Educação comunitário autogestionárioempiricamente a partir de um caso de estudo (o processo de...

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João Carlos Pereira Caramelo Educação e desenvolvimento comunitário num processo de transição autogestionário Tese de Doutoramento em Ciências da Educação Fevereiro de 2009

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    João Carlos Pereira Caramelo 

     

    Educação e desenvolvimento comunitário  

    num processo de transição autogestionário 

     

     

     

     

    Tese de Doutoramento em Ciências da Educação 

    Fevereiro de 2009 

     

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    Educação e desenvolvimento comunitário  

    num processo de transição autogestionário 

    João Carlos Pereira Caramelo 

    2009  

     

     

     

    Dissertação  apresentada  à  Faculdade  de  Psicologia  e  de  Ciências  da  Educação  da 

    Universidade do Porto para obtenção do grau de Doutor em Ciências da Educação,  sob a 

    orientação do Prof.  José Alberto Correia e  co‐orientação do Prof.  José Francisco de Melo 

    Neto. 

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    Resumo 

    Este  trabalho  constitui  essencialmente  uma  problematização  e  uma  reflexão  teórica,  ilustrada 

    empiricamente a partir de um caso de estudo  (o processo de transição para a autogestão de uma 

    usina de açúcar do nordeste brasileiro), acerca de algumas das questões que se colocam à relação 

    entre educação e desenvolvimento comunitário local no presente momento histórico. Este trabalho 

    adopta como pressuposto a simultânea importância e inevitabilidade da presença do educativo nas 

    dinâmicas  de  desenvolvimento  sócio‐comunitário,  seja  assumindo  a  forma  de  práticas  sociais 

    diversas que de forma intencional procuram produzir efeitos de transformação dos sujeitos, das suas 

    interacções e da sua relação com o território em que (con)vivem  e trabalham, seja na qualidade de 

    efeitos  induzidos  nos  sujeitos  sociais,  individuais  e  colectivos,  a  partir  do  seu  envolvimento  nos 

    processos e práticas sociais accionados no sentido da promoção da mudança e do desenvolvimento 

    comunitário. Neste  sentido, a discussão aqui ensaiada centra‐se, por um  lado, nas características, 

    funções  e  qualidades  que  os  processos  educativos  podem  adquirir,  equacionadas  a  partir  dos 

    sentidos  diversos  que  os  sujeitos  sociais  envolvidos  numa  dinâmica  de mobilização  colectiva  lhe 

    atribuem  e,  por  outro  lado,  procura  igualmente  caracterizar  os  efeitos  educativos,  individuais  e 

    colectivos,  que  a mobilização  e  participação  no  âmbito  de  um  processo  de  transformação  sócio‐

    comunitária  provoca  nos  sujeitos  sociais.  O  trabalho  que  se  apresenta  constitui  ainda  uma 

    oportunidade para  reflectir as questões metodológicas que  se  levantam à pesquisa qualitativa no 

    domínio  das  relações  entre  educação  e  desenvolvimento  comunitário,  designadamente  no  que 

    concerne as práticas de construção dos dados empíricos e as opções teóricas e epistemológicas que 

    sustentam a análise e  interpretação daqueles dados e que supõem a  inexorável afirmação de uma 

    postura  dialéctica  na  produção  de  um  conhecimento  simultaneamente  sensível  aos  sentidos  e 

    significados  atribuídos  pelos  sujeitos  sociais  à  sua  acção  e  às  condições  objectivas  e  estruturais 

    dentro das quais aquela acção e os discursos se tecem. O possível contributo para o conhecimento 

    em ciências da educação  resultante desta pesquisa  situa‐se eminentemente na argumentação em 

    prol da necessidade do desenvolvimento de categorias híbridas de análise do educativo presente nas 

    dinâmicas de desenvolvimento sócio‐comunitário, bem como em prol da necessidade de resgatar a 

    gramática produzida no campo das abordagens críticas do desenvolvimento local e comunitário para 

    dar  conta das  tensões  e  contradições que num  contexto de  globalização neoliberal  atravessam  a 

    definição política e educativa das dinâmicas de promoção da mudança social.  

     

  • ii

    Resumée  Ce  travail  est  essentiellement une problématisation  et  réflexion,  empiriquement  illustrée  à partir 

    d’un  cas d’étude  (le processus de  transition  à  l’autogestion d’une usine de  sucre du nord‐est du 

    Brésil), autour de quelques questions qui se posent à la relation entre éducation et développement 

    communautaire local  dans le présent moment historique. Le travail adopte comme présupposés la 

    simultanée  importance  et  inévitabilité  de  la  présence  de  l’éducative  dans  les  dynamiques  de 

    développement sociocommunautaire, soit en assumant  la  forme de pratiques sociaux diverses qui 

    de  forme  intentionnel  cherchent  à  produire  des  effets  de  transformations  des  sujets,  de  ses 

    interactions e da sa relation avec le territoire où coexistent et travaillent, soit dans la qualité d’effets  

    induits dans les sujets sociaux, individuelles et collectives, à partir de sa participation dans les enjeux 

    et pratiques sociaux qui se mènent en marche pour promouvoir le changement et le développement 

    communautaire.  Dans  ce  sens,  la  discussion  qu’on  entraîne  est  centrée,  par  un  côté,  dans  les 

    caractéristiques,  fonctions  et    qualités  que  les  processus  éducatifs  peuvent  assumer,  réfléchis  à 

    partir des divers sens qui les sujets sociaux impliqués dans une dynamique de mobilisation collective 

    leur  attribuent  et,  par  une  autre  côté,  notre  discussion  cherche  aussi  à  caractériser  les  effets 

    éducatifs  ,  individuelles  et  collectives,  que  la mobilisation  et participations dans un processus de 

    changement  sociocommunautaire apporte aux  sujets  sociaux.  Le  travail est aussi une opportunité 

    pour  réfléchir  les  questions  méthodologiques  qui  se  posent  à  la  recherche  qualitative  dans  le 

    domaine des  relations  entre  éducation  et développement  communautaire,  en particulier dans  ce 

    que  concerne  les  pratiques  de  production  des  données  empiriques  et  les  options  théoriques  et 

    épistémologiques  qui  soutiennent  l’analyse  et  l’interprétation  de  ces  données  et  qui  supposent   

    inexorablement  l’affirmation  d’une  posture  dialectique  dans  la  production  d’une  connaissance 

    simultanément sensible aux sens e significations attribués par  les sujets sociaux à sa action et aux 

    conditions  objectives  et  structurelles  à  l’intérieur  desquelles  sa  action  et  discours  se  tissent.  La 

    contribution potentielle de ce travail pour la connaissance en sciences de l’éducation c’est peut‐être 

    la  argumentation  autour de  la nécessité du développement des  catégories hybrides d’analyse du 

    éducatif    qui  est  présent  dans  les  dynamiques  de  développement  communautaire,  bien  que  la 

    nécessité  de  récupérer  la  grammatique  produite  dans  le  champ  des  approches  critiques  du 

    développement  local et communautaire pour appréhender  les tensions et contradictions que dans 

    un contexte de globalisation néolibéral traversent la définition politique et éducatif des dynamiques 

    de promotion du changement social. 

     

  • iii

    Abstract This  work  mainly  intends  to  be  a  theoretical  reflection  and  questioning,  empirically 

    illustrated through a case of study (the transition process to an employee ownership situation of a 

    sugar  cane  factory  in  the Brazil northeast), of  some of  the  issues  about  education  and  local  and 

    community  development  relations  at  the  present  historical  moment.  This  works  intentionally 

    assumes  the  relevance  and  inevitability  of  the  educative  phenomena  in  the  socio‐community 

    development  processes,  either when  it  assumes  the  form  of  diverse  intentional  social  practices 

    intending  to  produce  transformational  effects  in  the  social  subjects,  their  interactions  and  their 

    relation with  the  territory where  they  co‐exist and work, either when  it appears as unintentional 

    effects induced, individually and collectively, in the social subjects through their involvement in the 

    social  processes  and  practices  carried  way  with  the  intention  of  promoting  social  change  and 

    community development. In this sense, our discussion is centred, on one side, in the characteristics, 

    functions and qualities that educational processes may acquire, understood through the lens of the 

    diverse meanings that social subjects, involved in a collective mobilisation process, attribute to those 

    processes  and,  on  the  other  side,  aims  to  characterize  the  individual  and  collective  educational 

    effects that the mobilisation and participation in a socio‐communitarian change process provokes in 

    social  subjects.  This  work  is  also  an  opportunity  to  reflect  the methodological  issues  raised  by 

    qualitative research in the field of the education‐community development relations, namely in what 

    concerns the practices of empirical data production and the theoretical and epistemological choices 

    that  underlie  the  analysis  and  interpretation  of  those  data  and  that  supposes  an  inexorable 

    affirmation of a dialectic approach in order to produce a knowledge simultaneously sensitive to the 

    senses  and  significations  attributed  by  social  subjects  to  their  action  and  to  the  material  and 

    structural conditions within which the action and discourse is sewed. A possible contribution of this 

    work to the sciences of education field knowledge lays in the arguing for the necessity of developing 

    hybrid  categories  to  analyse  educational  phenomena  present  in  the  socio‐communitarian 

    development processes, as well as  the necessity of  rescuing  the  theoretical grammar produced  in 

    the field of  local development critical approaches hence that grammar may be able to   apprehend 

    the  tensions  and  contradictions  that  in  the  present  context  of  neoliberal  globalisation  cross  the 

    political and educative definition of social change dynamics. 

