Embaraço, Humilhação e Transparência Psíquica_O Tímido e Sua Dependência Do Olhar

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    gora (R io de Janeiro) v. XV II nmero especia l agosto de 2014 127-140

    Julio VerztmanProfessor doPrograma dePs-Graduao emTeoria PsicanalticaIP-UFRJ;coordenador do

    Ncleo de Estudosem Psicanlisee Clnica daContemporaneidade(Nepecc);psiquiatra do Ipub-UFRJ.

    EMBARAO, HUMILHAO ETRANSPARNCIA PSQUICA: O TMIDOE SUA DEPENDNCIA DO OLHAR

    Julio Verztman

    RESUMO: Pretende-se discutir os impasses experimentados pelosujeito caracterizado como tmido na sua relao com o olhar.Formulou-se a hiptese de que a vergonha emoo central dotipo de subjetividade de que iremos tratar neste contexto vividacomo embarao, humilhao ou transparncia psquica. Sugerimosque a incidncia do olhar expor certas fragilidades narcsicasquanto construo de barreiras que protejam o campo da interio-ridade. Apresentaremos ao longo do texto os principais aspectos doembarao, da humilhao e da transparncia psquica, utilizandovinhetas clnicas retiradas de uma pesquisa clnica.Palavras-chave: Vergonha, timidez, narcisismo, olhar, clnicacontempornea.

    ABSTRACT: Embarrassment, humiliation and transparency: Theshy subject and his/her dependence on the gaze. The main goalof this article is to examine shy individuals and their troublesomeexperiences concerning gaze. A clinic psychoanalytical research onsocial anxiety disordered patients (social phobia) revealed that sha-me in this context is also endured as embarrassment, humiliationand psychic transparency. This work suggests that they carry a frailnarcissistic development and therefore are unable to protect theirpsychological inner selves. Features of embarrassment, humiliation

    and psychic transparency can be found through various clinicalexamples. Additionally, the recent analysis on shame implies a newindividual scope in contemporary society.Keywords:Shame, shyness, narcissism, gaze, contemporary clinicalpsychoanalysis.

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    Refletiremos, aqui, sobre algumas caractersticas do sujeito cuja principalqueixa gravita em torno da timidez exatamente aquele que fica paralisado

    diante do paradoxo de ser supervisvelou de ser invisvel, de ter uma atitude voyeurista

    ou exibicionista diante do outro, de ser invadido pela mirada de qualquer um oude ser completamente opaco a ela, de nunca poder ser visto a partir do ngulocorreto. Este sujeito expressa de modo paradigmtico o sentimento de insufi-cincia narcsica diante do olhar, insuficincia articulada a um grau intenso dedependncia. O dito tmido depende em larga medida de um olhar privilegiadopara ter acesso aos principais parmetros a respeito de si mesmo. Nosso intuito discutir sobre as vicissitudes desse olhar, sobre a relao de dependncia neleimplicada e sobre algumas formas pelas quais essa dependncia se estabiliza ese constri. Em funo de alguns fatores da cultura atual (EHRENBERG, 1998;GIDDENS, 2002; GOULEJAC, 1996; VERZTMAN, 2005; PINHEIRO, VERZTMAN,VENTURI & BARBOSA, 2006), tais como o esvaziamento de alguns predicadossubjetivos correlacionados a ideais coletivos, a dificuldade de se relacionar como desejo do outro atravs de uma atitude interpretativa, ou mesmo os limitescontemporneos para construir uma atividade imaginativa que prescinda doreferente fisicalidade, o olhar se torna o ponto de partida e o ponto de chegadada atitude avaliativa sobre si mesmo e sobre o outro.

    Procurarei, ao longo do texto, demonstrar que os sujeitos implicados em nossa

    investigao encontram sadas vacilantes para impasses na dinmica do olhar, pa-gando o preo do embarao, da humilhao ouda transparncia psquica. Muitas vezes essastrs caractersticas podem ser observadas em conjunto, embora o mais comumseja a conjugao da sensao de transparncia com uma das outras duas. Estareflexo tem como base uma pesquisa clnica realizada pelo Ncleo de Estudosem Psicanlise e Clnica da Contemporaneidade (Nepecc, www.psicologia.ufrj.br/nepecc), coordenado por Teresa Pinheiro, Regina Herzog e Julio Verztman,acerca do atendimento psicanaltico a pacientes que apresentam o diagnstico

