Do Corpo Produtivo Ao Corpo Brincante

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    (Ficha catalogrfica feita por Marlene Margarete Elbert, CRB14 167)

    S729d Souza, Edison Roberto deDo corpo produtivo ao corpo brincante : o jogo e suas inseres no de-

    senvolvimento da criana / Edison Roberto de Souza; Francisco AntonioPereira Fialho, orientador. Florianpolis, 2001.

    [10], 226 f. : il.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Santa Catarina, CentroTecnolgico, 2001

    Bibliografia: f. 220-226.

    1. Jogos infantis Aspectos psicolgicos. 2. Aprendizagemperceptiva. 3. Crianas Desenvolvimento. 4. Educao atravs dosjogos. 5. Jogos tradicionais. I. Fialho, Francisco Antonio Pereira. II.Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Tecnolgico. III. Ttulo.

    CDU: 371.695 ; 796.11 ; 159.928

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    UUUNNNIIIVVVEEERRRSSSIIIDDDAAADDDEEEFFFEEEDDDEEERRRAAALLLDDDEEESSSAAANNNTTTAAACCCAAATTTAAARRRIIINNNAAAPPPRRR---RRREEEIIITTTOOORRRIIIAAADDDEEEPPPEEESSSQQQUUUIIISSSAAAEEEPPPSSS---GGGRRRAAADDDUUUAAAOOO

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    DA CIA

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    DEDICATRIA

    A Andr, Anita, Beatriz, Carlos, Carolina, Diana, Ewerton, Elisa, Fbio,

    Fernanda, Gabriela, Geovani, Jorge, Joice, Joana, Joo, Lucas, Lusa, Manoel, Marcos,

    Marina, Maria, Osvaldo, Pedro, Patrcia, Paulo, Regina, Rui, Saulo, Sabrina, Snia,Tatiana, Valria, Valdir representando tantas crianas, manezinhas, descendentes de

    aorianos, moradoras do interior da Ilha de Santa Catarina, que dinamicamente se

    constituram nos sujeitos desta investigao, dedicamos este trabalho. .

    Algumas delas so meninos, outras meninas. A grande maioria de origem

    aoreana, outras resultam da miscigenao do povo brasileiro. Algumas tem sete,

    outras oito, nove, dez ou onze anos. Algumas so loiras, outras morenas, ruivas e

    negras. Algumas so altas, outras magras, baixas e gordas. Algumas preferem a bola,

    outras o taco, a peteca, o pio a pipa, o carrinho, a perna de pau, a amarelinha ou o

    brincar de casinha.. Algumas preferem carne, outras peixe, frutas e cereais. Algumas

    so avaianas outras alvi-negras. Todas se vestem de forma diferente, algumas com

    blusas, calas e camisetas, outras com saias, shorts ou agasalhos. Algumas falam do

    farra do boi, outras preferem brincar com o boi de mamo. Moram em localidades

    distintas, Campeche, Costeira do Pirajuba, Ingleses, Pntano do Sul, Ratones,

    Ribeiro da Ilha, Rio Vermelho, Sambaqui e Vargem Pequena. Estudam nas mais

    distintas escolas, municipais, estaduais e particulares. Suas fantasias fazem-nas viajar,de carrinho pelo quintal, de barquinho pelo mar ou, com as pipas pelo ar.

    Porm, apesar dessas inmeras diferenas, no brincar elas tornam-se iguais.

    Nessa igualdade, seus rostos e expresses de contagiante felicidade, provocaram em

    ns algumas reflexes sobre qual o verdadeiro sentido de viver.

    S CRIANAS...

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    AAAGGGRRRAAADDDEEECCCIIIMMMEEENNNTTTOOOSSS

    Fernanda Regina e Lucas Roberto,

    Ao Creedence Clearwater Revival, por embalar os meusmomentos de fantasias durante as pausas do estudo. Conjuntoque curto desde o seu surgimento, na dcada de 70. Foi nosembalos de Who'll stop the rain e Have you ever seen therain?, que obtive energia necessria para concluso destainvestigao.

    Ao Ava, o Leo da Ilha, o mais vezes campeo de SantaCatarina, responsvel pelas fortes emoes nas tardesdominicais. O Time Azurra foi fundado no dia 1o de Setembrode 1923, e recebeu este nome a partir da sugesto de seprimeiro presidente Amadeu Horn que pesquisava sobre oepisdio histrico da Batalha do Avahi, acontecida no Paraguai.

    Ao Fialho, amigo, orientador, que me permitiu entender que osopro do vento ou o perfume da flor no cabem em nenhumacincia. As professoras, doutoras, integrantes da banca, AnaMoiseichyk, Arceloni Volpato, Christianne Coelho e ElaineFerreira, o eterno agradecimento Aos meus amigos, professoresdo DEF, Ricardo Pacheco e Sidney Farias, pelo incentivo.

    s crianas, razo maior deste estudo, que tanto ensinaram,mostrando-nos que no brincar o seu movimentar singular ehumano, principalmente porque seus corpos so muito maisdo que corpos fsicos se deslocando no tempo e espao, elesso suas instncias de interao com o universo e decelebrao festiva da vida.

    Aos meus pais, Waldemiro e Nardina, que oportunizaram minhaformao. Aos meus irmos Antnio Carlos, Eliane Floriano e

    Carlos Alberto pelo constante apoio. minha esposa, AlbaRegina Battisti, que alm de admirvel educadora, com a suafora, determinao, sensualidade e companheirismo, encharca-me com o mais puro dos sentimentos, que se chama amor. Aosfilhos, Fernanda Regina e Lucas Roberto, frutos expressivos denossa unio, que constantemente me transportam para o mundoda alegria, do prazer, dafantasia.

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    MENSAGEM

    A criana feita de cemA criana tem cem lnguas

    cem moscem pensamentos

    cem modos de pensar,de brincar e de falar.

    Cem, sempre cemmodos de escutar de admirar-se e de amar

    cem alegrias para cantar e compreendercem mundos para descobrir

    cem mundos para criarem mundos para sonhar.

    A criana tem cem lnguas(e depois cem, cem, cem)

    mas so-lhe roubadas noventa e noveA escola e a cultura separam-lhe a cabea do corpo.

    Dizem-lhe:para pensar sem as mos,

    para fazer sem a cabea,para escutar e no falar,

    para compreender sem alegria,para amar e maravilhar-se

    somente na Pscoa e no Natal.Dizem-lhe:

    para descobrir o mundo que j existee de cem roubaram-lhe noventa e nove.

    Dizem-lhe:

    o jogo e o trabalhoa realidade e a fantasia

    a cincia e a imaginaoo cu e a terra

    a razo e o sonhoso coisas que no esto juntas.

    Dizem-lhe, enfim, que o cem no existeA criana diz: pelo contrrio, o cem existe.

    PELO CONTRRIO,O CEM EXISTE

    Lris Malaguzzi, 1996, p. 10

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    RRREEESSSUUUMMMOOONa busca por compreender o jogo tradicional infantil enquanto possibilidade de

    desenvolvimento da criana, optamos, metodologicamente, por uma pesquisa descritiva comcaractersticas etnogrficas, de cunho exploratrio, essencialmente qualitativa. A metodologiaempregada teve como preocupao fundamental conceber essa atividade da cultura ldicainfantil enquanto uma prtica real de relaes sociais entre as crianas do interior da Ilha deSanta Catarina. A partir da anlise de contedo desse fenmeno do existir infantil e dosdiscursos de educadores, algumas categorias surgiram, transformando-se em pilares tericosque, interconectados, possibilitaram-nos compreender os jogos como essenciais nodesenvolvimento da criana. No primeiro captulo, O corpo produtivo, incitados pelas

    reclamaes infantis e centrados nos escritos de Foucault, o principal terico da contracultura,exploramos facetas ocultadas no processo de dominao do corpo da criana, bem comorefletimos acerca da excluso das atividades ldicas por parte da escola que, ao subjugar acriana sociedade produtiva, nega -lhe um viver mais significativo e feliz. No segundocaptulo: O corpo complexo, a partir dos valores surgidos dos jogos analisados e das falasde educadores descontentes com essa formao que prioriza apenas um aspecto do universo dacriana, refletimos sobre as possibilidades dessa atividade ldica no desenvolvimento deoutras dimenses humanas, recorrendo ao paradigma da complexidade, proposto por Morin.No terceiro captulo: O corpo ldico, na nsia por compreender e por classificar os jogostradicionais investigados, adentramos num estudo envolvendo diversas teorias sobre o jogo nainfncia, destacando, em especial, o pensamento de Piaget, Vygotsky, Elkonin e Brougre. No

    quarto captulo: O corpo em ao, procuramos relacionar os jogos ao desenvolvimento dasdimenses cognitivas, motoras e socioafetivas da criana, identificando os seus valoresimplcitos, surgidos durante o processo de anlise. No ltimo captulo: O corpo brincante,encerramos este estudo, apresentando os jogos tradicionais infantis investigados e ousandosugeri-los no processo educativo de crianas do Ensino Fundamental, principalmente porque,no jogar, a criana nos ensina que o seu desenvolvimento harmonioso, recheado de mltiplasdimenses, inscreve-se no corpo, e essa atividade sria permite-lhe irradiar sua complexidadeao conectar-se e interagir com o mundo. Trata-se de um recurso espontneo de celebrar a vidacom alegria e felicidade, tornando a criana subversiva, guerreira, resistente, criativa, livre,cidad e humana, enfim, ela nos mostra que o seu corpo produtivo to decantado pela escola essencialmente brincante. Ao ousar sugerir a incluso dos jogos na escola, fazemo-lo na

    perspectiva de educarmos nossas crianas para outras dimenses humanas, tornando-as maisfelizes. Entendemos, portanto, que cabe escola considerar todas as perspectivas de vida e avariedade de idias das crianas, buscando um currculo que leve em considerao o repertrioldico infantil existente, tornando, assim, o contedo mais significativo, plural, intersubjetivoe dinmico. Quando sugerimos o ldico no desenvolvimento da criana, no pretendemosnegar o papel da escola na difuso da cultura erudita em detrimento da cultura popular,propomos a conciliao desses dois plos essenciais emancipao da criana, como um serhistrico que busca, a partir de suas razes, transformar o mundo e, ao mesmo tempo,preservar sua identidade.

