Experiências de Ensino e Prática Em Antropologia No Brasil - Fátima Tavares, Simoni Lahud Guedes,...

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    Andr Gondim do Rego

    O Trabalho do Antroplogo no Ministrio Pblico Federal

    e outras consideraes sobre a articulao entre o Direito e a Antropologia

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social daUniversidade de Braslia, em cumprimento sexigncias para obteno do ttulo de Mestreem Antropologia Social.

    Orientador: Prof. Dr. Lus R. Cardoso de Oliveira

    Universidade de Braslia

    Instituto de Cincias Sociais

    Departamento de Antropologia

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Fevereiro de 2007

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    Andr Gondim do Rego

    O Trabalho do antroplogo no Ministrio Pblico Federal

    e outras consideraes sobre a articulao entre o Direito e a Antropologia

    Aprovada em 05 de maro de 2007.

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Lus R. Cardoso de Oliveira (UnB)(Presidente)

    Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (UnB)(Examinador)

    Prof. Dr. Henyo Barreto Filho (IEB)(Examinador)

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    A Seu Fernando e Dona Nazar, dedico.

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    Agradecimentos

    Agradeo antes de tudo a meus pais, irmos e sobrinhos pela compreenso e apoio

    incondicionais, pelos sorrisos, abraos e tudo mais que o distanciamento estranha e renova.

    Igualmente as minhas tias, tios, primas e primos que me acolheram e facilitaram

    tanto minha estadia nesta cidade.

    A Antnio, Clcio, Tlio, Ricardo, e Wagner por toda a histria que representamos.

    A todosos amigos do curso de Cincias Sociais da UFPB, pois no caberiam aqui.

    Especiais a Gonzaga, Diego, Bel, Ricardo, Chris, Paulo e Manu.

    Ao grande amigo e eterno mestre Andrea Ciacchi.

    A todos os companheiros da Katacumba. Especiais a na Lcia, Pri, Joo Marcelo,

    Di Deus, Marcel, Roder e Moiss.Um todo especial quela que tornou tudo mais suave, alegre e confortante: Soninha.

    Aos antroplogos do Ministrio Pblico Federal em Braslia pela disposio em

    colaborar. Especiais a Emlia.

    s procuradoras que se dispuseram neste atendimento. Especiais a Ela Wiecko.

    Ao professor Lus Roberto por toda pacincia e compreenso.

    Aos demais professores e funcionrios do Departamento de Antropologia da UnB.

    Especiais a Paul Little, Rosa e Adriana.

    Aos professores Henyo Barreto e Roque Laraia pela aceitao em discutir as idiaspropostas neste trabalho.

    Ao CNPq que apia minha pesquisa acadmica desde a graduao.

    A tudo e todos que conspiram para que a jornada do conhecimento seja cada vez

    mais crtica e democraticamente til.

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    ResumoEsta dissertao discute caractersticas da articulao disciplinar entre o Direito e aAntropologia a partir do ponto de vista dos antroplogos. Para esta caracterizao procuroidentificar a maneira como estes profissionais percebem seu trabalho em meio ou pelocontraste com o trabalho dos juristas; as dificuldades e virtudes que atribuem a esta relao

    disciplinar; e em que sentido pode ser dito antropolgico o produto desta interao. Asrespostas a tais questes partem da discusso sobre autores que ajudaram a consolidar edesenvolver a Antropologia em relao ao estudo do direito, bem como do debate desituaes onde uma aplicao do conhecimento antropolgico foi demandada

    juridicamente. Em seguida, a polmica sobre a produo de laudos antropolgicos emprocessos judiciais, que marcou o contexto brasileiro do ltimo quartel, analisada a fimde delinear alguns dos contornos dessa articulao disciplinar em nosso pas. Por fim,discuto o trabalho dos analistas periciais em Antropologia do Ministrio Pblico Federalno sentido de identificar a maneira como esta articulao se apresenta nesta instituioespecfica. Como concluso possvel dizer que esta articulao jurdico-antropolgica secaracteriza por interaes terico-prticas cuja resistncia entre os campos disciplinaresaumenta na mesma proporo em que tais interaes se tornam mais efetivas e

    reconhecidas como necessrias, configurando o que chamei de uma afinidade relutanteentre estes campos.

    Palavras chaves: antropologia jurdica; laudo antropolgico; analista pericial emAntropologia.

    AbstractThis dissertation examines some characteristics of the disciplinary articulation betweenLaw and Anthropology from the anthropologists point of view. Toward thischaracterization, I seek to identify the way these professionals understand their worksproduced with jurists or in contrast with jurists activities; the difficulties and virtues theyattribute to this disciplinary relation; and in what senses the product of this interaction isanthropological. The answer for those questions arise from discussions among authorswhich helped consolidate and develop Anthropology in regard to the study of law, as wellas from debates over situations in which some application of anthropological knowledgehas been juridically required. Following that, I discuss the polemic on the elaboration ofreports by experts in Anthropology in legal procedures, which characterized the Braziliancontext in the last 25 years, in order to delineate some outlines from that disciplinaryarticulation in the country. At last, I examine the works done by analysts experts inAnthropology and employees of the Brazilian Ministrio Pblico Federal , in order toidentify the ways in which this articulation is displayed in this specific institution. I thenconclude that these jural-anthropological articulations might be characterized bytheoretical-practical interactions and also by resistances between the two disciplinaryfields, which increase proportionally to the effectiveness and to the recognition of thenecessity of this interaction. Thus, I call such articulation reluctant affinity.

    Key words: jural anthropology; reports of experts in Anthropology; expert analyst inAnthropology.

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    Sumrio

    Agradecimentos

    Resumo/Abstract

    Introduo .................................................................................................................... 01

    Captulo I Feitos um para o outro...: o Direito e a Antropologia..................... 16

    1.1 Sobre encontros e desencontros disciplinares........................................................ 17

    1.2 Pluralismo, hegemonia e os caminhos atuais da articulao disciplinar .............. 24

    1.3 Testemunho e interpretao: o antroplogo como perito...................................... 37

    1.4 Em defesa dos direitos nativos: a advocacia antropolgica.................................. 48

    Captulo II Articulaes jurdico-antropolgicas no contexto brasileiro........... 59

    2.1Antropologia e Direito no Brasil: introduo a uma histria recente................... 60

    2.2O ndio e o direito: compartilhando conhecimentos e desafios............................. 68

    2.3O Seminrio de 1991 e o inter-estranhamento disciplinar..................................... 74

    2.4A Carta de Ponta das Canas e o reconhecimento da in-tensidade do dilogo...... 83

    Captulo III O Trabalho dos analistas periciais em Antropologia do MPF ....... 90

    3.1 O MPF e seus antroplogos.................................................................................... 913.2Da falta de cadeiras a um lugar mesa: construindo o espao de atuao.......... 98

    3.3Articulao: teoria e prtica de uma interdisciplinaridade................................... 105

    3.4 Olhar, ouvir e... dar parecer? Do trabalho do antroplogo no MPF................... 112

    3.5 O Antroplogo, o analista pericial e a academia................................................... 124

    Consideraes Finais................................................................................................... 133

    Referncias bibliogrficas.......................................................................................... 136

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    Introduo

    ____________________________________

    Olhar, ouvir, escrever... trs etapas do processo de apreenso dos fenmenos

    sociais que, apesar de no serem exclusivas da Antropologia, Roberto Cardoso de Oliveira

    (1998) entende como atos desde sempre comprometidos com o horizonte prprio dotrabalho do antroplogo. no itinerrio acadmico, jornada pela qual o aspirante a tal

    mtierapreende a idia e o valor da relativizao e da observao participante, que h

    todo um disciplinamento dessas faculdades. O processo atravs do qual a alteridade1,

    disciplinadamente vista e ouvida no estando l do campo de pesquisa, inscrita via um

    exerccio de pensamento que se realiza no estando aqui da academia, em presena e sob

    o escrutnio permanente da argumentao interpares, envolve uma dialtica que, sendo

    prpria empresa antropolgica, confere toda uma especificidade a este conhecimento da

    diversidade das relaes scio-culturais sendo este, certamente, seu fim por excelncia.Mas o que acontece com estas audies e olhares, e, principalmente, com este

    exerccio do pensamento que a escrita do antroplogo, quando o frum acadmico e os

    colegas de profisso no mais configuram, sozinhos, os interlocutores, interesses e formas

    de sua argumentao? Em verdade, j no esteve tal conhecimento, historicamente, assaz

    articulado com outras formas de saberes e prticas? No foram seus produtores solicitados

    a falar ou agir em instncias com vises de mundo em tudo diversas da acadmica? Se

    sim, como tal conhecimento se relacionou com estas outras instncias? Pode ser dito ainda

    antropolgico o produto desta interao? Esta dissertao pretende ser uma pequenacontribuio na indicao de caminhos que ajudem a responder tais questes, e isto, numa

    direo muito especfica: a da articulaoentre os camposdo Direito e da Antropologia.

    1Alteridade esta que com o tempo deixou de ser somente to radical quanto a indgena, para tambm estarem contato com a sociedade nacional como os ndios misturados, conviver de maneira prxima comoos grupos urbanos, e tornar-se mesmo mnima diante dos colegas de profisso (Peirano, 1999), como ocaso deste estudo.

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    Aventurando-se nesta direo, o objetivo do trabalho discutir as caractersticas

    desta articulao jurdico-antropolgica na perspectiva da Antropologia, e isto num duplo

    sentido: tanto seu olhar e ouvir so disciplinados por esta, como a alteridade focada o

    prprio trabalho do antroplogo. De maneira mais especfica, trata-se de compreender a

    produo do conhecimento antropolgico em seus relacionamentos, ora intensos, s vezes

    implcitos, com um saber que, diferente deste, profundamente imerso em, e voltado a

    questes de ordem prtica, e pelas quais desempenha um papel fundamental na ordenao

    simblica da sociedade, e, dessa forma, no seu senso de justia.