     

     

  • iv

    Dedicatória 

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Aos trabalhadores e trabalhadoras de Catende 

    À minha mãe 

    Ao meu pai (in memoriam) 

    Ao meu irmão,    

    À Sónia 

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    Agradecimentos Aos trabalhadores e trabalhadoras de Catende pela inspiração que constituem para os que precisam 

    de acreditar que é possível construir um mundo mais justo. Em particular devo agradecer aos trabalhadores e 

    trabalhadoras  que  se  disponibilizaram  gentilmente,  muitas  vezes  interrompendo  os  seus  afazeres,  para 

    conversarem comigo e me dizerem das suas vidas;  

    Aos meus orientadores José Alberto Correia (FPCEUP) e José Francisco de Melo Neto (UFPB) a quem 

    devo  a  oportunidade  de  ter  conhecido  e  vivido  em  Catende  uma  das  experiências  humanamente  mais 

    marcantes  da  minha  vida.  E  também  por  me  terem  ajudado  a  pensá‐la  (se  tal  não  aconteceu,  não  é 

    certamente  da  sua  responsabilidade,  mas  exclusivamente  da  minha).  E  a  ambos,  igualmente,  um 

    agradecimento especial pelo indizível da relação de amizade que com eles mantenho; 

    Aos colegas e amigos da FPCEUP que me incentivaram constantemente e com quem pude partilhar 

    sofrimentos e dúvidas e a cuja solidariedade profissional e amizade pessoal se deve a criação de condições 

    para  que  este  trabalho  se  fizesse, muitas  vezes  com  o  sacrifício  abnegado das  suas próprias  condições  de 

    trabalho (devo em particular destacar os professores Manuel Matos, Manuela Terrasêca, Teresa Medina e José 

    Alberto  Correia  que  asseguraram  imensas  aulas  por mim).  E  também  a  todos  aqueles  a  quem  deixei  de 

    acompanhar  nos  projectos  de  pesquisa  comuns,  em  particular  nos momentos mais  penosos  da  tese,  não 

    porque o meu contributo  fosse  importante para esses projectos, mas porque se viram obrigados a suportar 

    nas suas costas um compromisso que era também meu; 

    Aos amigos e amigas de ambos os lados do Atlântico com quem me cruzei nesta longa viagem e que 

    pelos seus conselhos e alentos amigos, acolhimento, trabalho generoso, escuta sensível e palavra partilhada 

    foram  imprescindíveis  à  chegada  a  bom  porto  desta  empresa.  Em  Portugal  e  no  Brasil  sempre  estiveram 

    presentes  e  disponíveis,  são  parte  deste  trabalho  já  que  tudo  fizeram  para me  ajudar  e  neles  encontrei 

    inspiração e, várias vezes, a força para não abdicar. Não posso então deixar de agradecer profundamente a: 

    Ademar Aires, Alexandra Sá Costa (pela tua inteligência, duro labor e perspicácia crítica inesgotáveis), Amélia 

    Lopes, António Magalhães, Ariana Cosme, Arnaldo  Liberato, Bete, Bruno Monteiro, Carina Coelho, Carlinda 

    Leite,  Cláudia  Rodrigues  (leitora  crítica  e  oráculo  lúcido),  Cleide  do  Nascimento,  Cristina  Rocha,  D.  Dora, 

    Edilene  do  Nascimento,  Elisabete  Ferreira,  Fátima  Pereira,  Fernanda  Dantas  (in  memoriam),  Francisco 

    Mendonça, Helena Araújo, Helena Barbieri, Henrique Vaz, Humberto Lopes, Irene Terrasêca, Isabel Menezes, 

    Ivonaldo Leite,  Izabel Mota,  João Francisco Souza, Laura Fonseca, Lenivaldo Lima, Leonor Terrasêca, Luciano 

    Correia,  Luís  Carlos Martins  (autor  de  uma  leitura  e  revisão minuciosa,  inteligente  e  questionadora),  Luísa 

    Álvares Pereira, Luzitânia Lima, Manuel Matos, Manuela Ferreira, Manuela Terrasêca, Margarida Felgueiras, 

    Maria José Magalhães, Mário Borba, Marivaldo Andrade, Natércia Pacheco, Orquídea Coelho, Paulo Nogueira, 

    Paul Singer, Preciosa Fernandes, Risadalvo da Silva (São), Rosa Nunes, Rui Canário, Rui D’Espiney, Rui Trindade, 

    Rui Leal, Sofia Marques da Silva, Sónia Dantas (obrigado, mil vezes  infinito!), Sónia Kruppa, Teresa Medina e 

    Tiago Neves. E que a vida me permita demonstrar‐lhes o significado que todos têm para mim.  

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    Siglas 

    ABONG  Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais 

    ABRINQ  Fundação  ABRINQ  –  Instituição  sem  fins  lucrativos  criada em  1990 com o objectivo de mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência 

    ACR  Animação dos Cristãos no Meio Rural 

    ADENE  Agencia de Desenvolvimento do Nordeste 

    ADS  Agência de Desenvolvimento Solidário 

    ANTEAG  Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão 

    e Participação Accionária 

    Articulação das  

    Entidades na Mata Sul 

    Espaço  de  reflexão  em  que  Associações  Urbanas  e  Rurais, Organizações  Não  Governamentais,  Movimento  Sindical  de Trabalhadores Rurais e Centros de Mulheres se articulam em  torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata Sul de Pernambuco 

    ATR  Açúcar Total Recuperado 

    BAG  Bolsa Autogestionária 

    BID  Banco Interamericano de Desenvolvimento 

    BNDES  Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social 

    BNE  Banco do Nordeste 

    CCBA  Centro Cultural Brasil Alemanha 

    CDI  Comité de Democratização da Informática 

    CDI  Centro (ou Comité) de Democratização da Informática 

    CEAAL  Conselho de Educação de Adultos da América Latina 

    CEAS  Centro de Estudos e Acção Social 

    CENTENAS  Central de entidades associativas do município de Catende 

    Centro de Mulheres do Cabo  Organização Não‐Governamental,  emergente  das  lutas  populares  e da  explosão  do  movimento  de  mulheres  na  década  de  80,  vem desenvolvendo  acções  que  visam  conscientizar  as mulheres  sobre 

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    seu papel na sociedade, priorizando a formação de multiplicadoras e fortalecendo a luta das mulheres contra as desigualdades de género e pela afirmação da cidadania. As acções do CMC são substanciadas em  processos  e  práticas  sócio‐educativas  inspiradas  no  feminismo que resgatam a mulher enquanto sujeito e cidadã 

    CENTRU  Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais 

    CNBB  Confederação Nacional dos Bispos do Brasil 

    CONAB  Companhia Nacional de Abastecimento 

    CONDEPE  Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana 

    CONTAG  Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura 

    CPI  Comissão Parlamentar de Inquérito 

    CPT  Comissão Pastoral da Terra 

    CUT  Central Única dos Trabalhadores 

    DAP  Declaração de Aptidão 

    DRT  Delegação Regional do Trabalho 

    EIC  Escola de Informática e Cidadania 

    EMBRAPA  Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária 

    FASE  Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Nacional 

    e do Estado de Pernambuco 

    FAT  Fundo de Amparo ao Trabalhador 

    FBB  Fundação Banco do Brasil 

    FETAPE  Federação  dos  Trabalhadores  na  Agricultura  do  Estado  de 

    Pernambuco 

    FIAN  Food First ‐ Information & Action Network 

    FINEP  Financiadora de Estudos e Projectos 

    FPM  Fundo de Participação dos Municípios 

  • viii

    FKA  Fundação Konrad Adenauer 

    FUNDAJ  Fundação Joaquim Nabuco 

    FUNDEF  Fundo de Manutenção e Desenvolvimento de Ensino Fundamental e 

    de Valorização do Magistério 

    IAA  Instituto do Açúcar e do Álcool 

    IBAMA  Instituto  Brasileiro  do  Meio  Ambiente  e  dos  Recursos  Naturais 

    Renováveis 

    IBASE  Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas 

    IBGE  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 

    INCRA  Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária 

    MCT  Ministério da Ciência e Tecnologia 

    MDA  Ministério do Desenvolvimento Agrário 

    MDS  Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome 

    MST  Movimento dos Trabalhadores Sem Terra 

    ONG  Organização Não Governamental 

    PAA  Programa de Aquisição de Alimentos 

    PEQ  Plano Estadual de Qualificação Profissional 

    PNRA  Plano Nacional de Reforma Agrária 

    PNUD  Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento 

    PROALCOOL  Programa Nacional do Álcool 

    PROMATA  Programa  de  Apoio  ao  Desenvolvimento  Sustentável  da  Zona  da 

    Mata de Pernambuco 

    PRONAF  Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar 

    PRONAF  Programa Nacional de Agricultura Familiar 

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    PRORURAL  Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural 

    PUAMA  (Rosa  que  Nasce  nas Pedras) 

    Associação dos  Jovens da  Zona Urbana  e Rural,  Filhos  e  Filhas dos 

    Trabalhadores e Trabalhadoras do Projecto Catende Harmonia 

    SEBRAE  Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa 

    SENAES  Secretaria Nacional de Economia Solidária 

    SENAR  Serviço Nacional de Aprendizagem na Agricultura 

    SEPLANDES  Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social do Estado de 

    Pernambuco 

    SINDAÇUCAR  Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Açúcar e do Álcool 

    SOS Corpo  Instituto Feminista para a Democracia 

    SRA  Secretaria de Reordenamento Agrário 

    STR  Sindicato de Trabalhadores Rurais 

    SUDENE  Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste 

    UFPB  Universidade Federal da Paraíba 

    UFPE  Universidade Federal de Pernambuco 

    UFRPE  Universidade Federal Rural de Pernambuco 

    UNEFAB  União Nacional das Escolas de Famílias Agrícolas do Brasil 

    ZPA  Zona de Produção Agrícola 

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    Glossário 

    “Aceder ao PRONAF” 

    Nos últimos anos, já durante a vigência do primeiro Governo do Presidente Lula da  Silva,  foi  criado  o  Programa  Nacional  de  Fortalecimento  da  Agricultura Familiar  que  permite  o  acesso  a  várias  linhas  de  crédito  bonificado  aos agricultores  familiares. O Projecto Catende Harmonia  fomentou a candidatura dos  trabalhadores  a  créditos  para  custeio  e  investimento  no  âmbito  do Programa  Cana  de  Morador.  Este  processo  implica  o  recenseamento  dos trabalhadores  e  a  elaboração  de  candidaturas  através  do  preenchimento  de formulários técnicos que, por vezes, são acompanhados de pequenos projectos descritivos  da  utilização  prevista  para  o  crédito.  Após  a  aprovação  das candidaturas, o dinheiro é distribuído aos  trabalhadores através do Banco do Brasil. 

