Impeacuterio Neobabiloacutenico impulsionada pela intervenccedilatildeo salviacutefica de Yahweh46 Nos termos da ordem poliacutetica entatildeo vigente instituiacuteda e conservada sob controlo poliacutetico-militar neobabiloacutenico diferido a atividade profeacutetica de Hananias revestia-se de um caraacutecter manifestamente sub-versivo assumindo a ilegitimidade de Sedecias e anunciando o fim divinamente determinado da sua realeza
Neste contexto ao defender o dever de submissatildeo de Judaacute agrave Babiloacutenia Jeremias agia em conformidade impliacutecita com os interesses da monarquia sedeciana e dos seus grupos de apoio conferindo-lhes a sanccedilatildeo divina que Hananias lhes negava Tal atuaccedilatildeo poderaacute eventualmente explicar a omissatildeo da referecircncia a Joaquin no v 7 facto congruente com a imagem criacutetica (ou ateacute hostil) de Joaquin transmitida por Jr 1318 (TM) e 2224a (LXX) 28-30ordf (LXX)47 De acordo com a presumiacutevel tendecircncia primitiva destas passagens Joaquin fora humilhado despojado da sua realeza e banido (heb lsquoăricircricirc gr ekkecircrukton) de Judaacute por Yahweh o qual rejeitara assim a sua relaccedilatildeo de privileacutegio e eleiccedilatildeo com o rei judaiacuteta Apesar de Joaquin e as elites dirigentes hierosolimitas terem acabado por se render a Nabucodonosor apoacutes um curto cerco evitando assim a
45 Carroll 1996 192 2004 77-80 De Jong 201146 Seitz 1989 20947 A anaacutelise da periacutecope suscita muacuteltiplas interpretaccedilotildees e reconstruccedilotildees de cariz redacional
por vezes francamente divergentes (Job 2006 79-97 McKane [1986] 2001 540-52 Holladay 1986-89 1604-12 Lundbom 2004 153-64) Assume-se aqui que Ag 223 eacute posterior a Jr 2224 e que os vv 24b-27 devem ser excluiacutedos como comentaacuterio exegeacutetico desenvolvido com base no v 24a eou 28 Quanto aos vv 28-30 e embora LXX possa refletir um texto-base hebraico defetivo por haplografia nalguns casos (v 28aα2 30aβ) o v 28b (TM) apresenta sinais muito significativos de intervenccedilatildeo redacional As formas verbais singulares do v 28b (LXX) indicam que wezarlsquoocirc (gtLXX) seraacute secundaacuterio e que as desinecircncias verbais teratildeo sido correspondente-mente harmoni- zadas em TM Aleacutem disso a forma declarativa do v 28 (LXX) carecendo de correspondente para halsquoeṣeb e da referecircncia agrave descendecircncia do rei transmite um significado diferente ao v Joaquin foi efetivamente dispensado como um vaso inuacutetil expulso de Judaacute No v 30 lsquoăricircricirc significaraacute muito provavelmente laquobanidoraquo segundo LXX e natildeo laquosem filhosraquo pelo que o v 30b deveraacute ser considerado uma glosa secundaacuteria hipoteticamente ligada agraves intervenccedilotildees responsaacuteveis pela inserccedilatildeo da temaacutetica do destino e estatuto da descendecircncia joaquinita e por uma ressemantificaccedilatildeo de lsquoăricircricirc
190
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
ocupaccedilatildeo violenta e destruiccedilatildeo da cidade Jeremias parece ter subalternizado o ato de submissatildeo perante as consequecircncias disruptivas da resistecircncia Todavia natildeo eacute possiacutevel determinar se a atuaccedilatildeo do profeta implicava um compromisso ou simplesmente um alinhamento sociopoliacutetico e ideoloacutegico ainda que parcial com a elite dirigente sedeciana
Jr 29 Babiloacutenia uma nova JudaacuteConstruto literaacuterio eivado de problemas textuais redacionais e interpreta-
tivos48 Jr 29 transfere para as comunidades exiladas na Babiloacutenia o horizonte da conflituosidade sociopoliacutetica e ideoloacutegica em torno da suserania neobabiloacutenica e introduz uma perspetiva escatoloacutegica de restauraccedilatildeo aparentemente em bene-fiacutecio exclusivo dos deportados de 597 aC A sobrescriccedilatildeo editorial constituiacuteda pelos vv 1-3 identifica o texto sequente como uma carta (heb sēper gr biacuteblou) de Jeremias dirigida aos anciatildeos sacerdotes e profetas (LXX pseudoprohecirctas) de-portados para a Babiloacutenia em 597 aC O v 2 data a carta de forma algo imprecisa limitando-se a situaacute-la apoacutes a deportaccedilatildeo de 597 aC (ie 597-596 aC) embora essa dataccedilatildeo seja francamente duvidosa e natildeo pareccedila ser igualmente aplicaacutevel ao episoacutedio de Acab e de Sedecias (vv 21-23) melhor enquadraacutevel no contexto da insurreiccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC49 nem porventura ao alegado surgimento de figuras profeacuteticas na Babiloacutenia (v 15b)
Jeremias exorta os exilados a instalarem-se de modo permanente e a desenvolverem pacificamente a sua existecircncia na Babiloacutenia assumida como espaccedilo de vivecircncia efetivo (presente) e aparentemente transgeracional (futuro) da comunidade deportada (vv 5-6) O v 7 representa o paroxismo da poliacutetica submissiva e colaboracionista propugnada por Jeremias os exilados satildeo instados a procurar o sucessoprosperidade (šalocircm) da Babiloacutenia (TM lsquoicircr mas LXX gecircn) e a rogar por ela (TM) a Yahweh pois da prosperidade da Babiloacutenia (TM) depen-dia intimamente a prosperidade dos exilados50 Deste modo Jeremias afirmava a identidade total e divinamente prescrita entre os destinos da comunidade exiacutelica e os destinos do Impeacuterio Neobabiloacutenico contra qualquer esperanccedila de colapso do
48 A anaacutelise de Jr 29 abaixo esboccedilada revela a coexistecircncia de perspetivas divergentes sobre o exiacutelio o estatuto das comunidades judaiacutetas em Jerusaleacutem e na Babiloacutenia a restauraccedilatildeo de Judaacute e o proacuteprio papel de Jeremias na sua dupla aceccedilatildeo de personagem histoacuterica e tradiccedilatildeo textual indiciando o desenvolvimento de intensos conflitos pela autoridade religiosa e sociopoliacutetica sobre Jerusaleacutem e Judaacute nos periacuteodos neobabiloacutenico e persa Sobre os conflitos sociopoliacuteticos e ideoloacutegicos dos periacuteodos neobabiloacutenico e persa veja-se eg Person 2002 Leuchter 2008 Sharp 2003 157-64 Carroll 1996 72-73 258-60
49 Veja-se Holladay 1986-89 1 contra Lundbom 200450 A inextricabilidade entre os destinos da comunidade deportada e o Impeacuterio Neobabiloacuteni-
co eacute mitigada em LXX atraveacutes da traduccedilatildeo dos sufixos pronominais hebraicos na 3ordf p sg (-āh) por pronomes pessoais na 3ordf p pl (autocircn) desvinculando da Babiloacutenia natildeo soacute o imperativo de intercessatildeo como igualmente a prosperidade da comunidade exilada
191
Joatildeo Pedro Vieira
impeacuterio e de repatriaccedilatildeo dos deportados a curtomeacutedio prazo51As secccedilotildees seguintes carecem de uma ligaccedilatildeo orgacircnica ao nuacutecleo da
mensagem jeremiana surgindo de forma aparentemente apositiva algo desconexa e tematicamente algo irrelevante devendo ser mais propriamente interpretadas como expansotildees redacionais e exegeacuteticas centradas na (re)in-terpretaccedilatildeo dos vv 5-752 Usando de fraseologia tiacutepica os vv 8-9 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo rejeitando categoricamente quaisquer formas de mediaccedilatildeo profeacutetica ou divinatoacuteria e classificando natildeo soacute a mensagem desses agentes ndash cujo conteuacutedo o texto natildeo explicita ndash de falsa como tambeacutem a sua comissatildeo divina de ilegiacutetima Segue-se nova viragem discursiva e temaacutetica compreendida pelos vv 10-14aα1 que introduzem uma perspetiva escatoloacutegica e salviacutefica em benefiacutecio dos exilados de 597 aC Yahweh anuncia que dentro de 70 anos faraacute regressar a laquoeste lugarraquo (rsquoel hammaqocircm hazzeh) ndash provavelmente Jerusaleacutem ndash os deportados de 597 aC
O texto longo da versatildeo massoreacutetica insere neste ponto duas extensas adiccedilotildees redacionais constituiacutedas pelos vv 14aα2 e 16-20 e apresenta um texto desconexo cuja sequecircncia primitiva provaacutevel (vv 14 16-20 15 21) eacute testemu-nhada pela recensatildeo luciacircnica53 Estas inserccedilotildees introduzem viragens discursivas profundas e natildeo menos irrelevantes na oacutetica dos vv 5-7 Enquanto o v 14aα2 expande a promessa de restauraccedilatildeo a todos os deportados e exilados assumin-do uma perspetiva poacutes-586 aC e contradizendo a tendecircncia exclusivista dos vv 10-14aα1 os vv 16-20 centram-se na condenaccedilatildeo total da realeza daviacutedida e da comunidade judaiacuteta que permaneceu em Jerusaleacutem em 597 aC votadas ao extermiacutenio recuperando para isso vaacuterios toacutepicos e estruturas fraseoloacutegicas caracteriacutesticas do idioleto deuterojeremiano54
Com base no v 15 os vv 21-31 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo e respondem negativamente agrave pretensatildeo de acesso agrave mediaccedilatildeo profeacutetica na Babiloacute-nia declarada pelos exilados (v 15) Agrave exceccedilatildeo de carta de Šemalsquoyāhucirc (Chemaiacuteas)
(vv [25]26-28) todo o restante material em forma oracular poderaacute ser conside-rado uma excrescecircncia redacional em torno da temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo embora o valor heuriacutestico dos seus componentes seja variaacutevel
Assim os vv 21-23 contecircm um oraacuteculo consagrado agrave difamaccedilatildeo e anatemi-zaccedilatildeo de Acab (TM + b Qocirclāyāh) e de Sedecias (TM + b Marsquoăśēyāh) aos quais
51 Veja-se Hill 1999 147-53 O autor enfatiza a similaridade fraseoloacutegica iacutentima entre Jr 295-7 Dt 205-8 e Is 6521-23
52 McKane 1996 735-46 Carroll 2006 2555-5853 Esta ordem apresenta a conspiacutecua vantagem de oferecer uma sequecircncia discursiva mais
coerente e inteligiacutevel aos vv 14-21 (Janzen 1973 118 Ziegler 1957 346-47)54 Perseguiccedilatildeo e extermiacutenio pela espada fome e peste transformaccedilatildeo num objecto de horror
maldiccedilatildeo etc a recusa em ouvir a palavra de Yahweh o envio continuado dos profetas servos de Yahweh De referir ainda a menccedilatildeo inicial agrave imagem dos figos baseada em Jr 24 Relativamente agrave fraseologia e aos toacutepicos deuterojeremianos veja-se Stulman 1986 89-94 Stipp 1998 2009
192
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
TM atribui um estatuto claramente profeacutetico atraveacutes da adiccedilatildeo do v 21aβ ainda que os motivos avanccedilados para tatildeo perentoacuteria condenaccedilatildeo pareccedilam insuficien-tes e vagos senatildeo mesmo inconsequentes Finalmente os vv 24-32 direcionam a poleacutemica contra Chemaiacuteas atraveacutes de dois oraacuteculos O primeiro incompleto (vv 25-28) censuraria Chemaiacuteas por repreender o sacerdoacutecio hierosolimita por natildeo reprimir e castigar Jeremias que anunciava a longa duraccedilatildeo do exiacutelio (interpretaccedilatildeo baseada no v 6) e incentivava os exilados agrave aceitaccedilatildeo do status quo Jaacute o segundo oraacuteculo (vv 31-32) dirigido aos exilados critica asperamente Chemaiacuteas por ter profetizado de forma falsa e ilegiacutetima (v 31) ndash TM acrescenta o tema da rebeliatildeo (sārāh v 32b) em linha com 2816bβ ndash Chemaiacuteas seraacute castigado e a sua descendecircncia excluiacuteda do plano divino de restauraccedilatildeo de Judaacute (v 32)
Eacute provavelmente no nuacutecleo heuriacutestico constituiacutedo pelos vv 5-7 (25)26-28 que se concentraratildeo os dados mais relevantes e fiaacuteveis acerca da atitude de Jere-mias para com o imperium neobabiloacutenico e do modo como essa atitude era per-cecionada entre as elites deportadas na Babiloacutenia Agrave luz da injunccedilatildeo jeremiana dos vv 5-7 a Babiloacutenia natildeo deveria ser encarada como um espaccedilo de privaccedilatildeo submissatildeo e servidatildeo mas sim como um espaccedilo positivo e ateacute promissor onde os deportados tinham oportunidade de beneficiar apesar de tudo da continui-dade transgeracional das becircnccedilatildeos divinas e nesse sentido de uma existecircncia tatildeo paciacutefica e proacutespera quanto maior fosse a sua cooperaccedilatildeo com o impeacuterio Daiacute que Hill considere a existecircncia de uma identificaccedilatildeo metafoacuterica entre Judaacute e a Babiloacutenia por um lado e Jerusaleacutem e a cidade da Babiloacutenia por outro55
Ao exortar os judaiacutetas deportados agrave aceitaccedilatildeo do status quo adquirido e ao incitaacute-los agrave geraccedilatildeo de descendecircncia (v 6) Jeremias reconheceria implicitamente a improbabilidade de uma reposiccedilatildeo do status quo anterior a 597 aC e aceitava claramente a possibilidade da longa duraccedilatildeo do exiacutelio parecendo ignorar em simultacircneo de forma talvez intencional natildeo somente as privaccedilotildees e humilhaccedilotildees inerentes agrave deportaccedilatildeo como tambeacutem as pretensotildees sociopoliacuteticas das elites deportadas agrave sua repatriaccedilatildeo e agrave recuperaccedilatildeo do seu anterior estatuto e poder em Jerusaleacutem Os protestos de Chemaiacuteas provavelmente um membro qualificado do sacerdoacutecio hierosolimita ou da administraccedilatildeo reacutegia ndash e natildeo profeta ndash sugerem que as elites hierosolimitas deportadas continuavam a exercer influecircncia sobre Jerusaleacutem repudiavam natural e veementemente qualquer cenaacuterio de prolon-gamento do exiacutelio e procuravam dissuadir e reprimir todo e qualquer discurso nesse sentido Uma vez mais Jeremias parece agir em conformidade com os interesses da realeza sedeciana e sua envolvecircncia sociopoliacutetica cujo estatuto seria profundamente afetado pelo regresso das elites deportadas56
55 Hill 1999 147-53 199 20556 No entanto a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre 592-587 com a ascensatildeo das inclinaccedilotildees e
grupos proacute-babiloacutenicos em Jerusaleacutem e a aproximaccedilatildeo cada vez maior ao Egito teraacute contribuiacutedo para um desgaste crescente das relaccedilotildees entre Jeremias e a realeza sedeciana (Jr 3711-16 384-
193
Joatildeo Pedro Vieira
Conclusatildeo Jeremias e o desenvolvimento de uma ideologia de submissatildeoO lugar do Egito no discurso jeremianoA manifesta importacircncia do Egito na poliacutetica externa judaiacuteta entre 594 e
586 aC corroborada por Ez 171557 e pelo oacutestraco nordm 3 de Laqiš58 faria esperar o afloramento de referecircncias a essa potecircncia no acircmbito de Jr 27-29 No entanto o Egito estaacute surpreendentemente ausente de Jr 27-29 quer nas suas formas mais antigas quer no texto longo massoreacutetico Esta natildeo eacute poreacutem uma situaccedilatildeo cir-cunscrita a Jr 27-29 Considerando o conjunto da tradiccedilatildeo jeremiana e excluindo agrave partida natildeo soacute materiais claramente exiacutelicos disseminados ao longo de Jr 4114 ndash 44 ndash que reduzem o Egito de forma poleacutemica e difamatoacuteria a um espaccedilo de puniccedilatildeo execraccedilatildeo e extermiacutenio dos judaiacutetas natildeo deportados ndash como tambeacutem os materiais oraculares de Jr 461-2659 ndash cuja atribuiccedilatildeo se afigura altamente proble-maacutetica ndash restam apenas escassos materiais associaacuteveis ao Egito e enquadraacuteveis na actividade sociopoliacutetica coeva de Jeremias eg Jr 376-8 4210-12 Mesmo aqui o Egito saiacuteta permanece uma realidade poliacutetica impliacutecita natildeo nomeada60
Por conseguinte para o discurso jeremiano a opccedilatildeo poliacutetica alternativa agrave submissatildeo ao Impeacuterio Neobabiloacutenico parece nunca se ter colocado nos termos de um alinhamento poliacutetico com o Egito saiacuteta mas simplesmente nos termos da rejeiccedilatildeo da ndash e da resistecircncia agrave ndash suserania neobabiloacutenica Tal posiccedilatildeo poliacutetica e ideoloacutegica contrasta nitidamente com Jr 218 36 passagens que criticam veementemente a poliacutetica de alianccedilas de Judaacute entendida como inaceitaacutevel mani-festaccedilatildeo de infidelidade e apontam para um isolacionismo teopoliacutetico centrado na suserania de Yahweh pouco compatiacutevel com a difiacutecil situaccedilatildeo poliacutetica de Judaacute no periacuteodo 609-586 aC
Esta leitura sugere que Jr 218 36 e sua envolvecircncia apesar de historicamente
5)57 De acordo com este v Sedecias teraacute procurado o apoio militar (e certamente poliacutetico) do
Egito atraveacutes do fornecimento de cavalos e tropas58 Dataacutevel do periacuteodo 592-588 aC o oacutestraco nordm 3 de Laqiš (ll 14-18) menciona uma deslo-
caccedilatildeo do comandante (śar haṣābārsquo) Konyāhucirc b rsquoElnātān em direccedilatildeo ao Egito que poderaacute indiciar a existecircncia de relaccedilotildees poliacutetico-militares ativas com essa potecircncia no acircmbito da assistecircncia a que Ez 1715 alude (Lemaire 1977 108 Veja-se Lipschits 2005 64-65)
59 Trata-se de materiais que celebram a derrota de Necao II em Qarkemiš (605 aC) e a vin-ganccedila de sangue obtida por Yahweh pelas humilhaccedilotildees infligidas a Judaacute e anunciam a invasatildeo e subjugaccedilatildeo do Egito agraves matildeos de Nabucodonosor II
60 Em Jr 376-8 ainda que Jeremias advirta implicitamente contra as falsas esperanccedilas depo-sitadas no auxiacutelio egiacutepcio o foco discursivo repousa sobre a inamovibilidade da ameaccedila militar neobabiloacutenica (veja-se Ez 1715-17) Jaacute em Jr 4210-12 na sequecircncia do assassiacutenio de Godolias e perante a iminecircncia de uma fuga para o Egito o profeta garantia aos judaiacutetas a proteccedilatildeo de Yahweh contra uma eventual intervenccedilatildeo babiloacutenica e desaconselhava implicitamente o exiacutelio para o Egito Veja-se Lipschits 2005 304-49 Stipp 2012
194
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
relevantes oferecem uma representaccedilatildeo tardia da atividade historiograficamen-te presumida de Jeremias Contrariamente o discurso jeremiano de Jr 27-29 revela-se criticamente orientado para a proteccedilatildeo e conservaccedilatildeo da realeza judaiacute-ta e para a sobrevivecircncia etnopoliacutetica de Judaacute correspondendo assim ao perfil profeacutetico sociologicamente construtivo e mais antigo identificado por De Jong61 Os motivos pelos quais o Egito constitui um elemento marginal no discurso poliacutetico de Jr 27-29 natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis
A aceitaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia poliacuteticaA anaacutelise de Jr 27-29 indica que Jeremias teraacute sido muito provavelmente
um defensor inveterado da submissatildeo poliacutetica agrave Babiloacutenia possivelmente desde a eacutepoca da primeira deportaccedilatildeo O seu discurso incorpora um entendimento realista das circunstacircncias poliacuteticas de Judaacute no contexto geopoliacutetico da Aacutesia Ocidental e emerge como um verdadeiro discurso de submissatildeo marcado pela interiorizaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo ideoloacutegica da estrutura de relaccedilotildees de poder vi-gente (subalternidade) Para Jeremias a submissatildeo era a condiccedilatildeo divinamente sancionada da sobrevivecircncia da monarquia judaiacuteta Este desenvolvimento ideo-loacutegico e discursivo acomodatiacutecio e cooperante exemplarmente ilustrado em Jr 295-7 natildeo eacute totalmente inaudito no contexto cultural siro palestinense Em-bora num contexto significativamente diferente as inscriccedilotildees de Panammuwa II e Bar-Rakib (c 733-725 aC) ilustram o modo como as elites sociopoliacuteticas e a realeza de Samlsquoal desenvolveram uma retoacuterica e ideologia de subalternidade em que o estatuto de vassalidade do reino foi incorporado como um facto poliacutetico positivo gerador de poder e prestiacutegio62
Eacute provaacutevel que a atividade sociopoliacutetica de Jeremias oferecendo ao domiacutenio neobabiloacutenico uma sanccedilatildeo divina local tenha chegado ao conhecimento das eli-tes neobabiloacutenicas Efetivamente se essa atividade teve a inclinaccedilatildeo ideoloacutegica e pelo menos alguma da visibilidade e impacto que os segmentos mais fiaacuteveis da tradiccedilatildeo jeremiana lhe atribuem afigura-se provaacutevel que a corte neobabiloacutenica estivesse minimamente ciente do valor sociopoliacutetico e religioso de Jeremias e o encarasse como instrumento local de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico sobre Judaacute
Existem alguns dados que corroboram este cenaacuterio A praacutetica poliacutetica im-perial neoassiacuteria63 Ez 1712-19 e 2Cr 3613 sugerem que Nabucodonosor II teraacute coagido Sedecias a celebrar um tratado jurado que invocaria Yahweh como uma das testemunhas e garantes divinos da sua observacircncia e executor das maldiccedilotildees
