Dialetica_da_vertigem - Adorno e a Filosofia Moral

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Douglas Garcia Alves Júnior Razão e expressão: o problema da moral em Theodor W. Adorno Tese apresentada ao Curso de Doutorado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Linha de Pesquisa: Estética. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo A. de Paiva Duarte Belo Horizonte 2003 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

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Dialetica_da_vertigem - Adorno e a Filosofia Moral

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  • Douglas Garcia Alves Jnior

    Razo e expresso: o problema da moral em

    Theodor W. Adorno

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Filosofia. Linha de Pesquisa: Esttica. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo A. de Paiva Duarte

    Belo Horizonte 2003

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

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    Alves Jnior, Douglas Garcia Razo e expresso: O problema da moral em Theodor W. Adorno. - Belo Horizonte: UFMG/ FAFICH, 2003. 344p.

    Tese de Doutorado. UFMG - Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Filosofia - moderna - sec. XX. 2. Filosofia - alem. sec. XX. 3 Filosofia moral. 4. Adorno, Theodor Wiesengrund, 1903-1969. I. Ttulo.

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    Tese defendida e .................. com a nota ......... pela Banca Examinadora constituda pelos professores:

    Professor Dr. Rodrigo A. de P. Duarte (Orientador/UFMG)

    Professor Dr. Ricardo Jos Corra Barbosa (UERJ)

    Professora Dra. Silke Kapp (UFMG)

    Professora Dra. Rosa Maria Dias (UERJ)

    Professor Dra. Virginia Figueiredo (UFMG)

    Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, ... de ............... de 2003

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    Para a Cnthia,

    Ao Lucas,

    memria de Osrio Garcia.

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    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer especialmente ao meu orientador, Rodrigo Duarte. Aos amigos Antnio Zuin, Guilherme Massara Rocha e Iray Carone. Ao Jos Sebastio. Ao Ricardo Bahia e ao pessoal da FUMEC: Amncio, Audineta, Eduardo e Joo Batista. Ao colega Rafael Cordeiro Silva. A Ulrich Kohlmann. Andra Baumgratz, da Secretaria de Ps-Graduao em Filosofia da UFMG. Aos meus familiares. Ao CNPq.

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    No renunciar, entre possveis, feitos de cimento do impossvel,

    e ao sol-menino opor a antiga busca, e de tal modo revolver a morte

    que ela caia em fragmentos, devolvendo seus intatos refns e aquele volte.

    ...

    Depois, colquios instantneos liguem Amor, Conhecimento,

    como fora de espao e tempo ho de ligar-se, e breves despedidas

    sem lenos e sem mos restaurem para outros na esplanada

    o imprio do real, que no existe

    Carlos Drummond de Andrade

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    ABREVIATURAS UTILIZADAS

    Obras de Theodor W. Adorno:

    AP The Authoritarian Personality

    DE Dialtica do Esclarecimento KK Kants Kritik der Reinen Vernunft

    M Metaphysik: Begriff und Probleme MM Minima Moralia

    ND Negative Dialektik

    PM Probleme der Moralphilosophie PT Philosophische Terminologie (2 volumes) SO Sujeito e Objeto TE Teoria Esttica

    TP Notas Marginais sobre Teoria e Prxis UN ber Nietzsche und uns

    Obras de Kant:

    CFJ Crtica da Faculdade do Juzo CRPr Crtica da Razo Prtica

    CRPu Crtica da Razo Pura FMC Fundamentao da Metafsica dos Costumes MC Metafsica dos Costumes P Prolegmenos a Toda Metafsica Futura RL A Religio nos Limites da Simples Razo

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    Obras de Schopenhauer:

    LA O Livre Arbtrio MVR O Mundo como Vontade e Representao

    NM A Necessidade Metafsica SFM Sobre o Fundamento da Moral

    Obras de Nietzsche:

    ABM Alm do Bem e do Mal AN O Anticristo

    AU Aurora

    CI Crepsculo dos dolos GC A Gaia Cincia

    GM Genealogia da Moral HDH Humano, Demasiado Humano

    NT O Nascimento da Tragdia VM Sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra-Moral Z Assim Falou Zaratustra

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    NOTA SOBRE AS EDIES UTILIZADAS