    Administração da Usina 

    A designação comummente aplica‐se ao grupo de pessoas que  inclui o Síndico da  massa  falida,  os  assessores  técnicos,  o  advogado  dos  trabalhadores demitidos em 1993 e os  responsáveis pela área  financeira da Usina Catende. Neste  sentido,  os  trabalhadores  não  se  incluem  na  administração  que  lhes aparece  enquanto  corpo  relativamente  autónomo  no  empreendimento autogestionário em que participam. 

    Agrofloresta  Projecto  que  visa  promover  a  defesa,  preservação  e  recuperação  da  Mata Atlântica  nas  terras  do  projecto  Catende Harmonia  através  da mobilização  e participação social em actividades de educação ambiental, reflorestamento de áreas de preservação permanente e áreas degradadas, procurando melhorar as condições de vida dos moradores e da população em geral. 

    “Apontamento da Usina” 

    Trabalho  realizado  durante  o  período  de  entressafra  pelos  operários  da indústria e alguns  serviços externos e que  consiste na desmontagem  total da maquinaria, a sua limpeza, reparação ou substituição e a recolocação da fábrica em condições de moer. 

    Associação de Moradores 

    Organização  representativa  dos  moradores  de  um  engenho,  é  eleita  pelos próprios moradores e normalmente representada pelo/a seu/sua presidente é o principal elo de ligação entre a Usina Catende e as comunidades rurais e tem participação  no  Comité  Gestor  do  Projecto  Catende  Harmonia.  Algumas  das Associações  de  Moradores  desenvolvem  projectos  no  âmbito  das  suas comunidades com o apoio do Projecto Catende Harmonia ou de algum dos seus parceiros e, mais raramente, de modo autónomo. 

    Barracão  Nos  engenhos  existia  um  armazém,  normalmente  explorado  por  alguém  da confiança do “senhor de engenho” quando não mesmo da propriedade deste, onde  os  trabalhadores  rurais  se  abasteciam  dos  produtos  necessários  à  sua subsistência.  Comummente,  o  salário  dos  trabalhadores  era‐lhes  distribuído pelo  responsável  pelo  barracão  e  nele  eram  automaticamente  abatidos  os valores em débito de datas anteriores (“descontar em folha”). Em tempos mais longínquos,  os  trabalhadores  recebiam  um  vale  (e  não  um  salário)  que trocavam por bens nestes estabelecimentos. Estas práticas desapareceram, mas as  construções  em  que  funcionaram  os  barracões  ainda  permanecem  nos engenhos. 

    Biofábrica  Proposta pela FINEP, entidade do Governo Federal, prevê a  implementação na Usina  Catende  de  uma  unidade  de  pesquisa  e  manipulação  genética  que permita,  num  primeiro momento,  aprimorar  a  semente  de  cana‐de‐açúcar  a empregar  no  plantio  da  área  específica  do  Projecto  Catende  Harmonia  e, posteriormente, realizar um trabalho semelhante a propósito de outras culturas 

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    que permita desenvolver processos de diversificação agrícola. 

    Cana de Morador  Programa  encetado  pelo  Projecto  Catende/Harmonia  a  partir  de  1998  e  que consta da distribuição aos trabalhadores/moradores dos engenhos de parcelas de  terra  para  cultivo  de  cana‐de‐açúcar,  ficando  os  trabalhadores  com  o compromisso de vender à Usina Catende a produção resultante. Este programa integra‐se nas medidas de  incentivo à agricultura  familiar, uma vez que o seu pressuposto é de que é a unidade familiar que desenvolve autonomamente as tarefas  agrícolas,  assume  os  custos  de  produção  e  usufrui  dos  proventos resultantes. A Usina presta apoio técnico, quer no acompanhamento dos tratos culturais,  quer  nos  procedimentos  que  permitem  o  acesso  aos  programas estatais de crédito para apoio à produção agrícola familiar. 

    Cartilha  Brochuras construídas pela equipa de educação e editados pela UFPB no âmbito de um projecto  financiado pela ONG Manos Unidas  com os  títulos  “Por uma cultura de autogestão” e  “Técnicas  e  custos do plantio da  cana”. Constituem instrumentos  pedagógicos  (didácticos?)  que  integram  informação  sobre  o projecto Catende Harmonia e  sobre a produção canavieira e, essencialmente, um  conjunto  de  questões  e  de  exercícios  para  dinamizar  sessões  de formação/debate  com  os  trabalhadores.  A  designação  é  comummente empregue para identificar conjuntos de materiais de formação sistematizados  

    Cestas básicas  Nos períodos de grande crise económico‐financeira, particularmente entre 1995 e 1996, o projecto Catende Harmonia teve de recorrer à aquisição de alimentos básicos  que  distribuiu  numa  lógica  emergencial  pelos  trabalhadores.  Nos períodos  de  atraso  prolongado  de  pagamento  dos  salários,  a  aquisição  e  a distribuição de cestas básicas pelos trabalhadores continua a ocorrer. 

    Chalé do Alto  Antiga  Casa Grande, hoje  transformada  em  Centro  de  Formação  do  Projecto Catende Harmonia e espaço de reunião do Comité Gestor do Projecto Catende Harmonia e das Associações de Moradores. Casa de traça colonial sobranceira à cidade de Catende 

    Chalés da Usina  O património da Usina Catende integra um conjunto de casas de traça colonial que são hoje utilizadas ao serviço do Projecto Catende Harmonia e que eram as casas  dos  “senhores  de  engenho”.  A maior  e mais  preservada  dessas  casas, principal casa dos usineiros, situada lateralmente à fábrica, serve de habitação e refeitório aos técnicos que estão deslocados em Catende durante a semana de trabalho. 

    CPI em Catende  Comissão  Parlamentar  de  Inquérito  ordenada  pelo  Governo  Estadual  de Pernambuco  à Usina Catende  em  1999.  Esta Comissão  foi  a Catende  realizar uma auditoria  sobre o possível mau uso de  fundos públicos  transferidos pelo anterior  governo  do  estado  que  tinha  sido  presidido  por  Miguel  Arraes, defensor  desde  a  primeira  hora  do  processo  vivido  em  Catende.  A  CPI  não identificou qualquer irregularidade na Usina Catende e o seu encerramento foi pedido pelos mesmos que a solicitaram 

    “Colectivo”  Figura  invocada para designar o conjunto de  integrantes do Projecto Catende Harmonia.  Normalmente,  na  prática,  refere‐se  essencialmente  ao  grupo  de pessoas  constituído  por  representantes  das  Associações  de  Moradores, Administração  da  Usina,  Sindicatos  de  Trabalhadores  Rurais,  Técnicos, Assessores,  Equipa  de  Educação...que  se  reúne  periodicamente  para  tomar conhecimento,  debater  e  decidir  em  torno  de  questões  conjunturais  e estratégicas do projecto. É essencialmente uma figura de “geometria variável” mas de forte ressonância simbólica no projecto Catende Harmonia. 

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    Comissão de Fábrica  Representantes dos operários da fábrica. A sua participação e relação no/com o Projecto  Catende Harmonia  foi  severamente  comprometida  na  sequência  da greve de Dezembro de 2003, de que os operários  foram protagonistas. A  sua conotação  com  o  Sindicato  dos  Trabalhadores  da  Indústria  do  Açúcar  e  do Álcool, opositor por várias vezes ao processo vivenciado em Catende, é também uma forte razão para o ostracismo e apagamento a que na prática a Comissão de Fábrica foi votada na vida do Projecto Catende Harmonia. 

    Comité Gestor  Comissão  permanente,  mas  de  composição  flutuante,  que  pode  integrar representantes das Associações de Moradores, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais,  dos  operários,  dos  funcionários  administrativos,  da  Administração  da Massa  Falida que  reúne  semanalmente para  tomar  conhecimento, debater  e decidir assuntos estratégicos ou conjunturais do Projecto Catende Harmonia. A sua origem  encontra‐se no processo de  venda de  açúcar  à CONAB  em  2004, quando foi decidido constituir uma comissão que deveria estudar a prioridade dos  investimentos  a  realizar  com  o  dinheiro  proveniente  dessa  venda.  Esta comissão  inicial  alargou‐se  na  sua  composição  e  a  periodicidade  do  seu encontro tornou‐se semanal. 