    Por sua vez, as situaes em que ocorreram tais relacionamentos e que so aqui

    tomadas como referncia dizem respeito tanto a uma perspectiva particular da histria da

    disciplina desde a sua constituio no final do sc. XIX at os dias atuais, como ao

    contexto poltico e jurdico que a partir da dcada de 1980 marcou a luta de minoriastnicas por direitos no Brasil. Alm destas duas abordagens mais histricas, tambm me

    detenho, baseado em pesquisa emprica, sobre o trabalho dos antroplogos lotados no

    Ministrio Pblico Federal. Sendo o problema que d o ttulo dissertao, na discusso

    deste exerccio profissional procuro indicar como as caractersticas evidenciadas nos

    contextos anteriores se apresentam a de maneira ainda mais contundente.

    Com esta finalidade, trs so as perguntas que orientam toda a estrutura do

    trabalho: o que os antroplogos dizem que fazem em meio e/ou pelo contraste ao que se

    faz no campo jurdico? Quais as dificuldades e virtudes que os mesmos identificam nestaarticulao entre os dois campos? E, em que sentido o produto desta articulao pode ser

    dito antropolgico? Na esteira destas perguntas, o destaque dado ao ponto de vista

    nativo, no caso, o dos antroplogos, em relao aos significados desta articulao no

    sentido de entender como ela afeta (ou no) o conhecimento e/ou a prtica da disciplina.

    ***

    Apesar de envolvido em tantas trocas disciplinares, destaco primeiramente que este

    no um trabalho de antropologia do direito. Assim, mesmo que fortemente presente na

    primeira parte da dissertao, as idias suscitadas por esta corrente antropolgicaespecfica so muito mais objetificadas pela anlise que tomadas como artifcios

    analticos. Seguindo outro caminho, a noo bsica que utilizo para me orientar neste

    percurso a de campo, elaborada por Pierre Bourdieu, especialmente quando diz

    respeito ao universo cientfico e jurdico. Entretanto, tambm confronto esta mesma noo

    com uma discusso elaborada por Karin Knorr-Cetina que, quando em sua visita ao

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    laboratrio, encontrou vrios problemas com este espao social relativamente autnomo

    do autor francs, vendo a produo cientfica atravs de conexes transepistmicas.

    A fim de complementar estas idias, tambm exponho as consideraes de Benot

    LEstoile, Federico Neiburg e Lgia Sigaud sobre algumas caractersticas da maneira como

    antroplogos, em particular, costumam avaliar o envolvimento de seu conhecimento em

    atividades prticas, especialmente em relao ao Estado. Todas estas perspectivas so

    acionadas aqui no intuito de precaver-se da dificuldade apontada pelo prprio Bourdieu

    (1990:20-21) quando o objetivo compreender o campo cientfico de que se faz parte:

    O fato de se pertencer a um grupo profissional exerce um efeito de censuraque vai muito alm das coaes institucionais e pessoais: h questes queno so colocadas, porque tocam nas crenas fundamentais que esto nabase da cincia e do funcionamento do campo cientfico.

    Disto isto, inicio apontando que um campo, para Bourdieu (2003b), ummicrocosmo social relativamente autnomo voltado a uma produo cultural especfica e

    constitudo por e como um espao de lutas entre agentes com foras distintas. Exemplos

    disso seriam as artes, as cincias ou o mundo jurdico. Esta relativa autonomia diz respeito

    ao fato de que cada um destes campos regido por uma lgica mais ou menos prpria

    em relao ao macrocosmo social, fazendo com que toda demanda ou ingerncia externa,

    no importa sua natureza, seja sempre refratada ou retraduzida de uma forma

    especfica, configurando uma linguagem irreconhecvel para o leigo (Bourdieu, 2003b:22).

    Dessa forma, a autonomia do campo tanto maior quanto o for este poder de refrao2

    .Esta lgica, por sua vez, estruturada (conservada ou transformada) pela luta

    permanente entre os agentes do campo. A fora de cada agente (que podem ser indivduos

    ou instituies) nestas lutas est relacionada com sua posio na estrutura das relaes

    objetivas, isto , ao seu lugar de fala neste microcosmo. Tal posio conferida pelo

    conhecimento (competncia tcnica) e reconhecimento (crdito), ou seja, pelo capital

    simblico do campo, que so prprios de um agente num dado momento. A posse, maior

    ou menor, deste capital permite a cada indivduo ou instituio entrar no jogo do campo,

    definir ou redefinir suas regras e regularidades, na condio de nunca sair delas(Bourdieu, 2003b). A estas disposies adquiridas pela experincia que habilitam o

    participante no sentido do jogo e que fornecem seu direito de entrada nele, bem como

    as possibilidades estratgicas para sua mudana, Bourdieu (1990) chamou de habitus.

    2Vale notar que para Roberto Cardoso de Oliveira (1998) o produto do conhecimento antropolgico tambm visto como uma refrao dos dados colhidos em campo, devido captao disciplinada que sofrem.

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    Segundo est lgica, o campo cientfico (ou seus subcampos: as disciplinas) seria

    um cujo interesse3est voltado para um trabalho de objetivao da realidade em que as

    regras do jogo so os seus procedimentos orientados terica e metodologicamente

    (Bourdieu, 2003b:33). A luta aqui entre uma ortodoxia que procura conservar a cincia

    colocando-a apenas os problemas que pode resolver segundo critrios estabelecidos, e uma

    heterodoxia que pe em questo tais critrios, ao custo de no poder faz-lo fora da

    lgica de sua doxa, isto , do consenso sobre os objetos da discusso, os interesses

    comuns situados na base dos conflitos de interesse (Bourdieu, 2003a:135).

    J do lado do campo jurdico a concorrncia pelo monoplio do direito de

    dizer o direito, isto , pela interpretao correta dos casos, via os textos, legais (Bourdieu,

    1989:212). Sua luta, sendo estruturada entre tericos (professores de direito) e prticos

    (juzes ou advogados), faz com que este campo opere uma historicizao da norma,adaptando as fontes a circunstncias novas, descobrindo nelas possibilidades inditas,

    deixando de lado o que est ultrapassado ou o que caduco (Bourdieu, 1989:223).

    Entretanto, este campo no deixa de produzir uma linguagem especfica cuja marca, no

    caso, uma retrica da autonomia, neutralidade e universalizao (Bourdieu, 1989).

    Alm disso, dado seu poder de codificao, atravs do qual pe as coisas e os grupos

    sociais em forma e em frmula, este campo oficializa (torna pblico) e homologa

    (assegura o mesmo sentido aos mesmos fatos) as representaes sobre estes grupos,

    caractersticas que lhe concedem uma eficcia simblica sem igual (Bourdieu, 1989).Uma diferena entre estes dois campos seria o grau de autonomia que detm em

    relao ao meio externo a eles. No cientfico, uma vez que sua atividade implica custos

    econmicos, sua autonomia depende tanto de seu controle doxolgico, como do grau

    dessa dependncia econmica. Para Bourdieu (2003b:36) esta condio termina bifurcando

    o capital cientfico em puro (reconhecimento da capacidade tcnica) e institucional

    (relativo a posies burocrticas que o cientista assume permitindo-lhe obter e destinar

    recursos), cada qual conferindo poderes aos seus agentes. A questo a notar que essa

    interferncia, para este autor, sempre um motivo de lamentao uma vez que corrompeo interesse desinteressado da cincia, produzido exclusivamente por sua lgica interna.

    Por outro lado, no Direito, uma vez que sua interpretao dirigida a finalidades

    alheias a sua prpria lgica, essa autonomia intrinsecamente menor. Entretanto,

    justamente isto que abre caminho para que os agentes subordinados dentro deste campo

    3Interesse que desinteressado em relao a um interesse estritamente econmico (Bourdieu, 2003a e b).

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    encontrem os princpios de uma argumentao crtica s lgicas conservadoras que o

    dominam. Como atesta Bourdieu (1989:253), tal crtica se realiza pela historicizao da

    leitura e da ateno jurisprudncia, ou seja, aos novos problemas e s novas formas do

    direito que estes problemas exigem. Neste sentido, diz o autor, tais contestadores

    encontram nas cincias sociais um reforo extremamente eficaz, devotadas que so estas a

    produzirem conhecimento interpelando permanentemente os problemas sociais cotidianos.

    Se verdade que este esboo indica uma srie de contornos para o entendimento da

    singularidade destes microcosmos que so os campos, tambm o que ele deixa

    importantes questes em aberto. Pierre Bourdieu (2003a) desenvolveu sua teoria dos

    campos para superar a dicotomia posta entre internalistas e externalistas sobre o estudo

    da produo cultural, ou seja, os que procuravam explic-la a partir de relaes apenas

    funcionais, e aqueles que a subordinavam a interesses sociais ulteriores s lgicas destaproduo. Alm disso, este autor criticou a viso da comunidade cientfica, e qualquer

    outra, como um espao de simples cooperao em busca de sua verdade, passando a

    consider-lo como um mercado de bens simblicos, onde a produo de conhecimento

    torna-se fruto de um conflito permanente entre seus agentes.

    Entretanto, ao dar tanta nfase estrutura do campo, este autor terminou por no

    envolver em sua discusso uma teoria sobre a interao entre tais microcosmos. A nica

    meno sua que encontrei referindo-se a isto aponta para uma crescente diversidade e

    expanso destes campos no mundo contemporneo. Tal expanso, argumenta ele, fariacom que tambm fossem ampliadas as possibilidades de que surjam verdadeiros

    acontecimentos, isto , encontros de sries causais independentes na prtica dos agentes.

    Ou seja, tais agentes, existindo em meio coliso desta diversidade de campos, teriam sua

    liberdade de estratgia tambm alargada (Bourdieu, 1990:93). E sua discusso para a.

    Uma vez que no so apenas os campos tomados como unidades disciplinares,

    mas tambm, a articulao entre eles que importa neste trabalho, enveredo pelo

    laboratrio para pens-los atravs de suas interaes na produo de conhecimento.De

    fato, Bourdieu no foi o nico que se interessou por tal tema de pesquisa. Na medida emque uma mirada sociolgica sobre o conhecimento foi se consolidando, vrias outras

    abordagens para estudar a formao e produo das reas cientficas foram sendo

    elaboradas4. Desde o final da dcada de 1970 um ramo destes estudos apostou na

    4 O marco terico na direo de uma sociologia do conhecimento pode ser remetido ao trabalho de KarlMannheim (1986) que no incio do sc. XX, percebeu as disciplinas cientficas como perspectivas de ver o

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    observao etnogrfica da manufaturao dos artefatos cientficos, especialmente, mas no

    somente, das chamadas hard science, isto, dentro de sua instncia mais especfica de

    produo: os laboratrios5. Com tal perspectiva estas abordagens vm procurando tornar

    cada vez mais enftico o carter social do conhecimento cientfico e, dessa forma, mais

    explcitas as implicaes polticas daquilo que a cincia produz como verdade6.