    As obras de Theodor W. Adorno, Kant, Schopenhauer e Nietzsche so referenciadas e citadas nesta Tese de acordo com o seguinte critrio: se no h traduo publicada em

    lngua portuguesa, indico a paginao da edio usada na lngua original, e, ao citar, a traduo minha. Em caso contrrio, cito as tradues disponveis. Assim, por exemplo Dialektik der Aufklrung, Minima Moralia e sthetische Theorie so citadas conforme as tradues brasileiras e portuguesa. J Negative Dialektik, Probleme der Moralphilosophie e The Authoritarian Personality so citadas conforme as edies originais alems e americana, com minha traduo. Para o crdito das edies utilizadas, conferir, ao final, a Bibliografia

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    RESUMO

    Esta Tese uma investigao do pensamento moral de Theodor W. Adorno. Ela reconstitui as suas linhas de fora a partir do confronto com trs autores centrais da modernidade filosfica: Kant, Schopenhauer e Nietzsche. O exame da filosofia moral de Kant

    conduzido de forma a explicitar o tratamento de Adorno ao problema da autonomia. Com a discusso da filosofia moral de Schopenhauer, o problema da alteridade investigado em

    Adorno. A filosofia moral de Nietzsche examinada a fim de trazer luz o problema do sentido moral em Adorno. O captulo final articula esses problemas em termos de uma dialtica negativa esttica, apresentando a filosofia moral de Adorno por meio dos conceitos de mmese e de expresso. Uma concepo expressiva de razo permite apreender a orientao esttica da filosofia moral de Adorno.

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. 12

    CAPTULO 1: O PROBLEMA DA LIBERDADE: ADORNO E KANT SOBRE A AUTONOMIA MORAL ................................................................................................... 20

    1.1. Experincia e sujeito na filosofia transcendental: em torno "Formgebungsmanufaktur"....................................................................................... 22

    1.2. Liberdade e experincia moral na filosofia prtica de Kant .................................... 33 1.3. Experincia e sujeito em Adorno (I): a metacrtica do criticismo ............................ 55 1.4. Liberdade e experincia moral na filosofia de Adorno: a natureza da razo ........... 69

    CAPTULO 2: O PROBLEMA DA COMPAIXO: ADORNO E SCHOPENHAUER SOBRE A ALTERIDADE MORAL ............................................................................... 92

    2.1. Experincia e sujeito em Schopenhauer: Vontade e individuao ............................. 94 2.2. Compaixo e experincia moral em Schopenhauer: a negao da Vontade ............. 110

    2.3. Experincia e sujeito em Adorno (II): a dialtica da individuao ............................ 126 2.4. Compaixo e experincia moral na filosofia de Adorno: a materialidade da experincia metafsica .......................................................................................................................... 144

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    CAPTULO 3: O PROBLEMA DO VALOR: ADORNO E NIETZSCHE SOBRE O SENTIDO DA EXPERINCIA MORAL...................................................................... 163

    3.1. Experincia e sentido em Nietzsche: a dissoluo do sujeito .................................... 166 3.2. Experincia moral e valor em Nietzsche: tresvalorao e virtude dadivosa .............. 185 3.3. Experincia e sujeito em Adorno (III): a dissoluo do valor ................................... 208 3.4. Valor e experincia moral em Adorno: a fragilidade da vida correta ....................... 231

    CAPTULO 4: ADORNO E AS DETERMINAES ESTTICAS DA EXPERINCIA MORAL .............................................................................................. 251

    4.1. Mmesis e alteridade: o a priori material do impulso ................................................ 252 4.2. Expresso e autonomia: a racionalidade esttica da prxis ........................................ 272 4.3. O problema da filosofia moral sob a perspectiva de uma dialtica negativa esttica

    ............................................................................................................................................ 296

    CONCLUSO ................................................................................................................. 320

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 324

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    INTRODUO: AS VERTIGENS MORAIS DA FILOSOFIA

    Qual o interesse de se investigar a reflexo moral de Adorno? Seu pensamento conhecido (num crculo maior de leitores) principalmente sob os aspectos da crtica da indstria cultural, da elaborao de uma interpretao histrico-filosfica do conceito de

    esclarecimento e da tentativa de elaborar uma teoria do esttico que fosse uma espcie de estetizao da teoria. Nesse sentido, a recepo de Adorno tem apontado, de diversos

    modos, o carter datado da crtica da indstria cultural, os limites de uma concepo metafsica de racionalidade, bem como a falta de uma elaborao de uma teoria da recepo esttica. Ainda nessa perspectiva, a reflexo moral de Adorno possuiria um carter de mera denncia scio-cultural, sem que ele pudesse ter estabelecido as bases normativas de sua prpria crtica. Adorno ainda visto, s vezes, como um moralista diletante.