    Companhia Agrícola Harmonia 

    Entidade  criada  em  1998  com  a  intenção  de  se  constituir  em  herdeira  do património  da  usina  Catende  após  o  encerramento  do  processo  judicial  de falência  e  ainda  com  o  intuito  de  criar  uma  organização  com  um  estatuto jurídico que permitisse ultrapassar as limitações da massa falida na relação com entidades externas. Manteve um estatuto  legal  relativamente ambíguo e não entrou no léxico comum dos trabalhadores para se referirem à Usina Catende. 

    CONAB (venda de açúcar) 

    A Companhia Nacional de Abastecimento gere um Programa de Aquisição de Alimentos  provenientes  de  agricultura  familiar  para  o  Governo  Federal.  Os alimentos  assim  adquiridos  são  utilizados  no  âmbito  de  políticas  públicas  de combate à fome, de que o exemplo mais reconhecido é o Programa Fome Zero. O  Projecto  Catende  Harmonia,  através  dos  seus  trabalhadores,  organizados pelas associações de moradores, montou uma operação de venda de açúcar à CONAB  como  se de um produto de  agricultura  familiar  se  tratasse o que  lhe permitiu  em  dois  anos  consecutivos  um  aporte  de  recursos  suficiente  para atravessar a entressafra. 

    Consórcio de Jovens Trabalhadores Rurais 

    Projecto candidatado em parceria com a FASE ao Governo Federal  (Ministério do Desenvolvimento Agrário)  e  designado  “Juventude  com Harmonia”  com  o intuito  de  estimular  o  espírito  empreendedor  dos  jovens  e  promover  o protagonismo  juvenil  através  de  acções  de  qualificação  (formação),  visando igualmente a promoção de um desenvolvimento local sustentável. 

    Cooperativa Harmonia de Produção Agroindustrial dos Agricultores e Agricultoras Familiares  

    Entidade criada em finais de 2004 e que de acordo com os seus estatutos visa “a  integração  social  e  produtiva  dos  cooperados;  a  associação  cooperada  de bens  e  serviços  para  o  exercício  de  sua  atividade  econômica,  no  interesse comum  e  sem  finalidade  lucrativa,  compreendendo  a  execução  de  atos cooperativos, direcionados, entre outros, à  realização e oferta coletiva da sua produção  familiar  e  dos  seus  serviços;  celebração  coletiva  de  operações comerciais e  contratos; cobrança e  recebimento do preço  contratado para os seus produtos e serviços; registro, controle e distribuição dos resultados, sob a forma de produção ou de valor referencial, bem como a apuração e a atribuição aos cooperados das despesas da sociedade” 

    Credores da Usina  O conjunto de trabalhadores demitidos pelos usineiros sem verem respeitados os seus direitos trabalhistas (salários e  indemnizações) e que aguardam o final do  processo  judicial  de  falência  para  receber.  O  maior  grupo  de  credores 

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    reconhecido  é  constituído  pelos  2300  demitidos  de  1993  –  por  isso  algumas vezes faz‐se coincidir a designação de credores com a de demitidos – mas o seu número total ascende a cerca de 3000 pessoas. 

    Cursos da Massa 

     

    Expressão  utilizada  para  designar  os  cursos  e  respectivos  estágios  de  cariz profissionalizante desenvolvidos com jovens pelo Projecto Catende Harmonia e realmente  intitulados  “Curso  de  Técnicas  de  Gerenciamento  em  Produção Agrícola” e “Curso de Técnicas de Produção na Agroindústria Canavieira” 

    Cursos da Fundação Banco do Brasil 

    Conjunto  de  acções  de  capacitação/formação  em  torno  da  autogestão  e economia  solidária  realizados  com  cerca de 400  trabalhadores/moradores do Projecto Catende Harmonia no ano de 2005, financiados pela Fundação Banco do  Brasil.  A  produção  numa  perspectiva  de  economia  solidária  e autogestionária  foi  eleita  como  eixo  central  do  trabalho  educativo  destes cursos, a partir do qual se definiram como possíveis temáticas as questões do crédito e da produção canavieira. 

    Escola de Informática e Cidadania 

    Projecto de  instalação de uma sala de computadores no agrupamento escolar Herculano Bandeira e de formação de monitores de informática, articulado pela associação  de  jovens  PUAMA  junto  do  Centro  Cultural  Brasil/Alemanha  que financiou  a  aquisição  do  equipamento  e  a  formação  dos  jovens  como monitores.  Esta  Escola pretende prestar  serviços  –  cursos de  informática  –  à comunidade  da  cidade  de  Catende  e  dos  engenhos  da  Usina  Catende,  bem como aos alunos do próprio grupo escolar. Este projecto  inscreve‐se no que o Projecto Catende Harmonia considera ser a promoção do protagonismo juvenil e  aparece  igualmente  designado  em  outros  momentos  como  Núcleo  de Inclusão Digital. 

    Empresa de trabalhadores 

    Expressão  encontrada  para  traduzir  a  ideia  de  empresa  autogestionária  nas conversas,  reuniões  e  debates  com  os/as  trabalhadores/as  enquanto  rumo desejado/visado do Projecto Catende Harmonia. 

    Engenho  Comunidades  rurais  constituídas  pelos  arruados,  isto  é,  o  conjunto  das habitações  dos  moradores  dos  engenhos  e  uma  área  agrícola  envolvente, normalmente de grande dimensão para o cultivo de cana‐de‐açúcar. Em outras regiões corresponde ao termo de  fazenda. O termo mantém uma ressonância colonial  já  que  nesse  contexto  o  engenho  correspondia  também  ao  local  de transformação da cana‐de‐açúcar. 

    “Entrar no FAT”  O Fundo de Amparo ao Trabalhador envolve a suspensão temporária do vínculo laboral e do exercício de actividade profissional (por 5 meses) – com incidência no  período  de  entressafra  –  em  troca  da  frequência  de  acções  de  formação desenvolvidas pela Usina, Sindicatos ou outras entidades para os trabalhadores que reúnam as condições de o fazer, assegurando os trabalhadores uma bolsa de  qualificação  profissional  (paga  pelo  FAT)  cujo  diferencial  face  aos  salários que  esses  trabalhadores  receberiam  normalmente  é  assegurado  pela  Usina. Este é um instrumento mobilizado pela Usina para a redução dos seus encargos no período em que menos força de trabalho é necessária. 

    Entressafra  Período compreendido normalmente entre Março e Setembro de cada ano em que a moagem  (transformação) da  cana‐de‐açúcar é  interrompida atendendo ao ciclo vegetativo da cana‐de‐açúcar, se procede ao apontamento da fábrica – isto é, à sua desmontagem, reparação e remontagem – e a tratos culturais no campo. 

    Equipa da Harmonia  Nome genérico atribuído ao conjunto de técnicos/as que têm uma intervenção na  planificação,  organização,  gestão,  animação  e  avaliação  em  diversos 

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    (ou equipa de educação) 

    projectos de sua  iniciativa ou em parceria com entidades externas e com uma intencionalidade e/ou finalidade educativa. 

    Grupo Escolar Herculano Bandeira 

    Escola montessori que pertence à Usina e é por  si  financiada. Fica  situada no coração  da  cidade  de  Catende  e  os  seus  alunos/as  são  essencialmente  os filhos/as dos operários da  fábrica  e  ainda  algumas  crianças provenientes dos engenhos  próximos  à  cidade,  filhos/as  de  trabalhadores  rurais  da  Usina Catende. O grupo escolar tem cerca de 400 alunos e integra crianças até aos 14 anos. Até ao  início dos anos 90 esta escola  coordenava uma  rede de escolas (entre 15 a 20) dos engenhos da Usina Catende. 

    Hierarquia do campo 

    Na coordenação da produção da cana os engenhos estão agrupados Zonas de Produção Agrícola – ZPAs. Essas  zonas  são, grosso modo,  correspondentes às antigas  capitanias  coloniais, para as quais o  senhor de engenho nomeava um capitão. Este, por sua vez, tinha ao serviço um administrador por engenho que comandava um  conjunto de  funcionários  chamados  cabos, que ordenavam o trabalho dos trabalhadores agrícolas. Os administradores e cabos permanecem no Projecto Catende Harmonia ainda que  com  funções diferenciadas das que lhes  eram  acometidas  no  tempo  das  capitanias.  Os  antigos  capitães  foram substituídos por Supervisores de ZPAs. 

    “Juiz da massa”  Designação  comum  para  o  juiz  encarregue  do  processo  de  falência  da Usina Catende. 

    Lavoura branca  Produtos agrícolas produzidos numa  lógica de subsistência  familiar  (segurança alimentar) pelos trabalhadores/as em pequenas áreas de roçado, normalmente junto dos núcleos habitacionais  rurais. Esta prática era praticamente proibida no  período  anterior  à  falência  da  Usina  Catende  e  ao  início  do  processo autogestionário dado que ou  as  terras  estavam  integralmente ocupadas  com cana‐de‐açúcar  ou  as  culturas  eram  sujeitas  a  uma  destruição  sistemática  a mando dos usineiros. 

    Liderança(s) comunitária(s) 

    Expressão  utilizada  para  designar  a  pessoa  ou  conjunto  de  pessoas reconhecidas  pelo  Projecto  Catende  Harmonia  como  tendo  uma  influência marcante  nas  suas  comunidades  rurais  (engenhos)  e,  ao  mesmo  tempo, identificada com os princípios e valores do projecto. Por vezes coincidem com os/as presidentes das associações de moradores. Destas pessoas é esperado um papel  mobilizador  nas  comunidades,  que  se  constituam  em  elos  de comunicação entre o projecto e os moradores/trabalhadores ou que ocupem papéis interventivos em iniciativas propostas ou desenvolvidas pelo projecto. 

