Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
-
Upload
rafael-petry-trapp -
Category
Documents
-
view
15 -
download
0
Transcript of Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
1/114
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO
Rafael Petry Trapp
A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)
Porto Alegre
2013
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
2/114
Rafael Petry Trapp
A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)
Dissertao apresentada como requisito parcialpara a obteno do grau de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Histria daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas daPontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul.
Orientadora: Dr Ruth Maria Chitt Gauer
Porto Alegre
2014
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
3/114
Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria:Cntia Borges Greff - CRB 10/1437
T774c Trapp, Rafael PetryA conferncia de Durban e o antirracismo no Brasil
(1978-2001). / Rafael Petry Trapp. Porto Alegre, 2014.114 f. : il.
Dissertao (Mestrado em Histria) Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul PUCRS.
Orientao: Profa. Dra. Ruth Maria Chitt Gauer.
1. Negros Brasil Histria. 2. Movimento NegroBrasileiro. 3. Conferncia de Durban. 4. Racismo/
Antirracismo. 5. Transnacionalidade. I. Gauer, RuthMaria Chitt. II. Ttulo.
CDD 981301.451042
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
4/114
Rafael Petry Trapp
A CONFERNCIA DE DURBAN E O ANTIRRACISMO NO BRASIL (1978-2001)
Dissertao apresentada como requisito parcialpara a obteno do grau de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Histria daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas daPontifcia Universidade Catlica do RioGrande do Sul.
BANCA EXAMINADORA
Dissertao aprovada Com louvor pela banca examinadora, no dia 25/02/2014.
______________________________________________________
Professora Dr Ruth Maria Chitt Gauer PUCRS (Orientadora)
______________________________________________________
Professor Dr. Mozart Linhares da Silva UNISC
______________________________________________________
Professor Dr. Maral de Menezes Paredes PUCRS
Porto Alegre
2014
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
5/114
Para minha me Rejane e meu pai Vladimir,
por terem me instigado desde cedo, porcaminhos distintos, ao gosto pela leitura.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
6/114
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, e em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Programa de Ps-
Graduao em Histria da PUCRS, por ter me acolhido institucionalmente, e ao CNPQ, porter fornecido a bolsa de estudos que possibilitou o pleno desenvolvimento de minha pesquisa.
Agradeo professora Ruth Gauer, por ter aceitado orientar minha proposta de
pesquisa e por ter confiado no meu trabalho. Pela grande inteligncia e erudio, segurana na
orientao transmitida e pelo refinado olhar intelectual, fonte de admirao.
Aos docentes e funcionrios do PPG, em especial ao professor Maral de Menezes
Paredes, que muito admiro, cujas aulas e interlocuo ajudaram para essa dissertao tomasse
corpo, e secretria Carla Carvalho, pelos grandes prstimos.Aos professores que participaram do Exame de Qualificao e fizeram importantes
consideraes, Charles Monteiro, Maria Lcia Bastos Kern e especialmente ao professor
Mozart Linhares da Silva, manancial de inspirao e a quem muito devo intelectualmente.
Aos funcionrios dos porto-alegrenses Grelhados Veneza, Padaria Roma e
restaurantes universitrios da PUCRS e da UFRGS, pois, de acordo com certo pensador, no
h sabedoria de barriga vazia .
Ao Mrcio Andr de Oliveira dos Santos, por ter gentilmente me enviado uma verso
de sua dissertao ainda em 2011. Espero que o texto que aqui vai esteja a contento.
Aos ilustrssimos colegas e amigos das Cincias Criminais da PUCRS, Cuco, Gustavo
e tambm ao Thiago, que possibilitou uma ponte area entre Porto Alegre e Uberlndia.
Aos colegas do Curso Fbrica de Ideias, realizado na incrvel cidade de Salvador da
Bahia, em especial aos baianos Juliede, Jasialine e Marcos, pela hospitalidade e receptividade,
ao Jurandir e Andr, por terem me cedido fontes para a pesquisa, e carioca Anglica, pela
alegria e por ter aberto sua casa no Rio de Janeiro para esse gacho desavisado.
Agradeo Casa do Estudante Santacruzense e seus moradores, pela acolhida em
Porto Alegre. Em especial ao colega de quarto Bruno Segatto, que se tornou um amigo. Esse
espao compartilhado respirou muita(s) histria(s), regada(s) a bons cafs e boas risadas.
Carla Batista, pelos vrios cafs, trocas intelectuais e aprendizado mtuo.
Sou grato Tas Campelo, pelos dilogos intelectuais, pela leitura do material da
minha Qualificao, pela preciosa indicao do Fbrica de Ideias e ainda por outras razes.
H coisas que se escusa falar e outras que falam por si s. Apenas no deixo de enfatizar
minha admirao e meu contentamento sentido. vontade estejam os historiadores do futuro
que se dispuserem a escrever Histria atravs desses pequenos relatos de agradecimento.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
7/114
Aos amigos historiadores da PUCRS, pelos inmeros cafs, dilogos e trocas diversas.
Eles so muitos, e tenho medo de esquecer algum nome. Entre eles esto Maria do Amparo,
Thiago Orben, Camila Eberhardt, Monia Wazlawoski, Tatiane Bartmann, Geandra Munaretto
e Mateus Skolaude. Danielle Viegas foi companheira virtual na madrugada e paladina dos
encantos de Canoas. Com Diego Dal Bosco muito aprendi, em inmeros cafs e outras
ocasies. Sua presena marcante me inspirou em vrios momentos.
Ao glorioso magnata Jos Augusto Miranda, Visconde das Palmas, que dotou a
palavra amizade de muitos significados para mim. De sua convivncia recebi um presente
amigo adicional, a pernambucana Louisiana Meireles. angolista Priscila Weber, amizade
latente que cresceu e se consumou em Porto Alegre. Quero t-los e lev-los sempre comigo.
Finalmente, e mais importante, quero agradecer a Rosana Jardim Candeloro, por ter
me despertado com o perdo da comparao , assim como Kant em relao a Hume, de
meu sono dogmtico . A ela essa dissertao poderia tambm ser dedicada, pois foi a partir
de sua convivncia que a vida intelectual e a vida acadmica se descortinaram como prazeres
para o esprito, bem como possibilidade profissional consubstanciada j nessa dissertao.
Tudo o que a ela devo no encontra nesse mundo fenomnico formas adequadas ou
suficientes para se expressar, tamanha a amplitude da dvida e o enfado em relao pobreza relativa da linguagem para diz-la. Esse agradecimento especial mostra do meu
afeto e da minha mais profunda gratido.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
8/114
Em certo sentido, tentar classificar pessoasnum pequeno nmero de raas como tentarclassificar livros numa biblioteca; pode-se usaruma nica propriedade o tamanho, digamos, mas o que se obter uma classificao
intil; ou pode-se usar um sistema maiscomplexo de critrios interligados, e ento seobter uma boa dose de arbitrariedade.
Ningum, nem mesmo o mais compulsivo dosbibliotecrios, supe que as classificaes dos
livros reflitam fatos profundos sobre estes.
(Kwame Anthony Appiah)
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
9/114
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo analisar a relao entre o Movimento Negro
brasileiro e a III Conferncia das Naes Unidas contra o Racismo, realizada em 2001 nacidade de Durban, na frica do Sul. Procura-se entender como se tornou possvel que oMovimento Negro e a delegao brasileira pudessem sustentar uma posio polticaconsensual em Durban sobre racismo/antirracismo. Privilegiando um enfoque terico-metodolgico centrado na anlise transnacional, o trabalho se debrua sobre a histriacontempornea do Movimento Negro no Brasil, desde a fundao do Movimento NegroUnificado, em 1978, at a participao brasileira em Durban. A racializao da luta poltica eo dilogo institucional estabelecido entre o Movimento e o Estado brasileiro, durante ogoverno de Fernando Henrique Cardoso, processos que se do nos anos 1990, foram centraisna produo dos consensos para Durban. O contexto transnacional de ao da Conferncia,entretanto, aqui entendido como ponto de inflexo, tanto histrica quanto poltica. A
natureza da relao entre o Movimento Negro e a Conferncia evidencia a importncia queesta assume na guarida discursiva ao multiculturalismo e s aes afirmativas no Brasil,relao mediada pela transnacionalidade. Considera-se, finalmente, que a Conferncia deDurban conforma um novo mapa poltico para o antirracismo global, com a emergncia denovos atores no cenrio internacional. Alm disso, as implicaes da Conferncia na histriado antirracismo no Brasil ensejam olhares mais atentos s especificidades histricas dasesferas locais, articulados, por sua vez, a contextos transnacionais de ao.
Palavras-chave: Movimento Negro brasileiro; Conferncia de Durban; racismo/antirracismo;transnacionalidade.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
10/114
ABSTRACT
This research aims to analyze the relationship between Brazilian Black Movement and
the United Nations Third Conference against Racism, held in 2001 in the city of Durban,South Africa. We seek to understand how it became possible that the Black Movement andthe Brazilian delegation could have supported a consensual political position in Durban onracism/antiracism. Favoring a theoric and methodological approach focused on transnationalanalysis, the work focuses on the contemporary history of the Black Movement in Brazil,since the foundation of the Unified Black Movement, in 1978, until the Brazilian participationin Durban. The racialization of political struggle and the institutional dialogue between theMovement and the Brazilian State, during the government of Fernando Henrique Cardoso,
processes that take place in the 1990s, were central in the production of consensus for Durban.The transnational context of action of the Conference, however, is understood here as a pointof inflection, both historical and political. The nature of the relation between the Black
Movement and the Conference highlights the importance the latter assumes in the discoursivereception of multiculturalism and affirmative action in Brazil, relation mediated bytransnationality. Finally, it is considered that Durban Conference forms a new political mapfor global anti-racism, with the emergence of new actors in the international scene. Moreover,the implications of the Conference in the history of anti-racism in Brazil enable morewatchful eyes to the historical specificities of local spheres, articulated, in turn, withtransnational contexts of action.