    psiquitrico de fobia social. Sugiro a consulta ao material j produzido por estencleo de pesquisa (VERZTMAN, 2005; PINHEIRO, VERZTMAN, VENTURI& BARBOSA, 2006; VERZTMAN, HERZOG & PINHEIRO 2010; VERZTMAN,HERZOG, PINHEIRO & FERREIRA, 2012; VENTURI & VERZTMAN, 2012) paraque o leitor possa se familiarizar com o uso do referido diagnstico psiquitricona aproximao com o tema da timidez. Utilizamos as palavras tmidoou timidezapenas para nomear uma caracterstica presente em todos os pacientes atendi-dos por nossa equipe. Este termo foi pinado de seus discursos porque respeitaum modo de autodesignao no que tange a uma qualificao de si mesmo e

    de seus sintomas.Tmido ou timidez no descrevem um universo psicopatolgico restrito

    que faa sentido para a psicanlise. Este sujeito que se queixa de timidez,

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    entretanto, nos oferece elementos importantes para estudarmos questesnarcsicas relacionadas problemtica do olhar e s suas formas de dependncia.

    necessrio, antes de tudo, informar que chegamos a este universo terico-

    clnico a partir de um estudo anterior sobre a vergonha. Partindo da sugestofreudiana presente em Luto e melancolia(FREUD, 1917/1993), segundo a qual o me-lanclico capaz de afirmar as piores coisas de si sem experimentar esta emoo,nos servimos de autores ps-freudianos de correntes heterogneas (CICCONE &FERRANT, 2009; GREEN, 2003; MILLER, 2003; TISSERON, 1992; ZYGOURIS,1995), a fim de explorar os aspectos narcsicos da vergonha (VERZTMAN, 2011).O que se segue est em continuidade com esta discusso.

    AS VIZINHANAS EMOCIONAIS DA VERGONHA

    No projeto-piloto desta pesquisa, que envolveu o atendimento a apenas doispacientes com o diagnstico de fobia social antes da oferta de atendimentoaos demais duas possibilidades de experincia da vergonha chamaram aateno: a vergonha vivida como embarao e a vergonha vivida como humilhao. O paciente 1(vergonha como embarao) conseguia nomear alguns de seus medos diante daexposio ao olhar do outro, conseguia evitar situaes nas quais poderia sentirvergonha. O motivo de sua vergonha lhe escapava inteiramente, e no percebia

    qualquer animosidade intencional no outro, mesmo que isto fosse constantementetemido. O paciente 2 (vergonha como humilhao), ao contrrio, era muito maisretrado, desconfiado, no conseguia sequer definir o que sentia e se precaviapermanentemente da possibilidade palpvel de sofrer humilhao intencionalpor parte do outro. Para a distino entre embarao e humilhao, seguiremosalguns apontamentos de De La Taille (2002). Este autor, pesquisador no campoda psicologia do desenvolvimento moral nos fornecer parmetros descritivosrelevantes para nossa discusso.

    EMBARAO

    Em portugus e em francs (mas no em ingls) h certa sobreposio entrevergonha e embarao, mas mesmo assim h diferenas importantes. O emba-rao em geral considerado a vertente menos intensa e judicativa do universosemntico da vergonha. O embarao a sensao de desconfortoque ocorre quandoalgum se sente exposto (DE LA TAILLE, 2002, p.75-76). Ele denuncia os sofri-mentos correlacionados com toda a trama relacional da exposio, tais como

    estar na posio de objeto, no ter qualquer controle sobre o que est sendovisto, sofrer as consequncias da passividade diante do outro, suportar com dora reflexividade prpria da relao com o olhar do outro, entre outros fatores.

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    O desconforto com a exposio, entretanto, um aspecto comum entre a ver-gonha e o embarao:

    Longe de ser mera questo de definio, veremos que o sentimento de vergonhadecorrente do simples ser objeto para outrem (e no somente do ser objeto des-

    prezado por outrem) importante para compreender o referido sentimento, nota-

    damente no seu desenvolvimento durante a infncia. (DE LA TAILLE, 2002, p.77)

    O simples fato de se sentir objeto do olhar de algum pode produzir este

    sofrimento, mesmo que o olhar alheio no traga um juzo negativo. Este umaspecto fundamental para o que caracterizamos em nossa pesquisa como o tmidoembaraado. Ele procura permanentemente antecipar o perigo do julgamento nega-tivo e, assim, do desprezo alheio, atravs de uma forma particular e crnica deangstia (PACHECO-FERREIRA, 2012). Caso contrrio, o permanente embaraose tornaria vergonha inconsolvel. Isto porque, em comparao com a vergonha,do ponto de vista moral o embarao no ocupa papel relevante. A vergonha um passo adiante do embarao, j que a ser objeto do olhar de outrem equivalea ser objeto de desprezo de outrem.