    DO CORPO PRODUTIVO AO CORPO BRINCANTE: O JOGO ESUAS INSER ES NO DESENVOLVIMENTO DA CRIAN A

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    AAABBBSSSTTTRRRAAACCCTTT

    In the seek of understanding the traditional childs games as a alternative in the childsdevelopment, we choose, methodologically, by a descriptive research with ethnographiccharacteristics, of explorative type, essentially qualitative. The methodology used, had as mainworry to conceive this activity of the ludic childhoods culture as a real practice of socialrelationships among the children of the interior of Santa Catarina Island. From the contentanalysis of this phenomena, from the childs being and educators discourses, some categorieshave emerged, becoming theoretical bases, that interconnected, allow us to understand them asessentials of childs development. In the first: The Productive Body, incentivated by childadvertisements and centered in Foucaults papers, main theoretic of contraculture, we exploreanother faces of the process of dominating the childs body and the negation of the ludicactivities at school, that when dominating the child, the productive society, negates a happyand meanful living. The second: The complex Body, from the values that appeared in theanalyzed games and form educators unhappy with this formation that prioritizes only oneaspect of the child, we reflect on its possibilities of developing other human dimensions, usingMorins complexity paradigm. In the third: The Ludic Body, the eager to understand andclassify the traditional games, we study some theories, specially Piaget, Vygotsky, Elkoninand Brougre. In the fourth: The Body in Action, we look for establish a relationship amongdevelopment of the children cognitive, motor and socio-affective dimensions, identificatingtheir implicit values, that appeared during analysis. The last: The Playing Body, closes thisstudy, by presenting the traditional childs games studied, suggesting their use in the learningprocess of children in the fundamental teaching, mainly because by playing children teach usthat their harmonic development, fulfilled of multiple dimensions, is centered in the body.This serious activity allows then irradiate its complexity by connecting and interacting withthe word. That is a spontaneous resource to celebrate the living with happiness and joy,becoming subversive, warrior, resistant, creative, free, citizen and human. Finally, show usthat the productive body, so reinforced by school is basically playing body. We suggest theplaying body to school, in order to educate our children in other human dimensions, makingthen happier. So, we understand that is responsibility of the school to consider all perspectivesof live and the variety of childrens ideas, seeking a curricula that takes into consideration theludic repertory of children, making the content more meanful, plural and dynamic. Bysuggesting the ludic in the development of children, we do not want to neglect the roll ofschool in divulgating the erudite culture in relation to popular culture, but a conciliation ofthese two poles essentials to childs emancipation, as an historic being that seeks from its rootstransform the world, and at the same time, preserve its identity.

    FROM THE PRODUTIVE BODY TO THE PLAYING BODY:THE GAME AND ITS INSERTIONS IN CHILDSDEVELOPMENT

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    SUMRIO

    I PALAVRAS INICIAIS...1.1 - Fundamentao terica do problema1.2 - Justificativa da investigao1.3 - Objetivos do estudo1.4 - Reflexes metodolgicas da investigao

    II O CORPO DOMINADO2.1 - O Corpo produtivo: as disciplinas de dominao2.2 - O Corpo na escola: a construo da docilidade

    III O CORPO COMPLEXO

    3.1 - O Corpo social complexo3.2 - O Corpo emergente

    IV O CORPO LDICO4.1 - Conversando sobre o jogo4.2 - O jogar e o brincar nas teorias clssicas4.3 - O jogar e o brincar nas teorias modernas4.4 - O jogar e o brincar e suas classificaes

    V O CORPO EM AO5.1 - O corpo, o jogo e a cognio infantil

    5.2 - O corpo, o jogo e o desenvolvimento motor5.3 - O corpo, o jogo e o desenvolvimento scioafetivo

    VI O CORPO BRINCANTE6.1 - As crianas e seus jogos tradicionais6.2 O Jogo que sonhamos

    BIBLIOGRAFIA

    Referncias bibliogrficasBibliografia de apoio

    0102081921

    282944

    555667

    77788798

    118

    125126159169

    173174205

    219220224

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    LISTA DE QUADROS

    QUADRO TEMA PGINA

    Quadro 1 O Corpo dominado: sntese dos estudos foucaultianos 42

    Quadro 2 O corpo e os tipos de organizao do trabalho 43

    Quadro 3 O jogo na histria da civilizao humana 86

    Quadro 4 Jogos infantis segundo a evoluo da humanidade 90

    Quadro 5 Teorias clssicas do jogo 97

    Quadro 6 O Jogo e os diferentes nveis de regras 104

    Quadro 7 Teorias modernas do jogo 117

    Quadro 8 O jogo e suas classificaes 123

    Quadro 9 As modalidades dos hemisfrios cerebrais 129

    Quadro 10 Motricidade infantil x Estruturas do jogo 165

    Quadro 11 Jogos tradicionais infantis 186

    Quadro 12 Rizoma do cio 210

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    LISTA DE ILUSTRAES

    LOCAL TEMA DA ILUSTRAO PGINA FONTE

    Capa Pipa - CD PrintMasterGold de Luxe

    Cap. I

    Crianas na sala de aulaMenino deitadoCrianas brincandoMenino laandoMenina no balano

    0102081921

    CD PrintMaster

    Cap. IIDominao do corpoMulher trabalhandoMenino lendo

    282944

    CD PrintMaster

    Cap. IIIImagem do corpoBailarinasCriana jogando taco

    555667

    CD PrintMaster

    Cap. IV

    Menina no balanoGangorraMeninos correndoBonecasMenino no pneu

    77788798

    118

    CD PrintMaster

    Cap. V

    Brincando com bolaCrebro*reas cerebrais*Meninas girandoCriana sentada

    105126129159169

    CD PrintMaster*www.cerebronosso.bio.br

    *www,areaeducativa.hpg.com.br

    Cap. VI

    Pulando cordaBrincando de rodaHistria do Piteco*Jogos tradicionais*Pipa e pio

    173174

    175/179187/205

    206

    CD PrintMaster*Maurcio de Souza*Edison Roberto de Souza

    BibliografiaCriana c/ livrosCriana lendoCriana carregando

    219220224

    CD PrintMaster

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    IIIPPPAAALLLAAAVVVRRRAAASSSIIINNNIIICCCIIIAAAIIISSS.........

    Meus sonhos so as minhas esperanas. Ossonhos so a imagem visvel das esperanas. Elesno correspondem a nada que exista. No tm,portanto, existncia no mundo da cincia. Mas ossonhos que nos separam dos animais. Nossoscorpos fazem amor com o que no existe, ficamgrvidos e parem.

    Rubem Alves (1999, p. 10)

    1.1 FUNDAMENTAO TERICA DO PROBLEMA 02

    1.2 JUSTIFICATIVA DA INVESTIGAO 08

    1.3 OBJETIVOS DO ESTUDO 19

    1.4 REFLEXES METODLOGIAS DA INVESTIGAO 21

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    1. 1 PROBLEMA DE PESQUISA

    A modernidade deixou-nos como herana a ciso entre trabalho e lazer, ignorando que

    esses dois plos alm de outros, so indissociveis no desenvolvimento do ser humano.Apesar dos avanos da Ergonomia, a discusso acerca da relao entre trabalho e lazer ainda

    incipiente. DE MASI (2000), insatisfeito com este mundo voltado apenas aos interesses do

    trabalho, defende a necessidade da criao de um novo modelo social, fundamentado na

    simultaneidade entre trabalho, conhecimento, lazer, atravs do qual os indivduos possam ser

    educados com vistas a privilegiar a satisfao de necessidades significativas de sua existncia

    tais como a introspeo, a amizade, o amor, a ludicidade, a poesia, a convivncia, no se

    circunscrevendo unicamente ao universo do trabalho.

    Para o modelo social centrado na idolatria ao trabalho converge todo o processo de

    formao humana, j que as organizaes do trabalho invadiram inteiramente os domnios da

    vida do homem. A alegao da dignificao do homem pelo trabalho tornou-se muito

    vantajosa para o aumento da produo, porm insignificante para o desenvolvimento

    equilibrado, harmnico e integral do ser humano. Esse complexo sistema de produo em que

    se transformou a sociedade humana utiliza-se com propriedade de meios semiticos e virtuais

    para a dominao do homem e da natureza, tornando-os escravos de sua vontade.

    Inserida nesse processo, a escola empresta sua parcela de contribuio para amanuteno de tal modelo, excluindo outras possibilidades de desenvolvimento da criana que

    no a cognio, dado que a formao educacional que leva a termo d-se unicamente nessa

    perspectiva utilitarista, convertendo-se, assim, enquanto instituio em um dos principais

    mecanismos pelos quais a sociedade hegemnica garante o seu status quo. Desse modo, a

    PESQUISAR OS JOGOS TRADICIONAISINFANTIS PRATICADOS PELAS

    CRIANAS DO INTERIOR DA ILHA DESANTA CATARINA REVELOU-SE UM

    COMPLEXO EXERCCIO DE IR E VIR NAMEMRIA, VISITANDO

    RECORDAES DA INFNCIA.

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    escola vem impondo criana o mundo srio, das obrigaes e deveres, pondo fim ao seu

    tempo de alegria, de prazer, de espontaneidade, de viver ludicamente.

    Partindo da reflexo de MARCELINO e OLIVIER (1996, p. 120), para quem a

    Escola construda sobre os escombros dos sonhos mortos a Escola sem corpo, sem alma, semrosto, que devora corpos, devora almas, mata a alegria, ilegitima a utopia e impossibilita a

    criao, entendemos ser necessrio repensar os rumos dessa instituio neste novo sculo, se

    no quisermos, como registra MORIN (2000), sucumbir inrcia da fragmentao e da

    excessiva disciplinarizao que vem caracterizando as ltimas dcadas da mundializao

    neoliberal.

    Na perspectiva de responder multiplicidade de questes e desafios que se impem na

    modernidade, necessrio haver uma concepo ampliada de educao em toda a sua

    plenitude, que venha privilegiar todas as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento

    do educando. Uma educao - conforme o Relatrio para UNESCO da Comisso

    Internacional sobre Educao para o sculo XXI, organizado por DELORS (1999), intitulado

    Educao: um tesouro a descobrir - capaz de superar as principais tenses que, construdas

    no sculo XX, transformaram-se em cerne da problemtica do novo sculo. Entre elas, o

    Relatrio destaca: a tenso entre o global e o local, entre o universal e o singular, entre a

    tradio e a modernidade, entre solues a curto e a longo prazo, entre competitividade e

    igualdade, entre o extraordinrio desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de

    assimilao pelo homem e entre a tenso que envolve o espiritual e o material.

    Na tentativa de minimizar os efeitos de tais oposies, o organizador do Relatrio,

    entende que a educao tem que propiciar ao aluno condies para que se torne cidado do

    mundo, sem que perca suas razes, preservando suas tradies e sua cultura, apesar do

    processo progressivo de mundializao de uma cultura dominante; possibilitar a sua adaptao

    a este mundo moderno, encarando os desafios das novas tecnologias sem negar-se a si mesmo,

    buscando, assim, a construo de sua autonomia em dialtica com a liberdade e com aevoluo do outro; conciliar, ao longo de toda sua existncia, a competio, a cooperao e a

    solidariedade, priorizando o ensino do viver melhor.

