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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO

    Rafael Petry Trapp

    A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)

    Porto Alegre

    2013

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    Rafael Petry Trapp

    A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)

    Dissertao apresentada como requisito parcialpara a obteno do grau de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Histria daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas daPontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul.

    Orientadora: Dr Ruth Maria Chitt Gauer

    Porto Alegre

    2014

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    Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria:Cntia Borges Greff - CRB 10/1437

    T774c Trapp, Rafael PetryA conferncia de Durban e o antirracismo no Brasil

    (1978-2001). / Rafael Petry Trapp. Porto Alegre, 2014.114 f. : il.

    Dissertao (Mestrado em Histria) Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul PUCRS.

    Orientao: Profa. Dra. Ruth Maria Chitt Gauer.

    1. Negros Brasil Histria. 2. Movimento NegroBrasileiro. 3. Conferncia de Durban. 4. Racismo/

    Antirracismo. 5. Transnacionalidade. I. Gauer, RuthMaria Chitt. II. Ttulo.

    CDD 981301.451042

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    Rafael Petry Trapp

    A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)

    Dissertao apresentada como requisito parcialpara a obteno do grau de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Histria daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas daPontifcia Universidade Catlica do RioGrande do Sul.

    BANCA EXAMINADORA

    Dissertao aprovada Com louvor pela banca examinadora, no dia 25/02/2014.

    ______________________________________________________

    Professora Dr Ruth Maria Chitt Gauer PUCRS (Orientadora)

    ______________________________________________________

    Professor Dr. Mozart Linhares da Silva UNISC

    ______________________________________________________

    Professor Dr. Maral de Menezes Paredes PUCRS

    Porto Alegre

    2014

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    Para minha me Rejane e meu pai Vladimir,

    por terem me instigado desde cedo, porcaminhos distintos, ao gosto pela leitura.

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    AGRADECIMENTOS

    Antes de tudo, e em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria da PUCRS, por ter me acolhido institucionalmente, e ao CNPQ, porter fornecido a bolsa de estudos que possibilitou o pleno desenvolvimento de minha pesquisa.

    Agradeo professora Ruth Gauer, por ter aceitado orientar minha proposta de

    pesquisa e por ter confiado no meu trabalho. Pela grande inteligncia e erudio, segurana na

    orientao transmitida e pelo refinado olhar intelectual, fonte de admirao.

    Aos docentes e funcionrios do PPG, em especial ao professor Maral de Menezes

    Paredes, que muito admiro, cujas aulas e interlocuo ajudaram para essa dissertao tomasse

    corpo, e secretria Carla Carvalho, pelos grandes prstimos.Aos professores que participaram do Exame de Qualificao e fizeram importantes

    consideraes, Charles Monteiro, Maria Lcia Bastos Kern e especialmente ao professor

    Mozart Linhares da Silva, manancial de inspirao e a quem muito devo intelectualmente.

    Aos funcionrios dos porto-alegrenses Grelhados Veneza, Padaria Roma e

    restaurantes universitrios da PUCRS e da UFRGS, pois, de acordo com certo pensador, no

    h sabedoria de barriga vazia .

    Ao Mrcio Andr de Oliveira dos Santos, por ter gentilmente me enviado uma verso

    de sua dissertao ainda em 2011. Espero que o texto que aqui vai esteja a contento.

    Aos ilustrssimos colegas e amigos das Cincias Criminais da PUCRS, Cuco, Gustavo

    e tambm ao Thiago, que possibilitou uma ponte area entre Porto Alegre e Uberlndia.

    Aos colegas do Curso Fbrica de Ideias, realizado na incrvel cidade de Salvador da

    Bahia, em especial aos baianos Juliede, Jasialine e Marcos, pela hospitalidade e receptividade,

    ao Jurandir e Andr, por terem me cedido fontes para a pesquisa, e carioca Anglica, pela

    alegria e por ter aberto sua casa no Rio de Janeiro para esse gacho desavisado.

    Agradeo Casa do Estudante Santacruzense e seus moradores, pela acolhida em

    Porto Alegre. Em especial ao colega de quarto Bruno Segatto, que se tornou um amigo. Esse

    espao compartilhado respirou muita(s) histria(s), regada(s) a bons cafs e boas risadas.

    Carla Batista, pelos vrios cafs, trocas intelectuais e aprendizado mtuo.

    Sou grato Tas Campelo, pelos dilogos intelectuais, pela leitura do material da

    minha Qualificao, pela preciosa indicao do Fbrica de Ideias e ainda por outras razes.

    H coisas que se escusa falar e outras que falam por si s. Apenas no deixo de enfatizar

    minha admirao e meu contentamento sentido. vontade estejam os historiadores do futuro

    que se dispuserem a escrever Histria atravs desses pequenos relatos de agradecimento.

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    Aos amigos historiadores da PUCRS, pelos inmeros cafs, dilogos e trocas diversas.

    Eles so muitos, e tenho medo de esquecer algum nome. Entre eles esto Maria do Amparo,

    Thiago Orben, Camila Eberhardt, Monia Wazlawoski, Tatiane Bartmann, Geandra Munaretto

    e Mateus Skolaude. Danielle Viegas foi companheira virtual na madrugada e paladina dos

    encantos de Canoas. Com Diego Dal Bosco muito aprendi, em inmeros cafs e outras

    ocasies. Sua presena marcante me inspirou em vrios momentos.

    Ao glorioso magnata Jos Augusto Miranda, Visconde das Palmas, que dotou a

    palavra amizade de muitos significados para mim. De sua convivncia recebi um presente

    amigo adicional, a pernambucana Louisiana Meireles. angolista Priscila Weber, amizade

    latente que cresceu e se consumou em Porto Alegre. Quero t-los e lev-los sempre comigo.

    Finalmente, e mais importante, quero agradecer a Rosana Jardim Candeloro, por ter

    me despertado com o perdo da comparao , assim como Kant em relao a Hume, de

    meu sono dogmtico . A ela essa dissertao poderia tambm ser dedicada, pois foi a partir

    de sua convivncia que a vida intelectual e a vida acadmica se descortinaram como prazeres

    para o esprito, bem como possibilidade profissional consubstanciada j nessa dissertao.

    Tudo o que a ela devo no encontra nesse mundo fenomnico formas adequadas ou

    suficientes para se expressar, tamanha a amplitude da dvida e o enfado em relao pobreza relativa da linguagem para diz-la. Esse agradecimento especial mostra do meu

    afeto e da minha mais profunda gratido.

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    Em certo sentido, tentar classificar pessoasnum pequeno nmero de raas como tentarclassificar livros numa biblioteca; pode-se usaruma nica propriedade o tamanho, digamos, mas o que se obter uma classificao

    intil; ou pode-se usar um sistema maiscomplexo de critrios interligados, e ento seobter uma boa dose de arbitrariedade.

    Ningum, nem mesmo o mais compulsivo dosbibliotecrios, supe que as classificaes dos

    livros reflitam fatos profundos sobre estes.

    (Kwame Anthony Appiah)

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    RESUMO

    A presente pesquisa tem como objetivo analisar a relao entre o Movimento Negro

    brasileiro e a III Conferncia das Naes Unidas contra o Racismo, realizada em 2001 nacidade de Durban, na frica do Sul. Procura-se entender como se tornou possvel que oMovimento Negro e a delegao brasileira pudessem sustentar uma posio polticaconsensual em Durban sobre racismo/antirracismo. Privilegiando um enfoque terico-metodolgico centrado na anlise transnacional, o trabalho se debrua sobre a histriacontempornea do Movimento Negro no Brasil, desde a fundao do Movimento NegroUnificado, em 1978, at a participao brasileira em Durban. A racializao da luta poltica eo dilogo institucional estabelecido entre o Movimento e o Estado brasileiro, durante ogoverno de Fernando Henrique Cardoso, processos que se do nos anos 1990, foram centraisna produo dos consensos para Durban. O contexto transnacional de ao da Conferncia,entretanto, aqui entendido como ponto de inflexo, tanto histrica quanto poltica. A

    natureza da relao entre o Movimento Negro e a Conferncia evidencia a importncia queesta assume na guarida discursiva ao multiculturalismo e s aes afirmativas no Brasil,relao mediada pela transnacionalidade. Considera-se, finalmente, que a Conferncia deDurban conforma um novo mapa poltico para o antirracismo global, com a emergncia denovos atores no cenrio internacional. Alm disso, as implicaes da Conferncia na histriado antirracismo no Brasil ensejam olhares mais atentos s especificidades histricas dasesferas locais, articulados, por sua vez, a contextos transnacionais de ao.

    Palavras-chave: Movimento Negro brasileiro; Conferncia de Durban; racismo/antirracismo;transnacionalidade.

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    ABSTRACT

    This research aims to analyze the relationship between Brazilian Black Movement and

    the United Nations Third Conference against Racism, held in 2001 in the city of Durban,South Africa. We seek to understand how it became possible that the Black Movement andthe Brazilian delegation could have supported a consensual political position in Durban onracism/antiracism. Favoring a theoric and methodological approach focused on transnationalanalysis, the work focuses on the contemporary history of the Black Movement in Brazil,since the foundation of the Unified Black Movement, in 1978, until the Brazilian participationin Durban. The racialization of political struggle and the institutional dialogue between theMovement and the Brazilian State, during the government of Fernando Henrique Cardoso,

    processes that take place in the 1990s, were central in the production of consensus for Durban.The transnational context of action of the Conference, however, is understood here as a pointof inflection, both historical and political. The nature of the relation between the Black

    Movement and the Conference highlights the importance the latter assumes in the discoursivereception of multiculturalism and affirmative action in Brazil, relation mediated bytransnationality. Finally, it is considered that Durban Conference forms a new political mapfor global anti-racism, with the emergence of new actors in the international scene. Moreover,the implications of the Conference in the history of anti-racism in Brazil enable morewatchful eyes to the historical specificities of local spheres, articulated, in turn, withtransnational contexts of action.

    Keywords: Brazilian Black Movement; Durban Conference; racism/anti-racism;transnationality.