    De la Taille sugere que o embarao uma forma muito antiga de experinciada vergonha. O autor demonstra a indissociabilidade entre conscincia de si,

    conscincia da prpria perceptibilidade e embarao como sofrimento produzi-do pela exposio. O embarao testemunha aquilo que no assimilvel comoperfeio narcsica no desenvolvimento da criana. No processo de separaoda alteridade que consolida a estabilizao da imagem narcsica, o perigo de sertomado como objeto do olhar alheio vai se conjugando a outros perigos: sermalvisto e, consequentemente, deixar de ser objeto de estima do outro. O papeldo ambiente fundamental para que estes perigos no sejam negados, ao menoscomo perigos potenciais, mas tambm no se tornem ameaadores a ponto de

    paralisar o infante no seu gesto espontneo. neste sentido que Ciccone e Ferrant(2009) propem uma diferena entre vergonha experimentada e vergonha sinal de alarme:

    Numa primeira aproximao, a vergonha sinal de alarme pressentea analidade, a

    confuso e a ferida narcsica como consequncia do risco de perda de amor do

    objeto. Como sublinhamos, ela veicula a memria afetiva das falhas parciais da

    afinaoentre o sujeito e seu ambiente, ao mesmo tempo que uma sada possvel se

    apoia nesse mesmo ambiente. Nesse tipo de situao atravessada por todos os seres

    humanos, o fato de ser pequeno, dependente e correndo o risco de desamparo,

    constantemente tratado e cuidado pelas capacidades continentes de um ambiente

    suficientemente atento e atencioso. A vergonha sinal de alarme veicula tambm os

    fracassos parciais da aprendizagem da higiene, do controle esfincteriano e de todas

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    as falhas da continncia corporal. Essas inevitveis feridas narcsicas so tratadas

    ao longo do tempo mesmo sem serem nunca completamente ultrapassadas

    pela colocao em jogo dos autoerotismos e dos processos de interiorizao das

    funes de salvaguarda atribudas, de incio, ao objeto. (CICCONE & FERRANT,2009, p.61-62. Traduo livre)

    Voltando nossa discusso anterior, podemos dizer que o embarao, o qualestamos associando vergonha sinal de alarme um desconforto relacionadoao disparo de um sistema de alarme que mobiliza o psiquismo a se protegercontra feridas que atingiriam o domnio narcsico. Estamos aqui supondo que oembarao a parte deste sistema que limita a exposio e a impede de se tornaruma exposio que contraria a imagem idealizada ou ao menos aceitvel de si. Dessa forma, o embarao implica um tipo de sofrimento cujo referenteno o rebaixamento da autoimagem, fruto do julgamento alheio, prpria dasexperincias mais tpicas de vergonha consumada. O embarao a antecipao davergonha. a percepo do perigo de sentir vergonha, uma proteo contra a vergonha. Para queestas funes de salvaguarda diante do embarao para retomar a expressode Ciccone e Ferrant possam se efetivar, imprescindvel o papel do objeto. o objeto que vai alar a um futuro indeterminado ou a uma hiptese presente,mas longnqua, a ameaa de expulso subjetiva que as experincias mais intensas

    de vergonha encerram.No sabemos ao certo os motivos, mas a clnica dos ditos tmidos nos coloca

    diante da suposio de que pode haver hipertrofia do embarao. Nesse caso, aameaa da vergonha to presente e, ao mesmo tempo, to pouco inserida emqualquer narrativa ou aspecto integrado do psiquismo, que a vida gira em tornode antecipar e prevenir sua emergncia. H um verdadeiro curto-circuito entreexposio e vergonha, entre o alarme e sua consumao, o qual tem como panode fundo a fragilidade da proteo proporcionada pelo ambiente. Sempre que

    o sujeito se expe a um perigo que no consegue nomear, ou seja, o perigo devir a sentir uma vergonha irreparvel, o simples contato com o olhar do outroque enuncia tal ameaa o paralisa e o empurra para a solido, um dos contextoscapazes de lhes assegurar proteo.