61 De Jong 2011 507-862 KAI 215-216 Hallo 2003 158-61 veja-se Hamilton 1998 221-3063 Veja-se eg tratado de Assaradatildeo com Balsquoal de Tiro IV ll 6-18 (SAA 25)
195
Joatildeo Pedro Vieira
previstas em caso de incumprimento64 Tal inclusatildeo significava a ocorrecircncia de um aproveitamento e instrumentalizaccedilatildeo estrateacutegicos dos recursos simboacutelicos e ideoloacutegicos locais ao serviccedilo da imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico Para aleacutem disso os corpora profeacuteticos mariota e neo-assiacuterio assim como o tratado de sucessatildeo de Assaradatildeo com Humbareš de Nahšimarti65 ilustram eloquentemente o poder poliacutetico e ideoloacutegico que a realeza mesopotacircmica reconhecia ao fenoacuteme-no profeacutetico cujas manifestaccedilotildees procurava ativamente monitorizar e controlar66
O reconhecimento do valor sociopoliacutetico do profetismo jeremiano poderia assim explicar tanto o pretenso tratamento de exceccedilatildeo que os altos oficiais mili-tares neobabiloacutenicos teratildeo reservado a Jeremias como igualmente a transmissatildeo da tutela sobre o profeta ao governo provincial de Miṣpāh sob a lideranccedila de Godolias na sequecircncia da ocupaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do desmante-lamento da monarquia judaiacuteta (Jr 3914 cf 401-3) Teraacute sido nestas condiccedilotildees que Jeremias teraacute dado continuidade agrave mensagem poliacutetica preacutevia defendendo que os babiloacutenios natildeo deveriam ser temidos ndash em linha com o discurso poliacutetico do governo provincial (Jr 409aβ-10) ndash e que (apoacutes o assassiacutenio de Godolias) os judaiacutetas deveriam permanecer em Judaacute (Jr 4210-12)67
64 Wong 2001 59-65 Monte 2010 9265 ND 4336 ll 108-122 (SAA 26)66 Nissinen 2003 Caramelo 200267 Veja-se Stipp 2012 122 125-32
196
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
Bibliografia
Albertz Rainer 2003 Israel in Exile The History and the Literature of the Sixth Century BCE Atlanta Society of Biblical Literature
mdashmdashmdash 1994 From the Beginnings to the End of the Monarchy Vol 1 de A History of Israelite Religion in the Old Testament Period Louisville Westminster John Knox Press
Bartheacutelemy Dominique 1986 Isaiumle Jeacutereacutemie Lamentations Vol 2 de Critique Textuelle de lrsquoAncien Testament Fribourg Goumlttingen Eacuteditions Universitaires Fribourg Vandenhoeck amp Ruprecht
Becking Bob 2004 Between Fear and Freedom Essays on the Interpretation of Jeremiah 30-31 Leiden Brill
Bogaert Pierre-Maurice 2003 ldquoLa vetus latina de Jeacutereacutemie texte tregraves curt teacutemoin de la plus ancienne Septante et drsquoune forme plus ancienne de lrsquoheacutebreu (Jer 39 et 52)rdquo In The Earliest Text of the Hebrew Bible The Relationship between the Masoretic Text and the Hebrew Base of the Septuagint Reconsidered ed Adrian Schenker 51-82 Atlanta Society of Biblical Literature
Caramelo Francisco 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia
Crawford Sidnie Jan Joosten e Eugene Ulrich 2008 ldquoEditions of the Oxford Hebrew Bible Deuteronomy 321-9 1 Kings 111-8 and Jeremiah 271-10 (34 G)rdquo Vetus Testamentum 58352-66
Carrol Robert P 2006 Jeremiah 2 vols Sheffield Sheffield Phoenix Pressmdashmdashmdash 1996 Uses of Prophecy in the Book of Jeremiah London Xpress ReprintsDonner Herbert e Wolfgang Roumlllig 2002 Kanaanaumlische und aramaumlische
Inschriften Vol 1 Wiesbaden Harrassowitz VerlagElliger Karl e Wilhelm Rudolph eds 1997 תורה נביאים וכתובים Biblia Hebraica
Stuttgartensia Stuttgart Deutsche BibelgesellschaftFernaacutendez Marcos Natalio 1983 ldquoCarta de Aristeasrdquo In Apoacutecrifos del Antiguo
Testamento Tomo 2 dir Alejandro Diez Macho 9-64 Madrid Ediciones Cristianidad
Foreman Benjamin A 2011 Animal Metaphors and the People of Israel in the Book of Jeremiah Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht
Freedy Kenneth S e Donald B Redford 1970 ldquoThe Dates in Ezekiel in Relation to Biblical Babylonian and Egyptian Sourcesrdquo Journal of the American Oriental Society 90 (3)462-85
Galil Gershon 1996 The Chronology of the Kings of Israel and Judah Leiden Brill
Glassner Jean-Jacques 2005 Mesopotamian Chronicles Leiden Brill
197
Joatildeo Pedro Vieira
Hallo William W ed 2003 Monumental Inscriptions from the Biblical World Vol 2 de The Context of Scripture Canonical Compositions Monumental Inscriptions and Documents from the Biblical World Leiden Brill
Hamilton Mark W 1998 ldquoThe Past as Destiny Historical Visions in Samrsquoal and Judah under Assyrian Hegemonyrdquo The Harvard Theological Review 91 (3)215-230
Hill John 1999 Friend of Foe The Figure of Babylon in the Book of Jeremiah MT Leiden Brill
Holladay William L 1986-89 Jeremiah A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah 2 vols Philadelphia Minneapolis Fortress Press
Hibbard J Todd 2011 ldquoTrue and False Prophecy Jeremiahrsquos Revision of Deuteronomyrdquo Journal for the Study of the Old Testament 35 (3)339-58
Janzen John Gerald 1973 Studies in the Text of Jeremiah Cambridge Harvard University Press
Jong Matthijs J de 2012 ldquoThe Fallacy of lsquoTrue and Falsersquo in Prophecy Illustrated by Jer 288-9rdquo Journal of Hebrew Scriptures 12 (5) Disponiacutevel em httpwwwjhsonlineorgArticlesarticle_172pdf (12-10-2012)
mdashmdashmdash 2011 ldquoWhy Jeremiah is Not Among the Prophets An Analysis of the Terms נביא and נבאים in the Book of Jeremiahrdquo Journal of Hebrew Scriptures 35 (4)483-510
Kahn Danrsquoel 2008 ldquoSome Remarks on the Foreign Policy of Psammetichus II in the Levant (595-589 BC)rdquo Journal of Egyptian History 1 (1)139-57
mdashmdashmdash 2007 ldquoJudean Auxiliaries in Egyptrsquos Wars against Kushrdquo Journal of the American Oriental Society 127 (4)507-16
Khoeler Ludwig e Walter Baumgartner 2000 The Hebrew and Aramaic Lexicon to the Old Testament Leiden Brill
Lemaire Andreacute 1977 Les Ostraca Tomo 1 de Inscriptions heacutebraiumlques Paris Les Eacuteditions du Cerf
Leuchter Mark 2008 The Polemics of Exile in Jeremiah 26-45 Cambridge Cambridge University Press
mdashmdashmdash 2006 Josiahrsquos Reform and Jeremiahrsquos Scroll Historical Calamity and Prophetic Response Sheffield Sheffield Phoenix Press
Lipschits Oded 2005 The Fall and Rise of Jerusalem Judah under Babylonian Rule Winona Lake Eisenbrauns
Lundbom Jack R 2010 Jeremiah Closer Up the Prophet and the Book Sheffield Sheffield Phoenix Press
mdashmdashmdash 2004 Jeremiah 21-36 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday
198
Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute
mdashmdashmdash 1999 Jeremiah 1-20 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday
Malamat Abraham 2001 History of biblical Israel major problems and minor issues Leiden Brill
McKane William 1996 Commentary on Jeremiah XXVI-LII Vol 2 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Edinburgh T amp T Clark
mdashmdashmdash (1986) 2001 Introduction and Commentary on Jeremiah I-XXV Vol 1 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Reimp Edinburgh New York T amp T Clark
Miller James M e John H Hayes 2006 A History of Ancient Israel and Judah Louisville Westminster John Knox Press
Monte Marcel 2010 ldquoOs tratados adē ndash instrumentos poliacuteticos e juriacutedicos na construccedilatildeo imperial assiacuteria (seacutecs VIII-VII aC)rdquo Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Narsquoaman Nadav 2005 Ancient Israel and Its Neighbors Interaction and Counteraction Collected essays Vol 1 Winona Lake Eisenbrauns
Nissinen Marti 2003 Prophets and Prophecy in the Ancient Near East Atlanta Society of Biblical Literature
Parker Richard A e Waldo H Dubberstein 1956 Babylonian Chronology 626 BC-AD 75 Providence Brown University Press
Parpola Simo e Kazuko Watanabe eds 1988 Neo-Assyrian Treaties and Loyalty Oaths Vol 2 de State Archives of Assyria Helsinki Helsinki University Press
Person Raymond F 2002 The Deuteronomic School History Social Setting and Literature Atlanta Society of Biblical Literature
Rabin Chaim Shemaryahu Talmon e Emanuel Tov eds 1997 The Book of Jeremiah Jerusalem Magnes Press
Schipper Bernd U 2011 ldquoEgyptian Imperialism after the New Kingdom The 26th Dynasty and the Southern Levantrdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3-7 May 2009 ed S Bar Danrsquoel Kahn e J Shirley 268-90 Leiden Boston Brill
Seitz Christopher 1989 Theology in Conflict Reactions to Exile in the Book of Jeremiah Berlin Walter De Gruyter
Sharp Carolyn J 2003 Prophecy and Ideology in Jeremiah Struggles for Authority in Deutero-Jeremianic Prose London New York T amp T Clark
Stipp Hermann-Josef 2010 ldquoThe Concept of the Empty Land in Jeremiah 37-43rdquo In The Concept of Exile in Ancient Israel and its Contexts ed Ehud Ben Zvi e Christoph Levin 103-54 Berlin New York Walter de Gruyter
199
Joatildeo Pedro Vieira
mdashmdashmdash 1998 Deuterojeremianische Konkordanz St Ottilien Eos VerlagStulman Louis 1986 The Prose Sermons of the Book of Jeremiah A Redescription
of the Correspondences with Deuteronomistic Literature in Light of the Recent Text-Critical Research Atlanta Scholars Press
mdashmdashmdash 1985 The Other Text of Jeremiah A Reconstruction of the Hebrew Text Underlying the Greek Version of the Prose Sections of Jeremiah With English Translation Lanham New York London University Press of America
Sweeney Marvin Alany 2001 King Josiah The Lost Messiah of Israel Oxford Oxford University Press
Talshir Zipora 1996 ldquoThe Three Deaths of Josiah and the Strata of Biblical Historiography (2 Kings XXIII 29-30 2 Chronicles XXXV 20-5 1 Esdras I 23-31)rdquo Vetus Testamentum 46 (2)213-36
Thackeray Henry 1904 The Letter of Aristeas translated into English London Macmillan
Tov Emanuel 1999 The Greek and Hebrew Bible Collected Essays on the Septuagint Leiden Boston Koumlln Brill
mdashmdashmdash 1997 ldquoSome Aspects of the Textual and Literary History of the Book of Jeremiahrdquo In Le Livre de Jeacutereacutemie Le prophegravete et son milieu Les oracles et leur transmission ed Pierre-Maurice Bogaert 145-67 Leuven Leuven University Press
Wiseman Donald John 1956 Chronicles of the Chaldean Kings (626-556 BC) in the British Museum London Trustees of the British Museum
Wong Ka Leung 2001 The idea of retribution in the Book of Ezekiel Leiden Brill
Ziegler Joseph ed 1957 Ieremias Baruch Threni Epistula Ieremiae Vol 15 de Septuaginta Vetus Testamentum Graecum Auctoritate Societatis Literarum Gottingensis editum Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
201
Antoacutenio Ramos dos Santos
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico1 (Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)
Antoacutenio Ramos dos Santos(ajr-santossapopt ORCID 0000-0002-6610-9733)
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria
Resumo - Este estudo trata a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei do impeacuterio neoba-biloacutenico Pretende-se apresentar uma breve biografia expondo eventos decorridos ao longo do seacuteculo VI a C bem como analisar a questatildeo do poder real e respetiva subdivisatildeo relacionando-o com eventos de instabilidade poliacutetica em particular a sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia em 553 aC
Palavras-chave Naboacutenido Babiloacutenia Imperialismo Araacutebia Teima
Abstract ndash This study regards the figure of Nabonidus the last king of the Neobabilonian empire It is intended to present a brief biography exposing events which occurred throughout the 6th century BCE and to analyse the matter of royal power and its subdivision relating it to events of political instability particularly relating to the Arabian expedition of 553BCE
Keywords Nabonidus Babilonia Imperialism Arabia Tayma
Natildeo se sabe praticamente nada acerca das atividades do uacuteltimo rei de Ba-biloacutenia antes da sua subida ao trono Pensou-se que desempenhara o cargo de prefeito durante o reinado de Nabucodonosor porque aparece um personagem chamado Naboacutenido que tinha esse tiacutetulo citado em 597 num documento Mas tal implicava que tivesse uma vintena de anos e consequentemente assumido o poder com a idade de 70 anos O que parece pouco provaacutevel devendo-se dis-tinguir os personagens Por outro lado a estela de Pognon2 parece indicar um nascimento tardio tendo a sua matildee dado agrave luz em 610-600 mas natildeo mais tarde
Segundo elementos informativos procedentes da estela de Adad-guppi3
1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013
2 Veja-se Beaulieu 1989 703 Ver ADAD-GUPPI - IM-gu-up-pi-I (649-547aC) - Matildee do rei Naboacutenido da X dinastia
de Babiloacutenia (dinastia caldaica) e mulher conhecida sobretudo pelas suas estelas ndash uma com uma autobiografia ndash de Kharran cidade nativa e onde foi devota (palikhtu) como sacerdotisa do templo Ekhulkhul dedicado ao deus Sicircn (deus lua) Soube demonstrar a sua piedade tambeacutem demonstrada agraves divindades Ningal Nusku e Sadarnunna no seu filho fazendo por ele tudo quanto foi necessaacuterio para introduzi-lo na corte de Nabucodonosor II e de Neriglissar Alcanccedilado esse objectivo Naboacutenido aproveitando um golpe militar produzido contra Labashi-Marduk com um reinado efeacutemero ficou com o controlo de Babiloacutenia Segundo a documentaccedilatildeo existente Adad-guppi morreu centenaacuteria (102 anos)
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_10
202
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico
esta teraacute introduzido Naboacutenido na corte de Nabucodonosor e de Neriglissar ten-do recebido uma educaccedilatildeo de priacutencipe na sequecircncia Ignoram-se os motivos do movimento sedicioso que o levou ao trono assim como a data da reconstruccedilatildeo do templo de Harran Naboacutenido teraacute empreendido os trabalhos apoacutes a sua estada em Harran Este facto eacute contraditoacuterio com uma inscriccedilatildeo de Harran segundo a qual o rei empreendeu os trabalhos depois da sua permanecircncia em Teima Este testemunho contradiz uma outra inscriccedilatildeo real neobabiloacutenica segundo a qual o Ehulhul4 foi terminado depois de 553
Mas o enigma principal deste reinado reside no motivo da sua grande per-manecircncia na Araacutebia Nenhum dos argumentos invocados desde o querer vigiar o Egito enquanto enfrentava os saqueadores aacuterabes tinha pedido instalar-se na Palestina e enviar um chefe militar a Teima Nada prova que o comeacutercio do golfo Peacutersico fora entatildeo desviado ateacute agrave peniacutensula araacutebica e que fora suficientemente importante para justificar a presenccedila do soberano num oaacutesis perdido Apenas resta o motivo religioso isto eacute a atraccedilatildeo de um grande centro lunar
Naboacutenido controlou o paiacutes durante 17 anos atraveacutes da mediaccedilatildeo do filho de quem natildeo parece ter havido oposiccedilatildeo O uacuteltimo rei do Impeacuterio babiloacutenico foi uma figura estranha cujas intenccedilotildees poliacuteticas escapam quase por completo Filho de um governador provavelmente de origem aramaica apesar do seu nome babiloacutenico Nabu-balatsu-iqbi e de uma sacerdotisa do deus Sicircn de Har-ran Adad-guppi Naboacutenido natildeo era de ascendecircncia real como reconhecido nas estelas de Hilleh e de Harran Entronizado por uma conspiraccedilatildeo pretendia ser o continuador de Neriglissar e de Nabucodonosor e mesmo dos grandes sobe-ranos da Assiacuteria
As suas inscriccedilotildees e a autobiografia da sua matildee redigida sob a sua super-visatildeo refletem uma vontade de continuidade imperial Natildeo pode negar-se a influecircncia desta mulher na devoccedilatildeo de seu filho por Sicircn e que parece ter ditado as suas decisotildees poliacuteticas mais importantes
Ao ter lugar a sua subida ao trono em 556 Naboacutenido teve uma visatildeo na
em Dur-Karashu na regiatildeo de Sippar O seu filho Naboacutenido retirado no oaacutesis aacuterabe de Teima natildeo compareceu ao seu funeral Na eacutepoca de Assurbaniacutepal residiu em Harracircn em 649 a C e cuja histoacuteria eacute conhecida atraveacutes de uma pseudo-autobiografia gravada numa estela que integrada seguidamente na estrutura da mesquita da atual povoaccedilatildeo de Eski Harracircn Antes de morrer em 547 ela pode ver o seu filho Naboacutenido o uacuteltimo dos reis neobabiloacutenicos empreender a restauraccedilatildeo do culto no Ehulhul saqueado pelos Medos A sua autobiografia foi redigida de acordo com as instruccedilotildees de Naboacutenido e guardada no templo do deus Sicircn em Hacircrran Adad-guppi estava muito ligada a este centro religioso do qual ela era provavelmente originaacuteria e manifestava uma devoccedilatildeo particular ao deus Sicircn deus da Lua sem ter nunca exercido uma funccedilatildeo religiosa a ele ligada eacute sem dano que ela eacute apresentada frequentemente como uma sacerdotisa de Sicircn de Hacircrran a qualificaccedilatildeo de laquodevotaraquo do deus seria mais apropriada Na sua pseudo-autobiografia apraza o reinado de 42 anos a Assurbaniacutepal isto eacute ateacute 627 aC
4 O templo de Sicircn em Harran Cf Beaulieu 1989 73
203
Antoacutenio Ramos dos Santos
qual Marduk lhe ordenava a reconstruccedilatildeo do Ehulhul o templo de Sicircn em Har-ran que permanecera em ruiacutenas desde a expediccedilatildeo de 610 O rei natildeo via pos-sibilidade em cumprir a missatildeo visto que por essa eacutepoca os Medos ocupavam o paiacutes5 O deus acalmou os temores do rei anunciando o desaparecimento dos Medos Em 555 Naboacutenido mudou-se para Larsa para resolver vaacuterios problemas administrativos Durante trecircs anos reavivou uma seacuterie de expediccedilotildees siacuterias que o levariam ateacute aos confins de Edom
No ano 3 isto eacute em 553 a profecia divina cumpriu-se Ciro rei de Anzan haacute seis anos sublevou-se contra Astiacuteages e as tropas medas abandonaram a regiatildeo de Harran Naboacutenido apressou-se a reconstruir o Ehulhul com grande indignaccedilatildeo por parte do clero de Marduk Para aleacutem disso a situaccedilatildeo econoacute-mica devia ser pouco favoraacutevel e uma seacuterie de distuacuterbios tiveram lugar em Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk e Larsa Contudo o rei natildeo abandonou o seu propoacutesito e tomou a decisatildeo de partir para a Araacutebia apoacutes ter confiado o governo de Babiloacutenia ao seu filho Bel-sharra-usur6 Naboacutenido dirigiu-se ao oaacutesis de Teima que foi possivelmente tomado em 552 assim como as cidades de Dadanu Padakku Hibra Iadihu e Iatribu Permaneceu dez anos na Araacutebia impedindo assim a celebraccedilatildeo das festas do Ano Novo em Babiloacutenia Durante este tempo a situaccedilatildeo internacional evoluiu rapidamente com a ascensatildeo de Ciro e dos Persas
A permanecircncia do rei de Babiloacutenia em Teima eacute um enigma O uacutenico motivo aparente eacute de tipo religioso Teima era um grande centro lunar Naturalmente existem duacutevidas em invocar este factor No entanto teraacute sido importante A devoccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn era grande e este intentou impor o culto deste deus agrave proacutepria Babiloacutenia levando agrave revolta dos sacerdotes jaacute exasperados pelo incre-mento do controlo real sob a administraccedilatildeo dos templos
O controlo das rotas comerciais a recolha de tributo ou qualquer outra operaccedilatildeo militar ou comercial poderia ser assegurada por um governador em Teima e pelo estacionamento permanente de tropas A presenccedila do rei natildeo era necessaacuteria e pode ser explicada como o resultado de uma crise poliacutetica em Babiloacutenia De acordo com o proacuteprio Naboacutenido a partida para a Araacutebia foi pro-vocada pela falta de piedade dos Babiloacutenios que negligenciaram a lideranccedila de Sicircn e cometeram faltas contra ele Todavia natildeo existe prova de uma rebeliatildeo em Babiloacutenia no 1ordm ano do seu reinado embora devesse ter havido alguma oposiccedilatildeo agraves suas crenccedilas religiosas e a ortodoxia tenha sido restabelecida por
5 O tema da presenccedila dos Medos em Harran continua em discussatildeo Alguns autores afirmam que Harran foi ocupada pelos Medos ateacute 553 a C Contudo haacute fontes que nos permitem duvidar disso assim como de que o impeacuterio neobabiloacutenico controlava a Siacuteria e o norte da Mesopotacircmia Ver Curtis 2003 157-67
6 Seria morto em Opis depois de ter ajudado Naboacutenido contra Ciro Os acontecimentos satildeo descritos na laquoCroacutenica de Naboacutenidoraquo Ver Glassner 2004 201-5 e Roux 1985 327
204
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico
Bel-sharra-usur As suas convicccedilotildees devem tecirc-lo levado a confrontos com seg-mentos da oligarquia e da populaccedilatildeo particularmente com o clero de Marduk
A estada em Teima pode ser explicada como o resultado das divergecircncias poliacuteticas entre Naboacutenido e o seu filho enquanto a conquista do norte araacutebico foi motivado objetivos puramente imperialistas como a vasta riqueza da regiatildeo Tiveram lugar por seu turno deserccedilotildees importantes como a de Goacutebrias o go-vernador do Gutium que se uniu a Ciro7
Natildeo se sabe a razatildeo do abandono de Teima por Naboacutenido se uma ofensiva de Ciro preparadora do assalto a Babiloacutenia ou outra qualquer8 O certo eacute que depois de dez anos este saiu de Teima em 542 O Ehulhul foi entatildeo solenemente inaugurado em Harran o regresso do rei a Babiloacutenia permitiu o recomeccedilo das cerimoacutenias religiosas Ignoram-se os detalhes das medidas tomadas para pre-venir os perigos de um ataque que os uacuteltimos acontecimentos tornavam faacuteceis de prever Assim no Outono de 539 tudo se desenvolveu muito depressa tendo Bel-sharra-usur sido morto no seu palaacutecio Naboacutenido sido feito prisioneiro e Ciro entrado como triunfador na capital
A tradiccedilatildeo lanccedila duacutevidas acerca da sorte do uacuteltimo rei Segundo Xenofonte o monarca foi morto mas Josefo disse que foi exilado o que estaria mais de acordo com a clemecircncia e poliacutetica tolerante de Ciro9
A divisatildeo do poder
Naboacutenido confiou formalmente a laquorealezaraquo ao filho aquando a sua partida para o oeste e a Araacutebia Ao fazecirc-lo o rei natildeo desejava abdicar mas apenas insti-tucionalizar a divisatildeo das prerrogativas reais entre os dois Algumas prerroga-tivas reais natildeo foram legadas a Bel-sharra-usur a saber o tiacutetulo de rei os anos de reinado que continuaram datados de acordo com os anos de Naboacutenido no trono o natildeo ter lugar o festival do Ano Novo durante a permanecircncia em Teima reassumido logo que este voltou a construccedilatildeo de inscriccedilotildees que sempre referiam
7 Nada nos permite dizer que Gutium era uma proviacutencia babiloacutenica e que UgbaruGobrias era um babiloacutenico A uacutenica referecircncia eacute de Xenofonte (Cyr 461-11) e deve-se ter cuidado quando tratamos essa obra como uma fonte A julgar pelas fontes babiloacutenicas Gutium eacute um termo geograacutefico bastante vago nesse periacuteodo e foi conquistado por essa eacutepoca como Meacutedia Segundo o Cilindro de Ciro o rei Persa alcanccedilou as suas primeiras vitoacuterias no paiacutes de Gutium e as tropas dos Medos Ugbaru podia ser governador de uma proviacutencia persa que compreendia pelo menos partes do ocidente da Meacutedia e nordeste da Assiacuteria e que delimitava com o territoacuterio babiloacutenico Eacute notaacutevel que tendo conquistado Babiloacutenia Ciro devolvesse os deuses e cidadatildeos deportados para Babiloacutenia por Naboacutenido De acordo com o texto do Cilindro de Ciro essas cidades estendiam-se ao laquoterritoacuterio de Gutiumraquo o que parece uma clara indicaccedilatildeo de que a regiatildeo natildeo era parte do impeacuterio neobabiloacutenico
8 Acerca do destino de Naboacutenido existe o testemunho de Beroso (FGrH 680 frag 10a) e a Profecia Dinaacutestica Veja-se Kuhrt 2013 80-81 e Liverani 2003 1-12
9 Veja-se Beaulieu 1989 219-32
205
Antoacutenio Ramos dos Santos
o rei como o dirigente ativoOutras prerrogativas foram partilhadas como eacute o caso de refeiccedilotildees sacrifi-
ciais as oferendas reais e os juramentos que prometiam o desempenho de vaacuterios tipos de serviccedilos e a divisatildeo das forccedilas armadas marchando o rei para a Araacutebia com as laquoforccedilas de Akkadraquo
Todavia Bel-sharra-usur desempenhava alguns deveres aparecendo em alguns documentos com a expressatildeo laquofilho do reiraquo durante a sua regecircncia Naboacutenido natildeo interferiu directamente nos assuntos de Babiloacutenia durante o periacuteodo de estada em Teima mas manteve seguramente a correspondecircncia com o filho
Bel-sharra-usur rapidamente tomou uma posiccedilatildeo proeminente no reino apoacutes a ascensatildeo do seu pai Manteve para aleacutem das atividades oficiais um lado privado explicitado em vaacuterios documentos Como membro da famiacutelia Nur-Sin e com a famiacutelia Egibi a que pertencem os documentos o regente aparece como um proeminente homem de negoacutecios e o chefe de uma Casa rica
Aparentemente a usurpaccedilatildeo de 556 natildeo envolveu apenas uma mudanccedila de dirigente mas tambeacutem a confiscaccedilatildeo das propriedades da famiacutelia de Neriglissar em proveito de Bel-sharra-usur Muitas ligaccedilotildees existiam como a de Nabucirc--ahhecirc-iddina chefe da Casa de Egibi Este aparece em transaccedilotildees privadas do regente e dos seus servidores Mesmo em reinados anteriores como o de Nabu-codonosor ou do proacuteprio Neriglissar Nabucirc-ahhecirc-iddina foi um agente por mais de quarenta anos de Neriglissar desempenhando a funccedilatildeo com Bel-sharra-usur tendo sido uma fonte de capital para os vaacuterios creacuteditos
Consideraccedilotildees finais
O final do impeacuterio caldaico e a anexaccedilatildeo persa satildeo duas faces de uma mes-ma moeda A tentativa de secularizaccedilatildeo por parte de Naboacutenido modificando a estrutura dos templos dominados ateacute entatildeo pelo clero do deus diminuindo rendimentos a esses cleros particularmente ao do deus Marduk e as reformas fundiaacuterias foram agravadas ao que tudo leva a crer pelas questotildees religiosas propriamente ditas O monarca babiloacutenico foi visto como um desafio ao poder dos sacerdotes e o rei dos Persas como aquele que iria repor uma ordem violada anteriormente pelo soberano caldaico Os Persas foram para o clero de Marduk libertadores Eles assumiram as crenccedilas e tradiccedilotildees babiloacutenicas e assimilaram Babiloacutenia ao Impeacuterio que se dilatava e se dirigia para as costas do Mediterracircneo O legado de sedentarizaccedilatildeo urbanizaccedilatildeo e burocratizaccedilatildeo babiloacutenicas foram recebidos como parte do Impeacuterio Aquemeacutenida num longo caminho de cosmo-politismo e universalidade Como uma continuidade da tradiccedilatildeo imperial no Proacuteximo Oriente antigo
206
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico
Documentos
Documento nordm1Divisatildeo de campos por ordem real
YOS VI103 ndash laquoA terra araacutevel de Becircl que no mecircs Nisanu o seacutetimo de Naboacute-nido rei de Babiloacutenia Belshazzar o filho do rei por ordem do rei dividiu entre os oficiais racircb sucirctu
[ hellip ]raquordquo
Documento nordm2Empreacutestimo de dinheiro
Nbn 184 ndash laquoA respeito da Casa de Nabucirc-ahecirc-iddin o filho de Shulacirc filho de Egibi que eacute contiacutegua agrave Casa de Becircl-iddin filho de Ricircmucirct filho do oficial dikucirc por trecircs anos a Nabucirc-mukicircn-ahi o escriba de Belshazzar o filho do rei por uma mina e meia de prata ele deu com a provisatildeo da qual natildeo deve existir renda para a casa nem juro sobre o dinheiro O madeiramento da casa ele renovaraacute e qualquer abertura da parede e taparaacute Apoacutes trecircs anos o dinheiro acrescido a uma e meia minas Nabucirc-ahecirc-iddin a Nabucirc-mukicircn-ahi daraacute e Nabucirc-mukicircn-ahi deixaraacute a casa agrave disposiccedilatildeo de Nabucirc-ahecirc-iddinraquo
Documento nordm3Transacccedilatildeo monetaacuteria do Administrador de Bel-sarra-usur
Nbn 688 ndash laquoRelativo a uma mina e quinze siclos de prata diacutevida e juro a reivindicaccedilatildeo de Nabu-sabit-qati o mordomo de Bel-sarra-usur o filho do rei pela quantia devida por Bel-iddina o filho de Bel-sum-iskun filho de Sin-tabni e pela qual o campo de sementeira que estaacute entre as portas da cidade foi tomado como cauccedilatildeo pela diacutevida na quantia de uma mina e quinze siclos Nabu-sabit--qati recebeu de Itti-Marduk-balatu o filho de Nabu-ahhe-iddin filho de Egibi como for a debitado a Bel-iddina
Testemunhas Babiloacutenia 27ordm dia do mecircs de Adaru 12ordm do reinado de Naboacutenidoraquo Documento nordm 4Eacutedito de Becircl-sharra-usur
YBT VI 103 ndash laquo(Eacutedito repeitante) agrave terra araacutevel de Becircl que Becircl-sharra-usur o filho do rei no mecircs de Nisannu do 7ordm ano do reinado de Naboacutenido rei de Babiloacutenia por ordem do rei repartiu entre os grandes arrendataacuterios
Por um kurru de terra araacutevel plantada (de palmeiras a renda seraacute) de 40 kurru (de tacircmaras)
207
Antoacutenio Ramos dos Santos
Aiacute dentro estaratildeo (contidos) 5 kurru (de tacircmaras) para o salaacuterio dos arbo-ricultores que escavaratildeo canais e solo faratildeo o muro do pomar e suportaratildeo os encargos que o filho do rei lhes confiara
(Quanto agraves) obrigaccedilotildees e agraves raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos encaregados de contas dos encarregados de tirar as medidas e dos guardas-por-tatildeo as suas obrigaccedilotildees (seratildeo) de 130 kurru 5 qucirc 12 por kurru (de rendas) dar-se-agrave ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros reccedilotildees de manutenccedilatildeo de 3 qucirc 12 (de tacircmaras) por kurru (de rendas) Estes poderatildeo beneficiar disso (imediatamente)
Se o filho do rei daacute 125 kurru de terra laquode culturaraquo(o tomador) daraacute 1200 kurru de cevada por toda a (renda) por lote de 125 kurru (de terra) 5 kurru de terra araacutevel lhe seratildeo entregues para todas as raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos contabilistas dos medidores e dos porteiros
Por cada arado dar-se-lhe-aacute 4 bois 2 animais de cornos jovens 4 agricul-tores Os bois natildeo deveratildeo enfraquecer Os instrumentos de ferro satildeo levados em conta
Por kurru (as rendas dos tomadores) acrescentaratildeo agrave renda fundiaacuteria 130 de kurru 5 qucirc 12 de cevada e de tacircmaras como raccedilotildees de manutenccedilatildeo (de Becircl) e as daratildeo ao Esagil
Eles entregaratildeo a cevada e as tacircmaras na totalidade no EsagilPor kurru (rendas) eles daratildeo a mais da sua renda fundiaacuteria 3 qucirc 12 de
raccedilotildees de manutenccedilatildeo ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros
No primeiro ano [o Esagil] daraacute 125 kurru de cevada para as sementeiras assim como 145 kurru de cevada para as raccedilotildees de manutenccedilatildeo dos agricultores (agrave razatildeo de) 4 kurru cada uma [e]para os animais do gado corniacutegeroraquo
208
Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico
Bibliografia
Beaulieu Paul-Alain 1989 The Reign of Nabonidus King of Babylon 556-539 BC Michigan Yale University
Chavalas Mark W 2006 The Ancient Near East Oxford Blackwell PublishingCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In
Continuity of Empire () Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 157-68 Padova Sargon Editrice e Libreria
Glasser Jean-Jacques dir 2004 Chroniques Meacutesopotamiennes Paris Les Belles Lettres
Grayson A Kirk 2000 Assyrian and Babylonian Chronicles Winona Lake Eisenbrauns
Joannegraves Francis dir 2001 Dictionnaire de la Civilisation Meacutesopotamienne Paris Robert Laffont
mdashmdashmdash 2000 La Meacutesopotamie au 1er milleacutenaire avant J-C Paris Armand ColinKuhrt Ameacutelie 2010 The Persian Empire A Corpus of Sources from the
Achaemenid Period London RoutledgeLecoq Pierre 1977 Les inscriptions de la Perse acheacutemeacutenique Paris GallimardLiverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire ()
Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 1-12 Padova Sargon Editrice e Libreria
Pritchard James B ed (1950) 1992 Ancient New Eastern Texts Relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press
Roux George 1985 La Meacutesopotamie Essai drsquohistoire politique eacuteconomique et culturelle Paris Seuil
Saggs H W F 1996 Babylonians London British Museum PressWiseman D J 1956 Chronicles of Chaldean Kings (626-556 BC) in the British
Museum London The Trustees of the British Museum
209
Maria de Faacutetima Rosa
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao
culto do deus Marduk1 (The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different
approaches to the cult of god Marduk)
Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)
Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores
Resumo - Partindo da anaacutelise de algumas fontes cuneiformes este breve estudo pre-tende explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro face ao culto do deus Marduk As suas atitudes suscitam importantes questotildees tais como Qual teria sido o peso da accedilatildeo dos dois soberanos no domiacutenio religioso na queda da Babiloacutenia em 539 aC De que modo e em que campos se joga a laquopropagandaraquo poliacutetico-religiosa efetuada pelo monarca aquemeacutenida Satildeo questotildees como estas que pretendemos estu-dar neste artigo
Palavras-chave Marduk Naboacutenido Sicircn Ciro II Babiloacutenia
Abstract ndash Through the analysis of some important cuneiform sources this brief study intends to explore the different attitudes of Nabonidus and Cyrus in relation to the cult of god Marduk In fact some important questions arise What was the weight of the action of the two sovereigns in the religious domain with the progressive distancing of Nabonidus from the clergy of the laquonationalraquo god in the fall of Babylon at the hands of a Persian dynasty In what way did the Achaemenid monarch construct his political and religious laquopropagandaraquo These are the questions that we intend to study in this article
Keywords Marduk Nabonidus Sicircn Cyrus II Babylon
Segundo relata o Cilindro de Ciro na origem da queda da Babiloacutenia esteve uma ordem dada pelo deus Marduk ao imperador persa no sentido de conquis-tar a cidade O deus tutelar da Babiloacutenia pretendia punir o rei Naboacutenido pelo seu desrespeito pelo culto Para tal Marduk ordenara a Ciro que marchasse sobre a cidade e com ele partira para a batalha laquocomo um verdadeiro amigoraquo2
As fontes cuneiformes denotam um contraste entre as atitudes poliacuteticas e religiosas de Ciro imperador persa e de Naboacutenido uacuteltimo soberano do periacuteodo
1 Abreviaturas usadas AJA ndash American Journal of Archaeology ANET ndash Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament ETCSL ndash Electronic Text Corpus of Sumerian Literature JNES ndash Journal of Near Eastern Studies
2 ANET 315
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_11
210
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
neobabiloacutenico Enquanto o primeiro eacute retratado como um monarca justo e te-mente aos deuses o segundo demarca-se pela sua conduta improacutepria e pela sua impiedade Este contraste dever-se-aacute ao facto de a grande maioria das fontes de que dispomos datar de um periacuteodo posterior agrave tomada da cidade Logo eacute possiacute-vel que muitas tenham sido escritas por instigaccedilatildeo do proacuteprio Ciro3 No entanto tudo aponta para que as reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido e a sua prolongada ausecircncia da capital tenham levado a um crescente descontentamento da populaccedilatildeo Assim ao entrar na Babiloacutenia Ciro pocircde aproveitar este descon-tentamento para se apresentar perante os seus habitantes como um verdadeiro libertador O discurso de Ciro pretendia certamente angariar uma base de apoio local que lhe permitisse proceder a uma integraccedilatildeo segura da Babiloacutenia no im-peacuterio persa
A mensagem ideoloacutegica era simples Marduk retirara o poder a Naboacutenido e outorgara-o a Ciro porque ele era ao contraacuterio daquele bondoso para a sua populaccedilatildeo
1 A gloacuteria e o esplendor da Babiloacutenia
Naboacutenido sobe ao poder em 556 aC apoacutes uma conjura Agrave data a Babiloacutenia era uma das maiores e mais esplendorosas cidades do mundo antigo em grande parte devido aos trabalhos de reconstruccedilatildeo e de embelezamento levados a cabo por Nabucodonosor II Respeitada e enaltecida a cidade constituiacutea o centro poliacutetico de um extenso territoacuterio Na sua arquitetura monumental transparecia toda a grandeza e majestade do poder real
Estima-se que a sua populaccedilatildeo rondasse os 100000 habitantes Na urbe conviviam natildeo soacute babiloacutenios como tambeacutem habitantes de outras partes do impeacuterio e ateacute mesmo estrangeiros A sua heterogeneidade devia-se em grande medida agraves vaacuterias vagas de deportaccedilotildees ocorridas em anos anteriores A coloacutenia judaica que aiacute se estabeleceu como resultado das deportaccedilotildees levadas a cabo em 598 aC e em 587 aC eacute um exemplo desta situaccedilatildeo O poder exercido pelo rei sobre uma populaccedilatildeo tatildeo diversificada necessitava de meios que assegurassem e justificassem a sua legitimidade Ora na Mesopotacircmia essa legitimidade vinha sempre laquode cimaraquo4 eram os deuses que a concediam
Eacute na segunda metade do segundo mileacutenio aC que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk ascende ao cume do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico5 Data desta altura a redaccedilatildeo da epopeia de criaccedilatildeo designada enūma eliš O texto descreve a vi-toacuteria de Marduk sobre o caos e a sua consequente nomeaccedilatildeo como chefe supremo
3 Beaulieu 1993 244 e Briant 1998 504 Conta o relato sumeacuterio do diluacutevio que laquoa realeza desceu dos ceacuteusraquo (ETCSL 174)5 Charpin 2003 114 n 1
211
Maria de Faacutetima Rosa
(como laquorei dos deusesraquo) pela assembleia divina6 Atraveacutes da contenccedilatildeo do caos imaginado como uma imensa massa de aacutegua7 Marduk permitira a ordenaccedilatildeo do mundo e a criaccedilatildeo da humanidade A Babiloacutenia fora entatildeo construiacuteda como o seu santuaacuterio no centro do mundo8 passando a assumir um papel fundamental na organizaccedilatildeo e estruturaccedilatildeo do universo Ora segundo a ideologia babiloacutenica para governar os destinos da populaccedilatildeo deste universo as divindades teriam de-signado um lugar-tenente um representante de Marduk na terra No periacuteodo em questatildeo esse representante era Naboacutenido Como facilmente se depreende o que os deuses haviam concedido prontamente poderiam retirar caso aquele que por eles fora escolhido para assumir a realeza natildeo desempenhasse condignamente a sua missatildeo
O culto do deus Marduk compreendia simultaneamente trecircs vertentes distintas o culto da cidade da Babiloacutenia o culto do paiacutes da Babiloacutenia (uma espeacutecie de culto nacional) e o culto da realeza A celebraccedilatildeo mais importante ocorria anualmente no mecircs de nisannu e durava cerca de 12 dias Durante as cerimoacutenias o poema enūma eliš era recitado e recriado relembrando a ameaccedila que pendia sobre a populaccedilatildeo caso Marduk decidisse retirar a sua proteccedilatildeo ao rei e agrave populaccedilatildeo o mundo mergulharia novamente no caos
O primeiro aspeto que podemos destacar entre as acusaccedilotildees de que Naboacutenido eacute alvo eacute precisamente o facto de o soberano ter cessado as celebraccedilotildees Segundo consta na Narrativa em Verso de Naboacutenido o monarca teraacute declarado laquoEu omitirei (todos) os festivais eu ordenarei (ateacute) a cessaccedilatildeo da festa do Ano Novoraquo9
2 O culto do deus Marduk e a festa do Ano Novo (akītu)
No iniacutecio do seu reinado Naboacutenido teraacute abandonado a capital deixando o governo da cidade entregue ao seu filho Becircl-šarra-uṣur (conhecido como Baltasar por intermeacutedio do relato vetero-testamentaacuterio) O soberano ter-se-aacute instalado no oaacutesis de Teima localizado no nordeste da peniacutensula araacutebica10 A ausecircncia do soberano impedia a realizaccedilatildeo da cerimoacutenia do Ano Novo Como referimos a festa natildeo celebrava apenas a entronizaccedilatildeo de Marduk a delegaccedilatildeo dos seus poderes ao rei era um dos aspetos mais importantes da celebraccedilatildeo Era esta espeacutecie de acordo esta alianccedila entre Marduk e o soberano que o akītu como se denominava em acaacutedico celebrava A renovaccedilatildeo anual da alianccedila possibilitava
6 Proclamaccedilatildeo que culmina com a atribuiccedilatildeo dos seus cinquenta nomes (nas tabuinhas VI e VII)
7 Personificada na epopeia pela deusa Tiacircmat que assume no combate coacutesmico a forma de uma serpente
8 Esta ideia transparece no conhecido mapa-mundo babiloacutenico em exposiccedilatildeo no museu britacircnico
9 Texto naturalmente exagerado para denegrir a imagem do rei (ANET 313)10 O rei teraacute permanecido em Teima 10 anos (ANET 562) provavelmente de 553 aC a 542 aC