    Mata Atlântica  Todo o território abrangido pelas terras da Usina Catende  foi em tempos  idos floresta  com  características  muito  próprias  designada  Mata  Atlântica, progressivamente foi devastada para fazer avançar o cultivo da cana‐de‐açúcar. Hoje  restam  pequenas  áreas  protegidas  legalmente,  normalmente  em  locais onde,  pelas  características  do  relevo,  o  cultivo  de  cana‐de‐açúcar  não  seria possível ou rentável. 

    Massa Falida  Estatuto  jurídico  da  Usina  Catende  na  sequência  do  pedido  de  falência requerido  pelos  trabalhadores  e  aceite  por  um  juiz  da  vara  de  falências  de Recife.  Este  estatuto  tem  importantes  consequências  na  preservação  do património  da  Usina  para  futuro  pagamento  das  dívidas  trabalhistas acumuladas  pelos  Usineiros  e  permitiu  a  recuperação  do  património considerado alienado fraudulentamente pelos Usineiros até cinco anos antes do pedido de falência. Por outro lado, este estatuto impõe evidentes limitações na relação  com  entidades  públicas  ou  privadas,  como  por  exemplo  Bancos  ou 

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    entidades do governo estadual ou federal 

    Morador(es)  Designa os trabalhadores rurais e respectivas famílias que habitam em qualquer um dos 48 engenhos da Usina Catende. 

    Policlínica Gouveia de Barros 

    Edifício que albergou um hospital dedicado ao atendimento dos trabalhadores e trabalhadoras  da  Usina  Catende  nos  tempos  do  seu  apogeu  económico.  O edifício  retomou  em  parte  a  sua  funcionalidade  original  com  o  trabalho  que nele  desenvolve  a  Comissão  de Mulheres  da  Policlínica  no  âmbito  da  saúde sexual e reprodutiva da mulher. 

    Programa Cana de Morador 

    Iniciativa que desde 1998 confere aos moradores/trabalhadores rurais da Usina Catende o direito a plantar cana‐de‐açúcar em terras cedidas para o efeito pela administração da massa falida e que, tornando‐os fornecedores de cana para a usina,  é  uma  forma  complementar  ao  assalariamento  de  geração  de  renda individual  e,  igualmente,  de  comprometimento  com  o  projecto  colectivo  de manutenção do funcionamento da Usina. 

    Projecto de Piscicultura 

    Esta  iniciativa animada essencialmente pelo Centro Josué de Castro, do Recife, integra‐se  no  esforço  de  diversificação  produtiva  e  começou  por  ter  uma preocupação central com a questão da segurança alimentar das populações dos engenhos.  Nesse  sentido  desenvolveu‐se  num  conjunto  de  engenhos  a experiência  de  construção  de  barreiros  (pequenas  represas  ou  lagoas)  para reprodução e criação de peixe. Num segundo momento previa‐se  (prevê‐se) a possibilidade  de  criação  de  peixe  em  escala  económica  o  que  implica  a  sua distribuição e/ou comercialização. Este projecto  tem  integrado uma dimensão de capacitação/formação dos moradores dos engenhos onde decorre.  

    Projecto Catende Harmonia 

    Designação genérica atribuída aos processos experienciados na Usina Catende desde o pedido de falência articulado pelos trabalhadores  junto das  instâncias judiciais em 1995 e que dá origem à  instituição de um processo de co‐gestão envolvendo os trabalhadores e a administração judicial da massa falida. 

    Projecto de produção de sementes de milho 

    Iniciativa que teve como proponente a associação de jovens PUAMA, mas sem uma existência  independente do Projecto Catende Harmonia, envolveu vários parceiros  de  entre  os  quais  se  destaca  o  Ministério  do  Desenvolvimento Agrário. Com a colaboração de técnicos e pedagogos da EMBRAPA, 4 grupos de jovens  de  diferentes  engenhos  experimentaram  o  processo  de  cultivo, transformação  e  comercialização  de  sementes  de  milho  a  partir  de  uma organização  de  unidades  colectivas  e  solidárias  de  trabalho,  integrando‐se assim numa experiência de diversificação produtiva agrícola. 

    PUAMA (Rosa que Cresce nas Pedras) 

    Associação  constituída  por  jovens  dos  engenhos  e  da  cidade  de  Catende, integrando  essencialmente  rapazes  e  moças  que  frequentaram  os  cursos  e estágios  realizados  pelo  Projecto  Catende  Harmonia.  Tem  como  finalidade dinamizar  projectos  geradores  de  renda  e  emprego  voltados  para  os  jovens filhos/as de trabalhadores/moradores do projecto. 

    Safra  Período compreendido normalmente entre Setembro e Março de cada ano em que  se procede ao corte da cana‐de‐açúcar e à  sua  transformação em açúcar e/ou álcool nas usinas (fábricas). 

    Sala da Harmonia  Espaço  atribuído  à  Companhia  Agrícola  Harmonia  nas  instalações  da  Usina Catende.  Por  extensão  passou  a  designar  as  pessoas  que  aí  trabalham, nomeadamente os técnicos ligados especificamente à intervenção educativa e à administração do processo de acesso dos trabalhadores ao crédito 

  • xvi

    Síndico da massa falida 

    Administrador  nomeado  pela  justiça,  com  o  acordo  dos  credores  da massa falida, com a  incumbência da preservação e gestão do património e actividade da Usina Catende até à conclusão do processo judicial de falência. 

    Situação contratual face à Usina Catende 

    Os  trabalhadores  rurais  podem  encontrar‐se  em  várias  situações  contratuais face  à Usina: de modo  genérico há os  fichados que  são os que possuem um contrato  sem  termo  com  a  Usina  e  os  safristas  que  constituem  o  grupo  de trabalhadores  contratado  sazonalmente  em  face  do  aumento  de  volume  de trabalho durante o período da safra (no campo e na indústria).  

    Usina Catende  Designação genérica do complexo agro‐industrial que envolve 26 mil hectares de terras e a fábrica de transformação da cana‐de‐açúcar situada na cidade de Catende.  O  termo  usina  é  simultaneamente  usado  para  designar  a  parte  (a fábrica) e o  todo  (o conjunto  fábrica +  terras). A designação  jurídica oficial da Usina  Catende  antes  da  falência  era  Companhia  Industrial  do  Nordeste Brasileiro. 

    Usineiros  Designação  utilizada  para  os  antigos  proprietários  da  Usina  Catende  e mais genericamente para todos os que são “donos/patrões de usinas”. 

    Venda antecipada  Prática  comum  durante  praticamente  os  primeiros  dez  anos  do  projecto Catende  Harmonia,  consiste  na  venda  de  parte  da  futura  produção  ainda durante  o  período  da  entressafra  a  “atravessadores”  (intermediários especuladores)  do  mercado  do  açúcar  a  preços  normalmente  baixos.  Esta prática  permitia  alguma  capitalização  da Usina  para  atravessar  o  período  da entressafra mas, inevitavelmente, colocava‐a na situação de ter de entregar em tempo  de  safra  parte  da  sua  produção  a  um  preço muito  abaixo  do  então vigente  no mercado.  Esta  prática  foi  tão mais  danosa  quanto  o  açúcar  teve quebras  sucessivas  de  preço  de  safra  para  safra  o  que  obrigou  o  projecto  a entregar  cada  vez mais  açúcar  para  pagar  aos  atravessadores  a  quem  tinha vendido antecipadamente.  

    ZPA  Zonas de Produção Agrícola correspondem a unidades territoriais que dividem a área  total de  terra da Usina Catende e de acordo com as quais as  tarefas do cultivo e corte da cana‐de‐açúcar são realizadas. Os engenhos da Usina Catende são  identificados  não  só  pelo  seu  nome  próprio  mas  igualmente  pela  sua pertença a uma das 6 ZPA existentes. 

     

  • xviiMudam‐se os tempos, mudam‐se as vontades, 

    Muda‐se o ser, muda‐se a confiança; 

    Todo o mundo é composto de mudança, 

    Tomando sempre novas qualidades. 

     

    Continuamente vemos novidades, 

    Diferentes em tudo da esperança; 

    Do mal ficam as mágoas na lembrança, 

    E do bem, se algum houve, as saudades. 

     

    O tempo cobre o chão de verde manto, 

    Que já coberto foi de neve fria, 

    E em mim converte em choro o doce canto. 

     

    E, afora este mudar‐se cada dia, 

    Outra mudança faz de mor espanto: 

    Que não se muda já como soía. 

     

    “Mudam‐se os tempos, mudam‐se as vontades” 

    Luís Vaz de Camões 

     

     

    Mas na Usina é que vi 

    aquela boca maior 

    que existe por detrás 

    das bocas que ela plantou; 

    que come o canavial 

    que contra as terras soltou; 

    que come o canavial 

    e tudo o que ele devorou 

    que come o canavial 

    e as casas que ele assaltou; 

    que come o canavial 

    e as caldeiras que sufocou. 

    Só na Usina é que vi 

    aquela boca maior, 

    a boca que devora 

    bocas que devorar mandou. 

     

     

     

    Na vila da Usina  

    é que fui descobrir a gente  

    que as canas expulsaram 

    das ribanceiras e vazantes 

    e que essa gente mesma 

    na boca da usina são os dentes 

    que mastigam a cana 

    que a mastigou  enquanto gente; 

    que mastigam a cana 

    que mastigou anteriormente 

    as moendas dos engenhos 

    que mastigavam antes outra gente; 

    que nessa gente mesma, 

    nos dentes fracos que ela arrenda, 

    as moendas estrangeiras 

    sua força melhor assentam. 