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    FCP Fundao Cultural Palmares

    FHC Fernando Henrique Cardoso

    FNB Frente Negra Brasileira

    GTI Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    MNU Movimento Negro Unificado

    ONG Organizao No-Governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    SEDH Secretaria de Estado de Direitos Humanos

    SEPPIR Secretaria Especial de Promoo de Polticas de Igualdade Racial

    TEN Teatro Experimental do Negro

    UNEGRO Unio dos Negros pela Igualdade

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Cincia e a Cultura

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................. 11

    1 RAA , NAO EOMOVIMENTONEGRONOBRASIL............................. 171.1IDENTIDADE NACIONAL,MESTIAGEM E RACISMO NO BRASIL NO SCULO XX ............. 18

    1.1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO (1978)................................................................. 23

    1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO E A PERSPECTIVA DA RAA ................................. 27

    1.3INFLUNCIAS EXTERNAS E O ATLNTICONEGRO.......................................................... 31

    1.3.1NACIONALISMO AFRICANO E A RETRICA NACIONALISTA.......................................... 31

    1.3.2ANGRITUDEE O ANTIRRACISMO NORTEAMERICANO................................................ 34

    1.4OATLNTICONEGRO.................................................................................................... 392OANTIRRACISMOEOESTADONOBRASILDOSANOS1990......................... 44

    2.1ESTADO E RELAES RACIAIS NO BRASIL..................................................................... 45

    2.2OMOVIMENTONEGRO DO CENTENRIO DA ABOLIO MARCHA ZUMBI DOSPALMARES (1988-1995) ...................................................................................................... 51

    2.3OGOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E A QUESTO RACIAL............................ 60

    2.4MOVIMENTONEGRO/ANTIRRACISMO E ANLISE TRANSNACIONAL NO BRASIL............. 66

    3ACONFERNCIADEDURBANEOMOVIMENTONEGRONOBRASILCONTEMPORNEO....................................................................................................... 73

    3.1ASNAES UNIDAS E O RACISMO/ANTIRRACISMO NO SCULO XX .............................. 75

    3.2OMOVIMENTONEGRO BRASILEIRO E O PROCESSO PREPARATRIO PARA ACONFERNCIA MUNDIAL CONTRA O RACISMO DE DURBAN................................................ 80

    3.2.1OS DEBATES DOS SEMINRIOS REGIONAIS PREPARATRIOS (2000) ......................... 85

    3.2.2OMOVIMENTONEGRO E AS CONFERNCIAS PREPARATRIAS PARA DURBAN:SANTIAGO,GENEBRA,RIO DE JANEIRO (2000-2001) .......................................................... 88

    3.3UM CAMPO DE TENSES:A III CONFERNCIA DASNAES UNIDAS CONTRA ORACISMO,DISCRIMINAO RACIAL,XENOFOBIA E INTOLERNCIA CORRELATA DE DURBAN(2001).................................................................................................................................. 93

    3.4ACONFERNCIA DE DURBAN E O MOVIMENTONEGRO BRASILEIRO:NOVASCONFIGURAES DO ANTIRRACISMO NA CONTEMPORANEIDADE......................................... 98

    4CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 103

    5REFERNCIAS ........................................................................................................... 106

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    INTRODUO

    Em 1983, Carlos Calero Rodrigues, embaixador brasileiro na II Conferncia Mundial

    das Naes Unidas Contra o Racismo, em Genebra, referia-se, em seu discurso,

    [...]harmonia racial existente no Brasil e ao desenvolvimento progressivo de uma sociedade no-

    racial em que o fator racial se mostre irrelevante nas inter-relaes sociais 1. Em 2001, naIII

    Conferncia das Naes Unidas contra o Racismo, realizada em Durban, na frica do Sul, o

    embaixador Gilberto Vergne Saboia, chefe da delegao brasileira na Conferncia, diz que

    haveria de se inserir a comunidade negra progressivamente nos segmentos superiores da

    educao, do emprego, da cultura [...] para que o Brasil seja o que ele realmente , ou seja,

    [...] uma sociedade multirracial onde os negros e afro-descendentes [so] praticamente metadeda populao 2 . Alguma transformao histrica muito significativa tivera acontecido. O

    entendimento dessa mudana, cujo paroxismo parece estar no contexto da Conferncia de

    Durban, o centro dessa dissertao, cuja trama histrica multifacetada e complexa.

    Do ponto de vista da questo racial, o Brasil cultivou durante mais de meio sculo, dos

    anos 1930 at meados da dcada de 1990, uma imagem de um pas moldado historicamente

    pela miscigenao racial, onde imperava a tolerncia entre as raas 3. O racismo, aqui, no

    teria vez. Tendo como pano de fundo histrico os anos 1930, com Getlio Vargas, essaimagem espraiou-se nos mais variados mbitos: na propaganda estatal, na imprensa, na

    literatura, na msica, na televiso; mais do que isso, estabeleceu-se firmemente na cultura e

    no imaginrio popular brasileiro e invadiu as mais amplas camadas do tecido social. Era o

    discurso da chamada democracia racial . Essa imagem permaneceu por dcadas sem

    questionamentos mais contundentes. Esses, contudo, no tardaram a se fazer presentes.

    Na dcada de 1950, uma srie de estudos acadmicos sobre relaes raciais no Brasil,

    patrocinada pela UNESCO, da qual participaram intelectuais importantes, como Roger

    Bastide e Florestan Fernandes, demonstraram a inconsistncia emprica da democracia

    racial . Ao contrrio do credo corrente, havia sim racismo e desigualdades de ordem racial no

    Brasil. Do ponto de vista poltico, no ano de 1978 que surge na cidade de So Paulo o

    Movimento Negro Unificado (MNU), que ter papel importante na desconstruo do discurso

    1Citado em Albuquerque (2008, p. 79).2Entrevista disponvel em Moura e Barreto (2001, p. 15).3Nesta dissertao, o conceito de raa vai entre aspas. Concordamos que raa uma construo histrico-social que no dispe de qualquer fundamento biolgico. Mas preciso ir alm. Este posicionamento terico-textual procura ter claro que o conceito deve ser desnaturalizado e posto sob suspeio epistmica, algo que asaspas podem, de alguma sorte, indicar. O mesmo raciocnio se aplica ao conceito de

    democracia racial

    , epoderia se estender a outros. Pensar o racismo e combat-lo tambm desestabilizar significados.

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    da democracia racial e na organizao de um campo de lutas polticas para o negro no

    Brasil. O Movimento Negro passaria por mudanas significativas nas dcadas seguintes, que

    teriam profundo impacto na cena poltica do antirracismo no Brasil.

    Nos anos 1990, o Movimento Negro estabelece canais de dilogo com o Estado

    brasileiro, atravs do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Ao mesmo tempo, um

    processo de transnacionalizao do Movimento constitui-se nesse mesmo perodo. no meio

    do caminho da relao entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro nos anos 1990,

    mediado pela influncia de contextos transnacionais de ao e construo do discurso poltico,

    que se podem encontrar subsdios para uma compreenso de como se operaram certas

    transformaes histricas no campo do racismo/antirracismo no Brasil em um espao de

    poucas dcadas. O contexto transnacional sobre o qual vamos nos debruar representado

    aqui pelos eventos, aes e discursos das Naes Unidas (ONU) sobre o racismo e seu

    combate no sculo XX, especialmente a Conferncia de Durban, em 2001.

    A importncia histrica de Durban enfatizada por todos os atores sociais e

    institucionais envolvidos com a discusso sobre racismo e antirracismo no Brasil

    contemporneo. A podemos citar, obviamente, o Movimento Negro, suas ONGs e seus

    militantes, mas no s; tambm o Estado (tanto nas esferas federal/estadual/municipal quanto

    no mbito do Executivo/Legislativo/Judicirio e tambm a diplomacia), a Academia(principalmente nas Cincias Sociais), a imprensa (em veculos como a revista Veja e os

    jornais Folha de So Pauloe O Globo), entre outros atores, como veremos.

    As opinies sobre o processo preparatrio e a Conferncia em si variam ainda que a

    maioria das avaliaes seja positiva, no sentido dos ganhos polticos que o Movimento Negro

    e o antirracismo de forma mais geral obtiveram no ps-Durban , refletindo algumas das

    tenses existentes no campo da discusso sobre o racismo e suas estratgias de combate no

    Brasil contemporneo. Todavia, uma afirmao sobre a qual no recaem dvidas a de que aConferncia trouxe um grande debate pblico sobre o racismo e as desigualdades raciais no

    Brasil. Essa discusso ocorreu principalmente em funo das polticas antirracistas que foram

    implantadas no ps-Durban. Nesse sentido, o socilogo Srgio Costa considera que,

    Para a poltica interna brasileira, a Conferncia de Durban da ONU contra o racismode 2001, representa um importante ponto de inflexo, j que, pela primeira vez,ocorreu um debate de amplitude nacional sobre o racismo, apresentando-se novosdados e argumentos que comprovam, de forma irrefutvel, a discriminao contra osafro-descendentes (2006, p. 150).

    O Movimento Negro, praticamente em unssono, considera a Conferncia de Durban

    como um marco histrico em sua trajetria, pela amplitude da unio poltica observada no

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    processo preparatrio e pelos avanos em termos de polticas pblicas, com a implementao,

    por exemplo, das aes afirmativas nas universidades pblicas e a aprovao da Lei 10.639,

    de Ensino e Cultura Africana e Afro-brasileira (2003), durante o Governo Lula (2002-2010),

    entre outras conquistas importantes. Assim, para a militante4 Jurema Werneck

    a 3 CMR

    [Conferncia de Durban] afirmada pelo movimento anti-racista como fundamental para o

    processo de alargamento de agendas e de aprofundamento das aes (2005, p. 64). A

    militante Edna Roland considera que a Conferncia criou, sem dvida, um espao

    extremamente favorvel para a discusso de polticas especficas para as populaes negra e

    indgena no Brasil (2001, s. p.). O militante Amauri Mendes Pereira, por sua vez, afirma:

    No resta dvida, que a partir da Conferncia Mundial Contra o Racismo e da

    adoo de cotas e aes afirmativas e a o socilogo/estudioso das relaesraciais/presidente, Fernando Henrique Cardoso, cumpriu seu papel e na eleio deLula e no governo do Partido dos trabalhadores e de um

    arco de esquerda , quefinalmente alguns segmentos mais articulados do Movimento Negro assumiramespaos mais consistentes de poder. E, nesse momento, j no a luta contra oracismo, mas a promoo da igualdade racial! (2008, p. 120).

    Entretanto, h opinies menos abonadoras e otimistas. Emitidas de parte de alguns

    intelectuais crticos ao processo de racializao do Brasil contemporneo, processo tido

    como inspirado (tambm) nas aes afirmativas advindas de Durban, intelectuais como os

    antroplogos Ivonne Maggie e Peter Fry (2005) e o professor de geografia da USP DemtrioMagnoli (2009) enfatizam algumas caractersticas problemticas da Conferncia

    caractersticas essas que geralmente so minimizadas nas afirmativas ligadas ao Movimento

    Negro. Desse modo, Magnoli, notrio opositor das aes afirmativas e persona non grata

    para o Movimento Negro, taxativo quando diz que

    A Conferncia de Durban, de 2001, situa-se no cruzamento dos campos de fora dasinstituies multilaterais e das fundaes filantrpicas globais. Realizada sob osauspcios das Naes Unidas, na frica do Sul do ps-apartheid e do

    Blackempowerment

    , a conferncia foi dominada pelas ONGs multiculturalistas e

    produziu as bases polticas e jurdicas para uma nova etapa de radicalizao daspolticas racialistas (2008, p. 15).

