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João Carlos Pereira Caramelo
Educação e desenvolvimento comunitário
num processo de transição autogestionário
Tese de Doutoramento em Ciências da Educação
Fevereiro de 2009
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Educação e desenvolvimento comunitário
num processo de transição autogestionário
João Carlos Pereira Caramelo
2009
Dissertação apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto para obtenção do grau de Doutor em Ciências da Educação, sob a
orientação do Prof. José Alberto Correia e co‐orientação do Prof. José Francisco de Melo
Neto.
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Resumo
Este trabalho constitui essencialmente uma problematização e uma reflexão teórica, ilustrada
empiricamente a partir de um caso de estudo (o processo de transição para a autogestão de uma
usina de açúcar do nordeste brasileiro), acerca de algumas das questões que se colocam à relação
entre educação e desenvolvimento comunitário local no presente momento histórico. Este trabalho
adopta como pressuposto a simultânea importância e inevitabilidade da presença do educativo nas
dinâmicas de desenvolvimento sócio‐comunitário, seja assumindo a forma de práticas sociais
diversas que de forma intencional procuram produzir efeitos de transformação dos sujeitos, das suas
interacções e da sua relação com o território em que (con)vivem e trabalham, seja na qualidade de
efeitos induzidos nos sujeitos sociais, individuais e colectivos, a partir do seu envolvimento nos
processos e práticas sociais accionados no sentido da promoção da mudança e do desenvolvimento
comunitário. Neste sentido, a discussão aqui ensaiada centra‐se, por um lado, nas características,
funções e qualidades que os processos educativos podem adquirir, equacionadas a partir dos
sentidos diversos que os sujeitos sociais envolvidos numa dinâmica de mobilização colectiva lhe
atribuem e, por outro lado, procura igualmente caracterizar os efeitos educativos, individuais e
colectivos, que a mobilização e participação no âmbito de um processo de transformação sócio‐
comunitária provoca nos sujeitos sociais. O trabalho que se apresenta constitui ainda uma
oportunidade para reflectir as questões metodológicas que se levantam à pesquisa qualitativa no
domínio das relações entre educação e desenvolvimento comunitário, designadamente no que
concerne as práticas de construção dos dados empíricos e as opções teóricas e epistemológicas que
sustentam a análise e interpretação daqueles dados e que supõem a inexorável afirmação de uma
postura dialéctica na produção de um conhecimento simultaneamente sensível aos sentidos e
significados atribuídos pelos sujeitos sociais à sua acção e às condições objectivas e estruturais
dentro das quais aquela acção e os discursos se tecem. O possível contributo para o conhecimento
em ciências da educação resultante desta pesquisa situa‐se eminentemente na argumentação em
prol da necessidade do desenvolvimento de categorias híbridas de análise do educativo presente nas
dinâmicas de desenvolvimento sócio‐comunitário, bem como em prol da necessidade de resgatar a
gramática produzida no campo das abordagens críticas do desenvolvimento local e comunitário para
dar conta das tensões e contradições que num contexto de globalização neoliberal atravessam a
definição política e educativa das dinâmicas de promoção da mudança social.
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Resumée Ce travail est essentiellement une problématisation et réflexion, empiriquement illustrée à partir
d’un cas d’étude (le processus de transition à l’autogestion d’une usine de sucre du nord‐est du
Brésil), autour de quelques questions qui se posent à la relation entre éducation et développement
communautaire local dans le présent moment historique. Le travail adopte comme présupposés la
simultanée importance et inévitabilité de la présence de l’éducative dans les dynamiques de
développement sociocommunautaire, soit en assumant la forme de pratiques sociaux diverses qui
de forme intentionnel cherchent à produire des effets de transformations des sujets, de ses
interactions e da sa relation avec le territoire où coexistent et travaillent, soit dans la qualité d’effets
induits dans les sujets sociaux, individuelles et collectives, à partir de sa participation dans les enjeux
et pratiques sociaux qui se mènent en marche pour promouvoir le changement et le développement
communautaire. Dans ce sens, la discussion qu’on entraîne est centrée, par un côté, dans les
caractéristiques, fonctions et qualités que les processus éducatifs peuvent assumer, réfléchis à
partir des divers sens qui les sujets sociaux impliqués dans une dynamique de mobilisation collective
leur attribuent et, par une autre côté, notre discussion cherche aussi à caractériser les effets
éducatifs , individuelles et collectives, que la mobilisation et participations dans un processus de
changement sociocommunautaire apporte aux sujets sociaux. Le travail est aussi une opportunité
pour réfléchir les questions méthodologiques qui se posent à la recherche qualitative dans le
domaine des relations entre éducation et développement communautaire, en particulier dans ce
que concerne les pratiques de production des données empiriques et les options théoriques et
épistémologiques qui soutiennent l’analyse et l’interprétation de ces données et qui supposent
inexorablement l’affirmation d’une posture dialectique dans la production d’une connaissance
simultanément sensible aux sens e significations attribués par les sujets sociaux à sa action et aux
conditions objectives et structurelles à l’intérieur desquelles sa action et discours se tissent. La
contribution potentielle de ce travail pour la connaissance en sciences de l’éducation c’est peut‐être
la argumentation autour de la nécessité du développement des catégories hybrides d’analyse du
éducatif qui est présent dans les dynamiques de développement communautaire, bien que la
nécessité de récupérer la grammatique produite dans le champ des approches critiques du
développement local et communautaire pour appréhender les tensions et contradictions que dans
un contexte de globalisation néolibéral traversent la définition politique et éducatif des dynamiques
de promotion du changement social.
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Abstract This work mainly intends to be a theoretical reflection and questioning, empirically
illustrated through a case of study (the transition process to an employee ownership situation of a
sugar cane factory in the Brazil northeast), of some of the issues about education and local and
community development relations at the present historical moment. This works intentionally
assumes the relevance and inevitability of the educative phenomena in the socio‐community
development processes, either when it assumes the form of diverse intentional social practices
intending to produce transformational effects in the social subjects, their interactions and their
relation with the territory where they co‐exist and work, either when it appears as unintentional
effects induced, individually and collectively, in the social subjects through their involvement in the
social processes and practices carried way with the intention of promoting social change and
community development. In this sense, our discussion is centred, on one side, in the characteristics,
functions and qualities that educational processes may acquire, understood through the lens of the
diverse meanings that social subjects, involved in a collective mobilisation process, attribute to those
processes and, on the other side, aims to characterize the individual and collective educational
effects that the mobilisation and participation in a socio‐communitarian change process provokes in
social subjects. This work is also an opportunity to reflect the methodological issues raised by
qualitative research in the field of the education‐community development relations, namely in what
concerns the practices of empirical data production and the theoretical and epistemological choices
that underlie the analysis and interpretation of those data and that supposes an inexorable
affirmation of a dialectic approach in order to produce a knowledge simultaneously sensitive to the
senses and significations attributed by social subjects to their action and to the material and
structural conditions within which the action and discourse is sewed. A possible contribution of this
work to the sciences of education field knowledge lays in the arguing for the necessity of developing
hybrid categories to analyse educational phenomena present in the socio‐communitarian
development processes, as well as the necessity of rescuing the theoretical grammar produced in
the field of local development critical approaches hence that grammar may be able to apprehend
the tensions and contradictions that in the present context of neoliberal globalisation cross the
political and educative definition of social change dynamics.