    Alguns pacientes nos permitem um vislumbre deste tipo de vivncia. O sen-timento de vergonha nas relaes sociais costuma ser a principal queixa. Umapaciente relata que no gosta de andar na rua ou de nibus. No gosta de andar denibus porque quando se senta, sabe que as pessoas do outro lado podem v-la,e fica, neste momento, terrivelmente exposta. Revela o temor de que pensem

    algo negativo a seu respeito, embora no saiba dizer muito claramente o queelas possam pensar. Suas fantasias quanto ao olhar do outro podem apresentarcarter persecutrio, mas estas so pouco elaboradas. Diz apenas que podem

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    achar que ela tem cara de boba ou que magrinha. Imagina com angstiapoder, por qualquer motivo, vir a fazer uma cena ridcula, como, por exemplo,levar um tombo e ser motivo de riso. Esfora-se permanentemente para no

    chamar a ateno alheia de nenhuma maneira, mas sabe que este esforo infru-tfero. H uma afinidade natural entre si e o olhar invasivo de quem a circunda. frequente que esses sujeitos tenham poucas lembranas de infncia. Outra

    paciente, por exemplo, no sabe dizer quando comeou a se sentir envergonhada,afirmando que sempre foi assim. Aps algum tempo de anlise, ela props umaorigem para seu sentimento excessivo de estar exposta. Certa poca, j adoles-cente, passou a ter que almoar fora de casa. Foi muito difcil ter que pedir suaprpria comida. Estava acostumada ao fato de sua me sempre ter providenciadoisso por ela. Este breve momento de separao da me disparou nesta paciente umsinal de alarme para o perigo de rejeio por parte de qualquer um que cruzasseo seu olhar. Os fatos mais banais eram vividos com ansiedade, ruborizao emedo, contando como certo que, na sua fantasia pudessem ser observados porterceiros. Quando discutirmos o tema da transparncia psquica, voltaremos speculiaridades deste tipo de relao intersubjetiva com a me.

    Por ora, ressaltamos o embarao permanente vivido pela paciente quando estfora do alcance do olhar materno. No supe nenhuma animosidade clara porparte do outro annimo que teima em avali-la; todavia, teme ser tomada por

    inadequada ou ridcula a qualquer momento. Desenvolve a estratgia de anteci-par todos os ngulos nos quais a viso incidiria sobre ela, mas sua incapacidadede construir uma barreira ao que ser visvel mantm seus sistemas de alarmeexcessivamente sensveis.

    O embarao, a princpio medida protetora no que tange a ameaas ao do-mnio narcsico, se torna um sofrimento permanente para certos tmidos. Estesofrimento a marca de uma relao com o objeto construda sobre a impossi-bilidade de prescindir de seu olhar. Estar longe geralmente do olhar materno

    estar em perigo. Um perigo desconhecido quanto sua fonte e seu modode operar. As estratgias criadas para tornar a vida suportvel so: permanecerem estado de alerta vivido como embarao ou estar ao abrigo do olharprivilegiado j descrito. Autores como Mc Dougall (1992), com sua descriodoamor materno fusional; Pontalis (1991), atravs de sua metfora sobre um tipo de

    possesso subjetiva que exerce sua dominao a partir de dentro;e Aulagnier (1990), com suabela proposio de direito ao segredo como condio de pensar, nos fornecem subsdiospara compreender um tipo de relao com o objeto materno pautada numaatitude invasiva.

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    HUMILHAO

    A humilhao, em seu sentido forte, implica o sentimento de ser rebaixadopelo outro. O ato de rebaixar ou o sentimento de ter sido rebaixado produzem

    a frequente articulao entre vergonha e humilhao. Na vergonha, como vimos,o sujeito se sente rebaixado diante de seus ideais. uma emoo que pode serdesencadeada quando qualquer membro da comunidade, o qual, aos olhos dosujeito, encarna ou sustenta esses ideais, testemunha a sua queda. Este outro somente a testemunha, frisamos. A vergonha ocorrer mesmo que o outro sequerperceba os motivos que levaram o sujeito a ter que se esconder da sua mirada.Ela pode acontecer ainda quando o outro no tem qualquer julgamento negativoem relao a tal imagem. Como j dissemos, na vergonha o outro apenas odepositrio de uma projeo narcsica desvalorizada; ela o resultado de uma

    operao na qual o que est em jogo : o que eu sentiria se pudesse me ver dolugar a partir do qual o outro me v? Assim, ela uma emoo referida ao campodo narcisismo porque o olhar do outro tem pouca relevncia nesta relao de sia si. O que toma a cena a macia projeo sobre este olhar.

