Goldman Grande Divisor

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70 Como se faz um grande divisor? (Marcio Goldman e Tânia Stolze Lima) (Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. pp. 83-92) (“Como se Faz um Grande Divisor? Etnologia das Sociedades Indígenas e Antropologia das Sociedades Complexas”. Sexta-Feira 3: 38-45, out. 1998) Dada sua natureza e intenção, este texto -- apresentado na Mesa Redonda “Sobre os Grandes Divisores: ‘Etnologia das Sociedades Indígenas’ e ‘Antropologia das Sociedades Complexas’”, realizada na XXI Reunião Brasileira de Antropologia, em Vitória (1998) -- exige um breve esclarecimento preliminar. Com ele pretendemos sobretudo levantar algumas questões cujos elementos, parece-nos, encontram-se disseminados pela antropologia contemporânea. Esses elementos acham-se tão naturalizados que, em geral, não são sequer explicitados, ou, quando o são, não se costuma imaginar que seja necessário justificá-los. A própria idéia de realizar a Mesa partiu de um sentimento compartilhado pelos autores deste texto (um dos quais desenvolve suas pesquisas em uma sociedade “indígena” e o outro não) com antropólogos que trabalham em diferentes sociedades 14 . Todos sentimos que uma espécie de fosso ameaça separar os estudiosos das sociedades indígenas (os “etnólogos”, como se costuma dizer) daqueles que pesquisam as chamadas “sociedades complexas”. E ainda que atribuindo diferentes valores a este fato, acreditamos igualmente que essa separação tão prejudicial talvez encontrasse uma de suas fontes na antiga tendência do pensamento antropológico em opor “nós” e “eles” -- oposição que, há alguns anos, Jack Goody batizou com o nome de “Great Divide”, e que aqui traduzimos livremente ora por “grande divisor”, ora por “partilha”. Este texto não pretende, portanto, construir uma análise detalhada de cada um dos pontos que levanta, o que nos levaria longe demais, exigindo, na verdade, todo um livro. Pretendemos, antes, que ele seja uma espécie de “manifesto”, no sentido de que trata-se de lembrar aos antropólogos que alguns procedimentos recorrentes em nossa disciplina estão longe de ser óbvios e desprovidos de problemas. O que tentamos fazer foi isolar esses procedimentos, ilustrando-os com exemplos específicos. É evidente que a questão dos grandes divisores envolve virtualmente a totalidade do saber antropológico e que aqui não temos qualquer pretensão à exaustividade. Não estamos preocupados com autores, mas com operações: saber se todos os autores evocados empregam as mesmas operações ou se todas as operações estão presentes em cada um dos autores é, para nós, secundário. Gostaríamos apenas de explicitar que nossa reflexão se “apoiou”, de uma forma ou de outra, principalmente na leitura de alguns textos de Roland Barthes, Pierre Clastres, Gilles Deleuze, Louis

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    Como se faz um grande divisor?

    (Marcio Goldman e Tnia Stolze Lima)

    (Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1999. pp. 83-92)

    (Como se Faz um Grande Divisor? Etnologia das Sociedades Indgenas e Antropologia das

    Sociedades Complexas. Sexta-Feira 3: 38-45, out. 1998)

    Dada sua natureza e inteno, este texto -- apresentado na Mesa Redonda Sobre os Grandes

    Divisores: Etnologia das Sociedades Indgenas e Antropologia das Sociedades Complexas,

    realizada na XXI Reunio Brasileira de Antropologia, em Vitria (1998) -- exige um breve

    esclarecimento preliminar. Com ele pretendemos sobretudo levantar algumas questes cujos

    elementos, parece-nos, encontram-se disseminados pela antropologia contempornea. Esses

    elementos acham-se to naturalizados que, em geral, no so sequer explicitados, ou, quando o so,

    no se costuma imaginar que seja necessrio justific-los.