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Dedicatória
Aos trabalhadores e trabalhadoras de Catende
À minha mãe
Ao meu pai (in memoriam)
Ao meu irmão,
À Sónia
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Agradecimentos Aos trabalhadores e trabalhadoras de Catende pela inspiração que constituem para os que precisam
de acreditar que é possível construir um mundo mais justo. Em particular devo agradecer aos trabalhadores e
trabalhadoras que se disponibilizaram gentilmente, muitas vezes interrompendo os seus afazeres, para
conversarem comigo e me dizerem das suas vidas;
Aos meus orientadores José Alberto Correia (FPCEUP) e José Francisco de Melo Neto (UFPB) a quem
devo a oportunidade de ter conhecido e vivido em Catende uma das experiências humanamente mais
marcantes da minha vida. E também por me terem ajudado a pensá‐la (se tal não aconteceu, não é
certamente da sua responsabilidade, mas exclusivamente da minha). E a ambos, igualmente, um
agradecimento especial pelo indizível da relação de amizade que com eles mantenho;
Aos colegas e amigos da FPCEUP que me incentivaram constantemente e com quem pude partilhar
sofrimentos e dúvidas e a cuja solidariedade profissional e amizade pessoal se deve a criação de condições
para que este trabalho se fizesse, muitas vezes com o sacrifício abnegado das suas próprias condições de
trabalho (devo em particular destacar os professores Manuel Matos, Manuela Terrasêca, Teresa Medina e José
Alberto Correia que asseguraram imensas aulas por mim). E também a todos aqueles a quem deixei de
acompanhar nos projectos de pesquisa comuns, em particular nos momentos mais penosos da tese, não
porque o meu contributo fosse importante para esses projectos, mas porque se viram obrigados a suportar
nas suas costas um compromisso que era também meu;
Aos amigos e amigas de ambos os lados do Atlântico com quem me cruzei nesta longa viagem e que
pelos seus conselhos e alentos amigos, acolhimento, trabalho generoso, escuta sensível e palavra partilhada
foram imprescindíveis à chegada a bom porto desta empresa. Em Portugal e no Brasil sempre estiveram
presentes e disponíveis, são parte deste trabalho já que tudo fizeram para me ajudar e neles encontrei
inspiração e, várias vezes, a força para não abdicar. Não posso então deixar de agradecer profundamente a:
Ademar Aires, Alexandra Sá Costa (pela tua inteligência, duro labor e perspicácia crítica inesgotáveis), Amélia
Lopes, António Magalhães, Ariana Cosme, Arnaldo Liberato, Bete, Bruno Monteiro, Carina Coelho, Carlinda
Leite, Cláudia Rodrigues (leitora crítica e oráculo lúcido), Cleide do Nascimento, Cristina Rocha, D. Dora,
Edilene do Nascimento, Elisabete Ferreira, Fátima Pereira, Fernanda Dantas (in memoriam), Francisco
Mendonça, Helena Araújo, Helena Barbieri, Henrique Vaz, Humberto Lopes, Irene Terrasêca, Isabel Menezes,
Ivonaldo Leite, Izabel Mota, João Francisco Souza, Laura Fonseca, Lenivaldo Lima, Leonor Terrasêca, Luciano
Correia, Luís Carlos Martins (autor de uma leitura e revisão minuciosa, inteligente e questionadora), Luísa
Álvares Pereira, Luzitânia Lima, Manuel Matos, Manuela Ferreira, Manuela Terrasêca, Margarida Felgueiras,
Maria José Magalhães, Mário Borba, Marivaldo Andrade, Natércia Pacheco, Orquídea Coelho, Paulo Nogueira,
Paul Singer, Preciosa Fernandes, Risadalvo da Silva (São), Rosa Nunes, Rui Canário, Rui D’Espiney, Rui Trindade,
Rui Leal, Sofia Marques da Silva, Sónia Dantas (obrigado, mil vezes infinito!), Sónia Kruppa, Teresa Medina e
Tiago Neves. E que a vida me permita demonstrar‐lhes o significado que todos têm para mim.
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Siglas
ABONG Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
ABRINQ Fundação ABRINQ – Instituição sem fins lucrativos criada em 1990 com o objectivo de mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência
ACR Animação dos Cristãos no Meio Rural
ADENE Agencia de Desenvolvimento do Nordeste
ADS Agência de Desenvolvimento Solidário
ANTEAG Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão
e Participação Accionária
Articulação das
Entidades na Mata Sul
Espaço de reflexão em que Associações Urbanas e Rurais, Organizações Não Governamentais, Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais e Centros de Mulheres se articulam em torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata Sul de Pernambuco
ATR Açúcar Total Recuperado
BAG Bolsa Autogestionária
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social
BNE Banco do Nordeste
CCBA Centro Cultural Brasil Alemanha
CDI Comité de Democratização da Informática
CDI Centro (ou Comité) de Democratização da Informática
CEAAL Conselho de Educação de Adultos da América Latina
CEAS Centro de Estudos e Acção Social
CENTENAS Central de entidades associativas do município de Catende
Centro de Mulheres do Cabo Organização Não‐Governamental, emergente das lutas populares e da explosão do movimento de mulheres na década de 80, vem desenvolvendo acções que visam conscientizar as mulheres sobre
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seu papel na sociedade, priorizando a formação de multiplicadoras e fortalecendo a luta das mulheres contra as desigualdades de género e pela afirmação da cidadania. As acções do CMC são substanciadas em processos e práticas sócio‐educativas inspiradas no feminismo que resgatam a mulher enquanto sujeito e cidadã
CENTRU Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais
CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CONAB Companhia Nacional de Abastecimento
CONDEPE Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana
CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT Comissão Pastoral da Terra
CUT Central Única dos Trabalhadores
DAP Declaração de Aptidão
DRT Delegação Regional do Trabalho
EIC Escola de Informática e Cidadania
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FASE Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Nacional
e do Estado de Pernambuco
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
FBB Fundação Banco do Brasil
FETAPE Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de
Pernambuco
FIAN Food First ‐ Information & Action Network
FINEP Financiadora de Estudos e Projectos
FPM Fundo de Participação dos Municípios
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FKA Fundação Konrad Adenauer
FUNDAJ Fundação Joaquim Nabuco
FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento de Ensino Fundamental e
de Valorização do Magistério
IAA Instituto do Açúcar e do Álcool
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MCT Ministério da Ciência e Tecnologia
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ONG Organização Não Governamental
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
PEQ Plano Estadual de Qualificação Profissional
PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PROALCOOL Programa Nacional do Álcool
PROMATA Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável da Zona da
Mata de Pernambuco
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PRONAF Programa Nacional de Agricultura Familiar
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PRORURAL Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural
PUAMA (Rosa que Nasce nas Pedras)
Associação dos Jovens da Zona Urbana e Rural, Filhos e Filhas dos
Trabalhadores e Trabalhadoras do Projecto Catende Harmonia
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa
SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária
SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem na Agricultura
SEPLANDES Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social do Estado de
Pernambuco
SINDAÇUCAR Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Açúcar e do Álcool
SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia
SRA Secretaria de Reordenamento Agrário
STR Sindicato de Trabalhadores Rurais
SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco
UNEFAB União Nacional das Escolas de Famílias Agrícolas do Brasil
ZPA Zona de Produção Agrícola
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Glossário
“Aceder ao PRONAF”
Nos últimos anos, já durante a vigência do primeiro Governo do Presidente Lula da Silva, foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar que permite o acesso a várias linhas de crédito bonificado aos agricultores familiares. O Projecto Catende Harmonia fomentou a candidatura dos trabalhadores a créditos para custeio e investimento no âmbito do Programa Cana de Morador. Este processo implica o recenseamento dos trabalhadores e a elaboração de candidaturas através do preenchimento de formulários técnicos que, por vezes, são acompanhados de pequenos projectos descritivos da utilização prevista para o crédito. Após a aprovação das candidaturas, o dinheiro é distribuído aos trabalhadores através do Banco do Brasil.