Keywords: Brazilian Black Movement; Durban Conference; racism/anti-racism;transnationality.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
11/114
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
FCP Fundao Cultural Palmares
FHC Fernando Henrique Cardoso
FNB Frente Negra Brasileira
GTI Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
MNU Movimento Negro Unificado
ONG Organizao No-Governamental
ONU Organizao das Naes Unidas
SEDH Secretaria de Estado de Direitos Humanos
SEPPIR Secretaria Especial de Promoo de Polticas de Igualdade Racial
TEN Teatro Experimental do Negro
UNEGRO Unio dos Negros pela Igualdade
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Cincia e a Cultura
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
12/114
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................. 11
1 RAA , NAO EOMOVIMENTONEGRONOBRASIL............................. 171.1IDENTIDADE NACIONAL,MESTIAGEM E RACISMO NO BRASIL NO SCULO XX ............. 18
1.1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO (1978)................................................................. 23
1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO E A PERSPECTIVA DA RAA ................................. 27
1.3INFLUNCIAS EXTERNAS E O ATLNTICONEGRO.......................................................... 31
1.3.1NACIONALISMO AFRICANO E A RETRICA NACIONALISTA.......................................... 31
1.3.2ANGRITUDEE O ANTIRRACISMO NORTEAMERICANO................................................ 34
1.4OATLNTICONEGRO.................................................................................................... 392OANTIRRACISMOEOESTADONOBRASILDOSANOS1990......................... 44
2.1ESTADO E RELAES RACIAIS NO BRASIL..................................................................... 45
2.2OMOVIMENTONEGRO DO CENTENRIO DA ABOLIO MARCHA ZUMBI DOSPALMARES (1988-1995) ...................................................................................................... 51
2.3OGOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E A QUESTO RACIAL............................ 60
2.4MOVIMENTONEGRO/ANTIRRACISMO E ANLISE TRANSNACIONAL NO BRASIL............. 66
3ACONFERNCIADEDURBANEOMOVIMENTONEGRONOBRASILCONTEMPORNEO....................................................................................................... 73
3.1ASNAES UNIDAS E O RACISMO/ANTIRRACISMO NO SCULO XX .............................. 75
3.2OMOVIMENTONEGRO BRASILEIRO E O PROCESSO PREPARATRIO PARA ACONFERNCIA MUNDIAL CONTRA O RACISMO DE DURBAN................................................ 80
3.2.1OS DEBATES DOS SEMINRIOS REGIONAIS PREPARATRIOS (2000) ......................... 85
3.2.2OMOVIMENTONEGRO E AS CONFERNCIAS PREPARATRIAS PARA DURBAN:SANTIAGO,GENEBRA,RIO DE JANEIRO (2000-2001) .......................................................... 88
3.3UM CAMPO DE TENSES:A III CONFERNCIA DASNAES UNIDAS CONTRA ORACISMO,DISCRIMINAO RACIAL,XENOFOBIA E INTOLERNCIA CORRELATA DE DURBAN(2001).................................................................................................................................. 93
3.4ACONFERNCIA DE DURBAN E O MOVIMENTONEGRO BRASILEIRO:NOVASCONFIGURAES DO ANTIRRACISMO NA CONTEMPORANEIDADE......................................... 98
4CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 103
5REFERNCIAS ........................................................................................................... 106
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
13/114
11
INTRODUO
Em 1983, Carlos Calero Rodrigues, embaixador brasileiro na II Conferncia Mundial
das Naes Unidas Contra o Racismo, em Genebra, referia-se, em seu discurso,
[...]harmonia racial existente no Brasil e ao desenvolvimento progressivo de uma sociedade no-
racial em que o fator racial se mostre irrelevante nas inter-relaes sociais 1. Em 2001, naIII
Conferncia das Naes Unidas contra o Racismo, realizada em Durban, na frica do Sul, o
embaixador Gilberto Vergne Saboia, chefe da delegao brasileira na Conferncia, diz que
haveria de se inserir a comunidade negra progressivamente nos segmentos superiores da
educao, do emprego, da cultura [...] para que o Brasil seja o que ele realmente , ou seja,
[...] uma sociedade multirracial onde os negros e afro-descendentes [so] praticamente metadeda populao 2 . Alguma transformao histrica muito significativa tivera acontecido. O
entendimento dessa mudana, cujo paroxismo parece estar no contexto da Conferncia de
Durban, o centro dessa dissertao, cuja trama histrica multifacetada e complexa.
Do ponto de vista da questo racial, o Brasil cultivou durante mais de meio sculo, dos
anos 1930 at meados da dcada de 1990, uma imagem de um pas moldado historicamente
pela miscigenao racial, onde imperava a tolerncia entre as raas 3. O racismo, aqui, no
teria vez. Tendo como pano de fundo histrico os anos 1930, com Getlio Vargas, essaimagem espraiou-se nos mais variados mbitos: na propaganda estatal, na imprensa, na
literatura, na msica, na televiso; mais do que isso, estabeleceu-se firmemente na cultura e
no imaginrio popular brasileiro e invadiu as mais amplas camadas do tecido social. Era o
discurso da chamada democracia racial . Essa imagem permaneceu por dcadas sem
questionamentos mais contundentes. Esses, contudo, no tardaram a se fazer presentes.
Na dcada de 1950, uma srie de estudos acadmicos sobre relaes raciais no Brasil,
patrocinada pela UNESCO, da qual participaram intelectuais importantes, como Roger
Bastide e Florestan Fernandes, demonstraram a inconsistncia emprica da democracia
racial . Ao contrrio do credo corrente, havia sim racismo e desigualdades de ordem racial no
Brasil. Do ponto de vista poltico, no ano de 1978 que surge na cidade de So Paulo o
Movimento Negro Unificado (MNU), que ter papel importante na desconstruo do discurso
1Citado em Albuquerque (2008, p. 79).2Entrevista disponvel em Moura e Barreto (2001, p. 15).3Nesta dissertao, o conceito de raa vai entre aspas. Concordamos que raa uma construo histrico-social que no dispe de qualquer fundamento biolgico. Mas preciso ir alm. Este posicionamento terico-textual procura ter claro que o conceito deve ser desnaturalizado e posto sob suspeio epistmica, algo que asaspas podem, de alguma sorte, indicar. O mesmo raciocnio se aplica ao conceito de
democracia racial
, epoderia se estender a outros. Pensar o racismo e combat-lo tambm desestabilizar significados.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
14/114
12
da democracia racial e na organizao de um campo de lutas polticas para o negro no
Brasil. O Movimento Negro passaria por mudanas significativas nas dcadas seguintes, que
teriam profundo impacto na cena poltica do antirracismo no Brasil.
Nos anos 1990, o Movimento Negro estabelece canais de dilogo com o Estado
brasileiro, atravs do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Ao mesmo tempo, um
processo de transnacionalizao do Movimento constitui-se nesse mesmo perodo. no meio
do caminho da relao entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro nos anos 1990,
mediado pela influncia de contextos transnacionais de ao e construo do discurso poltico,
que se podem encontrar subsdios para uma compreenso de como se operaram certas
transformaes histricas no campo do racismo/antirracismo no Brasil em um espao de
poucas dcadas. O contexto transnacional sobre o qual vamos nos debruar representado
aqui pelos eventos, aes e discursos das Naes Unidas (ONU) sobre o racismo e seu
combate no sculo XX, especialmente a Conferncia de Durban, em 2001.
A importncia histrica de Durban enfatizada por todos os atores sociais e
institucionais envolvidos com a discusso sobre racismo e antirracismo no Brasil
contemporneo. A podemos citar, obviamente, o Movimento Negro, suas ONGs e seus
militantes, mas no s; tambm o Estado (tanto nas esferas federal/estadual/municipal quanto
no mbito do Executivo/Legislativo/Judicirio e tambm a diplomacia), a Academia(principalmente nas Cincias Sociais), a imprensa (em veculos como a revista Veja e os
jornais Folha de So Pauloe O Globo), entre outros atores, como veremos.
As opinies sobre o processo preparatrio e a Conferncia em si variam ainda que a
maioria das avaliaes seja positiva, no sentido dos ganhos polticos que o Movimento Negro
e o antirracismo de forma mais geral obtiveram no ps-Durban , refletindo algumas das
tenses existentes no campo da discusso sobre o racismo e suas estratgias de combate no
Brasil contemporneo. Todavia, uma afirmao sobre a qual no recaem dvidas a de que aConferncia trouxe um grande debate pblico sobre o racismo e as desigualdades raciais no
Brasil. Essa discusso ocorreu principalmente em funo das polticas antirracistas que foram
implantadas no ps-Durban. Nesse sentido, o socilogo Srgio Costa considera que,
Para a poltica interna brasileira, a Conferncia de Durban da ONU contra o racismode 2001, representa um importante ponto de inflexo, j que, pela primeira vez,ocorreu um debate de amplitude nacional sobre o racismo, apresentando-se novosdados e argumentos que comprovam, de forma irrefutvel, a discriminao contra osafro-descendentes (2006, p. 150).
O Movimento Negro, praticamente em unssono, considera a Conferncia de Durban
como um marco histrico em sua trajetria, pela amplitude da unio poltica observada no
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
15/114
13
processo preparatrio e pelos avanos em termos de polticas pblicas, com a implementao,
por exemplo, das aes afirmativas nas universidades pblicas e a aprovao da Lei 10.639,
de Ensino e Cultura Africana e Afro-brasileira (2003), durante o Governo Lula (2002-2010),
entre outras conquistas importantes. Assim, para a militante4 Jurema Werneck
a 3 CMR
[Conferncia de Durban] afirmada pelo movimento anti-racista como fundamental para o
processo de alargamento de agendas e de aprofundamento das aes (2005, p. 64). A
militante Edna Roland considera que a Conferncia criou, sem dvida, um espao
extremamente favorvel para a discusso de polticas especficas para as populaes negra e
indgena no Brasil (2001, s. p.). O militante Amauri Mendes Pereira, por sua vez, afirma:
No resta dvida, que a partir da Conferncia Mundial Contra o Racismo e da
adoo de cotas e aes afirmativas e a o socilogo/estudioso das relaesraciais/presidente, Fernando Henrique Cardoso, cumpriu seu papel e na eleio deLula e no governo do Partido dos trabalhadores e de um
arco de esquerda , quefinalmente alguns segmentos mais articulados do Movimento Negro assumiramespaos mais consistentes de poder. E, nesse momento, j no a luta contra oracismo, mas a promoo da igualdade racial! (2008, p. 120).