     

    Por esta grande Usina 

    olhando com cuidado eu vou, 

    que esta foi a usina 

    que toda esta Mata dominou. 

    Numa usina se aprende 

    como a carne mastiga o osso, 

    se aprende como mãos 

    amassam a pedra, o caroço; 

    numa usina se assiste 

    à vitória, de dor maior, 

    do brando sobre o duro, 

    do grão amassando a mó; 

    numa usina se assiste 

    à vitória maior e pior, 

    que é a de pedra dura 

    furada pelo suor. 

     

    “Encontro com a Usina” (excerto), in O Rio. 

    João Cabral de Melo Neto 

     

     

  • Índice 

    Introdução geral ___________________________________________________________ 5

    Do auto‐questionamento à identificação de dimensões mobilizadoras para a 

    pesquisa________________________________________________________________________ 5

    Finalidades, objectos e teses do trabalho de pesquisa __________________________ 14

    A estrutura do trabalho __________________________________________________ 28

    I SECÇÃO – O PANO DE FUNDO DA PESQUISA ___________________________________ 33

    As teorias e as práticas do desenvolvimento ____________________________________ 35

    As origens da noção de desenvolvimento ____________________________________ 40

    A Teoria do Crescimento Económico e a Teoria da Modernização_________________ 45

    A Teoria da Dependência _________________________________________________ 65

    A viragem neo‐liberal: a recuperação da Teoria da Modernização e a Teoria da 

    Escolha Pública _________________________________________________________________ 79

    As teorias de um desenvolvimento alternativo________________________________ 84

    A emergência do local e da problemática do desenvolvimento local ___________ 138

    O desenvolvimento comunitário ________________________________________ 163

    A relação educação‐desenvolvimento____________________________________ 187

    Desenvolvimento Local e Educação ______________________________________ 191

    II SECÇÃO – INTERROGAÇÕES E PROBLEMATIZAÇÕES CONCEPTUAIS________________ 225

    Elucidação e problematização de referentes teóricos da pesquisa enquadradores 

    da análise ____________________________________________________________________ 227

    III SECÇÃO – FUNDAÇÕES METODOLÓGICAS∙___________________________________ 253

    As opções metodológicas da pesquisa______________________________________ 255

    O estatuto do conhecimento em/sobre o desenvolvimento comunitário e local e 

    cientificidade educativa____________________________________________________ 257

    O processo discursivo de análise adoptado – a dialéctica ______________________ 267

  • 2

    Do "estranhamento ao entranhamento": a negociação do acesso ao terreno e os 

    usos sociais do pesquisador ______________________________________________________ 277

    As opções “técnicas” de recolha de dados (as notas de terreno, as entrevistas e a 

    análise documental) ____________________________________________________________ 303

    As notas de terreno___________________________________________________ 304

    As entrevistas _______________________________________________________ 320

    A pesquisa documental________________________________________________ 327

    IV SECÇÃO – ILUSTRAÇÕES E RE‐INTERROGAÇÕES_______________________________ 333

    O contexto da pesquisa: algumas referências sócio‐históricas e a sua dimensão 

    sócio‐política __________________________________________________________________ 335

    A Usina Catende: uma breve sócio‐história entre a ascenção, a queda e a 

    ressurgência __________________________________________________________________ 357

    As raízes da mobilização social em Catende: os movimentos sociais no campo 

    pernambucano e o trabalho da Igreja Católica progressista ____________________________ 371

    As raízes da luta entre a história social e a história pessoal: a produção social 

    de militantes da intervenção política e sócio‐educativa _____________________________ 384

    Educação, política e sindicalismo e conscientização dos trabalhadores _________ 397

    O colapso da Usina Catende e a busca de alternativas: a luta sindical e dos 

    trabalhadores _________________________________________________________________ 409

    A luta que começa ou o momento de «turbulência identitária» e os 

    fraccionamentos internos de um novo «sujeito histórico» ___________________________ 415

    A entrada dos trabalhadores para a administração da massa falida da Usina 

    Catende e os desafios a enfrentar _________________________________________________ 445

    A educação no processo de transição autogestionária em Catende: abordagem 

    sintagmática e paradigmática ____________________________________________________ 467

    A formação de massas ________________________________________________ 471

    A formação profissional de cariz político__________________________________ 516

    A formação de quadros num contexto da diversificação organizacional ________ 551

    Considerações finais ______________________________________________________ 565

    Bibliografia Referida ______________________________________________________ 597

  • 3

    Bibliografia Consultada ____________________________________________________ 609

    Listagem de Anexos _______________________________________________________ 629

  • 4

    Índice de Quadros e Gráficos 

    Quadro 1 – Principais características do desenvolvimento endógeno  104 

    Quadro 2 – Caracterização da abordagem da self‐reliance  108 

    Quadro 3 – Processos e resultados do Empoderamento  117 

    Quadro 4 – Componentes do conceito de desenvolvimento comunitário  (ONU, 

    1954) 

    166 

    Quadro 5 – Concepções de desenvolvimento comunitário  180 

    Quadro 6 – Ideais‐tipo de animação  209 

    Quadro 7 – O grau de urbanização no município de Catende  347 

    Quadro 8 – A evolução da população no município de Catende  348 

    Quadro 9 – A evolução da população na cidade de Catende  348 

    Quadro  10  –  Estrutura  fundiária  no município  de  Catende:  Estabelecimentos 

    agrícolas x Tipo de propriedade e Área agrícola ocupada x Tipo de propriedade 

    350 

    Quadro 11 – Estrutura  fundiária no município de Catende: quantidade, área e 

    percentagem de imóveis rurais em 1991 e 1998 

    350 

    Quadro 12 – N° Imóveis Rurais x Área agrícola ocupada  351 

    Quadro 13 – Indicadores de produção da Usina Catende  366 

    Gráfico  1  –  Rendimento médio  de  cana‐de‐açúcar  por  hectare  no  Brasil  e  no 

    município de Catende, 1990 e 1999 

    368 

    Figura 1 ‐ A produção educativa dos militantes e activistas em Catende 

     

    388 

    Quadro  14  – Gramática  do Desenvolvimento  Local  vs Gramática  da  Educação 

    Escolar 

    583 

       

       

       

  • 5

    Introdução geral

    Do auto-questionamento à identificação de dimensões mobilizadoras para a pesquisa

    O envolvimento no trabalho que aqui se apresenta é o prolongamento natural 

    de um percurso pessoal e profissional que temos vindo a fazer no campo da educação 

    de  adultos  e  do  desenvolvimento  local  durante  os  últimos  12  anos,  em  várias 

    instituições  e  espaços  de  intervenção  social.  É  por  aí  que  gostaríamos  de  começar, 

    mostrando  como o percurso  seguido neste  trabalho está eivado, em primeiro  lugar, 

    pela  nossa  implicação  psico‐afectiva  e  profissional1,  e,  depois,  pela  tensão  entre  o 

    primado  da  teoria  que  envolve  a  razão  científica  e  a  contingência  do  real,  entre  o 

    desejado e o possível, entre o projectado e o realizado2 mesmo se a depuração formal 

    da escrita de trabalhos de  investigação não é, geralmente, muito sensível a este tipo 

    de “desvio”. Neste sentido, não é por acaso que partilhamos com Ardoino (2000:214) a 

    ideia  de  que  se  até  há  bem  pouco  tempo  “os  aléas3,  as  peripécias,  os  avatares  da 

    investigação eram relegados para o estatuto de caixa negra, que pouco importava ter 

    em consideração”, hoje devem constituir‐se em materiais com direito de pertença ao 

    produto  final, na medida em que permitem  firmar‐se, para o autor, num dispositivo 

    com o qual e através do qual o pesquisador pode “trabalhar explicitamente a relação 

    1 Como muito bem o diz Alberto de Melo (2002:437), “ a vida consiste em uma combinação de acaso e opção, resultando as escolhas de um emaranhado de ideias e emoções”. 2  Em  certa  medida,  a  relação  estabelecida  com  o  “objecto”  e  as  decisões  sobre  um  percurso  de investigação revelaram‐se inseparáveis e concomitantes. Nesse sentido, o objecto não deixou de ser um sujeito deste processo e o percurso não se limitou a ser escolhido, ajudou‐nos a escolhê‐lo. De acordo com  Isabelle  Stengers  (1991:175  e  sgs.),  este processo obedece  ao  estabelecimento de uma  relação “empática” com o objecto caracterizada pela “possibilidade que não seja o investigador, mas o material que  “pose problème”, que  tenha uma história a  contar, que é necessário aprender a decifrar”. Nesta perspectiva,  a  “descoberta”  confunde‐se  com  “a aprendizagem  com”  e o questionamento hipotético passa pela “dissolução do eu consciente, por uma abertura que “deixa vir a nós” o material, mas que significa,  do  mesmo  modo,  o  abandono  do  conjunto  de  procedimentos  intelectuais  explícitos  que permitem aos epistemólogos construir modelos de racionalidade” (Stengers, 1991).  3 Salvo referência explícita em contrário, as palavras e  frases que aparecem a sublinhado ao  longo do trabalho correspondem a palavras ou frases que se encontram em itálico no original. Esta opção prende‐se com o facto de termos usado como regra no corpo do trabalho a apresentação em itálico de todas as citações  que  fazemos,  todos  os  termos  apresentados  entre  aspas  e  alguns  conceitos  que  queremos destacar na economia do discurso.

  • 6

    complexa  implicação‐distanciação que o  liga ao  seu objecto”  (idem: 214‐215), numa 

    atitude “eticamente fundamental a todo espírito científico” (idem:214)4. 