    O autor associa a Conferncia no potencialidade poltica, como o fazem os

    militantes do Movimento Negro, mas ao radicalismo e ao racialismo . Veremos adiante se

    essa posio se sustenta. A despeito das opinies divergentes, o fato que a Conferncia de

    Durban abriu caminho para as aes afirmativas no Brasil. Para a antroploga Laura Lpez,

    a partir da Conferncia de Durban, as afro-reparaes emergiram como eixo central na

    agenda global contra o racismo como elemento chave da justia social e escala mundial

    4Por

    militante designamos os indivduos que tm ligao poltica direta com o Movimento Negro brasileiro,participando de suas atividades e representando o mesmo em fruns nacionais e internacionais.

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    (2009, p. 23). Essa agenda global tem tambm uma dimenso que transnacional. A

    importncia da anlise transnacional sublinhada por Costa, quando afirma que contextos

    transnacionais de ao e aqui elegemos a Conferncia de Durban induzem localmente

    processos de inovao cultural e social (2006, p. 130). Considerar historicamente a relao

    entre a Conferncia de Durban e o Movimento Negro/antirracismo no Brasil implica levar a

    srio a dimenso transacional dos processos sociais contemporneos relativos ao antirracismo

    e formao da cultura negra em escala global. Ainda para esse autor,

    Trata-se de levar em conta o carter ps-nacional dos processos contemporneos, demodo a constatar que as fronteiras nacionais nem sempre demarcam uma unidadeanaltica adequada para a investigao sociolgica numa poca em que os processossociais e culturais, bem como a ao poltica, no encontram mais nas fronteirasnacionais seu limite (COSTA, 2006, p. 15).

    O carter ps-nacional e transnacional inerente formao do Movimento negro e do

    antirracismo contemporneo no Brasil vai ser parte tambm do horizonte terico-

    metodolgico da presente dissertao. Contudo, no estamos sozinhos nessa empreitada de

    tematizar a histria da Conferncia de Durban em sua relao com o Movimento Negro e o

    antirracismo no Brasil. So dois os principais trabalhos acadmicos de flego de autores

    brasileiros que procuraram deslindar essa temtica.

    A tese de doutorado de Slvio Albuquerque e Silva, apresentada no Instituto Rio

    Branco em 2007(que se tornou o livro Combate ao Racismo em 2008), avana sobre duas

    teses: primeiramente, que o [...] processo de Durban representou um divisor de guas na

    estratgia internacional de combate ao racismo [...] (2008, p. 25); ainda, busca ressaltar o

    papel protagnico e construtivo exercido pela diplomacia brasileira nas negociaes havidas

    durante o processo de preparao para a Conferncia e de redao de seu documento final

    (2008, p. 25). O foco, contudo, est na histria diplomtica do Brasil em relao ao racismo.

    Em que pese o texto copioso e a qualidade da periodizao, faz parca meno histria do

    Movimento Negro, tampouco dialoga com as Cincias Sociais no que tange questo racial.

    O outro trabalho a dissertao em Cincias Sociais de Marcio Andr de Oliveira dos

    Santos,A Persistncia Poltica dos Movimentos Negros Brasileiros: Processo de Mobilizao

    3 Conferncia Mundial das Naes Unidas Contra o Racismo, apresentada na UERJ em

    2005. O autor visa a analisar o processo de mobilizao dos movimentos negros para a 3

    Conferncia Mundial Contra o Racismo e as relaes estabelecidas com o Estado neste

    perodo (2005, p. 6). O trabalho de Santos foi o primeiro a lidar com a relao entre o

    Movimento Negro e a Conferncia de Durban, e o fez com grande qualidade tanto analtica

    quanto emprica. Embora a presente dissertao aborde um tema afinado com o de Santos, se

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    diferencia em alguns pontos, principalmente aqueles referentes abordagem da anlise

    transnacional, periodizao mais alargada e ao acesso a fontes publicadas ulteriormente ao

    trabalho desse autor (aqui a referncia principal a coletnea de histria oral Histrias do

    Movimento Negro no Brasil, de 2007). De qualquer forma, a obra de Santos ser fartamente

    citada em vrios momentos ao longo da dissertao, especialmente no ltimo captulo.

    Tomando as problemticas histricas e polticas envolvidas na Conferncia em sua

    relao com o Movimento Negro e o antirracismo no Brasil, os desafios da anlise

    transnacional e os resultados j alcanados por outros trabalhos afinados com a temtica em

    questo, como ponto inicial de reflexo, estabelecemos nossos objetivos. Desta forma, a

    presente dissertao tem por objetivo analisar a relao entre o Movimento Negro brasileiro

    contemporneo e a Conferncia de Durban, problematizando essa relao no mbito mais

    geral da histria do Movimento Negro, do antirracismo e da questo racial no Brasil do sculo

    XX. Nosso problema de pesquisa se coloca nesses termos: quais foram as condies histricas

    de possibilidade que tornaram possvel com que o Movimento Negro e a delegao brasileira

    pudessem sustentar uma posio poltica consensual em Durban sobre racismo/antirracismo?

    Os marcos temporais compreendidos pela anlise so aqueles que vo de 1978, ano de

    fundao do Movimento Negro Unificado, at a Conferncia de Durban, em 2001. Apesar da

    periodizao definida, no pretendemos ficar presos a uma diacronia obsedante; mesmo que anoo de tempo histrico seja muito complexa, vamos tomar a histria e sua relao com o

    tempo de uma maneira mais fluida e aberta, pois muitas das questes que vamos discutir,

    como raa e racismo no Brasil, tm uma trajetria que excede os limites estreitos de nossa

    periodizao. Assim, o recorte responde a um conjunto de questionamentos bastante

    especficos ao tempo histrico em que emergem e no qual so pensados como problema.

    As fontes que iremos utilizar so muitas. Como o objeto amplo, assim tambm a

    amplitude das fontes que utilizaremos. Em primeiro lugar, esto aquelas relativas aoMovimento Negro de uma forma geral5. Analisaremos desde os estatutos, jornais e teses de

    congressos do Movimento Negro Unificado dos anos 1970, passando pelos diversos materiais

    escritos produzidos pelo Movimento em momentos-chave como o Centenrio da Abolio

    (1988), a Marcha Zumbi dos Palmares (1995) e a prpria Conferncia de Durban (2001), at

    5Entendemos nessa dissertao o conceito de Movimento Negro como o conjunto dos movimentos sociaisantirracistas contemporneos perpassados por discursos comuns de luta poltica e pertencimento tnico, calcados,no mais das vezes, na perspectiva de uma identidade negra racializada, que surgiram no Brasil no final da dcadade 1970. O que chamamos Movimento Negro , no singular, bem poderia ser dito movimentos negros , dada aimensa pluralidade de movimentos, entidades, associaes e ONGs negras e/ou antirracistas. Aquiexaminaremos o Movimento Negro Unificado, que a referncia histrica para o antirracismo contemporneo,mas outros poderiam ser os exemplos, como a Unegro, as pastorais negras, entre outros. A escolha metodolgica,aqui, pelo conceito no singular, por uma questo de clareza e organizao textual.

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    as obras produzidas por intelectuais ligados ao Movimento Negro na segunda metade do

    sculo. Documentos oficiais, como discursos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,

    os documentos da delegao brasileira na Conferncia de Durban, bem como os textos finais

    da referida Conferncia faro parte de nosso escopo documental.

    Do ponto de vista terico, este trabalho beneficia-se da anlise transnacional e de

    algumas noes das Cincias Sociais, especialmente aquelas relativas ao Ps-Colonialismo,

    como os conceitos de Atlntico Negro e dispora . A pesquisa nos levou ao dilogo com

    outros campos do saber. Pela interlocuo com contribuies da Sociologia e da Cincia

    Poltica, uma caracterstica de nosso enfoque a interdisciplinaridade.

    No entanto, se nos fosse exigida uma identificao ainda mais estrita com o campo

    disciplinar da Histria, o trabalho poderia ser visto como Histria Poltica, pelo enfoque

    poltico da histria do Movimento Negro; Histria Transnacional, pela abordagem terica; ou

    mesmo Histria do Tempo Presente, por tratar de questes que esto na ordem do dia na

    discusso pblica sobre cidadania, racismo e desigualdades sociais no Brasil.

    A dissertao est organizada da seguinte forma: no Captulo 1 analisamos alguns

    pontos de contato entre as ideias de raa e nacionalidade na histria intelectual do

    Movimento Negro no Brasil, a partir dos anos 1970. Ainda, na ltima sub-seo desse

    captulo, passamos em revista algumas possibilidades tericas oriundas dos Estudos Ps-coloniais. No Captulo 2, a anlise est centrada na histria da relao entre o Movimento

    Negro e o Estado brasileiro na dcada de 1990. Alm de analisarmos algumas mudanas no

    interior do Movimento durante os anos 1990, na ltima parte do captulo faz-se uma

    apreciao da pertinncia terica da anlise transnacional para a abordagem do objeto em

    questo. Com base nas discusses desses dois captulos, analisaremos, no Captulo 3, o objeto

    principal, qual seja, a relao entre o Movimento Negro e a Conferncia de Durban.

    Visvamos nos concentrar mais detidamente na participao brasileira na Confernciade Durban em si; todavia, nosso horizonte se alargou. Destarte, o presente texto pode ser lido

    tambm como uma pequena histria do Movimento Negro no Brasil contemporneo.

    Finalmente, a ttulo de curiosidade geogrfica, a cidade brasileira de Porto Alegre, na qual

    este trabalho foi escrito, est, assim como a sul-africana Durban, sob o mesmo Paralelo 30 S.

    Que tal auspiciosa coincidncia sirva de inspirao para esta e outras leituras sobre a histria

    do Movimento Negro, do antirracismo e da questo racial no Brasil.

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    1 RAA , NAO EOMOVIMENTONEGRONOBRASIL

    As ltimas dcadas no Brasil tm assistido a tenazes discusses acadmicas sobre

    racismo, identidade nacional e identidade tnica. A etnicidade um dos temas da agendacontempornea do Estado brasileiro, que tem levado, com suas aes polticas, a chamada

    questo racial para os principais foros de debate no Brasil. Esse conjunto de aes tem

    como ponto de inflexo a participao brasileira na Conferncia da ONU contra o Racismo de

    Durban, na frica do Sul, em 2001, que trouxe tona uma ampla discusso sobre o racismo.

