Fernando Vallejo e o Rio de medellín

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Eu estava numa livraria que costumava frequentar e procurava por autores que eu desconhecia. Há muitos, por isso é espinhoso tentar descobrir um que talvez lhe agrade. Peguei um livro ao acaso. Dei uma olhada na capa e vi, pelo sobrenome, que era de língua espanhola. Por um momento hesitei e cheguei a pensar que se tratasse do poeta peruano César Vallejo. Mas o livro era de Fernando Vallejo, um escritor colombiano. Abri e li um parágrafo que terminava assim: “Como está distante a nossa infância! Os dias, os anos, a vida passaram nos atropelando, como o rio de Medellín que transformaram em esgoto para que, em vez das sardinhas reluzentes de antigamente, leve ao mar, entre os redemoinhos raivosos de suas águas imundas, apenas merda, merda e mais merda” (p. 7). Achei graça. Não da escatologia presente no texto, mas porque me lembrei dos canais de minha cidade. Outrora pessoas nadavam neles. No que fica perto de minha casa, pode-se ver resquícios dessa época nos “casarões” que estão em sua margem. Hoje ele cumpre a mesma função do rio de Medellín. O livro era O Despenhadeiro (Objetiva, 2008). Li o livro. Gostei muito. Ri um bom bocado e lia os trechos mais ácidos para Alana. Resultado: ela me deu de presente A Virgem dos Sicários (Companhia das Letras, 2006), do mesmo Autor. O tom das duas obras é o mesmo: um texto delirante e furioso, um personagem central com fortes características do escritor, tendo como cenário as ruínas de uma Medellín brutalizada pela violência. Em O Despenhadeiro a história gira em torno de uma perda dupla. O protagonista volta à Medellín para cuidar de seu irmão que morre de Aids. Os laços afetivos entre os irmãos vão muito além do parentesco direto: ambos partilharam a infância e a juventude, descobriram sua sexualidade juntos, beberam e se drogaram também juntos. As histórias que conta de suas aventuras, seja em Medellín ou em Nova York não são edificantes. São, ao contrário, histórias que podem tranquilamente fazer com que o leitor não simpatize com seus protagonistas, pelo hedonismo exacerbado, beirando o

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Texto sobre a obra do escritor colombiano Fernando Vallejo