Entretanto, h opinies menos abonadoras e otimistas. Emitidas de parte de alguns
intelectuais crticos ao processo de racializao do Brasil contemporneo, processo tido
como inspirado (tambm) nas aes afirmativas advindas de Durban, intelectuais como os
antroplogos Ivonne Maggie e Peter Fry (2005) e o professor de geografia da USP DemtrioMagnoli (2009) enfatizam algumas caractersticas problemticas da Conferncia
caractersticas essas que geralmente so minimizadas nas afirmativas ligadas ao Movimento
Negro. Desse modo, Magnoli, notrio opositor das aes afirmativas e persona non grata
para o Movimento Negro, taxativo quando diz que
A Conferncia de Durban, de 2001, situa-se no cruzamento dos campos de fora dasinstituies multilaterais e das fundaes filantrpicas globais. Realizada sob osauspcios das Naes Unidas, na frica do Sul do ps-apartheid e do
Blackempowerment
, a conferncia foi dominada pelas ONGs multiculturalistas e
produziu as bases polticas e jurdicas para uma nova etapa de radicalizao daspolticas racialistas (2008, p. 15).
O autor associa a Conferncia no potencialidade poltica, como o fazem os
militantes do Movimento Negro, mas ao radicalismo e ao racialismo . Veremos adiante se
essa posio se sustenta. A despeito das opinies divergentes, o fato que a Conferncia de
Durban abriu caminho para as aes afirmativas no Brasil. Para a antroploga Laura Lpez,
a partir da Conferncia de Durban, as afro-reparaes emergiram como eixo central na
agenda global contra o racismo como elemento chave da justia social e escala mundial
4Por
militante designamos os indivduos que tm ligao poltica direta com o Movimento Negro brasileiro,participando de suas atividades e representando o mesmo em fruns nacionais e internacionais.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
16/114
14
(2009, p. 23). Essa agenda global tem tambm uma dimenso que transnacional. A
importncia da anlise transnacional sublinhada por Costa, quando afirma que contextos
transnacionais de ao e aqui elegemos a Conferncia de Durban induzem localmente
processos de inovao cultural e social (2006, p. 130). Considerar historicamente a relao
entre a Conferncia de Durban e o Movimento Negro/antirracismo no Brasil implica levar a
srio a dimenso transacional dos processos sociais contemporneos relativos ao antirracismo
e formao da cultura negra em escala global. Ainda para esse autor,
Trata-se de levar em conta o carter ps-nacional dos processos contemporneos, demodo a constatar que as fronteiras nacionais nem sempre demarcam uma unidadeanaltica adequada para a investigao sociolgica numa poca em que os processossociais e culturais, bem como a ao poltica, no encontram mais nas fronteirasnacionais seu limite (COSTA, 2006, p. 15).
O carter ps-nacional e transnacional inerente formao do Movimento negro e do
antirracismo contemporneo no Brasil vai ser parte tambm do horizonte terico-
metodolgico da presente dissertao. Contudo, no estamos sozinhos nessa empreitada de
tematizar a histria da Conferncia de Durban em sua relao com o Movimento Negro e o
antirracismo no Brasil. So dois os principais trabalhos acadmicos de flego de autores
brasileiros que procuraram deslindar essa temtica.
A tese de doutorado de Slvio Albuquerque e Silva, apresentada no Instituto Rio
Branco em 2007(que se tornou o livro Combate ao Racismo em 2008), avana sobre duas
teses: primeiramente, que o [...] processo de Durban representou um divisor de guas na
estratgia internacional de combate ao racismo [...] (2008, p. 25); ainda, busca ressaltar o
papel protagnico e construtivo exercido pela diplomacia brasileira nas negociaes havidas
durante o processo de preparao para a Conferncia e de redao de seu documento final
(2008, p. 25). O foco, contudo, est na histria diplomtica do Brasil em relao ao racismo.
Em que pese o texto copioso e a qualidade da periodizao, faz parca meno histria do
Movimento Negro, tampouco dialoga com as Cincias Sociais no que tange questo racial.
O outro trabalho a dissertao em Cincias Sociais de Marcio Andr de Oliveira dos
Santos,A Persistncia Poltica dos Movimentos Negros Brasileiros: Processo de Mobilizao
3 Conferncia Mundial das Naes Unidas Contra o Racismo, apresentada na UERJ em
2005. O autor visa a analisar o processo de mobilizao dos movimentos negros para a 3
Conferncia Mundial Contra o Racismo e as relaes estabelecidas com o Estado neste
perodo (2005, p. 6). O trabalho de Santos foi o primeiro a lidar com a relao entre o
Movimento Negro e a Conferncia de Durban, e o fez com grande qualidade tanto analtica
quanto emprica. Embora a presente dissertao aborde um tema afinado com o de Santos, se
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
17/114
15
diferencia em alguns pontos, principalmente aqueles referentes abordagem da anlise
transnacional, periodizao mais alargada e ao acesso a fontes publicadas ulteriormente ao
trabalho desse autor (aqui a referncia principal a coletnea de histria oral Histrias do
Movimento Negro no Brasil, de 2007). De qualquer forma, a obra de Santos ser fartamente
citada em vrios momentos ao longo da dissertao, especialmente no ltimo captulo.
Tomando as problemticas histricas e polticas envolvidas na Conferncia em sua
relao com o Movimento Negro e o antirracismo no Brasil, os desafios da anlise
transnacional e os resultados j alcanados por outros trabalhos afinados com a temtica em
questo, como ponto inicial de reflexo, estabelecemos nossos objetivos. Desta forma, a
presente dissertao tem por objetivo analisar a relao entre o Movimento Negro brasileiro
contemporneo e a Conferncia de Durban, problematizando essa relao no mbito mais
geral da histria do Movimento Negro, do antirracismo e da questo racial no Brasil do sculo
XX. Nosso problema de pesquisa se coloca nesses termos: quais foram as condies histricas
de possibilidade que tornaram possvel com que o Movimento Negro e a delegao brasileira
pudessem sustentar uma posio poltica consensual em Durban sobre racismo/antirracismo?
Os marcos temporais compreendidos pela anlise so aqueles que vo de 1978, ano de
fundao do Movimento Negro Unificado, at a Conferncia de Durban, em 2001. Apesar da
periodizao definida, no pretendemos ficar presos a uma diacronia obsedante; mesmo que anoo de tempo histrico seja muito complexa, vamos tomar a histria e sua relao com o
tempo de uma maneira mais fluida e aberta, pois muitas das questes que vamos discutir,
como raa e racismo no Brasil, tm uma trajetria que excede os limites estreitos de nossa
periodizao. Assim, o recorte responde a um conjunto de questionamentos bastante
especficos ao tempo histrico em que emergem e no qual so pensados como problema.
As fontes que iremos utilizar so muitas. Como o objeto amplo, assim tambm a
amplitude das fontes que utilizaremos. Em primeiro lugar, esto aquelas relativas aoMovimento Negro de uma forma geral5. Analisaremos desde os estatutos, jornais e teses de
congressos do Movimento Negro Unificado dos anos 1970, passando pelos diversos materiais
escritos produzidos pelo Movimento em momentos-chave como o Centenrio da Abolio
(1988), a Marcha Zumbi dos Palmares (1995) e a prpria Conferncia de Durban (2001), at
5Entendemos nessa dissertao o conceito de Movimento Negro como o conjunto dos movimentos sociaisantirracistas contemporneos perpassados por discursos comuns de luta poltica e pertencimento tnico, calcados,no mais das vezes, na perspectiva de uma identidade negra racializada, que surgiram no Brasil no final da dcadade 1970. O que chamamos Movimento Negro , no singular, bem poderia ser dito movimentos negros , dada aimensa pluralidade de movimentos, entidades, associaes e ONGs negras e/ou antirracistas. Aquiexaminaremos o Movimento Negro Unificado, que a referncia histrica para o antirracismo contemporneo,mas outros poderiam ser os exemplos, como a Unegro, as pastorais negras, entre outros. A escolha metodolgica,aqui, pelo conceito no singular, por uma questo de clareza e organizao textual.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
18/114
16
as obras produzidas por intelectuais ligados ao Movimento Negro na segunda metade do
sculo. Documentos oficiais, como discursos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
os documentos da delegao brasileira na Conferncia de Durban, bem como os textos finais
da referida Conferncia faro parte de nosso escopo documental.
Do ponto de vista terico, este trabalho beneficia-se da anlise transnacional e de
algumas noes das Cincias Sociais, especialmente aquelas relativas ao Ps-Colonialismo,
como os conceitos de Atlntico Negro e dispora . A pesquisa nos levou ao dilogo com
outros campos do saber. Pela interlocuo com contribuies da Sociologia e da Cincia
Poltica, uma caracterstica de nosso enfoque a interdisciplinaridade.
No entanto, se nos fosse exigida uma identificao ainda mais estrita com o campo
disciplinar da Histria, o trabalho poderia ser visto como Histria Poltica, pelo enfoque
poltico da histria do Movimento Negro; Histria Transnacional, pela abordagem terica; ou
mesmo Histria do Tempo Presente, por tratar de questes que esto na ordem do dia na
discusso pblica sobre cidadania, racismo e desigualdades sociais no Brasil.
A dissertao est organizada da seguinte forma: no Captulo 1 analisamos alguns
pontos de contato entre as ideias de raa e nacionalidade na histria intelectual do
Movimento Negro no Brasil, a partir dos anos 1970. Ainda, na ltima sub-seo desse
captulo, passamos em revista algumas possibilidades tericas oriundas dos Estudos Ps-coloniais. No Captulo 2, a anlise est centrada na histria da relao entre o Movimento
Negro e o Estado brasileiro na dcada de 1990. Alm de analisarmos algumas mudanas no
interior do Movimento durante os anos 1990, na ltima parte do captulo faz-se uma
apreciao da pertinncia terica da anlise transnacional para a abordagem do objeto em
questo. Com base nas discusses desses dois captulos, analisaremos, no Captulo 3, o objeto
principal, qual seja, a relao entre o Movimento Negro e a Conferncia de Durban.
Visvamos nos concentrar mais detidamente na participao brasileira na Confernciade Durban em si; todavia, nosso horizonte se alargou. Destarte, o presente texto pode ser lido
tambm como uma pequena histria do Movimento Negro no Brasil contemporneo.
Finalmente, a ttulo de curiosidade geogrfica, a cidade brasileira de Porto Alegre, na qual
este trabalho foi escrito, est, assim como a sul-africana Durban, sob o mesmo Paralelo 30 S.
Que tal auspiciosa coincidncia sirva de inspirao para esta e outras leituras sobre a histria
do Movimento Negro, do antirracismo e da questo racial no Brasil.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
19/114
17
1 RAA , NAO EOMOVIMENTONEGRONOBRASIL
As ltimas dcadas no Brasil tm assistido a tenazes discusses acadmicas sobre
racismo, identidade nacional e identidade tnica. A etnicidade um dos temas da agendacontempornea do Estado brasileiro, que tem levado, com suas aes polticas, a chamada
questo racial para os principais foros de debate no Brasil. Esse conjunto de aes tem
como ponto de inflexo a participao brasileira na Conferncia da ONU contra o Racismo de
Durban, na frica do Sul, em 2001, que trouxe tona uma ampla discusso sobre o racismo.