    Um dos principais pontos de controvrsia gira em torno do que alguns intelectuais

    denominam de racializao das relaes sociais e do discurso poltico antirracista no Brasil,

    o uso com vis poltico do conceito de raa . No alvorecer dos anos 2000, a discusso

    acadmica no Brasil sobre racismo ps a nu o embate entre os intelectuais chamados

    racialistas e os no-racialistas (COSTA, 2006; HOFBAUER, 2006).

    A corrente intelectual racialista, de carter mais sociolgico, tende a validar o uso

    desse conceito, por entender que a raa, a despeito de no ter existncia biolgica, continua a

    ter existncia na vida social e, mais importante, como critrio de adscrio e discriminao

    racial. Comungam dessa perspectiva autores como Antonio Sergio Alfredo Guimares e

    Carlos Hasenbalg, bem como intelectuais ligados ao Movimento Negro, como Kabenguele

    Munanga. Nessa viso, as desigualdades advindas da estrutura racista da sociedade brasileira

    somente poderiam ser aferidas atravs de dados da realidade social, dividida que estaria por

    assimetrias raciais. H a defesa de uma polarizao, poltica e analtica, entre brancos e

    negros, com vistas eliso das iniquidades sociais.

    Por outro lado, so muitas as obras de intelectuais que se opem a essa racializao

    contempornea da sociedade brasileira e de seus paradigmas de interpretao, levada a cabo

    pelo Movimento Negro e assumida pelo Estado brasileiro como agenda pblica nacional.

    Esses intelectuais, por vezes referidos como

    no-racialistas (COSTA, 2006), entendem que

    o uso do conceito de raa seria problemtico no contexto histrico brasileiro, marcado pelo

    hibridismo e infenso que seria este ao estabelecimento da rigidez conceitual da raa e seus

    desdobramentos tericos, polticos e sociais.

    Autores imbudos de uma viso mais antropolgica, como Roberto DaMatta, Ivonne

    Maggie e Peter Fry, tendem a no descartar a mitologia da democracia racial brasileira, pois,

    mesmo consideradas suas insuficincias empricas, seria um dado importante para o

    entendimento da especificidade do racismo brasileiro e de seu combate.

    Esse embate intelectual traz tona uma nova discusso sobre identidade nacional e

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    racismo. A temtica relaes raciais , vista sob o prisma da nacionalidade, expediente

    fundamental para pensar a histria brasileira no que se refere relao entre os referentes

    discursivos da identidade nacional e da identidade tnica , dado que a histria republicana

    brasileira se constitui sob o marco da mestiagem, tal como lemos em Casa Grande &

    Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933. Trata-se da decantada democracia racial imputada a

    Freyre , a tese de que no haveria racismo no Brasil, que se torna imagem oficial justamente

    em um perodo em que a nao tenta se constituir a partir de um discurso de unidade cultural,

    poltica e racial, durante o perodo varguista, na dcada de 1930. Essa imagem de uma

    sociedade racialmente harmnica hoje motivo de um profundo questionamento.

    O presente captulo analisa a histria da relao entre a ideia de raa e as ideias de

    nao

    ,

    identidade nacional e

    nacionalismo

    no discurso poltico do Movimento Negro

    brasileiro contemporneo. Vamos localizar certos pontos de contato entre essas ideias,

    analisando a produo intelectual do Movimento Negro, como o Jornal do MNU, o jornal

    Afro-Latino-Amrica, a Carta de Princpios do MNU, entre outros. Tal operao

    historiogrfica importante no sentido de que, no contexto da Conferncia de Durban, essas

    ideias se entrecruzam e so problematizadas, sob configuraes discursivas novas. Busca-se

    explorar a relao entre raa e nao a partir de dois pontos principais: a luta poltica do

    Movimento Negro como tensionamento da identidade nacional, a partir da reafirmao da raa como instrumento poltico, com o surgimento do Movimento Negro Unificado, no

    final dos anos 1970; e a relao entre as chamadas influncias externas , com a construo

    da raa antirracista pelo Movimento Negro. Finalmente, a partir da discusso, faz-se uma

    recenso de algumas possibilidades analticas da perspectiva terica do Atlntico Negro .

    1.1IDENTIDADE NACIONAL,MESTIAGEM E RACISMO NO BRASIL NO SCULO XX

    Foi no contexto do final da Ditadura Militar no Brasil, dentro do processo deredemocratizao no final dos anos 1970, que se viu a formao de um Movimento Negro de

    base poltica racializada e que se contrapunha identidade nacional hegemnica. Em 1978,

    em So Paulo, surge o Movimento Negro Unificado, que ter imensa importncia na luta

    antirracista no Brasil contemporneo (HOFBAUER, 2006; PEREIRA, 2013). A existncia de

    um Movimento Negro organizado implicava rediscutir um pas que at aquele momento se

    pensava como uma democracia racial , suposta e teoricamente imune aos problemas do

    racismo, do preconceito e da discriminao com base na cor ou raa , e que alardeava essa

    imagem pblica no mbito interno e pelo mundo afora.

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    A organizao poltica negra desse perodo pusera em xeque os fundamentos da

    identidade nacional brasileira, a saber, a positividade do mito das trs raas formadoras da

    coeso identitria nacional e o carter democrtico das relaes entre os diferentes grupos

    tnicos que compunham o caldeiro sociocultural brasileiro. Atravs desse novo ativismo,

    com forte carter contestador e reivindicativo, inspirado em novas perspectivas de protesto,

    dentro do mbito mais geral das mobilizaes de movimentos sociais no perodo da distenso

    da Ditadura Militar, o MNU ir inaugurar um momento de fissura em um dos cnones mais

    bem-assentados da cultura poltica nacional: o antirracismo e a harmonia racial ,

    elementos fundacionais da histria e cultura brasileiras.

    A histria do Movimento Negro contemporneo deve ser pensada, necessariamente,

    em relao aos cnones formadores da identidade nacional, do ponto de vista tnico-racial.

    Esses dizem respeito ao amlgama tnico que se formatou na histria brasileira em torno da

    miscigenao racial e da fuso cultural entre o branco, o negro e o ndio esse em menor

    medida. A discusso sobre a identidade nacional acompanha, pelo menos desde a dcada de

    1840 do sculo XIX quando Von Martius, em 1840, em famoso texto, sugere que se escreva

    a histria do Brasil a partir das trs raas a temtica da miscigenao, da mestiagem, do

    hibridismo, ancorada na centralidade do negro como elemento problematizador. A figura

    histrica do negro, tanto negativa quanto positivamente, , assim, pilar central ao redor dadiscusso da identidade brasileira, ora como dficit, como em Nina Rodrigues e Slvio

    Romero, ora como potencialidade civilizatria, perspectiva presente em Gilberto Freyre.

    Com o fim da escravido e a mudana no statusjurdico do escravo, surge o problema

    da mo de obra e da nova condio do negro como cidado. O Estado brasileiro, para debelar

    tambm essa questo, decide incentivar, no final do sculo XIX, a imigrao de origem

    europeia para suprir a demanda de mo-de-obra, principalmente no Sudeste. A desirabilidade

    tnica para esse processo imigratrio tinha carter eugnico/racista; a opo da maior parte daintelectualidade e da classe poltica era pelo branqueamento, operando uma viso otimista da

    mestiagem no sentido de branquear progressivamente a populao. Injetava-se o elemento

    racial que purificaria a raa brasileira e destilaria esse purismo em novos marcos

    civilizacionais (MARX, 1998; SILVA, 2012; SKIDMORE, 1976). O branqueamento,

    especificidade do racismo brasileiro (GUIMARES, 1999), seria parte do processo de

    construo da democracia racial , pelo seu uso como suporte ideolgico das relaes de

    poder patrimonial que se estabeleceram e se firmaram no pas (HOFBAUER, 2006)6.

    6Para uma anlise aprofundada sobre o

    branqueamento , conferir: HOFBAUER, Andreas. Uma histria debranqueamento ou o negro em questo. So Paulo: Editora da UNESP, 2006.

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    No processo de consolidao do Estado-nao republicano, a mestiagem, em tons de

    assimilao e incluso, ser erigida caracterstica-mor da identidade e cultura nacionais7. Esse

    processo se d de forma mais acabada a partir do contexto poltico do governo de Getlio

    Vargas, nos anos 1930, quando o nacionalismo a tnica poltica e o correlato esforo de

    unidade congrega as estruturas e as engrenagens sociais para a construo de um Brasil

    moderno e a questo racial vai fazer parte dessa construo (SILVA, 2007).

    Essa modernidade brasileira imaginada far uso de manifestaes culturais negras para

    a construo do edifcio tnico, como, por exemplo, o samba, o carnaval e a capoeira. Esse

    arranjo poltico cristalizou-se no discurso da democracia racial , que pressupunha, a partir da

    mestiagem, a igualdade entre os grupos tnicos e a no existncia de conflitos raciais no

    Brasil. Para Mozart Linhares da Silva, a

    democracia racial

    visava construir um amlgama

    nacional que viabilizasse no s uma noo de homogeneidade nacional no conflituada, nem

    mesmo de classe, mas acentuasse a ideia de povo unificado [...] (2007, p. 55)8. Foi criada

    toda uma mitologia da negao do racismo, que se tornou a marca identitria do Brasil. Esse

    discurso assumiu grande fora de convencimento, e entranhou-se de tal maneira no mbito

    intelectual, poltico, no cotidiano, no senso comum, que levantar a bandeira antirracista no

    Brasil era at mesmo temeroso do ponto de vista da opinio pblica, podendo receber a pecha

    de

    racista quem ousasse questionar a situao social do negro ou aventar a hiptese daexistncia de racismo no Brasil (GUIMARES, 1999; NASCIMENTO, 1978 e 1982)9.