    Minha entrada neste nanocosmo que o laboratrio, como j foi dito, ser

    realizada aqui via os argumentos de Karin Knorr-Cetina (1982), uma legtima

    representante desta ltima perspectiva de estudos da cincia. Sua escolha aqui est

    relacionada ao fato de que ela elabora crticas que, em meu entender, afinam a viso de

    Bourdieu. Uma vez que neste ambiente microscpico que pesquisou, ela encontrou no

    apenas cientistas de diversos campos, mas mesmo no cientistas, participando da produo

    do conhecimento, seu argumento que um olhar situado to contextualmente sobre talproduo deve incluir as conexes transepistmicas de pesquisa que so construdas

    dentro de sua investigao (Knorr-Cetina, 1982:103).

    Os estudos da cincia que fundaram a integrao da comunidade cientfica na

    idia do cientista como o homo economicus voltado exclusivamente para a obteno de

    crdito (seja ele estritamente econmico ou simblico), para ela, so inadequados porque

    prevem uma total subordinao destas relaes a tal interesse. Alm disso, a prpria

    concepo de comunidade cientfica como uma unidade profissional em permanente

    colaborao, no laboratrio, mostrou-se irreal. Estas colocaes, diz Knorr-Cetina, derivam

    mundo baseadas em determinaes empricas, procurando ento compreender a gnese dos conceitos e damultiplicidade de relaes entre existncia e validade a fim de justap-las. Exemplos contundentes e maisrecentes a partir de outras orientaes so tanto o trabalho de Michel Foucault (1986) que, circulando pelasfronteiras entre Filosofia e Histria, empreendeu uma arqueologia do saber atravs de prticas discursivasformadoras de grupos de objetos, conjuntos de enunciaes, jogos de conceitos e sries de escolhas tericasque precediam formao das disciplinas cientficas, mas tambm continuavam sustentando-asposteriormente; como, do lado da Antropologia, o de Clifford Geertz (1998a) que, vendo as cincias comosistemas de expresso de significados ou culturas, argumentou ser preciso explor-las por meio de umahermenutica cultural a fim de torn-las inteligveis umas as outras, isto, atravs do trabalho etnogrfico.5Para uma apreenso detida exclusivamente sobre o contedo destes estudos, enquadrados como estudos delaboratrio ou science studies, remeto a Laboratory Life: the construction of scientific facts (1979) deLatour & Woolgar, e a The Manufacture of Knowledge: an essay on the constructivist and contextual nature

    of science(1981), de Karin Knorr-cetina.6Para Bruno Latour (2004) o grande obstculo que congela o discurso pblico e, portanto, uma renovao davida pblica, a existncia, promovida pela polcia epistemolgica, de uma Natureza e uma Cincia,ambas, no singular. Segundo ele, o papel poltico desta viso de cincia tem o fim de tornar impotente a viapoltica ordinria, fazendo pesar sobre ela a ameaa de uma natureza indiscutvel (Latour, 2004:26). Istoporque, desde o mito da caverna platnico, passamos a pensar nossa relao com o mundo atravs de duascmaras, a da cincia e a da poltica, a primeira cuidando de contemplar a verdade muda da natureza a fim defazer calar a confuso e obscuridade da segunda, presente na vida pblica da sociedade, criando umarepartio dos poderes e tornando a democracia impossvel. A soluo apontada pelo autor para esteproblema seria subverter o mito, e assim, nunca entrar na caverna, no crer na existncia destas duascmaras e fazer a sociologia das cincias para ver a sociedade nelas.

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    de uma compreenso que , quase sempre, alheia aos significados envolvidos do contexto.

    Ao contrrio, sua proposta parte de uma mirada emprica sobre a percepo destes

    trabalhos cientficos, onde they should be meaningful in terms of participants contextual

    involvements with a view to this work, and should not be based primarily upon externally

    imposed similarity classifications (Knorr-Cetina, 1982:115). Neste sentido, qualquer

    meno a uma estrutura das relaes entre cientistas precisa ter este respaldo interno.

    Uma vez que o trabalho cientfico do laboratrio atravessado e sustentado por

    relaes e atividades que o transcendem, we learn that theyframetheir scientific work in

    terms of their ex situ involvements. Entretanto, mais que uma estruturao extramuros,

    este trabalho tambm confronta o pesquisador com arenas of action which are

    transepistemic, ou seja, que involve a mix of persons and arguments that do not fall

    naturally into a category of relationships pertaining to science or the specialty, and acategory of other affair (Knorr-Cetina, 1982:117). Assim, no h como dizer que a

    interao entre seus membros so puramente tcnicas, cientficas, ou econmicas.

    Estas arenas transepistmicas, em verdade, esto ao mesmo tempo aqum e alm

    do que os estudos da cincia at ento entenderam como uma comunidade:

    They are smaller in the sense that scientists concerns evolve around a fewcentral persons and arenas of operation which are actualized, transformedand renegotiated in direct or indirect communication. (...) But therespective arenas of transaction point to a larger constituency than thespecialty group in that scientists engage not only scientists from other areas

    of research, but also non-scientists. (Knorr-Cetina, 1982:118)

    Desta forma, estes so mais do que campos onde different games are played at the

    same time by a variety of people, pois implicam um tipo de integrao que no deriva de

    uma lgica baseada num espao social comum. Diferentemente, estes jogos desenvolvem-

    se a partir do que transmitted between agents in a succession of on-going, interlocking

    scenes. Ou seja, the field itself is theoretical in the sense that it cannot be empirically

    identified independently of the social arenas in which the transactions take place (Knorr-

    Cetina, 1982:118-119). Neste sentido, para compreender a natureza destas relaes,

    preciso dar ateno a estas coisas que so transmitidas entre uns e outros.

    Para Knorr-Cetina (1982:119), isto que eles permutam em cada um destes contextos

    so relaes de recurso (resource-relationships), isto , relations to which one resorts or

    on which one depends for supplies or support. A autora faz notar que a questo central

    no que o conhecimento seja tratado como recurso, coisa que trabalhos como os de

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    Bourdieu j destacavam, mas que a produo cientfica seja entendida a partir de

    negociaes que, em cada contexto, constroem e re-atualizam o valor destes recursos.

    Neste sentido, h relaes de recurso tanto no comentrio de colegas que,

    parecendo meras sugestes, indicam oportunidades para capacidades no realizadas de

    uma pesquisa; como tambm na contratao temporria de especialistas feita por

    laboratrios para incrementar sua produo, financiando o contratado em publicaes; na

    seleo que a academia faz dos profissionais que, ela entende, promovero seus interesses

    mais prximos, quando os interesses destes eram as inseres outras que a instituio

    oferecia; em fundaes que utilizam a notoriedade do pesquisador como um thrust para

    justificar suas pesquisas; ou mesmo na escolha das editoras por peritos em temas que o

    mercado demanda. O que todos estes casos demonstram que o valor do recurso nunca

    intrnseco, sendo significado no contexto, isto , ele convertido em cada um destes tiposde relaes de troca (Knorr-Cetina, 1982:121).

    Entretanto, a questo no apenas que esta conversibilidade ocorre a cada nova

    relao, mas tambm que ela se constitui como um contnuo de negociao sobre os

    interesses, as definies e as prprias converses. Ou seja, estes relaes de recurso

    envolvem uma permanente oscilao entre conflito e cooperao, fisso e fuso de

    interesses que so recproca e permanentemente definidos. Por sua vez, a maneira de

    negociar tais interesses nestas arenas transepistmicas se d pela traduo de decises,

    isto , pelo estabelecimento de critrios concernentes aos diversos caminhos da produocientfica e, portanto, que tambm afetam seus alcances.

    Enfim, para a autora todo trabalho cientfico uma construo no sentido de que

    est impregnado de deciso (decision-impregnated) e no apenas seguindo regras

    cientficas de um nico campo. Ele consiste, assim, numa contnua realization and

    thematization of selectivity (Knorr-Cetina, 1982:123) a partir das diversas e permanentes

    negociaes entre lgicas distintas que traduzem os critrios a serem seguidos, e cujas

    escolhas afetam os caminhos de todo trabalho posterior. Dessa forma, ao menos no

    laboratrio, interferncias ou constrangimentos externos ao conhecimento cientficoexistem sempre, mas na mesma proporo com que so negociados.

    Em um outro lugar Bourdieu (2001) aponta que trabalhos como o de Knorr-Cetina,

    apesar de aclararem a especificidade das relaes cientficas em mbitos como o do

    laboratrio, pecam por deixar de situar estes mesmos laboratrios numa estrutura social

    maior, onde ocupam posies especficas de acordo com o capital simblico que detm.

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    Para ele, estas abordagens interacionistas simblicas, uma vez que se limitam ao ponto

    de vista dos atores, no observam a relao que tais vises internas tm com a posio que

    seus produtores ocupam na estrutura do campo, procedimento sem o qual no se vai muito

    longe para uma anlise sociolgica desta produo. Esta observao de Bourdieu no

    mnimo interessante pois inverte os termos da crtica que a prpria autora faz a abordagens

    como a dele.

    O que parece ocorrer aqui, e a prpria Knorr-Cetina tem isto em mente, que h

    uma mudana de nvel na abordagem, onde Bourdieu olha para esta produo a partir de

    uma mirada mais macro, enquanto o estudo de laboratrio torna esta leitura mais fina.

    Com isso tal estudo aponta que os interesses envolvidos, no sendo estritamente

    econmicos, tambm no so definidos apenas segundo a lgica de campos autnomos.