    Nessa direo, destaca quatro alicerces bsicos fundamentais e essenciais para a

    construo de um novo paradigma na busca de valorizar a vida e as pessoas, uma nova

    concepo de educao ampliada que possibilite o desvelar do tesouro escondido em cada um

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    de ns, ultrapassando a viso puramente instrumental de educao: aprender a conhecer, que

    significa propiciar criana o domnio dos instrumentos do conhecimento; aprender a fazer,

    que possibilita ao aluno estar apto para enfrentar situaes diversas; aprender a viver juntos,

    que desenvolve a compreenso do outro e a percepo das interdependncias; aprender aser, para que desenvolva melhor a sua personalidade, possibilitando-lhe, assim, agir com

    maior capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade.

    MORIN (2000/a), aprofundando a discusso acerca de uma educao para o futuro,

    aponta sete saberes fundamentais que devem ser tratados pela sociedade e pela cultura, sem

    exclusividade ou rejeio, segundo suas prprias peculiaridades, que so: discutir as cegueiras

    do conhecimento, o erro e a iluso, introduzindo na educao o estudo das caractersticas

    cerebrais, mentais e culturais dos conhecimentos humanos; refletir acerca dos princpios do

    conhecimento pertinente, pois faz-se necessrio que se ensinem mtodos que permitam

    estabelecer as relaes mtuas e as influncias recprocas entre as partes e o todo em um

    mundo complexo; ensinar a condio humana, reconhecendo a unidade e a complexidade do

    homem, pois ele , a um s tempo, ser fsico, biolgico, psquico, cultural, social e histrico;

    ensinar a identidade terrena para entender o destino planetrio do gnero humano; enfrentar as

    incertezas, incluindo as que surgiram nas cincias fsicas, biolgicas e histricas; ensinar a

    compreenso, pois sua mutualidade entre os seres humanos ser vital para que as relaes

    humanas saiam de seu estado brbaro de incompreenso; preservar a tica do gnero humano,

    partindo do estabelecimento de uma relao de controle mtuo entre a sociedade e os

    indivduos de forma democrtica e partindo tambm da concepo da humanidade como

    comunidade planetria.

    Para o autor, muitas certezas comearam a ser desveladas pelas cincias, porm elas

    tambm oportunizaram a revelao de zonas de incertezas, que podero indicar os caminhos

    para a construo de uma educao comprometida com o futuro, que torne evidente o

    contextual, o global, o multidimensional e o complexo, transformando o processo educacionalem uma ao significativa e pertinente.

    Na esperana de vislumbrar uma educao que venha a garantir s novas geraes um

    mundo mais belo, fraterno e sustentvel, buscaremos, neste estudo, emprestar nossa parcela de

    contribuio, atravs da reflexo sobre o jogo tradicional infantil, pois, alm de percebermos

    essa atividade como uma das possibilidades de desenvolvimento na infncia, entendemos que

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    ela se estabelece a partir de recursos de que a criana naturalmente dispe para relacionar-se

    consigo mesma, com o outro, com mundo e o com absoluto. A sua interao com a realidade

    se processa atravs das relaes sociais, mais especificamente a partir daquilo que organiza o

    seu viver em sociedade em um dado momento histrico. Essa relao no se d de formaimediata e direta, mas de forma mediada, sendo a atividade ldica um dos mecanismos de

    apreenso dessa realidade, pois, atravs da relaes sociais nela surgidas, engendram-se

    diferentes significaes.

    Pesquisar os jogos tradicionais infantis junto a crianas do interior da Ilha de Santa

    Catarina revelou-se um complexo exerccio de ir e vir na memria, visitando recordaes de

    infncia. Essa viagem ao mundo das lembranas ldicas fez-nos ver que nossas brincadeiras

    de faz-de-conta, nos anos 60, relacionavam-se com nosso contexto histrico-social. Em tais

    brincadeiras, as influncias mais marcantes advieram de filmes assistidos na televiso, ainda

    que raros, dada a escassez de aparelhos televisores naquela poca. Assim, a inspirao vinha,

    de fato, de histrias dos gibis, em especial as de faroeste americano, tendo como principais

    personagens Zorro, Gunsmoke, Cheyenne, nos quais basevamos nossa atuao, assumindo

    o papel de mocinhos ou bandidos.

    Atualmente, ao observarmos nossos filhos brincando com seus pares, percebemos que

    repetem a representao desses papis, mas o fazem inspirados precipuamente pela televiso,

    protagonizando a vivncia de personagens extrados principalmente de desenhos animados.

    Hoje, os desenhos que tm influenciado significativamente as crianas so algumas sries

    criadas por estdios japoneses. Destacamos, em especial, os desenhos animados denominados

    Comandos em Ao, Pokemone Digimon, que oferecem uma gama de personagens irreais e

    fictcios, apresentando diversos recursos para a ao dos personagens. Esses desenhos

    animados, entre outros, vm criando um humanismo especfico, mexendo com as pulses

    infantis, pois estabelecem um processo dinmico, orientando a criana em direo a uma meta,

    na busca de suas satisfaes ldicas, enraizando-as pelo prprio desejo, como forma debrincar. Esses personagens habitam mundos esboados como reais e freqentemente se detm

    sobre as dimenses prosaicas e cotidianas da existncia ou apresentam reaes psicolgicas

    contextualizadas e compreensveis, tornando-se, assim, espcies de objetos da vida ao se

    deixarem invadir pela matria comum de que a vida feita.

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    Hoje, podemos pensar nas formas e nos objetos criados na esfera da indstria do

    imaginrio contemporneo, a indstria da cultura com suas preposies de massa, e podemos

    conhecer algo de nossa alma neste mundo de representao repetitivas e no efeito particular

    dessas novas formas sobre nossas crianas. Refletir sobre os desenhos anteriormentemencionados um bom exemplo disso, afinal so muitas propostas comerciais influenciando o

    brincar infantil, sem referir os recursos tecnolgicos que oferecem criana, via video gamee

    computador, jogos cada vez mais sofisticados - os mais atrativos esto relacionados a

    combates e a lutas. Inspiradas neles e utilizando personagens fabricados pelas indstrias de

    entretenimento, as crianas protagonizam papis de heris e viles, de mocinhos e bandidos,

    mostrando-se ora defensoras do bem, ora defensoras do mal.

    Apesar desse quadro, bem como a despeito de alguns jogos tradicionais de nossa

    gerao terem sofrido um processo de apropriao pelas indstrias de entretenimento, assim

    como outros terem se perdido tempo afora ou terem sofrido transformaes promovidas pelo

    desenvolvimento social e tecnolgico, ainda encontramos alguns brinquedos de outrora

    revelando-se inclumes ao tempo, ao espao e ao progresso. H, ainda hoje, crianas

    brincando, por exemplo, de pega-pega, de amarelinha, de bolinha de gude, de taco, de pipa,

    entre outras brincadeiras, as quais no sofreram alteraes no contedo de sua ao, ainda que

    tenham surgido e hoje se manifestem em diferentes pocas histricas, em contextos

    geogrficos, sociais e econmicos distintos. Assim, apesar da variedade temtica e do avano

    tecnolgico, as brincadeiras mantm o mesmo contedo como princpio bsico,

    fundamentando-se na atividade do homem e nas relaes sociais. Observamos que, apesar do

    grande nmero de jogos virtuais, a criana ainda prefere os jogos reais, nos quais lhe so

    exigidas possibilidades corporais.

    Desse modo, nossa opo em pesquisar os jogos tradicionais infantis surgiu na

    perspectiva de comprovarmos essas atividades como significativas e fundamentais para o

    desenvolvimento da criana, devendo ser, em conseqncia, apreciadas pela educao formal.No jogar, o tema da ao ldica infantil o campo da realidade reconstituda pela criana,

    refletindo suas condies concretas, e o seu contedo o aspecto caracterstico central,

    elaborado por ela a partir da atividade dos adultos e das relaes que se estabelecem em sua

    vida social.

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    A violncia em relao s aspiraes ldicas da infncia talvez venha transformar as

    crianas em adultos sem o desenvolvimento de uma sensibilidade que lhes permita vislumbrar

    outras dimenses de humanidade. No podemos concordar com essa educao que, voltada

    aos interesses da sociedade produtiva, prioriza apenas os aspectos cognitivos no processo deensino-aprendizagem em detrimento da corporeidade, da emoo, da cidadania e da felicidade.

    Esse universo produtivo transformou-nos em mestres de repasse dos valores do mundo

    competitivo aos nossos filho, exigindo deles uma determinao irracional s atividades

    acadmicas para que estejam cada vez mais aptos a disputarem oportunidades futuras no

    mercado de trabalho. Substitumos seu raro tempo livre (como se houvesse tempo livre de

    presso) forando-os a estudar informtica, a dominar a lngua globalizada que o ingls e a

    praticar esportes, no como uma experincia de prazer e de ludicidade, mas enquanto uma

    possibilidade de preparao orgnica, numa concepo de sade atrelada aos interesses de

    homem produtivo.

    Essa anlise simplista diz respeito ao contexto em que estamos inseridos, que a classe

    mdia. Se nos reportamos grande maioria da populao, pobres, miserveis e excludos, o

    quadro que se apresenta irreal e de terror. Nessa condio indigna de humanidade, as

    crianas brasileiras pouco brincam, restando-lhe apenas a luta pela sobrevivncia, tornando-se

    escravas do trabalho, do trfico de drogas, da prostituio e da marginalidade. Essas

    constataes, registradas diariamente no Brasil, levam-nos a refletir sobre que sociedade, que

    educao e que tipo de homem queremos construir.

    Assim, ao analisarmos os valores intrnsecos aos jogos tradicionais das criana do

    interior da Ilha de Santa Catarina, refletindo sobre suas possibilidade em relao ao

    desenvolvimento infantil a fim de compreend-las, ousamos sugerir que tais jogos sejam parte

    do processo educativo, na perspectiva que essa sua incluso na escola venha a minimizar os

    efeitos da excessiva dominao e docilizao do corpo da criana, em nome do

    desenvolvimento intelectual. Ao inserir o jogo no processo de ensino-aprendizagem, estamosparalelamente incluindo nele o corpo da criana. Esse processo poder propiciar o

    desenvolvimento de vrias dimenses infantis, pois, no brincar, o viver da criana, o seu

    existir, mais significativo, revelando a sua complexidade, a sua criatividade, a sua

    imaginao e a sua humanidade, o que combate a viso fragmentada, pragmtica e utilitria da

    sociedade produtiva que impede esse ser brincante de sonhar, fantasiar e viver feliz.