    7A mestiagem tem longo percurso na histria intelectual brasileira, remontando pelo menos primeira metadedo sculo XIX. Sobre essa discusso, deveras ampla e profusa, conferir: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindoa mestiagem no Brasil: Identidade Nacional Versus Identidade Negra. Petrpolis: Ed. Vozes, 1999; SILVA,Mozart Linhares da. Educao, etnicidade e preconceito no Brasil. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007.8A rigor, a ideia do Brasil como paraso racial remonta pelo menos ao sculo XIX, com desdobramentos at aprimeira metade do sculo XX, antes, portanto do discurso da

    democracia racial gestado no contexto dos anos1930. Por exemplo, o movimento abolicionista no Brasil se nutria da comparao entre paraso e inferno(Brasil/Estados Unidos) para sua legitimao, e muitos negros norte-americanos consideravam o Brasil dentro

    dessa ideia de paraso racial. Conferir AZEVEDO, Clia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos eBrasil, uma histria comparada (sculo XIX). So Paulo: Annablume, 2003; e DOMINGUES, Petrnio. A visitade um afro-americano ao paraso racial.Revista de Histria, So Paulo, n. 155, p. 161-181, dez. 2006.9Tal foi o alcance desse discurso que ele foi incorporado mesmo por militantes negros histricos, como Abdiasdo Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e editor do jornal Quilombo, que, na dcada de1950, comungava da democracia racial. O jornal Quilombo tinha uma seo chamada justamente

    Democraciaracial , e ningum menos que Gilberto Freyre colaborou para esse peridico (Conferir NASCIMENTO, 2003).Abdias diz o seguinte, em 1950:

    Observamos que a larga miscigenao praticada como imperativo denossaformao histrica, desde o incio da colonizao do Brasil, est se transformando, por inspirao e imposiodas ltimas conquistas da biologia, da antropologia e da sociologia, numa bem-delineada doutrina de democraciaracial, a servir de lio e modelo para outros povos de formao tnica complexa, conforme o nosso caso.

    (Apud GUIMARES, 2001, p. 138-9). Anos mais tarde, todavia, por conta da militncia poltica no contexto daDitadura Militar, Abdias exilou-se nos Estados Unidos. Sua posio sobre a questo racial iria mudarradicalmente nas dcadas seguintes. Em 1980, afirma:

    O supremacismo branco no Brasil criou instrumentos dedominao racial muito sutis e sofisticados para mascarar esse processo genocida. O mais efetivo deles seconstitui no mito da democracia racial

    (NASCIMENTO, 1982, p. 28).

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    A obra de Gilberto Freyre, tendo como referncia principal o livro Casa-Grande &

    Senzala, de 1933, ser lida como matriz intelectual dessa ideia, dada a nfase do autor na

    mestiagem como essncia da brasilidade e da incluso do negro como um elemento

    estruturante da identidade nacional. Etnografia histrica baseada em ampla documentao e

    em uma anlise antropolgica que pretendida dissociar raa e cultura, Casa-Grande &

    Senzalaexalta a propenso histrica do elemento colonizador portugus para a miscibilidade,

    tendncia essa que, aliada s condies histricas de convivncia intertnica no Brasil-

    Colnia, como a economia aucareira, o escravismo e o patriarcalismo, teriam produzido uma

    sociedade miscigenada, tnica e culturalmente.

    O fio analtico que perpassa a narrativa encontra-se na ideia de equilbrio de

    antagonismos , caracterstica da sociedade colonial de fazer com que os mltiplos

    antagonismos, como portugus/africano, branco/negro, senhor/escravo, fossem amainados e

    se equilibrassem, no mbito da convivncia, da relao, do contato e do trnsito de alteridade

    entre a Casa-Grande e a senzala conceitos esses entendidos como metforas sociais. A

    despeito do carter inovador da anlise, e tambm dos elementos problemticos da abordagem

    freyreana em Casa-Grande & Senzala, como o edulcorar da escravido, o antissemitismo e a

    distino analtica entre raa e cultura no se fazer de todo, a tese da mestiagem freyreana

    foi usada para a construo do novo senso de nacionalidade e coeso social a partir de Vargas. No h, todavia, em Casa Grande & Senzala, qualquer referncia ao conceito de

    democracia racial . Freyre s ir se referir ao conceito na dcada de 1970. Para Guimares,

    Gilberto Freyre no pode ser responsabilizado integralmente, nem pelas idias nem pelo seu

    rtulo; ainda que fosse o mais brilhante defensor da democracia racial , evitou, no mais das

    vezes, nome-la (2001, p. 148). Mesmo assim, ser imputada a Freyre a pecha de idelogo

    da democracia racial , perspectiva que se tornou quase um cnone no Brasil. Essa imputao

    tornar-se- corrente e ser assimilada pelo Movimento Negro e seus intelectuais como Abdiasdo Nascimento, entre outros, a partir dos anos 1970. As teses centrais de Casa-Grande &

    Senzala, obra eivada de controvrsia, complexidade e ambiguidade, seriam mais seriamente

    contrapostas por novas perspectivas de pesquisa nas dcadas seguintes10.

    10A partir dos anos 1960, Freyre envereda no elogio do colonialismo portugus na frica. A ditadura salazaristausou do prestgio internacional do pernambucano para legitimar a presena colonial lusa. Freyre desenvolveu oconceito do luso-tropicalismo, a suposta tendncia do colonizador portugus para a miscibilidade e a tolernciaraciais. Na dcada de 1960, tambm, o Mestre de Apipucos defender posturas polticas conservadoras, emconluio com o ambiente da Ditadura Militar. No contexto da crtica sistemtica a democracia racial , que seinicia nos anos 1950, em mbito acadmico, e nos anos 1970, como a emergncia do Movimento Negro, Casa-Grande & Senzala ser reinterpretada luz, tambm, das posies polticas do autor. Para uma anlise sobre ahistria deste livro, conferir: ARAJO, Ricardo Benzaquen de.Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obrade Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

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    O primeiro questionamento sistemtico sobre a democracia racial e a obra de Freyre

    no Brasil adveio, no plano intelectual, da srie de estudos sobre a situao racial brasileira

    patrocinada pela UNESCO na dcada de 1950. Esse rgo das Naes Unidas estava

    empenhado, no ps-guerra, na busca de respostas frente aos horrores perpetrados em nome da

    raa , sendo o Holocausto nazista o paroxismo de tal processo. O Brasil era visto, nessa

    poca, como um exemplo de sociedade que havia conseguido superar a questo do

    preconceito de raa . Vigorava a ideia de um paraso racial, de um lugar dono de

    excepcionalidade no trato das relaes intertnicas (MAIO, 2000).

    Assim, importantes estudos foram realizados em vrias cidades brasileiras, como os de

    Luiz de Aguiar Costa Pinto, O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade

    em Mudana (1953), Florestan Fernandes e Roger Bastide, Relaes Raciais entre Negros e

    Brancos em So Paulo (1955), Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, Cor e

    mobilidade social em Florianpolis (1960), entre outros (MAIO, 2000). De forma geral,

    baseados em extensa pesquisa de campo e anlises refinadas, esses estudos demonstraram a

    inexistncia de padres sociais que demonstrassem relaes raciais igualitrias e

    suavizadas, como propugnava o credo corrente. Esses estudos inauguraram uma tradio mais

    propriamente cientfica e sociolgica sobre a questo racial no Brasil11.

    Essa tradio sociolgica mencionada, que teve no Projeto UNESCO um ponto deimpulso, plasmou-se na figura intelectual de Florestan Fernandes como sua forma mais

    acabada e influente. O livro A Integrao do Negro na Sociedade de Classes (1965) foi a

    primeira tese mais abrangente e minuciosa a contrapor-se ao mito da democracia racial e

    perspectiva freyreana. A partir de uma abordagem histrico-sociolgica, Florestan analisa os

    dilemas da insero dos negros na ordem capitalista e competitiva, no mbito do processo de

    transio do escravismo para o trabalho assalariado. Matiza essa anlise sob a relao entre

    cor e classe social, propondo que a situao de anomia social dos negros devia-se ao arcasmode estruturas sociais herdadas da escravido. Florestan nutre, assim, uma viso otimista de

    que a ordem competitiva do capitalismo poderia ser um meio de integrao dos negros na

    sociedade de classes. Nas palavras do autor,

    Tomando-se a rede de relaes raciais como ela se apresenta em nossos dias, poderiaparecer que a desigualdade econmica, social e poltica, existente entre o

    negro eo

    branco , fosse fruto do preconceito de cor e da discriminao racial. A anlisehistrico-sociolgica patenteia, porm, que esses mecanismos possuem outrafuno: a de manter a distncia social e o padro correspondente de isolamentoscio-cultural, conservados em bloco pela simples perpetuao indefinida de

    11Conferir: PEREIRA, Cludio Luiz; SANSONE, Livio (Orgs.). Projeto UNESCO no Brasil: textos crticos.Salvador: EDUFBA, 2007.

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    estruturas parciais arcaicas [...] [a desigualdade] foi herdada, como parte de nossasdificuldades em superar os padres de relaes raciais inerentes ordem socialescravocrata e senhorial (1965, p. 193).

    Note-se a nfase de Florestan na perpetuao das estruturas arcaicas da ordem

    escravista, bem como no uso de conceitos polarizados de negro e branco , ainda que

    raa no seja um conceito fundamental para o autor. A democracia racial seria um

    mecanismo utilizado pelas elites dirigentes para manter o processo de dominao social e

    racial, legando para o negro a responsabilidade de sua desgraa social, isentando o branco

    de responsabilidade social e moral perante a situao do negro e criando uma conscincia

    falsa da realidade social brasileira (1965 p. 199. Itlico no original). Tendia, assim, a

    promover a perpetuao, em bloco, de relaes e processos de dominao que concentravam

    o poder nas mos dos mencionados crculos dirigentes da

    raa branca

    , como sucedera no

    recente passado escravista (p. 205), minando, assim, os benefcios que a ordem de classes

    poderia trazer para a resoluo das iniquidades em relao aos negros. Ecoando (em parte) as

    teses de Fernandes, Michael Hanchard considera a democracia racial como

    [...] um processo de hegemonia racial [que] neutralizou efetivamente a identificaoracial entre os no brancos [...] essa forma de hegemonia, atravs de processos desocializao que fomentam a discriminao racial ao mesmo tempo que negam suaexistncia, contribui para a reproduo das desigualdades sociais entre brancos e nobrancos, promovendo, simultaneamente, uma falsa premissa de igualdade racialentre eles (2001, p. 20-21).

    A viso de Hanchard da democracia racial como ideologia que inibe a identificao

    racial estava presente j em Florestan, mas essa interpretao se estende a muitos outros

    autores, como Clvis Moura, que a considera como parte de mecanismos ideolgicos de

    barragem aos diversos segmentos discriminados (1988, p. 62), ou Abdias do Nascimento,

    quando afirma que [...] a democracia racial funciona num nvel terico e prtico,

    fornecendo as justificaes da contnua e sistemtica opresso e misria das massas negras

    (1982, p. 29). A crtica da

    democracia racial

    foi o locus terico a partir do qual o

    Movimento Negro se articulou, nos final da dcada de 1970, provocando uma inflexo

    epistmica importante na histria brasileira.