Administração da Usina
A designação comummente aplica‐se ao grupo de pessoas que inclui o Síndico da massa falida, os assessores técnicos, o advogado dos trabalhadores demitidos em 1993 e os responsáveis pela área financeira da Usina Catende. Neste sentido, os trabalhadores não se incluem na administração que lhes aparece enquanto corpo relativamente autónomo no empreendimento autogestionário em que participam.
Agrofloresta Projecto que visa promover a defesa, preservação e recuperação da Mata Atlântica nas terras do projecto Catende Harmonia através da mobilização e participação social em actividades de educação ambiental, reflorestamento de áreas de preservação permanente e áreas degradadas, procurando melhorar as condições de vida dos moradores e da população em geral.
“Apontamento da Usina”
Trabalho realizado durante o período de entressafra pelos operários da indústria e alguns serviços externos e que consiste na desmontagem total da maquinaria, a sua limpeza, reparação ou substituição e a recolocação da fábrica em condições de moer.
Associação de Moradores
Organização representativa dos moradores de um engenho, é eleita pelos próprios moradores e normalmente representada pelo/a seu/sua presidente é o principal elo de ligação entre a Usina Catende e as comunidades rurais e tem participação no Comité Gestor do Projecto Catende Harmonia. Algumas das Associações de Moradores desenvolvem projectos no âmbito das suas comunidades com o apoio do Projecto Catende Harmonia ou de algum dos seus parceiros e, mais raramente, de modo autónomo.
Barracão Nos engenhos existia um armazém, normalmente explorado por alguém da confiança do “senhor de engenho” quando não mesmo da propriedade deste, onde os trabalhadores rurais se abasteciam dos produtos necessários à sua subsistência. Comummente, o salário dos trabalhadores era‐lhes distribuído pelo responsável pelo barracão e nele eram automaticamente abatidos os valores em débito de datas anteriores (“descontar em folha”). Em tempos mais longínquos, os trabalhadores recebiam um vale (e não um salário) que trocavam por bens nestes estabelecimentos. Estas práticas desapareceram, mas as construções em que funcionaram os barracões ainda permanecem nos engenhos.
Biofábrica Proposta pela FINEP, entidade do Governo Federal, prevê a implementação na Usina Catende de uma unidade de pesquisa e manipulação genética que permita, num primeiro momento, aprimorar a semente de cana‐de‐açúcar a empregar no plantio da área específica do Projecto Catende Harmonia e, posteriormente, realizar um trabalho semelhante a propósito de outras culturas
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que permita desenvolver processos de diversificação agrícola.
Cana de Morador Programa encetado pelo Projecto Catende/Harmonia a partir de 1998 e que consta da distribuição aos trabalhadores/moradores dos engenhos de parcelas de terra para cultivo de cana‐de‐açúcar, ficando os trabalhadores com o compromisso de vender à Usina Catende a produção resultante. Este programa integra‐se nas medidas de incentivo à agricultura familiar, uma vez que o seu pressuposto é de que é a unidade familiar que desenvolve autonomamente as tarefas agrícolas, assume os custos de produção e usufrui dos proventos resultantes. A Usina presta apoio técnico, quer no acompanhamento dos tratos culturais, quer nos procedimentos que permitem o acesso aos programas estatais de crédito para apoio à produção agrícola familiar.
Cartilha Brochuras construídas pela equipa de educação e editados pela UFPB no âmbito de um projecto financiado pela ONG Manos Unidas com os títulos “Por uma cultura de autogestão” e “Técnicas e custos do plantio da cana”. Constituem instrumentos pedagógicos (didácticos?) que integram informação sobre o projecto Catende Harmonia e sobre a produção canavieira e, essencialmente, um conjunto de questões e de exercícios para dinamizar sessões de formação/debate com os trabalhadores. A designação é comummente empregue para identificar conjuntos de materiais de formação sistematizados
Cestas básicas Nos períodos de grande crise económico‐financeira, particularmente entre 1995 e 1996, o projecto Catende Harmonia teve de recorrer à aquisição de alimentos básicos que distribuiu numa lógica emergencial pelos trabalhadores. Nos períodos de atraso prolongado de pagamento dos salários, a aquisição e a distribuição de cestas básicas pelos trabalhadores continua a ocorrer.
Chalé do Alto Antiga Casa Grande, hoje transformada em Centro de Formação do Projecto Catende Harmonia e espaço de reunião do Comité Gestor do Projecto Catende Harmonia e das Associações de Moradores. Casa de traça colonial sobranceira à cidade de Catende
Chalés da Usina O património da Usina Catende integra um conjunto de casas de traça colonial que são hoje utilizadas ao serviço do Projecto Catende Harmonia e que eram as casas dos “senhores de engenho”. A maior e mais preservada dessas casas, principal casa dos usineiros, situada lateralmente à fábrica, serve de habitação e refeitório aos técnicos que estão deslocados em Catende durante a semana de trabalho.
CPI em Catende Comissão Parlamentar de Inquérito ordenada pelo Governo Estadual de Pernambuco à Usina Catende em 1999. Esta Comissão foi a Catende realizar uma auditoria sobre o possível mau uso de fundos públicos transferidos pelo anterior governo do estado que tinha sido presidido por Miguel Arraes, defensor desde a primeira hora do processo vivido em Catende. A CPI não identificou qualquer irregularidade na Usina Catende e o seu encerramento foi pedido pelos mesmos que a solicitaram
“Colectivo” Figura invocada para designar o conjunto de integrantes do Projecto Catende Harmonia. Normalmente, na prática, refere‐se essencialmente ao grupo de pessoas constituído por representantes das Associações de Moradores, Administração da Usina, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Técnicos, Assessores, Equipa de Educação...que se reúne periodicamente para tomar conhecimento, debater e decidir em torno de questões conjunturais e estratégicas do projecto. É essencialmente uma figura de “geometria variável” mas de forte ressonância simbólica no projecto Catende Harmonia.
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Comissão de Fábrica Representantes dos operários da fábrica. A sua participação e relação no/com o Projecto Catende Harmonia foi severamente comprometida na sequência da greve de Dezembro de 2003, de que os operários foram protagonistas. A sua conotação com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Açúcar e do Álcool, opositor por várias vezes ao processo vivenciado em Catende, é também uma forte razão para o ostracismo e apagamento a que na prática a Comissão de Fábrica foi votada na vida do Projecto Catende Harmonia.
Comité Gestor Comissão permanente, mas de composição flutuante, que pode integrar representantes das Associações de Moradores, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, dos operários, dos funcionários administrativos, da Administração da Massa Falida que reúne semanalmente para tomar conhecimento, debater e decidir assuntos estratégicos ou conjunturais do Projecto Catende Harmonia. A sua origem encontra‐se no processo de venda de açúcar à CONAB em 2004, quando foi decidido constituir uma comissão que deveria estudar a prioridade dos investimentos a realizar com o dinheiro proveniente dessa venda. Esta comissão inicial alargou‐se na sua composição e a periodicidade do seu encontro tornou‐se semanal.
Companhia Agrícola Harmonia
Entidade criada em 1998 com a intenção de se constituir em herdeira do património da usina Catende após o encerramento do processo judicial de falência e ainda com o intuito de criar uma organização com um estatuto jurídico que permitisse ultrapassar as limitações da massa falida na relação com entidades externas. Manteve um estatuto legal relativamente ambíguo e não entrou no léxico comum dos trabalhadores para se referirem à Usina Catende.
CONAB (venda de açúcar)
A Companhia Nacional de Abastecimento gere um Programa de Aquisição de Alimentos provenientes de agricultura familiar para o Governo Federal. Os alimentos assim adquiridos são utilizados no âmbito de políticas públicas de combate à fome, de que o exemplo mais reconhecido é o Programa Fome Zero. O Projecto Catende Harmonia, através dos seus trabalhadores, organizados pelas associações de moradores, montou uma operação de venda de açúcar à CONAB como se de um produto de agricultura familiar se tratasse o que lhe permitiu em dois anos consecutivos um aporte de recursos suficiente para atravessar a entressafra.