    No que diz respeito a esta dissertao, a noo de campo, tal como em Bourdieu, operante no que diz respeito a uma avaliao das lutas internas ao campo da Antropologia

    para a definio de seu prprio jogo interior: o que vai valer e no vai valer como assunto,

    abordagem e exerccio antropolgico. Entretanto, na medida em que a relao com o

    campo do Direito vai mais e mais impregnando de deciso jurdica a produo

    antropolgica, isto ficando mais evidente no trabalho realizado no Ministrio Pblico, as

    consideraes de Knorr-Cetina vo ganhando tambm importncia.

    Alm disso, no meu entender, para esta ltima autora as epistemes no se

    contaminam neste processo de relacionamento. Ao contrrio, se no configuramimpasses, se enriquecem no confronto permanente com as idias do outro. Isto,

    justamente porque ao serem permanentemente negociadas segundo uma relao de

    recursos (tericos, materiais, institucionais) orientado para a obteno de um fim comum,

    este tambm fruto de negociao, a revelao do fato produzido tem muito mais

    chances de ser reconhecido factualmente pelas diversas vises de mundo participantes.

    Entretanto, preciso destacar tambm que tanto um como outro, quando tratam da

    relao dos campos cientficos com o Estado, este aparece apenas como um financiador de

    recursos e negociando resultados (Hochman, 1994). No sentido de ir um pouco mais alma este respeito, e pensando agora o campo da Antropologia de maneira especfica,

    apresento os apontamentos que trs autores realizaram sobre tal tema no intuito de auxiliar

    estudos que se dedicam ao trato de uma produo antropolgica para alm da acadmica.

    Para Benot LEstoile; Federico Neiburg & Lgia Sigaud (2002) o trabalho do

    antroplogo s se tornou algo possvel porque os grupos humanos primitivos, desde

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    sempre, j se encontravam submetidos ou em processo de submisso aos Estados

    nacionais ou imperiais modernos (LEstoile et al, 2002:9). Esta considerao j coloca tal

    ligao entre a disciplina e a poltica como uma relao de princpio. Tais grupos sempre

    foram para os governos objetos de polticas, sejam estas de preservao, proteo,

    transformao social planificada, ou mesmo represso, todas, cada vez mais com a

    participao efetiva de antroplogos. Neste sentido, so comuns consideraes morais e

    polticas sobre tal participao sob as lentes da denncia e engajamento. A inteno dos

    autores em seu texto exatamente superar tal viso procurando promover uma

    compreenso das diversas relaes sociais implicadas em cada caso concreto.

    Essa viso de denncia e engajamento padeceria do mesmo mal que a

    epistemologia clssica criou entre cincia e poltica, pois sua dicotomia impede a

    observao dos vrios contextos de produo de conhecimento. Isto fica evidente,principalmente, em situaes onde a participao de antroplogos na elaborao e

    implementao de polticas de Estado vem sendo recorrente e as avaliaes deste papel,

    variveis segundo conjunturas polticas e conflitos dentro da prpria disciplina. Neste

    sentido, preciso levar em considerao o carter estrutural e estruturante desta relao,

    bem como as categorias nativas utilizadas na sua reproduo (LEstoile et al, 2002:13). Ou

    seja, uma abordagem que procura articular o que pretendem Bourdieu e Knorr-Cetina.

    Os autores identificam duas posturas polares em relao crena na separao entre

    cincia e poltica dentro da disciplina. De um lado haveria os profissionais que pensam apoltica como um meio para a cincia, onde eles podem agir como cientistas quando

    dentro da academia ou instituies de pesquisa, e como cidados quando participando de

    polticas estatais ou questionando-as a partir de organizaes civis. Tal postura costuma

    utilizar estrategicamente a segunda posio para beneficiar a primeira, atravs da

    converso de financiamentos. O pblico alvo aqui a prpria comunidade acadmica,

    sendo a pesquisa pura posta em oposio aplicada. A segunda postura seria aquela que

    veria a cincia a servio da poltica. Aqui o profissional procura racionalizar a soluo

    dos problemas sociais por meio do conhecimento cientfico, ou fazer pesquisa engajada. Opblico principal passa a ser os homens de Estado, militantes e movimentos sociais,

    sendo o produto final do trabalho polissmico entre as duas reas.

    No entanto, se verdade que tais formas de ver essa atuao so recorrentes,

    tambm o que as concepes de cincia pura e cincia aplicada so reivindicaes

    que aparecem segundo determinadas condies histricas, no contendo nada de absoluto.

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    Corrobora tambm tal viso os modos mais ou menos tpicos de se pensar o Estado

    e a relao dos antroplogos com este. Assim, esta instituio pode ser pensada tanto como

    uma entidade que age no mundo estabelecendo fronteiras, identificando grupos,

    reconhecendo direitos e estabelecendo relaes e hierarquias, como um espao social

    habitado por indivduos que, entretendo relaes de concorrncia e de interdependncia,

    elaboram e implementam polticas que visam administrar populaes ou resolver

    problemas. Ao lado disto os profissionais podem se pensar como cientistas a servio do

    Estado, como cientistas a servio das populaes e grupos cuja definio depende do

    reconhecimento (jurdico) por parte deste Estado, ou como autnomos que crem manter

    uma relao de oposio a ele, mesmo vivendo a suas custas (LEstoile et al, 2002:17).

    Enfim, todas estas possibilidades de arranjo entre o antroplogo e o Estado indicam

    que a definio de seu trabalho como puro, aplicado e a servio de quem e do que,variam bastante, ao mesmo tempo que no pode negar seu vnculo poltico como parte

    interessada nas lutas em torno da definio de Estado, do seu papel e das polticas que ele

    deve levar a cabo (LEstoile et al, 2002:18). Assim, a prpria concepo de antropologias

    nacionais, isto , as formas particulares de como as produes antropolgicas so

    influenciadas por ideologias nacionais (Peirano, 1981) ou estilos prprios (Cardoso de

    Oliveira, 1995)7, aponta para esta relao diferenciada com esta instituio.

    Assim, situar as relaes estruturais em que os antroplogos se encontram ao

    mesmo tempo em que identificar os termos como definem sua prtica, isto, tendo comoreferncia instncias no-acadmicas, pode ajudar a compreender melhor os termos atravs

    dos quais uma antropologia nacional e mesmo institucional construda. Pensando uma

    articulao como a focada neste trabalho, creio que a obteno de um fato negociado,

    como visto em Knorr-Cetina, est muito mais prximo de realizar as pretenses de justia

    de um Direito cada vez mais posto diante de realidades trans-culturais, como tambm de

    promover as preocupaes de nation-building de uma antropologia como a praticada no

    Brasil. Mas isto est aqui para ser discutido.

    ***Antes de ingressar nesta discusso, porm, indico algumas dificuldades com as

    quais me deparei para realizar a pesquisa. Apesar de dois teros do trabalho est baseado

    em material bibliogrfico, a ltima parte refere-se aos dados obtidos atravs de entrevistas

    7Na abordagem epistemolgica deste autor um estilo se apresenta na redundncia de estruturas gramaticaise/ou signos lingsticos compartilhados que conformam excedentes de sentido prprios na disciplina.

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    na Procuradoria Geral da Repblica (PGR), situada em Braslia, com os analistas periciais

    em Antropologia do Ministrio Pblico Federal (MPF)8. Esta pequena digresso

    importante, pois as possibilidades oferecidas pelo trabalho de campo marcam de maneira

    significativa algumas limitaes do que ser aqui exposto.

    Ao ingressar no curso de mestrado um dos meus interesses iniciais j era discutir

    problemas suscitados por prticas antropolgicas fora da academia. Aps quase um ano de

    indeciso compulsria sobre a viabilidade da pesquisa ento proposta9, decidi entrar em

    contato com os antroplogos do MPF. Este primeiro contato foi realizado em novembro de

    2005, atravs de correio eletrnico, dirigido responsvel pela Coordenao de

    Antropologia da 6 Cmara de Coordenao e Reviso (6CCR) da referida instituio.

    Nele esboava, em linhas gerais, minhas inquietaes de pesquisa sobre a possibilidade,

    viabilidade e implicaes de uma aplicao do conhecimento antropolgico, bem comomeu interesse em desenvolver a um estudo sobre tais questes. Como este trabalho atesta,

    esta minha solicitao foi atendida.

    No que diz respeito delimitao dos objetivos na forma como foram aqui

    expostos, este foi um processo de construo permanente realizado pelo confronto de

    idias que iam surgindo a partir das discusses nas disciplinas, na produo de seus

    trabalhos finais, bem como e fundamentalmente com o dilogo realizado no campo. Neste

    sentido, a participao, no segundo semestre de 2005 nos cursos de antropologia do

    conhecimento e de antropologia e direitos humanos, bem como no de antropologiajurdica j no final do mestrado, representou um aporte fundamental.

    Em relao pesquisa de campo, apesar de terem sido realizadas duas conversas

    ainda no ano de 2005 com duas das antroplogas da 6CCR, foi apenas a partir do segundo

    semestre de 2006 que tive autorizao de sua coordenao para a realizar a pesquisa. At

    ento a idia era discutir apenas os trabalhos de antroplogos desta cmara da PGR, tanto

    porque os dados ficariam circunscritos, como porque a maior equipe destes profissionais se

    8 Dado que o trabalho de campo s aparece aqui no ltimo captulo, tambm l onde eu descrevo as

    caractersticas do MPF, bem como apresento os antroplogos entrevistados.9No primeiro semestre de 2005 tive a oportunidade de fazer parte de um levantamento scio-econmico,contratado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), com vistas a implantar uma ReservaExtrativista Marinha (Resex) na regio e rea de influncia do Rio Goiana, divisa dos estados de Pernambucoe Paraba. Esta experincia fomentou meu interesse em discutir uma srie de aspectos ligados ao processo denegociao entre as comunidades e rgos envolvidos para a criao da Reserva, mas tambm o papel doantroplogo neste processo, uma vez que ele parecia suscitar novas, e reformular antigas questes sobre aprofisso tanto em termos ticos, como polticos e epistemolgicos. A referida indeciso diz respeito ao fatodo processo de implantao manter-se suspenso por falta de recursos durante quase todo aquele ano, mefazendo correr o risco de no poder lidar com o problema proposto em tempo hbil.