212
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
ao rei consolidar o seu poder e permitia agrave Babiloacutenia manter a sua proteccedilatildeo divina Para aleacutem disto esperava-se que atraveacutes dos rituais e das preces que entatildeo tinham lugar os deuses pudessem propiciar boas colheitas e proporcionar um bom ano agriacutecola Podemos dizer que diferentes correntes de pensamento convergiam no akītu para aleacutem da componente poliacutetica e cosmogoacutenica segundo a qual se recriava o combate coacutesmico entre a ordem (personificada por Marduk) e o caos a celebraccedilatildeo contemplava aspetos mais ligados aos ciclos da natureza e agrave fertilidade
Descurando o akītu Naboacutenido arriscava perder o favoritismo que o deus lhe concedera e mergulhar o mundo no caos na desordem Com efeito segundo conta o Cilindro de Ciro fora precisamente devido agrave sua constante negligecircncia e ao seu desrespeito pelo culto que a populaccedilatildeo ficara como laquomortaraquo11 As accedilotildees de Naboacutenido teriam levado Marduk a abandonar a regiatildeo12
A importacircncia poliacutetica do akītu natildeo era negligenciaacutevel Senatildeo vejamos Conforme conta a Croacutenica de Naboacutenido durante repetidos anos laquoo rei natildeo veio agrave Babiloacutenia [para as cerimoacutenias do mecircs de nisannu] o deus Nabucirc natildeo veio agrave Babiloacutenia o deus Becircl13 natildeo saiu (do Esagila em procissatildeo) a fes[ta do Ano Novo foi omitida]raquo14 Um dos momentos principais das celebraccedilotildees ocorria quando a estaacutetua de Marduk era transportada numa procissatildeo de grandes dimensotildees desde o seu templo o Esagila15 ateacute ao chamado templo do akītu localizado no exterior da cidade16 Para a cerimoacutenia chegavam agrave capital diversas divindades17 que par-ticipavam no cortejo liderado por Marduk A um niacutevel cosmoloacutegico podemos interpretar estas deslocaccedilotildees como a necessidade das divindades confirmarem presencialmente a sua lealdade ao deus-rei Marduk18 Jaacute a um niacutevel poliacutetico a presenccedila dos deuses tutelares das vaacuterias partes do territoacuterio tinha como fim as-severar a sua submissatildeo ao poder central agrave Babiloacutenia No fundo podemos dizer que o akītu era a ocasiatildeo em que se exibia todo o poder poliacutetico da Babiloacutenia Descuidar o akītu e negligenciar o culto de Marduk deus nacional significava assim menosprezar a identidade poliacutetica da Babiloacutenia De facto era atraveacutes das estaacutetuas divinas que participavam na procissatildeo do akītu que os cidadatildeos babiloacute-nios e estrangeiros tinham uma noccedilatildeo mais precisa do imenso territoacuterio sobre o qual a Babiloacutenia reinava19
Por fim referimos que durante a estadia dos deuses no akītu o rei entregava
11 ANET 31512 Ibid13 Nome pelo qual Marduk eacute designado nos periacuteodos mais tardios Significa laquosenhorraquo14 Ibid 30615 O Esagila ficava localizado no centro da urbe16 Sobre a procissatildeo e todo o cerimonial que a rodeava veja-se Van de Mieroop 2003 27217 As estaacutetuas divinas eram transportadas por barco Na Mesopotacircmia a estaacutetua divina natildeo
era uma mera representaccedilatildeo da divindade mas sim o proacuteprio deus18 O motivo principal era a coraccedilatildeo de Marduk19 Ibid 271-72
213
Maria de Faacutetima Rosa
doaccedilotildees aos diferentes cultos esperando obter o apoio divino necessaacuterio agraves suas conquistas militares Ora a cessaccedilatildeo das celebraccedilotildees teria certamente pesado na relaccedilatildeo entre o soberano e a classe sacerdotal que se via privada dos dona-tivos que recolhia nesta ocasiatildeo A par desta medida um conjunto de reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido sobretudo a partir de 553 aC viria agudizar o descontentamento do clero em relaccedilatildeo ao monarca
3 O culto de Sicircn deus lunar
Maior estranheza teraacute causado o facto de Naboacutenido segundo referem alguns textos20 ter transferido a atenccedilatildeo que devia ser dispensada ao deus ba-biloacutenico para uma outra divindade do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico o deus lunar Sicircn A devoccedilatildeo a Sicircn teraacute surgido por influecircncia da sua matildee Adad-guppi uma mulher consagrada a esta divindade Um texto gravado numa estela erigida em Harran local onde Adad-guppi nascera e cumprira as suas funccedilotildees como sacerdotisa de Sicircn constata a relaccedilatildeo de proximidade entre Naboacutenido e a sua matildee21 Natildeo admira portanto que Naboacutenido tenha expressado desde o iniacutecio do seu reinado o desejo de reconstruir o templo do deus em Harran22 projeto que viria a concretizar passados poucos anos23
Segundo Naboacutenido a ordem de reconstruccedilatildeo do templo fora dada pelo proacute-prio deus laquoSicircn24 fez-me ter um sonho e disse o seguinte ldquoReconstroacutei o Ehulhul o templo de Sicircn em Harran e eu dar-te-ei todos os paiacutesesrdquoraquo25 Esta devoccedilatildeo ao
20 Trata-se sobretudo da Narrativa em Verso de Naboacutenido As inscriccedilotildees de Naboacutenido encon-tradas em Harran parecem evidenciar tambeacutem esta situaccedilatildeo Contudo devemos ter em conta que as mesmas se inserem num contexto de culto muito particular onde Sicircn eacute a figura central
21 Trata-se de uma espeacutecie de autobiografia da matildee de Naboacutenido Cf ANET 560-56222 Harran era um centro comercial importante situado no cruzamento das rotas que ligavam
a Mesopotacircmia agrave Anatoacutelia Desde 610 aC data que coincide com o afastamento do jugo assiacuterio o templo encontrava-se em ruiacutenas
23 Segundo a visatildeo mais tradicional os Medos teriam ocupado Harran ateacute 553 aC bem como outras regiotildees da antiga Assiacuteria No entanto estudos mais recentes contestam esta ideia Jursa (2003 177) com base nas fontes neobabiloacutenicas indica que a maior parte do territoacuterio da antiga Assiacuteria caiacutera sob o domiacutenio babiloacutenico e natildeo Medo uma visatildeo partilhada tambeacutem por Liverani (Liverani 2003 7) que vai mais longe contestando inclusivamente a noccedilatildeo de um laquoimpeacuterio medoraquo tal como o faz aliaacutes Rollinger (2009 51) Segundo Liverani os medos que se assemelhavam mais a uma confederaccedilatildeo de chefes tribais teriam ficado apenas com os Zagros que jaacute haviam sido previamente perdidos pela Assiacuteria O autor sustenta que laquothe Medes assumed the dirty job of destruction while the Babylonians assumed the role of restorersraquo (ibid) Para Curtis laquothe idea that the Medes were controlling Harrān may have to be abandoned but it is still significant that they were in this area at least in 555 BCraquo (Curtis 2003 166)
24 Uma outra inscriccedilatildeo gravada numa estela de basalto alega que quem deu a ordem de reconstruccedilatildeo a Naboacutenido foi o proacuteprio Marduk (veja-se ANET 319)
25 Ibid 562 Esta iniciativa insere-se na realidade num programa mais vasto de reconstru-ccedilotildees na proacutepria Babiloacutenia que incluiacuteram por exemplo o famoso Esagila o templo de Marduk Naboacutenido ficou para a histoacuteria como o laquorei arqueoacutelogoraquo devido agrave sua pesquisa no solo dos edifiacutecios reconstruiacutedos de depoacutesitos de fundaccedilatildeo dos seus antecessores (Roux 1995 427)
214
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
deus lunar patente natildeo soacute na sua dedicaccedilatildeo agrave reconstruccedilatildeo do Ehulhul como tambeacutem na sua estadia em Teima um importante centro de culto do deus lunar e na nomeaccedilatildeo de uma das suas filhas como grande sacerdotisa do deus Sicircn em Ur teraacute certamente chocado o clero de Marduk A ligaccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn natildeo teraacute sido bem aceite pela comunidade religiosa
No rescaldo da conquista da Babiloacutenia surge um texto jaacute aqui referido que testemunha o descontentamento face ao monarca devido agrave sua ligaccedilatildeo a Sicircn O documento alega que Naboacutenido agira de forma inconveniente confecionando a estaacutetua de um deus estranho laquoEle criou um fantasma [um deus] que ningueacutem tinha visto [antes] no paiacutes [hellip] Ele instalou-o num pedestal [] ele chamou--o pelo nome de Nanna26raquo27 Podemos ter uma ideia mais clara do peso desta conduta improacutepria num verso onde se afirma que Naboacutenido tendo reconhecido o siacutembolo do crescente lunar no Esagila interrogara laquoPara quem foi este templo construiacutedoraquo28 Em resposta o proacuteprio afirmara laquoSicircn assinalou o seu templo com o seu siacutemboloraquo29 Como vemos segundo a visatildeo de uma parte da elite babiloacutenica Naboacutenido escolhera menosprezar a importacircncia do seu deus tutelar e dar prima-zia a um deus que natildeo detinha no seio do panteatildeo babiloacutenico agrave semelhanccedila de Bel30 o lugar cimeiro Esta atitude desrespeitosa era sobretudo inadequada a um sumo-sacerdote de Marduk facto que teraacute contribuiacutedo para a formaccedilatildeo desta opiniatildeo criacutetica
Visatildeo muito diferente teria o proacuteprio Naboacutenido o rei natildeo soacute defendia a soberania de Sicircn31 como acusava a sua populaccedilatildeo de desrespeitar o culto por ele imposto o culto do deus que laquosuplanta todos os outrosraquo32 Vejamos laquoos cidadatildeos da Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk (e) Larsa os administradores dos tem-plos (e) as pessoas dos centros de culto do paiacutes de Akkad ofenderam a sua (de Sicircn) grande divindade portaram-se mal e pecaram (porque) desconheciam a grande ira do rei dos deuses Nannaraquo33 A impiedade dos cidadatildeos dos centros poliacuteticos e religiosos da Mesopotacircmia teraacute sido o motivo apresentado por Naboacutenido para justificar a sua saiacuteda da capital
Um uacuteltimo aspeto a ressaltar prende-se com um dos epiacutetetos atribuiacutedo por Naboacutenido a Sicircn Para aleacutem de laquoCrescente Divinoraquo o deus era considerado como o laquorei de todos os deusesraquo Ora este tiacutetulo referia-se normalmente a Marduk a
26 Nome sumeacuterio de Sicircn27 Beaulieu 2007 161-6228 Ibid29 Ibid30 bēl (laquosenhorraquo) eacute o tiacutetulo atribuiacutedo a Marduk a partir do final do segundo mileacutenio altura
em que se torna o deus par excellence (Oshima 2007 348)31 Eacute esta a realidade que transparece na leitura de alguns textos32 ANET 56333 Beaulieu 2007 145
215
Maria de Faacutetima Rosa
divindade que o conquistara apoacutes derrotar o caos Os babiloacutenios34 conheciam o seu deus nacional como um verdadeiro deus-rei que ascendera ao topo da soberania divina apoacutes o difiacutecil combate que dera origem ao mundo tal como era conhecido Assim sendo a titulatura laquoSicircn senhor dos deuses do ceacuteu e da terra rei dos deuses deus(es) dos deusesraquo35 natildeo poderia senatildeo ter causado uma certa apreensatildeo
A questatildeo que se coloca eacute porquecirc esta devoccedilatildeo a Sicircn Eacute possiacutevel que Naboacutenido fosse filho de um governador de origem arameia A sua estadia em Teima apesar de envolta em grande misteacuterio deveraacute ter sobretudo um motivo de ordem religio-sa36 Como referimos Teima era um importante santuaacuterio de Sicircn e um centro de culto para as populaccedilotildees que veneravam este deus Ora Sicircn era tambeacutem adorado entre os arameus e os aacuterabes37 Eacute por conseguinte possiacutevel que expressando a sua devoccedilatildeo agrave divindade o soberano tambeacutem ele um arameu pretendesse unificar sob a sua hegemonia as diversas populaccedilotildees dispersas pelo territoacuterio38
Por outro lado H Lewy aponta divergecircncias entre a poliacutetica seguida por Naboacutenido e aquela que fora seguida pelos seus antecessores Segundo o autor o soberano pretendia governar seguindo a tradiccedilatildeo imperial assiacuteria que preconi-zava um ideal assente no estabelecimento de um impeacuterio universal consagrado natildeo a uma divindade nacionalista como Marduk mas sim a um deus universal39
4 A queda da Babiloacutenia
Durante a ausecircncia de Naboacutenido datildeo-se novos desenvolvimentos na cena poliacutetica internacional Em 550 aC Ciro derrota os Medos tornando-se senhor do maior impeacuterio que a antiguidade conhecera ateacute entatildeo40 Embalado pelo sucesso desta conquista o imperador persa prossegue a sua poliacutetica expansionista e dirigindo-se para oeste anexa vaacuterias regiotildees De entre estas conquistas destaca-se a tomada de Urartu provavelmente em 547 aC41 e da Liacutedia algures entre
34 Ou pelo menos a elite babiloacutenica35 Sobre estes tiacutetulos a questatildeo dos epiacutetetos normalmente atribuiacutedos a Marduk e a discussatildeo
em torno da designaccedilatildeo laquodeuses dos deusesraquo (DINGIRMEŠ ša DINGIRMEŠ) veja-se Beaulieu 1993 254
36 A este podemos juntar motivos de ordem poliacutetica Em Teima o soberano estava mais perto do Egito e da Palestina podendo controlar e vigiar melhor estas regiotildees Para aleacutem disto Teima estava localizada num local propiacutecio ao controlo de certas rotas comerciais pelo que tambeacutem podem ter pesado nesta sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia motivos de ordem econoacutemica
37 Black ndash Green 1992 3538 Veja-se Green 1992 37 e J Lewy 1948 apud Beaulieu 2007 16339 Sobre a discussatildeo deste assunto veja-se Lewy 1949 apud Garelli ndash Nikiprowetzki 1977
247-4840 Roux 1995 42941 Veja-se o estudo de Rollinger (2009) acerca das campanhas de Ciro e a sua interpretaccedilatildeo
da Croacutenica de Naboacutenido
216
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
545 e 542 aC42 famosa pela sua riqueza Estas movimentaccedilotildees a agitaccedilatildeo junto agraves fronteiras da Babiloacutenia e a traiccedilatildeo de alguns dos seus aliados43 poderatildeo ter precipitado o regresso do monarca agrave capital
De facto na veacutespera da queda da Babiloacutenia Naboacutenido regressa agrave cidade retoma a celebraccedilatildeo do akītu e toma as disposiccedilotildees necessaacuterias com vista agrave preparaccedilatildeo da capital para um possiacutevel ataque persa Um indiacutecio em particular elucida-nos sobre este ponto44
Paul-Alain Beaulieu relacionou o facto de Naboacutenido ordenar a reuniatildeo das estaacutetuas dos deuses de Sumer e de Akkad na capital com a sua intenccedilatildeo de evitar que as mesmas fossem capturadas pelo inimigo A captura da estaacutetua divina por um poder estrangeiro e o seu transporte ateacute ao paiacutes conquistador onde se tornava refeacutem assinalava a cisatildeo definitiva entre o deus e o seu paiacutes Segundo a loacutegica de entatildeo esta realidade representava uma atitude da divindade que escolhia favorecer o paiacutes inimigo castigando assim o seu eleito (o rei) e a sua populaccedilatildeo
No relato da Croacutenica de Naboacutenido relativo ao deacutecimo seacutetimo e uacuteltimo ano do governo de Naboacutenido consta o seguinte
laquoNo mecircs de [Lugal-Marada e os outros deuses] da cidade de Marad Zababa e os (outros) deuses da cidade de Kiš a deusa Ninlil [e os outros deuses de] Hursagkalama entraram na Babiloacutenia Ateacute ao final do mecircs de Ululu (todos) os deuses de Akkad () entraram na Babiloacutenia Os deuses de Borsippa Kutha e Sippar (no entanto) natildeo entraramraquo45
O envio das estaacutetuas para a capital previa dois objetivos por um lado Naboacutenido impedia que estas fossem tomadas pelos persas e por outro lado o soberano garantia o apoio dos deuses na esperada batalha Com a presenccedila das divindades a seu lado Naboacutenido teria mais hipoacuteteses de derrotar os persas Contudo testemunhos apontam para o facto de nem todos os centros urbanos terem enviado os seus deuses voluntariamente46 A contestaccedilatildeo a Naboacutenido era forte Para aleacutem da classe sacerdotal descontente com as reformas do soberano os exilados47 em territoacuterio babiloacutenico expressavam o seu apoio crescente a Ciro Eacute por conseguinte possiacutevel que se tenha formado uma opiniatildeo proacute-persa que veria mais benefiacutecios na chegada de Ciro do que na continuaccedilatildeo das poliacuteticas de Naboacutenido
42 Natildeo se sabe ao certo a data desta conquista eacute possiacutevel que se situe entre 545 e 542 aC ou ateacute mesmo apoacutes a tomada da Babiloacutenia (ibid 56 n 23)
43 Eacute o caso do governador dos guacutetios Gobias que se teria aliado a Ciro44 Sobre este assunto veja-se o estudo de Beaulieu 1993 45 ANET 30646 Op cit Beaulieu 1993 25747 Visatildeo patente no Livro de Isaiacuteas
217
Maria de Faacutetima Rosa
Todavia a investida final contra a Babiloacutenia natildeo teraacute partido de uma accedilatildeo voluntaacuteria de Ciro Com efeito o imperador alega ter agido sob a ordem do deus Marduk laquo(Marduk) ordenou-lhe que marchasse contra a cidade da Babiloacuteniaraquo48 Eacute o deus nacional quem decide retirar o seu favor a Naboacutenido e desta forma destronar o rei que laquonatildeo o adoravaraquo49 Para tal Marduk escolhera um substituto um soberano que ao contraacuterio daquele era justo e piedoso A escolha de Marduk fora metoacutedica e cuidada A divindade laquoexaminou todos os paiacuteses procurando um governante justo que estivesse disposto a levaacute-lo (na procissatildeo anual)raquo 50 Eacute aqui que Ciro coloca a toacutenica do seu discurso isto eacute no respeito pela celebraccedilatildeo do akītu A poliacutetica persa passa por apresentar Ciro como um legiacutetimo sucessor dos reis nacionais e como o restaurador do culto de Marduk Ciro natildeo eacute apenas outro soberano mas sim aquele que fora escolhido por estar disposto a liderar Marduk na procissatildeo
A concentraccedilatildeo das estaacutetuas na capital evento acima referido constitui um dos episoacutedios em que Ciro baseia a sua laquopropagandaraquo Segundo o imperador persa Naboacutenido natildeo protegera os deuses Muito pelo contraacuterio o soberano tecirc-los-ia aprisionado na capital contra a sua vontade deixando as cidades desprotegidas e abertas a possiacuteveis ameaccedilas Fora Ciro quem uma vez chegado agrave capital ordenara o regresso das estaacutetuas agraves suas capelas laquoEu recoloquei segundo a ordem de Marduk o grande senhor todos os deuses de Sumer e de Akkad que Naboacutenido tinha trazido para a Babiloacutenia para ira do senhor dos deuses intactos nos seus santuaacuterios os lugares que os fazem felizesraquo51 O ato de Ciro toma o sentido de uma libertaccedilatildeo A sua chegada agrave Babiloacutenia simboliza simultaneamente a libertaccedilatildeo da populaccedilatildeo (que relembramos estava laquocomo mortaraquo) e a libertaccedilatildeo dos deuses que se teriam visto livres para regressarem agraves suas moradas
Segundo consta Ciro teraacute permitido o restabelecimento dos antigos cultos52 e ordenado inclusivamente o incremento laquodas oferendas regulares ao senhor dos senhoresraquo53 Marduk O governo de Ciro seria marcado pelo respeito pelos costu-mes religiosos Atraveacutes desta poliacutetica de toleracircncia o imperador teraacute conquistado o apoio da populaccedilatildeo local
48 ANET 31549 Ibid 31650 Ibid 31551 Ibid 31652 A visatildeo segundo a qual Ciro seria um apoacutestolo da toleracircncia deve ser revista De facto
Ciro atua em vaacuterios aspetos como muitos dos seus antecessores assiacuterios que teratildeo permitido o retorno de exilados e conferido privileacutegios (kidinnūtu) agrave Babiloacutenia O discurso de Ciro no seu famoso cilindro eacute aliaacutes bastante semelhante a algumas inscriccedilotildees de Sargatildeo II Veja-se a este propoacutesito Van der Spek 2014 sobretudo 241-49
53 Ibid 315
218
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
Um ano apoacutes a tomada da Babiloacutenia em 538 aC Ciro nomeia o seu filho Cambises como governador da nova unidade administrativa do impeacuterio persa a Babiloacutenia54 A coroaccedilatildeo de Cambises ocorre na festa do Ano Novo no akītu
54 Cambises teraacute adotado o tiacutetulo de laquorei da Babiloacuteniaraquo durante cerca de um ano
219
Maria de Faacutetima Rosa
Bibliografia
Beaulieu P-A 2007 ldquoNabonidus the mad king a reconsideration of his stelas from Harran and Babylonrdquo In Representations of political power case histories from times of change and dissolving order in the Ancient Near East ed M Heinz e M Feldman 137-66 Winona Lake Eisenbrauns
mdashmdashmdash 1993 ldquoAn episode in the fall of Babylon to the Persiansrdquo JNES 52 (4)241-61