Consórcio de Jovens Trabalhadores Rurais
Projecto candidatado em parceria com a FASE ao Governo Federal (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e designado “Juventude com Harmonia” com o intuito de estimular o espírito empreendedor dos jovens e promover o protagonismo juvenil através de acções de qualificação (formação), visando igualmente a promoção de um desenvolvimento local sustentável.
Cooperativa Harmonia de Produção Agroindustrial dos Agricultores e Agricultoras Familiares
Entidade criada em finais de 2004 e que de acordo com os seus estatutos visa “a integração social e produtiva dos cooperados; a associação cooperada de bens e serviços para o exercício de sua atividade econômica, no interesse comum e sem finalidade lucrativa, compreendendo a execução de atos cooperativos, direcionados, entre outros, à realização e oferta coletiva da sua produção familiar e dos seus serviços; celebração coletiva de operações comerciais e contratos; cobrança e recebimento do preço contratado para os seus produtos e serviços; registro, controle e distribuição dos resultados, sob a forma de produção ou de valor referencial, bem como a apuração e a atribuição aos cooperados das despesas da sociedade”
Credores da Usina O conjunto de trabalhadores demitidos pelos usineiros sem verem respeitados os seus direitos trabalhistas (salários e indemnizações) e que aguardam o final do processo judicial de falência para receber. O maior grupo de credores
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reconhecido é constituído pelos 2300 demitidos de 1993 – por isso algumas vezes faz‐se coincidir a designação de credores com a de demitidos – mas o seu número total ascende a cerca de 3000 pessoas.
Cursos da Massa
Expressão utilizada para designar os cursos e respectivos estágios de cariz profissionalizante desenvolvidos com jovens pelo Projecto Catende Harmonia e realmente intitulados “Curso de Técnicas de Gerenciamento em Produção Agrícola” e “Curso de Técnicas de Produção na Agroindústria Canavieira”
Cursos da Fundação Banco do Brasil
Conjunto de acções de capacitação/formação em torno da autogestão e economia solidária realizados com cerca de 400 trabalhadores/moradores do Projecto Catende Harmonia no ano de 2005, financiados pela Fundação Banco do Brasil. A produção numa perspectiva de economia solidária e autogestionária foi eleita como eixo central do trabalho educativo destes cursos, a partir do qual se definiram como possíveis temáticas as questões do crédito e da produção canavieira.
Escola de Informática e Cidadania
Projecto de instalação de uma sala de computadores no agrupamento escolar Herculano Bandeira e de formação de monitores de informática, articulado pela associação de jovens PUAMA junto do Centro Cultural Brasil/Alemanha que financiou a aquisição do equipamento e a formação dos jovens como monitores. Esta Escola pretende prestar serviços – cursos de informática – à comunidade da cidade de Catende e dos engenhos da Usina Catende, bem como aos alunos do próprio grupo escolar. Este projecto inscreve‐se no que o Projecto Catende Harmonia considera ser a promoção do protagonismo juvenil e aparece igualmente designado em outros momentos como Núcleo de Inclusão Digital.
Empresa de trabalhadores
Expressão encontrada para traduzir a ideia de empresa autogestionária nas conversas, reuniões e debates com os/as trabalhadores/as enquanto rumo desejado/visado do Projecto Catende Harmonia.
Engenho Comunidades rurais constituídas pelos arruados, isto é, o conjunto das habitações dos moradores dos engenhos e uma área agrícola envolvente, normalmente de grande dimensão para o cultivo de cana‐de‐açúcar. Em outras regiões corresponde ao termo de fazenda. O termo mantém uma ressonância colonial já que nesse contexto o engenho correspondia também ao local de transformação da cana‐de‐açúcar.
“Entrar no FAT” O Fundo de Amparo ao Trabalhador envolve a suspensão temporária do vínculo laboral e do exercício de actividade profissional (por 5 meses) – com incidência no período de entressafra – em troca da frequência de acções de formação desenvolvidas pela Usina, Sindicatos ou outras entidades para os trabalhadores que reúnam as condições de o fazer, assegurando os trabalhadores uma bolsa de qualificação profissional (paga pelo FAT) cujo diferencial face aos salários que esses trabalhadores receberiam normalmente é assegurado pela Usina. Este é um instrumento mobilizado pela Usina para a redução dos seus encargos no período em que menos força de trabalho é necessária.
Entressafra Período compreendido normalmente entre Março e Setembro de cada ano em que a moagem (transformação) da cana‐de‐açúcar é interrompida atendendo ao ciclo vegetativo da cana‐de‐açúcar, se procede ao apontamento da fábrica – isto é, à sua desmontagem, reparação e remontagem – e a tratos culturais no campo.
Equipa da Harmonia Nome genérico atribuído ao conjunto de técnicos/as que têm uma intervenção na planificação, organização, gestão, animação e avaliação em diversos
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(ou equipa de educação)
projectos de sua iniciativa ou em parceria com entidades externas e com uma intencionalidade e/ou finalidade educativa.
Grupo Escolar Herculano Bandeira
Escola montessori que pertence à Usina e é por si financiada. Fica situada no coração da cidade de Catende e os seus alunos/as são essencialmente os filhos/as dos operários da fábrica e ainda algumas crianças provenientes dos engenhos próximos à cidade, filhos/as de trabalhadores rurais da Usina Catende. O grupo escolar tem cerca de 400 alunos e integra crianças até aos 14 anos. Até ao início dos anos 90 esta escola coordenava uma rede de escolas (entre 15 a 20) dos engenhos da Usina Catende.
Hierarquia do campo
Na coordenação da produção da cana os engenhos estão agrupados Zonas de Produção Agrícola – ZPAs. Essas zonas são, grosso modo, correspondentes às antigas capitanias coloniais, para as quais o senhor de engenho nomeava um capitão. Este, por sua vez, tinha ao serviço um administrador por engenho que comandava um conjunto de funcionários chamados cabos, que ordenavam o trabalho dos trabalhadores agrícolas. Os administradores e cabos permanecem no Projecto Catende Harmonia ainda que com funções diferenciadas das que lhes eram acometidas no tempo das capitanias. Os antigos capitães foram substituídos por Supervisores de ZPAs.
“Juiz da massa” Designação comum para o juiz encarregue do processo de falência da Usina Catende.
Lavoura branca Produtos agrícolas produzidos numa lógica de subsistência familiar (segurança alimentar) pelos trabalhadores/as em pequenas áreas de roçado, normalmente junto dos núcleos habitacionais rurais. Esta prática era praticamente proibida no período anterior à falência da Usina Catende e ao início do processo autogestionário dado que ou as terras estavam integralmente ocupadas com cana‐de‐açúcar ou as culturas eram sujeitas a uma destruição sistemática a mando dos usineiros.
Liderança(s) comunitária(s)
Expressão utilizada para designar a pessoa ou conjunto de pessoas reconhecidas pelo Projecto Catende Harmonia como tendo uma influência marcante nas suas comunidades rurais (engenhos) e, ao mesmo tempo, identificada com os princípios e valores do projecto. Por vezes coincidem com os/as presidentes das associações de moradores. Destas pessoas é esperado um papel mobilizador nas comunidades, que se constituam em elos de comunicação entre o projecto e os moradores/trabalhadores ou que ocupem papéis interventivos em iniciativas propostas ou desenvolvidas pelo projecto.