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    encontrava ali (quatro antroplogos). A pendncia dessa autorizao da subprocuradora

    terminou ento postergando os trabalhos nocampo. Neste nterim, passei em reviso parte

    das obras que subsidiam aqui o contedo da segunda parte do trabalho (o contedo do

    primeiro captulo, por sua vez, foi elaborado a partir da disciplina de antropologia jurdica).

    Conseguida esta autorizao em junho de 2006, a questo passou a ser os termos

    em que a pesquisa poderia ser realizada. Meu intuito inicial era poder cotejar os relatos

    com a observao do trabalho dos analistas desde dentro da PGR. Entretanto, dada as

    questes de alta implicao poltica e jurdica em que o MPU atualmente envolvido, seus

    antroplogos acharam por bem obstar minha observao participante a fim de evitar

    qualquer possibilidade de vazamento de informao no previsto. Acertada a condio

    de uma pesquisa baseada em entrevistas e consulta de materiais fornecidos pelos mesmos,

    a dificuldade foi ento conseguir horrios disponveis para realizao destas devido sobrecarga de trabalho dos mesmos.

    Com o fim de iniciar a coleo de algum tipo de dado desta ordem, resolvi solicitar

    uma entrevista com a coordenadora da Procuradoria dos Direitos do Cidado (PFDC), Dra.

    Ela Wiecko, que, por ter coordenado a seo do MP responsvel por questes indgenas h

    poca do primeiro concurso pblico para analistas periciais em Antropologia da instituio

    (1992), aparecia como uma importante fonte de informaes sobre esta incorporao.

    Sendo atendido, realizei esta entrevista, e atravs dela pude fazer contato com os

    antroplogos desta outra instncia da PGR. Comportando dois destes profissionais em seuquadro, foi a que realizei minha primeira entrevista com um analista em Antropologia.

    Este fato, acontecido j em outubro de 2006, um ano depois do primeiro contato,

    fez com que eu deixasse de pr um foco exclusivo no trabalho dos antroplogos da 6CCR

    e estendesse o olhar at a PFDC, mas tambm Cmara de Coordenao e Reviso relativa

    a Meio Ambiente e Patrimnio Cultural (4CCR), que comportava uma nica antroploga.

    Como que por um ato de magia, esta primeira entrevista desonerou um pouco mais os

    antroplogos da 6CCR e consegui ento efetuar, apenas entre outubro e dezembro deste

    ltimo ano, as entrevistas com os sete antroplogos (uma com cada) lotados em Braslia.Para alm das entrevistas com estes antroplogos, porm, aps a mencionada

    conversa com a subprocuradora da PFDC, ter o ponto de vista dos coordenadores destas

    instncias da PGR que continham analistas periciais em Antropologia, apresentou-se como

    uma oportunidade interessante para o trabalho. Entretanto, este intuito foi relativamente

    malogrado dado que a entrevista realizada com a coordenadora da 4CCR, Dra. Sandra

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    Cureau, por questes de agenda, abordou apenas algumas poucas questes, e porque,

    tambm por motivo de agenda, no foi possvel acertar nenhum horrio com a

    coordenadora da 6CCR, Dra. Deborah Duprat que certamente qualificaria muito os

    dados do trabalho dada a maior insero desta cmara nos assuntos antropolgicos.

    O conjunto de questes postas aos analistas periciais em cada entrevista, apesar de

    nem sempre precisas, percorreu os seguintes temas: trajetria acadmica e profissional;

    rotina de trabalho; produtos deste trabalho; compreenso da relao entre profissionais do

    Direito e da Antropologia; e importncia deste trabalho para uma transformao jurdica.

    No caso das procuradoras entrevistadas, a conversa transcorreu basicamente no sentido de

    apontar a importncia do analista pericial para o trabalho em suas respectivas instncias.

    Alm destas entrevistas com procuradores e analistas, entretanto, tive a

    oportunidade de realizar outras duas conversas. A primeira, com um ex-analista queapontou vrias questes sobre o incio deste trabalho na PGR, e outra, por ocasio da 25

    RBA, realizada com a antroploga Manuela Carneiro da Cunha, professora que, pela poca

    do primeiro acordo de cooperao tcnica entre a Associao Brasileira de Antropologia

    (ABA) e a PGR, nos idos de 1986, dirigia a presidncia desta associao. Apesar de ter

    sido uma entrevista rpida, versando sobre o contexto que promoveu tal relao, ela

    iluminou em muito os caminhos da pesquisa10.

    ***

    Em relao estrutura do trabalho o argumento construdo da seguinte forma:No primeiro captulo discutido como os campos do Direito e da Antropologia

    estiveram relacionados desde a constituio de um saber antropolgico no final do sc.

    XIX, tanto em termos tericos como polticos, seguindo atravs de dinmicas diversas, at

    os dias de hoje. Neste sentido, esta parte no chega a configurar uma historiografia da

    disciplina, mas sim uma tentativa bastante modesta na direo do que Mariza Peirano

    (1981) chamou de uma antropologia da antropologia, ou seja, uma observao deste

    processo de articulao como um sistema de conhecimento. D-se um panorama em que

    a questo da justia no foi apenas um objeto, extremamente controvertido, do estudoantropolgico, mas tambm, e de maneira ainda mais marcante, uma dinmica social que

    passou a envolver a prpria Antropologia em seus processos, suscitando nela uma srie de

    novos desafios epistemolgicos e ticos.

    10 Infelizmente, tanto esta como uma entrevista realizada com uma das antroplogas da 6CCR e aquelarealizada com a subprocuradora da 4CCR, tiveram suas gravaes eletrnicas perdidas por problemastcnicos, restando delas algumas anotaes realizadas em caderno de campo.

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    Apontando como estas relaes se reproduzem na expresso que a disciplina

    assume no Brasil, a segunda parte do trabalho concentra sua ateno num mbito temporal

    e espacialmente mais prximo que o do captulo anterior, mas tambm circunstancialmente

    delimitado: os processos, polticos e de expertise, que, envolvendo juristas e antroplogos,

    marcaram, no ltimo quartel, a luta dos povos indgenas e outras minorias pelo

    reconhecimento e efetivao de seus direitos. parte destas lutas, ainda que elas sejam sua

    fonte, estes profissionais se depararam ento com uma srie de questes de interpretao

    do texto legal relativo a tais grupos, construindo um dilogo disciplinar to tenso, quanto

    intenso, e nem sempre mais conciliador que conflituoso. Ainda aqui a base da

    argumentao provm de discusses acontecidas em eventos especficos e que foram

    transcritas em documentos propositivos.

    Esses direitos, uma vez legitimados na assuno do carter pluritnico da naobrasileira pela carta constitucional de 1988, foram postos sob a tutela do Ministrio

    Pblico. Por seu turno, esta instituio, para um melhor enfrentamento das questes

    pertinentes a tal domnio jurdico, a partir da dcada de 1990, passou a agregar em seu

    quadro funcional antroplogos como analistas periciais. explorando os significados deste

    especfico trabalho do antroplogo, agora atravs das falas de seus prprios executores,

    que a persecuo dos caminhos da articulao entre os campos do Direito e da

    Antropologia encontra aqui finalmente pouso. Neste, mais que nos outros captulos, atravs

    de uma avaliao dos processos que tal trabalho envolve, o sentido em que o produto destaarticulao pode ser considerado antropolgico perscrutado e confrontado com o que a

    disciplina produz de maneira mais pura, ou seja, sua produo acadmica.

    Por fim, e maneira de concluso, proponho, a partir do ponto de vista nativo

    abordado nas histrias e fruns diversos que estruturam esta dissertao, compreender essa

    articulao jurdico-antropolgica como a expresso de relaes terico-prticas tanto

    mais resistentes, quanto efetivase demandadasso, sendo esta resistncia a prpria fonte

    da engenhosidade semntica do seu produto. Por sua vez, tal engenhosidade que faz desta

    articulao algo to indispensvel para o aprofundamento dos domnios conceituais daAntropologia edo Direito, mas tambm, e principalmente, para a resoluo criativa dos

    complexos conflitos engendrados numa sociedade cuja pluralidade de vises de mundo

    torna-se cada vez mais reconhecida, efetiva e expansiva.

    Feitas estas consideraes, dou incio ao trabalho falando deste caso de amor

    historicamente conturbado entre os dois campos disciplinares.

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    Captulo I

    Feitos um para o outro...:

    o Direito e a Antropologia

    ____________________________________

    Dada a semelhana entre suas vises do mundo e at namaneira como focalizam o objeto de seus estudos (...)pareceria que advogados e antroplogos foram feitos umpara o outro e que o intercmbio de idias e deargumentos entre eles deveria fluir com enorme facilidade.(Clifford Geertz O Saber Local).

    O comentrio de Clifford Geertz denota que a relao entre os profissionais do

    Direito e os da Antropologia marcada por uma potencial afinidade que, no entanto,

    parece de difcil consolidao. Esta sugerida relutnciaentre reas, a princpio, to afins,

    d o mote para a discusso empreendida nesta dissertao sobre a articulao entre os

    referidos campos, e constitui o ncleo central de toda a argumentao. No presente

    captulo esta articulao ser examinada em contextos estrangeiros diversos e atravs de

    fruns variados, a fim de delinear algumas de suas caractersticas mais comuns.

    O primeiro desses fruns diz respeito prpria formao da antropologia como

    disciplina institucionalizada, principalmente a partir das posies de alguns antroplogos

    anglo-americanos que se dedicaram ao estudo do direito. Em seguida aponta-se como tal

    articulao vem se dando no mundo contemporneo a partir das reconfiguraes que o

    fenmeno jurdico atualmente experimenta, impondo toda uma sorte de novos problemas.Uma terceira parte discute ainda a atuao do antroplogo como testemunha pericial em

    tribunais norte-americanos, enquanto a ltima delas apresenta um conjunto de avaliaes

    sobre a prtica de uma anthropological advocacy. O intuito fornecer uma base

    comparativa que de alguma forma ilumine a discusso de articulaes em algo anlogas no

    Brasil, tema dos prximos captulos.

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    1.1Sobre encontros e desencontros disciplinares

    Fazer uma discusso profunda sobre como o campo do direito esteve articulado

    com a disciplina antropolgica, tanto na sua constituio, como em seu desenvolvimento,

    por si s exigiria o flego para a produo de uma dissertao inteira. Apesar deste no ser

    o objetivo desta seo, entendo ser importante fazer aqui uma breve sntese de como essa

    articulao esteve presente nos estudos antropolgicos do fenmeno jurdico na forma

    como estes se desenvolveram at imediatamente o ps-guerra.