Black J A G Cunningham J Ebelin E Fluumlckiger-Hawker E Robson J Taylor e G Zoacutelyomi eds 1998-2006 The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature Oxford Em httpetcslorinstoxacuk
Black J e A Green 1993 Gods demons and symbols of Ancient Mesopotamia London British Museum Press
Briant P 1998 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de
FranceCook J M 1983 The Persian Empire London Joseph Malaby DentCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In Continuity
of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 157-68 Winona Lake Eisenbrauns
Garelli P e V Nikiprowetzki 1974 Le Proche-Orient asiatique Les empires meacutesopotamiens Israel Paris Presses Universitaires de France
Green T 1992 The city of the moon god Religious traditions of Harran Leiden Brill
Jursa M 2003 ldquoObservations on the Problem of the Median ldquoEmpirerdquo on the Basis of Babylonian Sourcesrdquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 169-79 Winona Lake Eisenbrauns
Liverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 1-12 Winona Lake Eisenbrauns
Petit T 1990 Satrapes et satrapies dans lrsquoempire acheacutemeacutenide de Cyrus le Grand agrave Xerxegraves Ier Paris Les Belles Lettres
Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press
Rollinger R 2009 ldquoThe Median ldquoEmpirerdquo the End of Urartu and Cyrusrsquo the Great Campaign in 547 BC (Nabonidus Chronicle II 16)rdquo Ancient West amp East 7 49-63
Roux G 1995 La Meacutesopotamie Paris Eacuteditions du Seuil
220
A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk
Santos A R dos 2003 A Babiloacutenia dos Caldeus uma caracterizaccedilatildeo socioeconoacutemica Lisboa Colibri
Oshima T 2007 ldquoThe Babylonian God Mardukrdquo In The Babylonian World ed G Leick 348-60 New York London Routledge
Mierrop M Van de 2003 ldquoReading Babylonrdquo AJA 107257-75Spek R J Van der 2014 ldquoCyrus the Great Exiles and Foreign Gods A
Comparison of Assyrian and Persian Policies on Subject Nationsrdquo In Extraction amp Control Studies in Honor of Matthew W Stolper ed M Kozuh W F M Henkelman C E Jones e Ch Woods 233-64 Chicago Chicago Oriental Institute
Waerzeggers C 2001 ldquoThe Babylonian Priesthood in the Long Sixth Century BCrdquo Bulletin of the Institute of Classical Studies 54 (2)59-70
221
Carmen Soares
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica1
(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)
Carmen Soares(cilsoaresgmailcom ORCID 0000-0003-3005-4635)
Universidade de Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos
Resumo - O presente estudo apoiando-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que o proacuteprio au-tor apresenta em 380-82 passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos levam agrave conclusatildeo da inexistecircncia de uma figura modelar do monarca Heroacutedoto oferece sim dos monarcas tanto laquoretratos mistosraquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um laquoretrato puroraquo (do tirano insolente Cambises)
Palavras-chave teorizaccedilatildeo poliacutetica monarquia tirania lei liberdade
Abstract ndash In this paper after a brief analysis of Histories 380-82 the author addres-ses the issue of the Persian monarchsrsquo autocratic governments What he tries to make clear is the close relationship there is between those sovereigns and the law and also the degree of freedom or slavery experienced by the people under their rule The main conclusions reached are none of Herodotusrsquo Persian kings corresponds to a portrait of the perfect monarch on the contrary we can find what could be called laquomixed portraitsraquo (when a king acts in some cases justly but in others assumes a despotic way of ruling ndash as do Cyrus and Darius as also Dejoces from Media) and a laquopure portraitraquo (of the insolent tyrant Cambyses)
Keywords political theory monarchy tyranny law freedom
Fonte escrita incontornaacutevel para o conhecimento da visatildeo grega do seacutec V a C sobre a ideologia das monarquias orientais as Histoacuterias de Heroacutedoto desde sempre cativaram o leitor graccedilas sobretudo agrave sua forma atraente de apresentar os factos Vestidos com uma roupagem bastante proacutexima das personagens traacutegicas do drama ateniense os protagonistas da histoacuteria persa satildeo natildeo obstante esse laquocolorido dramaacuteticoraquo alvo de um tratamento poliacutetico-filosoacutefico coerente e devidamente fundamentado O retrato dos monarcas persas soacute pode ser bem compreendido se tivermos em conta a articulaccedilatildeo entre dois
1 Trabalho desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_12
222
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
vetores de anaacutelise que emanam da duplicidade geneacutetica do discurso poliacutetico por um lado patenteando uma reflexatildeo teoacuterica sobre o assunto (theoria) pelo outro a sua manifestaccedilatildeo praacutetica (praxis)2 Isto eacute Heroacutedoto tem a preocupaccedilatildeo racional de fornecer uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre o regime monaacuterquico (entendido no sentido neutro e etimoloacutegico de lsquogoverno de um soacutersquo) a qual serve como jaacute tive oportunidade de defender noutro lugar3 de laquoficha de leituraraquo para os perfis concretos que vai apresentando do monarca (termo tambeacutem usado com o seu valor baacutesico de lsquogovernante uacutenicorsquo) Consciente desta dupla perspetivaccedilatildeo do universo poliacutetico do texto herodotiano entendi dividir em duas partes complementares o meu estudo a saber 1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico 2 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas
1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico
Eacute no livro III (caps 80-82) que deparamos com a apresentaccedilatildeo de seis for-mas de governaccedilatildeo distintas passiacuteveis de distribuir por dois grupos opostos do ponto de vista moral a que entendo chamar com base na caracterizaccedilatildeo eacutetica de que satildeo alvo de laquoos melhoresraquo e laquoos pioresraquo regimes4 Sem nunca deixar transparecer a sua opiniatildeo sobre a presente mateacuteria Heroacutedoto coloca na boca de trecircs nobres persas a apresentaccedilatildeo dos fatores que contemporaneamente seriam tidos pelo menos entre algumas elites pensantes gregas como laquomarca-dores da identidaderaquo de cada uma das politeiai Se eacute verdade que mesmo sem lhes atribuir nomes diferentes o historiador daacute conta de uma forma laquoperfeitaraquo (ou como se lecirc em grego aristos) e de outra laquodegeneradaraquo (correspondente a kakistos) para a democracia e a oligarquia jaacute quando estaacute em causa o lsquogoverno de um soacutersquo satildeo dois os nomes empregues Mounarchie (correspondente ioacutenico do substantivo aacutetico monarchia que havia de entrar via latim nas liacutenguas modernas) pelo sentido neutro que comporta vem aplicada tanto ao modelo despoacutetico apresentado por Otanes5 como agrave sua forma perfeita defendida por Dario6 O outro dos nomes usado para apelidar a constituiccedilatildeo monocraacutetica eacute tyrannis7 e restringe-se tal como hoje ao perfil opressivo do que continuamos a designar de lsquotiraniarsquo
2 Jaacute procedi anteriormente a uma anaacutelise mais alargada da abordagem theoria e praxis poliacute-tica nas Histoacuterias de Heroacutedoto ndash Soares 2014a ndash bem como agrave comparaccedilatildeo entre os retratos dos regimes tiracircnico e democraacutetico ndash Soares 2014b
3 Cf Soares 20164 Cartledge (2009 21) tambeacutem reconhece neste trecho das Histoacuterias a identificaccedilatildeo de seis
formas de constituiccedilatildeo geacutermen da tipologia platoacutenica constituiacuteda por trecircs forma laquoboasraquo e ou-tras tantas laquodegeneradasraquo de constituiccedilatildeo O paralelismo entre Heroacutedoto e as seis constituiccedilotildees reais caraterizadas no diaacutelogo O Poliacutetico de Platatildeo jaacute foi objeto da minha reflexatildeo (Soares 2014a)
5 38036 382347 3811
223
Carmen Soares
Embora a questatildeo da historicidade do laquoDiaacutelogo dos Persasraquo permaneccedila em aberto e quanto a mim seja marginal relativamente agravequele que me parece o motivo principal para a sua inclusatildeo na obra (a racionalidade do Autor) o facto eacute que Heroacutedoto introduziu o episoacutedio com a afirmaccedilatildeo expressa de que foram proferidos discursos inacreditaacuteveis (na opiniatildeo de alguns Gregos) mas a verdade eacute que foram proferidos8 Esta espeacutecie de juramento de autenticidade natildeo tem para mim que ser entendida como uma prova irrefutaacutevel de que o historiador acreditava que os Persas tivessem mesmo tido semelhante conversa algures entre 52221 a C por ocasiatildeo do golpe que levou agrave deposiccedilatildeo do mago Gaumata O seu desiacutegnio poderia apenas ser dar a entender ao puacuteblico que tal como al-guns Gregos repudiavam a tirania avaliada pelo Coriacutentio Socles como a mais injusta e sanguinaacuteria das realizaccedilotildees humanas9 tambeacutem os Persas (pela boca de Otanes) concebiam o regime com idecircnticas cores negras Em suma Gregos e Persas aparecem irmanados no seu oacutedio agrave tirania perspetiva concordante com a funcionalidade aqui dada pelo historiador ao Baacuterbaro paradigma do Grego
Atentemos agora ainda que sumariamente nos elementos caracterizadores e distintivos das duas formas de governo de um soacute Na base da argumentaccedilatildeo sobre as vaacuterias constituiccedilotildees deparamos com um princiacutepio que haveria de per-manecer como fundamento da filosofia poliacutetica posterior a saber a correlaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica Este diaacutelogo pode no entanto dar-se em sentidos opostos Esclarecendo melhor ou eacute o exerciacutecio do poder absoluto que influencia o caraacutecter do governante ou ao inveacutes cabe a este aspeto determinar a forma de governaccedilatildeo A conceccedilatildeo de tirania (retratada por Otanes e Megabizo) deriva da primeira leitura donde ressalta a ideia de que mesmo ao indiviacuteduo com uma conduta moral exemplar (a quem os Gregos da eacutepoca atribuiacuteam o tiacutetulo de lsquoo melhor dos homensrsquo10) o poder ilimitado corrompe-o11 Jaacute a monarquia (tal como a apresenta Dario) fica a dever ao ethos do governante o estatuto de regime perfeito (aristos) e regenerador i e o uacutenico que pode restabelecer a ordem social arruinada sob as disputas dos oligarcas pelo protagonismo12 ou sob as cumplicidades danosas dos governantes de origem popular13 Em suma o caraacutecter do governante afigura-se um motivo central da aceccedilatildeo claacutessica grega da ideologia poliacutetica
8 3801 Todas as traduccedilotildees apresentadas satildeo da minha autoria9 592α110 380311 Note-se que como alerta a helenista Emily Baragwanath (2015 21-22) a apreciaccedilatildeo de
Otanes natildeo deve ser entendida como evidecircncia de que Heroacutedoto acreditava na universalida-de de comportamentos humanos o que implicaria que nas Histoacuterias todos os governantes autocraacuteticos teriam percursos absolutamente idecircnticos Segundo propotildee a autora a presente observaccedilatildeo do aristocrata persa natildeo deve pois ser lida como uma verdade absoluta aplicando--se concretamente ao comportamento de Cambises
12 382313 3824
224
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
Das consideraccedilotildees acabadas de fazer retiramos tambeacutem a conclusatildeo de que a tirania corresponde agrave versatildeo defeituosa do governo de um soacute como bem con-firma o facto de nas Histoacuterias vir sempre associada a conotaccedilotildees pejorativas14 Na verdade o regime colhe apenas criacuteticas todas elas verdadeiros atentados contra os principais fundamentos da vida em sociedade tal como os Gregos a concebiam as normas (sejam elas sociais ou juriacutedicas noccedilotildees ambas contidas no termo nomos) a moderaccedilatildeo (reverso da condenada hybris) e a justiccedila (ou cumprimento das leis) Em concreto esses viacutecios do poder tiracircnico deduzimo-los respetivamente das seguintes praacuteticas denunciadas por Otanes alterar os costumes paacutetrios exercer violecircncia sobre as mulheres e condenar agrave morte sem julgamento15
Para que fique completo o retrato da tirania falta ainda lembrar dois traccedilos de caraacutecter do tirano a inveja (incompreensiacutevel numa pessoa que vive na pros-peridade) e a inseguranccedila (que se traduz na desconfianccedila que domina as relaccedilotildees do governante com os suacutebditos e na sua recetividade face agraves caluacutenias) Porque a personagem que procede a esta caracterizaccedilatildeo do regime eacute o defensor da de-mocracia faz sentido que tendo em mente dois mecanismos identitaacuterios da sua constituiccedilatildeo preferida aponte agrave tirania a seguinte falha a ausecircncia de controlo das financcedilas puacuteblicas e da atuaccedilatildeo do governante Ou seja como diz Otanes o tirano natildeo tem que prestar contas e faz o que lhe apetece16
Por contraste com esta caracterizaccedilatildeo detalhada da ideologia tiracircnica o perfil da monarquia assenta apenas na jaacute referida eacutetica do governante e num valor que modernamente associamos mais agrave democracia a liberdade No termo da fala de Dario deparamos com as seguintes declaraccedilotildees
Para resumir tudo o que foi aduzido num uacutenico termo a liberdade donde nos veio e quem nos a deu Do povo da oligarquia ou de um monarca Sou por conseguinte da opiniatildeo de que visto noacutes termos sido libertados por um uacutenico homem defendamos esse tipo de regime e aleacutem disso porque temos por bem natildeo dissolver os costumes paacutetrios Realmente esta natildeo eacute a melhor atitude17
Duas ideias sobressaem da argumentaccedilatildeo final do nobre persa para eleger a monarquia como o melhor regime a liberdade natildeo eacute prerrogativa exclusiva de um determinado modelo de constituiccedilatildeo (visto que se aventa a hipoacutetese de vigorar tanto num governo de soberania popular numa oligarquia como numa monarquia) mas eacute criteacuterio decisivo na afericcedilatildeo da qualidade do mesmo o res-peito pelos nomoi paacutetrios traduz o que numa linguagem moderna poderiacuteamos
14 Veja-se o recurso abundante a vocabulaacuterio da raiz kak- No seu estudo Ferrill (1978 391-97) documenta com exemplos vaacuterios o uso herodotiano do termo tyrannos aplicado aos reis orientais com esse sentido negativo
15 380516 380317 3825
225
Carmen Soares
designar de lsquoconservadorismorsquo ideoloacutegico Ou seja Dario em uacuteltima instacircncia confessa preferir a monarquia a qualquer outro sistema governativo (mesmo que esse se paute pela excelecircncia18) por razotildees de conformidade agrave tradiccedilatildeo persa E esta em termos poliacuteticos era monaacuterquica A figura do governante uacutenico evocada como abonaccedilatildeo da escolha de Dario natildeo o esqueccedilamos eacute precisamente Ciro rei fundador do Impeacuterio Persa nascido da libertaccedilatildeo do jugo da Meacutedia Lendo nas entrelinhas do discurso do futuro rei persa eacute pois a seguinte a loacutegica da sua argumentaccedilatildeo se os Persas tecircm vivido sob a intendecircncia de um monarca desde que se libertaram da sujeiccedilatildeo opressiva dos Medos natildeo haacute qualquer argumento vaacutelido para contestar a sapiecircncia de um lsquocostumersquo (nomos) paacutetrio e incorrer na sua perniciosa lsquotransgressatildeorsquo (anomia)
As transgressotildees ao nomos natildeo restringidas como aqui ao plano mera-mente institucional constituem em grau diverso um dos traccedilos mais marcantes dos perfis dos monarcas persas governantes insolentes que agrave luz da visatildeo grega da condiccedilatildeo humana se encontram fatalmente condenados agrave ruiacutena No fim desventurado desses liacutederes de homens estaacute simbolicamente contido o anuacutencio inevitaacutevel da queda do regime a que datildeo corpo o impeacuterio
Quanto agrave virtude libertadora da monarquia nos termos em que eacute evocada soacute faz sentido para quem passa de um estado de submissatildeo ao de domiacutenio Eacute o que sucede precisamente no contexto histoacuterico em que Heroacutedoto situa o laquoDiaacutelo-go dos Persasraquo apoacutes a deposiccedilatildeo do governo do Mago usurpador Gaumata Mas se tivermos em conta a perspetiva dos Gregos por ocasiatildeo das invasotildees dos reis persas percebemos que eacute por idecircntica razatildeo que o historiador lhes coloca na boca queixas acesas contra a escravidatildeo que para eles acarreta o governo (tiracircnico) de um soacute senhor o monarca oriental pois priva-os da liberdade Em suma monarquia tanto significa liberdade como escravidatildeo depende da pers-petiva
3 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas
Desde a publicaccedilatildeo em 1966 da obra de referecircncia Form and Thought in Herodotus de H R Immerwahr que se identificou um padratildeo narrativo comum ao retrato dos chefes dos povos baacuterbaros contemplados nas Histoacuterias Condicio-nados pelos princiacutepios universais da instabilidade da fortuna e da fragilidade da condiccedilatildeo humana todos os liacutederes vivem um percurso de ascensatildeo e queda (que pode ser apenas de decliacutenio ou de total destruiccedilatildeo) O que me proponho fazer natildeo eacute acompanhar pari passu essa biografia dramatizada dos reis persas (anaacutelise que vaacuterios estudiosos consagrados jaacute levaram a cabo19) Natildeo eacute minha intenccedilatildeo igual-mente dar conta da presenccedila nos retratos dos governantes uacutenicos (mounarchoi)
18 Cf 382219 Veja-se Waters 1971 Gammie 1986 Silva 1995 1997 e 2000
226
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
de todos os marcadores das identidades tiracircnica e monaacuterquica apresentados no ceacutelebre passo de teorizaccedilatildeo poliacutetica por mim brevemente analisado na primeira parte desta intervenccedilatildeo20 Pretendo sim demonstrar em que medida o historiador exemplifica na caracterizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das suas personagens sobretudo aqueles fundamentos poliacuteticos que agrave luz da mentalidade do autor e dos seus mais diretos destinataacuterios os Gregos satildeo fundamentais ao exerciacutecio do poder a lei e a liberdade
No que concerne a importacircncia conferida ao nomos eacute por demais conhecido o primado que Heroacutedoto lhe reconhece em todas as culturas21 Como o que nos interessa agora considerar eacute a relaccedilatildeo do governante com a lei eacute sobre a imagem do rei-juiz que me irei debruccedilar Se como vimos no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo o monarca elogiado por Dario eacute um indiviacuteduo da melhor iacutendole (aristos) e obser-var os costumes paacutetrios uma evidecircncia de tal distinccedilatildeo eacute natural que quando os Medos escolheram o seu primeiro rei tenham tido por criteacuterio de meacuterito ser ele o uacutenico homem a aplicar a justiccedila com retidatildeo22 Embora os caps 96-101 do livro I se reportem a um monarca medo (e natildeo a um persa) Deacutejoces o primeiro rei dos Medos natildeo podemos esquecer que os dois povos (e respetivas ideologias reacutegias) se fundem graccedilas aos laccedilos de sangue que ligam Ciro tambeacutem ele o primeiro rei (agora) dos medo-persas ao avocirc o uacuteltimo soberano da Meacutedia independente e dominadora Astiacuteages Ou seja conhecer a imagem que Heroacutedoto desenha do nascimento da monarquia meda eacute necessariamente aceder aos fundamentos da monarquia persa (ou talvez fosse melhor chamar-lhe monarquia medo-persa)23
No episoacutedio em apreccedilo dois termos satildeo usados para designar o exerciacutecio do governo de um soacute tirania (τυραννίς) e realeza (βασιληίη) O primeiro continua a ter uma conotaccedilatildeo negativa designando um poder despoacutetico ao passo que o segundo eacute sinoacutenimo de soberania legiacutetima24 Esta diferenccedila semacircntica decorre dos contextos em que satildeo empregues A palavra laquotiraniaraquo aparece duas vezes Embora a primeira ocorrecircncia se tomada isoladamente possa corresponder ao valor neutro de lsquosoberaniarsquo o facto de ser esse o termo usado para designar o verdadeiro mas inconfesso moacutebil da atuaccedilatildeo juriacutedica exemplar de Deacutejoces consiste num aviso ao leitor da natureza despoacutetica das suas intenccedilotildees Estas seratildeo desveladas por completo assim que lhe for confiada a lsquorealezarsquo Note-se ainda
20 Sobre este assunto veja-se Romilly 1959 Evans 1981 Rocha Pereira 1981 e 1990 Lateiner 1984 Pelling 2002