    Esse percurso tem‐se traduzido na militância5 em movimentos protagonistas 

    de  dinâmicas  de  animação  sócio‐comunitária  que  se  afirmam  como  promotoras  de 

    desenvolvimento local e comunitário6 (das iniciativas em que milito poderão constituir 

    exemplos particulares a defesa das pequenas escolas em meio  rural, a educação de 

    infância itinerante ou a defesa de um associativismo cidadão contra a mercadorização 

    do  laço  social  e  a  instituição  de  uma  sociedade  de  serviços...)7  que  é, 

    simultaneamente, uma militância contra as tendências políticas de desqualificação das 

    comunidades e dos territórios “periféricos” – designadamente o rural e o interior – que 

    4  Silva  &  Pinto  (1986:132)  acrescentam  ainda  que  as  “’histórias  de  pesquisa’  são  inegavelmente importantes,  sobretudo  na  medida  em  que  constituam  matéria‐prima  para  uma  usualmente  não elaborada  reflexão,  tanto  epistemológica  e metodológica  como  especificamente  sociológica,  sobre os processos de pesquisa enquanto processos sociais”. Certamente que as considerações que aqui tecemos não  têm  este  alcance,  ainda  assim,  preocupamo‐nos  em  realçar  através  delas  as  circunstâncias envolvidas na construção da  investigação, procurando mostrar como as decisões que  se  tomaram no seu  interior  não  derivaram  estritamente  de  uma  postura  de  conformidade  face  a  uma  utilização canónica do método científico e dos seus procedimentos mas que nos fomos também envolvendo numa “prática  que  não  procede  a  partir  de  um  julgamento  geral  decompondo  um  objecto  de  maneira normativa, definindo a priori aquilo de que deve ser capaz, a que tipo de questão deve responder, mas antes se dirige a uma realidade intrinsecamente dotada de significação, tratando‐se de a decifrar e não de a reduzir ao estatuto de ilustração particular de verdade geral” (Stengers, 1991:181). 5 Esta militância é indissociavelmente política e educativa identificando‐nos perfeitamente com o modo como  Melo  (2002:438)  se  refere  a  esta  imbricação:  “o  tipo  de  trabalho  político  que  encoraja continuamente os cidadãos a se tornarem mais autónomos, mais informados, mais poderosos em todos os  sectores da  vida pessoal  e  social deve denominar‐se Educação  (crítica)  ”,  entendendo‐se por  esta última  uma  “  educação  [que]  já  não  pretende  fornecer  respostas  predefinidas, mas  antes  o  oposto: significa  estar  atento  aos  problemas  que  as  pessoas  enfrentam  e  depois  procurar  e  produzir  os necessários conhecimentos, comportamentos e capacidades que poderão contribuir para a elaboração e implementação das respostas mais apropriadas e eficientes” (idem: 438‐439) 6 Ao longo deste trabalho vamos referir‐nos de forma relativamente indistinta a desenvolvimento local, desenvolvimento  comunitário,  desenvolvimento  local  comunitário  ou  desenvolvimento  comunitário local  para  denotar  um  mesmo  conceito,  mesmo  sabendo  do  esforço  de  alguns  autores  para estabelecerem  fronteiras  e  critérios  de  distinção  entre  estas  diferentes  formas  de  declinação  do desenvolvimento,  como  são  por  exemplo  os  casos  de  Amaro  (2003)  ou  ainda  Fragoso  (2005). Assumimos que a matriz de  todos estas declinações é o desenvolvimento  local e, por outro  lado, não estamos  propriamente  interessados  em  embarcar  numa  exploração  essencialista  que  envolva  a dissecação exaustiva das subtilezas destas distinções entre autores e tradições teóricas, na medida em que entendemos que o resultado a que chegaríamos não teria uma particular relevância para o trabalho de problematização e análise que levamos a cabo. 7 Conferir a este respeito, por exemplo, o significativo texto de Canário (2000a), onde são confrontados e discutidos os argumentos politica e cientificamente mobilizados no debate acerca do encerramento das  pequenas  escolas  de  1º  ciclo  em meio  rural.  Em  contraponto,  leia‐se  por  exemplo  a  reflexão constante de Azevedo, (1994). Para uma discussão de distintas formas de associativismo que coexistem hoje  na  sociedade  portuguesa  e  do  seu  sentido  político  face  à  promoção  da  cidadania  é  pertinente destacar a análise presente em Matos (2004). 

  • 7

    equacionam o  seu desenvolvimento estritamente a partir de  juízos de valor  técnico‐

    funcionais,  de  carácter  economicista,  gestionário  e  pendor  managerialista,  e  que 

    portanto  concluem  da  sua  “irracionalidade”  no  actual  contexto  societário  e 

    equacionam  simplesmente  o  seu  futuro  entre  a  conversão  a  um  modelo  de 

    desenvolvimento  ocidentocêntrico,  economicocêntrico  ou  urbanocêntrico  ou...  o 

    abandono  à  sua  sorte.  É  também  uma  militância  contra  certos  discursos  que 

    qualificariamos de “puristas” (em boa verdade, são também “higienistas”, na medida 

    em  todo  o  seu  argumentário  é  também  um  receituário  contra  as  contaminações 

    exteriores  à  pureza  original  do  local  a  que  se  referem),  apenas  aparentemente 

    valorizadores  das  especificidades  e  potencialidades  destes  locais  e  comunidades 

    periféricos, na medida em que redundam numa concepção  imobilista e conservadora 

    deste  local  e  destas  comunidades,  tendências  bastas  vezes  camufladas  sob  um 

    discurso que apela à preservação da  utenticidade desta   comunidades    territórios 

    como  forma  de  resistência  à  hegemonia  urbanocêntrica  e  modernizadora, 

    condenando,  paradoxalmente,  estes  territórios  e  as  pessoas  que  os  habitam  ao 

    imobilismo como condição do

    a s e

     seu desenvolvimento (Correia & Caramelo, 2003).  

    Como facilmente se poderá perceber, esta militância inscreve‐se num terreno 

    verdadeiramente  minado,  em  que  traçar  as  linhas  de  fronteira  entre  opções 

    conservadoras  e  desqualificantes  e  opções  progressistas  e  qualificantes  exige  um 

    esforço de  lucidez política e teórica que ainda assim, por vezes, não é suficiente para 

    evitar  a  cooptação  pela  ideologia  dominante  e  conservadora  o  que,  na  ordem  da 

    produção, se pretendeu constituir como discurso e proposta de um “desenvolvimento 

    alternativo”  que  apontam  a  um  outro  desejo  de  sociedade,  e  isto  porque  também 

    vivemos num tempo em que face ao agravamento da “crise dos macro‐dispositivos de 

    integração social e dos macro‐instrumentos cognitivos usados para reconhecer, gerir e 

    desconhecer  as  dinâmicas  sociais”  (Correia  &  Caramelo,  2001;  2003;  Caramelo  & 

    Correia,  2004),  a  pretensa  revalorização  do  local/comunitário  como  dispositivo  de 

    gestão da questão social se tornou particularmente significativa do ponto de vista da 

    sua cooptação e instrumentalização política.  

    Mas, como muito dialecticamente sugere Heidegger, “é no seio do perigo mais 

    extremo  que  cresce  o  que  salva”,  o  que  nos  permite  preservar  o  sentido  para  esta 

  • 8

    militância  e  imaginar  que  ao  nível  das  práticas  sociais  e  da  irredutível  liberdade 

    humana é possível encontrar o fio de Ariadne que, à luz da lucidez possível, não só nos 

    permita co‐definir e co‐produzir um percurso politica e eticamente fundado num ideal 

    de sociedade mais  justa e solidária, como nos permita mesmo transformar as opções 

    societárias e as práticas sociais mais conservadoras e  instituídas em possibilidades de 

    emancipação social, colectivamente erigidas. Nesse sentido, a profunda ambivalência 

    que  hoje  caracteriza  o  campo  dos  discursos,  das  práticas,  das  políticas  acerca  do 

    desenvolvimento  local e comunitário não deixa de  ser, algo  ironicamente, diga‐se, o 

    terreno mais fértil para o exercício exigente e instituinte de um pensamento e de uma 

    praxis alternativos, mesmo se, como nos avisa René Char, poeta francês, “a lucidez é a 

    ferida mais próxima do sol”.  

    A  nossa  militância  no  campo  do  desenvolvimento  local  fez‐nos,  contudo, 

    compreender  que  a  exigência  de  lucidez  é  comparável  ao  «drama»  que  o  filósofo 

    Sören Kirkegaard atribui à vida humana: esta só se compreende retrospectivamente, 

    mas  tem de ser vivida no presente com um sentido  futurante8. Com efeito, nos dias 

    que correm a lucidez ética, política e teórica é um desígnio cada vez mais complexo de 

    aplicar à acção humana numa lógica prospectiva, não só por causa dos fenómenos de 

    apropriação e  transformação dos  sentidos a que essa acção humana é  sujeita  ‐ pela 

    mediação das estruturas sociais, das relações de poder e pelas estruturas discursivas 

    que  instituem um regime de verdade sobre aquela acção que não é necessariamente 

    homólogo do que esteve na sua origem, como por causa da propagandeada  falência 

    das grandes metanarrativas (no que alguns autores, como Francis Fukuyama, chamam 

    simplesmente de «o  fim da história»)  ‐ e que ao ser  incorporada como verdadeira e 

    definitiva,  tanta  força  da  narrativa  hegemónica  do  capitalismo  que  prevalece,  nos 

    deixa,  primeiro,  desorientados  e,  depois  de  reagir,  com  todo  um  novo mundo  de 

    possíveis  a  construir que  tem  tanto de desafiante  como de  atemorizador. De  facto, 

    Thomas Moore e a sua  ilha Utopia, que ontologicamente todo o ser humano contém 

    em si, nem sempre se revela na existência de cada um de nós e, muito menos, agimos 

    em  conformidade  com  essa  condição  ontológica,  principalmente  quando  somos 

    8 A frase exacta publicada na obra Philosophical Fragments há 150 anos é: “life can only be understood backwards. In the meantime, it has to be lived forwards”.

