Goldman Grande Divisor
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Como se faz um grande divisor?
(Marcio Goldman e Tnia Stolze Lima)
(Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1999. pp. 83-92)
(Como se Faz um Grande Divisor? Etnologia das Sociedades Indgenas e Antropologia das
Sociedades Complexas. Sexta-Feira 3: 38-45, out. 1998)
Dada sua natureza e inteno, este texto -- apresentado na Mesa Redonda Sobre os Grandes
Divisores: Etnologia das Sociedades Indgenas e Antropologia das Sociedades Complexas,
realizada na XXI Reunio Brasileira de Antropologia, em Vitria (1998) -- exige um breve
esclarecimento preliminar. Com ele pretendemos sobretudo levantar algumas questes cujos
elementos, parece-nos, encontram-se disseminados pela antropologia contempornea. Esses
elementos acham-se to naturalizados que, em geral, no so sequer explicitados, ou, quando o so,
no se costuma imaginar que seja necessrio justific-los.
A prpria idia de realizar a Mesa partiu de um sentimento compartilhado pelos autores deste
texto (um dos quais desenvolve suas pesquisas em uma sociedade indgena e o outro no) com
antroplogos que trabalham em diferentes sociedades14. Todos sentimos que uma espcie de fosso
ameaa separar os estudiosos das sociedades indgenas (os etnlogos, como se costuma dizer)
daqueles que pesquisam as chamadas sociedades complexas. E ainda que atribuindo diferentes
valores a este fato, acreditamos igualmente que essa separao to prejudicial talvez encontrasse
uma de suas fontes na antiga tendncia do pensamento antropolgico em opor ns e eles --
oposio que, h alguns anos, Jack Goody batizou com o nome de Great Divide, e que aqui
traduzimos livremente ora por grande divisor, ora por partilha.
Este texto no pretende, portanto, construir uma anlise detalhada de cada um dos pontos que
levanta, o que nos levaria longe demais, exigindo, na verdade, todo um livro. Pretendemos, antes,
que ele seja uma espcie de manifesto, no sentido de que trata-se de lembrar aos antroplogos
que alguns procedimentos recorrentes em nossa disciplina esto longe de ser bvios e desprovidos
de problemas. O que tentamos fazer foi isolar esses procedimentos, ilustrando-os com exemplos
especficos.
evidente que a questo dos grandes divisores envolve virtualmente a totalidade do saber
antropolgico e que aqui no temos qualquer pretenso exaustividade. No estamos preocupados
com autores, mas com operaes: saber se todos os autores evocados empregam as mesmas
operaes ou se todas as operaes esto presentes em cada um dos autores , para ns, secundrio.
Gostaramos apenas de explicitar que nossa reflexo se apoiou, de uma forma ou de outra,
principalmente na leitura de alguns textos de Roland Barthes, Pierre Clastres, Gilles Deleuze, Louis
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Dumont, Michel Foucault, Ernest Gellner, Jack Goody, Flix Guattari, Robin Horton, Adam Kuper,
Bruno Latour e Claude Lvi-Strauss15.
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Comear lembrando que, ao menos hoje, somos todos contra os grandes divisores pode soar
banal. No entanto, o que significa isso? Como e em que medida se contra? Porque se a
antropologia como um todo contra a Grande Diviso, as razes e as dimenses desta oposio no
so de modo algum consensuais. No limite, pode-se ser contra e realizar um trabalho a favor. isso
o que pode acontecer quando nos posicionamos contra a imagem de uma humanidade dividida
entre ns e eles, seja l o que isso queira dizer, e tratamos de substitu-la por uma oposio,
aparentemente muito mais adequada, entre oral e escrita, por exemplo. Para se traar uma partilha,
no preciso que os objetos sejam como os dois enormes conjuntos ns e eles, os ocidentais e
os outros. Com objetos relativamente menores como oral e escrita, ou ainda mais especficos, como
as noes de tempo linear e tempo cclico, tambm se pode fazer uma partilha. Do mesmo modo,
acreditamos que, em princpio, no impossvel confrontar conjuntos como ns e eles sem
produzir uma partilha. Isso apenas difcil, porque difcil a prpria opo de no pensar em
termos de grandes divisores.