    A gnese de tal articulao poderia ser identificada na segunda metade do sc. XIX

    a partir das escaramuas entre Sir Henry Maine, professor de jurisprudncia e advogado no

    contexto britnico, e Lewis Henry Morgan, tambm advogado e pesquisador das questes

    indgenas nos Estados Unidos; quando, sobre um navio e em algum lugar do Atlntico,ambos discutiram sobre theories of history and social evolution and the impact of these

    theories on democracy versus plutocracy, the position of women, the rights of native

    peoples, and the justification of the exercise of imperialist powers (Nader, 2002:9).

    Em seu The Ancient Law (1861), Maine, a partir de uma concepo de que a

    sociedade primitiva era de uma organizao estritamente patriarcal, elaborou sua idia de

    que o desenvolvimento do direito na histria estava relacionado com as transformaes da

    maneira de se exercer a autoridade, cujo cerne foi a passagem de uma sociedade baseada

    no status para uma baseada no contrato (Pea, 2002; Nader, 2002). As idias contidas emseus estudos, que derivaram de uma perspectiva histrica fundamentada em documentos

    indo-europeus, no guardavam preocupao com os selvagens em sentido estrito. Mas,

    ao situar essa concepo do parentesco primitivo na base de seu esquema evolutivo, ele

    influenciou toda uma linha de pensamento que escalonava as sociedades humanas em uma

    seqncia progressiva de sistemas legais que teriam se desenvolvido gradualmente da auto-

    ajuda para as sanes penais ou compensatrias (Nader, 2002)11.

    Por outro lado, Morgan, que para o estudo da organizao social dos nativos

    americanos se utilizou de categorias do direito, bem como de uma perspectivaevolucionista de seu desenvolvimento, articulou conhecimento com ativismo. Advogado

    de negcios ligados minerao e ferrovias durante a ocupao do oeste norte-americano,

    ao estabelecer relaes mais prximas com os nativos da regio, realizou estudos sobre os

    11Proposta semelhante foi feita por Durkheim em seuDe la division du travail social(1902) onde a distinodas sociedades pela forma de sua solidariedade (mecnica ou orgnica) faria corresponder direitos de tipodiferenciado (respectivamente, o repressivo, e o restitutivo e contratual) (Pea, 2002).

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    direitos de descendncia matrilinear (motivo direto da querela com Maine) e a organizao

    poltica dos iroqueses12. Isto, por sua vez, fez com que se defrontasse com a destruio de

    seus modos de vida pelo avano da industrializao na regio, o que teria marcado

    profundamente seu carter (Nader, 2002). Desde ento, ele passou a advogar pelas causas

    indgenas e tentou posteriormente (sem sucesso) ser encarregado dos Indian affairs

    daquele pas, onde, acreditava, there were wrongs to be righted (Nader, 2002:80).

    Morgan e Maine, como outros intelectuais do sc. XIX, refletiram em seus estudos

    as controvrsias sociais, culturais e polticas que a industrializao norte-americana e a

    expanso colonial promoveram, principalmente ao suscitarem o contato com o outro.

    Isto fez com que muitos advogados, um dos principais grupos de intelectuais da poca, se

    tornassem quase os primeiros antroplogos, cujas idias para pensar o mundo derivavam

    das escolas histrica e evolucionista de pensamento (Krotz, 2002; Nader, 2002). Dessaforma, para a investigao das diferenas entre as sociedades civilizadas e selvagens

    (bipartio, por si s, significativa), o diletantismo era a marca das primeiras pesquisas, e

    os dados que estas recolhiam ainda no eram suficientes para uma empreitada

    disciplinarmente antropolgica. Isto, porm, apenas demonstra o quo imbricado os

    campos se encontravam ento, e como os problemas de que tratavam articulavam

    conjuntamente questes de desenvolvimento, jurisprudncia e alteridade (Nader, 2002).

    No incio do sc. XX, por sua vez, j no marco de uma antropologia

    institucionalizada, apropriaes das idias do jurista americano Roscoe Pound foram feitaspor Radcliffe-Brown e utilizadas para considerar a idia de um direito primitivo. Sua

    viso do fenmeno jurdico como controle social atravs da aplicao sistemtica da fora

    da sociedade politicamente organizada (Radcliffe-Brown, 1973:260), s lhe permitiu

    enxergar no direito destas sociedades primitivas a existncia de sanes.

    Neste sentido, John Camaroff & Simon Roberts (1981:6) apontam que trabalhos

    como os de Radcliffe-Brown, apesar de abandonarem o trato do direito primitivo como

    um mero suplemento na histria legal do ocidente, ao permanecerem dominados por suas

    concepes jurdicas, trataram-no como algo separado de outros fenmenos sociais e, porisso mesmo, s podiam perceb-lo como sovereignty, rules, courts, and enforcement

    agencies [that] closely reflects the predominantly imperative and positivist orientation of

    Anglo-American legal theory at that time. Ou seja, alhures, quase nunca viram tal direito.

    12 Tratando destas questes Morgan escreveu System of consanguinity and affinity of the human family (1870) eAncient society or researches in the lines of human progress(1877).

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    O contraponto viria com a incisiva crtica que Bronislaw Malinowski promoveu em

    seu Crime and custom in savage society (1926). A partir de sua pesquisa de campo nas

    ilhas Trobriand, onde recolheu dados em primeira mo, este autor confrontou tacitamente

    perspectivas como a de Radcliffe-Brown. O argumento malinowskiano, por um lado,

    refutou a idia de que um direito primitivo s contivesse sanes criminais

    demonstrando como entre os melansios havia sim regulamentaes civis; por outro,

    apontou que o ordenamento social antes de tudo dado por uma rede de reciprocidades,

    trocas e obrigaes vinculantes, isto , um conjunto de fenmenos envolto e no parte da

    cultura. Com isso ele incendiou o debate sobre a existncia ou no do direito em quaisquer

    sociedades humanas.

    Tambm vale destacar que Crime and custom..., alm de fazer parte da obra

    revolucionria de Malinowski

    13

    , sinaliza bem uma faceta da antropologia praticada nosdomnios do imprio britnico durante mais de meio sculo: seu comprometimento,

    implcito ou explcito, com a expanso colonial. Compreender os sistemas de controle

    social nativo, afinal, era uma tarefa no to-somente da mais alta importncia cientfica e

    cultural, como no deixa[va] de ter interesse pragmtico, pois pode[ria] ajudar o homem

    branco a governar, explorar e aperfeioar o nativo com resultados menos perniciosos para

    este (Malinowski, 2003:8)14.

    As implicaes do debate entre Radcliffe-Brown e Malinowski permaneceram

    extremamente significativas para o estudo antropolgico do direito subseqente. Camaroff& Roberts (1981), neste sentido, apontam que ambos marcam a gnese do contraste entre

    os dois paradigmas que dominaram tais estudos. Assim, enquanto o primeiro representaria

    o paradigma centrado nas regras (rule-centered paradigm), o segundo deu vazo ao que se

    chamou de paradigma processual (processual paradigm)15. Entretanto, apesar de suas

    divergncias, a perspectiva estrutural-funcionalista que ambos influenciaram e que moldou

    13 O trabalho mais conhecido de Malinowski neste sentido The Argonauts of the Western Pacific: anaccount of native enterprise and adventure in the archipelagoes of Melanesian New Guinea (1922), quemarca a relevncia do trabalho de campo para o conhecimento antropolgico. Crime and Custom, como a

    grande maioria de seus trabalhos posteriores, est baseada na mesma pesquisa entre os melansios. Se naprimeira das obras desenvolveu mais profundamente as referidas relaes de reciprocidade, apenas nasegunda apontaria suas implicaes para a discusso do controle social.14Adam Kuper (1978:134) aponta que na poca subseqente a Malinowski as questes mais repetidamentetratadas nesses estudos [aplicados] so a posse da terra, a codificao das leis tradicionais, sobretudo alegislao matrimonial, migrao da mo-de-obra, a posio dos rgulos [chefes tribais africanos] (...) eoramentos domsticos, confirmando o grande interesse no temapela administrao colonial.15 Cardoso de Oliveira (1989; 1992) fala em abordagem normativista, caracterizada por uma excessivanfase no poder que as normas teriam em determinar a definio dos resultados das disputas; e abordagemprocessualista que, ao superestimar a importncia das relaes de fora, concentra a definio destasresolues no poder relativo das partes e suas respectivas capacidades de manipulao.

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    fortemente o trabalho dos antroplogos ingleses da primeira metade do sculo, ao dar

    pouca ateno s questes de mudana social, criou srias limitaes para a compreenso

    dos sistemas de justia das sociedades estudadas, principalmente no que diz respeito

    influncia da ordem colonial no todo da vida social nativa, na medida em que esta ia se

    reproduzindo e conseqentemente se transformando no tempo16.

    Esta limitao tambm seria um dos motivos pelos quais a administrao colonial

    via com desdm a contribuio dos antroplogos. O desencontro entre tal perspectiva

    antropolgica e os interesses coloniais se tornou ainda mais efetivo a partir da dcada de

    1930, quando ocorreu a criao de vrios institutos, como o Rhodes-Livingstone, voltados

    promoo de pesquisas sobre o desenvolvimento das colnias17. Estes administradores,

    treinados que eram no evolucionismo (em grande medida, tambm alimentado por uma

    dada antropologia), criam estar civilizando tais povos, e esta atitude no se coadunavacom um funcionalismo antropolgico que era relutante em favorecer qualquer mudana18.

    Tudo isso indica algo sobre como a perspectiva antropolgica ao ajudar a produzir

    concepes, no caso, do que sejam os sistemas de justia nativos, influenciam, direta ou

    indiretamente, na maneira como a sociedade que se apropria desse conhecimento governa a

    vida daqueles que ela estuda e domina; mas tambm, de como estes contextos histricos de

    forma sinuosa, seno prontamente, interferem nos temas e objetivos desse saber.