    A prpria idia de realizar a Mesa partiu de um sentimento compartilhado pelos autores deste

    texto (um dos quais desenvolve suas pesquisas em uma sociedade indgena e o outro no) com

    antroplogos que trabalham em diferentes sociedades14. Todos sentimos que uma espcie de fosso

    ameaa separar os estudiosos das sociedades indgenas (os etnlogos, como se costuma dizer)

    daqueles que pesquisam as chamadas sociedades complexas. E ainda que atribuindo diferentes

    valores a este fato, acreditamos igualmente que essa separao to prejudicial talvez encontrasse

    uma de suas fontes na antiga tendncia do pensamento antropolgico em opor ns e eles --

    oposio que, h alguns anos, Jack Goody batizou com o nome de Great Divide, e que aqui

    traduzimos livremente ora por grande divisor, ora por partilha.

    Este texto no pretende, portanto, construir uma anlise detalhada de cada um dos pontos que

    levanta, o que nos levaria longe demais, exigindo, na verdade, todo um livro. Pretendemos, antes,

    que ele seja uma espcie de manifesto, no sentido de que trata-se de lembrar aos antroplogos

    que alguns procedimentos recorrentes em nossa disciplina esto longe de ser bvios e desprovidos

    de problemas. O que tentamos fazer foi isolar esses procedimentos, ilustrando-os com exemplos

    especficos.

    evidente que a questo dos grandes divisores envolve virtualmente a totalidade do saber

    antropolgico e que aqui no temos qualquer pretenso exaustividade. No estamos preocupados

    com autores, mas com operaes: saber se todos os autores evocados empregam as mesmas

    operaes ou se todas as operaes esto presentes em cada um dos autores , para ns, secundrio.

    Gostaramos apenas de explicitar que nossa reflexo se apoiou, de uma forma ou de outra,

    principalmente na leitura de alguns textos de Roland Barthes, Pierre Clastres, Gilles Deleuze, Louis

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    Dumont, Michel Foucault, Ernest Gellner, Jack Goody, Flix Guattari, Robin Horton, Adam Kuper,

    Bruno Latour e Claude Lvi-Strauss15.

    * * *

    Comear lembrando que, ao menos hoje, somos todos contra os grandes divisores pode soar

    banal. No entanto, o que significa isso? Como e em que medida se contra? Porque se a

    antropologia como um todo contra a Grande Diviso, as razes e as dimenses desta oposio no

    so de modo algum consensuais. No limite, pode-se ser contra e realizar um trabalho a favor. isso

    o que pode acontecer quando nos posicionamos contra a imagem de uma humanidade dividida

    entre ns e eles, seja l o que isso queira dizer, e tratamos de substitu-la por uma oposio,

    aparentemente muito mais adequada, entre oral e escrita, por exemplo. Para se traar uma partilha,

    no preciso que os objetos sejam como os dois enormes conjuntos ns e eles, os ocidentais e

    os outros. Com objetos relativamente menores como oral e escrita, ou ainda mais especficos, como

    as noes de tempo linear e tempo cclico, tambm se pode fazer uma partilha. Do mesmo modo,

    acreditamos que, em princpio, no impossvel confrontar conjuntos como ns e eles sem

    produzir uma partilha. Isso apenas difcil, porque difcil a prpria opo de no pensar em

    termos de grandes divisores.

    A partilha como o racismo. O fato de sermos contra, de sequer vermos pertinncia na noo

    de raas humanas, nem assegura que o racismo no exista nem que algo em nossa conduta no

    possa exprimi-lo. preciso admitir que a partilha uma realidade de fato, produzida por uma longa

    e sangrenta histria, e que no poderia ser estudada adequadamente sem se levar em conta os

    discursos que a prpria antropologia produziu. Pois essa realidade inclui, pensamos, a antropologia.

    No que ela esteja irremediavelmente dividida entre uma antropologia dos ndios e uma das

    sociedades complexas ou nacionais. Mas no sentido de que a partilha o espao que habitamos, a

    fronteira que transgredimos e um certo tipo de linha que traamos. Ela a prpria condio do

    projeto antropolgico e de seu exerccio; que seja sua consequncia algo que nos cabe evitar.