21 Ideia sintetizada de forma magistral na maacutexima atribuiacuteda por Heroacutedoto (3384) a Piacuten-daro segundo a qual a lei eacute rainha de todas as coisas (fr 169 a Snell-Maehler) Sobre os valores de nomos e sua importacircncia na obra herodotiana leia-se Evans 1965 Humphreys 1987 Quanto aos significados do termo e evoluccedilatildeo do conceito na Greacutecia antiga veja-se Ostwald (1969 1-54) e Romilly (1971 51-71)
22 196323 Dewald (2002 27) reconhece que este episoacutedio permite implicitamente uma criacutetica e
anaacutelise do desenvolvimento do poder monaacuterquico24 Concordo pois com posiccedilatildeo idecircntica defendida por Ferrill (1978 388-91)
227
Carmen Soares
que eacute a palavra basileus25 aquela que o historiador usa para designar o tipo de governante que os Medos pretendiam e que quando surge pela segunda vez o termo τυραννίς este vem associado a um adjetivo com sentido pejorativo χαλεπός (lsquoimplacaacutevel intransigentersquo) A inflexibilidade mesmo aplicada ao exerciacutecio da justiccedila como eacute o caso presente26 eacute reveladora quanto a mim de falta de moderaccedilatildeo virtude tatildeo apregoada pelos Gregos e reverso do defeito mais censurado aos homens em geral e ao tirano em particular a hybris27 Atentemos na sequecircncia segundo a qual no texto se alude aos dois regimes poliacuteticos
Heroacutedoto conta que a motivaccedilatildeo para Deacutejoces se ter empenhado mais na aplicaccedilatildeo da justiccedila no seio da sua aldeia foi por desejar ardentemente a tirania (ἐρασθεὶς τυραννίδος28) O mesmo eacute dizer que as funccedilotildees de juiz servem de cata-pulta para as funccedilotildees poliacuteticas29 Aleacutem desta relaccedilatildeo umbilical entre os poderes juriacutedico e poliacutetico30 haacute que considerar tal como vimos a propoacutesito da fala de Dario no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo a faceta regeneradora da monarquiarealeza Na verdade eacute o clima de desordem generalizada (ἐούσης ἀνομίης πολλῆς ibidem ἐούσης ὦν ἁρπαγῆς καὶ ἀνομίης31) que leva os Medos a tomarem a decisatildeo de nomear um rei (βασιλέα) cuja missatildeo seraacute precisamente estabelecer a boa ordem (veja-se o uso do verbo εὐνομέομαι οὕτω ἥ τε χώρη εὐνομήσεται32) Diante do curriculum exemplar de Deacutejoces enquanto juiz os Medos foram unacircnimes em elegecirc-lo rei33 Na mente dos Medos estaacute sem margem para duacutevidas o desiacutegnio de serem governados por um basileus e natildeo um tyrannos34 Mas seraacute precisamente
25 198126 1100127 Num estudo sobre a caracterizaccedilatildeo dos reis Katherine Clarke (2015) explora ateacute que ponto
a manipulaccedilatildeo do mundo natural pelos reis pode ou natildeo ser lida como sinal do despotismo dos governantes O seu estudo eacute particularmente interessante por chamar a atenccedilatildeo para a necessidade de considerarmos a origem do foco de censura o que leva agrave conclusatildeo de que muitas das vezes natildeo se pode conceber essa visatildeo negativa como sendo a posiccedilatildeo do historiador mas de terceiros
28 196229 Ou como propotildee Baragwanath (2015 30) a atuaccedilatildeo de Deacutejoces como juiz natildeo reflete o
seu caraacuteter justo mas sim o desejo de ser tirano da Meacutedia30 Esta constitui aliaacutes uma ideia comum agrave ideologia monaacuterquica grega da eacutepoca Veja-se a
tiacutetulo ilustrativo alguns exemplos relativos agrave Eacutepoca Arcaica (Odisseia 199-11 em que se afir-ma que o rei irrepreensiacutevel decide de forma justa ou seja cabe-lhe exercer a justiccedila Hesiacuteodo Trabalhos e Dias 35-39 passo em que se atribui aos basileis essa mesma funccedilatildeo que no caso vertente aplicam injustamente por se deixarem corromper) e na Eacutepoca Claacutessica (com destaque para a ecircnfase que Platatildeo atribui ao laquoJustoraquo ndash to dikaion ndash como predicado distintivo da iacutendole do laquopoliacutetico verdadeiroraquo cf eg O Poliacutetico 293d8)
31 197232 197333 198134 No seu estudo sobre o uso do termo tyrannos (em vez de basileus) para Eacutedipo em alguns
passos na peccedila homoacutenima de Soacutefocles Knox (1954 97-98) sublinha tal como aqui a ideia de que aquele designa o governante nomeado mas natildeo o descendente de uma linha hereditaacuteria monaacuterquica
228
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
com a mudanccedila de estatuto de homem privado para homem puacuteblico que se tor-nam claros os marcadores da identidade poliacutetica tiracircnica de Deacutejoces
Se o palaacutecio (βασιλήια35) uma exigecircncia do novo senhor pode ser entendido como um atributo material natural do poder reacutegio (um verda-deiro signum imperii36) jaacute a extrema fortificaccedilatildeo de que eacute alvo o edifiacutecio e os procedimentos protocolares para o acesso dos suacutebditos ao rei parecem-me marcas camufladas de uma conceccedilatildeo tiracircnica do poder Embora a inacessibi-lidade do rei possa ser vista sob o prisma favoraacutevel do reconhecimento que lhe eacute feito lsquode ser distintorsquo (ἑτεροῖος37) natildeo julgo ser essa a uacutenica explicaccedilatildeo a ter em conta Aliaacutes Heroacutedoto apresenta razotildees humanas bem diversas dessa para as seguintes medidas a formaccedilatildeo de uma guarda pessoal do rei a in-clusatildeo da sua residecircncia e tesouros no meio de uma cintura de sete muralhas a obrigatoriedade de contacto indireto entre monarca e suacutebditos (atraveacutes de mensageiros) e a criaccedilatildeo de um corpo de espiotildees pessoais (os chamados laquoolhos e ouvidos do reiraquo)38
Foi para se proteger a si e aos seus tesouros que Deacutejoces mandou construir essa Ecbaacutetana inexpugnaacutevel39 A desconfianccedila tiacutepica da alma tiracircnica insegura dos seus meacuteritos revela-se na forma como afasta de si os seus pares aqueles que como se lecirc no texto natildeo satildeo menos do que ele em qualidades (οὐδὲ ἐς ἀνδραγαθίη λειπόμενοι40) Eacute destes em particular que se quer resguardar pois neles lsquoima-ginarsquo (ἐσέμνυνε ibidem) potenciais rivais ao trono A inveja que implicitamente atribui aos outros mais natildeo eacute do que o reflexo de um viacutecio pessoal tiacutepico do tirano Tambeacutem a rede de espiotildees encobre e legitima defeitos proacuteprios de uma governaccedilatildeo opressora a denuacutencia e a caluacutenia Ateacute a faceta de juiz determinante como vimos para a nomeaccedilatildeo de Deacutejoces como rei da Meacutedia se mostra alterada pelo exerciacutecio despoacutetico do poder Os termos distintos em que o historiador apresenta Deacutejoces-juiz antes e depois de ser investido das funccedilotildees de chefe do povo satildeo suficientemente expliacutecitos pelo que passo a confrontar em citaccedilatildeo os dois passos do texto
Pela sua forma de atuar recebia dos concidadatildeos elogios de natildeo pouca mon-ta de modo que as gentes das outras aldeias tomaram conhecimento de que Deacutejoces era o uacutenico indiviacuteduo a aplicar a justiccedila com retidatildeo (κατὰ τὸ ὀρθὸν
35 198436 Outros satildeo trono carro real cavalos Sobre as representaccedilotildees e as ideologias monaacuterquicas
dos Aquemeacutenidas veja-se Briant (1996 217-65)37 199238 Dewald (2002 28) qualifica este exerciacutecio da tirania de laquoautocracia burocraacuteticaraquo uma
vez que complexifica o protocolo institucional e distancia em muito o governante dos go-vernados
39 199140 1992
229
Carmen Soares
δικάζων)41Depois de tomadas estas medidas protocolares e de ter fortalecido o seu poder com a tirania tornou-se um guardiatildeo implacaacutevel da justiccedila (ἦν τὸ δίκαιον φυλάσσων χαλεπός)42
A toacutenica deixa de assentar numa ideia positiva de exerciacutecio imparcial da justiccedila para passar a distinguir-se pela intransigecircncia A situaccedilatildeo eacute tanto mais grave para as partes do processo quando ao contraacuterio do que sucedia quando Deacutejoces natildeo governava deixou de haver um contacto direto entre juiz e julgado(s) Ou seja o exerciacutecio da lei faz-se em diferido o que poderia com-prometer a desejaacutevel retidatildeo dos julgamentos Natildeo obstante esse distanciamento entre justiccedila e indiviacuteduos forccedilado pela ideologia poliacutetica monaacuterquica a missatildeo do juiz eacute resumida nestes termos julgar cada crime de acordo com o meacuterito43 Para entendermos cabalmente o sentido da expressatildeo grega κατrsquo ἀξίην temos de trazer agrave colaccedilatildeo deste passo o cap 137 (sect 1)
Aiacute Heroacutedoto elogia o costume persa de fazer depender a aplicaccedilatildeo de penas extremas de uma avaliaccedilatildeo da conduta do reacuteu na sua globalidade Em causa estaacute a interdiccedilatildeo de por causa de uma uacutenica falta o rei-juiz condenar agrave morte e de os Persas aplicarem aos servos da sua casa um sofrimento irremediaacutevel Tais castigos soacute podem ser aplicados se da ponderaccedilatildeo entre crimes (ἀδικήματα) e serviccedilos prestados (ὑπουργήματα) resultar uma proporccedilatildeo maior dos primei-ros Respeitam os monarcas persas este nomos dando assim mostras de possuir a idoneidade que os torna merecedores do tiacutetulo de rei Ou pelo contraacuterio desrespeitam-no incorrendo na transgressatildeo (anomia) proacutepria do soberano insolente (hybristes) o tyrannos A resposta a estas interrogaccedilotildees encontramo-la nos retratos de Cambises e Dario Se quanto ao primeiro natildeo temos a miacutenima duacutevida em identificaacute-lo com o exemplo mais bem acabado da galeria herodoti-ana de monarcas anomoi o rei regenerador da monarquia persa eacute alvo de um tratamento mais complexo no que se refere agrave sua faceta de juiz Eacute por essa razatildeo que dedicarei mais atenccedilatildeo ao perfil de Dario
Padecendo de um estado de demecircncia que lhe inspira uma espeacutecie de laquoesquizofreacutenicaraquo mania da perseguiccedilatildeo Cambises enceta uma seacuterie de execuccedilotildees sumaacuterias44 Por baixo da capa da inveja e da necessidade de desagravar pretensas injuacuterias agrave sua autoridade o soberano esconde um caraacutecter inseguro Eacute por conseguinte um indiviacuteduo intolerante face a qualquer tipo de concorrecircncia ao seu poder A imaginaacuteria pretensatildeo do irmatildeo Esmeacuterdis ao
41 196342 1100143 1100244 Sobre o assunto veja-se Silva 1997 Soares (2003 418-42)
230
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
trono leva-o a cometer o primeiro fratriciacutedio45 Segue-se-lhe a morte da irmatilde-esposa voz que decide silenciar por intoleracircncia absoluta face a manifestaccedilotildees de bom senso46 O lastro homicida estende-se ainda a indiviacuteduos fora do ciacuterculo familiar mais proacuteximo agravequeles que por serem seus pares (ὁμοίους47) facilmente rotularia de usurpadores As censuras que estas e outras condenaccedilotildees agrave morte de concidadatildeos suscitam tanto na boca do historiador48 como na do conselheiro real Creso49 ganham maior verosimilhanccedila narrativa se as entendermos precisamente como materializaccedilotildees do desrespeito (anomia) de Cambises pelo atraacutes elogiado costume paacutetrio da pena capital Ao mandar matar pessoas sem uma uacutenica razatildeo que o fundamente (ἐπrsquo οὐδεμιῇ αἰτίῃ ἀξιοχρέῳ) o soberano contradiz o coacutedigo eacutetico-juriacutedico persa ou seja natildeo corresponde ao perfil do mounarchos ou basileus dikaios mas ao do tyrannos hybristes o mesmo eacute dizer adikos Em resumo insolente injusto e transgressor satildeo os qualificativos que ressaltam do retrato de Cambises e que legitimam a sua inclusatildeo entre a galeria dos governantes tiranos50
Passemos agora a considerar a imagem de Dario agrave luz do desempenho das competecircncias de rei-juiz Logo no iniacutecio do seu reinado o novo senhor do impeacuterio persa delibera a condenaccedilatildeo agrave morte de compatriotas do mais alto estatuto social Intafernes um seu par (pois fazia parte como ele do grupo dos sete conjurados responsaacuteveis pela deposiccedilatildeo do Mago usurpador 3118-119) Oretes governador de Sardes51 Embora sequenciais no contexto da narraccedilatildeo os dois episoacutedios revelam formas distintas de o rei aplicar a justiccedila No caso de Intafernes eacute dupla a insolecircncia (Ἰνταφέρνεαhellip ὑβρίσαντα52) cometida Natildeo soacute desrespeitou o nomos receacutem-criado da prerrogativa conce-dida aos seis conjurados de poderem falar diretamente com o rei (exceto se ele estivesse deitado com uma mulher) como infligiu danos fiacutesicos irreparaacuteveis (correspondentes ao supra referido ἀνήκεστον πάθος53) em servos que natildeo eram seus A mutilaccedilatildeo do nariz e das orelhas dos mensageiros figuras indis-pensaacuteveis desde os tempos do medo Deacutejoces ao protocolo reacutegio revela tanto a prepotecircncia do nobre persa como o seu temor de um potencial rival ao trono A soluccedilatildeo que Dario toma para erradicar semelhante ameaccedila eacute se quisermos usar o vocabulaacuterio juriacutedico que jaacute nos surgiu anteriormente lsquoimplacaacutevelrsquo De
45 33046 331-3247 335548 Ibidem49 336150 O seu soacutesia grego eacute Periandro de Corinto figura que jaacute tive ocasiatildeo de tratar noutra oca-
siatildeo (Soares 2003 442-48)51 3127-12852 3118153 11371
231
Carmen Soares
facto a sentenccedila de morte recai natildeo soacute sobre o infrator mas atinge tambeacutem todos os varotildees da famiacutelia (medida que visava eliminar potenciais vingadores da morte do chefe do clatilde)
No entanto ao inveacutes do seu antecessor Dario natildeo vem desenhado com as tintas carregadas da obstinaccedilatildeo doentia O restaurador da boa ordem na Peacutersia goza de um caraacutecter suficientemente ponderado para sem comprometer a afir-maccedilatildeo inequiacutevoca da sua autoridade reduzir uma pena que pela sua radicali-dade poderia contribuir para criar dele a imagem do tirano e natildeo a do monarca De facto aquele a quem Heroacutedoto atribui o papel de defensor da monarquia como o melhor regime sabe fazer a leitura poliacutetica correta do desgosto que tatildeo implacaacutevel pena causaria na esposa de Intafernes Concede-lhe pois a graccedila de poupar a vida do seu irmatildeo e do filho primogeacutenito A misericoacuterdia do monarca constitui quanto a mim uma estrateacutegia narrativa para revelar como no retrato do bom monarca-juiz se fundem rigor e toleracircncia
No episoacutedio seguinte a histoacuteria da morte de Oretes o leitor das Histoacuterias depara com a exemplificaccedilatildeo do nomos juriacutedico persa da condenaccedilatildeo agrave morte mediante a avaliaccedilatildeo ponderada da conduta do julgado O poderoso governador da Liacutedia Friacutegia e Ioacutenia vem apresentado como autor de um vasto conjunto de crimes (ἐξύβρισε παντοῖα54 πάντων τῶν ἀδικημάτων εἵνεκεν55) Uma ambiccedilatildeo crescente de poder levou-o a liquidar dois ilustres aristocratas persas Mitrobates e o filho Cranaspes mortes que lhe valeram a passagem da proviacutencia da Friacutegia para o seu controle No entanto como seria de prever esse reforccedilo de influecircncia pessoal de um saacutetrapa natildeo eacute visto com bons olhos pelo monarca receacutem-chegado ao poder Dario a braccedilos numa fase de afirmaccedilatildeo de autoridade com uma seacuterie de sublevaccedilotildees um pouco por todo o impeacuterio56 Ou seja a atuaccedilatildeo de Oretes soacute pode ser vista pelo rei como um prejuiacutezo (κακὰ δὲ μεγάλα57) e natildeo um serviccedilo (veja-se o uso do verbo lsquoajudarrsquo ὠφέλησε ibidem) prestado aos Persas Digo laquoaos Persasraquo (Πέρσας58) e natildeo laquoao rei dos Persasraquo pois satildeo esses os termos em que Dario expotildee a culpa de Oretes perante uma assembleia dos mais notaacuteveis Persas (Περσέων τοὺς λογιμωτάτους59) Oretes corresponde por conseguinte agrave figura do inimigo puacuteblico a abater Reproduzo de seguida a argumentaccedilatildeo empregue para encontrar um carrasco voluntaacuterio para a insolecircncia intoleraacutevel (ὕβριν οὐκ
54 1126255 3127156 Essas revoltas vecircm atestadas na inscriccedilatildeo de Behistun para as regiotildees de Elam Babiloacutenia
Assiacuteria Egito e Paacutertia entre outras Como refere Briant (1996 127-28) natildeo se pode falar com base no testemunho de Heroacutedoto de uma verdadeira revolta da Liacutedia mas apenas de insubor-dinaccedilatildeo do seu saacutetrapa
57 3127358 3127359 31272
232
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
ἀνασχετόν60) do saacutetrapa pois nela se evoca o nomos persa que autoriza o rei-juiz a condenar um suacutebdito agrave morte
Entre voacutes haacute algueacutem que seja capaz de me trazer Oretes vivo ou de mataacute-lo A esse homem que natildeo prestou nenhum auxiacutelio aos Persas mas que pelo con-traacuterio lhes causou grandes males61
Se como tentaacutemos demonstrar Dario encarna as qualidades do rei-juiz e Cambises representa o seu reverso no que se refere agrave faceta de rei libertador ela continua a estar retratada no primeiro graccedilas agrave sua condiccedilatildeo de monarca regenerador do impeacuterio mas jaacute surgira antes nas Histoacuterias ligada agrave caracterizaccedilatildeo de Ciro o Grande Rei62
De Dario jaacute consideraacutemos esta imagem de paladino da liberdade a propoacutesi-to do seu papel na recuperaccedilatildeo do poder dos Persas face aos Medos Nesse sen-tido podemos designaacute-lo de segundo unificador do impeacuterio medo-persa sob comando persa O primeiro o fundador do impeacuterio e como tal justo merecedor do tiacutetulo de lsquopairsquo (πατήρ63) Ciro conquistou o apoio dos seus compatriotas na rebeliatildeo contra o jugo de Astiacuteages com a promessa de os tornar livres (γίνεσθε ἐλεύθεροι64) Importa todavia natildeo esquecer o real sentido que no contexto da poliacutetica expansionista intriacutenseca agrave ideologia monaacuterquica oriental assume a noccedilatildeo de liberdade lsquoSer livrersquo significa lsquoser senhor de escravosrsquo Dos numerosos exemplos que ao longo da obra datildeo conta desse entendimento lembro apenas um outro envolvendo tambeacutem os Medos aiacute apresentados na perspetiva oposta agraves que evoquei Sobre eles conta Heroacutedoto que combatendo contra os Assiacuterios em prol da liberdade revelaram-se valerosos guerreiros e ao repelirem a escravidatildeo tornaram-se livres65
Mas seraacute essa liberdade agrave luz do pensamento grego a verdadeira liberdade A resposta a esta questatildeo levar-nos-ia pelo caminho fascinante mas longo e por essa razatildeo de momento inviaacutevel da visatildeo herodotiana sobre a eleutheria grega Lembro apenas que a sobejamente conhecida aversatildeo dos Gregos (Atenienses e Espartanos em especial) agrave soberania persa passa por uma mundividecircncia diferente de soberania de um soacute e sua relaccedilatildeo com a liberdade A conhecida conversa entre Xerxes e Demarato rei espartano exilado na sua corte travada na sequecircncia da inspeccedilatildeo das forccedilas navais pelo monarca persa encerra as id-eias principais do pensamento grego nessa mateacuteria Na boca do Persa coloca
60 3127361 3127362 A primeira vez que lhe vem atribuiacutedo esse tiacutetulo (βασιλεὺς ὁ μέγας) eacute em 1188163 389364 1126665 1952
233
Carmen Soares
Heroacutedoto um novo sentido de liberdade natildeo ser governado por um soacute homem Eis os termos em que se exprime
Se [os Lacedemoacutenios] fossem governados agrave nossa maneira por uma soacute pessoa com receio dela natildeo soacute se tornariam melhores do que satildeo por natureza como poderiam estando em desvantagem fustigados pelo chicote avanccedilar contra um maior nuacutemero [de adversaacuterios] Todavia entregues agrave liberdade nenhuma dessas coisas seratildeo capazes de realizar66
A imagem opressiva que transparece deste retrato do soberano uacutenico faacute-la o historiador ser verbalizada primeiro por um monarca persa depois por um ex-diarca grego Quanto a mim estamos uma vez mais perante a conhecida universalidade de valores tiacutepica do texto herodotiano Haacute no entanto diferenccedilas de perspetiva denunciadoras de identidades distintas De facto nas palavras pronunciadas por Demarato fica tambeacutem impliacutecita a ideia de que a liberdade dos Gregos decorre de natildeo serem governados por um monarca O estatuto de soberania natildeo o reconhecem a um homem mas sim a princiacutepios normativos rigorosos (νόμος ἰσχυρός e δεσπότης νόμος67) Daiacute que o Lacedemoacutenio tenha dito dos seus compatriotas que embora sejam livres natildeo o satildeo em absoluto (ἐλεύθεροι γὰρ ἐόντες οὐ πάντα ἐλεύθεροί εἰσι68)