    Desse modo, uma das condies para que a vergonha se desencadeie aplausibilidade dessa projeo, ou seja, deve existir alguma afinidade entrea minha projeo e o modo como minha imagem recebida. Tal plausibilidade seorganiza geralmente sobre traos amplos e vagos. O principal deles diz respeito

    ao fato de o outro ser um membro da comunidade, que acredita nos mesmosvalores que o sujeito envergonhado contrariou.

    Para retomar o tema do autorrebaixamento presente tanto na vergonha quan-to em certos casos de humilhao, podemos dizer: s h vergonha quando osujeito assume internamente a sua desvalorizao. Mesmo quando ela impostaviolentamente a partir de fora, o sujeito envergonhado procura se esconder docampo de viso do outro, porque sabe que sua simples presena pode produzirindignao diante do que ele se tornou aps ser coberto pela vergonha. Ele pode

    ento projetar no outro sua prpria indignao.Vejamos agora algumas caractersticas diferenciais do sentimento de humi-lhao. Humilhao implica violncia (DE LA TAILLE, 2002, p.78), e violncia,neste caso, intencional. O outro no apenas uma projeo da minha indig-nao quanto minha prpria imagem, mas a fonte de uma indignao queme toma a partir de fora. O sujeito se perde do lugar de origem de seu prpriorebaixamento. O outro, por algum motivo enigmtico ou completamente forado campo do sentido, ativo em retirar coercitivamente os atributos narcsicosarticulados a certos valores mantenedores da dinmica do sujeito com seus ide-

    ais. Vergonha e humilhao coexistem quando a violncia extrema a pontode o sujeito internalizar a imagem negativa imposta como se fosse a sua (DE LATAILLE, 2002, p.78-79).

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    Supomos que para a humilhao se tornar vergonha deve haver desequilbrioentre a natureza da violncia vinda do outro e as barreiras narcsicas capazesde proteger o sujeito de incorpor-la sua prpria identidade. O sentimento

    profundo de vergonha sentido por sobreviventes de campos de concentraoevidencia a fragilidade dessas barreiras em situaes extremas de violncia. Nooutro lado da balana, percebemos que construes narcsicas frgeis podemfavorecer experincias marcantes de humilhao consumada ou medo perma-nente de ser humilhado. Nestas situaes, ser visto pelo outro pode equivaler aser humilhado ou vir a ser humilhado pelo outro.

    Examinemos o que Ciccone e Ferrant (2009) denominam vergonha de ser:

    O trauma narcsico primrio relacionado vergonha de ser ligado falha dessa

    funo de eco e de espelho vivo. O sentimento de continuidade narcsica apresenta

    um furo, se torna inconsistente. Nessa conjuntura, o objeto no foi psiquicamente

    ausente, foi ativamente desqualificante. A funo espelho reenvia ao beb que este

    est inteiramente preso a uma desqualificao de suas necessidades, isto , de seu

    prprio ser. Pode-se dizer, nesse sentido, que a vergonha de ser uma vergonha

    primria. (CICCONE & FERRANT, 2009, p.67-70)

    Para estes autores, a vergonha de serexprime um acontecimento to primrio

    que s o outro pode sentir vergonha. O sujeito se esconde, mas no conseguesaber do que se esconde: ele sabe que o outro capaz de humilh-lo pelo simplesfato de ser visto, mas perde o contato com o que sente, exprimindo apenas seuaspecto comportamental. Percebemos ressonncias entre essa descrio e o quecaracterizamos como humilhao. Como afirmamos anteriormente, vrias for-mas de fragilidade narcsica podem contribuir para experincias de humilhaoconsumadas e sua repetio traumtica ao longo da existncia. Respeitando asuposio de externalidade da vergonha presente no conceito de vergonha de ser,

    encontramos na clnica sujeitos que no tm acesso ao sentimento de vergonha,mas somente inteno humilhante vinda de fora. Sabem que o olhar do outro perigoso, apesar de no saberem qual o perigo.