    Aqui teremos de proceder, contudo, como se uma coisa fosse a partilha como realidade

    sociopoltica, e outra os estudos antropolgicos que se dedicam a refletir sobre o que essa realidade

    recorta. Nossa ateno estar voltada sobretudo para estudos que parecem trair a inteno inicial do

    autor, levando-o a construir o que seriam os verdadeiros fundamentos etnogrficos e tericos da

    grande diviso, a traar a partilha supostamente justa. como se nos dissessem: estamos

    completamente enganados se pensamos que somos superiores a eles; o que realmente acontece

    que a escrita superior ao oral, apenas isso. Ou ento: uma crena pode ser melhor do que outra

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    sem que por isso as pessoas que as professam sejam melhores ou piores. Isso nos esclarece sobre a

    falsa modstia que envolve os grandes divisores na antropologia contempornea: a grandeza da

    escrita e da cincia, esses dois grandes totens da partilha, no significa nossa grandeza. Adiantamos

    que a modalidade atual mais proeminente da partilha a hierarquizao das produes humanas

    desarticulada da hierarquizao dos humanos. Como se para bom entendedor no bastasse meia

    palavra.

    Tentemos, pois, mostrar como se faz um grande divisor. Veremos que trata-se de um

    mecanismo relativamente simples de produo de assimetrias que realiza uma srie de operaes.

    1. Identificao

    Em geral, a grande diviso exige uma identificao primeira a fim de estabelecer uma base de

    comparao, ou melhor, uma suposta garantia de comensurabilidade. Os adivinhos africanos e os

    cientistas ocidentais apresentariam, por exemplo, uma semelhana fundamental, a de aplicarem

    uma teoria para explicar e resolver praticamente situaes inquietantes (Horton). Ora, teoria ou

    explicao querem dizer coisas muito diferentes nos dois casos, mas isso pouco importa. Sempre

    impressionista e analgica, a identificao apela nossa complacncia: para provar a identidade

    profunda de dois conjuntos bastaria design-los com o mesmo nome.

    A operao de identificao s pode funcionar, claro, a partir de uma concepo prvia dos

    elementos a identificar como unidades. Isso revela que o problema dos grandes divisores no se

    encontra apenas nas assimetrias que produzem, mas na concepo substancialista daquilo que se

    separa. Alm disso, o lado de c da oposio (ns, a escrita, a cincia) aparece sempre

    de forma excessivamente singularizada; o lado de l (eles, o oral, a divinao) passa por

    um processo de empobrecimento ou laminao. Toda a sua heterogeneidade e densidade so

    eliminadas em benefcio de uma concepo unidimensional da diferena.

    Ora, pensamos que preciso admitir que no existe uma diferena genrica e invarivel

    (simples contraface da identidade), mas modalidades de diferena que diferem entre si. No basta

    afirmar que somos diferentes dos outros como eles so diferentes entre si; seria preciso estabelecer,

    caso a caso, a modalidade de diferena com a qual nos defrontamos. Em suma, pensamos que a

    questo o que, em geral, nos aproxima e/ou distingue dos outros inadequada e no deveria ser

    formulada.

    2. Sindoque

    A segunda operao consiste em fazer com que um conjunto seja representado por alguns de

    seus elementos, escolhidos entre aqueles que se opem de maneira mais aguda aos elementos

    escolhidos para representar outro conjunto. Por exemplo, afirma-se que nas tradies orais a

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    palavra participa da realidade, enquanto nas tradies escritas ela se situa como coisa parte. Com

    efeito, existem inmeras evidncias etnogrficas que sugerem a neutralizao, em contextos

    bastante especficos, da distino entre signo e coisa. Mas isso no significa que as pessoas

    confundam palavras e coisas. Pelo contrrio, revela justamente a existncia de uma diversidade

    interna s relaes entre signo e coisa. Que as modalidades de relao sejam contextuais, variando

    no interior de uma mesma sociedade e -- por que no? -- nas experincias de um mesmo sujeito,

    nada disso importa ao grande divisor.