A partilha como o racismo. O fato de sermos contra, de sequer vermos pertinncia na noo
de raas humanas, nem assegura que o racismo no exista nem que algo em nossa conduta no
possa exprimi-lo. preciso admitir que a partilha uma realidade de fato, produzida por uma longa
e sangrenta histria, e que no poderia ser estudada adequadamente sem se levar em conta os
discursos que a prpria antropologia produziu. Pois essa realidade inclui, pensamos, a antropologia.
No que ela esteja irremediavelmente dividida entre uma antropologia dos ndios e uma das
sociedades complexas ou nacionais. Mas no sentido de que a partilha o espao que habitamos, a
fronteira que transgredimos e um certo tipo de linha que traamos. Ela a prpria condio do
projeto antropolgico e de seu exerccio; que seja sua consequncia algo que nos cabe evitar.
Aqui teremos de proceder, contudo, como se uma coisa fosse a partilha como realidade
sociopoltica, e outra os estudos antropolgicos que se dedicam a refletir sobre o que essa realidade
recorta. Nossa ateno estar voltada sobretudo para estudos que parecem trair a inteno inicial do
autor, levando-o a construir o que seriam os verdadeiros fundamentos etnogrficos e tericos da
grande diviso, a traar a partilha supostamente justa. como se nos dissessem: estamos
completamente enganados se pensamos que somos superiores a eles; o que realmente acontece
que a escrita superior ao oral, apenas isso. Ou ento: uma crena pode ser melhor do que outra
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sem que por isso as pessoas que as professam sejam melhores ou piores. Isso nos esclarece sobre a
falsa modstia que envolve os grandes divisores na antropologia contempornea: a grandeza da
escrita e da cincia, esses dois grandes totens da partilha, no significa nossa grandeza. Adiantamos
que a modalidade atual mais proeminente da partilha a hierarquizao das produes humanas
desarticulada da hierarquizao dos humanos. Como se para bom entendedor no bastasse meia
palavra.
Tentemos, pois, mostrar como se faz um grande divisor. Veremos que trata-se de um
mecanismo relativamente simples de produo de assimetrias que realiza uma srie de operaes.
1. Identificao
Em geral, a grande diviso exige uma identificao primeira a fim de estabelecer uma base de
comparao, ou melhor, uma suposta garantia de comensurabilidade. Os adivinhos africanos e os
cientistas ocidentais apresentariam, por exemplo, uma semelhana fundamental, a de aplicarem
uma teoria para explicar e resolver praticamente situaes inquietantes (Horton). Ora, teoria ou
explicao querem dizer coisas muito diferentes nos dois casos, mas isso pouco importa. Sempre
impressionista e analgica, a identificao apela nossa complacncia: para provar a identidade
profunda de dois conjuntos bastaria design-los com o mesmo nome.
A operao de identificao s pode funcionar, claro, a partir de uma concepo prvia dos
elementos a identificar como unidades. Isso revela que o problema dos grandes divisores no se
encontra apenas nas assimetrias que produzem, mas na concepo substancialista daquilo que se
separa. Alm disso, o lado de c da oposio (ns, a escrita, a cincia) aparece sempre
de forma excessivamente singularizada; o lado de l (eles, o oral, a divinao) passa por
um processo de empobrecimento ou laminao. Toda a sua heterogeneidade e densidade so
eliminadas em benefcio de uma concepo unidimensional da diferena.
Ora, pensamos que preciso admitir que no existe uma diferena genrica e invarivel
(simples contraface da identidade), mas modalidades de diferena que diferem entre si. No basta
afirmar que somos diferentes dos outros como eles so diferentes entre si; seria preciso estabelecer,
caso a caso, a modalidade de diferena com a qual nos defrontamos. Em suma, pensamos que a
questo o que, em geral, nos aproxima e/ou distingue dos outros inadequada e no deveria ser
formulada.