    Minha proposta ampliar o arco dessas interpretaes, recuar at um quadro de inteligibilidade que permita situar a reflexo moral de Adorno no movimento geral de seu pensamento e, ao faz-lo, situar o limite das crticas que vem em Adorno um moralista

    irrefletido. Nesse sentido, pretendo tomar como mtodo de investigao e de exposio aquilo

    que Adorno chamou de primado do objeto (Vorrang des Objekts. Cf. ND, 184-187, 193). Isso significa trs coisas. Primeiramente, que pretendo partir da considerao de aspectos de inteligibilidade do prprio conceito mnimo (veremos adiante o que isso significa) de experincia moral: a autonomia, a alteridade, o valor moral. Alm disso, que pretendo investigar o modo como Adorno reflete acerca desses aspectos por meio de um exame detido dos trs filsofos morais modernos que pensaram mais detidamente a respeito de cada um deles. Respectivamente: Kant, Schopenhauer e Nietzsche. Por fim, que pretendo pensar o estatuto da filosofia moral em Adorno como exemplar de uma concepo de razo como expresso, que o que unifica o movimento conceitual da Dialtica do Esclarecimento, da Dialtica Negativa e da Teoria Esttica.

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    A noo de experincia moral no de modo algum algo evidente. Por isso, assumo neste Tese um recorte investigativo em termos de problemas. Isso remete ao que chamei de conceito mnimo de experincia moral. Para tentar estabelec-lo, parto da considerao de um fenmeno histrico preciso, o extermnio nazista de milhes de judeus, ciganos e indivduos considerados anti-sociais, inclusive mulheres, crianas, idosos e doentes

    mentais. Ser que Adorno pretende fornecer uma fundamentao filosfica para o imperativo moral de no mandar crianas para a cmara de gs? Essa a pergunta que

    guiou o incio desta Tese. Temos da, um problema de filosofia moral: o que permitiria estabelecer a imoralidade do extermnio?

    Voltemos busca de um conceito mnimo de experincia moral, a partir do caso do extermnio. Para que se possa dizer com sentido da moralidade de uma ao, so requeridas trs coisas, no mnimo: 1) que se possua um critrio de normatividade, que permita situar essa ao no interior de um quadro de inteligibilidade que indique o que o bem, a virtude e a justia o que remete ao nvel da pergunta pela imoralidade (isto , pelo sentido) do extermnio; 2) que aquele que perpetra uma ao possa ser considerado um agente livre e responsvel, isto , que seja capaz de compreender o sentido daquele critrio, bem como possua o poder de agir sem uma coao exterior, que determine incondicionalmente a sua

    ao trata-se de pensar no problema da autonomia moral o que, no caso do extermnio (como em todo outro caso), estabelece a pergunta: quais so as condies necessrias e suficientes para que um indivduo possa agir de acordo com uma compreenso real do sentido moral do que est fazendo?; 3) que se tenha uma concepo de intersubjetividade, capaz de justificar aquele critrio normativo, isto , de dar algum tipo de fundamentao filosfica do sentido moral articulado a partir de imperativos de ao temos, assim, o problema da delimitao conceitual da alteridade, da maneira pela qual a razo capaz de pensar a pluralidade corprea e simblica dos seres humanos no caso do extermnio, a

    questo que se pe : aps Auschwitz, como pensar o conceito de intersubjetividade para alm de um arcabouo transcendental ou de uma ontologia da existncia humana?

    Proponho investigar essas trs ordens de problemas, a partir do confronto da filosofa de Adorno com as filosofias morais de Kant, Schopenhauer e de Nietzsche. Assumo, primeiramente, duas teses bsicas: 1) a unidade fundamental da filosofia de Adorno, como j o mencionei, dada por uma concepo de razo como expresso; 2) um movimento

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    sistemtico (mas no com pretenso a um sistema) do pensamento moral de Adorno (o que, na verdade decorre de 1), de modo que seria lcito falar de uma filosofia moral de Adorno, ao modo de uma constelao de conceitos, problemas e posicionamentos filosficos cuja unidade dada pelo tratamento esttico do conceito de razo, que perpassa toda sua obra, como pretendo demonstrar.