    Em suma, os termos colocados em oposio so tratados como unidades e construdos a partir

    de um procedimento que toma a parte (algo que efetivamente ocorre em determinados contextos

    e momentos) pelo todo. O que pode, alm do mais, conduzir a um paralogismo extremamente

    perigoso: a confuso entre correlao e causalidade.

    Assim, indiscutvel que a cincia contempornea exija a escrita -- e o trabalho etnogrfico

    de Bruno Latour o prova, ao revelar como, concretamente, se d esta relao. No entanto, sustentar

    que a inveno da escrita condio para o surgimento do pensamento cientfico consiste

    justamente em operar uma partilha e introduzir um paradoxo: se a escrita surgiu h 4.000 anos, o

    que fez com que a cincia tivesse que esperar 3.500 para se constituir? O fato da cincia utilizar a

    escrita como meio privilegiado de registro e acumulao de dados e teorias no faz com que esta

    seja a prpria essncia da escrita -- que poderia, desse modo, ser oposta da oralidade, definida

    como forma fluida e excessivamente mutvel16.

    A escrita assume assim o aspecto de uma atividade todo-poderosa, tcnica capaz de produzir

    nada mais nada menos que a domesticao do pensamento humano. Ao faz-lo, envia

    simultaneamente o pensamento dos outros -- ou seja, daqueles que a desconhecem -- para as

    fronteiras da natureza, restabelecendo em um nvel superior um naturalismo do qual

    acreditvamos haver nos livrado. Porque pode-se perfeitamente distinguir com cuidado o

    pensamento selvagem daquele dos selvagens e simultaneamente fazer com que o segundo

    esteja, de forma algo misteriosa, mais prximo do primeiro do que o nosso.

    3. Desproporo

    Em terceiro lugar, o grande divisor opera com escalas heterogneas, nunca assumidas como

    tais. Essa heterogeneidade pode ser de ordem temporal: resultados obtidos em uma investigao da

    histria da cincia so contrapostos a resultados da observao etnogrfica dos sistemas de

    divinao. Ora, essa diferena entre a perspectiva sincrnica da etnografia e a perspectiva

    diacrnica da histria da cincia condena de imediato a comparao. Ou seja, evidente que o

    mtodo etnogrfico que determina o carter fechado de sistemas como a divinao; mas tudo se

    passa como se esse fechamento fosse uma propriedade inerente a esses sistemas, em oposio ao

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    carter aberto da cincia -- que s aparece como tal porque investigada de uma perspectiva

    diacrnica. O resultado desta comparao entre realidades to desproporcionais parece deduzir-se

    logicamente, no obstante sua coincidncia com os nossos mais profundos preconceitos: a cincia

    se aproxima progressivamente da verdade, enquanto o sistema divinatrio se situa a uma

    intransponvel distncia dela.

    Quanto ao mais, os arquivos etnogrficos indicam efetivamente o que so e como funcionam

    diversos sistemas divinatrios. Em contrapartida, o que a cincia? Do mesmo modo, as

    sociedades tradicionais costumam ser efetivamente descritas; as modernas lhes so opostas a

    partir de um tipo ideal construdo com elementos recolhidos de vrias partes. Em suma: ser que

    podemos utilizar resultados que no foram obtidos pelo mtodo etnogrfico -- como aqueles

    fornecidos por epistemologias ou mesmo por ideologias -- como realidades equiparveis aos

    objetos etnograficamente construdos? No estaramos, nesse caso, simplesmente ampliando um

    dos pecados essenciais do evolucionismo social, a comparao descontextualizada. Se quase 100

    anos de antropologia foram suficientes para que no mais agssemos assim com as sociedades

    primitivas, o mesmo no poderia ser dito em relao s civilizadas: invocamos a escrita ou a

    cincia como objetos desvinculados dos contextos concretos em que em que funcionam.