2. Sindoque
A segunda operao consiste em fazer com que um conjunto seja representado por alguns de
seus elementos, escolhidos entre aqueles que se opem de maneira mais aguda aos elementos
escolhidos para representar outro conjunto. Por exemplo, afirma-se que nas tradies orais a
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palavra participa da realidade, enquanto nas tradies escritas ela se situa como coisa parte. Com
efeito, existem inmeras evidncias etnogrficas que sugerem a neutralizao, em contextos
bastante especficos, da distino entre signo e coisa. Mas isso no significa que as pessoas
confundam palavras e coisas. Pelo contrrio, revela justamente a existncia de uma diversidade
interna s relaes entre signo e coisa. Que as modalidades de relao sejam contextuais, variando
no interior de uma mesma sociedade e -- por que no? -- nas experincias de um mesmo sujeito,
nada disso importa ao grande divisor.
Em suma, os termos colocados em oposio so tratados como unidades e construdos a partir
de um procedimento que toma a parte (algo que efetivamente ocorre em determinados contextos
e momentos) pelo todo. O que pode, alm do mais, conduzir a um paralogismo extremamente
perigoso: a confuso entre correlao e causalidade.
Assim, indiscutvel que a cincia contempornea exija a escrita -- e o trabalho etnogrfico
de Bruno Latour o prova, ao revelar como, concretamente, se d esta relao. No entanto, sustentar
que a inveno da escrita condio para o surgimento do pensamento cientfico consiste
justamente em operar uma partilha e introduzir um paradoxo: se a escrita surgiu h 4.000 anos, o
que fez com que a cincia tivesse que esperar 3.500 para se constituir? O fato da cincia utilizar a
escrita como meio privilegiado de registro e acumulao de dados e teorias no faz com que esta
seja a prpria essncia da escrita -- que poderia, desse modo, ser oposta da oralidade, definida
como forma fluida e excessivamente mutvel16.
A escrita assume assim o aspecto de uma atividade todo-poderosa, tcnica capaz de produzir
nada mais nada menos que a domesticao do pensamento humano. Ao faz-lo, envia
simultaneamente o pensamento dos outros -- ou seja, daqueles que a desconhecem -- para as
fronteiras da natureza, restabelecendo em um nvel superior um naturalismo do qual
acreditvamos haver nos livrado. Porque pode-se perfeitamente distinguir com cuidado o
pensamento selvagem daquele dos selvagens e simultaneamente fazer com que o segundo
esteja, de forma algo misteriosa, mais prximo do primeiro do que o nosso.
3. Desproporo
Em terceiro lugar, o grande divisor opera com escalas heterogneas, nunca assumidas como
tais. Essa heterogeneidade pode ser de ordem temporal: resultados obtidos em uma investigao da
histria da cincia so contrapostos a resultados da observao etnogrfica dos sistemas de
divinao. Ora, essa diferena entre a perspectiva sincrnica da etnografia e a perspectiva
diacrnica da histria da cincia condena de imediato a comparao. Ou seja, evidente que o
mtodo etnogrfico que determina o carter fechado de sistemas como a divinao; mas tudo se
passa como se esse fechamento fosse uma propriedade inerente a esses sistemas, em oposio ao
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carter aberto da cincia -- que s aparece como tal porque investigada de uma perspectiva
diacrnica. O resultado desta comparao entre realidades to desproporcionais parece deduzir-se
logicamente, no obstante sua coincidncia com os nossos mais profundos preconceitos: a cincia
se aproxima progressivamente da verdade, enquanto o sistema divinatrio se situa a uma
intransponvel distncia dela.
Quanto ao mais, os arquivos etnogrficos indicam efetivamente o que so e como funcionam
diversos sistemas divinatrios. Em contrapartida, o que a cincia? Do mesmo modo, as
sociedades tradicionais costumam ser efetivamente descritas; as modernas lhes so opostas a
partir de um tipo ideal construdo com elementos recolhidos de vrias partes. Em suma: ser que
podemos utilizar resultados que no foram obtidos pelo mtodo etnogrfico -- como aqueles
fornecidos por epistemologias ou mesmo por ideologias -- como realidades equiparveis aos
objetos etnograficamente construdos? No estaramos, nesse caso, simplesmente ampliando um
dos pecados essenciais do evolucionismo social, a comparao descontextualizada. Se quase 100
anos de antropologia foram suficientes para que no mais agssemos assim com as sociedades
primitivas, o mesmo no poderia ser dito em relao s civilizadas: invocamos a escrita ou a
cincia como objetos desvinculados dos contextos concretos em que em que funcionam.