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    1. 2 JUSTIFICATIVA DA INVESTIGAO

    Desde que os meus filhos, Fernanda Regina e Lucas Roberto, ingressaram na Educao

    Infantil, vrios so seus questionamentos e indagaes a respeito da escola. Reclamam da

    autoridade, da seriedade, da formao e, principalmente, da negao de suas aspiraes

    ldicas, criativas e prazerosas. Gostariam de saber por que no lhes permitido jogar, cantar,

    brincar, sorrir, sonhar. A tortura deles fez-me repensar a escola repressora, excluidora e

    uniformizadora. Essa situao de meus filhos e de grande parte das crianas nas instituies de

    ensino formal fica claramente reveladas nas palavras de ALVES (2000, p. 16): basta

    contemplar os olhos amedrontados das crianas e os seus rostos cheios de ansiedade paracompreender que a escola lhes traz sofrimento.

    O interesse por investigar a ludicidade infantil surgiu inicialmente em 1990, por

    ocasio de pesquisas desenvolvidas para o Curso de Especializao em Educao Fsica

    Escolar do Centro de Educao Fsica da Universidade para o Desenvolvimento de Santa

    Catarina (CEFID/UDESC), ocasio em que investiguei as possibilidades da atividade ldica

    no processo de alfabetizao infantil.

    Foi, porm, a partir das reclamaes de meus filhos que a preocupao com este tema

    ganhou fora sob outra tica, em cuja direo busquei sugerir alguns jogos pedaggicos para

    as aulas de Educao Fsica do Ensino Fundamental no Curso de Mestrado em Educao da

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). A nossa perspectiva, no

    Curso de Doutorado em Engenharia de Produo do Centro Tecnolgico da Universidade

    Federal de Santa Catarina (EPS/CTC/UFSC), a de realizar uma anlise dos jogos

    tradicionais das crianas da Ilha de Santa Catarina, buscando compreender suas possibilidades

    NECESS RIO REPORTARMO-NOSS POSSIBILIDADES UNIVERSAIS DO

    CORPO; NO PODEMOS VISLUMBR-LOISOLADAMENTE, MAS, SIM, BUSCAR

    SUA REVERSIBILIDADE, SEUSPARADOXOS, SEU ENIGMA, SUA POESIAE SUA LUDICIDADE, POSSIBILIDADES

    TO DESPREZADAS PELA RAZO.

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    de desenvolvimento e sua possvel incluso enquanto contedo nas instituies formais de

    Ensino Fundamental, acreditando que tais jogos possam ser importantes no desenvolvimento

    infantil, principalmente a partir das mltiplas possibilidades de formao humana (lazer,

    criatividade, expresso, imaginao, comunicao, etc.) a eles inerentes, minimizando osefeitos de uma educao formal pragmtica, voltada apenas aos interesses do mundo

    produtivo.

    Estudar a ludicidade infantil, num curso de doutoramento em Engenharia de Produo,

    , no mnimo, uma proposta ousada, pois entendemos que a dicotomia entre trabalho e jogo,

    entre produtividade e ludicidade, pouco tem sido contemplada pelos ergonomistas. Chamamos

    ousada porque entendemos que mudanas nos valores pragmticos estabelecidos pelo modo

    de produo, no ser humano, s podero ocorrer medida que oportunizarmos s crianas uma

    formao mais ampla, despertando-as para outras possibilidades de desenvolvimento humano

    e no apenas para os interesses de uma sociedade capitalista globalizada. Alm de tudo, esta

    tentativa configura-se como real possibilidade de diminuio do processo de dominao do

    corpo infantil, pois o que est em jogo para este tipo de sociedade, principalmente com esta

    exploso de recursos tecnolgicos, o desenvolvimento dos aspectos cognitivos da criana,

    preparando-a para o mundo produtivo.

    E o corpo, que lugar ocupa nessa relao? Ora, parece ser simplesmente um meio de

    transporte para a crebro. FREIRE (1989) foi muito feliz ao afirmar que, ao ingressar na

    escola, o corpo da criana tambm deveria ser matriculado. Partindo dessas indagaes,

    comeamos a trilhar este estudo, na perspectiva de vislumbrar as atividades ldicas infantis

    (jogos tradicionais), enquanto possibilidades de desenvolvimento da criana na educao

    contempornea, buscando, alm de analisar qualidades desenvolvidas por tais jogos,

    minimizar os efeitos da excessiva disciplinarizao corporal da criana, educando-a para ser

    mais feliz.

    O grande problema da escola excluidora e dominadora o descaso com anseiosinfantis, desprezando os sonhos da criana, seus jogos, suas alegrias. A criana, nos primeiros

    dias letivos, chega repleta de emoo, de esperana, de alegria. Com o passar dos dias, s

    encontra prazer nas aulas de Educao Fsica, no recreio - nas brincadeiras e na merenda, mas

    a alegria infantil se revela principalmente por ocasio do sinal de encerramento do perodo de

    aula, que lhe soa como um aviso de liberdade. A escola despreza o potencial criativo e

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    imaginativo da criana, suas aspiraes em aprender de forma significativa e concreta, seu

    viver ludicamente em interao com o universo.

    O processo de ensino-aprendizagem nessa escola impregnada pelos interesses

    produtivos se d via cognio; fracionamos o aprendizado em disciplinas pouco significativasao invs de termos um currculo integrado, buscando educar a criana de modo a considerar

    toda a sua complexidade. A escola, em geral, nega possibilidades de desenvolvimento infantil

    que no estejam associadas cognio. As experincias vivenciadas pela criana no seu

    cotidiano, alm dos muros escolares, principalmente as ldicas (jogos e brincadeiras), so

    praticamente desprezadas pela instituio escolar. Essa excluso ficou bastante evidenciada

    em recente pesquisa que realizamos no Curso de Mestrado em Educao na Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Os motivos dessa excluso e do desrespeito cultura ldica infantil tm

    fundamentao diversa, porm a razo mais expressiva reside na justificativa de que os jogos e

    as brincadeiras da cultura ldica infantil no apresentam seriedade propedutica nem valores

    pedaggicos importantes para o desenvolvimento educativo da criana. A escola ainda no

    percebeu que a seriedade da criana na atividade ldica vem das suas conquistas no jogo,

    proclamando atravs delas seu poder e autonomia. A preocupao dessa instituio restringe-

    se a uma educao voltada aos interesses do mundo produtivo. Trabalho coisa sria,

    brincar apenas diverso, alegria, prazer. Toda essa argumentao superada se nos

    detivermos alguns minutos observando uma criana brincando: o nvel de concentrao e

    seriedade presentes na sua ao ldica demostra todo o seu fascnio em relao ao ldico e a

    importncia dessa atividade para o seu desenvolvimento.

    Objetivando uma diminuio na ruptura existente entre a criana e seu corpo, no

    interior da escola, importa percebermos que essa criana est atada ao mundo exatamente

    atravs de seu corpo, e que o universo infantil polimorfo, complexo, incerto,

    desafiador, ldico. Assim, educar a criana apenas para o trabalho negar todas as suaspossibilidades, a sua reversibilidade, os seus paradoxos, os seus enigmas. Concordando com

    CAPRA (1996), temos que partir da compreenso de que corpo e Terra esto ecologicamente

    interligados, so sistemas vivos que se auto-organizam, vivendo num processo dinmico de

    transformao, refazendo-se constantemente de diversas maneiras. necessrio, ento, que a

    sociedade compreenda as possibilidades de transcorporeidade humana, pois o corpo interage

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    com o ambiente, com a sociedade e com o universo, ele natureza e cultura, visvel e

    invisvel, presena e ausncia, imanncia e transcendncia.

    necessrio reportarmo-nos s possibilidades universais do corpo, no podemos

    vislumbr-lo isoladamente, como sujeito ou objeto, mas, sim, buscar nele sua reversibilidade,seus paradoxos, seu enigma, sua poesia, sua ludicidade e outras possibilidades to desprezadas

    pela razo. Assim, devemos, na concepo de MORIN (2000/a), abandonar, no novo sculo, a

    imagem unilateral que define o homem pela racionalidade, pela tcnica, pelas atividades

    utilitrias e pelas atividades obrigatrias. O homem altamente complexo, um ser

    antagonicamente bipolarizado, ele sbio e louco (sapiens e demens), trabalhador e ldico

    (faber e ludens), emprico e imaginrio (empiricus e imaginarius), econmico e consumista

    (economicus e consumans) e, tambm, prosaico e potico (prosaicus e poeticus).

    Concordando com esse autor, entendemos que o ser humano no pode viver

    exclusivamente de racionalidade e de tcnica, ele vai alm, pois se desgasta, entrega-se,

    dana, brinca, joga. Ele mtico, mgico, sonhador, cr nas virtudes do sacrifcio, prepara

    sua outra vida alm da morte. Em todos os momentos, a atividade tcnica, prtica, intelectual

    testemunha a inteligncia emprico-racional; por todos os cantos, festas, cerimnias, cultos,

    com suas possesses, exaltaes, desperdcios e consumismos, testemunham o Homem

    ldico, potico, sonhador e demente.

    Ao transformarmos o problema social da excluso dos jogos tradicionais infantis do

    processo de educao formal em um problema de investigao, elaboramos um referencial

    terico-prtico sobre o jogo infantil, que venha a demonstrar as possibilidades concretas e

    significativas de desenvolvimento infantil. Norteados por essa expectativa, ousamos transpor

    os limites do mtodo, guia da pesquisa, nutrindo-nos, durante o processo de construo, de

    valores atrelados sensibilidade, inspirao e intuio. O estudo pretende contribuir com

    as reas que investigam o fenmeno ldico no desenvolvimento infantil, acenando para uma

    continuidade desse foco de anlise, via realizao de projetos de pesquisa junto s instituiesde ensino fundamental.

    Considerando a complexidade infantil, a nossa investigao foi sendo construda

    principalmente a partir da observao dos jogos tradicionais praticados pelas crianas do

    interior da Ilha de Santa Catarina. As categorias foram surgindo, transformando-se em pilares

    bsicos de sustentao, os quais, interconectados, possibilitaram-nos compreender o fenmeno

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    jogo enquanto atividade de desenvolvimento da criana. Na construo desses pilares,

    principalmente a partir das falas infantis e das falas das educadoras entrevistadas a respeito da

    importncia do ldico no desenvolvimento infantil, recorremos s diversas produes de

    relevncia terica ligadas a categorias respectivas, constituindo os seguintes captulos: Ocorpo dominado; O corpo complexo; O corpo ldico; O corpo em ao. Os pilares tericos

    possibilitaram-nos apresentar e analisar a importncia dos jogos tradicionais infantis no

    desenvolvimento da criana, refletindo sobre isso e sobre as possibilidades de insero de tais

    jogos no interior da instituio educativa, o que se encontra detalhado no captulo denominado

    O corpo brincante.