    Observe-se ainda que operao de desproporo se revela tambm quando se opem unidades

    que pertencem a planos completamente distintos. Pode ser verdadeiro que a igualdade e o

    individualismo correspondam a ideologias muito explcitas na sociedade norte-americana;

    qualquer anlise etnogrfica razovel revelaria, contudo, que esses ideais no funcionam de modo

    to tranquilo no nvel das relaes sociais efetivas. Por outro lado, uma etnografia de certas

    dimenses da vida social brasileira pode revelar seu carter hierrquico e personalista. No

    entanto, dificilmente encontraramos uma formulao ideolgica clara e bem aceita defendendo

    esses princpios e valores. Assim, ao opor o igualitarismo norte-americano e a hierarquia

    brasileira no estaramos, na verdade, traando uma diviso entre elementos situados sobre planos

    radicalmente distintos.

    4. Projeo

    A quarta operao do grande divisor a projeo. A partilha oral e escrita implica assimetrias

    como presena ou ausncia de estmulo criao; ignorncia ou reconhecimento do indivduo;

    saber contextualizado ou descontextualizado (isto , abstrato); a palavra participa da realidade ou

    uma coisa parte, o discurso personalizado e circunstancial ou despersonalizado e intemporal,

    presena ou ausncia de contradio. Ora, todos sabemos que no difcil inventariar mil textos

    escritos sem criatividade, personalizados, circunstanciais e cheios de contradio. Ou, mil falas

    orais que exprimem criatividade, coerncia e utilizao dos recursos lingusticos adequados para

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    despersonalizar e descontextualizar o discurso, projetando-o em um tempo eternitrio.

    A partilha oral e escrita a transposio para um domnio de outra ordem de grandeza (o

    conjunto da humanidade) de discriminaes que operamos no nosso dia a dia e que tm suas razes

    em nossos sistemas de valores. No entanto, feita a transposio tudo se passa como se as

    discriminaes perdessem, como que por encanto, suas razes valorativas.

    Alm disso, permanece uma questo capital: por que as sociedades sem escrita so

    chamadas a fornecer os materiais necessrios para o estudo da relao entre oral e escrita? Que

    sejam sem escrita, no significa apenas e justamente que suas tradies so alheias a esta diviso?

    Por comodidade, podemos design-las como tradies orais, mas pedir-lhes que ilustrem o mundo

    do oral em oposio ao da escrita parece-nos um procedimento vicioso. Sem dvida, importante

    estudar essa relao, mas dever-se-ia procur-la onde ela realmente existe.

    A converso de uma distino interna a nossa histria em uma oposio entre tradies

    histricas diferentes consiste tambm em uma operao de ocultamento. Tudo se passa como se,

    com a inveno da escrita, uma sociedade simplesmente adquirisse uma nova dimenso e uma

    potncia inteiramente nova, sem qualquer alterao da dimenso do oral. Como se a potncia

    (poltica ou cognitiva) da escrita fosse inerente a ela. Ns nos perguntaramos, antes, de onde vem

    essa potncia? Que tipo de pilhagem se efetuou e se efetua, por intermdio da escrita, nas

    dimenses da palavra viva? Enfim, ns nos perguntaramos se a pobreza ou impotncia cognitiva

    da oral no o resultado dessa pilhagem.

    5. Juzo de relao como atributo do objeto

    A quinta operao consiste na transformao de um juzo de relao em um atributo do

    objeto, como se o fato de ser verdadeira uma proposio como Paulo maior do que Pedro

    justificasse tomar o maior do que Pedro ou o menor do que Paulo como atributos de cada um.

    Esse colapso entre metodologia e ontologia, para falar como Sahlins, capital.

    No h dvida que conferimos uma certa inteligibilidade aos materiais etnogrficos indianos,

    por exemplo, quando contrastamos a grande nfase na hierarquia e no grupo que se nos revela ao

    contemplarmos esses materiais de um ponto de vista que parece enfatizar a igualdade e o indivduo.