Um dos principais pontos de controvrsia gira em torno do que alguns intelectuais
denominam de racializao das relaes sociais e do discurso poltico antirracista no Brasil,
o uso com vis poltico do conceito de raa . No alvorecer dos anos 2000, a discusso
acadmica no Brasil sobre racismo ps a nu o embate entre os intelectuais chamados
racialistas e os no-racialistas (COSTA, 2006; HOFBAUER, 2006).
A corrente intelectual racialista, de carter mais sociolgico, tende a validar o uso
desse conceito, por entender que a raa, a despeito de no ter existncia biolgica, continua a
ter existncia na vida social e, mais importante, como critrio de adscrio e discriminao
racial. Comungam dessa perspectiva autores como Antonio Sergio Alfredo Guimares e
Carlos Hasenbalg, bem como intelectuais ligados ao Movimento Negro, como Kabenguele
Munanga. Nessa viso, as desigualdades advindas da estrutura racista da sociedade brasileira
somente poderiam ser aferidas atravs de dados da realidade social, dividida que estaria por
assimetrias raciais. H a defesa de uma polarizao, poltica e analtica, entre brancos e
negros, com vistas eliso das iniquidades sociais.
Por outro lado, so muitas as obras de intelectuais que se opem a essa racializao
contempornea da sociedade brasileira e de seus paradigmas de interpretao, levada a cabo
pelo Movimento Negro e assumida pelo Estado brasileiro como agenda pblica nacional.
Esses intelectuais, por vezes referidos como
no-racialistas (COSTA, 2006), entendem que
o uso do conceito de raa seria problemtico no contexto histrico brasileiro, marcado pelo
hibridismo e infenso que seria este ao estabelecimento da rigidez conceitual da raa e seus
desdobramentos tericos, polticos e sociais.
Autores imbudos de uma viso mais antropolgica, como Roberto DaMatta, Ivonne
Maggie e Peter Fry, tendem a no descartar a mitologia da democracia racial brasileira, pois,
mesmo consideradas suas insuficincias empricas, seria um dado importante para o
entendimento da especificidade do racismo brasileiro e de seu combate.
Esse embate intelectual traz tona uma nova discusso sobre identidade nacional e
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
20/114
18
racismo. A temtica relaes raciais , vista sob o prisma da nacionalidade, expediente
fundamental para pensar a histria brasileira no que se refere relao entre os referentes
discursivos da identidade nacional e da identidade tnica , dado que a histria republicana
brasileira se constitui sob o marco da mestiagem, tal como lemos em Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933. Trata-se da decantada democracia racial imputada a
Freyre , a tese de que no haveria racismo no Brasil, que se torna imagem oficial justamente
em um perodo em que a nao tenta se constituir a partir de um discurso de unidade cultural,
poltica e racial, durante o perodo varguista, na dcada de 1930. Essa imagem de uma
sociedade racialmente harmnica hoje motivo de um profundo questionamento.
O presente captulo analisa a histria da relao entre a ideia de raa e as ideias de
nao
,
identidade nacional e
nacionalismo
no discurso poltico do Movimento Negro
brasileiro contemporneo. Vamos localizar certos pontos de contato entre essas ideias,
analisando a produo intelectual do Movimento Negro, como o Jornal do MNU, o jornal
Afro-Latino-Amrica, a Carta de Princpios do MNU, entre outros. Tal operao
historiogrfica importante no sentido de que, no contexto da Conferncia de Durban, essas
ideias se entrecruzam e so problematizadas, sob configuraes discursivas novas. Busca-se
explorar a relao entre raa e nao a partir de dois pontos principais: a luta poltica do
Movimento Negro como tensionamento da identidade nacional, a partir da reafirmao da raa como instrumento poltico, com o surgimento do Movimento Negro Unificado, no
final dos anos 1970; e a relao entre as chamadas influncias externas , com a construo
da raa antirracista pelo Movimento Negro. Finalmente, a partir da discusso, faz-se uma
recenso de algumas possibilidades analticas da perspectiva terica do Atlntico Negro .
1.1IDENTIDADE NACIONAL,MESTIAGEM E RACISMO NO BRASIL NO SCULO XX
Foi no contexto do final da Ditadura Militar no Brasil, dentro do processo deredemocratizao no final dos anos 1970, que se viu a formao de um Movimento Negro de
base poltica racializada e que se contrapunha identidade nacional hegemnica. Em 1978,
em So Paulo, surge o Movimento Negro Unificado, que ter imensa importncia na luta
antirracista no Brasil contemporneo (HOFBAUER, 2006; PEREIRA, 2013). A existncia de
um Movimento Negro organizado implicava rediscutir um pas que at aquele momento se
pensava como uma democracia racial , suposta e teoricamente imune aos problemas do
racismo, do preconceito e da discriminao com base na cor ou raa , e que alardeava essa
imagem pblica no mbito interno e pelo mundo afora.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
21/114
19
A organizao poltica negra desse perodo pusera em xeque os fundamentos da
identidade nacional brasileira, a saber, a positividade do mito das trs raas formadoras da
coeso identitria nacional e o carter democrtico das relaes entre os diferentes grupos
tnicos que compunham o caldeiro sociocultural brasileiro. Atravs desse novo ativismo,
com forte carter contestador e reivindicativo, inspirado em novas perspectivas de protesto,
dentro do mbito mais geral das mobilizaes de movimentos sociais no perodo da distenso
da Ditadura Militar, o MNU ir inaugurar um momento de fissura em um dos cnones mais
bem-assentados da cultura poltica nacional: o antirracismo e a harmonia racial ,
elementos fundacionais da histria e cultura brasileiras.
A histria do Movimento Negro contemporneo deve ser pensada, necessariamente,
em relao aos cnones formadores da identidade nacional, do ponto de vista tnico-racial.
Esses dizem respeito ao amlgama tnico que se formatou na histria brasileira em torno da
miscigenao racial e da fuso cultural entre o branco, o negro e o ndio esse em menor
medida. A discusso sobre a identidade nacional acompanha, pelo menos desde a dcada de
1840 do sculo XIX quando Von Martius, em 1840, em famoso texto, sugere que se escreva
a histria do Brasil a partir das trs raas a temtica da miscigenao, da mestiagem, do
hibridismo, ancorada na centralidade do negro como elemento problematizador. A figura
histrica do negro, tanto negativa quanto positivamente, , assim, pilar central ao redor dadiscusso da identidade brasileira, ora como dficit, como em Nina Rodrigues e Slvio
Romero, ora como potencialidade civilizatria, perspectiva presente em Gilberto Freyre.
Com o fim da escravido e a mudana no statusjurdico do escravo, surge o problema
da mo de obra e da nova condio do negro como cidado. O Estado brasileiro, para debelar
tambm essa questo, decide incentivar, no final do sculo XIX, a imigrao de origem
europeia para suprir a demanda de mo-de-obra, principalmente no Sudeste. A desirabilidade
tnica para esse processo imigratrio tinha carter eugnico/racista; a opo da maior parte daintelectualidade e da classe poltica era pelo branqueamento, operando uma viso otimista da
mestiagem no sentido de branquear progressivamente a populao. Injetava-se o elemento
racial que purificaria a raa brasileira e destilaria esse purismo em novos marcos
civilizacionais (MARX, 1998; SILVA, 2012; SKIDMORE, 1976). O branqueamento,
especificidade do racismo brasileiro (GUIMARES, 1999), seria parte do processo de
construo da democracia racial , pelo seu uso como suporte ideolgico das relaes de
poder patrimonial que se estabeleceram e se firmaram no pas (HOFBAUER, 2006)6.
6Para uma anlise aprofundada sobre o
branqueamento , conferir: HOFBAUER, Andreas. Uma histria debranqueamento ou o negro em questo. So Paulo: Editora da UNESP, 2006.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
22/114
20
No processo de consolidao do Estado-nao republicano, a mestiagem, em tons de
assimilao e incluso, ser erigida caracterstica-mor da identidade e cultura nacionais7. Esse
processo se d de forma mais acabada a partir do contexto poltico do governo de Getlio
Vargas, nos anos 1930, quando o nacionalismo a tnica poltica e o correlato esforo de
unidade congrega as estruturas e as engrenagens sociais para a construo de um Brasil
moderno e a questo racial vai fazer parte dessa construo (SILVA, 2007).
Essa modernidade brasileira imaginada far uso de manifestaes culturais negras para
a construo do edifcio tnico, como, por exemplo, o samba, o carnaval e a capoeira. Esse
arranjo poltico cristalizou-se no discurso da democracia racial , que pressupunha, a partir da
mestiagem, a igualdade entre os grupos tnicos e a no existncia de conflitos raciais no
Brasil. Para Mozart Linhares da Silva, a
democracia racial
visava construir um amlgama
nacional que viabilizasse no s uma noo de homogeneidade nacional no conflituada, nem
mesmo de classe, mas acentuasse a ideia de povo unificado [...] (2007, p. 55)8. Foi criada
toda uma mitologia da negao do racismo, que se tornou a marca identitria do Brasil. Esse
discurso assumiu grande fora de convencimento, e entranhou-se de tal maneira no mbito
intelectual, poltico, no cotidiano, no senso comum, que levantar a bandeira antirracista no
Brasil era at mesmo temeroso do ponto de vista da opinio pblica, podendo receber a pecha
de
racista quem ousasse questionar a situao social do negro ou aventar a hiptese daexistncia de racismo no Brasil (GUIMARES, 1999; NASCIMENTO, 1978 e 1982)9.