Mata Atlântica Todo o território abrangido pelas terras da Usina Catende foi em tempos idos floresta com características muito próprias designada Mata Atlântica, progressivamente foi devastada para fazer avançar o cultivo da cana‐de‐açúcar. Hoje restam pequenas áreas protegidas legalmente, normalmente em locais onde, pelas características do relevo, o cultivo de cana‐de‐açúcar não seria possível ou rentável.
Massa Falida Estatuto jurídico da Usina Catende na sequência do pedido de falência requerido pelos trabalhadores e aceite por um juiz da vara de falências de Recife. Este estatuto tem importantes consequências na preservação do património da Usina para futuro pagamento das dívidas trabalhistas acumuladas pelos Usineiros e permitiu a recuperação do património considerado alienado fraudulentamente pelos Usineiros até cinco anos antes do pedido de falência. Por outro lado, este estatuto impõe evidentes limitações na relação com entidades públicas ou privadas, como por exemplo Bancos ou
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entidades do governo estadual ou federal
Morador(es) Designa os trabalhadores rurais e respectivas famílias que habitam em qualquer um dos 48 engenhos da Usina Catende.
Policlínica Gouveia de Barros
Edifício que albergou um hospital dedicado ao atendimento dos trabalhadores e trabalhadoras da Usina Catende nos tempos do seu apogeu económico. O edifício retomou em parte a sua funcionalidade original com o trabalho que nele desenvolve a Comissão de Mulheres da Policlínica no âmbito da saúde sexual e reprodutiva da mulher.
Programa Cana de Morador
Iniciativa que desde 1998 confere aos moradores/trabalhadores rurais da Usina Catende o direito a plantar cana‐de‐açúcar em terras cedidas para o efeito pela administração da massa falida e que, tornando‐os fornecedores de cana para a usina, é uma forma complementar ao assalariamento de geração de renda individual e, igualmente, de comprometimento com o projecto colectivo de manutenção do funcionamento da Usina.
Projecto de Piscicultura
Esta iniciativa animada essencialmente pelo Centro Josué de Castro, do Recife, integra‐se no esforço de diversificação produtiva e começou por ter uma preocupação central com a questão da segurança alimentar das populações dos engenhos. Nesse sentido desenvolveu‐se num conjunto de engenhos a experiência de construção de barreiros (pequenas represas ou lagoas) para reprodução e criação de peixe. Num segundo momento previa‐se (prevê‐se) a possibilidade de criação de peixe em escala económica o que implica a sua distribuição e/ou comercialização. Este projecto tem integrado uma dimensão de capacitação/formação dos moradores dos engenhos onde decorre.
Projecto Catende Harmonia
Designação genérica atribuída aos processos experienciados na Usina Catende desde o pedido de falência articulado pelos trabalhadores junto das instâncias judiciais em 1995 e que dá origem à instituição de um processo de co‐gestão envolvendo os trabalhadores e a administração judicial da massa falida.
Projecto de produção de sementes de milho
Iniciativa que teve como proponente a associação de jovens PUAMA, mas sem uma existência independente do Projecto Catende Harmonia, envolveu vários parceiros de entre os quais se destaca o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Com a colaboração de técnicos e pedagogos da EMBRAPA, 4 grupos de jovens de diferentes engenhos experimentaram o processo de cultivo, transformação e comercialização de sementes de milho a partir de uma organização de unidades colectivas e solidárias de trabalho, integrando‐se assim numa experiência de diversificação produtiva agrícola.
PUAMA (Rosa que Cresce nas Pedras)
Associação constituída por jovens dos engenhos e da cidade de Catende, integrando essencialmente rapazes e moças que frequentaram os cursos e estágios realizados pelo Projecto Catende Harmonia. Tem como finalidade dinamizar projectos geradores de renda e emprego voltados para os jovens filhos/as de trabalhadores/moradores do projecto.
Safra Período compreendido normalmente entre Setembro e Março de cada ano em que se procede ao corte da cana‐de‐açúcar e à sua transformação em açúcar e/ou álcool nas usinas (fábricas).
Sala da Harmonia Espaço atribuído à Companhia Agrícola Harmonia nas instalações da Usina Catende. Por extensão passou a designar as pessoas que aí trabalham, nomeadamente os técnicos ligados especificamente à intervenção educativa e à administração do processo de acesso dos trabalhadores ao crédito
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xvi
Síndico da massa falida
Administrador nomeado pela justiça, com o acordo dos credores da massa falida, com a incumbência da preservação e gestão do património e actividade da Usina Catende até à conclusão do processo judicial de falência.
Situação contratual face à Usina Catende
Os trabalhadores rurais podem encontrar‐se em várias situações contratuais face à Usina: de modo genérico há os fichados que são os que possuem um contrato sem termo com a Usina e os safristas que constituem o grupo de trabalhadores contratado sazonalmente em face do aumento de volume de trabalho durante o período da safra (no campo e na indústria).
Usina Catende Designação genérica do complexo agro‐industrial que envolve 26 mil hectares de terras e a fábrica de transformação da cana‐de‐açúcar situada na cidade de Catende. O termo usina é simultaneamente usado para designar a parte (a fábrica) e o todo (o conjunto fábrica + terras). A designação jurídica oficial da Usina Catende antes da falência era Companhia Industrial do Nordeste Brasileiro.
Usineiros Designação utilizada para os antigos proprietários da Usina Catende e mais genericamente para todos os que são “donos/patrões de usinas”.
Venda antecipada Prática comum durante praticamente os primeiros dez anos do projecto Catende Harmonia, consiste na venda de parte da futura produção ainda durante o período da entressafra a “atravessadores” (intermediários especuladores) do mercado do açúcar a preços normalmente baixos. Esta prática permitia alguma capitalização da Usina para atravessar o período da entressafra mas, inevitavelmente, colocava‐a na situação de ter de entregar em tempo de safra parte da sua produção a um preço muito abaixo do então vigente no mercado. Esta prática foi tão mais danosa quanto o açúcar teve quebras sucessivas de preço de safra para safra o que obrigou o projecto a entregar cada vez mais açúcar para pagar aos atravessadores a quem tinha vendido antecipadamente.
ZPA Zonas de Produção Agrícola correspondem a unidades territoriais que dividem a área total de terra da Usina Catende e de acordo com as quais as tarefas do cultivo e corte da cana‐de‐açúcar são realizadas. Os engenhos da Usina Catende são identificados não só pelo seu nome próprio mas igualmente pela sua pertença a uma das 6 ZPA existentes.
-
xviiMudam‐se os tempos, mudam‐se as vontades,
Muda‐se o ser, muda‐se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar‐se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
“Mudam‐se os tempos, mudam‐se as vontades”
Luís Vaz de Camões
Mas na Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.
Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes
e que essa gente mesma
na boca da usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.
Por esta grande Usina
olhando com cuidado eu vou,
que esta foi a usina
que toda esta Mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
do brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a de pedra dura
furada pelo suor.
“Encontro com a Usina” (excerto), in O Rio.