    O problema surge quando nos esquecemos do carter relacional e metodolgico desse juzo, e

    tomamos o diferencial como atributo do objeto que investigamos. Resulta que a ausncia do

    indivduo suscita a idia de uma sociedade onipotente, onde as pessoas esto condenadas a uma

    infinita repetio, ou ento a sociedade que aparece como um quase nada, puro espao aberto para

    as interaes, desejos e clculos individuais -- o que nos remete ao paradoxo da complexidade que

    abordaremos adiante.

    A etnologia tambm oferece exemplos de como a comparao entre dois ou mais grupos de

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    sociedades engendra abstraes que, em seguida, podem ser tomadas como atributos dessas

    sociedades. Comparadas com as sociedades j, que so caracterizadas por diversos nveis de

    organizao dualista, inmeras sociedades amaznicas aparecem como amorfas, ou como

    sociedades que expulsam a diferena para o exterior. No preciso mais do que um passo para

    tomar o amorfismo como uma propriedade dessas sociedades, ou para conferir expulso da

    diferena o estatuto de objeto etnogrfico.

    Como modelos desse gnero nunca se adaptam bem aos materiais etnogrficos, preciso

    imaginar algo como um retorno do recalcado: ora o indivduo irrompe, ameaadora ou

    marginalmente, no seio da sociedade; ora a totalidade reaparece, corrompida ou derrisria, entre os

    indivduos. Como se sociedade, indivduo fossem coisas em si cuja eliminao s pode ser

    ideolgica e parcial, e no noes e artifcios metodologicamente construdos para conferir alguma

    inteligibilidade ao que investigamos.

    6. Sobrecodificao

    As cinco operaes que identificamos (identificao, sindoque, desproporo, projeo e

    transformao de um juzo de relao em atributo), aplicadas isoladamente, no constituem um

    grande divisor. Para isso, preciso o concurso de uma operao adicional, de sobrecodificao, que

    subordina ou comanda as outras. Cabe-lhe compor a sndrome, segundo a expresso de Horton,

    articular os feixes de oposies, batizando-os com os grandes significantes que esmagam m a

    diversidade efetiva que corta por dentro e por fora os grupos humanos. Essa operao gera

    igualmente uma espcie de plasticidade que ora permite situar-se sobre um plano de abstrao

    muito elevado (ns/eles), ora sustentar que as oposies que se postula so muito concretas

    (EUA/Brasil, frica/Amaznia) -- passando-se de um plo a outro atravs de uma srie de

    intermedirios como complexo/simples, moderno/tradicional, escrita/oralidade,

    estrutura/amorfismo e assim por diante.

    A sobrecodificao das diferenas a transformao da diversidade cultural em oposio, em

    uma forma bem particular de oposio, aquela que Trubetzkoy qualificou de privativa: uma

    particularidade comum que est ausente ou presente. O estilo contemporneo de fazer a partilha se

    distingue, pois, do evolucionismo -- que postulava sobretudo oposies graduais (uma

    particularidade comum que varia em grau). que se evita a possibilidade de mediaes entre os

    termos, e tudo se passa como se a evoluo da humanidade cujo pice era representado pelo ns

    (Ocidente, escrita, cincia ou igualdade) tivesse se historicizado, quando, na verdade, se substituiu

    uma teleologia otimista por um fatalismo histrico. Nossa superioridade no passa de um mero

    acidente17.

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    * * *

    Para concluir -- provisoriamente, claro -- gostaramos de abordar duas questes. A primeira,

    clssica, at que ponto a antropologia estaria irremediavelmente comprometida com a partilha.

    No acreditamos nisso. Pensamos, antes, que a antropologia apenas oferece um terreno adequado

    para o desenvolvimento dos grandes divisores. E sugeriramos a existncia de uma analogia entre a

    relao destes com a antropologia e aquela que, nas sociedades capitalistas, os mitos estabelecem

    com a linguagem. Segundo Roland Barthes, esses mitos so uma espcie de vrus que,

    incorporando os prprios recursos da linguagem, nela provoca uma hemorragia do sentido.