    1.1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO (1978)

    Algumas formas de organizao poltica negra j haviam existido no Brasil. No ps-

    abolio, inmeras associaes culturais, carnavalescas, esportivas, entre outras, se formaram

    no Brasil. Na dcada de 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB) surge como um importantepolo aglutinador das questes dos negros, concentrando suas aes nas principais cidades do

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    Brasil, principalmente nos estados de So Paulo e Rio de Janeiro, mas com ramificaes em

    outras cidades, como Recife, Salvador e Porto Alegre (DOMINGUES, 2007). As aes da

    FNB eram vrias: atividades culturais, recreativas, atuao em jornais da imprensa negra etc.

    Para a FNB, no havia uma preocupao em afirmar a identidade negra como um

    elemento de diferena e faz-la pilar de uma poltica antirracista declarada, contrapondo-se

    aos cnones da mestiagem e da identidade nacional. No deixava de denunciar o racismo e o

    preconceito em relao aos negros, mas, por outro lado, sucumbia ao discurso corrente da

    democracia racial , propugnando uma perspectiva assimilacionista, no colocando em xeque

    a nacionalidade racialmente harmnica , fazendo um esforo para, ao contrrio, inserir o

    negro brasileiro como cidado na nao. A FNB tambm estava sujeita aos ditames,

    socialmente compartilhados, da ideologia do branqueamentocomo modelo social, cultural e

    esttico no Brasil daquele perodo. A ditadura do Estado Novo extinguir a FNB em 1937,

    que resta, contudo, como uma das maiores organizaes negras brasileiras do sculo XX12.

    Nas dcadas de 1940-50, realizada uma srie de congressos sobre temas dos negros

    ou dos afro-brasileiros . Essa distino necessria, pois os primeiros eventos sobre a

    questo no Brasil so os Congressos Afro-brasileiros, sendo o primeiro realizado no Recife,

    em 1934, e o segundo em Salvador, em 1937. Esses congressos tendem a no serem

    considerados como representativos da luta negra no Brasil, posto terem sido organizados soba aura intelectual de Gilberto Freyre e do culturalismo e tambm por serem acadmicos e

    reificarem o negro como objeto de pesquisa. Na opinio de Nascimento (1982 [1967], p. 82),

    nesses congressos o negro entrava naqueles certames como o micrbio sob o olho do

    microscpio . Em 1944, fundado o Teatro Experimental do Negro (TEN), centrado na

    figura de Abdias do Nascimento, que realizou inmeras atividades de cunho principalmente

    cultural. Sob os auspcios do TEN, de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Roger

    Bastide, entre outros, so realizadas as Convenes Nacionais do Negro, em So Paulo em1945 e no Rio de Janeiro em 1946; em 1949, tambm no Rio de Janeiro, realizada a

    Conferncia Nacional do Negro. Em 1950, tem lugar nessa mesma cidade o I Congresso do

    Negro Brasileiro, envolvendo uma gama muito grande de intelectuais e controvrsias13. Em

    1958, acontece ainda o Primeiro Congresso Nacional do Negro, em Porto Alegre14.

    12Sobre a Frente Negra Brasileira, conferir: DOMINGUES, Petrnio. A insurgncia de bano: A histria daFrente Negra Brasileira (1931-1937). So Paulo: FFLCH-USP, 2005 (Tese de Doutorado).13Os documentos e temrio desse congresso esto compilados na obra organizada por Abdias do Nascimento, Onegro revoltado, de 1982.14No h aqui a pretenso de desenvolver em pormenor as peculiaridades de cada um desses eventos. So tidosaqui como representativos de discusses em curso na poca e que serviro tambm de base, mais tarde, para afundao do Movimento Negro Unificado, que ser um tipo de organizao poltica feita sob bases terico-

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    Os debates que se observavam nesses congressos demonstram como a questo tnica e

    do negro era importante na poca, apesar dos brados de democracia racial . O golpe de 1964,

    porm, iniciou um perodo de silenciamento sobre esse tema. Amordaar o protesto e

    encampar ainda mais fortemente a

    democracia racial como imagem da nao. Nessa

    mordaa, estavam tambm os movimentos e intelectuais ligados questo racial, alguns

    compulsoriamente aposentados, como Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos; outros foram

    para o exlio, como Abdias do Nascimento, que retornaria ao Brasil no final dos anos 1970

    (PEREIRA, 2013). O perodo da Ditadura Militar, apesar de estender a represso em relao a

    esta questo, assistiu ao aparecimento de uma srie de organizaes antirracistas de carter

    cultural e acadmico que dariam origem, alguns anos mais tarde, ao MNU. Deste modo, tem-

    se o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), fundado em So Paulo em 1972; a Sociedade

    de Intercmbio Brasil-frica (SINBA), fundada no Rio de Janeiro em 1974; o Instituto de

    Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), fundado no Rio de Janeiro em 1975; entre outras

    entidades (ALBERTI; PEREIRA, 2007). Esse conjunto de organizaes far parte da

    movimentao poltica que ensejar a criao doMovimento Negro Unificado, em 1978, em

    So Paulo. A lenta abertura democrtica ser palco da emergncia de vrios movimentos

    sociais, entre eles o Movimento Negro. Andreas Hofbauer considera que

    Com o incio da

    abertura no pas, a militncia poltica, inclusive a negra,comeava a olhar mais alm. Cresceu o interesse por movimentos sociais queatuavam em outros pases [...] A confluncia de vrios acontecimentos histricos,bem como a existncia de diversas iniciativas de teor poltico-reivindicatrio maisou menos isoladas (cujos promotores buscavam a canalizao de seus esforos numanova organizao), propiciaria a criao do MNU (2006, p. 377).

    O MNU ser o mais importante Movimento Negro brasileiro, em termos do

    significado da luta enquanto questionadora da identidade nacional, dando incio ao

    antirracismo contemporneo, partindo de premissas substancialmente diferentes daquelas da

    FNB e dos congressos do negro realizados nas dcadas anteriores. De pretenso nacional, serum movimento reivindicativo contra a discriminao racial, calcado em uma poltica de

    identidade definida pela diferena negra, base de uma radicalizao do discurso antirracista.

    Na opinio de Amlcar Arajo Pereira (2013), o MNU inaugura o Movimento Negro

    contemporneo no Brasil. O seguinte editorial do jornalAfro-Latino-Amrica, documentando

    o ato de protesto em So Paulo e a criao do MNU, em julho de 1978, demonstra a

    importncia desse momento:

    polticas distintas, ainda que com fundo comum. Nesse sentido, conferir SANTOS, Arilson Gomes.A formaode osis: dos movimentos frentenegrinos ao primeiro congresso nacional do negro em Porto Alegre RS (1931-1958). Porto Alegre: Edipucrs/PPG-Histria, 2008 (Dissertao).

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    Mais de mil negros nas ruas! Sem dvida, uma grande vitria para o MovimentoNegro. Isto demonstra como j afirmamos o nimo da Comunidade. [...] OMovimento Unificado Contra a Discriminao Racial deu um grande salto poltico,ao nvel da sociedade como um todo: faz-se respeitar e aumentou seu respaldo junto Comunidade. [...] O movimento deveria reunir todos os setores da Comunidade

    Negra, independente da ideologia, contra um inimigo comum, a DiscriminaoRacial (n. 23, jul./ago.1978, p. 32).

    O MNU tinha inspirao poltica de esquerda sendo que muitos dos militantes

    participavam de partidos polticos da oposio ao Regime Militar, e alguns foram fundadores

    do PT (ALBERTI; PEREIRA, 2007) e parte de seus preceitos tericos foi instrumentalizada

    pelas lutas polticas antirracistas internacionais, principalmente pelos Movimentos dos

    Direitos Civis nos Estados Unidos e pelos processos de descolonizao na frica

    lusfona15.A Carta aberta populao, escrita quando da fundao do MNU, informa sobre

    algumas de suas propostas e do potencial problematizador desse novo movimento em relao

    aos marcos fundamentais da identidade racial democrtica brasileira:

    Hoje estamos na rua numa campanha de denncia! Campanha contra adiscriminao racial, contra a opresso policial, contra o desemprego, os sub-emprego e a marginalizao. Estamos nas ruas para denunciar as pssimas condiesde vida da Comunidade Negra [...] Convidamos os setores democrticos dasociedade para que nos apoiem, criando condies necessrias para criar umaverdadeira democracia racial (MNU apud PEREIRA, 2010, p. 164)16.

    Observe-se que a denncia, nesse excerto, articula-se com a afirmao do

    pertencimento politizado Comunidade Negra , pensada agora como um elemento parte

    no corpo social, no sentido das agruras e dos desfavorecimentos histricos sofridos pelos

    negros, fatores estes sedimentados nas desigualdades entre brancos e negros. A atuao do

    MNU imps um profundo questionamento sobre a identidade nacional, levando a um

    processo de ressignificao identitria, ainda que, nesse perodo, o alcance da luta poltica do

    MNU fique restrito ao meio militante e aos crculos acadmicos. O MNU se alinhava, poltica

    e retoricamente, com os preceitos da esquerda socialista e com movimentos antirracistas

    internacionais, absorvendo a perspectiva da revoluo, da libertao e da conscincia da

    opresso e da prpria identidade racializada. O seguinte trecho sintomtico:

    Nesse sentido, nossa luta extrapola o mbito nacional, pois o Racismo se manifesta anvel internacional, onde haja negros ou no, e tem contornos bem definidos namanuteno das desigualdades sociais em todas as partes do mundo. Acaracterizao poltica e o Programa de Ao do MOVIMENTO NEGROUNIFICADO fundamentam o nosso apoio e solidariedade aos movimentos negros eorganizaes progressistas do mundo inteiro (MNU, 1988, p. 42).

    15Voltaremos a essa temtica em seo ulterior desse captulo.16O apuddessa e de outras citaes justifica-se pelo fato de que boa parte desses documentos do MNU estar, ouem poder de particulares, ou em arquivos aos quais no tenho acesso. Utiliza-se, portanto, de citao da citao.

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    No mesmo perodo, outro fator importante para o processo de desconstruo da

    democracia racial , alm da ao militante, foi a concomitante publicao de dois estudos

    sociolgicos de matriz estruturalista no final da dcada de 1970, o livro Discriminao e

    Desigualdades Raciais no Brasil(1979), do socilogo Carlos Hasenbalg, e o artigo O preo

    da cor: diferenas raciais na distribuio de renda no Brasil(1980), do tambm socilogo

    Nelson do Valle Silva. Utilizando-se de ampla base estatstica (clivada analiticamente na

    raa ), esses autores relacionam de forma incisiva a discriminao com as desigualdades

    raciais, demonstrando como a dificuldade de mobilidade socioeconmica estava assentada em

    prticas racistas. Partindo de tais premissas, Nelson do Valle Silva diz que [...] no se pode

    atribuir toda a responsabilidade pelas atuais diferenas de nvel socioeconmico entre brancos

    deum lado e de negros e mulatos por outro desigualdade sofrida durante um remoto passado

    escravista (1988, p. 162-163).