  • 9

    “submersos”  e  condicionados  todos  os  dias  e  pelas mais  diversas  vias  a  aceitar  a 

    inevitabilidade  e  a  desejabilidade  do  que  existe  e  do  rumo  que marcará  o  nosso 

    futuro... Mais ainda, esta lucidez prospectiva não pode ser uma empresa individual ou 

    simplesmente  de  uma  vanguarda  iluminada, mas  tendencialmente  terá  de  ser  uma 

    demanda  construída  democrática  e  colectivamente  a  partir  de  unidades  bio‐físicas 

    concretas e de uma  forma praxeológica  (Finger, 1993), sob  risco de  incorrermos nos 

    erros que algumas experiências históricas  revelaram à  saciedade, abrindo o  flanco à 

    sua erosão política e teórica. Ou seja, a lucidez prospectiva supõe esse difícil exercício 

    de erigir um futuro alternativo num presente constrangedor. 

    Mas, apesar das palavras de Kirkegaard, a  lucidez retrospectiva é  igualmente 

    complexa  e  não  necessariamente  transformante.  Por  um  lado,  seria  suposto  que  a 

    história,  e  a  reflexão  sobre  esta,  nos  tivesse  vindo  a  ensinar  sobre  os  efeitos 

    segregadores  que  um  dado  modo  de  organização  da  vida  social  provoca  sobre  a 

    grande maioria da população mundial. Mas parece que este conhecimento não é, ou 

    pelo  menos  não  tem  sido,  condição  da  transformação  global  desses  modos  de 

    organização  social.  Daí  que  os  limites  da  lucidez  retrospectiva  tenham  sido  bem 

    sintetizados por Karl Marx, no “18 Brumário de Luís Bonaparte”, quando sugere que a 

    história se repete, primeiro como farsa e depois como tragédia, ou seja, que não é o 

    conhecimento  da  história  que  a  transforma  necessariamente  ou,  se  radicalizarmos 

    este raciocínio, o conhecimento não é em si mesmo transformador e emancipatório. 

    Ainda  assim,  é  este  o  mesmo  Marx  que  destaca  as  possibilidades  desta  lucidez 

    retrospectiva, se articulada com uma lucidez prospectiva, quando afirma que o tempo 

    de explicar a  realidade,  tarefa de que os  filósofos que o antecederam  se ocuparam, 

    necessitaria urgentemente de ser substituído por um  tempo de  transformação desta 

    mesma realidade. (Marx & Engels, 1982)9 

    Por outro lado, parece que a não ser que adoptemos uma grelha de leitura da 

    acção humana profunda e estreitamente balizada ética e politicamente ‐ sobre o que é 

    e não é justo, o que é progressista e o que é conservador, o que é emancipatório e o 

    que não é ‐ e cognitivamente dicotómica (o que é, é, e não pode ser outra coisa) que 

    9  As  datas  das  referências  bibliográficas  apresentadas  remetem  sempre  para  a  edição  consultada, constante da bibliografia, apesar de nem sempre (como é obviamente o caso) corresponderem à data da sua primeira publicação. 

  • 10

    tenderá  a  visibilizar  tanto  como  a  ocultar  e  a  dar  significado  ao  que  vemos 

    retrospectivamente,  estamos  «condenados»  a  admitir  uma  quase  incomensurável 

    plurissignificação  da  acção  humana  e  a  complexidade,  por  vezes  internamente 

    contraditória,  dos  seus  efeitos.  Ora,  adoptando  uma  ou  outra  postura,  a  lucidez 

    retrospectiva  permanece  ainda  assim  uma  capacidade  limitada  no  seu  potencial 

    transformador, num caso por defeito, noutro caso por  impossibilidade de  lidar com o 

    excesso  de  significação.  E  os  contributos  que  nos  aportará  para  pensar  e  realizar  a 

    mudança social  incorrem no perigo de, num caso, serem dogmáticos e, noutro caso, 

    erráticos. 

    Na  nossa  militância,  a  reflexão  que  temos  produzido  tem‐se  pautado 

    essencialmente por uma tentativa, tensa e provavelmente nem sempre bem sucedida, 

    de compatibilização destas duas posturas: a primeira, diríamos que verdadeiramente 

    militante,  supõe  que  não  só  sabemos  por  onde  não  queremos  ir,  como  afirma  um 

    conjunto de alternativas cognitivas e praxeológicas, sustentadas por uma postura ética 

    e  política,  que  efectivamente  permitam  pensar  e  agir  (n)o  domínio  do 

    desenvolvimento  local;  a  segunda,  incorpora  os  requisitos  da  produção  de  um 

    conhecimento  científico  reconhecido  como  válido  pela  comunidade  de  pares  da 

    universidade, é pautado pela busca de restituição dos sentidos da acção e dos actores 

    envolvidos  em dinâmicas de desenvolvimento  local, mas  também pela produção de 

    um  conhecimento  socialmente  pertinente  e  relevante  e,  como  tal,  ancorado  numa 

    ética do trabalho científico como trabalho com valor social. Mas não é seguro que esta 

    seja a fórmula do militar lucidamente... 

    Este  percurso  conduziu‐nos  no  final  da  década  de  90  à  frequência  de  um 

    mestrado na área de Educação de Adultos da Faculdade de Psicologia e de Ciências da 

    Educação  da  Universidade  de  Lisboa  onde  aprofundámos  o  contacto  com 

    questionamentos  diversos  (pedagógicos,  políticos,  sociológicos,  históricos,  entre 

    outros) à diversidade e complexidade  interna do campo da educação de adultos (das 

    suas teorias e das suas práticas) enquanto objecto das ciências da educação. De entre 

    esta  diversidade  e  complexidade,  e  em  face  da  nossa  identificação  prévia  com  o 

    domínio  da  animação  comunitária,  resultou  particularmente  significativo  o 

    reconhecimento,  de  que  “os  processos  de  desenvolvimento  local  participativo  se 

  • 11

    instituem como momentos de síntese dos diferentes pólos que definem a educação de 

    adultos  (animação,  alfabetização,  formação  profissional),  contribuindo  para  tornar 

    mais visível a globalidade dinâmica dos processos de educação de adultos”10 (Canário, 

    1999:15). Desde então este reconhecimento  informou o nosso olhar de pesquisa em 

    educação,  que  se  foi  orientando  para  a  análise  dos  processos  de  desenvolvimento, 

    ditos  locais e participativos, recorrentemente conduzidos por movimentos de pendor 

    associativo, e para a  identificação de processos educativos naqueles  contextos, mas 

    essencialmente  para  a  compreensão  das  suas  características,  funções  e  actores,  na 

    convicção de que nestes  se plasmavam essas duas  características  antes  assinaladas: 

    um  carácter  de  síntese  dos  fenómenos  educativos  característicos  da  educação  de 

    adultos e a globalidade dinâmica desta. Razões teóricas de suporte a esta orientação 

    encontram‐se  defendidas  por  Canário  (1999:15)  quando  postula  que  a  análise  de 

    processos de desenvolvimento  local é particularmente pertinente para questionar o 

    sentido  e  as  fronteiras  dominantes  do  educativo  (e  especificamente  do  educativo 

    presente na educação de adultos); em primeiro lugar, já que aí se propõe transcender 

    a forte, e muitas vezes estrita, conotação do educativo com o escolar ao sobrepor os 

    dois processos como indissociáveis – o desenvolvimento e a educação – e, em segundo 

    lugar, porque implica uma abordagem teórica transfronteiriça que convoca contributos 

    de perspectivas e de problemáticas  teóricas da educação de adultos desenvolvidas a 

    propósito de cada um dos seus campos, mas que nos processos de desenvolvimento 

    local  se mestiçam/hibridam  para melhor  dar  conta  das  formas  que  a  educação  aí 

    assume e dos problemas que aí se lhe levantam.  

    Neste sentido, a abordagem educacional ao campo do desenvolvimento local 

    é ainda significativa das especificidades das Ciências da Educação que, como Canário 

    (2003:21‐23)  assinala,  começam  por  advir:  i)  do  “facto  de  o  campo  disciplinar  das 

    ciências da educação não  ser definido por um  “território” de  factos  sociais, mas  sim 

    pelo modo de articular como “olha” e  se posiciona  face a esse “território”” e, quase 

    paradoxalmente, se concretizar na que reiteradas vezes é invocada como característica 

    específica do olhar analítico das ciências da educação;  ii) a multireferencialidade,  isto 

    é, o  recurso a uma pluralidade de perspectivas e de  linguagens distintas em prol da 

    10 Sublinhado nosso.

  • 12

    inteligibilidade  de  factos  educativos  complexos  e  que  está  bem  para  além  da 

    constatação de que as ciências da educação simplesmente têm um carácter plural. Se a 

    estas  especificidades  das  ciências  da  educação  acrescentarmos,  e  não  de  somenos 

    importância;  iii)  a  “impossibilidade  de  dissociar  a  investigação  em  educação  das 

    práticas  que  constituem  o  seu  objecto”,  que  traduz  uma  difícil  autonomia  entre 

    produção de conhecimento e