7A mestiagem tem longo percurso na histria intelectual brasileira, remontando pelo menos primeira metadedo sculo XIX. Sobre essa discusso, deveras ampla e profusa, conferir: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindoa mestiagem no Brasil: Identidade Nacional Versus Identidade Negra. Petrpolis: Ed. Vozes, 1999; SILVA,Mozart Linhares da. Educao, etnicidade e preconceito no Brasil. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007.8A rigor, a ideia do Brasil como paraso racial remonta pelo menos ao sculo XIX, com desdobramentos at aprimeira metade do sculo XX, antes, portanto do discurso da
democracia racial gestado no contexto dos anos1930. Por exemplo, o movimento abolicionista no Brasil se nutria da comparao entre paraso e inferno(Brasil/Estados Unidos) para sua legitimao, e muitos negros norte-americanos consideravam o Brasil dentro
dessa ideia de paraso racial. Conferir AZEVEDO, Clia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos eBrasil, uma histria comparada (sculo XIX). So Paulo: Annablume, 2003; e DOMINGUES, Petrnio. A visitade um afro-americano ao paraso racial.Revista de Histria, So Paulo, n. 155, p. 161-181, dez. 2006.9Tal foi o alcance desse discurso que ele foi incorporado mesmo por militantes negros histricos, como Abdiasdo Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e editor do jornal Quilombo, que, na dcada de1950, comungava da democracia racial. O jornal Quilombo tinha uma seo chamada justamente
Democraciaracial , e ningum menos que Gilberto Freyre colaborou para esse peridico (Conferir NASCIMENTO, 2003).Abdias diz o seguinte, em 1950:
Observamos que a larga miscigenao praticada como imperativo denossaformao histrica, desde o incio da colonizao do Brasil, est se transformando, por inspirao e imposiodas ltimas conquistas da biologia, da antropologia e da sociologia, numa bem-delineada doutrina de democraciaracial, a servir de lio e modelo para outros povos de formao tnica complexa, conforme o nosso caso.
(Apud GUIMARES, 2001, p. 138-9). Anos mais tarde, todavia, por conta da militncia poltica no contexto daDitadura Militar, Abdias exilou-se nos Estados Unidos. Sua posio sobre a questo racial iria mudarradicalmente nas dcadas seguintes. Em 1980, afirma:
O supremacismo branco no Brasil criou instrumentos dedominao racial muito sutis e sofisticados para mascarar esse processo genocida. O mais efetivo deles seconstitui no mito da democracia racial
(NASCIMENTO, 1982, p. 28).
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
23/114
21
A obra de Gilberto Freyre, tendo como referncia principal o livro Casa-Grande &
Senzala, de 1933, ser lida como matriz intelectual dessa ideia, dada a nfase do autor na
mestiagem como essncia da brasilidade e da incluso do negro como um elemento
estruturante da identidade nacional. Etnografia histrica baseada em ampla documentao e
em uma anlise antropolgica que pretendida dissociar raa e cultura, Casa-Grande &
Senzalaexalta a propenso histrica do elemento colonizador portugus para a miscibilidade,
tendncia essa que, aliada s condies histricas de convivncia intertnica no Brasil-
Colnia, como a economia aucareira, o escravismo e o patriarcalismo, teriam produzido uma
sociedade miscigenada, tnica e culturalmente.
O fio analtico que perpassa a narrativa encontra-se na ideia de equilbrio de
antagonismos , caracterstica da sociedade colonial de fazer com que os mltiplos
antagonismos, como portugus/africano, branco/negro, senhor/escravo, fossem amainados e
se equilibrassem, no mbito da convivncia, da relao, do contato e do trnsito de alteridade
entre a Casa-Grande e a senzala conceitos esses entendidos como metforas sociais. A
despeito do carter inovador da anlise, e tambm dos elementos problemticos da abordagem
freyreana em Casa-Grande & Senzala, como o edulcorar da escravido, o antissemitismo e a
distino analtica entre raa e cultura no se fazer de todo, a tese da mestiagem freyreana
foi usada para a construo do novo senso de nacionalidade e coeso social a partir de Vargas. No h, todavia, em Casa Grande & Senzala, qualquer referncia ao conceito de
democracia racial . Freyre s ir se referir ao conceito na dcada de 1970. Para Guimares,
Gilberto Freyre no pode ser responsabilizado integralmente, nem pelas idias nem pelo seu
rtulo; ainda que fosse o mais brilhante defensor da democracia racial , evitou, no mais das
vezes, nome-la (2001, p. 148). Mesmo assim, ser imputada a Freyre a pecha de idelogo
da democracia racial , perspectiva que se tornou quase um cnone no Brasil. Essa imputao
tornar-se- corrente e ser assimilada pelo Movimento Negro e seus intelectuais como Abdiasdo Nascimento, entre outros, a partir dos anos 1970. As teses centrais de Casa-Grande &
Senzala, obra eivada de controvrsia, complexidade e ambiguidade, seriam mais seriamente
contrapostas por novas perspectivas de pesquisa nas dcadas seguintes10.
10A partir dos anos 1960, Freyre envereda no elogio do colonialismo portugus na frica. A ditadura salazaristausou do prestgio internacional do pernambucano para legitimar a presena colonial lusa. Freyre desenvolveu oconceito do luso-tropicalismo, a suposta tendncia do colonizador portugus para a miscibilidade e a tolernciaraciais. Na dcada de 1960, tambm, o Mestre de Apipucos defender posturas polticas conservadoras, emconluio com o ambiente da Ditadura Militar. No contexto da crtica sistemtica a democracia racial , que seinicia nos anos 1950, em mbito acadmico, e nos anos 1970, como a emergncia do Movimento Negro, Casa-Grande & Senzala ser reinterpretada luz, tambm, das posies polticas do autor. Para uma anlise sobre ahistria deste livro, conferir: ARAJO, Ricardo Benzaquen de.Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obrade Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
24/114
22
O primeiro questionamento sistemtico sobre a democracia racial e a obra de Freyre
no Brasil adveio, no plano intelectual, da srie de estudos sobre a situao racial brasileira
patrocinada pela UNESCO na dcada de 1950. Esse rgo das Naes Unidas estava
empenhado, no ps-guerra, na busca de respostas frente aos horrores perpetrados em nome da
raa , sendo o Holocausto nazista o paroxismo de tal processo. O Brasil era visto, nessa
poca, como um exemplo de sociedade que havia conseguido superar a questo do
preconceito de raa . Vigorava a ideia de um paraso racial, de um lugar dono de
excepcionalidade no trato das relaes intertnicas (MAIO, 2000).
Assim, importantes estudos foram realizados em vrias cidades brasileiras, como os de
Luiz de Aguiar Costa Pinto, O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade
em Mudana (1953), Florestan Fernandes e Roger Bastide, Relaes Raciais entre Negros e
Brancos em So Paulo (1955), Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, Cor e
mobilidade social em Florianpolis (1960), entre outros (MAIO, 2000). De forma geral,
baseados em extensa pesquisa de campo e anlises refinadas, esses estudos demonstraram a
inexistncia de padres sociais que demonstrassem relaes raciais igualitrias e
suavizadas, como propugnava o credo corrente. Esses estudos inauguraram uma tradio mais
propriamente cientfica e sociolgica sobre a questo racial no Brasil11.
Essa tradio sociolgica mencionada, que teve no Projeto UNESCO um ponto deimpulso, plasmou-se na figura intelectual de Florestan Fernandes como sua forma mais
acabada e influente. O livro A Integrao do Negro na Sociedade de Classes (1965) foi a
primeira tese mais abrangente e minuciosa a contrapor-se ao mito da democracia racial e
perspectiva freyreana. A partir de uma abordagem histrico-sociolgica, Florestan analisa os
dilemas da insero dos negros na ordem capitalista e competitiva, no mbito do processo de
transio do escravismo para o trabalho assalariado. Matiza essa anlise sob a relao entre
cor e classe social, propondo que a situao de anomia social dos negros devia-se ao arcasmode estruturas sociais herdadas da escravido. Florestan nutre, assim, uma viso otimista de
que a ordem competitiva do capitalismo poderia ser um meio de integrao dos negros na
sociedade de classes. Nas palavras do autor,
Tomando-se a rede de relaes raciais como ela se apresenta em nossos dias, poderiaparecer que a desigualdade econmica, social e poltica, existente entre o
negro eo
branco , fosse fruto do preconceito de cor e da discriminao racial. A anlisehistrico-sociolgica patenteia, porm, que esses mecanismos possuem outrafuno: a de manter a distncia social e o padro correspondente de isolamentoscio-cultural, conservados em bloco pela simples perpetuao indefinida de
11Conferir: PEREIRA, Cludio Luiz; SANSONE, Livio (Orgs.). Projeto UNESCO no Brasil: textos crticos.Salvador: EDUFBA, 2007.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
25/114
23
estruturas parciais arcaicas [...] [a desigualdade] foi herdada, como parte de nossasdificuldades em superar os padres de relaes raciais inerentes ordem socialescravocrata e senhorial (1965, p. 193).
Note-se a nfase de Florestan na perpetuao das estruturas arcaicas da ordem
escravista, bem como no uso de conceitos polarizados de negro e branco , ainda que
raa no seja um conceito fundamental para o autor. A democracia racial seria um
mecanismo utilizado pelas elites dirigentes para manter o processo de dominao social e
racial, legando para o negro a responsabilidade de sua desgraa social, isentando o branco
de responsabilidade social e moral perante a situao do negro e criando uma conscincia
falsa da realidade social brasileira (1965 p. 199. Itlico no original). Tendia, assim, a
promover a perpetuao, em bloco, de relaes e processos de dominao que concentravam
o poder nas mos dos mencionados crculos dirigentes da
raa branca
, como sucedera no
recente passado escravista (p. 205), minando, assim, os benefcios que a ordem de classes
poderia trazer para a resoluo das iniquidades em relao aos negros. Ecoando (em parte) as
teses de Fernandes, Michael Hanchard considera a democracia racial como
[...] um processo de hegemonia racial [que] neutralizou efetivamente a identificaoracial entre os no brancos [...] essa forma de hegemonia, atravs de processos desocializao que fomentam a discriminao racial ao mesmo tempo que negam suaexistncia, contribui para a reproduo das desigualdades sociais entre brancos e nobrancos, promovendo, simultaneamente, uma falsa premissa de igualdade racialentre eles (2001, p. 20-21).
A viso de Hanchard da democracia racial como ideologia que inibe a identificao
racial estava presente j em Florestan, mas essa interpretao se estende a muitos outros
autores, como Clvis Moura, que a considera como parte de mecanismos ideolgicos de
barragem aos diversos segmentos discriminados (1988, p. 62), ou Abdias do Nascimento,
quando afirma que [...] a democracia racial funciona num nvel terico e prtico,
fornecendo as justificaes da contnua e sistemtica opresso e misria das massas negras
(1982, p. 29). A crtica da
democracia racial
foi o locus terico a partir do qual o
Movimento Negro se articulou, nos final da dcada de 1970, provocando uma inflexo
epistmica importante na histria brasileira.