    Este um ponto comum que aflige tanto tmidos embaraadosquanto tmidoshumilhados. Ambos temem permanentemente o que o outro possa ver diante desua imagem, sem representar diferentemente do sujeito envergonhado oque precisa permanecer escondido. Diante dessa impossibilidade de decidir, pro-curam se defender do olhar escondendo-se por inteiro. Mas enquanto o sujeitoembaraado coloca todas as suas fichas em seus sistemas de alarme, acreditando

    que estes podero controlar minimamente a exposio e, por conseguinte, aconsumao de uma vergonha insuportvel, o sujeito humilhado j no alimentaessa esperana. Ele conhece a inteno do outro de humilhar, embora no consiga

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    estabelecer qualquer narrativa que envolva a si como ponto de amarrao dessainteno. A nica coisa que conhece do outro a sua capacidade de humilh-lo uma capacidade de humilhao sem histria. O si mesmo se torna aquele

    que foi e ser permanentemente humilhado. As narrativas para essa humilhaoso prosaicas, demonstrando certa pobreza na atitude predicativa do eu.As queixas desses pacientes, a duras penas formuladas em anlise, nos do uma

    plida ideia do sentimento de humilhao como resultado de parmetros frgeispara dar contorno localizao de si diante do olhar. O significado particularcom que usam a palavra desconfiana ou o modo como um deles descreveseu hbito de estudar as pessoas para formular julgamentos que, por vezes,se revelam precipitados e equivocados, expressa um tipo particular de relaocom a alteridade. Esse hbito de estudo excessivo do outro, que toma por inteiro suasexistncias, os impede de se aproximar de outras pessoas, em decorrncia domedo de se decepcionar com elas. Vivem para antecipar a possibilidade do pior.

    Um matiz merece comentrio: no se trata de um mecanismo obsessivo.A antecipao do pior pura repetio da nica experincia que encontra sen-tido em suas histrias, o nico saber que conseguem manejar. Sabem que,do outro, devem esperar o pior. Mais uma vez, aqui h pouco espao para advida e sua caracterstica obsessiva. Ao examinarmos suas histrias, perce-bemos que nas suas relaes mais iniciais o objeto no foi capaz de contribuir

    para a integrao e a internalizao de experincias vividas como violentas. Ooutro, externalizado e annimo, se tornou uma mistura de receptculo e fontede toda a agressividade.

    Um de nossos pacientes refere que as razes de seu problema se estendem atsituaes de sua infncia e adolescncia, nas quais foi vtima de racismo, derejeio ou de injustias. A expresso racismopara qualificar as zombarias decolegas pelo fato de usar culos demonstra a fragilidade de sua narrativa sobreseu sentimento de humilhao. Percebe a hostilidade contra um trao seu como

    algo que evocaria seu pertencimento a uma suposta raa. O racismo , em seuvocabulrio, uma palavra que aponta para o pior tipo de excluso violenta vindade um conjunto particular de seres humanos. Em seu caso, curiosamente, estaexcluso atingiria uma raa relacionada diretamente a um instrumento para poderver o que os outros veem a raa daqueles que no possuem a faculdade deenxergar e se proteger do que enxergam. Uma raa que, por outro lado, precisade uma pelcula para mediar o que se percebe do olhar que lhe dirigido.

    O paciente associa mais tarde que razes anteriores de seu sentimento dehumilhao remetem a ter nascido com problemas na viso. Acredita que este

    era o motivo para a rejeio por parte de crianas que se recusavam a brincarou estar com ele. Em ambas as situaes mencionadas, percebemos sua solidoao enfrentar experincias de rejeio e excluso. O sentimento permanente

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    de humilhao o nico resqucio de um tipo de relao em que o objeto seausentou de sua funo de mediao e foi ativamente desqualificante.

    A ttulo de recapitulao: ao contrrio da vergonha quando outro com

    inteno de rebaixar nem sempre existe na humilhao h sempre esse ou-tro. comum a associao entre vergonha e humilhao se o sujeito humilhadointernalizar os valores de quem o humilhou. Nesse caso, o sujeito humilhadoaceita a imagem negativa imposta a partir de fora, de forma violenta. Se na ver-gonha algo desnudado em funo de alguma ao ou caracterstica do sujeito,na humilhao essa interioridade exposta arrancada violentamente, rompendoa dimenso de segredo, fundamental para a relao com o outro.

    Para compreendermos melhor como o olhar do outro traz permanentemente orisco de romper a dimenso do segredo, constituinte no psiquismo da construoda interioridade, passemos ao exame da transparncia psquica.