    Ainda na primeira metade do sc. XX, s que desta vez do outro lado do Atlntico,

    o trabalho de cooperao profissional que produziu The Cheyenne Way: conflict and caselaw in primitive jurisprudence (1941), tambm uma referncia importante aqui. Karl

    Llewellyn e E. Adamson Hoebel, seus autores, eram professores, respectivamente de

    direito e de antropologia nos Estados Unidos. Com esta obra eles no apenas

    operacionalizaram o estudo do direito ao reduzir sua unidade de anlise (demasiadamente

    ubqua na herana de Malinowski) a fruns pblicos envolvendo discusses sobre justia

    circunstncias especficas de resoluo de conflitos que requeriam solues, os trouble-16 O comentrio de Malinowski em Crime and Custom... de que a ingerncia colonial sobre a prtica da

    feitiaria, uma das formas de administrao da justia entre os trobriandeses, estaria levando anarquia e atrofia moral e, com o tempo, extino da cultura e da raa (2003:74) significativo sobre a limitao detal perspectiva para uma compreenso que no seja apenas negativa em relao mudana.17Adam Kuper (1978) bem demonstrou que o potencial de aplicabilidade que os antroplogos britnicosviam em seus trabalhos estava mais relacionado com a obteno de fundos para pesquisa, do que com usosefetivos pelo governo colonial. Alm disso, os administradores olhavam com desconfiana estes que queriamser os melhores conhecedores dos nativos, e que muitas vezes, ficando do lado destes, iam de encontro aosinteresses coloniais.18 Sobre este ponto comenta ainda Kuper (1978:142): o funcionalismo pode ser visto como uma recusaimplcita de lidar com a realidade colonial total numa perspectiva histrica, e isso foi atribudo situaocolonial, que pode ter inibido ou at cegado o antroplogo.

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    cases , mas tambm elaboraram uma comparao que iluminou no apenas os law-

    ways nativos, mas, principalmente os da sociedade americana, abrindo caminho para uma

    crtica antropolgica mais contundente sobre o prprio direito ocidental atravs de uma

    reforma legal realista19. Em suas palavras...

    What the Cheyenne law-way does for Americans... is to make clear thatunder ideal conditions the art and the job of combining long-range justice,existing law, and the justice of pressures of politics and personal desire,need not be confined to the judging office. (Llewellyn & Hoebel apudNader, 2002:94)

    De fato, esta foi uma cooperao cujo xito originou-se do dilogo entre a

    perspectiva crtica e profissional de um advogado e sua contrapartida numa experincia

    antropolgica fundada no trabalho de campo. Um bigrafo de Llewellyn, entretanto,

    comenta que if Hoebel had been a rebel against Malinowskis functionalism, or if

    Llewellyn had been a more orthodoxy lawyer, collaboration would have been harder and

    much less fruitful (Twining apud Nader, 2002:93). Esta sugesto importante, pois

    corrobora a discusso sobre como diferentes perspectivas tericas das disciplinas

    desempenham um papel significativo sobre a eficcia do tipo de articulao que advogados

    e antroplogos possam exercer de maneira mais especfica.

    Seu trabalho conjunto, inclusive, para alm das crticas ao direito ocidental,

    suscitou novas possibilidades na maneira de atuar em favor das populaes nativas20. Alm

    disso, se por um lado os argumentos desenvolvidos por estes autores soaram como um

    golpe sobre as concepes jurdicas em voga nas escolas de direito norte-americanas e

    mesmo entre seus juzes, por outro, sua nfase sobre o significado das normas jurdicas em

    situaes concretas de conflito prenunciou uma nova guinada nos estudos antropolgicos

    voltados para este fenmeno (Nader, 2002).

    Os trabalhos de Max Gluckman e Paul Bohannan, ao se debruarem no apenas

    sobre os significados, mas tambm sobre os procedimentos processados nestas situaes

    especficas de resoluo de conflito, so exemplares nesta nova direo e, como os demais,

    19 Laura Nader (2002) aponta que Llewellyn foi um dos maiores crticos do formalismo legal norte-americano implementado por Christopher C. Langdell. Ao concentrar-se no valor dos conceitos legais, esteformalismo foi contraposto por um movimento que contrariamente depositava um valor significativo naexperincia cotidiana do direito, e que por isso foi chamado de realismo legal.20A ltima colaborao entre estes dois autores envolveu o estudo dos law-ways entre os Keresan Pueblosdo sudoeste e foi realizado a convite dos advogados da agncia que representava tal povo. Nader (2002:92)esclarece: the aims of that investigation, which was undertaken by invitation of the special attorney for theUnited Pueblos Agency, were to be practical. The recording of Keresan Pueblo law would support itscontinuance and defend it against those who would question and destroy traditional ways. The very act ofrecording and publishing Pueblo law would supposedlyprotect the peoples autonomy.

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    tambm suscitaram querelas envolvendo a articulao entre os dois campos. O debate entre

    eles reeditou, de maneira bem mais sofisticada, a discusso sobre a viabilidade do uso de

    uma terminologia jurdica ocidental para o estudo comparativo do direito, implicando num

    severo exame do significado da interpretao antropolgica do fenmeno jurdico.

    Em seu The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia (1955),

    Gluckman procurou demonstrar como as cortes Lozi desse pas, apesar de possurem sua

    prpria lgica para a resoluo de conflitos, apresentariam princpios adjudicatrios

    semelhantes aos ocidentais, como os de apresentao de evidncias, concepo de uma

    razoabilidade do comportamento humano, ou a existncia de um corpus juris. Uma

    diferena importante seria a flexibilidade com que os juzes Lozi lidavam com tais regras,

    procedimento que condizia com as implicaes do que este autor denominou de relaes

    multiplex daquela sociedade

    21

    . Alm disso, Gluckman foi um dos primeiros autores arelacionar o enforcement jurdico a questes de equidade (Cardoso de Oliveira, 1989).

    Bohannan, por outro lado, sustentou em Justice and Judgment among the Tiv

    (1957) que tratar processos de mediao nos termos dos desdobramentos adjudicatrios do

    ocidente, seria elevar o direito ocidental (um sistema folk) a sistema analtico, e isto, a seu

    ver, promoveria profundos danos para a compreenso dos sistemas folk nativos de

    resoluo de conflito em seus prprios termos22. Apesar da insistncia de Bohannan sobre

    o cuidado na avaliao dos significados nativos parecer corroborar a mal-fadada separao

    entre perspectivas micas e ticas23

    , sua preocupao certamente prenunciou o que viria seruma abordagem ao direito tribal mais enftica em relao ao ponto de vista nativo.

    Mas este debate tambm refletiu a articulao entre as disciplinas por outros

    ngulos. Gluckman, no prefcio primeira edio da referida obra, faz questo de

    mencionar como seu estudo derivava tambm de um conhecimento e experincia prpria

    na rea do direito, em oposio aos estudos diletantes daqueles desconhecedores da

    jurisprudncia comparada. O fato de The Judicial Process ser um livro escrito no s

    21 A sociedade Barotse era sustentada por uma srie de relaes face-a-face e de interdependncia entre

    homens, grupos de parentesco e vilas, seu sistema legal tendo a importncia de garantir o conjunto derelaes, direitos e obrigaes entre eles. Eram sistemas de parentesco tanto quanto sistemas polticos e omltiplo pertencimento a diversos grupos tornava-se uma importante fonte de conflitos, bem como a prpriabase de coeso da sociedade. Ou seja, num processo de litgio Lozi, no apenas as partes, no fim de tudo,tambm tinham interesses comuns, como estes tambm tocavam aos seus juzes, o que fazia da adjudicaoLozi um processo voltado para a conciliao (Gluckman, 1955).22Para uma boa compreenso sobre os termos do debate Gluckman/Bohannan ver a coletnea organizada porLaura Nader (Law in Culture and Society, 1969), especificamente sua seo sobre estudos comparativos;como tambm a crtica de Cardoso de Oliveira (1989; 1992) a este respeito.23A respeito, ver os comentrios de Lus R. Cardoso de Oliveira (1989; 1992), bem como as consideraesdo prprio Bohannan sobre este tipo de acusao no prefcio de 1989 a Justice and Judgment...

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    para antroplogos sociais, mas tambm destinado a estudantes de direito comparado,

    advogados e funcionrios da administrao colonial daquele pas (Gluckman, 1955), diz

    algo sobre a necessidade dessa afirmao de um conhecimento jurdico no amador.

    Bohannan, por seu turno, abre seu primeiro prefcio a The Justice and judgment...

    argindo, justamente, sua ignorncia do estudo comparado do direito, condio que no

    constituiu um impedimento interpretativo, uma vez que seu trabalho era estudar a

    conceptualizao da ao social em sociedades aliengenas (Bohannan, 1989). Para este

    autor ainda, a prpria concepo sobre quais seriam o papel do jurista e do antroplogo

    segue o rumo da querela. Se referindo a como as distintas provncias profissionais se

    articulam ele diz o seguinte:

    They overlap, primarily in their words, sometimes in their subject matter.Finding in one can often illuminate the other. Their disciplines for

    understanding that subject matter and their canon for dealing with it remaindistinct. (Bohannan, 1989:xxi)

    V-se com este breve resumo que, sob certa perspectiva, a prpria formao da

    Antropologia j se d em articulao com o campo jurdico, seja pelo fato de muitos dos

    primeiros antroplogos serem juristas, seja pelas preocupaes comuns que o progresso

    colocou a ambas as disciplinas, seja porque as idias e paradigmas que informavam suas

    vises fossem totalmente imbricados neste momento caractersticas, por sua vez, que se

    interinfluenciavam. Mesmo quando a observao metodologicamente orientada e o

    trabalho de campo passaram a delimitar e fornecer um arcabouo terico maispropriamente antropolgico, interesses econmicos, polticos e tambm cientficos

    mantiveram os profissionais em permanente ateno e troca em relao s idias do outro.

    The Cheyenne Way, que inaugura de forma mais prtica a maneira de um trabalho at ento

    voltado para o entendimento do outro servir de referncia para uma crtica do direito

    ocidental, um bom exemplo nesta direo.