    A inquietao a respeito do roubo da coisa mais sagrada e digna da experincia do

    viver durante a infncia, que o brincar, roubo comprovado nas falas das crianas, levou-

    nos a intensificar o olhar para entender o processo de dominao corporal. Inicialmente,

    ento, refletimos sobre o processo de dominao do corpo do homem pela sociedade moderna,

    abordando os aspectos terico/histricos dessa apropriao pelas instituies sociais e os

    reflexos que esse processo teve na escola, principalmente atravs do mecanismo de

    disciplinamento, fruto das relaes de poder-saber, mveis, multidirecionais que organizam e

    sustentam a continuidade de uma prtica dominadora, coercitiva e limitadora.

    Opondo-se a esse processo de dominao, iremos refletir sobre o corpo e sobre sua

    complexidade, compartilhando a idia de que somos seres auto-organizados, a partir da

    interao com o outro e com o meio, uma relao recproca e inseparvel, pois homem e

    sociedade so unidades complexas e multidimensionais, caractersticas que devem nortear

    todo o processo educativo do ser humano. A construo desse pilar foi permeada pelas falas

    das professoras das sries iniciais que foram entrevistadas. Mesmo que algumas tenham

    respondido aliceradas no senso comum, a grande maioria demonstrou uma preocupao em

    se educar para outras possibilidades humanas, passando a compreender o jogo e o brincar

    infantil como um recurso curricular significativo.Por acreditarmos que o caminho para o processo educativo infantil deve considerar a

    riqueza da cultura ldica da criana, aprofundamos discusso acerca do jogo infantil,

    enfatizando a sua contextualizao histrica e registrando uma discusso a respeito da

    construo das teorias sobre tais jogos e sobre as classificaes nas quais eles so distribudos.

    Avanando nessa discusso, procuramos entender o desenvolvimento dos aspectos cognitivo,

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    motor e socioafetivo relacionados ao jogo infantil, entendendo a indissociabilidade entre esses

    aspectos. Assim, na busca por identificar o papel do jogo no desenvolvimento infantil, foi

    fundamental compreender, com relao ao corpo da criana, os seus processos de dominao,

    as suas possibilidades complexas, a sua caracterstica ldica, o significado de suas aes e,principalmente, o seu estado de ser brincante.

    No primeiro pilar: O corpo dominado (captulo II), a partir do discurso infantil,

    extramos a categoria dominao corporal, fundamentada no processo de excluso dos jogos

    infantis e nos objetivos educativos da escola, que priorizam unicamente o desenvolvimento

    cognitivo da criana. Essa reflexo acerca do processo de disciplinamento do corpo infantil

    tem sua origem na dominao do adulto, promovida em nome do sistema produtivo da

    sociedade moderna. Para melhor compreenso da insero das estratgia disciplinares da

    sociedade produtiva no interior da escola, centramos o nosso estudo principalmente nos

    escritos de Michel Foucault, o principal terico da contracultura, que nos permitiu explorar

    outras facetas ocultadas at ento por pretensas evidncias, possibilitando-nos uma maior

    clareza a respeito de possveis rupturas no mbito da problemtica investigada.

    Destacamos, em especial, quatro obras desse autor: a primeira Histria da loucura

    na Idade Clssica (1995), a qual demonstra que o grande internamento de loucos, mendigos,

    errantes, entre outros, foi exigido por razes diferentes das de cura, pois havia necessidade de

    dominao daquela populao ociosa e eminente; a segunda obra, denominada Vigiar e

    punir: a histria da violncia nas prises (!987), discute as tcnicas de produo e controle

    introduzidas na organizao social, denominadas disciplinas; a terceira obra Microfsica

    do poder (1996), e esclarece toda a relao do poder concebido como uma vasta rede que

    organiza e controla toda sociedade; a ltima obra em destaque A arqueologia do saber

    (1998), que discute o processo de construo da subjetividade humana.

    Escolhemos Foucault como referencial terico central no que tange dominao, por

    concordar com BATTISTI DE SOUZA (1998), o qual afirma que, por trs desse nome, existeum autor que vai alm das evidncias, e para alm, at, da condio de autoria. Ele fornece

    no apenas princpios tericos, mais que isso, impele-nos a procurar entender como

    determinadas verdades foram construdas em sua materialidade e que mecanismos nos levam

    a aceit-las ou a refut-las. Transcendendo s idias, Foucault realizou uma anlise

    interpretativa, trazendo superfcie as coisas esquecidas, as mincias escondidas, interditas,

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    que nos fornecem chaves para a busca da compreenso de problemas e para o traado de

    possibilidades de enfrentamento desses mesmos problemas, para os quais, at ento, tnhamos

    formas de percepo e possibilidades de resoluo distintas das que temos hoje. Foucault

    revela-se um profundo analista do poder, questo pertinente para que entendamos o processode apropriao e dominao sob todas as formas do homem pela sociedade moderna.

    Assim, ao refletir sobre o processo de dominao do corpo do homem, principalmente

    a partir do nascimento da modernidade (que exerceu uma fortssima influncia no interior da

    escola) temos que compreender que essa dominao est inserida num contexto sociopoltico

    e econmico especfico e, portanto, precisamos tambm nos preocupar com o percurso

    histrico das organizaes do trabalho, com os mecanismos de produo da verdade e com as

    relaes de poder-saber, micropoliticamente organizadas, que nem sempre se revelam

    nitidamente na modernidade.

    Ao contribuir para desvendar alguns aspectos da dominao corporal promovida pelo

    modo de produo e a sua conexo com outros segmentos da estruturao social, observamos

    a existncia de uma micropoltica que sustenta a ruptura entre o corpo e a mente do sujeito. As

    estratgias disciplinares buscam aniquilar as aspiraes ldicas do educando, principalmente

    por no serem reconhecidas enquanto atividades propeduticas. Tal procedimento, alm de

    priorizar apenas a dimenso de seu desenvolvimento intelectual, exclui o corpo do processo de

    ensino-aprendizagem. Essa proposta de dualidade entre mente e corpo indica o quanto a escola

    despreza uma formao ampliada, que venha a contemplar todas as possibilidades da criana.

    Ao negar-lhe os seus jogos infantis, a instituio escolar rouba da criana a sua atividade

    existencial mais sagrada e significativa: o brinquedo.

    No segundo pilar: O corpo complexo (captulo III), a nossa pretenso foi entender

    outras possibilidades de desenvolvimento infantil, alm dessa priorizada pela escola, que se

    restringe ao desenvolvimento cognitivo da criana. No podemos subjugar a criana apenas

    aos interesses do mundo produtivo, temos de compreender a complexidade humana e, com essapretenso, recorremos a entrevistas com trezentas educadoras, tendo como tema central a viso

    delas sobre a importncia do jogo no desenvolvimento infantil e sobre suas possibilidades na

    educao formal. Recorremos, tambm, aos estudos de Edgar Morin, para entendermos melhor o

    paradigma da complexidade.

    No caminho de considerarmos as possibilidades humanas da criana, devemos sobretudo

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    respeitar seus interesses, considerando principalmente seu rico repertrio ldico-cultural quando

    chega escola. No brincar, no jogar, podemos observar elementos de explorao de criatividade,

    de expresso e prazer. A criana fantasia, sonha, aceita desafios e constri suas possibilidades de

    desenvolvimento. Cabe escola considerar a diversidade cultural existente, todas asperspectivas de vida e variedade de idias, buscando trabalhar mais com o significado do que

    com o contedo, mais com a pluralidade e com a intersubjetividade do que com a igualdade,

    mais com o movimento do que com a passividade.

    No terceiro pilar: O corpo ldico (captulo IV), ao investigarmos o jogo infantil,

    procuramos compreender que o ser humano no pode se conhecer e nem ser conhecido

    afrontando, subestimando, subjugando ou desprezando seu corpo. O processo de

    desenvolvimento humano se inscreve no corpo. Nele est nossa possibilidade de libertao dos

    domnio produtivistas, nossa possibilidade de vislumbrar outras dimenses humanas, de

    entender a complexidade do ser humano.

    O corpo expressa uma linguagem magnfica de comunicao, sendo interna e

    externamente o primeiro e principal ponto de referncia e de dilogo com o mundo. Revela

    uma personalidade. Nele esto inscritas uma cultura e uma sociedade. O corpo no pode ser

    concebido como uma simples mquina a servio do esprito. Todas essas qualidades,

    habilidades e possibilidades transparecem na ao ldica da criana. Atravs de jogos e de

    brincadeiras, ela exercita vrias dimenses de desenvolvimento humano, tais como a

    criatividade, a liberdade, a alegria, o prazer, o bem-estar e as suas emoes.

    Assim, priorizamos, nesse captulo, uma discusso sobre os jogos e as brincadeiras

    infantis, na perspectiva de vislumbr-los enquanto possibilidades de rompimento com o

    processo de descorporalizao da criana na escola, como um recurso fundamental de

    desenvolvimento infantil e como contedo de formao para o lazer. Nessa ltima

    perspectiva, buscaremos entender os jogos e as brincadeiras enquanto atividades

    indispensveis numa instituio de formao ampla, no apenas para o mundo doconhecimento, mas tambm para outras possibilidades humanas. As atividades ldicas,

    indissociveis da vida infantil, podero constituir-se, pelos seus valores intrnsecos, em

    excelente recursos educacionais para um formao mais humanizada da criana.

    Nesse processo, fez-se necessrio, ento, traar um paralelo entre as diversas

    abordagens tericas acerca da ludicidade infantil, destacando, neste estudo, como subsdios

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    para a anlise dos jogos e brincadeiras tradicionais infantis, trs campos de estudos distintos: o

    sociocultural, o filosfico e o psicolgico. Abordamos esses paradigmas do brincar infantil na

    perspectiva de uma compreenso crtica e contextualizada dessa atividade to presente na vida

    da criana. Assim, buscamos a construo de um referencial terico acerca do jogo e dobrincar, que aborde sua trajetria histrica, suas teorias e classificaes e implicaes sociais

    visveis durante o desenvolvimento da sociedade humana.