Observe-se ainda que operao de desproporo se revela tambm quando se opem unidades
que pertencem a planos completamente distintos. Pode ser verdadeiro que a igualdade e o
individualismo correspondam a ideologias muito explcitas na sociedade norte-americana;
qualquer anlise etnogrfica razovel revelaria, contudo, que esses ideais no funcionam de modo
to tranquilo no nvel das relaes sociais efetivas. Por outro lado, uma etnografia de certas
dimenses da vida social brasileira pode revelar seu carter hierrquico e personalista. No
entanto, dificilmente encontraramos uma formulao ideolgica clara e bem aceita defendendo
esses princpios e valores. Assim, ao opor o igualitarismo norte-americano e a hierarquia
brasileira no estaramos, na verdade, traando uma diviso entre elementos situados sobre planos
radicalmente distintos.
4. Projeo
A quarta operao do grande divisor a projeo. A partilha oral e escrita implica assimetrias
como presena ou ausncia de estmulo criao; ignorncia ou reconhecimento do indivduo;
saber contextualizado ou descontextualizado (isto , abstrato); a palavra participa da realidade ou
uma coisa parte, o discurso personalizado e circunstancial ou despersonalizado e intemporal,
presena ou ausncia de contradio. Ora, todos sabemos que no difcil inventariar mil textos
escritos sem criatividade, personalizados, circunstanciais e cheios de contradio. Ou, mil falas
orais que exprimem criatividade, coerncia e utilizao dos recursos lingusticos adequados para
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despersonalizar e descontextualizar o discurso, projetando-o em um tempo eternitrio.
A partilha oral e escrita a transposio para um domnio de outra ordem de grandeza (o
conjunto da humanidade) de discriminaes que operamos no nosso dia a dia e que tm suas razes
em nossos sistemas de valores. No entanto, feita a transposio tudo se passa como se as
discriminaes perdessem, como que por encanto, suas razes valorativas.
Alm disso, permanece uma questo capital: por que as sociedades sem escrita so
chamadas a fornecer os materiais necessrios para o estudo da relao entre oral e escrita? Que
sejam sem escrita, no significa apenas e justamente que suas tradies so alheias a esta diviso?
Por comodidade, podemos design-las como tradies orais, mas pedir-lhes que ilustrem o mundo
do oral em oposio ao da escrita parece-nos um procedimento vicioso. Sem dvida, importante
estudar essa relao, mas dever-se-ia procur-la onde ela realmente existe.
A converso de uma distino interna a nossa histria em uma oposio entre tradies
histricas diferentes consiste tambm em uma operao de ocultamento. Tudo se passa como se,
com a inveno da escrita, uma sociedade simplesmente adquirisse uma nova dimenso e uma
potncia inteiramente nova, sem qualquer alterao da dimenso do oral. Como se a potncia
(poltica ou cognitiva) da escrita fosse inerente a ela. Ns nos perguntaramos, antes, de onde vem
essa potncia? Que tipo de pilhagem se efetuou e se efetua, por intermdio da escrita, nas
dimenses da palavra viva? Enfim, ns nos perguntaramos se a pobreza ou impotncia cognitiva
da oral no o resultado dessa pilhagem.
5. Juzo de relao como atributo do objeto
A quinta operao consiste na transformao de um juzo de relao em um atributo do
objeto, como se o fato de ser verdadeira uma proposio como Paulo maior do que Pedro
justificasse tomar o maior do que Pedro ou o menor do que Paulo como atributos de cada um.
Esse colapso entre metodologia e ontologia, para falar como Sahlins, capital.