1.1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO (1978)
Algumas formas de organizao poltica negra j haviam existido no Brasil. No ps-
abolio, inmeras associaes culturais, carnavalescas, esportivas, entre outras, se formaram
no Brasil. Na dcada de 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB) surge como um importantepolo aglutinador das questes dos negros, concentrando suas aes nas principais cidades do
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
26/114
24
Brasil, principalmente nos estados de So Paulo e Rio de Janeiro, mas com ramificaes em
outras cidades, como Recife, Salvador e Porto Alegre (DOMINGUES, 2007). As aes da
FNB eram vrias: atividades culturais, recreativas, atuao em jornais da imprensa negra etc.
Para a FNB, no havia uma preocupao em afirmar a identidade negra como um
elemento de diferena e faz-la pilar de uma poltica antirracista declarada, contrapondo-se
aos cnones da mestiagem e da identidade nacional. No deixava de denunciar o racismo e o
preconceito em relao aos negros, mas, por outro lado, sucumbia ao discurso corrente da
democracia racial , propugnando uma perspectiva assimilacionista, no colocando em xeque
a nacionalidade racialmente harmnica , fazendo um esforo para, ao contrrio, inserir o
negro brasileiro como cidado na nao. A FNB tambm estava sujeita aos ditames,
socialmente compartilhados, da ideologia do branqueamentocomo modelo social, cultural e
esttico no Brasil daquele perodo. A ditadura do Estado Novo extinguir a FNB em 1937,
que resta, contudo, como uma das maiores organizaes negras brasileiras do sculo XX12.
Nas dcadas de 1940-50, realizada uma srie de congressos sobre temas dos negros
ou dos afro-brasileiros . Essa distino necessria, pois os primeiros eventos sobre a
questo no Brasil so os Congressos Afro-brasileiros, sendo o primeiro realizado no Recife,
em 1934, e o segundo em Salvador, em 1937. Esses congressos tendem a no serem
considerados como representativos da luta negra no Brasil, posto terem sido organizados soba aura intelectual de Gilberto Freyre e do culturalismo e tambm por serem acadmicos e
reificarem o negro como objeto de pesquisa. Na opinio de Nascimento (1982 [1967], p. 82),
nesses congressos o negro entrava naqueles certames como o micrbio sob o olho do
microscpio . Em 1944, fundado o Teatro Experimental do Negro (TEN), centrado na
figura de Abdias do Nascimento, que realizou inmeras atividades de cunho principalmente
cultural. Sob os auspcios do TEN, de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Roger
Bastide, entre outros, so realizadas as Convenes Nacionais do Negro, em So Paulo em1945 e no Rio de Janeiro em 1946; em 1949, tambm no Rio de Janeiro, realizada a
Conferncia Nacional do Negro. Em 1950, tem lugar nessa mesma cidade o I Congresso do
Negro Brasileiro, envolvendo uma gama muito grande de intelectuais e controvrsias13. Em
1958, acontece ainda o Primeiro Congresso Nacional do Negro, em Porto Alegre14.
12Sobre a Frente Negra Brasileira, conferir: DOMINGUES, Petrnio. A insurgncia de bano: A histria daFrente Negra Brasileira (1931-1937). So Paulo: FFLCH-USP, 2005 (Tese de Doutorado).13Os documentos e temrio desse congresso esto compilados na obra organizada por Abdias do Nascimento, Onegro revoltado, de 1982.14No h aqui a pretenso de desenvolver em pormenor as peculiaridades de cada um desses eventos. So tidosaqui como representativos de discusses em curso na poca e que serviro tambm de base, mais tarde, para afundao do Movimento Negro Unificado, que ser um tipo de organizao poltica feita sob bases terico-
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
27/114
25
Os debates que se observavam nesses congressos demonstram como a questo tnica e
do negro era importante na poca, apesar dos brados de democracia racial . O golpe de 1964,
porm, iniciou um perodo de silenciamento sobre esse tema. Amordaar o protesto e
encampar ainda mais fortemente a
democracia racial como imagem da nao. Nessa
mordaa, estavam tambm os movimentos e intelectuais ligados questo racial, alguns
compulsoriamente aposentados, como Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos; outros foram
para o exlio, como Abdias do Nascimento, que retornaria ao Brasil no final dos anos 1970
(PEREIRA, 2013). O perodo da Ditadura Militar, apesar de estender a represso em relao a
esta questo, assistiu ao aparecimento de uma srie de organizaes antirracistas de carter
cultural e acadmico que dariam origem, alguns anos mais tarde, ao MNU. Deste modo, tem-
se o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), fundado em So Paulo em 1972; a Sociedade
de Intercmbio Brasil-frica (SINBA), fundada no Rio de Janeiro em 1974; o Instituto de
Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), fundado no Rio de Janeiro em 1975; entre outras
entidades (ALBERTI; PEREIRA, 2007). Esse conjunto de organizaes far parte da
movimentao poltica que ensejar a criao doMovimento Negro Unificado, em 1978, em
So Paulo. A lenta abertura democrtica ser palco da emergncia de vrios movimentos
sociais, entre eles o Movimento Negro. Andreas Hofbauer considera que
Com o incio da
abertura no pas, a militncia poltica, inclusive a negra,comeava a olhar mais alm. Cresceu o interesse por movimentos sociais queatuavam em outros pases [...] A confluncia de vrios acontecimentos histricos,bem como a existncia de diversas iniciativas de teor poltico-reivindicatrio maisou menos isoladas (cujos promotores buscavam a canalizao de seus esforos numanova organizao), propiciaria a criao do MNU (2006, p. 377).
O MNU ser o mais importante Movimento Negro brasileiro, em termos do
significado da luta enquanto questionadora da identidade nacional, dando incio ao
antirracismo contemporneo, partindo de premissas substancialmente diferentes daquelas da
FNB e dos congressos do negro realizados nas dcadas anteriores. De pretenso nacional, serum movimento reivindicativo contra a discriminao racial, calcado em uma poltica de
identidade definida pela diferena negra, base de uma radicalizao do discurso antirracista.
Na opinio de Amlcar Arajo Pereira (2013), o MNU inaugura o Movimento Negro
contemporneo no Brasil. O seguinte editorial do jornalAfro-Latino-Amrica, documentando
o ato de protesto em So Paulo e a criao do MNU, em julho de 1978, demonstra a
importncia desse momento:
polticas distintas, ainda que com fundo comum. Nesse sentido, conferir SANTOS, Arilson Gomes.A formaode osis: dos movimentos frentenegrinos ao primeiro congresso nacional do negro em Porto Alegre RS (1931-1958). Porto Alegre: Edipucrs/PPG-Histria, 2008 (Dissertao).
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
28/114
26
Mais de mil negros nas ruas! Sem dvida, uma grande vitria para o MovimentoNegro. Isto demonstra como j afirmamos o nimo da Comunidade. [...] OMovimento Unificado Contra a Discriminao Racial deu um grande salto poltico,ao nvel da sociedade como um todo: faz-se respeitar e aumentou seu respaldo junto Comunidade. [...] O movimento deveria reunir todos os setores da Comunidade
Negra, independente da ideologia, contra um inimigo comum, a DiscriminaoRacial (n. 23, jul./ago.1978, p. 32).
O MNU tinha inspirao poltica de esquerda sendo que muitos dos militantes
participavam de partidos polticos da oposio ao Regime Militar, e alguns foram fundadores
do PT (ALBERTI; PEREIRA, 2007) e parte de seus preceitos tericos foi instrumentalizada
pelas lutas polticas antirracistas internacionais, principalmente pelos Movimentos dos
Direitos Civis nos Estados Unidos e pelos processos de descolonizao na frica
lusfona15.A Carta aberta populao, escrita quando da fundao do MNU, informa sobre
algumas de suas propostas e do potencial problematizador desse novo movimento em relao
aos marcos fundamentais da identidade racial democrtica brasileira:
Hoje estamos na rua numa campanha de denncia! Campanha contra adiscriminao racial, contra a opresso policial, contra o desemprego, os sub-emprego e a marginalizao. Estamos nas ruas para denunciar as pssimas condiesde vida da Comunidade Negra [...] Convidamos os setores democrticos dasociedade para que nos apoiem, criando condies necessrias para criar umaverdadeira democracia racial (MNU apud PEREIRA, 2010, p. 164)16.
Observe-se que a denncia, nesse excerto, articula-se com a afirmao do
pertencimento politizado Comunidade Negra , pensada agora como um elemento parte
no corpo social, no sentido das agruras e dos desfavorecimentos histricos sofridos pelos
negros, fatores estes sedimentados nas desigualdades entre brancos e negros. A atuao do
MNU imps um profundo questionamento sobre a identidade nacional, levando a um
processo de ressignificao identitria, ainda que, nesse perodo, o alcance da luta poltica do
MNU fique restrito ao meio militante e aos crculos acadmicos. O MNU se alinhava, poltica
e retoricamente, com os preceitos da esquerda socialista e com movimentos antirracistas
internacionais, absorvendo a perspectiva da revoluo, da libertao e da conscincia da
opresso e da prpria identidade racializada. O seguinte trecho sintomtico:
Nesse sentido, nossa luta extrapola o mbito nacional, pois o Racismo se manifesta anvel internacional, onde haja negros ou no, e tem contornos bem definidos namanuteno das desigualdades sociais em todas as partes do mundo. Acaracterizao poltica e o Programa de Ao do MOVIMENTO NEGROUNIFICADO fundamentam o nosso apoio e solidariedade aos movimentos negros eorganizaes progressistas do mundo inteiro (MNU, 1988, p. 42).
15Voltaremos a essa temtica em seo ulterior desse captulo.16O apuddessa e de outras citaes justifica-se pelo fato de que boa parte desses documentos do MNU estar, ouem poder de particulares, ou em arquivos aos quais no tenho acesso. Utiliza-se, portanto, de citao da citao.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
29/114
27
No mesmo perodo, outro fator importante para o processo de desconstruo da
democracia racial , alm da ao militante, foi a concomitante publicao de dois estudos
sociolgicos de matriz estruturalista no final da dcada de 1970, o livro Discriminao e
Desigualdades Raciais no Brasil(1979), do socilogo Carlos Hasenbalg, e o artigo O preo
da cor: diferenas raciais na distribuio de renda no Brasil(1980), do tambm socilogo
Nelson do Valle Silva. Utilizando-se de ampla base estatstica (clivada analiticamente na
raa ), esses autores relacionam de forma incisiva a discriminao com as desigualdades
raciais, demonstrando como a dificuldade de mobilidade socioeconmica estava assentada em
prticas racistas. Partindo de tais premissas, Nelson do Valle Silva diz que [...] no se pode
atribuir toda a responsabilidade pelas atuais diferenas de nvel socioeconmico entre brancos
deum lado e de negros e mulatos por outro desigualdade sofrida durante um remoto passado
escravista (1988, p. 162-163).