    Trata-se de uma clara ruptura com Florestan Fernandes e sua nfase no passado como

    explicao para as desigualdades raciais. Carlos Hasenbalg, por sua vez, assevera que, ao

    contrrio, a nfase na explicao deve ser dada s relaes estruturais e ao intercmbio

    desigual entre brancos e no-brancos (1979, p. 198). Essas obras inauguram uma nova fase

    nos estudos sobre relaes raciais no Brasil, e iro instrumentalizar o Movimento Negro a

    partir das dcadas seguintes, o qual far amplo uso desses dados, pressionando, inclusive, paraa incluso da categoria "raa" no censo de 198017.

    A nao brasileira, que at esse momento se pensava racialmente harmnica, ser

    rasurada pelo discurso do Movimento Negro Unificado, que conseguiu colocar em discusso,

    mesmo que de forma tmida, ao longo da dcada seguinte, sensveis mudanas na percepo

    identitria dos brasileiros no tocante cor, raa e racismo. Mexia-se em um ponto

    extremamente sensvel da nacionalidade, qual seja, o papel do negro e da mestiagem nessa

    identidade nacional imaginada18

    . A nao saa da Ditadura Militar rasurada, tendo que lidarcom uma demanda poltica racial at ento inexistente.

    1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO E A PERSPECTIVA DA RAA

    A constituio da luta poltica do MNU no Brasil foi acompanhada pela afirmao do

    paradigma da raa como marcador identitrio e da conscientizao racial como parmetro

    17O prprio IBGE passou a tratar institucionalmente do tema a partir desse momento. Conferir: OLIVEIRA, L.H., PORCARO, R. M., ARAJO, T. C. N. O lugar do negro na fora de trabalho. Rio de Janeiro: IBGE, 1985.18 Refere-se aqui ao conceito de nacionalismo de Benedict Anderson. Conferir: ANDERSON, Benedict.Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e a expanso do nacionalismo. So Paulo: Companhia dasLetras, 2008.

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    poltico-normativo correlato. A ideia de raa parte essencial do esforo de entendimento

    das questes de cunho tnico-racial no Brasil, sendo parte da discusso e tambm dos

    problemas. Talvez seja a questo mais central, o miolo epistmico em torno do qual so

    discutidos limites e potencialidades tericas de uma gama de conceitos sobre o antirracismo.

    Como parte da estratgia de luta, o MNU adotou a perspectiva discursiva da raa

    como potencialidade contestatria, utilizando, porm, da mesma categoria pela qual o estigma

    do racismo se faz sentir sobre o negro. A ideia tornou-se central para o MNU e passou, a

    partir da, a assumir importncia na agenda poltica dos militantes do Movimento Negro

    contemporneo. No apenas o MNU assumiu a raa como categoria poltica, mas tambm

    certas perspectivas de anlise acadmica os chamados Estudos Raciais tambm passaram

    a utilizar o conceito para aferies de carter sociolgico das diferenas de oportunidade

    oriundas dos fatores raa /cor no Brasil, como os estudos de Hasenbalg (1979) e Valle Silva

    (1980). A ideia de raa aparece em publicaes do MNU, como no trecho abaixo:

    Para ns negros, Raa a ferramenta que rene, e d sentido aos elementos datrajetria histrica dos povos descendentes de africanos, e ao que resulta dapermanente tenso com os interesses da outra Raa. Alm disto, o conceito nicopara dar conta da dimenso existencial da pessoa (Jornal Nacional do MNU apudHOFBAUER, 2006, p. 400).

    O conceito tem o carter de ferramenta poltica, e vincula-se a claramente a uma

    ontologia racial de matriz biodeterminista, baseada em uma perspectiva histrica vincada ao

    pertencimento a uma herana e identidade africanas. Assim, em texto de 1978, o MNU define

    o negro como todo aquele que apresenta na cor da pele, na face ou nos cabelos as

    caractersticas da Raa Negra (MNU apud MOURA, 1983 [1978], p. 160). Relatos do livro

    Histrias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC(2007) do uma dimenso

    do alcance que a ideia de pertencimento racial obteve entre os militantes do Movimento

    Negro. Sueli Carneiro comenta que uma coisa a conscincia racial. Isso voc traz da

    famlia, quando existe nela. E isso era uma coisa que sempre foi muito martelada dentro da

    minha educao. ; Joseanes Lima dos Santos afirma que As meninas da minha casa sempre

    repetiam isso: eu sou negrinha com muito orgulho. E com isso aconteceu o qu? Aconteceu

    que isso afirmou a nossa identidade racial. ; Hdio Silva Jnior, por sua vez, diz que em

    relao questo racial, meu pai tinha um discurso que depois eu localizei com frequncia em

    relatos de amigos e de militantes. Era um discurso que tinha um componente racial implcito.

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    (apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 39, 46, 47)19. Ainda sobre essa questo, Abdias do

    Nascimento teoriza sobre raa , em 1967, da seguinte forma:

    Ele [o negro] sofre, discriminado. Por causa da cor da sua pele que os outros vem.

    No adianta a reiterao terica de que cientificamente no existe raa inferior ouraa superior. O que vale o conceito popular e social de raa, cuja pedra de toque,no Brasil, se fundamenta pior do que na declarada luta de raas numenvergonhado preconceito ornamental, em camuflada perverso esttica (1982[1967], p. 101).

    Para alm da no cientificidade da raa , o que contaria seria a definio social de

    raa , suas implicaes nas relaes sociais. A maioria das anlises pautadas na raa deixa

    ou tenta deixar clara a desvinculao do conceito de seu sentido biolgico, referindo-se,

    ao contrrio, chamada raa social , termo cunhado por Charles Wagley nos anos 1950.

    Nega-se o carter biolgico, desprovido de legitimidade cientfica, mas se reconhece, por

    outro lado, que no se pode excluir das possibilidades de anlise um conceito consagrado

    socialmente , presente no senso comum racista. Partindo dessa premissa, assumida pelo

    Movimento Negro, o reconhecimento de uma conscincia racial , do pertencimento a uma

    raa , por parte dos negros, parte dessa estratgia de poder contra a discriminao racial.

    A ideia de antirracismo tem o significado, sob essa perspectiva terica, de assumir

    uma identidade , uma percepo de si racializada , bem como do Outroda luta antirracista,

    no caso, os no negros; brancos, poder-se-ia dizer. Contudo, mais do que reconstruir, esse

    processo efetivamente constri identidades sociais. Assim, um leque de percepes

    identitrias baseadas na ideia de raa torna-se o resultado sociolgico e ao mesmo tempo o

    objeto de um campo de saber sobre o antirracismo. O pensamento antirracista, nessa veia

    essencialista, racializa os processos sociais de identificao. Antonio Srgio Guimares,

    mas tambm outros autores, grande parte pertencente aos quadros intelectuais do Movimento

    Negro, como Abdias do Nascimento e Kabenguele Munanga, partilham de semelhante

    premissa. Para esses autores, a

    raa haveria de ter serventia terica em sentido negativo, nointuito de instrumentalizar a luta antirracista com uma definio poltica de raa .

    O que parece ser importante apontar, no sentido da chamada racializao da

    identidade negra pelo MNU a partir do final dos anos 1970, o fato de que esse

    recrudescimento da raa parece coadunar, discursivamente, com os processos histricos

    daquilo que se convenciona chamar de construo da nao , ou construo da identidade

    nacional. O que define uma nao do ponto de vista conceitual objeto de controvrsia, na

    19 A recorrncia da ideia de

    raa pode ser observada continuamente em documentos oficiais tocantes squestes do racismo, como, por exemplo, a Lei 10.639 (2003) e o Estatuto da Igualdade Racial (2010).

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    literatura sobre o assunto. Contudo, certos elementos comuns parecem estar presentes na

    construo da nao moderna, como histria, territrio, lngua, etnia etc.

    Uma relao possvel de ser feita, no sentido da presente anlise, diz respeito ao

    carter primordialista do revival racial assumido pelo Movimento Negro no momento da

    afirmao da raa . A valorizao do negro, atravs da raa , parece ser dar pelo que

    Anthony Smith denomina de primordialismo tnico , a tendncia a considerar a identidade

    tnica como tendo existncia primordial, essencial, fora do tempo (SMITH, 1997). O carter

    de retorno existencial a uma comunidade tnica via identidade racial como parece ser o

    caso, demonstra que narrativas tnicas e as polticas de reconhecimento so articuladas a

    partir de elementos muito semelhantes do que antes foram, no sculo XIX, utilizados na

    construo do Estado-nao

    (SILVA, 2010, s. p.), podendo ser considerados

    apropriaes,

    hoje, das prprias dinmicas do chamado Volksgeist, do esprito nacional (2010, s. p.). Nesse

    sentido preciso, Homi Bhabha considera que

    [...] a fronteira que assegura os limites coesos da nao ocidental pode facilmentetransformar-se imperceptivelmente em uma liminaridade interna contenciosa, queoferece um lugar do qual se fala sobre e se fala como a minoria, o exilado, omarginal, o emergente (1998, p. 211).

    As contranarrativas da nao brasileira, como a desconstruo da democracia racial

    pelo Movimento Negro e a identidade negra como elemento disruptivo dentro da identidadenacional, transformam-se, pela racializao, em narrativas que reforam o suporte discursivo

    daquilo que se quer negar e desconstruir, o racismo. A assuno da raa na linguagem

    poltica antirracista dota de novas camadas de significao o edifcio terico sobre

    identidades raciais fixadas, que so, por vezes, chanceladas por decises polticas em

    mbito internacional, e, em certas situaes, como no caso brasileiro contemporneo, com as

    aes afirmativas, ratificadas no plano nacional.

    Destarte, o carter provisrio, instvel e tensional das ideias, perde, no plano dasestruturas de atribuio de sentido, as possibilidades de quebra de paradigmas de

    representao. Mantm-se, nesse caso, o vetor representacional do racismo, a raa . Alm

    disso, mesmo uma perspectiva declaradamente simptica ao nacionalismo pode ser

    encontrada na produo intelectual do Movimento Negro20. No livro Manifesto Anti-Racista,

    fruto daI Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial, de 2005, pode-se ler:

    20O nacionalismo referenciado mesmo como metodologia de anlise social , como pode ser observado nolivro Pan-africanismo na Amrica do Sul, de Elisa Larkin Nascimento, de 1981. Nas palavras da autora,

    onacionalismo africano e afro-americano como mtodo de anlise social a nica disciplina que trata terica epragmaticamente das realidades sofridas por minorias ou maiorias dominadas nas sociedades industriaisavanadas (p. 52).