    A escolha dos trs autores com os quais pretendo estabelecer um dilogo com o pensamento de Adorno guiada por um princpio de contraste. Isso significa que espero

    revelar algo mais do objeto investigado, a filosofia moral de Adorno, por meio de uma contraposio a trs tradies filosficas muito distintas, e que so trs maneiras de pensar o aspecto prtico da racionalidade: a filosofia da razo prtica, de Kant, a metafsica da vontade como essncia do mundo, de Schopenhauer, e a genealogia antropolgico-filosfica da razo e do sentido moral, de Nietzsche. Por que estes autores e no outros? Espero tornar plausvel a razo dessa escolha em funo de trs ordens de consideraes.

    Em primeiro lugar, ela justificada pela diversidade de construes filosficas da moral que se revela nessa trade de autores, o que importante, pois permite diferenciar o

    pensamento moral de Adorno de um projeto transcendental estrito (Kant), mas tambm de uma hermenutica do sentido que, no fim das contas, mantm um materialismo sem

    histria (Schopenhauer), e, ainda, de uma genealogia da razo que detm-se numa semitica vitalista das morais, sem atacar o problema do mbito universal da pretenso da vida correta, em sua mediao individual e social (Nietzsche).

    Alm disso, o exame do pensamento moral destes trs autores permite apreender, sob um certo perfil, a gnese histrica, na filosofia moderna, de uma concepo de razo e de moral como expresso da natureza no sujeito. O caminho desde Kant, com sua concepo do transcendental como limite da racionalidade diante da natureza, passando por Schopenhauer, com sua recuperao do transcendental no princpio da razo suficiente,

    quadro definidor da idealidade do mundo como representao, o qual posto sob a perspectiva de uma pulsionalidade originria, da natureza inteira, que se exprime no corpo

    do sujeito; e, por fim, culminando em Nietzsche, com sua explorao do imbricamento fundamental da conscincia judicante com os impulsos que a atravessam e que se exprimem em juizos de valor morais este caminho favorece o entendimento da articulao, presente

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    no pensamento de Adorno, como pretendo mostrar, da idia de uma racionalidade esttica, fundamento da racionalidade propriamente moral das aes humanas.

    Enfim, penso ser possvel justificar a escolha desses trs autores na medida em que, para os trs, a considerao da relao do sofrimento com a racionalidade e com a filosofia central para a constituio de suas filosofias morais. E isso algo extremamente

    importante quando se trata de investigar a filosofia moral de Adorno, uma vez que ela se articula como uma reflexo a respeito da vertigem da razo diante da materialidade opaca

    de um sofrimento que s parcialmente recoberto pelo sentido. Assim, a ateno que Adorno dirige ao fenmeno do extermnio nazista testemunha no s a sua preocupao com a destruio social em curso na sua poca, mas tambm um esforo de pensar radicalmente a relao da filosofia com o corpo e com o sofrer. Por isso, a passagem pela questo do mal em Kant, da compaixo em Schopenhauer, e da crueldade em Nietzsche necessria para esclarecer a posio de Adorno em relao a uma filosofia moral atenta ao sofrimento.

    Quando se fala de filosofia moral em Adorno, preciso esclarecer como e por que Adorno no elaborou uma tica. certo que a noo de filosofia moral deve ser distinta da de tica, como disciplina filosfica. Como faz-lo? Por um lado, pode-se dizer que toda

    filosofia moral busca articular racionalmente a concepo de uma dignidade do humano. Trata-se, assim, para a filosofia moral, de pensar a ligao que pode haver entre a liberdade, condio dessa dignidade humana, e a felicidade, a efetivao mais expressiva dessa liberdade. A vida humana, como valor, para a filosofia moral, pode e deve tornar-se vida correta, vida boa, vida virtuosa. por isso que a filosofia moral no pode dispensar a considerao do antropolgico, do sensvel, do individual emprico, como Kant pde fazer na sua tica. Alm disso, a filosofia moral no pode ser nem a articulao conceitual de uma interioridade tida como boa (seja esta fundada na natureza ou na razo), nem uma teoria da eticidade social, da moralidade do costume. De modo que o que a filosofia moral pode propor , a cada vez, uma certa articulao da liberdade humana s condies sociais

    em que essa se apresenta como realizvel. A felicidade e a virtude, sempre possibilidades inscritas no horizonte moral humano, devem ser realizadas num estado o mais generalizado possvel, numa sociedade que tornar-se- boa e feliz na medida em que os indivduos

    puderem perceber a universalidade desse potencial. Ou, antes, a vida correta e feliz implica,

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    na perspectiva da filosofia moral, num esforo humano conjunto, que pe em questo normativamente a sociedade. Em outros termos, o homem feliz e virtuoso s poder tornar-se aquele que se pergunta: a minha vida e a minha ao so agora tais que uma sociedade humana, uma sociedade melhor poderia surgir delas? A metodologia das filosofias morais tende a ser auto-reflexiva, isto , tende a partir do existente para interpretar nele os indcios de uma universalidade que o atravessa, mas no o garante no Ser ou na pura razo.