    A TRANSPARNCIA PSQUICA

    Numa primeira pesquisa clnica, que incidiu sobre a clnica de sujeitos melan-clicos e outros sujeitos portadores de lpus eritematoso sistmico em aten-dimento analtico (VERZTMAN & PINHEIRO, 2012), j era evidente o temada transparncia subjetiva como ndice de fragilidade narcsica. Os sujeitos

    melanclicos estavam vinculados a um ideal de transparncia que apareceu soba forma da aspirao a uma linguagem unvoca, lmpida e assim transparentepara qualquer um que se utilizasse de seus signos. Este era o aspecto lingusticoda transparncia. Outro aspecto que podemos denominar imagtico do idealde transparncia ocorreu sob a forma da evocao de imagens para o analistaque no comportassem enganos, numa situao na qual seria impossvel os doisno enxergarem a mesma imagem do mesmo modo.

    Podemos dar como exemplo desta aspirao transparncia a fala de um

    paciente melanclico (VERZTMAN, 2012): A verdade uma s, como umaidentidade, um rtulo num pote em que est escrito acar. Este mesmopaciente, no primeiro encontro com sua analista, trouxe consigo uma pastacontendo receitas mdicas, exames laboratoriais, textos de jornal e muitos ou-tros documentos. Ali ele dizia que estava tudo seu (devidamente catalogado),a histria, e apontava para a importncia da sua cincia sobre o que trazia.Ele precisava se assegurar de que sua analista ia olhar para tudo aquilo, poistinha uma necessidade (embora com pouca esperana de realiz-la) de servisto como um todo. somente ao se tornar transparente que ele adquire

    alguma confiana em ser percebido. Ele s podia acreditar no que percebiade si mesmo se sua anal ista olhasse para a histria exatamente do mesmomodo que ele.

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    Percebemos outro aspecto da aspirao transparncia o qual podemosdenominar aspirao a ser visto por dentro nesta passagem do tratamento de umapaciente lpica (VERZTMAN & PINHEIRO, 2012) Ela pergunta sua analista:

    A senhora est notando alguma coisa?. Visivelmente decepcionada pelo fatode a analista no conseguir notar o que ela desejava que tivesse sido percebido,a paciente arregaou as mangas da blusa e exibiu o punho at ento coberto,dizendo: perdi o meu relgio. A paciente em questo estava testando a ca-pacidade da analista de ver o que os olhos no podiam ver. E de ver o que nopodia ser visto. A viso estava pouco integrada a outras dimenses capazes deconferir existncia a algo to complexo como ter um interior. Apenas se os limitesdo corpo no fossem barreira ao olhar, a existncia desse espao interior invisvelpoderia estar assegurada.

    importante notar que a aspirao transparncia nestas formas distintas nose relaciona com a emergncia de angstia ou significa qualquer tipo de ameaa.A aspirao transparncia um apelo ao reconhecimento do outro, expressa aesperana de vir a ser percebido. Isto no ocorrer do mesmo modo na timidez.

    A timidez, essa angstia social, indica que todos ficam sempre informados. O ser

    transparente sob o olhar do outro; o castigo est a caminho, apenas a fuga pode

    salvar [...]. Como cada um de ns j notou, no h algo mais visvel que um tmido.

    Enrubescendo, gaguejando, fugindo ou procurando a melhor a melhor ttica deevitar os encontros [...]. (AVRANE, 2007, p.143. Traduo livre)

    Entre os tmidos h tambm um desejo de transparncia e um ideal de trans-parncia, construdos na relao com adultos privilegiados, em relao aos quaisa barreira do olhar estaria esmaecida. Uma paciente afirma no ter segredos comsua me. Ela e sua me dormem na mesma cama, apesar de a paciente ter seuprprio quarto. H um pequeno detalhe na ausncia de segredos entre as duas:

    ela nos informa no conseguiresconder nada da me; diz que ficaria muito aflitacaso guardasse algum segredo. nessa relao de transparncia mtua que ela encontra alguma segu-

    rana. Segurana baseada na submisso necessidade da me de conhec-lapor dentro e por fora. Segurana de um olhar penetrante que a protege, aopreo de ser sua nica garantia contra os riscos de outro olhar que, encon-trando barreiras para enxerg-la por inteiro, pode acabar por humilh-la ouridiculariz-la. Desse modo, ao contrrio dos pacientes de nossa pesquisa an-terior, j referidos, os tmidos (sobretudo os que sofrem de embarao) foram

    alvo de uma promessa: se estes adultos pudessem ver atravs deles algo queningum mais poderia ver, a segurana desse olhar privilegiado os protegeriados perigos do olhar externo.