João Cabral de Melo Neto
-
Índice
Introdução geral ___________________________________________________________ 5
Do auto‐questionamento à identificação de dimensões mobilizadoras para a
pesquisa________________________________________________________________________ 5
Finalidades, objectos e teses do trabalho de pesquisa __________________________ 14
A estrutura do trabalho __________________________________________________ 28
I SECÇÃO – O PANO DE FUNDO DA PESQUISA ___________________________________ 33
As teorias e as práticas do desenvolvimento ____________________________________ 35
As origens da noção de desenvolvimento ____________________________________ 40
A Teoria do Crescimento Económico e a Teoria da Modernização_________________ 45
A Teoria da Dependência _________________________________________________ 65
A viragem neo‐liberal: a recuperação da Teoria da Modernização e a Teoria da
Escolha Pública _________________________________________________________________ 79
As teorias de um desenvolvimento alternativo________________________________ 84
A emergência do local e da problemática do desenvolvimento local ___________ 138
O desenvolvimento comunitário ________________________________________ 163
A relação educação‐desenvolvimento____________________________________ 187
Desenvolvimento Local e Educação ______________________________________ 191
II SECÇÃO – INTERROGAÇÕES E PROBLEMATIZAÇÕES CONCEPTUAIS________________ 225
Elucidação e problematização de referentes teóricos da pesquisa enquadradores
da análise ____________________________________________________________________ 227
III SECÇÃO – FUNDAÇÕES METODOLÓGICAS∙___________________________________ 253
As opções metodológicas da pesquisa______________________________________ 255
O estatuto do conhecimento em/sobre o desenvolvimento comunitário e local e
cientificidade educativa____________________________________________________ 257
O processo discursivo de análise adoptado – a dialéctica ______________________ 267
-
2
Do "estranhamento ao entranhamento": a negociação do acesso ao terreno e os
usos sociais do pesquisador ______________________________________________________ 277
As opções “técnicas” de recolha de dados (as notas de terreno, as entrevistas e a
análise documental) ____________________________________________________________ 303
As notas de terreno___________________________________________________ 304
As entrevistas _______________________________________________________ 320
A pesquisa documental________________________________________________ 327
IV SECÇÃO – ILUSTRAÇÕES E RE‐INTERROGAÇÕES_______________________________ 333
O contexto da pesquisa: algumas referências sócio‐históricas e a sua dimensão
sócio‐política __________________________________________________________________ 335
A Usina Catende: uma breve sócio‐história entre a ascenção, a queda e a
ressurgência __________________________________________________________________ 357
As raízes da mobilização social em Catende: os movimentos sociais no campo
pernambucano e o trabalho da Igreja Católica progressista ____________________________ 371
As raízes da luta entre a história social e a história pessoal: a produção social
de militantes da intervenção política e sócio‐educativa _____________________________ 384
Educação, política e sindicalismo e conscientização dos trabalhadores _________ 397
O colapso da Usina Catende e a busca de alternativas: a luta sindical e dos
trabalhadores _________________________________________________________________ 409
A luta que começa ou o momento de «turbulência identitária» e os
fraccionamentos internos de um novo «sujeito histórico» ___________________________ 415
A entrada dos trabalhadores para a administração da massa falida da Usina
Catende e os desafios a enfrentar _________________________________________________ 445
A educação no processo de transição autogestionária em Catende: abordagem
sintagmática e paradigmática ____________________________________________________ 467
A formação de massas ________________________________________________ 471
A formação profissional de cariz político__________________________________ 516
A formação de quadros num contexto da diversificação organizacional ________ 551
Considerações finais ______________________________________________________ 565
Bibliografia Referida ______________________________________________________ 597
-
3
Bibliografia Consultada ____________________________________________________ 609
Listagem de Anexos _______________________________________________________ 629
-
4
Índice de Quadros e Gráficos
Quadro 1 – Principais características do desenvolvimento endógeno 104
Quadro 2 – Caracterização da abordagem da self‐reliance 108
Quadro 3 – Processos e resultados do Empoderamento 117
Quadro 4 – Componentes do conceito de desenvolvimento comunitário (ONU,
1954)
166
Quadro 5 – Concepções de desenvolvimento comunitário 180
Quadro 6 – Ideais‐tipo de animação 209
Quadro 7 – O grau de urbanização no município de Catende 347
Quadro 8 – A evolução da população no município de Catende 348
Quadro 9 – A evolução da população na cidade de Catende 348
Quadro 10 – Estrutura fundiária no município de Catende: Estabelecimentos
agrícolas x Tipo de propriedade e Área agrícola ocupada x Tipo de propriedade
350
Quadro 11 – Estrutura fundiária no município de Catende: quantidade, área e
percentagem de imóveis rurais em 1991 e 1998
350
Quadro 12 – N° Imóveis Rurais x Área agrícola ocupada 351
Quadro 13 – Indicadores de produção da Usina Catende 366
Gráfico 1 – Rendimento médio de cana‐de‐açúcar por hectare no Brasil e no
município de Catende, 1990 e 1999
368
Figura 1 ‐ A produção educativa dos militantes e activistas em Catende
388
Quadro 14 – Gramática do Desenvolvimento Local vs Gramática da Educação
Escolar
583
-
5
Introdução geral
Do auto-questionamento à identificação de dimensões mobilizadoras para a pesquisa
O envolvimento no trabalho que aqui se apresenta é o prolongamento natural
de um percurso pessoal e profissional que temos vindo a fazer no campo da educação
de adultos e do desenvolvimento local durante os últimos 12 anos, em várias
instituições e espaços de intervenção social. É por aí que gostaríamos de começar,
mostrando como o percurso seguido neste trabalho está eivado, em primeiro lugar,
pela nossa implicação psico‐afectiva e profissional1, e, depois, pela tensão entre o
primado da teoria que envolve a razão científica e a contingência do real, entre o
desejado e o possível, entre o projectado e o realizado2 mesmo se a depuração formal
da escrita de trabalhos de investigação não é, geralmente, muito sensível a este tipo
de “desvio”. Neste sentido, não é por acaso que partilhamos com Ardoino (2000:214) a
ideia de que se até há bem pouco tempo “os aléas3, as peripécias, os avatares da
investigação eram relegados para o estatuto de caixa negra, que pouco importava ter
em consideração”, hoje devem constituir‐se em materiais com direito de pertença ao
produto final, na medida em que permitem firmar‐se, para o autor, num dispositivo
com o qual e através do qual o pesquisador pode “trabalhar explicitamente a relação
1 Como muito bem o diz Alberto de Melo (2002:437), “ a vida consiste em uma combinação de acaso e opção, resultando as escolhas de um emaranhado de ideias e emoções”. 2 Em certa medida, a relação estabelecida com o “objecto” e as decisões sobre um percurso de investigação revelaram‐se inseparáveis e concomitantes. Nesse sentido, o objecto não deixou de ser um sujeito deste processo e o percurso não se limitou a ser escolhido, ajudou‐nos a escolhê‐lo. De acordo com Isabelle Stengers (1991:175 e sgs.), este processo obedece ao estabelecimento de uma relação “empática” com o objecto caracterizada pela “possibilidade que não seja o investigador, mas o material que “pose problème”, que tenha uma história a contar, que é necessário aprender a decifrar”. Nesta perspectiva, a “descoberta” confunde‐se com “a aprendizagem com” e o questionamento hipotético passa pela “dissolução do eu consciente, por uma abertura que “deixa vir a nós” o material, mas que significa, do mesmo modo, o abandono do conjunto de procedimentos intelectuais explícitos que permitem aos epistemólogos construir modelos de racionalidade” (Stengers, 1991). 3 Salvo referência explícita em contrário, as palavras e frases que aparecem a sublinhado ao longo do trabalho correspondem a palavras ou frases que se encontram em itálico no original. Esta opção prende‐se com o facto de termos usado como regra no corpo do trabalho a apresentação em itálico de todas as citações que fazemos, todos os termos apresentados entre aspas e alguns conceitos que queremos destacar na economia do discurso.
-
6
complexa implicação‐distanciação que o liga ao seu objecto” (idem: 214‐215), numa
atitude “eticamente fundamental a todo espírito científico” (idem:214)4.