Trata-se de uma clara ruptura com Florestan Fernandes e sua nfase no passado como
explicao para as desigualdades raciais. Carlos Hasenbalg, por sua vez, assevera que, ao
contrrio, a nfase na explicao deve ser dada s relaes estruturais e ao intercmbio
desigual entre brancos e no-brancos (1979, p. 198). Essas obras inauguram uma nova fase
nos estudos sobre relaes raciais no Brasil, e iro instrumentalizar o Movimento Negro a
partir das dcadas seguintes, o qual far amplo uso desses dados, pressionando, inclusive, paraa incluso da categoria "raa" no censo de 198017.
A nao brasileira, que at esse momento se pensava racialmente harmnica, ser
rasurada pelo discurso do Movimento Negro Unificado, que conseguiu colocar em discusso,
mesmo que de forma tmida, ao longo da dcada seguinte, sensveis mudanas na percepo
identitria dos brasileiros no tocante cor, raa e racismo. Mexia-se em um ponto
extremamente sensvel da nacionalidade, qual seja, o papel do negro e da mestiagem nessa
identidade nacional imaginada18
. A nao saa da Ditadura Militar rasurada, tendo que lidarcom uma demanda poltica racial at ento inexistente.
1.2OMOVIMENTONEGRO UNIFICADO E A PERSPECTIVA DA RAA
A constituio da luta poltica do MNU no Brasil foi acompanhada pela afirmao do
paradigma da raa como marcador identitrio e da conscientizao racial como parmetro
17O prprio IBGE passou a tratar institucionalmente do tema a partir desse momento. Conferir: OLIVEIRA, L.H., PORCARO, R. M., ARAJO, T. C. N. O lugar do negro na fora de trabalho. Rio de Janeiro: IBGE, 1985.18 Refere-se aqui ao conceito de nacionalismo de Benedict Anderson. Conferir: ANDERSON, Benedict.Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e a expanso do nacionalismo. So Paulo: Companhia dasLetras, 2008.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
30/114
28
poltico-normativo correlato. A ideia de raa parte essencial do esforo de entendimento
das questes de cunho tnico-racial no Brasil, sendo parte da discusso e tambm dos
problemas. Talvez seja a questo mais central, o miolo epistmico em torno do qual so
discutidos limites e potencialidades tericas de uma gama de conceitos sobre o antirracismo.
Como parte da estratgia de luta, o MNU adotou a perspectiva discursiva da raa
como potencialidade contestatria, utilizando, porm, da mesma categoria pela qual o estigma
do racismo se faz sentir sobre o negro. A ideia tornou-se central para o MNU e passou, a
partir da, a assumir importncia na agenda poltica dos militantes do Movimento Negro
contemporneo. No apenas o MNU assumiu a raa como categoria poltica, mas tambm
certas perspectivas de anlise acadmica os chamados Estudos Raciais tambm passaram
a utilizar o conceito para aferies de carter sociolgico das diferenas de oportunidade
oriundas dos fatores raa /cor no Brasil, como os estudos de Hasenbalg (1979) e Valle Silva
(1980). A ideia de raa aparece em publicaes do MNU, como no trecho abaixo:
Para ns negros, Raa a ferramenta que rene, e d sentido aos elementos datrajetria histrica dos povos descendentes de africanos, e ao que resulta dapermanente tenso com os interesses da outra Raa. Alm disto, o conceito nicopara dar conta da dimenso existencial da pessoa (Jornal Nacional do MNU apudHOFBAUER, 2006, p. 400).
O conceito tem o carter de ferramenta poltica, e vincula-se a claramente a uma
ontologia racial de matriz biodeterminista, baseada em uma perspectiva histrica vincada ao
pertencimento a uma herana e identidade africanas. Assim, em texto de 1978, o MNU define
o negro como todo aquele que apresenta na cor da pele, na face ou nos cabelos as
caractersticas da Raa Negra (MNU apud MOURA, 1983 [1978], p. 160). Relatos do livro
Histrias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC(2007) do uma dimenso
do alcance que a ideia de pertencimento racial obteve entre os militantes do Movimento
Negro. Sueli Carneiro comenta que uma coisa a conscincia racial. Isso voc traz da
famlia, quando existe nela. E isso era uma coisa que sempre foi muito martelada dentro da
minha educao. ; Joseanes Lima dos Santos afirma que As meninas da minha casa sempre
repetiam isso: eu sou negrinha com muito orgulho. E com isso aconteceu o qu? Aconteceu
que isso afirmou a nossa identidade racial. ; Hdio Silva Jnior, por sua vez, diz que em
relao questo racial, meu pai tinha um discurso que depois eu localizei com frequncia em
relatos de amigos e de militantes. Era um discurso que tinha um componente racial implcito.
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
31/114
29
(apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 39, 46, 47)19. Ainda sobre essa questo, Abdias do
Nascimento teoriza sobre raa , em 1967, da seguinte forma:
Ele [o negro] sofre, discriminado. Por causa da cor da sua pele que os outros vem.
No adianta a reiterao terica de que cientificamente no existe raa inferior ouraa superior. O que vale o conceito popular e social de raa, cuja pedra de toque,no Brasil, se fundamenta pior do que na declarada luta de raas numenvergonhado preconceito ornamental, em camuflada perverso esttica (1982[1967], p. 101).
Para alm da no cientificidade da raa , o que contaria seria a definio social de
raa , suas implicaes nas relaes sociais. A maioria das anlises pautadas na raa deixa
ou tenta deixar clara a desvinculao do conceito de seu sentido biolgico, referindo-se,
ao contrrio, chamada raa social , termo cunhado por Charles Wagley nos anos 1950.
Nega-se o carter biolgico, desprovido de legitimidade cientfica, mas se reconhece, por
outro lado, que no se pode excluir das possibilidades de anlise um conceito consagrado
socialmente , presente no senso comum racista. Partindo dessa premissa, assumida pelo
Movimento Negro, o reconhecimento de uma conscincia racial , do pertencimento a uma
raa , por parte dos negros, parte dessa estratgia de poder contra a discriminao racial.
A ideia de antirracismo tem o significado, sob essa perspectiva terica, de assumir
uma identidade , uma percepo de si racializada , bem como do Outroda luta antirracista,
no caso, os no negros; brancos, poder-se-ia dizer. Contudo, mais do que reconstruir, esse
processo efetivamente constri identidades sociais. Assim, um leque de percepes
identitrias baseadas na ideia de raa torna-se o resultado sociolgico e ao mesmo tempo o
objeto de um campo de saber sobre o antirracismo. O pensamento antirracista, nessa veia
essencialista, racializa os processos sociais de identificao. Antonio Srgio Guimares,
mas tambm outros autores, grande parte pertencente aos quadros intelectuais do Movimento
Negro, como Abdias do Nascimento e Kabenguele Munanga, partilham de semelhante
premissa. Para esses autores, a
raa haveria de ter serventia terica em sentido negativo, nointuito de instrumentalizar a luta antirracista com uma definio poltica de raa .
O que parece ser importante apontar, no sentido da chamada racializao da
identidade negra pelo MNU a partir do final dos anos 1970, o fato de que esse
recrudescimento da raa parece coadunar, discursivamente, com os processos histricos
daquilo que se convenciona chamar de construo da nao , ou construo da identidade
nacional. O que define uma nao do ponto de vista conceitual objeto de controvrsia, na
19 A recorrncia da ideia de
raa pode ser observada continuamente em documentos oficiais tocantes squestes do racismo, como, por exemplo, a Lei 10.639 (2003) e o Estatuto da Igualdade Racial (2010).
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
32/114
30
literatura sobre o assunto. Contudo, certos elementos comuns parecem estar presentes na
construo da nao moderna, como histria, territrio, lngua, etnia etc.
Uma relao possvel de ser feita, no sentido da presente anlise, diz respeito ao
carter primordialista do revival racial assumido pelo Movimento Negro no momento da
afirmao da raa . A valorizao do negro, atravs da raa , parece ser dar pelo que
Anthony Smith denomina de primordialismo tnico , a tendncia a considerar a identidade
tnica como tendo existncia primordial, essencial, fora do tempo (SMITH, 1997). O carter
de retorno existencial a uma comunidade tnica via identidade racial como parece ser o
caso, demonstra que narrativas tnicas e as polticas de reconhecimento so articuladas a
partir de elementos muito semelhantes do que antes foram, no sculo XIX, utilizados na
construo do Estado-nao
(SILVA, 2010, s. p.), podendo ser considerados
apropriaes,
hoje, das prprias dinmicas do chamado Volksgeist, do esprito nacional (2010, s. p.). Nesse
sentido preciso, Homi Bhabha considera que
[...] a fronteira que assegura os limites coesos da nao ocidental pode facilmentetransformar-se imperceptivelmente em uma liminaridade interna contenciosa, queoferece um lugar do qual se fala sobre e se fala como a minoria, o exilado, omarginal, o emergente (1998, p. 211).
As contranarrativas da nao brasileira, como a desconstruo da democracia racial
pelo Movimento Negro e a identidade negra como elemento disruptivo dentro da identidadenacional, transformam-se, pela racializao, em narrativas que reforam o suporte discursivo
daquilo que se quer negar e desconstruir, o racismo. A assuno da raa na linguagem
poltica antirracista dota de novas camadas de significao o edifcio terico sobre
identidades raciais fixadas, que so, por vezes, chanceladas por decises polticas em
mbito internacional, e, em certas situaes, como no caso brasileiro contemporneo, com as
aes afirmativas, ratificadas no plano nacional.
Destarte, o carter provisrio, instvel e tensional das ideias, perde, no plano dasestruturas de atribuio de sentido, as possibilidades de quebra de paradigmas de
representao. Mantm-se, nesse caso, o vetor representacional do racismo, a raa . Alm
disso, mesmo uma perspectiva declaradamente simptica ao nacionalismo pode ser
encontrada na produo intelectual do Movimento Negro20. No livro Manifesto Anti-Racista,
fruto daI Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial, de 2005, pode-se ler:
20O nacionalismo referenciado mesmo como metodologia de anlise social , como pode ser observado nolivro Pan-africanismo na Amrica do Sul, de Elisa Larkin Nascimento, de 1981. Nas palavras da autora,
onacionalismo africano e afro-americano como mtodo de anlise social a nica disciplina que trata terica epragmaticamente das realidades sofridas por minorias ou maiorias dominadas nas sociedades industriaisavanadas (p. 52).