No h dvida que conferimos uma certa inteligibilidade aos materiais etnogrficos indianos,
por exemplo, quando contrastamos a grande nfase na hierarquia e no grupo que se nos revela ao
contemplarmos esses materiais de um ponto de vista que parece enfatizar a igualdade e o indivduo.
O problema surge quando nos esquecemos do carter relacional e metodolgico desse juzo, e
tomamos o diferencial como atributo do objeto que investigamos. Resulta que a ausncia do
indivduo suscita a idia de uma sociedade onipotente, onde as pessoas esto condenadas a uma
infinita repetio, ou ento a sociedade que aparece como um quase nada, puro espao aberto para
as interaes, desejos e clculos individuais -- o que nos remete ao paradoxo da complexidade que
abordaremos adiante.
A etnologia tambm oferece exemplos de como a comparao entre dois ou mais grupos de
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sociedades engendra abstraes que, em seguida, podem ser tomadas como atributos dessas
sociedades. Comparadas com as sociedades j, que so caracterizadas por diversos nveis de
organizao dualista, inmeras sociedades amaznicas aparecem como amorfas, ou como
sociedades que expulsam a diferena para o exterior. No preciso mais do que um passo para
tomar o amorfismo como uma propriedade dessas sociedades, ou para conferir expulso da
diferena o estatuto de objeto etnogrfico.
Como modelos desse gnero nunca se adaptam bem aos materiais etnogrficos, preciso
imaginar algo como um retorno do recalcado: ora o indivduo irrompe, ameaadora ou
marginalmente, no seio da sociedade; ora a totalidade reaparece, corrompida ou derrisria, entre os
indivduos. Como se sociedade, indivduo fossem coisas em si cuja eliminao s pode ser
ideolgica e parcial, e no noes e artifcios metodologicamente construdos para conferir alguma
inteligibilidade ao que investigamos.
6. Sobrecodificao
As cinco operaes que identificamos (identificao, sindoque, desproporo, projeo e
transformao de um juzo de relao em atributo), aplicadas isoladamente, no constituem um
grande divisor. Para isso, preciso o concurso de uma operao adicional, de sobrecodificao, que
subordina ou comanda as outras. Cabe-lhe compor a sndrome, segundo a expresso de Horton,
articular os feixes de oposies, batizando-os com os grandes significantes que esmagam m a
diversidade efetiva que corta por dentro e por fora os grupos humanos. Essa operao gera
igualmente uma espcie de plasticidade que ora permite situar-se sobre um plano de abstrao
muito elevado (ns/eles), ora sustentar que as oposies que se postula so muito concretas
(EUA/Brasil, frica/Amaznia) -- passando-se de um plo a outro atravs de uma srie de
intermedirios como complexo/simples, moderno/tradicional, escrita/oralidade,
estrutura/amorfismo e assim por diante.
A sobrecodificao das diferenas a transformao da diversidade cultural em oposio, em
uma forma bem particular de oposio, aquela que Trubetzkoy qualificou de privativa: uma
particularidade comum que est ausente ou presente. O estilo contemporneo de fazer a partilha se
distingue, pois, do evolucionismo -- que postulava sobretudo oposies graduais (uma
particularidade comum que varia em grau). que se evita a possibilidade de mediaes entre os
termos, e tudo se passa como se a evoluo da humanidade cujo pice era representado pelo ns
(Ocidente, escrita, cincia ou igualdade) tivesse se historicizado, quando, na verdade, se substituiu
uma teleologia otimista por um fatalismo histrico. Nossa superioridade no passa de um mero
acidente17.
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Para concluir -- provisoriamente, claro -- gostaramos de abordar duas questes. A primeira,
clssica, at que ponto a antropologia estaria irremediavelmente comprometida com a partilha.
No acreditamos nisso. Pensamos, antes, que a antropologia apenas oferece um terreno adequado
para o desenvolvimento dos grandes divisores. E sugeriramos a existncia de uma analogia entre a
relao destes com a antropologia e aquela que, nas sociedades capitalistas, os mitos estabelecem
com a linguagem. Segundo Roland Barthes, esses mitos so uma espcie de vrus que,
incorporando os prprios recursos da linguagem, nela provoca uma hemorragia do sentido.