Esse percurso tem‐se traduzido na militância5 em movimentos protagonistas
de dinâmicas de animação sócio‐comunitária que se afirmam como promotoras de
desenvolvimento local e comunitário6 (das iniciativas em que milito poderão constituir
exemplos particulares a defesa das pequenas escolas em meio rural, a educação de
infância itinerante ou a defesa de um associativismo cidadão contra a mercadorização
do laço social e a instituição de uma sociedade de serviços...)7 que é,
simultaneamente, uma militância contra as tendências políticas de desqualificação das
comunidades e dos territórios “periféricos” – designadamente o rural e o interior – que
4 Silva & Pinto (1986:132) acrescentam ainda que as “’histórias de pesquisa’ são inegavelmente importantes, sobretudo na medida em que constituam matéria‐prima para uma usualmente não elaborada reflexão, tanto epistemológica e metodológica como especificamente sociológica, sobre os processos de pesquisa enquanto processos sociais”. Certamente que as considerações que aqui tecemos não têm este alcance, ainda assim, preocupamo‐nos em realçar através delas as circunstâncias envolvidas na construção da investigação, procurando mostrar como as decisões que se tomaram no seu interior não derivaram estritamente de uma postura de conformidade face a uma utilização canónica do método científico e dos seus procedimentos mas que nos fomos também envolvendo numa “prática que não procede a partir de um julgamento geral decompondo um objecto de maneira normativa, definindo a priori aquilo de que deve ser capaz, a que tipo de questão deve responder, mas antes se dirige a uma realidade intrinsecamente dotada de significação, tratando‐se de a decifrar e não de a reduzir ao estatuto de ilustração particular de verdade geral” (Stengers, 1991:181). 5 Esta militância é indissociavelmente política e educativa identificando‐nos perfeitamente com o modo como Melo (2002:438) se refere a esta imbricação: “o tipo de trabalho político que encoraja continuamente os cidadãos a se tornarem mais autónomos, mais informados, mais poderosos em todos os sectores da vida pessoal e social deve denominar‐se Educação (crítica) ”, entendendo‐se por esta última uma “ educação [que] já não pretende fornecer respostas predefinidas, mas antes o oposto: significa estar atento aos problemas que as pessoas enfrentam e depois procurar e produzir os necessários conhecimentos, comportamentos e capacidades que poderão contribuir para a elaboração e implementação das respostas mais apropriadas e eficientes” (idem: 438‐439) 6 Ao longo deste trabalho vamos referir‐nos de forma relativamente indistinta a desenvolvimento local, desenvolvimento comunitário, desenvolvimento local comunitário ou desenvolvimento comunitário local para denotar um mesmo conceito, mesmo sabendo do esforço de alguns autores para estabelecerem fronteiras e critérios de distinção entre estas diferentes formas de declinação do desenvolvimento, como são por exemplo os casos de Amaro (2003) ou ainda Fragoso (2005). Assumimos que a matriz de todos estas declinações é o desenvolvimento local e, por outro lado, não estamos propriamente interessados em embarcar numa exploração essencialista que envolva a dissecação exaustiva das subtilezas destas distinções entre autores e tradições teóricas, na medida em que entendemos que o resultado a que chegaríamos não teria uma particular relevância para o trabalho de problematização e análise que levamos a cabo. 7 Conferir a este respeito, por exemplo, o significativo texto de Canário (2000a), onde são confrontados e discutidos os argumentos politica e cientificamente mobilizados no debate acerca do encerramento das pequenas escolas de 1º ciclo em meio rural. Em contraponto, leia‐se por exemplo a reflexão constante de Azevedo, (1994). Para uma discussão de distintas formas de associativismo que coexistem hoje na sociedade portuguesa e do seu sentido político face à promoção da cidadania é pertinente destacar a análise presente em Matos (2004).
-
7
equacionam o seu desenvolvimento estritamente a partir de juízos de valor técnico‐
funcionais, de carácter economicista, gestionário e pendor managerialista, e que
portanto concluem da sua “irracionalidade” no actual contexto societário e
equacionam simplesmente o seu futuro entre a conversão a um modelo de
desenvolvimento ocidentocêntrico, economicocêntrico ou urbanocêntrico ou... o
abandono à sua sorte. É também uma militância contra certos discursos que
qualificariamos de “puristas” (em boa verdade, são também “higienistas”, na medida
em todo o seu argumentário é também um receituário contra as contaminações
exteriores à pureza original do local a que se referem), apenas aparentemente
valorizadores das especificidades e potencialidades destes locais e comunidades
periféricos, na medida em que redundam numa concepção imobilista e conservadora
deste local e destas comunidades, tendências bastas vezes camufladas sob um
discurso que apela à preservação da utenticidade desta comunidades territórios
como forma de resistência à hegemonia urbanocêntrica e modernizadora,
condenando, paradoxalmente, estes territórios e as pessoas que os habitam ao
imobilismo como condição do
a s e
seu desenvolvimento (Correia & Caramelo, 2003).
Como facilmente se poderá perceber, esta militância inscreve‐se num terreno
verdadeiramente minado, em que traçar as linhas de fronteira entre opções
conservadoras e desqualificantes e opções progressistas e qualificantes exige um
esforço de lucidez política e teórica que ainda assim, por vezes, não é suficiente para
evitar a cooptação pela ideologia dominante e conservadora o que, na ordem da
produção, se pretendeu constituir como discurso e proposta de um “desenvolvimento
alternativo” que apontam a um outro desejo de sociedade, e isto porque também
vivemos num tempo em que face ao agravamento da “crise dos macro‐dispositivos de
integração social e dos macro‐instrumentos cognitivos usados para reconhecer, gerir e
desconhecer as dinâmicas sociais” (Correia & Caramelo, 2001; 2003; Caramelo &
Correia, 2004), a pretensa revalorização do local/comunitário como dispositivo de
gestão da questão social se tornou particularmente significativa do ponto de vista da
sua cooptação e instrumentalização política.
Mas, como muito dialecticamente sugere Heidegger, “é no seio do perigo mais
extremo que cresce o que salva”, o que nos permite preservar o sentido para esta
-
8
militância e imaginar que ao nível das práticas sociais e da irredutível liberdade
humana é possível encontrar o fio de Ariadne que, à luz da lucidez possível, não só nos
permita co‐definir e co‐produzir um percurso politica e eticamente fundado num ideal
de sociedade mais justa e solidária, como nos permita mesmo transformar as opções
societárias e as práticas sociais mais conservadoras e instituídas em possibilidades de
emancipação social, colectivamente erigidas. Nesse sentido, a profunda ambivalência
que hoje caracteriza o campo dos discursos, das práticas, das políticas acerca do
desenvolvimento local e comunitário não deixa de ser, algo ironicamente, diga‐se, o
terreno mais fértil para o exercício exigente e instituinte de um pensamento e de uma
praxis alternativos, mesmo se, como nos avisa René Char, poeta francês, “a lucidez é a
ferida mais próxima do sol”.
A nossa militância no campo do desenvolvimento local fez‐nos, contudo,
compreender que a exigência de lucidez é comparável ao «drama» que o filósofo
Sören Kirkegaard atribui à vida humana: esta só se compreende retrospectivamente,
mas tem de ser vivida no presente com um sentido futurante8. Com efeito, nos dias
que correm a lucidez ética, política e teórica é um desígnio cada vez mais complexo de
aplicar à acção humana numa lógica prospectiva, não só por causa dos fenómenos de
apropriação e transformação dos sentidos a que essa acção humana é sujeita ‐ pela
mediação das estruturas sociais, das relações de poder e pelas estruturas discursivas
que instituem um regime de verdade sobre aquela acção que não é necessariamente
homólogo do que esteve na sua origem, como por causa da propagandeada falência
das grandes metanarrativas (no que alguns autores, como Francis Fukuyama, chamam
simplesmente de «o fim da história») ‐ e que ao ser incorporada como verdadeira e
definitiva, tanta força da narrativa hegemónica do capitalismo que prevalece, nos
deixa, primeiro, desorientados e, depois de reagir, com todo um novo mundo de
possíveis a construir que tem tanto de desafiante como de atemorizador. De facto,
Thomas Moore e a sua ilha Utopia, que ontologicamente todo o ser humano contém
em si, nem sempre se revela na existência de cada um de nós e, muito menos, agimos
em conformidade com essa condição ontológica, principalmente quando somos
8 A frase exacta publicada na obra Philosophical Fragments há 150 anos é: “life can only be understood backwards. In the meantime, it has to be lived forwards”.