    Caminhamos, na tentativa de superar o princpio do jogo enquanto atividade

    caracterizada pelo excesso de energia, pelo descanso, pelo exerccio preparatrio ou pelo

    prazer funcional, compreendendo, principalmente, que a originalidade do processo ldico

    infantil fundamenta-se nas peculiaridades das relaes mtuas do indivduo com o meio, sobre

    cuja base esse mesmo indivduo se constri como sujeito histrico. Nessa perspectiva, ao

    permitir que a criana manifeste aspectos de sua originalidade e criatividade, que surgem na

    ao do brincar, seus desejos e sentimentos sero percebidos pelo corpo atravs de seus

    movimentos e dos gestos que acusam a necessidade de decifrar a situao em que ela vive;

    acreditamos que, com isso, se processe uma diminuio da padronizao corporal infantil

    adotada pela escola.

    No quarto pilar: O corpo em ao (captulo V), para uma melhor compreenso do

    jogo no desenvolvimento, buscamos, antes da apresentao das qualidades cognitivas, motoras

    e socioafetivas que surgiram da ao ldica infantil nos jogos tradicionais, refletir sobre a

    importncia do jogo no desenvolvimento cognitivo, socioafetivo e motor da criana. No

    pretendemos, com isso, explicar a criana apenas pelas suas caractersticas biolgicas,

    desvinculada de seu processo histrico-cultural, pois entendemos que sensao, percepo,

    sentimento, pensamento e ao fazem parte do seu contexto sociocultural. Concebemos o jogo

    como uma atividade de contato social, um recurso que a criana utiliza na construo de sua

    humanidade, assimilando, atravs da interao social com outros seres humanos, criaes

    materiais e espirituais.A partir desses quatros pilares bsicos, apresentamos, no captulo VI, denominado O

    corpo brincante, os jogos tradicionais investigados, praticados pelas crianas da Ilha de Santa

    Catarina, que so a essncia principal deste estudo, buscando apontar suas possveis

    contribuies para o desenvolvimento infantil enquanto recursos para o Ensino Fundamental,

    na perspectiva de que a escola transcenda os limites de sua formao atual, pois, apesar de

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    manter um discurso impregnado de modismos filosficos e metodolgicos, a instituio

    escolar no tem concretizado substancialmente as premissas bsicas desse mesmo discurso.

    Concordando com ALVES (2000), temos de nos convencer de que na criana mora um saber

    que precisa ser recuperado, a fim de sermos curados de nossa infelicidade.O jogos tradicionais apresentados, praticados por crianas entre 6 a 11 anos, foram

    coletados em algumas comunidades com descendncia aoriana da Ilha de Santa catarina. As

    comunidades visitadas, durante os seis meses de trabalho de campo, foram Campeche,

    Costeira do Pirajuba, Ingleses, Pntano do Sul, Ribeiro da Ilha, Rio Vermelho, Ratones,

    Sambaqui e Vargem Pequena. Na anlise do contedo do material coletado por ocasio das

    visitas, apresentamos as qualidades cognitivas, motoras e socioafetivas potencializadas pelos

    jogos tradicionais, na perspectiva de fornecer subsdios reflexivos acerca da importncia

    dessas atividades no desenvolvimento infantil.

    Nossa perspectiva a de indicar a incluso dos jogos infantis tradicionais no Ensino

    Fundamental, no como uma estratgia pedaggica ou um meio didtico facilitador do

    processo de ensino-aprendizagem, mas, sim, como uma atividade educativa em si mesma, cujo

    potencial surge da vivncia livre e autnoma. Com a incluso dos jogos na escola, a criana

    poder manter acesa a chama da conscincia, da valorizao e do respeito sua cultura. O

    jogo o seu espao de existir, a possibilidade de criao e recriao da cultura, de vivenciar

    seus valores e costumes, seus diferentes papis e as situaes externas a ele. Assim, ao

    investigarmos as qualidades cognitivas, motoras e socioafetivas que surgem no jogo

    tradicional, queremos argumentar em favor do jogo como contedo no processo de ensino-

    aprendizagem da criana, pois tais qualidades so fundamentais para o desenvolvimento

    infantil.

    Ao contribuirmos para desvendar alguns aspectos da dominao do corpo do homem

    pelo modo de produo e a conexo desse processo com outros segmentos da estruturao

    social, demonstrando que h uma micropoltica que sustenta toda essa ao, acreditamos estardefendendo a concepo de que os jogos e as brincadeiras infantis, numa escola que venha a

    perceber todas as possibilidades de desenvolvimento infantil, podero se constituir em

    elementos de diminuio da ruptura entre a mente e o corpo infantil. urgente uma educao

    que se preocupe com outras possibilidades humanas, e no apenas com a formao cognitiva,

    para o trabalho e, nessa direo, temos que refutar e superar o grande paradigma do Ocidente,

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    responsvel pela diviso entre sujeito e objeto, entre trabalho e lazer, entre corpo e alma.

    Nesse embate com os paradoxos do desenvolvimento tecnoeconmico, devemos caminhar na

    direo de uma educao global, holstica, que perceba a parte e o todo, o texto e o contexto.

    Evidencia-se, assim, aps essas consideraes, a necessidade de que a escola, emespecial a Educao Fsica, aproxime-se, tambm, da cultura popular, resgatando os jogos e

    as brincadeiras da cultura ldica infantil, buscando a insero dessas atividades, na perspectiva

    de vislumbr-las como contedos que podero subsidiar uma reformulao de proposta

    pedaggica, buscando, dessa forma, um desenvolvimento mais concreto e significativo da

    criana. O brincar, o jogar, alm de conferirem prazer, podem propiciar criana um

    desenvolvimento amplo, consciente e significativo.

    Para MORIN (2000/a, p. 59), fundamental perceber que as atividades de jogo, de

    festas, de ritos, no so apenas pausas antes de retornar vida prtica ou ao trabalho; as

    crenas nos deuses e nas idias no podem ser reduzidas a iluses ou supersties: possuem

    razes que mergulham nas profundezas antropolgicas; referem-se ao ser humano em sua

    natureza. O autor entende que h uma relao manifesta ou subterrnea entre psiquismo,

    afetividade, magia, mito, religio, e que, apesar de toda nfase centrada no desenvolvimento

    racional-emprico-tcnico, isso jamais anular o conhecimento simblico, mtico, mgico ou

    potico da criana.

    No advogamos a substituio do papel da escola, no sentido de assumir a difuso da

    cultura popular em detrimento da cultura formal, posicionamo-nos em favor da conciliao

    desses dois plos essenciais emancipao do ser humano, como um ser histrico que busca,

    a partir de suas razes, transformar o mundo e, ao mesmo tempo, preservar sua identidade.

    A preocupao de educar para o desenvolvimento de outras potencialidades do

    comportamento humano significa buscar alternativa pedaggica que supere ou minimize a

    produo de movimentos robotizados e descontextualizados, na perspectiva de entender a ao

    da criana de forma integral, pois, a cada gesto, a cada jogo, a histria e a cultura infantis soconsolidadas. Assim, acreditamos numa educao que tenha como uma das vocaes para o

    futuro, a exemplo do que registra MORIN (idem), a compreenso do destino multifacetado do

    homem, pois toda a complexidade da espcie humana, o seu destino, o destino individual, o

    destino social, o destino histrico, esto entrelaados e so totalmente inseparveis.

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    3 OBJETIVOS DO ESTUDO

    Os objetivos deste estudo so caracterizados por uma dimenso dinmica e contnua,

    no sendo retricos, pois buscam revelar o jogo tradicional infantil enquanto uma real

    possibilidade de desenvolvimento da criana em todas as suas dimenses. Nessa perspectiva,

    formulamos as seguintes questes norteadoras que subsidiaram este estudo acerca do brincar

    infantil: qual a importncia do jogo tradicional no desenvolvimento infantil? Que jogos so

    praticados pelas crianas alm do espao escolar? Quais os motivos de sua excluso? Quais as

    suas possibilidades curriculares? Qual o seu papel no desenvolvimento da corporeidade

    infantil? A partir de tais indagaes, os objetivos desta pesquisa foram centrados em:

    - investigar os jogos e brincadeiras tradicionais da criana do interior da Ilha de

    Santa Catarina, na perspectiva de buscar elementos relativos ao significado dessas

    atividades culturais no seu processo de desenvolvimento;

    - observar, coletar e analisar os jogos tradicionais mais praticados pelas crianas do

    interior da Ilha de Santa Catarina, na perspectiva de fornecer subsdios tericos

    reflexivos acerca da importncia deles no processo formativo infantil;

    - refletir sobre a possibilidade de diminuio da ruptura entre a criana e o seu corpo,ao resgatar o jogo no interior da escola;

    - preservar o jogo enquanto atividade da cultura ldica de crianas do interior da Ilha

    de Santa Catarina;

    OS OBJETIVOS DESTA PESQUISAFORAM CONSTRUDOS A PARTIR DO

    PRINCPIO DE QUE OS JOGOSTRADICIONAIS PODEM SE

    CONSTITUIR EM RECURSOS PARA ODESENVOLVIMENTO INFANTIL.

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    - vislumbrar as possibilidades de desenvolvimento humano presentes em atividades

    correspondentes ao jogo, refletindo sobre sua contribuio para uma formao mais

    ampla da criana;

    - fornecer subsdios tericos para educar numa perspectiva transformadora,concebendo a criana, no como um futuro trabalhador, mas como ser humano

    aberto s diversas possibilidades de desenvolvimento;

    - sugerir a incluso dos jogos tradicionais no Ensino Fundamental, deslocando-os do

    mbito de recurso pedaggico no processo de ensino-aprendizagem para uma

    concepo de contedo voltado aos anseios, aos interesses e aos sonhos infantis.

    Os objetivos desta pesquisa foram construdos a partir do princpio de que os jogos e as

    brincadeiras da cultura infantil, como a amarelinha, o jogo do taco, do pio e da perna-de-pau,

    entre outros, podem se constituir em recursos para o desenvolvimento infantil, revelando-se

    uma tentativa de romper com a produo de gestos mecnicos e estereotipados e uma

    possibilidade de compreender a criana em toda a sua complexidade, porque, a cada gesto, sua

    histria e sua cultura se constroem. Ao sugerir a adoo dos jogos tradicionais como

    contedos escolares, no estamos querendo prescrever o que deva ser feito, pois concordamos

    com FOUCAULT (1996, p. 38), que afirma: se nunca, jamais, digo o que se deve fazer, no

    porque penso que no h nada que fazer. Pelo contrrio, porque creio que h mil coisas para

    fazer, por inventar, por forjar, por parte daqueles que, reconhecendo as relaes de poder em

    que esto imersos, tenham decidido resistir ou escapar a elas.