Em conclusatildeo a imagem herodotiana do papel da liberdade e da lei na construccedilatildeo da ideologia do governo de um soacute e respetivo governante assenta em princiacutepios filosoacutefico-poliacuteticos proacuteprios da mundividecircncia heleacutenica do seu autor Assim a monarquia (ou realeza) corresponde agrave versatildeo perfeita do regime a tirania agrave forma degenerada o monarca (ou rei) encarna virtudes o tirano viacutecios
Da conjugaccedilatildeo entre esta bipolaridade poliacutetica e a crenccedila profundamente grega na fragilidade de todos os mortais sem exceccedilatildeo (onde se inclui por conseguinte o rei) resulta que nenhum dos retratos considerados corresponde ao modelo do governante de excelecircncia Se nos casos de Ciro e Dario ainda somos confrontados com o que proponho designar de laquoretratos mistosraquo (de monarca e tirano) ndash pois os comportamentos louvaacuteveis permitem compensar outros indignos ndash no de Cambises deparamos com um laquoretrato puroraquo (de tirano)
66 7103467 Cf respetivamente 71021 e 7704468 71044
234
Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica
Bibliografia
Baragwanath E 2015 ldquoCharacterization in Herodotusrdquo In Fame and Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 15-35 Oxford Oxford University Press
Briant P 1996 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCartledge P 2009 Ancient Greek Political Thought in Practice Cambridge
University PressClarke K 2015 ldquoPutting up Pyramids Characterizing Kingsrdquo In Fame and
Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 37-51 Oxford Oxford University Press
Dewald C 2003 ldquoForm and Content the Question of Tyranny in Herodotusrdquo In Popular Tyranny Sovereignty and Discontents in Classical Athens ed K Morgan 25-38 Austin University of Texas Press
Evans J A S 1965 ldquoDespotes nomosrdquo Athenaeum 43142-53Ferrill A 1978 ldquoHerodotus on tyrannyrdquo Historia 27 (3)385-98Gammie J G 1986 ldquoHerodotus on kings and tyrants objective historiography
or conventional portraiturerdquo Journal of Near Eastern Studies 45 (3)171-195
Humphreys S C 1987 ldquoLaw Custom and Culture in Herodotusrdquo Arethusa 20211-20
Immerwahr H R 1966 Form and Thought in Herodotus Cleveland Scholars PR
Knox B 1954 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo CJ 50 (3)97-102 130 = 1979 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo In Word and Action Essays on the Ancient Theater 87-95 Baltimore London The John Hopkins University Press
Lasserre F 1976 ldquoHeacuterodote et Protagoras le deacutebat sur les constitutionsrdquo MH 33 (2)65-84
Lateiner D 1984 ldquoHerodotean historiographical patterning the constitutional debaterdquo Quaderni di Storia 20257-84
Evans J A S 1981 ldquoNotes on the debate of the Persian Grandees in Herodotus 3 80-82rdquo Quaderni Urbinati di Cultura Classica 3679-84
Ostwald M 1969 Nomos and the Beginnings of the Athenian Democracy Oxford Oxford University Press
Parker V 1988 ldquoΤύραννοςThe semantics of a political concept from Archilochus to Aristotlerdquo Hermes 126 (2)145-72
235
Carmen Soares
Pelling C 2002 ldquoSpeech and action Herodotusrsquo Debate on the Constitutionsrdquo Proceedings of the Cambridge Philosophical Society Vol 48 123-58 Cambridge Cambridge University Press
Rocha Pereira M H 1990 ldquoO lsquoDiaacutelogo dos Persasrsquo em Heroacutedotordquo In Estudos Portugueses Homenagem a Antoacutenio Joseacute Saraiva 351-62 Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
mdashmdashmdash 1981 ldquoO mais antigo texto europeu de teoria poliacuteticardquo Nova Renascenccedila 1364-70
Romilly J 1971 La loi dans la penseacutee greque des origines agrave Aristote Paris Socieacuteteacute drsquoEacutedition ldquoLes Belles Lettresrdquo
mdashmdashmdash 1959 ldquoLe classement des constitutions drsquoHeacuterodote agrave Aristoterdquo Revue des Eacutetudes Greques 7281-99
Rosivach V J 1988 ldquoThe Tyrant in Athenian Democracyrdquo QUCC 5943-57Silva M F 2000 ldquoO desafio das diferenccedilas eacutetnicas em Heroacutedoto Uma questatildeo
de inteligecircncia e saberrdquo Humanitas 523-26mdashmdashmdash 1997 ldquoCambises no Egipto Croacutenica de um rei loucordquo In Historiografiacutea
y bibliografia Actas del coloquio internacional sobre historiografia y biografia (de la antiguedad al renac) eds J A Sanchez Mariacuten J Lens Tuero e C L Rodriacuteguez 1-14 Madrid Ediciones Clasicas
mdashmdashmdash 1995 ldquoDario o Grande Rei personagem em Histoacuterias de Heroacutedotordquo Maacutethesis 463-88
Soares C 2016 ldquoRegimes poliacuteticos nas Histoacuterias de Heroacutedoto O ldquoDiaacutelogo dos Persasrdquo (3 80-82)rdquo In PoacutelisCosmoacutepolis Identidades Globais amp Locais coords Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho e Thomas Figueira 43-52 Coimbra Satildeo Paulo Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
mdashmdashmdash 2014a ldquoTheoria e praacutexis poliacutetica em Heroacutedotordquo Cuadernos de Filologiacutea Claacutessica Estudios griegos e indoeuropeus 2457-79
mdashmdashmdash 2014b ldquoDiaacutelogos nas Histoacuterias de Heroacutedoto entre teoria e praxis poliacutetica Tirania e democracia contrastes e semelhanccedilasrdquo Phoicircnix 20 (1)25-39
mdashmdashmdash 2003 A morte em Heroacutedoto Valores universais e particularismos eacutetnicos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia
Waters K H 1971 Herodotus on Tyrants and Despots A Study in Objectivity Historia Einzelschriften 15 Wiesbaden Franz Steiner-Werlag
(Paacutegina deixada propositadamente em branco)
237
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
Ser rainha na Peacutersia antiga1 (To be a queen in Ancient Persia)
Maria de Faacutetima Sousa e Silva(fanp13gmailcom ORCID 0000-0001-5356-8386)
Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra
Resumo - Eacutesquilo Heroacutedoto e Plutarco satildeo os autores que em diferentes eacutepocas me-lhor retratam a vida na corte persa e a influecircncia feminina que circundava o monarca Sob as cores da fantasia muito de verdadeiro ressalta da sua intervenccedilatildeo pessoal e poliacutetica
Palavras-chave Atossa Amestris Parisaacutetide Persas Vida de Artaxerxes Histoacuterias
Abstract Aeschylus Herodotus and Plutarch are the authors who in different times give a portrait of the Persian court and of female influence on the monarch Under fiction their true personal and political influence is undeniable
Keywords Atossa Amestris Parisatis Persians Life of Artaxerxes Histories
Abordar o tema do estatuto e intervenccedilatildeo da rainha da Peacutersia atraveacutes do olhar grego da eacutepoca claacutessica ndash aquela em que o acesso a uma outra cultura foi estimulado pelo conflito entre as duas margens do Egeu o impeacuterio persa e a Greacutecia ndash eacute utilizar sobretudo dois testemunhos os Persas de Eacutesquilo e Heroacutedoto o pai da Histoacuteria Comprometidos o poeta traacutegico e o historiador com uma versatildeo inspirada em acontecimentos verdadeiros mas a que natildeo falta o elemento ficcional sem o rigor que uma investigaccedilatildeo minuciosa e um relato imparcial exigiriam mesmo assim projetam a opiniatildeo que a Greacutecia do seacutec V a C tinha da cultura oriental neste aspeto concreto A focagem adotada por cada um eacute diversa natildeo soacute em funccedilatildeo dos pressupostos dos diferentes geacuteneros em que se ex-primiam mas tambeacutem pela proacutepria sensibilidade e experiecircncia de vida Eacutesquilo um combatente contra a invasatildeo persa em terreno grego traccedila do inimigo em termos sobretudo simboacutelicos e universalistas a imagem de uma grande potecircn-cia apesar disso natildeo imune ao castigo divino que um excesso de arrogacircncia acarreta Heroacutedoto um grego da Aacutesia desenvolve a longa trajetoacuteria que leva agrave constituiccedilatildeo de um grande impeacuterio do oriente e justifica dentro de uma tradiccedilatildeo aquemeacutenida a campanha decisiva que os Persas se determinaram a levar a cabo na Europa Num e noutro destes dois autores Atossa esposa de Dario e matildee de Xerxes assume um papel determinante como paradigma da ideologia reinante
1 Este trabalho foi desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia
httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_13
238
Ser rainha na Peacutersia antiga
e exemplo da influecircncia que a rainha consorte ou regente podia ter na corte persa Seacuteculos mais tarde inspirado ainda nos autores claacutessicos e na recriaccedilatildeo de paradigmas do passado Plutarco dedica a Artaxerxes uma das suas Vidas2 insistindo em quadros do quotidiano do palaacutecio onde o ciacuterculo feminino em torno do rei tem uma relevacircncia inegaacutevel Somados estes testemunhos podemos rever o trajeto da corte persa durante pouco mais de um seacuteculo (seacutec V e iniacutecio do IV a C) com as suas querelas paixotildees oacutedios influecircncias Dentro de um de-terminado conceito literaacuterio todos estes relatos focam sobretudo tagrave genoacutemena as praacuteticas do quotidiano sem deixarem de reconhecer que os grandes momentos e as tomadas de decisatildeo poliacutetica tecircm com estes bastidores uma relaccedilatildeo estreita
Ao envolver Gregos sobretudo Espartanos na questatildeo sucessoacuteria que con-frontou os dois filhos de Dario II Artaxerxes II e Ciro3 Plutarco4 resume assim a opiniatildeo grega sobre a corte persa lsquoComprovaram agrave evidecircncia que o impeacuterio persa e o seu rei possuiacuteam ouro em abundacircncia luxo e mulheres mas em tudo o mais eram de uma ostentaccedilatildeo vaziarsquo Este sentimento sempre animou a Greacutecia agrave resistecircncia contra um inimigo apenas na aparecircncia superior sem no entanto impedir o fasciacutenio e a curiosidade por um mundo inegavelmente contrastante com o espiacuterito heleacutenico pela sua riqueza e ostentaccedilatildeo
As leis consuetudinaacuterias dos Persas eram estritas quanto ao casamento do soberano a noiva devia ser escolhida de entre as filhas das melhores famiacutelias da aristocracia persa A escolha era feita pelos progenitores de acordo com criteacuterios poliacuteticos no sentido da consolidaccedilatildeo de alianccedilas que pudessem robustecer o poder do monarca Os exemplos satildeo inequiacutevocos Segundo Heroacutedoto o grande Ciro casou com Cassandane filha de Farnaspes de linhagem aquemeacutenida5 Cambises seu filho com Fedima filha de Otanes6 Atossa filha de Ciro o Grande
2 Manfredini et Orsi 1996 XXVII sublinham a lsquosingularidadersquo desta Vida de acordo com os criteacuterios habituais no bioacutegrafo Artaxerxes natildeo era nem grego nem romano mas um baacuterbaro e Plutarco natildeo era um apreciador de baacuterbaros Daiacute a Vida de Artaxerxes resultar numa espeacutecie de lsquoretrato negativorsquo que natildeo deixa de ser surpreendente dentro do sentido pedagoacutegico que justifica as Vidas
3 A Xerxes filho de Dario I e condutor da campanha contra a Greacutecia sucedeu Artaxerxes I (465-425 a C) avocirc de Artaxerxes II Entre eles ocorreu o reinado curto de Xerxes II herdeiro legiacutetimo de Artaxerxes I rapidamente assassinado seguido de um irmatildeo bastardo filho do mes-mo Artaxerxes I que se chamou Dario II Deste Dario II (424-405 a C) e de Parisaacutetide ndash ambos filhos de Artaxerxes I mas de diferentes concubinas ndash nasceram lsquoquatro filhos Artaxerxes o mais velho seguido de Ciro e os mais novos Ostanes e Oxartesrsquo (Vit Artax 12) Alguma dis-paridade de testemunhos rodeia este ciacuterculo familiar X An 11 menciona apenas Artaxerxes e Ciro tambeacutem referidos por Cteacutesias com nomes distintos (FGrHist 688 F 15a 51) D S 1755 menciona Ostanes como irmatildeo de Artaxerxes II e pai de Dario III Cteacutesias atribui a Dario II e Parisaacutetide treze filhos Sobre o assunto veja-se Manfredini et Orsi 1996 267 As grandes fontes de Plutarco para a Vida de Artaxerxes satildeo Diacutenon Cteacutesias e Xenofonte
4 Plut Vit Artax 201 Perrin 1975 5 Hdt 211 3226 Hdt 3683
239
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
casou com Dario I7 por fim Xerxes I filho de Dario desposou Ameacutestris filha de Otanes8 Plutarco em consonacircncia recorda o casamento de Artaxerxes II o epoacutenimo da sua Vida com lsquouma mulher bonita e de bom caraacuteter por imposiccedilatildeo dos paisrsquo9 Entre os compromissos que Artaxerxes II assumiu de casar vaacuterias das suas filhas com nobres estaacute a promessa feita a Tiribazo de lhe conceder a matildeo de Ameacutestris10 quando poreacutem levado pela paixatildeo pela mesma filha desejou quebrar o compromisso lsquoprometeu em seu lugar como esposa a Tiribazo a mais novarsquo Atossa11 Em momentos particulares da histoacuteria persa como aquele que se seguiu agrave crise de sucessatildeo aberta pela morte de Cambises sem herdeiros a tradiccedilatildeo afeta ao casamento real podia tornar-se ainda mais restritiva Entre os compromissos assumidos pelo grupo de aristocratas que derrubaram o falso Esmeacuterdis contava--se uma claacuteusula de importacircncia para a solidariedade que entre eles se alicerccedilava12 lsquoDecidiram que natildeo seria permitido ao rei casar com nenhuma mulher que natildeo da estirpe dos conjuradosrsquo Ciente da relevacircncia do coacutedigo tradicional de alianccedilas por matrimoacutenio o mesmo Dario I que agora acedia ao trono lsquocontraiu casamen-tos de grande importacircncia para os Persas desposou duas filhas de Ciro Atossa e Artistone ndash Atossa jaacute tinha sido casada com Cambises seu irmatildeo e depois com o Mago13 Artistone era virgem14 Outra mulher com quem casou foi uma filha de Esmeacuterdis filho de Ciro chamada Paacutermis Desposou tambeacutem uma filha de Otanes a que desmascarou o Magorsquo15 Eacute oacutebvio nesta multiplicidade de uniotildees o desejo de Dario de consolidar a sua legitimidade primeiro elegendo filhas e
7 Hdt 313318 Hdt 7619 Plut Vit Artax 25 Dario II e Parisaacutetide no desejo de aproximaccedilatildeo agrave famiacutelia de Hidarnes
(um dos aliados de Dario I na luta contra o Mago) promoveram uma dupla uniatildeo do herdeiro real Artaxerxes com Estatira e tambeacutem da princesa Ameacutestris com um outro filho do aristo-crata Teritucme Apaixonado por uma das suas irmatildes Teritucme matou Ameacutestris e organizou contra o soberano uma rebeliatildeo Este crime acarretou a morte do filho de Hidarnes bem como de todos os outros parentes Estatira foi dos poucos que escapou por intervenccedilatildeo empenhada de Artaxerxes Cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Poupado foi tambeacutem Tissafernes seu irmatildeo entatildeo residente na Aacutesia Menor Jaacute no poder Artaxerxes II por influecircncia da mulher tomou atitudes favoraacuteveis aos seus parentes para lhes desagravar a memoacuteria mandou matar o escudeiro delator da conspiraccedilatildeo de Teritucme e reintegrou o filho deste seu cunhado Mitradates na satrapia paterna (FGrHist 688 F16)
10 Plut Vit Artax 27411 Plut Vit Artax 27412 Hdt 384213 De todos os maridos de Atossa foi sem duacutevida o uacuteltimo Dario aquele que deu agrave corte
persa maior dignidade e poder Por isso Eacutesquilo nos Persas faz de Atossa simplesmente a viuacuteva de Dario sem qualquer alusatildeo aos seus casamentos anteriores
14 Talvez esta ideia de umas primeiras nuacutepcias com o monarca justifique a preferecircncia afetiva que Dario manifestava por Artistone Por isso lhe dedicou uma estaacutetua em ouro cinzelado (Hdt 7692) Da uniatildeo de Dario com Artistone nasceram dois filhos Aacutersames (Hdt 7692) e Goacutebrias (7722)
15 Hdt 3882
240
Ser rainha na Peacutersia antiga
esposas dos monarcas seus predecessores de quem natildeo provinha em sucessatildeo directa aleacutem de privilegiar a filha de um dos seus correlegionaacuterios na rebeliatildeo de acordo com o pacto estabelecido Superiores interesses da corte deixavam ao rei em nome das suas preferecircncias ou sentimentos uma margem de escolha muito limitada
Pontualmente a dinacircmica de conquista podia aconselhar uma estrateacutegia a proposta de alianccedila com uma estrangeira que natildeo passa de um golpe di-plomaacutetico e eacute suscetiacutevel de levantar suspeitas de tal modo era divergente da praacutetica consagrada Assim Cambises (530-522 a C) futuro conquistador do Egito integrou nos seus planos de anexaccedilatildeo do reino do Nilo uma proposta de casamento com uma princesa egiacutepcia16 filha de Amaacutesis Heroacutedoto justifica esta proposta com uma vinganccedila pactuar com os interesses de um meacutedico egiacutepcio ao serviccedilo da corte persa e por isso afastado da paacutetria e da famiacutelia que pretendia vingar a escolha que o faraoacute fizera impender sobre a sua competecircncia O pedido de Cambises natildeo aparecia portanto como uma homenagem ou pacto de alianccedila mas como um desafio Assim o entendeu tambeacutem o faraoacute que apenas se preocu-pou com uma questatildeo difiacutecil como recusar sem recusar na certeza de que se acedesse lsquoficava mortificadorsquo e se negasse lsquoincorria na ira de Cambisesrsquo Imaginou entatildeo ao que conta Heroacutedoto um dolo o de substituir a proacutepria filha por outra jovem Niteacutetis filha do monarca anterior Apries A descoberta deste ludiacutebrio uma ofensa pessoal e poliacutetica a Cambises tornou-se uma etiologia para o ataque ao Egito17 A esta versatildeo decerto persa que justificava a campanha Heroacutedoto contrapotildee outra egiacutepcia para fundamentar a aproximaccedilatildeo entre as duas casas reais Essa outra versatildeo tambeacutem interessante defendia que Cambises era filho de Ciro e desta Niteacutetis e que teria sido Ciro a pedir a matildeo da princesa egiacutepcia e natildeo o filho18 Revelador eacute o motivo que Heroacutedoto invoca para depreciar a veracidade desta segunda versatildeo19 lsquoEacute que antes de mais nada os Egiacutepcios estatildeo fartos de sa-ber ndash porque se haacute povo que conheccedila as leis persas eacute sem duacutevida o egiacutepcio ndash que aqueles tecircm por regra natildeo entregar o trono a um bastardo quando haacute um filho legiacutetimorsquo Com esta observaccedilatildeo o autor de Histoacuterias confirma a impossibilidade de um casamento entre o rei persa e uma estrangeira verdadeiramente o uacutenico ponto em comum nas duas leituras do episoacutedio
A algumas destas alianccedilas poliacuteticas a tradiccedilatildeo soma o sentimento Plutarco assinala este condimento na alianccedila de Artaxerxes II com Estatira uma noiva imposta pelos pais mas que o marido mais tarde natildeo quis perder lsquoapesar da
16 Hdt 311-31317 Hdt 31518 Hdt 321 A versatildeo que faz de Cassandane a matildee de Cambises tem todas as condiccedilotildees
para ser a mais fidedigna e estaacute de acordo com o testemunho dos textos cuneiformes Veja-se CAH2 419
19 Hdt 322
241
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
opiniatildeo daquelesrsquo20 De facto convulsotildees posteriores21 tornaram mal vista a famiacute-lia da consorte real e punidos de morte alguns dos seus elementos o rei (Dario II) queria tambeacutem eliminar a nora natildeo fosse Artaxerxes lsquoter conseguido conven-cer a matildee a duras penas com pedidos e laacutegrimas de que a poupassem e o natildeo separassem da mulherrsquo22 Este episoacutedio salienta a autoridade da rainha-matildee e a precariedade das alianccedilas poliacuteticas alterados os pressupostos que as justificaram
A Cambises eacute atribuiacuteda a iniciativa de uma alteraccedilatildeo profunda nos casa-mentos reacutegios e a praacutetica progressivamente alargada de alianccedilas consanguiacuteneas Segundo Heroacutedoto foi a paixatildeo do rei por uma das suas irmatildes que desencadeou a revisatildeo do nomos instituiacutedo23 para o que o monarca teve de consultar os conselheiros da corte os uacutenicos com autoridade para promover alteraccedilotildees nos costumes Receosos do acircnimo perturbado de Cambises os conselheiros respon-deram a uma lacuna legal com outra lei em vigor24 lsquoQue natildeo se encontrava uma lei que permitisse a um irmatildeo casar com uma irmatilde mas em contrapartida havia uma que autorizava o rei dos Persas a agir segundo a sua vontadersquo Cambises pocircde entatildeo casar com a irmatilde que amava e mais tarde com outra ainda Atossa25 A mesma praacutetica veio a repetir-se segundo Plutarco Dario II e Parisaacutetide os pais de Artaxerxes II eram tambeacutem meios-irmatildeos filhos ambos de Artaxerxes mas de diferentes concubinas26 Seguindo a mesma tradiccedilatildeo Artaxerxes II apaixonou--se por uma das suas filhas Atossa27 com quem veio a casar com o patrociacutenio da rainha-matildee e lsquohaacute mesmo quem diga que aleacutem de Atossa o rei casou tambeacutem com outra das suas filhas Ameacutestrisrsquo28 Parisaacutetide faz neste contexto o mesmo papel que Heroacutedoto tinha atribuiacutedo aos conselheiros de Cambises Mesmo que Artaxerxes por pejo a natildeo consultasse e ao que parece mantivesse na clandes-tinidade uma relaccedilatildeo com a filha a velha rainha repetiu a doutrina progressista dos conselheiros de Cambises natildeo por receio da fuacuteria de um Artaxerxes fraco mas para lhe conquistar a simpatia e o dominar Parisaacutetide aconselhou29 lsquoque casasse com a jovem e fizesse dela sua esposa legiacutetima mandando passear as leis e os costumes agrave grega jaacute que para os Persas o rei era a lei e tinha sido designado