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    Os sentimentos nacionalistas e patriticos no perodo contemporneo soabsolutamente justificados e compreensveis, significando, no perodo da sociedadede massas, um modo das pessoas, transcendendo uma postura estritamenteindividualista e hedonista, vincularem-se moral e sentimentalmente comunidadeampliada da qual se sentem afetivamente ligadas, por motivos de nascena, origem

    familiar, tradies culturais ou por outro motivo reportado histria de suas vidas(PAIXO, 2006, p. 64).

    Ora, como possvel conciliar tal elogio ao nacionalismo tendo em conta a estreita

    relao entre nacionalismo e racismo, expressa, por exemplo, na memria histrica do

    colonialismo europeu, ou ainda da associao entre nacionalismo, propagada e as polticas de

    limpeza racial levadas a cabo no contexto da Alemanha nazista? O nacionalismo, mesmo no

    ps-guerra, continua a ser uma fonte de conflitos de base tnica, como, por exemplo, na

    questo dos Blcs, o genocdio de Ruanda, entre outros conflitos. Alm disso, como veremos

    no terceiro captulo, o nacionalismo, de muitas formas, est implicado em boa parte dos

    problemas sobre os quais tratou a Conferncia de Durban, em 2001.

    O apelo comunidade de pertencimento, expresso na citao, demonstra a fora que

    a referencialidade nacional possui para esse discurso antirracista, e como esses processos

    implicam relaes de poder que pem em jogo, ao articularem-se em uma agenda antirracista

    ampliada e unificada, como no MNU, concepes poltico-intelectuais aparentemente

    antagnicas, tais como nacionalismo e antirracismo. V-se por a que a raa , articulada a

    uma retrica poltica de apelo e referncia discursiva nacional, continua sendo um elemento

    fundamental para pensar os processos de identificao social no Brasil contemporneo. Na

    prxima sub-seo vamos analisar algumas das chamadas influncias externas que

    contriburam para a formao do Movimento Negro brasileiro contemporneo.

    1.3INFLUNCIAS EXTERNAS E O ATLNTICONEGRO

    1.3.1NACIONALISMO AFRICANO E A RETRICA NACIONALISTA

    Outro aspecto possvel de ser analisado para pensar a relao entre o Movimento

    Negro brasileiro e a questo nacional a recepo e a influncia, a partir dos anos 1970, das

    lutas de descolonizao na frica, especialmente na frica lusfona. As lutas de libertao

    nacional em Angola, Moambique, Guin-Bissau, entre outras, parecem ter instrumentalizado

    o Movimento Negro na perspectiva da construo de um sentido comum de pertencimento

    calcado em uma luta. Est presente, em diversas publicaes do Movimento Negro, uma

    expressa preocupao com o que se passava em frica nos anos 1970-80, sendo a influncia

    das lutas africanas referida por muitos militantes (ALBERTI; PEREIRA, 2007).

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    No bojo desse processo de ateno com o que se passava alhures, entram ou, se

    reafirmam, conceitos caros ao discurso antirracista brasileiro, como libertao nacional ,

    povo negro , frica , entre outros. A perspectiva da libertao do povo negro se faz

    presente, como demonstra, por exemplo, o seguinte trecho escrito pelo militante Joo Ado de

    Oliveira, no jornalAfro-Latino-Amrica:

    A comunidade negra organizada a nvel nacional atravs do MNUCDR agoraresponde a qualquer ato racista que as classes dominantes e a sociedade alienada porestas fizer ao negro. Ao mesmo tempo em que aponta os caminhos na luta pelaconquista da liberdade. [...] Hoje o Movimento nacional, mas a alienao sofridapelos negros foi muito forte e h muitos irmos que ainda no entendem a luta deseu povo, se deixa levar pelas vrias formas de dominao que os brancos poderososnos impuseram (n. 24, 1978, p. 41).

    Percebe-se a presena de uma linguagem de matriz terica marxista em tal excerto. Aligao dos militantes que fundaram o MNU com grupos de esquerda, nesse perodo, era

    muito forte (HOFBAUER, 2006; PEREIRA, 2008). O jornal Afro-Latino-Amrica estava

    ligado a um desses grupos, a Convergncia Socialista, e muitos de seus membros partilhavam

    da viso revolucionria da luta do negro no Brasil, procurando depreender a luta antirracista

    da luta de classe mais geral, ou, contudo, do contrrio, tentando construir uma plataforma

    poltica racial independente da perspectiva revolucionria de classe . Termos como

    Classes dominantes ,

    alienao

    ,

    dominao

    , so comuns no contexto internacional delutas de libertao, pela difuso do pensamento marxista, que se concretizaria nos regimes

    socialistas de Moambique, Angola e Guin-Bissau. Na Guin-Bissau, se sobressai a figura

    intelectual e poltica de Amlcar Cabral, lder da independncia e criador do PAIGC (Partido

    Africano pela Independncia de Guin-Bissau e Cabo Verde), que ter imensa influncia no

    contexto africano e portugus e, por conseguinte, tambm no Movimento Negro no Brasil.

    Para Amlcar Cabral, a luta nacionalista est ligada luta de classes, sendo que, nesse

    sentido, a orientao poltica seguida por Guin e Cabo Verde seria a do socialismo-

    revolucionrio contra a dominao colonialista. A luta nacional um processo de luta

    simblica tambm pela histria do povo oprimido, direito negado pelo colonizador. Para

    Cabral, o objetivo da libertao nacional , portanto, a reconquista desse direito, usurpado

    pelo domnio imperialista, ou seja: a libertao do processo de desenvolvimento das foras

    produtivas nacionais (apud PEREIRA, p. 09-10). S pode haver libertao, portanto, se as

    foras produtivas so tambm libertas do domnio estrangeiro. A libertao tambm um ato

    de cultura. Cabral concebe a cultura como o momento da vida em sociedade da qual resultam

    a atividade poltica e econmica, as dinmicas de expresso entre os indivduos, entre o

    Homem e a natureza e entre indivduos, grupos sociais e classes. Ficar apartado de uma

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    vinculao entre cultura e raa ; na realidade, no dar proeminncia raa como

    elemento de luta cultural, pois no se pode pretender que existam culturas continentais ou

    raciais. Isso porque, como a histria, a cultura se desenvolve num processo desigual, ao nvel

    de um continente, de uma raa

    ou mesmo de uma sociedade (CABRAL, 1974, p. 15).

    Sobre a libertao como um ato de cultura, Amlcar Cabral pontua o seguinte:

    Um povo que se liberta do domnio estrangeiro no ser culturalmente livre a noser que, sem complexos e sem subestimar a importncia dos contributos positivos dacultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da suaprpria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto asinfluncias nocivas como qualquer espcie de subordinao a culturas estrangeiras.Vemos assim que, se o domnio imperialista tem como necessidade vital praticar aopresso cultural, a libertao nacional , necessariamente, um acto de cultura. Combase no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertao como

    a expresso poltica organizada da cultura do povo em luta (apud PEREIRA, 2004,p. 09-10).

    No Brasil, a influncia de Amlcar Cabral se d, principalmente, por duas vias: pelos

    intelectuais ligados ao Movimento Negro e por Paulo Freire. No Movimento negro,

    intelectuais como Abdias do Nascimento e Amauri Mendes Pereira, entre outros,

    frequentemente citam Cabral em seus escritos. A recepo parece girar mais sobre a figura de

    Cabral como lder revolucionrio do que propriamente suas ideias, que so parcamente

    discutidas. Isso pode se dever a quase inexistente distribuio dos livros de Cabral no Brasil,

    dos quais no h nenhuma edio brasileira.

    De qualquer forma, h muita similaridade entre as ideias de Cabral sobre a libertao

    nacional como ato de cultura e as do Movimento Negro, quando propugna aliar o projeto de

    emancipao do negro brasileiro valorizao dos elementos histrico-culturais

    caractersticos desse, como a msica, a dana, a capoeira etc.

    Por outro lado, a leitura que Paulo Freire far de Cabral mais pormenorizada. Focar

    sua anlise no papel que Cabral atribua questo de se partir da realidade da prpria terra

    para construir as perspectivas de libertao, o que influenciar a obra de Freire,

    principalmente a Pedagogia do Oprimido (1974). Paulo Freire tambm um dos principais

    leitores de outro intelectual revolucionrio importante no contexto africano e nas lutas de

    libertao do chamado Terceiro Mundo: o martinicano Frantz Fanon. A obra de Fanon

    influenciar, assim como Cabral, a Pedagogia do Oprimido (GUIMARES, 2008). Para alm

    da obra freireana, as consideraes de Fanon sobre a cultura nacional so interessantes para

    pensar a questo do nacionalismo em sua relao com o Movimento Negro no Brasil.

    A recepo de Fanon no Brasil, apesar de ser, nas palavras de Antnio SrgioGuimares, morna, dar-se- principalmente atravs dos militantes do Movimento Negro,

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    apesar da leitura de Paulo Freire (GUIMARES, 2008). Sua obra mais difundida aqui ser Os

    Condenados da Terra, cuja primeira edio brasileira data de 1968. Sobre Fanon h inmeras

    referncias na histria intelectual do Movimento Negro (ALBERTI; PEREIRA, 2007). Tendo

    como pano de fundo a luta anticolonial na Arglia, Os Condenados da Terraaborda a relao

    entre o colonizador e o colonizado, e a potencializao da violncia como instrumento na luta

    contra o colonialismo e o racismo. Trata das massas, dos camponeses, do partido

    revolucionrio e da pequena burguesia na formao da conscincia nacional. O nacionalismo

    visto como um instrumento poltico das massas oprimidas. Para Fanon, a nao no existe

    em parte alguma seno num programa elaborado por uma direo revolucionria e retomado

    lucidamente e com entusiasmo pelas massas (1968, p. 166). O nacionalismo deve se tornar

    explcito, enriquecido e aprofundado, consubstanciado em conscincia poltica e social:

    A expresso viva da nao a conscincia em movimento da totalidade do povo. aprxis coerente e esclarecida dos homens e mulheres. A construo coletiva de umdestino a aceitao de uma responsabilidade na dimenso da histria. [...] Ogoverno nacional, se quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo, paraos deserdados e pelos deserdados [...], desenvolver um programa humano porquehabitado por homens conscientes e soberanos (F