    O debate entre Gluckman e Bohannan sobre o uso de lgicas e procedimentos da

    jurisprudncia ocidental para a compreenso do que se passa alhures em termos de

    resoluo de conflitos, de certa forma, coroa esse carter em suas articulaes no que sepode considerar o desenvolvimento clssico da antropologia do direito. E em que sentido

    este clssico? Todas as perspectivas at aqui apontadas procuraram lidar com o direito

    de sociedades no-ocidentais, mesmo que sob aspectos e nfases diversas, como um

    sistema fechado, como se o atravessamento das aes e idias do mundo do pesquisador na

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    sociedade do outro, ainda que reconhecidas, no engendrasse nestas sociedades e, assim,

    em seus sistemas de justia, uma re-apropriao de significados e processos24.

    Tanto os estudos que promoveram o reconhecimento deste direito em termos de

    ausncia, como aqueles que o fizeram em termos de semelhana25, terminaram por no

    proporcionar uma crtica mais contundente em relao maneira como diversos sistemas

    de justia interatuam num contexto scio-cultural mltiplo (como j o eram as sociedades

    coloniais); ou mesmo como o sistema dominante enquadra o outro em sua

    jurisprudncia. Hoje, quando as ex-colnias latino-americanas ou africanas reivindicam

    direitos a partir de uma perspectiva ps-colonial, ou onde os movimentos da globalizao

    (seja como for definido) configuram confrontos culturais ao mesmo tempo em que

    promove interdependncias entre os diversos povos numa escala planetria, torna-se

    inevitvel entrar em tais discusses.Assim, o debate antropolgico, e qualquer outro, sobre o direito contemporneo

    dificilmente pode excluir questes como a do pluralismo ou da hegemonia jurdica,

    movimentos, por sua vez, que afetam de maneira significativa o tipo de articulao tratado

    neste trabalho. Estas questes so tocadas na prxima seo a partir do olhar de Clifford

    Geertz e Laura Nader, antroplogos que tm perspectivas bem diferentes sobre os

    caminhos que esse direito foi tomando a partir do final do sculo XX.

    1.2 Pluralismo, hegemonia e os caminhos atuais da articulao disciplinar

    Local Knowledge: fact and law in comparative perspective (1983), de Clifford

    Geertz, o texto que d o norte nesta seo. A o autor pretende oferecer uma abordagem

    alternativa aos estudos comparativos do direito que at ento se pautavam pela simples

    24Segundo Sally Falk Moore (2001:97), Gluckman uma figura exemplar neste sentido. Para ela in theclassical manner of British social anthropology of the time, he was interested in discovering what had beenthe shape of pre-colonial society, the true Africa. Yet no one was more aware than Gluckman that whatactually surrounded him were African societies that had experienced decades of colonial rule, labor

    migration, Christian influence, alterations of economy and organization, and more. A explicao da autorapara esta postura de Gluckman a de que, como ele era preocupado em estabelecer uma interpretaoracialmente igualitria sobre a lgica africana, evitou tratar sua lei costumeira como j marcada pela lgicaocidental. Seguindo esta orientao, o caso de Gluckman um exemplo de como preocupaes moraispodem interferir nas concepes tericas produzidas pela disciplina.25 Roberto Kant de Lima (1983; 1995), utilizando um argumento de Pierre Clastres, aponta como odesenvolvimento da antropologia do direito, mas no s, se deu em parte atravs de um olhar que semovimentava das ausncias para as presenas. No primeiro movimento a sociedade primitiva eraconcebida como sem Estado, sem escrita, sem instituies jurdicas especializadas; no segundo, ou oespao europeu era colocado no espao do outro (como, de certa forma, em Gluckman), ou o outro eracolocado em seu passado (como nas perspectivas evolucionistas).

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    justaposio, ou de vrias estruturas de poder, ou dos diversos processos de resoluo de

    conflito. Diferentemente, sua proposta seria a de comparar aquilo que denominou como as

    sensibilidades jurdicas existentes nas distintas culturas, isto , a maneira pela qual as

    instituies legais traduzem a linguagem da imaginao para a linguagem da deciso,

    criando seu prprio senso de justia (Geertz, 1998b:260).

    O texto de Geertz est dividido em trs partes, e na segunda delas que o autor d

    exemplos de sua abordagem comparativa. A partir de como o comportamento dissidente de

    um aldeo balins, gerado pelo desatendimento de suas queixas e insatisfaes em relao

    perda de sua esposa, terminou indo de encontro etiqueta expressa na viso de

    mundo de sua cultura26 o que, no fim, causou seu banimento , o autor d o mote para a

    discusso. Logo em seguida o adat, termo que reflete esta etiqueta malaia (ou uma idia

    de prtica), bem como o haqq islmico (algo semelhante a verdade), e o dharmandico (que significa dever), trs conceitos centrais s vises de mundo dessas culturas e

    que expressariam seus respectivos sensos de justia, so comparados entre si e com a

    adjudicao ocidental em termos de fatos e leis chave que o autor encontra para efetuar

    essa comparao entre a passagem de uma linguagem outra27.

    Aqui, porm, ser dada ateno apenas aos problemas que este autor identificou nas

    abordagens ao fenmeno jurdico que lhe foram anteriores, e como elas teriam dificultado

    o dilogo entre as disciplinas no que ele prope algumas solues para viabiliz-lo.

    Outro ponto considerado a sua concepo da adjudicao ocidental como uma operaode traduo entre fatos/leis, e que ele utiliza para sustentar sua proposta comparativa. Alm

    disso, sua viso sobre o que identificou como um amlgama jurdico no mundo moderno

    pensado em suas implicaes para a articulao atual das disciplinas.

    Alm disso, cada um destes pontos contraposto, com maior ou menor intensidade,

    a partir de algumas consideraes retiradas de Laura Nader, antroploga que, ao contrrio

    26 Segundo Geertz (1998b:265; 269) o motivo da atitude de Regreg, o aldeo de sua histria, eradesconhecido e ningum tinha o menor interesse em saber quais seriam (...), tampouco se tratava de saber se

    as leis sob as quais Regreg foi julgado eram ou no repugnantes. Todos com quem falei, unanimemente, asconsideravam repugnantes. Este comentrio fez com que Lus R. Cardoso de Oliveira (1989, especialmentecap. 6; 1992) elaborasse uma interessante discusso sobre limitaes na interpretao geertziana do caso.27Antes de iniciar sua comparao Geertz (1998b) assume que os termos mencionados no tm um sentidopreciso, como tambm no so exclusivos na simbolizao de tais vises de mundo. Alm disso, tambmconfessa que operou uma simplificao radical tanto da dimenso histrica quanto regional destes temas,uma vez que seus dados provm de localidades especficas, mas argumenta que essa generalizao possibilitadelimitar melhor as questes essenciais desta comparao. Por fim, aponta no ser esta uma abordagem quepostula vises e prticas, mas que procura interpreta-las, atravs das instituies e contextos que asinformam, no intuito de fornecer uma orientao para o entendimento de um sentido do direito diferente doocidental.

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    do primeiro, dedicou toda sua obra a questes envolvendo os fenmenos jurdicos. Sua

    abordagem, que envolve etnografia e histria, v na atitude contestatria o elemento

    central dos processos jurdicos, e questiona a maneira pela qual aquilo que considera ser

    um imperialismo legal existente no mundo de hoje vem solapando a produo de justia28.

    atravs do olhar destes dois autores que procuro discutir os caminhos que a

    articulao entre as duas disciplinas vem tomando atualmente, e como esta mesma

    articulao viabiliza uma compreenso dos problemas jurdicos colocados pelas dinmicas

    da vida contempornea. Uma vez que os mesmos tm perspectivas diferentes sobre a forma

    como o direito vem se transformando pelo mundo, a compreenso sobre a produo dessa

    articulao envolve implicaes um tanto distintas em cada um deles.

    Geertz inicia seu texto apontando que direito e etnografia so, ambos, saberes

    locais, ou seja, se entregam tarefa artesanal de descobrir princpios gerais em fatosparoquiais. da que ele v as semelhanas entre suas vises de mundo e sobre a forma

    como focalizam o objeto de seus estudos, motivos pelos quais pareceria que foram feitos

    um para o outro, como citado na abertura deste captulo. Logo em seguida, entretanto, ele

    aponta que esta mesma sensibilidade pelo caso individual pode tanto dividir como unir

    (1998b:249), especialmente no que diz respeito ao contedo do direito.

    A seu ver, a questo da transferncia do sentido deste contedo entre os estudos de

    juristas e antroplogos no pode ser evitada, mas continua obstrutiva uma vez que as

    solues para lidar com ela tambm no foram viveis: separao entre aspectos lgicos eprticos, entre enfoque forense e etnogrfico. Aponta, ento, que tudo isso teve como

    resultado para a interao entre as duas profisses mais ambivalncia e hesitao que

    acomodao e sntese e, assim, ao invs de termos uma penetrao da sensibilidade

    jurdica na antropologia, ou da sensibilidade etnogrfica no direito, o que vemos um

    conjunto limitado de debates estticos (Geertz, 1998b:251).

    Geertz diz querer se afastar destes procedimentos e, neste sentido, declara:

    Ao considerar o produto do encontro da etnografia e do direito como umdesenvolvimento interno da prpria antropologia que teria dado origem auma subdisciplina semi-autnoma e especializada (...) os antroplogos (...)tentaram resolver o problema do saber local enveredando justamente pelocaminho errado. (1998b:252)

    28Os dois textos consultados de Laura Nader so: Harmonia Coerciva (1994), um artigo em que a autoraexpe brevemente sua idia de que hoje ocorre alhures a imposio de uma ideologia da pacificao para otratamento dos conflitos legais, minando a capacidade contestatria dos indivduos e das sociedades; e o livroThe Life of the Law: anthropological projects (2002), onde a autora aprofunda tal tema, mas tambmcomenta sua trajetria profissional e discute temas como a relao entre advogados e antroplogos nos doisltimos sculos.

  • 7/26/2019 Experincias de Ensino e Prtica Em Antropologia No Brasil - Ftima Tavares, Simoni Lahud Guedes, Carlos Caroso

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    Para ele, ao contrrio, a promoo deste dilogo teria de passar por uma necessria

    conscincia maior e mais precisa do que a outra disciplina significa (Geertz, 1998b:252).

    O caminho para isto seria tanto a adoo de uma a