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    111...444 RRREEEFFFLLLEEEXXXEEESSS MMMEEETTTOOODDDOOOLLLOOOGGGIIICCCAAASSS DDDAAA IIINNNVVVEEESSSTTTIIIGGGAAAOOO

    Na direo de conquistar os objetivos determinados, optamos, metodologicamente, por

    uma pesquisa descritiva, com caractersticas etnogrficas, de cunho exploratrio,

    essencialmente qualitativa. Essa opo justificou-se principalmente pelo contato direto e

    prolongado que tivemos com as crianas de algumas comunidades do interior da Ilha de Santa

    Catarina, bem como pela possibilidade de trnsito constante entre a observao e a anlise,

    entre a teoria e a empiria. A observao dos jogos tradicionais infantis praticados pelas

    crianas das comunidades visitadas oportunizou que estudssemos o cotidiano infantil,captando aspectos de sua cultura estabelecida, de suas crenas e valores, e as dimenses do

    seu desenvolvimento, nos aspectos cognitivos, motores e socioafetivos, habilidades reveladas

    durante as aes desenvolvidas por essas crianas e as interaes estabelecidas por ocasio do

    jogo.

    O processo de construo desta investigao foi permeado por interminveis viagens

    ao passado, as quais permitiram que relembrssemos a infncia, os nossos jogos, a nossa

    cultura ldica, e nesse sentido, concordamos com HOBSBAWM (1995, p. 13), para quem a

    destruio do passado ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experincia

    pessoal das geraes passadas um dos fenmenos mais caractersticos e lgubres do final

    do sculo XX. Ainda, segundo o autor de Era dos Extremos, as crianas e jovens de hoje

    vivem numa espcie de presente contnuo, sem qualquer relao com o passado pblico da

    poca em que vivem. Assim, ao pensarmos no brincar infantil do presente, faz-se necessrio

    DURANTE TODOS OS MOMENTOS DECONVIVNCIA COM AS CRIANAS, AO

    OBSERVAR SEUS JOGOS E SUASBRINCADEIRAS, SEUS ROSTOS E

    EXPRESSES DE FELICIDADE PURA ECONTAGIANTE PROVOCARAM EM NS

    REFLEXES SOBRE QUAL OVERDADEIRO SENTIDO DE VIVER .

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    tambm pensarmos na forma espiralada e dialtica da histria, pois, no seu processo dinmico,

    passado, presente e futuro no possuem planos determinados.

    Desse modo, o processo de ir e vir, observar e analisar os jogos infantis de hoje

    comparando-os com os jogos de nossa gerao, permitiu-nos, apesar de contextos distintos,concluir que o processo de excluso de tais jogos do seio da instituio formal ainda

    bastante forte. O que mais interessa a formao dos aspectos cognitivos da criana. Sua

    formao est voltada unicamente aos interesses do mundo produtivo. As crianas ainda

    brincam com algumas brincadeiras tradicionais, porm, alm de no serem estimuladas, resta-

    lhes pouco tempo para suas aspiraes ldicas. Necessitam preparar-se para a alta

    competitividade do mercado de trabalho e, assim, freqentam cursos de informtica, de ingls,

    entre outras atividades de fundamentao produtivista.

    No outro lado desse universo (o mais amargo, injusto, indigno), esto os filhos e filhas

    de milhes de miserveis brasileiros, excludos de tudo. O grupo das crianas que se tornaram

    sujeitos de nosso estudo se aproxima, de algum forma, desse contingente de excludos, porque

    se prepara o tempo todo, mas no para competir no mercado de trabalho, e, sim, para

    sobreviver, submetendo-se explorao dos interesses da mais -valia capitalista. Podemos

    observar que, apesar de uma grande preocupao com a infncia por parte da sociedade que

    vive a globalizao, existe uma grande lacuna entre o que proposto e o que vivido pela

    criana. Em se tratando de ambos os grupos aqui referidos, no so respeitadas as aspiraes

    ldicas das crianas que deles fazem parte.

    Refletir sobre a infncia no passado e a infncia no presente foi atitude fundamental

    para compreendermos cada vez mais o processo de aniquilamento das aspiraes da ludicidade

    infantil. Para SILVA (2000, p. 25), a histria da modernidade desvalorizou sistematicamente

    o passado em benefcio do futuro, assumindo pressupostos que se apoiavam na idia de que

    este (o passado) era reacionrio e o futuro progressista. Esse ir e vir ao passado e ao presente

    oferece possibilidade de construirmos uma educao para criana que venha a alicerar-seem outras possibilidade de formao - uma formao mais humana que respeite todas as

    possibilidades intelectuais, cinestsicas, afetivas e sociais, em que a criana tenha espao,

    atravs da prticas de atividades ldicas, de ter mais lazer, mais prazer, mais amor, para viver

    intensamente seus sonhos e fantasias.

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    Durante todos os momentos de convivncia com as crianas, ao observar seus jogos e

    brincadeiras, seus rostos e expresses de felicidade pura e contagiante provocaram em nos

    algumas reflexes sobre qual o verdadeiro sentido de viver. Como pode ser desagradvel a

    existncia nesta sociedade coercitiva e excludente, produtora de nossa subjetividade! Ser queestaremos infinita e irremediavelmente presos s teias do poder, aos interesses dos

    dominantes? At quando roubaremos os sonhos infantis?

    Assim, na direo de entender os efeitos desse processo de dominao e de docilizao

    do homem, principalmente na modernidade, com seus reflexos na educao infantil at os dias

    de hoje, efeitos evidenciados nos relatos das crianas observadas em suas brincadeiras,

    recorremos a FOUCAULT (1998) para compreender sua profunda anlise sobre o poder que

    concebido, no mais somente como piramidal, simbolizado por uma pessoa ou por um grupo,

    mas, sobretudo, tambm como uma grande rede que atua dentro de uma sociedade e a faz

    funcionar. Na sua tica, o poder no nem global nem local, mas difuso infinitesimal, estando

    microfisicamente disperso em uma multiplicidade de disciplinas e de manobras tticas.

    A partir do processo de dominao do corpo do homem durante a modernidade, que se

    reflete cada vez mais no presente, necessitamos, a fim de diminuir os efeitos desse processo,

    compreender toda a complexidade do ser humano. Essa perspectiva de vislumbrar o jogo

    enquanto uma atividade curricular que pode desenvolver vrias dimenses da criana surgiu a

    partir das falas das educadoras entrevistadas, com base em questes sobre a importncia do

    ldico no desenvolvimento infantil, e foi enriquecida a partir das reflexes tericas de MORIN

    (2000 a/b).

    A partir dessa discusso, entendemos que precisamos caminhar na direo de eliminar a

    qualquer custo a imagem unilateral que define o ser humano pela racionalidade, pela tcnica,

    pelas atividades utilitrias e pelas atividades obrigatrias, pois ele altamente complexo e

    bipolarizado pela sua sabedoria e pela sua loucura, pelo seu trabalho e pela ludicidade, pela

    sua empiria e pela sua imaginao, pela sua capacidade de economizar e consumir, entreoutros plos. Desse modo, temos de ampliar nossa viso de educao, transcendendo

    concepo vigente, que, sob a tica da sociedade produtiva, prioriza apenas o

    desenvolvimento de aspectos cognitivos.

    Foi fundamental, tambm, construirmos um estudo que enfocasse o jogo e o brincar

    infantil, desde a sua contextualizao histrica, suas classificaes e as suas teorias clssicas e

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    modernas. Enfatizamos Teorias Modernas, principalmente contribuies de PIAGET (1973),

    VYGOTSKY (1987) e ELKONIN (1980), atravs das quais buscamos compreender a

    importncia do jogo no desenvolvimento infantil, principalmente a partir do pressuposto de que

    os papis adotados pela criana no jogo protagonizado, simblico ou de faz-de-conta tmsignificativas relaes com o seu contexto social e histrico.

    A essncia central do estudo foi a anlise dos jogos tradicionais coletados pelas crianas do

    interior da Ilha de Santa Catarina. O suporte terico que subsidiou esta anlise resultou da pesquisa

    bibliogrfica realizada no captulo V, denominado O corpo em ao, no qual discorremos sobre

    o funcionamento do crebro, a sensao, a percepo, o jogo e o desenvolvimento cognitivo,

    motor e afetivo da criana, com apresentao das qualidades (categorias) que podem surgir da

    ao ldica.

    Mesmo com a possibilidade de atingir um ecletismo exagerado, entendemos que esses

    quatro pilares tericos nos possibilitaram uma fuga da especializao e da fragmentao do

    fenmeno estudado. Buscamos, nessa direo, fundamentos tericos de algumas reas do

    conhecimento que pudessem subsidiar o jogo enquanto uma possibilidade real e concreta de

    desenvolvimento de toda a complexidade infantil.

    O mtodo utilizado na anlise dos jogos tradicionais infantis pesquisados foi a anlise

    de contedo que, alm de propiciar o acontecer de um processo de inferncia, envolvendo

    procedimentos como classificao, codificao e categorizao, oportunizou-nos, tambm,

    exercer a funo da descoberta do que est por trs dos contedos manifestos, superando

    pretensas obviedades. O mtodo constitui-se de um conjunto de tcnicas de reconstruo do

    conhecimento, procurando elucidar o significado dos conceitos. A tcnica utilizada foi a

    anlise categorial, referida por BARDIN (1994), que nos possibilitou identificar as

    qualidades surgidas nos jogos tradicionais coletados, comprovando, assim, suas implicaes

    sociais no desenvolvimento infantil. Para uma melhor compreenso, as categorias foram

    dividas em cognitivas, motoras e socioafetivas, sem, no entanto, deixarmos de perceber aindissociabilidade desses trs aspectos do modo de ser da criana.

    Esse mtodo , para a autora, um meio de estudar as comunicaes entre os homens;

    uma forma de proceder a inferncias a partir das informaes surgidas do contedo da

    mensagem e/ou a partir das premissas obtidas com o resultado do estudo; um conjunto de

    tcnicas que permite classificao, codificao e categorizao dos conceitos.

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    Os sujeitos deste estudo foram as crianas de faixa etria compreendida entre 6 a 11

    anos, de vrias localidades da Ilha de Santa Catarina, caracterizadas pela descendncia

    aoriana, que ainda mantm vivas algumas tradies e costumes desses primeiros

    colonizadores. Foram visitadas as seguintes comunidades: Campeche, Costeira do Pirajuba,Ingleses, Pntano do Sul, Ratones, Ribeiro da Ilha, Rio Vermelho, Sambaqui e Vargem

    Pequena.