20 Plut Vit Artax 2121 Veja-se supra nota 822 Plut Vit Artax 2223 Hdt 331224 Hdt 331425 Hdt 3316 cf 3311 Sobre este casamento consanguiacuteneo de Cambises cf Cteacutesias
FGrHist 688 F13 (14) Strab 1715 Cteacutesias identifica a primeira das irmatildes que Cambises despo-sou e que o acompanhou ao Egito com Roxana e Estrabatildeo com Meacuteroe As outras duas filhas de Ciro e Cassandane eram Atossa e Artistone (3882 7692)
26 Plut Vit Artax 12 cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Outros exemplos satildeo referidos por Man-fredini et Orsi 1996 297-98
27 Plut Vit Artax 232-428 Plut Vit Artax 23429 Plut Vit Artax 233
242
Ser rainha na Peacutersia antiga
pelos deuses para arbitrar o bem e o malrsquo E interveio no processo como uma verdadeira casamenteira louvando junto de Artaxerxes a beleza e o caraacuteter de Atossa30 O amor de Artaxerxes por sua filha Atossa ficou comprovado nos anos em que a lepra a vitimou31 aleacutem de dar mostras de um grande desgosto a que os suacutebditos e amigos responderam com presentes generosos assumiu o gesto de hu-mildade de se prostrar numa suacuteplica diante da deusa Hera32 em mais uma quebra da etiqueta motivada pelo sentimento a que Artaxerxes era atreito Este foi um gesto que ganhou popularidade quando lsquoos dezasseis estaacutedios que separavam o templo do palaacutecio se atravancaram de ouro prata puacuterpura e cavalosrsquo33
Agrave consorte real assistia uma distinccedilatildeo particular que se assinalava desde logo com a etiqueta que rodeava as bodas reacutegias Com o mesmo aparato se as-sinalava o termo da vida da soberana motivo de honras fuacutenebres luxuosas e de um luto alargado aos suacutebditos34
Ostentaccedilatildeo equivalente era de regra no quotidiano do palaacutecio onde a sobe-rana comparecia coberta de joias e em trajo esplendoroso de seu uso exclusivo e que ningueacutem mais poderia utilizar35 Grave quebra do protocolo seria tambeacutem que algueacutem dela se abeirasse ou lhe tocasse Eacute neste pressuposto que Eacutesquilo retrata em cena a vinda de Atossa36 viuacuteva de Dario e matildee de Xerxes desfilando por entre os cortesatildeos Sobre um carro magnificente37 seguida de um seacutequito numeroso ela impotildee a atitude respeitosa dos velhos do coro que se prostram e lsquolhe dirigem as homenagens que lhe satildeo devidasrsquo38 Esta eacute a imagem sumptuo-sa da rainha da Peacutersia na plenitude de todo o seu poder ainda que sejam as apreensotildees que a todos afligem a razatildeo da sua vinda Mas quando a crise poliacutetica se instala com a notiacutecia da derrota na Greacutecia numa segunda entrada em cena Eacutesquilo despoja Atossa de toda a magnificecircncia anterior faacute-la vir agora a peacute em trajos soacutebrios como imagem de partilha do sofrimento do seu povo e de clarividente sentido poliacutetico39 Uma enorme popularidade cercou Estatira esposa
30 Plut Vit Artax 233 Plutarco (234) invoca o testemunho de Heraclides de Cumas (autor de uns Persikaacute seacutec IV a C) que igualmente regista o casamento de Artaxerxes com as suas duas filhas Atossa e Ameacutestris
31 Saacutenchez Hernaacutendez Gonzaacutelez Gonzaacutelez 2009 540 recordam o que diz Heroacutedoto (1138) sobre a lepra ndash o isolamento a que era relegado o paciente por se entender a doenccedila como um castigo divino ndash e imaginam que esse foi o motivo do lsquoescruacutepulo religiosorsquo do rei
32 Plut Vit Artax 234-5 Anaitis a deusa ora identificada por Plutarco com Atena (Artax 31) ora com Aacutertemis (273)
33 Plut Vit Artax 23534 Hdt 21135 Seria uma tremenda quebra de etiqueta que algueacutem comparecesse no banquete real com
trajos reacutegios mesmo que os tivesse recebido por benesse do monarca (Vit Artax 152)36 Sobre o tratamento da personagem de Atossa nos Persas veja-se Silva 2005 108-1137 Era interdito ao rei persa sair do palaacutecio a peacute Deveria circular sempre num carro ou a
cavalo (Heraclides de Cumas FGrHist 689 F1 Diacutenon FGrHist 690 F26)38 Pers 150-15439 Pers 607-609
243
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
de Artaxerxes II que nas suas saiacutedas do palaacutecio tomou a iniciativa de se deixar admirar pelo povo40 lsquoSempre se apresentava sem cortinas o que permitia que as mulheres do povo se aproximassem para abraccedilaacute-la Por isso a rainha era amada de todosrsquo Deveraacute esta atitude de Estatira ser entendida como uma exceccedilatildeo de apurado sentido poliacutetico Ou teria havido na corte persa com o curso dos anos alguma abertura no sentido de uma maior exposiccedilatildeo da casa real e de proximi-dade com o povo41
No quotidiano do palaacutecio agrave rainha-matildee como agrave esposa do rei estavam des-tinados privileacutegios no acesso e contacto com a figura reacutegia Dentro das regras de um protocolo que pretendia protegecirc-lo como intocaacutevel no cume da hierarquia soacute agraves duas mulheres diz Plutarco42 era permitido partilhar a mesa do rei43 Esta-va tambeacutem conferido agrave rainha-matildee e agrave consorte participar nos passatempos do soberano Parisaacutetide jogadora haacutebil de dados encontrava nesse dom uma forma de ter acesso a Artaxerxes retirando daiacute dividendos de influecircncia44 Apesar de as divergecircncias poliacuteticas terem trazido algum esfriamento agraves relaccedilotildees matildee-filho Parisaacutetide lsquonatildeo soacute teve artes de se mostrar amaacutevel como tambeacutem partilhava das suas diversotildees era confidente dos seus amores que favorecia e ateacute presenciava em suma deixou pouco espaccedilo ao conviacutevio e presenccedila de Estatira porque Pari-saacutetide odiava entre todos Estatira e o que pretendia era exercer influecircncia sobre o reirsquo Anexas agraves prerrogativas que a corte dispensava agrave rainha-matildee e agrave consorte real esta referecircncia de Plutarco deixa patentes as disputas e intrigas a que a rela-ccedilatildeo entre as duas mulheres estava sujeita na concorrecircncia pelos favores reacutegios45 O conviacutevio quotidiano entre as duas parecia ocultar um intuito de controle e de vigilacircncia permanente46 Assim no costume de se visitarem e de partilharem refeiccedilotildees Plutarco adivinha mais do que uma convivecircncia natural um indiacutecio lsquode que se temiam e deste modo se asseguravam de que comiam os mesmos ali-mentos servidos pelas mesmas pessoasrsquo Esta observaccedilatildeo estabelece uma medida extrema para a animosidade e ciuacutemes desenvolvidos na corte persa Entre as duas vontades fortes Artaxerxes oscilava dobrado por uma subserviecircncia que causou alguma desintegraccedilatildeo e decadecircncia no impeacuterio que governava47
40 Plut Vit Artax 5341 Pseudo-Plutarco Moralia 173f diz que Estatira natildeo comparecia diante do povo por
iniciativa proacutepria mas por determinaccedilatildeo de Artaxerxes o que poderaacute significar que os dois pressupostos ndash objetivos poliacuteticos e progresso na etiqueta ndash se harmonizam
42 Plut Vit Artax 5343 Diacutenon FGrHist 689 F2 retoca este princiacutepio ao afirmar que o rei costumava tomar as re-
feiccedilotildees sozinho Pontualmente podiam ser admitidos a esse conviacutevio alguns membros da famiacutelia real mas sempre em mesas separadas e menos luxuosas Soacute em ocasiotildees festivas os cortesatildeos partilhavam a mesma sala com o soberano
44 Plut Vit Artax 172-345 Plut Vit Artax 19146 Plut Vit Artax 19247 Cf Pl Lg 694-698 X Cyr 8812
244
Ser rainha na Peacutersia antiga
O mesmo privileacutegio da consorte e da rainha-matildee junto do soberano serviu de motivo a Eacutesquilo no seu desenho dramaacutetico da corte persa Ao fantasma de Dario seu marido soacute Atossa se atreve a dirigir a palavra face agrave discriccedilatildeo respeitosa dos cortesatildeos que nem a crise profunda que se abateu sobre Susa per-mitiu romper48 Como tambeacutem na qualidade de rainha-matildee lhe estaacute conferida a missatildeo de receber o soberano derrotado no regresso da campanha Com os trajos sumptuosos que poraacute agrave sua disposiccedilatildeo para substituir os farrapos do vencido Atossa garante a Xerxes a reintegraccedilatildeo simboacutelica no trono e na autoridade sobre a Peacutersia49
Esta convivecircncia privilegiada faz da rainha da Peacutersia uma figura de enor-me influecircncia dentro da corte intervindo diretamente nas decisotildees reacutegias ou substituindo a autoridade real nas suas ausecircncias Natildeo surpreende portanto que a rainha tenha alguma visibilidade e mereccedila dos diversos testemunhos a tentativa de se criar da sua personalidade um perfil Trate-se de Roxana50 a irmatilde-esposa que acompanhou Cambises na campanha do Egito51 de Ameacutestris esposa de Xerxes ou de Parisaacutetide esposa de Dario II e matildee de Artaxerxes II todas elas revelam inteligecircncia sagacidade e sentido poliacutetico Roxana eacute chamada a intervir junto de Cambises com a sua opiniatildeo sobre uma questatildeo tatildeo delicada como a da descendecircncia e das relaccedilotildees entre os herdeiros reais Perante as vio-lecircncias perpetradas por um rei que Heroacutedoto retratou como louco Roxana natildeo hesitou em o censurar abertamente em mateacuteria tatildeo suscetiacutevel como o homiciacutedio a mando do rei do seu irmatildeo Esmeacuterdis Envolta em fantasia52 esta intervenccedilatildeo da esposa de Cambises assenta no pressuposto da influecircncia e audiccedilatildeo que a rainha podia ter junto do soberano de quem lhe era ateacute possiacutevel discordar no conhecimento dos segredos de Estado53 Eacute certo que Roxana se tornou mais uma viacutetima da sua frontalidade avisada junto do rei que a agrediu ateacute agrave morte54 Sem que esse assassinato tenha segundo Heroacutedoto outro sentido sobre o estatuto da soberana perante um Cambises que natildeo poupou igualmente parentes cortesatildeos e leais servidores aos seus arroubos de loucura
Dentro da mesma convenccedilatildeo Heroacutedoto envolve em cada uma das campa-nhas projetadas pelos soberanos da Peacutersia a intervenccedilatildeo da rainha Determi-nante foi sem duacutevida o papel assumido por Atossa na campanha contra a Greacutecia planeada por Dario e levada a cabo por Xerxes O curriculum que faz dela esposa de trecircs monarcas e matildee de um quarto natildeo foi de somenos para desenvolver
48 Pers 694-70649 Pers 832-83850 Veja-se supra nota 25 51 Hdt 331152 Hdt 33253 Cf Heroacutedoto 3303 3611 375254 Hdt 3311
245
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
na mulher inteligente que era uma capacidade poliacutetica e um ascendente de-terminantes no futuro do impeacuterio De acordo com as Histoacuterias55 Atossa foi a impulsionadora dessa investida ela mesma eco junto de Dario dos jogos de poder que se desenrolavam no palaacutecio56 atuou de facto por sugestatildeo do grego Democedes de Crotona57 meacutedico da corte e detentor de um enorme prestiacutegio pelas curas obtidas junto do rei e da rainha mas apesar do sucesso e da genero-sidade reacutegia Democedes aspirava ao regresso agrave paacutetria para o que se valeu desse mesmo prestiacutegio de modo a influenciar primeiro Atossa e atraveacutes dela o proacuteprio monarca58 O cenaacuterio escolhido por Heroacutedoto para a conversa entre o casal reacutegio sobre mateacuteria poliacutetica foi a alcova Na intimidade do quarto Atossa deu conta da sua sagacidade e prudecircncia Lembrou ao rei o lema da corte persa o princiacutepio de que o condutor dos destinos da Peacutersia natildeo devia ficar inativo mas promover conquistas59 aproveitando da energia juvenil Dario ganharia a consideraccedilatildeo do seu povo aleacutem de o manter ocupado e submisso agrave sua autoridade Aos argumen-tos poliacuteticos a Atossa de Heroacutedoto acrescentou um toque de capricho feminino o sonho de ter escravas gregas ao seu serviccedilo60 Dario natildeo contestou a oportu-nidade nem o conteuacutedo do conselho reconheceu ateacute que ele coincidia com os seus propoacutesitos Contrapocircs apenas outra prioridade a Ciacutetia antes da Greacutecia Mas incapaz de repudiar a opiniatildeo de Atossa enveredou pelo compromisso avanccedilar primeiro para a Ciacutetia mas ir desencadeando os preliminares para um ataque agrave Greacutecia e cedeu naquele que era o principal objetivo da consorte encarregar De-mocedes de conduzir uma incursatildeo de espiotildees no territoacuterio grego Abria-se com o beneplaacutecito reacutegio para o meacutedico de Crotona o sonhado caminho do regresso
Influente na mesma campanha a Atossa dos Persas atua num cenaacuterio diverso Eacute como regente apoacutes a morte do marido e o desfecho iminente da campanha que evidencia curiosidade poliacutetica e idoneidade para uma avaliaccedilatildeo da natureza do inimigo e das causas profundas da derrota Vemo-la interrogar
55 Hdt 3129-13756 Asheri Medaglia et Fraschetti 1990 344 consideram este diaacutelogo como lsquoetioloacutegicorsquo ou
seja expressivo das causas que determinaram a campanha persa contra a Greacutecia Tal como He-lena se tornou causa paradigmaacutetica de um conflito terriacutevel Atossa eacute considerada a motivadora das guerras peacutersicas
57 Hart 1982 77 considera esta cena um misto de um conto tradicional mas lsquocom um soacutelido substrato de verdadersquo nomeadamente no que diz respeito agrave identidade de Democedes
58 As Histoacuterias de Heroacutedoto datildeo conta da presenccedila de meacutedicos estrangeiros na corte persa detentores de um enorme prestiacutegio e de uma influecircncia poliacutetica relevante Assim o oftalmolo-gista egiacutepcio (311-2) que o faraoacute mandara exilado para a Peacutersia e que usa do seu poder junto de Dario I para estimular um ataque ao Egito (cf 31292) Plutarco refere como uma das suas fontes para a Vida de Artaxerxes Cteacutesias de Cnidos meacutedico da famiacutelia real e um conhecedor profundo da sua vida iacutentima que registou num relato intitulado Persikaacute (Vit Artax 1 2) Houve quem considerasse que Cteacutesias se deixou influenciar na narrativa que produziu por Parisaacutetide a rainha-matildee (FGrHist 688 F15a 51)
59 Cf Hdt 7860 Cf Ael VH 1127
246
Ser rainha na Peacutersia antiga
os cortesatildeos do coro sobre os Gregos de acordo com os criteacuterios proacuteprios da mentalidade persa61 sobre a localizaccedilatildeo geograacutefica do inimigo o seu potencial financeiro estrateacutegia de combate e as chefias que o conduzem A conversa com Dario agora que a morte do velho soberano se interpocircs tornou-se puacuteblica para um balanccedilo e compreensatildeo do desastre que coroou a campanha da Greacutecia mas sem perder um certo tom de confidencialidade pelo facto de ser Atossa o interlo-cutor privilegiado do fantasma A Atossa esquiliana ouve mais do que comenta mas compete-lhe fornecer agrave interpretaccedilatildeo do fantasma uma siacutentese do ocorrido dos pressupostos e responsaacuteveis
Por fim Parisaacutetide teve uma influecircncia indesmentiacutevel no reinado do ma-rido Dario II (424-405 a C) e sobretudo de acordo com Plutarco na questatildeo sucessoacuteria e no novo monarca o seu filho mais velho Artaxerxes II Deu mostras de uma personalidade que a literatura grega considerou tiacutepica da soberana persa Perspicaacutecia e sagacidade destacam-se como suas carateriacutesticas fundamentais62 aleacutem de uma crueldade verdadeiramente baacuterbara63
Questotildees relacionadas com a sucessatildeo reacutegia foram responsaacuteveis por momen-tos de instabilidade na corte de Susa A importacircncia de um sucessor legiacutetimo do trono revela-se por exemplo com Cambises que entre os seus atos de loucura cometeu o crime de matar a mulher que estava graacutevida64 e assim privou a corte de um herdeiro e facilitou o acesso a um usurpador e a necessidade de uma re-volta para trazer de regresso a normalidade Apesar de prudente esta disposiccedilatildeo confrontou-se com inuacutemeras dificuldades e controveacutersias Uma situaccedilatildeo difiacutecil ocorreu com Dario I na altura de avanccedilar contra o Egito Recorda Heroacutedoto65 que o monarca apesar de ter jaacute quando acedeu ao trono trecircs filhos do casamen-to com uma filha de Goacutebrias acabou designando como seu sucessor Xerxes o primogeacutenito de quatro outros filhos que teve com Atossa66 filha de Ciro por este ser o filho mais velho nascido depois de o pai ter estatuto de rei Esta soluccedilatildeo foi sugerida por Demarato um soberano lacoacutenio no exiacutelio residente na corte e conselheiro do rei de acordo com uma praacutetica espartana Ao reconhecer como sensata a sugestatildeo de Demarato Dario I fixou um precedente que haveria de ser invocado mais tarde em situaccedilotildees semelhantes Sem que no entanto Heroacutedoto deixe de reconhecer que lsquomesmo sem este conselho Xerxes teria sido rei porque Atossa era todo-poderosarsquo67
Poleacutemica de dimensotildees bastante mais graves envolveu a sucessatildeo de Dario
61 Pers 230-24462 Plut Vit Artax 172 23363 Plut Vit Artax 6564 Hdt 332465 Hdt 72-366 Aleacutem de Xerxes Histaspes (Hdt 7642) Masistes (782) e Aqueacutemenes (797)67 Hdt 73
247
Maria de Faacutetima Sousa e Silva
II com a intervenccedilatildeo da soberana Parisaacutetide Plutarco68 deixa claro que o caraacute-ter de Artaxerxes o primogeacutenito deacutebil e fraco contrastava com a determinaccedilatildeo de Ciro o filho segundo que cativou o apoio da matildee69 O argumento da rainha foi o usado no caso de Xerxes o de que quando Artaxerxes nasceu o pai era um cidadatildeo comum e jaacute rei quando Ciro veio ao mundo Designado saacutetrapa da Liacutedia e comandante dos exeacutercitos na costa Ciro iniciou uma rebeliatildeo contra o herdeiro indigitado suspeito como traidor Ciro foi salvo por Parisaacutetide ape-sar da gravidade da acusaccedilatildeo Com o afastamento de Ciro para o litoral foram criadas condiccedilotildees para uma verdadeira guerra de sucessatildeo Nos bastidores Pa-risaacutetide favorecia os interesses de Ciro70 a quem disponibilizava recursos numa demonstraccedilatildeo de autoridade e de liberdade na gestatildeo de bens consideraacuteveis71 e conspirava em segredo72 Esta teia de intrigas aproveitava ainda do feitio mole do rei73 Todo este empenho pelos interesses de Ciro justificou a acusaccedilatildeo contra Parisaacutetide de ser com alguns amigos a verdadeira causadora da guerra Entre os que mais a hostilizavam estava Estatira incomodada com a influecircncia da sogra e com o risco que significava para a seguranccedila do rei74 O contencioso entre as duas mulheres que na versatildeo de Plutarco representavam as duas faccedilotildees em litiacutegio havia de fazer de Estatira uma viacutetima da vinganccedila da rainha-matildee75
A vitoacuteria de Ciro que implicou a sua morte76 abriu um longo percurso de preacutemios e vinganccedilas em que Parisaacutetide deu largas ao ressentimento e a uma fero-cidade baacuterbara Natildeo soacute demoveu Artaxerxes a eliminar alguns dos seus inimigos pessoais como chamou a si o prazer de liquidar alguns por suas proacuteprias matildeos77 A um sujeito da Caacuteria que se vangloriava de ter sido o autor do golpe mortal contra Ciro e que o rei mandara matar Parisaacutetide reclamou-o para lhe aplicar uma morte de requintada malvadez78 a Mitridates que se arrogava igual faccedilanha Parisaacutetide denunciou-o ao rei que o mandou torturar e executar79 o eunuco do rei Masabates que tinha decepado a cabeccedila e matildeos de Ciro Parisaacutetide obteve-o
68 Plut Vit Artax 2169 Plut Vit Artax 22 cf X An 11470 Plut Vit Artax 4171 Manfredini et Orsi 1996 274 lembram que Parisaacutetide dispunha de um territoacuterio designa-
do por lsquocintura da rainharsquo na Siacuteria de grandes recursos em cereais gado e outros proventos a que competia fornecer agrave rainha fundos para os seus gastos cf X An 149 Cteacutesias FGrHist 688 F16 Pl Alcib 123 b-c
72 Plut Vit Artax 4173 Plut Vit Artax 43-4 51-374 Plut Vit Artax 64-575 Plut Vit Artax 65 cf 17676 A guerra terminou com a batalha de Cunaxa em 401 a C77 Sobre as viacutetimas deste processo de vinganccedila veja-se Almagor 2009 131-4678 Plut Vit Artax 14579 Plut Vit Artax 161