Tambm os grandes divisores se apropriam dos recursos da antropologia, produzindo, por seu
intermdio mesmo, uma laminao etnogrfica. E assim como a linguagem s pode abrigar esses
mitos porque apresenta predisposies, a antropologia abriga dispositivos que apresentam riscos.
Em primeiro lugar, a distino entre etnografia (ou descrio) e antropologia (ou teoria).
Seria preciso abandonar definitivamente preconceitos que supem que quanto maior a amplitude da
realidade coberta por um conceito, mais cientfico ele , ou que a produo de conceitos passe
necessariamente pela perda etnogrfica. Seria preciso admitir que a etnografia no um simples
meio para a antropologia, uma vez que isso s lhe d ares de cincia ao preo de uma perda
etnogrfica, ao preo de generalizaes mais ou menos fceis e vazias.
Em segundo lugar, comparao e generalizao produzem fenmenos empobrecidos que
passam, facilmente, por constantes, gerando o impressionismo de segunda categoria que uma
das condies e um dos resultados dos grandes divisores. da que resultam, simultaneamente, os
universais e as partilhas: sempre haver algo em ns que no pode ser dissolvido na natureza
humana; nunca haver nada entre eles que parea suficientemente especfico para no se apagar
na identidade de todos eles. no mesmo lance em que ns mesmos incorporamos essa identidade
empobrecedora e empobrecida (feita de coisas unidimensionalizadas como reciprocidade,
hierarquia ou oralidade), que nos distinguimos deles (os que ignoram a mercadoria, o
indivduo, a escrita ou a cincia).
A segunda questo diz respeito, claro, etnologia das sociedades indgenas e
antropologia das sociedades complexas -- e ao futuro. O pluralismo que sustentamos aqui no
implica, evidentemente, a eliminao das comparaes. preciso, contudo, que elas estejam
submetidas a duas condies. A primeira, sobre a qual Lvi-Strauss h muito tempo j chamava a
ateno, no supor que a comparao que funda a generalizao. Ao contrrio, somente no
aprofundamento da riqueza das singularidades que o projeto comparativo pode ganhar um sentido.
Em segundo lugar, o pluralismo estimula as comparaes, mas exige que o confronto seja efetuado
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entre prticas e concepes reais e precisas, isoladas a partir do estudo etnogrfico minucioso de
qualquer sociedade.
Essa , cremos, a condio para o cumprimento da mais interessante das promessas que nos
fazem quando comeamos a estudar antropologia: a reconverso de nosso olhar, a possibilidade de
atingir pontos de vista outros atravs de outros pontos de vista. Nesse sentido, pensamos que esta
Mesa representa um passo prvio na direo de uma colaborao substantiva entre pesquisadores
que desejam escapar tanto dos limites impostos pelas falsas partilhas sociais e disciplinares, quanto
daqueles suscitados pela tendncia bem real de compartimentalizao do saber.
Gostaramos, assim, de terminar com essa espcie de paradoxo que h em torno da distino
entre antropologia das sociedades complexas e a outra antropologia. Quando se diz sociedade
complexa, muitas vezes o que realmente se designa o que escolhemos no estudar: o pano de
fundo de onde destacamos um objeto que no fundo muito simples, mas cuja simplicidade resulta
apenas de nossa prpria opo por nos determos sobre uma nica de suas dimenses. Assim, com
grande frequncia, os estudos etnogrficos em sociedades autodenominadas complexas ou
modernas implicam objetos etnogrficos bastante simples quando comparados com certos objetos
etnogrficos pertencentes s sociedades que est fora de moda chamar de simples18. Considerando-
se isso, a questo se a complexidade das sociedades assim designadas algo mais do que a
consequncia da maneira como se faz etnografia (incluindo-se o trabalho de campo). Por si
mesmas, as sociedades no so nem simples nem complexas, mas nossas anlises podem construir
realidades uni ou multidimensionais.