    Paralelamente, a fim de enriquecer nossa reflexo sobre o jogo infantil, utilizamos a

    tcnica da anlise do discurso, campo de conhecimento herdeiro da filologia, cuja matriz se

    remete Lingstica, porm desvia -se desta, ao permear outros campos, como o da psicologia,

    sociologia, histria, educao, filosofia e outros. Devemos compreend-la como um campo

    aberto a inseres de outras reas, no esgotando-se ao campo da lingstica, pois, segundo

    GUIRADO (1995, p. 24-25), ... a natureza do material com que trabalhamos, suas condies

    de produo e o seu entendimento enquanto fato de linguagem que define a orientao dada

    anlise de discurso que fazemos.

    A noo de discurso, utilizada neste estudo no foi a da lingstica, que tem como

    preocupao principal a estrutura da linguagem, mas a originria da vertente postulada por

    Foucault, na qual o foco centraliza-se muito mais no contedo e no contexto da linguagem.

    Os enunciados foram extrados das entrevistas informais com as crianas durante o seu

    cotidiano ldico e das respostas dadas por trezentas educadoras de sries iniciais, em

    entrevistas realizadas, tendo como questes centrais: qual a importncia do jogo tradicional no

    desenvolvimento infantil? Quais as suas possibilidades na educao formal do ensino

    fundamental? O anonimato dos sujeitos (crianas e educadoras) foi mantido, por no

    concebermos sua identificao como elemento fundamental ao estudo, evitando, dessa

    maneira, consideraes causais que pudessem se tornar intervenientes na construo da

    pesquisa. O que nos interessa compreender as vises dessas educadoras a respeito da relao

    estabelecida entre jogo tradicional, criana e escola, independentemente dasparticularidades inerentes a sua identificao pessoal.

    Na relao com as crianas, priorizamos o dilogo e a participao nos jogos e nas

    brincadeiras, o que nos possibilitou sentir e compreender melhor suas atividades ldicas. Foi

    incontestvel o processo de imerso (nossa e dos investigados) no estudo, afinal ambos somos

    agentes histricos de construo da cultura ldica infantil. Estabelecemos uma relao de

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    troca, de intercmbio, de mo dupla, de reciprocidade de conhecimento, de alegria, de prazer,

    de lazer, de criao, de imaginao e de realizao de fantasias e sonhos.

    Todo o processo de coleta dos jogos tradicionais infantis, no cotidiano das

    comunidades visitadas, citadas anteriormente, aconteceu num clima de agradvel afetividade,com uma solidificao crescente das relaes interpessoais estabelecidas. O que mais nos

    marcou foi a amizade, o carinho, o respeito e a admirao mtua, valores humanos

    evidenciados principalmente na convivncia exigida pela atividade ldica, atividade ainda no

    dominada pelos interesses do capitalismo.

    Apesar das diferenas dos estgios de desenvolvimento (adulto/criana), das classes

    sociais, realidades diversas surgiram durante o percurso de nossas relaes. Juntos, vivemos,

    atravs do jogo e do brinquedo, as nossas expresses corporais mais puras e significativas,

    desprovidas de qualquer interesse que no fosse a realizao de nossos sonhos e fantasias.

    Esse processo de aflorao de momentos de prazer fez-nos refletir sobre a nossa subjetividade

    e sobre a nossa identidade, fez-nos repensar a nossa histria de vida, o significado de viver e,

    principalmente, fez-nos reestruturar o nosso pensamento sobre a criana e o seu mundo.

    As tcnicas que utilizamos como procedimentos de interao com as crianas, no seu

    cotidiano e durante os recreios escolares, foram a observao, a entrevista informal e a

    ilustrao. Os instrumentos de pesquisa foram as maneiras diversas de abordarmos a realidade,

    e dependeram muito do modo como nos aproximamos da realidade e do objeto de pesquisa.

    Os instrumentos eleitos para a abordagem da realidade permitiram que nos aproximssemos

    dos sujeitos e dialogssemos com eles. Foi atravs deles que pudemos estabelecer categorias

    para os jogos observados.

    Pela observao, buscamos, atravs de nossa sensibilidade, a essncia dessas atividades

    alm de suas evidncias. Para uma melhor identificao do fenmeno, procuramos realizar tal

    observao com olhos apurados, profundos e sensveis, o que facilitou identificar as

    qualidades dessas atividades ldicas. Atravs da observao, desenvolvemos trs operaesfundamentais, indissociveis na compreenso do fenmeno. Inicialmente, colhemos os dados

    genricos do jogo para que pudessem ser transcritos em fichas especficas; em seguida,

    selecionamos as qualidades mais significativas que despontavam na ao ldica dos

    participantes; finalmente, procuramos analisar essas atividades relacionando-as ao

    desenvolvimento infantil.

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    Atravs de uma entrevista informal e livre, procuramos captar informaes a respeito

    dos jogos e das brincadeiras infantis. Apesar de algumas das crianas evidenciarem receio,

    timidez, vergonha, a grande maioria sentia muito prazer em falar a respeito de suas atividade

    ldicas. Outras, ao mesmo tempo em que as observvamos, entrevistavam-nos para saber arespeito de nossas brincadeiras preferidas e do que brincvamos quando ramos crianas.

    Apesar de nosso afoito comportamento inicial, dada a ansiedade em obter resultados, s

    conseguimos xito quando jogamos para o espao a nossa lgica de trabalho (objetividade,

    roteiros, horrios, etc.), para nos inserirmos na lgica infantil, realizando uma entrevista

    estruturada nos interesses infantis, com brincadeiras, com histrias, ou seja com esprito

    ldico.

    Utilizamos, como forma de registrar os jogos, a tcnica da ilustrao, em virtude de j

    termos habilidade nessa rea, pois realizamos ilustraes em apostilas, revistas e livros.

    Atravs da ateno e da observao construo dos esboos ilustrativos, pudemos

    aprofundar mais o nosso olhar na compreenso das possibilidades cinticas, afetivas e

    cognitivas do jogo. Cada detalhe da ao ldica, reconstitudo na ponta do lpis, possibilitou

    que compreendssemos com maior preciso as caractersticas cinticas evidenciadas por

    ocasio de sua realizao.

    Os jogos tradicionais infantis transcritos no captulo VI foram apresentados

    individualmente ou em grupos, segundo suas similaridades na anlise da ao ldica,

    respeitando as seguintes caractersticas:

    - nome do jogo, buscando utilizar os nomes originais, batizados pelas prprias

    crianas e transcrevendo-os em ordem alfabtica;

    - ilustrao do jogo, apresentada atravs de esboos por ns elaborados;

    - descrio sucinta e clara de como ocorre o jogo, suas regras e demais detalhes

    relacionado sua prtica, a partir da observao e das entrevistas com as crianas;

    - anlise do contedo do jogo, identificando as qualidades pertinentes s diversasdimenses de desenvolvimento da criana nas quais o jogo poderia estar inserido.

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    IIIIII---OOOCCCOOORRRPPPOOODDDOOOMMMIIINNNAAADDDOOO

    O ser humano ao mesmo tempo singular emltiplo. Traz em si multiplicidade interiores,personalidade virtuais, uma infinidade depersonagens quimricos, uma poliexistncia no

    real e no imaginrio, no sono e no secreto,balbucios embrionrios em suas cavidades eprofundezas insondveis. Cada qual contm em sigalxias de sonhos e de fantasmas, impulsos dedesejos e amores insatisfeitos, abismos dedesgraas, imensides de dio, desregramentos,lampejos de lucidez, tormentas dementes...

    Edgar Morin (2000, p. 57)

    222...111---OOOCCCOOORRRPPPOOOPPPRRROOODDDUUUTTTIIIVVVOOO:::DDDIIISSSCCCIIIPPPLLLIIINNNAAASSSDDDEEEDDDOOOMMMIIINNNAAAOOO222999

    2.2- O CORPO NA ESCOLA: CONSTRUO DA DOCILIDADE 44

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    222...111---OOOCCCOOORRRPPPOOOPPPRRROOODDDUUUTTTIIIVVVOOO:::AAASSSDDDIIISSSCCCIIIPPPLLLIIINNNAAASSSDDDEEEDDDOOOMMMIIINNNAAAOOO

    Constatamos, durante as falas das crianas brincando, a confirmao da excluso dos

    jogos infantis na escola. Na escola, pouco podemos brincar; s estudar. Algumas dessas

    crianas deixaram transparecer inclusive seu descontentamento com as aulas de Educao

    Fsica, um dos poucos espaos disciplinares que legitima a presena do corpo na instituio

    escolar. Essa situao ficou nitidamente exposta no depoimento de uma criana, que disse: O

    professor no deixa a gente brincar do que a gente gosta. A partir de seus comentrios,

    evidenciaram-se suas tristezas pela desconsiderao da escola em relao ao universo infantil,

    o que se explicita quando no so contemplados os desejos da criana, as suas aspiraesldicas. A escola contempornea no ousa ir alm de objetivos historicamente consagrados -

    sobremodo o desenvolvimento de aspectos cognitivos, utilizando como estratgia a anulao

    do corpo no processo de ensino-aprendizagem, pois a passividade, a obedincia e a docilidade

    favorecem, na concepo dessa instituio, a aquisio de conhecimento.

    Sob a luz dessa triste realidade, procuramos entender esse fenmeno inicialmente a

    partir da dominao do adulto pelos meio de produo, para, em seguida, compreender melhor

    os reflexos desse processo no interior da escola, reflexos que podem esclarecer todo umpercurso de excluso da atividade ldica no desenvolvimento infantil. Abordamos,

    inicialmente, aspectos histricos dessa apropriao pelas organizaes do trabalho, aspectos

    que foram construdos socialmente atravs de mecanismos de disciplinamento surgidos das

    relaes poder-saber, mveis, multidirecionais, que organizam e sustentam a continuidade de

    uma prtica dominadora, coercitiva e limitadora.

    A RACIONALIDADE CAPITALISTA,PRODUTIVA, PROVOCOU UMA

    INVIABILIZAO DOS JOGOS, NAESCOLA, POR NO SEREM

    REGULVEIS, POR NOAPRESENTAREM OBJETIVIDADE E

    POR SEREM IMPOSSVEIS DEMENSURA O.

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    A modernidade, sob a gide mecanicista, construiu-se pela supervalorizao da razo;

    nesse contexto, a organizao do trabalho buscou a invaso de todos os domnios humanos. A

    grande falcia do sculo XX foi defender que todo o processo de felicidade humana residia

    nas conquistas materiais e nos meios de produo. Nessa busca do ter e do poder, subsidiadapela cincia e pela tecnologia, a grande ruptura do ho