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
33/114
31
Os sentimentos nacionalistas e patriticos no perodo contemporneo soabsolutamente justificados e compreensveis, significando, no perodo da sociedadede massas, um modo das pessoas, transcendendo uma postura estritamenteindividualista e hedonista, vincularem-se moral e sentimentalmente comunidadeampliada da qual se sentem afetivamente ligadas, por motivos de nascena, origem
familiar, tradies culturais ou por outro motivo reportado histria de suas vidas(PAIXO, 2006, p. 64).
Ora, como possvel conciliar tal elogio ao nacionalismo tendo em conta a estreita
relao entre nacionalismo e racismo, expressa, por exemplo, na memria histrica do
colonialismo europeu, ou ainda da associao entre nacionalismo, propagada e as polticas de
limpeza racial levadas a cabo no contexto da Alemanha nazista? O nacionalismo, mesmo no
ps-guerra, continua a ser uma fonte de conflitos de base tnica, como, por exemplo, na
questo dos Blcs, o genocdio de Ruanda, entre outros conflitos. Alm disso, como veremos
no terceiro captulo, o nacionalismo, de muitas formas, est implicado em boa parte dos
problemas sobre os quais tratou a Conferncia de Durban, em 2001.
O apelo comunidade de pertencimento, expresso na citao, demonstra a fora que
a referencialidade nacional possui para esse discurso antirracista, e como esses processos
implicam relaes de poder que pem em jogo, ao articularem-se em uma agenda antirracista
ampliada e unificada, como no MNU, concepes poltico-intelectuais aparentemente
antagnicas, tais como nacionalismo e antirracismo. V-se por a que a raa , articulada a
uma retrica poltica de apelo e referncia discursiva nacional, continua sendo um elemento
fundamental para pensar os processos de identificao social no Brasil contemporneo. Na
prxima sub-seo vamos analisar algumas das chamadas influncias externas que
contriburam para a formao do Movimento Negro brasileiro contemporneo.
1.3INFLUNCIAS EXTERNAS E O ATLNTICONEGRO
1.3.1NACIONALISMO AFRICANO E A RETRICA NACIONALISTA
Outro aspecto possvel de ser analisado para pensar a relao entre o Movimento
Negro brasileiro e a questo nacional a recepo e a influncia, a partir dos anos 1970, das
lutas de descolonizao na frica, especialmente na frica lusfona. As lutas de libertao
nacional em Angola, Moambique, Guin-Bissau, entre outras, parecem ter instrumentalizado
o Movimento Negro na perspectiva da construo de um sentido comum de pertencimento
calcado em uma luta. Est presente, em diversas publicaes do Movimento Negro, uma
expressa preocupao com o que se passava em frica nos anos 1970-80, sendo a influncia
das lutas africanas referida por muitos militantes (ALBERTI; PEREIRA, 2007).
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
34/114
32
No bojo desse processo de ateno com o que se passava alhures, entram ou, se
reafirmam, conceitos caros ao discurso antirracista brasileiro, como libertao nacional ,
povo negro , frica , entre outros. A perspectiva da libertao do povo negro se faz
presente, como demonstra, por exemplo, o seguinte trecho escrito pelo militante Joo Ado de
Oliveira, no jornalAfro-Latino-Amrica:
A comunidade negra organizada a nvel nacional atravs do MNUCDR agoraresponde a qualquer ato racista que as classes dominantes e a sociedade alienada porestas fizer ao negro. Ao mesmo tempo em que aponta os caminhos na luta pelaconquista da liberdade. [...] Hoje o Movimento nacional, mas a alienao sofridapelos negros foi muito forte e h muitos irmos que ainda no entendem a luta deseu povo, se deixa levar pelas vrias formas de dominao que os brancos poderososnos impuseram (n. 24, 1978, p. 41).
Percebe-se a presena de uma linguagem de matriz terica marxista em tal excerto. Aligao dos militantes que fundaram o MNU com grupos de esquerda, nesse perodo, era
muito forte (HOFBAUER, 2006; PEREIRA, 2008). O jornal Afro-Latino-Amrica estava
ligado a um desses grupos, a Convergncia Socialista, e muitos de seus membros partilhavam
da viso revolucionria da luta do negro no Brasil, procurando depreender a luta antirracista
da luta de classe mais geral, ou, contudo, do contrrio, tentando construir uma plataforma
poltica racial independente da perspectiva revolucionria de classe . Termos como
Classes dominantes ,
alienao
,
dominao
, so comuns no contexto internacional delutas de libertao, pela difuso do pensamento marxista, que se concretizaria nos regimes
socialistas de Moambique, Angola e Guin-Bissau. Na Guin-Bissau, se sobressai a figura
intelectual e poltica de Amlcar Cabral, lder da independncia e criador do PAIGC (Partido
Africano pela Independncia de Guin-Bissau e Cabo Verde), que ter imensa influncia no
contexto africano e portugus e, por conseguinte, tambm no Movimento Negro no Brasil.
Para Amlcar Cabral, a luta nacionalista est ligada luta de classes, sendo que, nesse
sentido, a orientao poltica seguida por Guin e Cabo Verde seria a do socialismo-
revolucionrio contra a dominao colonialista. A luta nacional um processo de luta
simblica tambm pela histria do povo oprimido, direito negado pelo colonizador. Para
Cabral, o objetivo da libertao nacional , portanto, a reconquista desse direito, usurpado
pelo domnio imperialista, ou seja: a libertao do processo de desenvolvimento das foras
produtivas nacionais (apud PEREIRA, p. 09-10). S pode haver libertao, portanto, se as
foras produtivas so tambm libertas do domnio estrangeiro. A libertao tambm um ato
de cultura. Cabral concebe a cultura como o momento da vida em sociedade da qual resultam
a atividade poltica e econmica, as dinmicas de expresso entre os indivduos, entre o
Homem e a natureza e entre indivduos, grupos sociais e classes. Ficar apartado de uma
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
35/114
33
vinculao entre cultura e raa ; na realidade, no dar proeminncia raa como
elemento de luta cultural, pois no se pode pretender que existam culturas continentais ou
raciais. Isso porque, como a histria, a cultura se desenvolve num processo desigual, ao nvel
de um continente, de uma raa
ou mesmo de uma sociedade (CABRAL, 1974, p. 15).
Sobre a libertao como um ato de cultura, Amlcar Cabral pontua o seguinte:
Um povo que se liberta do domnio estrangeiro no ser culturalmente livre a noser que, sem complexos e sem subestimar a importncia dos contributos positivos dacultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da suaprpria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto asinfluncias nocivas como qualquer espcie de subordinao a culturas estrangeiras.Vemos assim que, se o domnio imperialista tem como necessidade vital praticar aopresso cultural, a libertao nacional , necessariamente, um acto de cultura. Combase no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertao como
a expresso poltica organizada da cultura do povo em luta (apud PEREIRA, 2004,p. 09-10).
No Brasil, a influncia de Amlcar Cabral se d, principalmente, por duas vias: pelos
intelectuais ligados ao Movimento Negro e por Paulo Freire. No Movimento negro,
intelectuais como Abdias do Nascimento e Amauri Mendes Pereira, entre outros,
frequentemente citam Cabral em seus escritos. A recepo parece girar mais sobre a figura de
Cabral como lder revolucionrio do que propriamente suas ideias, que so parcamente
discutidas. Isso pode se dever a quase inexistente distribuio dos livros de Cabral no Brasil,
dos quais no h nenhuma edio brasileira.
De qualquer forma, h muita similaridade entre as ideias de Cabral sobre a libertao
nacional como ato de cultura e as do Movimento Negro, quando propugna aliar o projeto de
emancipao do negro brasileiro valorizao dos elementos histrico-culturais
caractersticos desse, como a msica, a dana, a capoeira etc.
Por outro lado, a leitura que Paulo Freire far de Cabral mais pormenorizada. Focar
sua anlise no papel que Cabral atribua questo de se partir da realidade da prpria terra
para construir as perspectivas de libertao, o que influenciar a obra de Freire,
principalmente a Pedagogia do Oprimido (1974). Paulo Freire tambm um dos principais
leitores de outro intelectual revolucionrio importante no contexto africano e nas lutas de
libertao do chamado Terceiro Mundo: o martinicano Frantz Fanon. A obra de Fanon
influenciar, assim como Cabral, a Pedagogia do Oprimido (GUIMARES, 2008). Para alm
da obra freireana, as consideraes de Fanon sobre a cultura nacional so interessantes para
pensar a questo do nacionalismo em sua relao com o Movimento Negro no Brasil.
A recepo de Fanon no Brasil, apesar de ser, nas palavras de Antnio SrgioGuimares, morna, dar-se- principalmente atravs dos militantes do Movimento Negro,
-
5/20/2018 Dissertacao 000454490-Texto+Completo-0
36/114
34
apesar da leitura de Paulo Freire (GUIMARES, 2008). Sua obra mais difundida aqui ser Os
Condenados da Terra, cuja primeira edio brasileira data de 1968. Sobre Fanon h inmeras
referncias na histria intelectual do Movimento Negro (ALBERTI; PEREIRA, 2007). Tendo
como pano de fundo a luta anticolonial na Arglia, Os Condenados da Terraaborda a relao
entre o colonizador e o colonizado, e a potencializao da violncia como instrumento na luta
contra o colonialismo e o racismo. Trata das massas, dos camponeses, do partido
revolucionrio e da pequena burguesia na formao da conscincia nacional. O nacionalismo
visto como um instrumento poltico das massas oprimidas. Para Fanon, a nao no existe
em parte alguma seno num programa elaborado por uma direo revolucionria e retomado
lucidamente e com entusiasmo pelas massas (1968, p. 166). O nacionalismo deve se tornar
explcito, enriquecido e aprofundado, consubstanciado em conscincia poltica e social:
A expresso viva da nao a conscincia em movimento da totalidade do povo. aprxis coerente e esclarecida dos homens e mulheres. A construo coletiva de umdestino a aceitao de uma responsabilidade na dimenso da histria. [...] Ogoverno nacional, se quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo, paraos deserdados e pelos deserdados [...], desenvolver um programa humano porquehabitado por homens conscientes e soberanos (F