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    O investimento desejante do outro tem no ideal de transparncia sua formamais acabada de perfeio narcsica. Para ser desejado pelo outro preciso sertransparente ao seu olhar. H uma confluncia entre o campo do desejo e o

    fato de ser permanentemente observado. atravs desta forma particular deinvestimento escpicoque o tmido encontra algum parmetro para a experincia deser desejado. Note-se que ao contrrio do sujeito melanclico, o sujeito tmido foialvo de macio investimento parental. fcil perceber que logo esse idlio decomunho de olhares vai encontrar seu fim: o olhar do outro vai se bifurcarentre uma funo protetora j descrita e uma funo persecutria. O perigo damirada alheia ser cada vez mais experimentado.

    A impossibilidade cada vez maior de contar com a funo protetora do olhardo adulto privilegiado faz com que a sensao de transparncia do tmido seespraie pelo mundo, expressando ao mesmo tempo anseio de amor exclusi-vo do outro e receio intenso de que o outro no corresponda a esse anseio,rejeitando-o e humilhando-o.

    Outra paciente diz que tem muito a dizer, o que infelizmente no consegue,sobretudo na presena de mais de uma pessoa. Este aspecto frequente entre ostmidos. O olhar de mais de um os dilacera. Segundo seu relato, ningum diriaque ela inteligente apenas observando-a, o que ela de fato aguarda. Ela suplicapela segurana de uma mirada que extrasse os seus atributos ideais de uma s

    vez. Ao invs disso, a opacidade do olhar alheio comum, a outra pessoa, o maisde um, a reenvia para o abismo. Na sala de aula, como se estivessem olhandopara ela e pensando: coitada, ela no consegue, o que ela est dizendo?! Nod para entender nada!, quem ela pensa que ?!. O outro privilegiado nofoi capaz de manter sua promessa.

    A distncia cada vez mais sentida entreproteo pela transparnciae a experinciade extenso da transparncia a qualquer olharfaz com que o outro mais de um se tornecada vez mais um estranho, a quem no posso conhecer, mas que pode (isto

    sempre uma pergunta, raramente uma certeza) me conhecer inteiramente naminha transparncia e, assim, me julgar.O tmido se v permanentemente como um ru num suposto tribunal do

    olhar (AVRANE, 2007, p.160) e evita dar provas aos promotores de que h algoabjeto em seu interior. Ao tribunal do olhar, o tmido convidado sem cessar.Suas confisses se tornam um pleito [...]. Tanto as figuras mostradas quanto osgestos ou textos expostos os colocam em evidncia. As estratgias no so iguais,mas a necessidade de um julgamento pelo olhar absoluta (idem, ibidem.Traduo livre).

    O tribunal, entretanto, ocupa cada vez mais espao em seu mundo e umperigo deve ser fonte de suas precaues: o perigo de ser descoberto. A angs-tia antecipatria do tmido (PACHECO-FERREIRA, 2012) fonte privilegiada

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    de mal-estar, uma vez que ele no tem como saber o que deve esconder. Estaforma particular de angstia, como Freud j sublinhara (1917/1993), umamedida protetora. Est conjugada necessidade de se mostrar incessantemen-

    te e conhecer todos os detalhes do modo como recebe o retorno deste olhar. tambm uma forma de apelo desesperado ao reconhecimento: A timidez cedelugar em seguida provocao, isto , a uma forma de procurar no olhar dooutro o reconhecimento e nele encontrar a imagem esperada (AVRANE, 2007,p.161. Traduo livre).

    Esta provocao, sempre fracassada, expressa dois sentidos para a transparn-cia psquica: ser inteiramente acessvel percepo do outro ou, ao contrrio,ser invisvel.

    O sujeito deseja ser reconhecido como objeto de investimento do outro, teme,

    porm no possuir os predicados que o outro, supostamente, desejaria que ele

    tivesse. Resultado: nem quer ser visto nem quer deixar de ser visto. O paradoxo

    o cerne do sujeito envergonhado (COSTA, 2012, p.12).

    PARA CONCLUIR

    Procuramos demonstrar, por meio do exemplo do sujeito dito tmido, que h

    todo um universo do olhar a ser explorado pela clnica psicanaltica contempo-rnea. O tmido testemunha a hipertrofia do campo escpico, produzindo certostipos de sofrimento que qualificamos como embarao, humilhao e transpa-rncia psquica. Estas modalidades de padecimento interrogam diretamente oslimites do olhar para mediar de modo absoluto a relao com a alteridade. Cabeaos psicanalistas descobrir, na clnica singular de cada um, meios de alcanaralguma relativizao para o peso da mirada alheia.

    Recebido em 15/1/2014. Aprovado em 17/2/2014.

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