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9
“submersos” e condicionados todos os dias e pelas mais diversas vias a aceitar a
inevitabilidade e a desejabilidade do que existe e do rumo que marcará o nosso
futuro... Mais ainda, esta lucidez prospectiva não pode ser uma empresa individual ou
simplesmente de uma vanguarda iluminada, mas tendencialmente terá de ser uma
demanda construída democrática e colectivamente a partir de unidades bio‐físicas
concretas e de uma forma praxeológica (Finger, 1993), sob risco de incorrermos nos
erros que algumas experiências históricas revelaram à saciedade, abrindo o flanco à
sua erosão política e teórica. Ou seja, a lucidez prospectiva supõe esse difícil exercício
de erigir um futuro alternativo num presente constrangedor.
Mas, apesar das palavras de Kirkegaard, a lucidez retrospectiva é igualmente
complexa e não necessariamente transformante. Por um lado, seria suposto que a
história, e a reflexão sobre esta, nos tivesse vindo a ensinar sobre os efeitos
segregadores que um dado modo de organização da vida social provoca sobre a
grande maioria da população mundial. Mas parece que este conhecimento não é, ou
pelo menos não tem sido, condição da transformação global desses modos de
organização social. Daí que os limites da lucidez retrospectiva tenham sido bem
sintetizados por Karl Marx, no “18 Brumário de Luís Bonaparte”, quando sugere que a
história se repete, primeiro como farsa e depois como tragédia, ou seja, que não é o
conhecimento da história que a transforma necessariamente ou, se radicalizarmos
este raciocínio, o conhecimento não é em si mesmo transformador e emancipatório.
Ainda assim, é este o mesmo Marx que destaca as possibilidades desta lucidez
retrospectiva, se articulada com uma lucidez prospectiva, quando afirma que o tempo
de explicar a realidade, tarefa de que os filósofos que o antecederam se ocuparam,
necessitaria urgentemente de ser substituído por um tempo de transformação desta
mesma realidade. (Marx & Engels, 1982)9
Por outro lado, parece que a não ser que adoptemos uma grelha de leitura da
acção humana profunda e estreitamente balizada ética e politicamente ‐ sobre o que é
e não é justo, o que é progressista e o que é conservador, o que é emancipatório e o
que não é ‐ e cognitivamente dicotómica (o que é, é, e não pode ser outra coisa) que
9 As datas das referências bibliográficas apresentadas remetem sempre para a edição consultada, constante da bibliografia, apesar de nem sempre (como é obviamente o caso) corresponderem à data da sua primeira publicação.
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tenderá a visibilizar tanto como a ocultar e a dar significado ao que vemos
retrospectivamente, estamos «condenados» a admitir uma quase incomensurável
plurissignificação da acção humana e a complexidade, por vezes internamente
contraditória, dos seus efeitos. Ora, adoptando uma ou outra postura, a lucidez
retrospectiva permanece ainda assim uma capacidade limitada no seu potencial
transformador, num caso por defeito, noutro caso por impossibilidade de lidar com o
excesso de significação. E os contributos que nos aportará para pensar e realizar a
mudança social incorrem no perigo de, num caso, serem dogmáticos e, noutro caso,
erráticos.
Na nossa militância, a reflexão que temos produzido tem‐se pautado
essencialmente por uma tentativa, tensa e provavelmente nem sempre bem sucedida,
de compatibilização destas duas posturas: a primeira, diríamos que verdadeiramente
militante, supõe que não só sabemos por onde não queremos ir, como afirma um
conjunto de alternativas cognitivas e praxeológicas, sustentadas por uma postura ética
e política, que efectivamente permitam pensar e agir (n)o domínio do
desenvolvimento local; a segunda, incorpora os requisitos da produção de um
conhecimento científico reconhecido como válido pela comunidade de pares da
universidade, é pautado pela busca de restituição dos sentidos da acção e dos actores
envolvidos em dinâmicas de desenvolvimento local, mas também pela produção de
um conhecimento socialmente pertinente e relevante e, como tal, ancorado numa
ética do trabalho científico como trabalho com valor social. Mas não é seguro que esta
seja a fórmula do militar lucidamente...
Este percurso conduziu‐nos no final da década de 90 à frequência de um
mestrado na área de Educação de Adultos da Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade de Lisboa onde aprofundámos o contacto com
questionamentos diversos (pedagógicos, políticos, sociológicos, históricos, entre
outros) à diversidade e complexidade interna do campo da educação de adultos (das
suas teorias e das suas práticas) enquanto objecto das ciências da educação. De entre
esta diversidade e complexidade, e em face da nossa identificação prévia com o
domínio da animação comunitária, resultou particularmente significativo o
reconhecimento, de que “os processos de desenvolvimento local participativo se
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11
instituem como momentos de síntese dos diferentes pólos que definem a educação de
adultos (animação, alfabetização, formação profissional), contribuindo para tornar
mais visível a globalidade dinâmica dos processos de educação de adultos”10 (Canário,
1999:15). Desde então este reconhecimento informou o nosso olhar de pesquisa em
educação, que se foi orientando para a análise dos processos de desenvolvimento,
ditos locais e participativos, recorrentemente conduzidos por movimentos de pendor
associativo, e para a identificação de processos educativos naqueles contextos, mas
essencialmente para a compreensão das suas características, funções e actores, na
convicção de que nestes se plasmavam essas duas características antes assinaladas:
um carácter de síntese dos fenómenos educativos característicos da educação de
adultos e a globalidade dinâmica desta. Razões teóricas de suporte a esta orientação
encontram‐se defendidas por Canário (1999:15) quando postula que a análise de
processos de desenvolvimento local é particularmente pertinente para questionar o
sentido e as fronteiras dominantes do educativo (e especificamente do educativo
presente na educação de adultos); em primeiro lugar, já que aí se propõe transcender
a forte, e muitas vezes estrita, conotação do educativo com o escolar ao sobrepor os
dois processos como indissociáveis – o desenvolvimento e a educação – e, em segundo
lugar, porque implica uma abordagem teórica transfronteiriça que convoca contributos
de perspectivas e de problemáticas teóricas da educação de adultos desenvolvidas a
propósito de cada um dos seus campos, mas que nos processos de desenvolvimento
local se mestiçam/hibridam para melhor dar conta das formas que a educação aí
assume e dos problemas que aí se lhe levantam.
Neste sentido, a abordagem educacional ao campo do desenvolvimento local
é ainda significativa das especificidades das Ciências da Educação que, como Canário
(2003:21‐23) assinala, começam por advir: i) do “facto de o campo disciplinar das
ciências da educação não ser definido por um “território” de factos sociais, mas sim
pelo modo de articular como “olha” e se posiciona face a esse “território”” e, quase
paradoxalmente, se concretizar na que reiteradas vezes é invocada como característica
específica do olhar analítico das ciências da educação; ii) a multireferencialidade, isto
é, o recurso a uma pluralidade de perspectivas e de linguagens distintas em prol da
10 Sublinhado nosso.
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12
inteligibilidade de factos educativos complexos e que está bem para além da
constatação de que as ciências da educação simplesmente têm um carácter plural. Se a
estas especificidades das ciências da educação acrescentarmos, e não de somenos
importância; iii) a “impossibilidade de dissociar a investigação em educação das
práticas que constituem o seu objecto”, que traduz uma difícil autonomia entre
produção de conhecimento e