Transcript of Fernando Vallejo e o Rio de medellín

Eu estava numa livraria que costumava frequentar e procurava por autores que eu desconhecia. H muitos, por isso espinhoso tentar descobrir um que talvez lhe agrade. Peguei um livro ao acaso. Dei uma olhada na capa e vi, pelo sobrenome, que era de lngua espanhola. Por um momento hesitei e cheguei a pensar que se tratasse do poeta peruano Csar Vallejo. Mas o livro era de Fernando Vallejo, um escritor colombiano. Abri e li um pargrafo que terminava assim:Como est distante a nossa infncia! Os dias, os anos, a vida passaram nos atropelando, como o rio de Medelln que transformaram em esgoto para que, em vez das sardinhas reluzentes de antigamente, leve ao mar, entre os redemoinhos raivosos de suas guas imundas, apenas merda, merda e mais merda (p. 7).Achei graa. No da escatologia presente no texto, mas porque me lembrei dos canais de minha cidade. Outrora pessoas nadavam neles. No que fica perto de minha casa, pode-se ver resqucios dessa poca nos casares que esto em sua margem. Hoje ele cumpre a mesma funo do rio de Medelln. O livro era O Despenhadeiro (Objetiva, 2008). Li o livro. Gostei muito. Ri um bom bocado e lia os trechos mais cidos para Alana. Resultado: ela me deu de presente A Virgem dos Sicrios (Companhia das Letras, 2006), do mesmo Autor. O tom das duas obras o mesmo: um texto delirante e furioso, um personagem central com fortes caractersticas do escritor, tendo como cenrio as runas de uma Medelln brutalizada pela violncia. Em O Despenhadeiro a histria gira em torno de uma perda dupla. O protagonista volta Medelln para cuidar de seu irmo que morre de Aids. Os laos afetivos entre os irmos vo muito alm do parentesco direto: ambos partilharam a infncia e a juventude, descobriram sua sexualidade juntos, beberam e se drogaram tambm juntos. As histrias que conta de suas aventuras, seja em Medelln ou em Nova York no so edificantes. So, ao contrrio, histrias que podem tranquilamente fazer com que o leitor no simpatize com seus protagonistas, pelo hedonismo exacerbado, beirando o puro e simples exibicionismo. E no entanto Vallejo sempre fala com profunda afeio do seu irmo. A capa da edio brasileira traz a foto a que Vallejo faz aluso nesse trecho:Daro foi o segundo, meu primeiro irmo. Sobra uma foto dele comigo, crianas, que meu tio Argemiro fez. Ele de cachos loiros e um casaco; eu de cabelos lisos com franja e uma camisa listrada dando-lhe um abrao (p.159).Partilharam a vida, mas Fernando est ali apenas para velar a morte do irmo j muito abatido pela doena. Sabe que nada pode fazer e diz:Muitos anos passaram por essa foto, e agora meu irmo est beira da morte. (...) A melhor coisa que poderia acontecer com ele seria morrer. A melhor coisa que poderia acontecer comigo seria ele continuar vivo. No enxergava a menor possibilidade de continuar vivendo sem ele (p. 159).A outra morte a do pai. Mas esta j est apenas na memria. Passou-se apenas um ano entre uma e outra. No vou citar aqui a passagem bela em que Vallejo declara seu amor pelo pai falecido. No gosto de estragar a leitura de ningum.Em A Virgem dos Sicrios, mais uma vez a morte ronda toda a histria. E no poderia ser de forma diferente: o romance gira em torno da relao amorosa entre o protagonista um professor que escreveu um importante trabalho sobre gramtica, exatamente como Vallejo e seu namorado, Alexis, que um jovem sicrio, um matador de aluguel. Disse acima que ri quando li os romances. Algum pode perguntar: o que h de engraado em dois livros nos quais, em um, se relata a morte do pai e do irmo e, em outro, se retrata o mundo dos assassinos de aluguel? A resposta simples: nada. E exatamente isso que escapa queles que criticam Vallejo por suas frases demasiadamente cidas. Tais frases so laterais no livro. No so realmente importantes, embora cumpram um papel no estilo do Autor. Li um crtico que acredita que essa acidez puramente premeditada, feita sob medida para cativar um certo pblico. Assim, ela seria vazia de contedo. Vallejo seria uma espcie de boca-suja de salo, um bom companheiro para os ndios de butique e revolucionrios de salo, todos herdeiros tardios dos rebeldes sem causa. No preciso lembrar que, ao contrrio de seus pares, Vallejo no est no poder. E isso aponta para o problema com a crtica. Tudo funciona como se o Autor no devesse utilizar de sua linguagem, de seus vituprios, porque ele ou est criticando o que no deveria ser criticado, ou ento est criticando de forma errada o que deve ser criticado. Talvez por isso outro de seus crticos o chama de filho mimado da Colmbia, da Louca, maneira como Vallejo se refere sua me. Valeria a pena tomar um trecho como exemplo e verificar se a crtica faz sentido. Assim, a situao a que se segue morte do pai. Morto, deve ser enterrado. Vallejo passa ento a comparar a maneira como se procede no Mxico maneiro como funciona a Colmbia. Assim, na Colmbia no se criavam problemas demais para realizar um enterro: Nisso a lei ali era bastante humana, compreensiva. Se no deixava viver, ao menos deixava morrer (p. 117). Em poucas palavras, mas em termos bem irnicos, Vallejo traa um retrato do descaso presente em uma sociedade brutalizada. Claro que para perceber isso, a leitura do que precede no romance importante. Da passa ao Mxico, onde as coisas so bem mais atravancadas (p. 118). Assim, como a regulao mais rigorosa, a forma usual de fazer um simples enterro acontecer (mas o enterro apenas um exemplo de como tudo funciona) subornar algum. E aqui um trecho do estilo de Vallejo:E se quiser crem-lo tem de comprar o caixo. Enfiam o morto no caixo e logo tiram de novo para queim-lo em plo. E o caixo? O que acontece com o caixo? Bom, se no quiser levar para casa para us-lo como cama, voc o doa aos pobres e o deixa para a funerria (p. 118).Todo o problema est em que a funerria no o doa aos pobres. E o que faz o governo mexicano diante desse abuso? Envia um funcionrio que nada vai fazer, a no ser receber a sua propina. A farsa a constante. Mas a farsa no de Vallejo, mas do que ele descreve. O sarcasmo, a zombaria no dele, mas do que teimosamente escondido atrs de prticas supostamente eticamente corretas. Sem perder tempo com o politicamente correto, Vallejo vai direto ao ponto da forma mais curta e cida possvel. O mais importante o retrato muito pessoal que o autor traa de sua cidade e da Colmbia. E por ser pessoal importante que faa uso de sua linguagem, de sua maneira de se expressar. Alis, um dos seus objetos de escrnio justamente o politicamente correto. Ele provoca e, pelo visto, alguns crticos mordem sua isca.Fernando Vallejo exagera na ironia, mas no olha apenas para o seu prprio umbigo, como um menino mimado, como sugere o um dos crticos que citei acima. Talvez por isso, ao contrrio de seus protagonistas que sempre terminam as histrias abandonando Medelln ao seu rio imundo, ele sempre volte a ela em sua literatura. A descrio que faz dela no nem um pouco lisonjeira, mas bem melhor isso do que aquelas canes bobas que entoam loas terra natal.