    Tambm os grandes divisores se apropriam dos recursos da antropologia, produzindo, por seu

    intermdio mesmo, uma laminao etnogrfica. E assim como a linguagem s pode abrigar esses

    mitos porque apresenta predisposies, a antropologia abriga dispositivos que apresentam riscos.

    Em primeiro lugar, a distino entre etnografia (ou descrio) e antropologia (ou teoria).

    Seria preciso abandonar definitivamente preconceitos que supem que quanto maior a amplitude da

    realidade coberta por um conceito, mais cientfico ele , ou que a produo de conceitos passe

    necessariamente pela perda etnogrfica. Seria preciso admitir que a etnografia no um simples

    meio para a antropologia, uma vez que isso s lhe d ares de cincia ao preo de uma perda

    etnogrfica, ao preo de generalizaes mais ou menos fceis e vazias.

    Em segundo lugar, comparao e generalizao produzem fenmenos empobrecidos que

    passam, facilmente, por constantes, gerando o impressionismo de segunda categoria que uma

    das condies e um dos resultados dos grandes divisores. da que resultam, simultaneamente, os

    universais e as partilhas: sempre haver algo em ns que no pode ser dissolvido na natureza

    humana; nunca haver nada entre eles que parea suficientemente especfico para no se apagar

    na identidade de todos eles. no mesmo lance em que ns mesmos incorporamos essa identidade

    empobrecedora e empobrecida (feita de coisas unidimensionalizadas como reciprocidade,

    hierarquia ou oralidade), que nos distinguimos deles (os que ignoram a mercadoria, o

    indivduo, a escrita ou a cincia).

    A segunda questo diz respeito, claro, etnologia das sociedades indgenas e

    antropologia das sociedades complexas -- e ao futuro. O pluralismo que sustentamos aqui no

    implica, evidentemente, a eliminao das comparaes. preciso, contudo, que elas estejam

    submetidas a duas condies. A primeira, sobre a qual Lvi-Strauss h muito tempo j chamava a

    ateno, no supor que a comparao que funda a generalizao. Ao contrrio, somente no

    aprofundamento da riqueza das singularidades que o projeto comparativo pode ganhar um sentido.

    Em segundo lugar, o pluralismo estimula as comparaes, mas exige que o confronto seja efetuado

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    entre prticas e concepes reais e precisas, isoladas a partir do estudo etnogrfico minucioso de

    qualquer sociedade.

    Essa , cremos, a condio para o cumprimento da mais interessante das promessas que nos

    fazem quando comeamos a estudar antropologia: a reconverso de nosso olhar, a possibilidade de

    atingir pontos de vista outros atravs de outros pontos de vista. Nesse sentido, pensamos que esta

    Mesa representa um passo prvio na direo de uma colaborao substantiva entre pesquisadores

    que desejam escapar tanto dos limites impostos pelas falsas partilhas sociais e disciplinares, quanto

    daqueles suscitados pela tendncia bem real de compartimentalizao do saber.

    Gostaramos, assim, de terminar com essa espcie de paradoxo que h em torno da distino

    entre antropologia das sociedades complexas e a outra antropologia. Quando se diz sociedade

    complexa, muitas vezes o que realmente se designa o que escolhemos no estudar: o pano de

    fundo de onde destacamos um objeto que no fundo muito simples, mas cuja simplicidade resulta

    apenas de nossa prpria opo por nos determos sobre uma nica de suas dimenses. Assim, com

    grande frequncia, os estudos etnogrficos em sociedades autodenominadas complexas ou

    modernas implicam objetos etnogrficos bastante simples quando comparados com certos objetos

    etnogrficos pertencentes s sociedades que est fora de moda chamar de simples18. Considerando-

    se isso, a questo se a complexidade das sociedades assim designadas algo mais do que a

    consequncia da maneira como se faz etnografia (incluindo-se o trabalho de campo). Por si

    mesmas, as sociedades no so nem simples nem complexas, mas nossas anlises podem construir

    realidades uni ou multidimensionais.