    A tica, por outro lado, pode ser caracterizada como a disciplina filosfica que tenta

    fornecer uma fundamentao filosfica total, ltima, para o horizonte de normatividade inscrito nas sociedades humanas, de modo a poder justific-lo inteiramente numa estrutura do dever-ser, categrica, consubstancial razo ou ao prprio Ser. Sua metodologia dedutiva: o normativo positivado deve poder ser retraado razo (ou a Ser) e inteiramente subsumido nele(s).

    assim que o pensamento de Adorno pode ser caracterizado unicamente como a elaborao de uma filosofia moral, no de uma tica, uma vez que o movimento dialtico geral de sua filosofia exclui inteiramente a busca de pontos de ancoragem absolutos e

    invariantes, como fica claro na Dialtica Negativa, em proveito de uma tentativa de descrever a dinmica das mediaes envolvidas na experincia humana, simultaneamente

    corporal e racional. Como ele o faz? Penso que o recurso a uma passagem de Santo Agostinho sobre o sofrimento dos animais pode ser interessante para deline-lo. Em O livre-arbtrio, Agostinho afirma:

    A dor sentida pelos animais pe em relevo na alma desses mesmos animais um poder admirvel e digno de estima em seu gnero. Por a, aparece suficientemente o quanto a alma aspira unidade, ao vivificar e governar os respectivos corpos. Pois o que a dor, a no ser uma sensao de resistncia diviso e corrupo? Graas a isso, aparece mais claramente do que a luz, o quanto a alma desses animais est vida de unidade, no conjunto do corpo, e o quanto deseja isso. Pois no com prazer, nem indiferena, mas antes com esforo e resistncia que ela reage contra o sofrimento de seu corpo, no aceitando, a no ser com penas, de ver assim a sua unidade e a sua integridade serem abaladas. Se no fosse a dor dos animais no se poderia ver suficientemente quo grande a aspirao unidade, at na ordem inferior das criaturas denominadas animais.

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    E sem isso, ns no estaramos bastante advertidos o quanto as coisas so feitas pela soberania sublime e inefvel unidade do Criador (Santo Agostinho, 1995, 230s).

    possvel pensar, a partir dessa passagem, na tica como disciplina filosfica que busca superar,de modo absoluto, a vertigem da experincia humana da dor e do sofrimento. A noo de vertigem importante no pensamento de Adorno, e a examinarei numa outra parte desta Tese1. Cumpre adiantar, porm, que o modo como Adorno pensa a moral da ordem de uma tentativa de incorporar a no-identidade inscrita na experincia humana, a materialidade no totalmente representvel do sofrimento na sua considerao do estatuo prtico da razo. Esse o ponto central do desenvolvimento do que se ler a seguir. Poder-

    se-ia dizer, enfim, que, para Adorno, o sofrimento, tanto dos animais como dos homens no aponta para um sublime alm-humano. possvel entender toda a sua obra como um esforo de superar as vertigens morais da filosofia por meio de uma integrao esttica da

    matria ao pensamento filosfico. O percurso que aqui proposto estrutura-se da seguinte maneira: so quatro

    captulos, sendo que os trs primeiros tratam de um dilogo de Adorno com as filosofias morais de Kant, Schopenhauer e Nietzsche, sucessivamente. Nos trs primeiros captulos, h uma estrutura anloga: as duas primeiras sees investigam, de incio, os conceitos de sujeito e de experincia no autor investigado, e, a seguir, os conceitos de experincia moral e do problema abordado particularmente por aquele autor (a liberdade, em Kant, a compaixo, em Schopenhauer, e o valor, em Nietzsche); as duas ltimas sees de cada captulo tratam, de incio, de diferentes aspectos da relao entre os conceitos de sujeito e de experincia em Adorno, mas com relao queles trs autores (a questo do transcendental, o problema da individuao, e o motivo da constituio pulsional do sujeito), e, a seguir, dos conceitos de experincia moral e de diferentes aspectos do problema da moral, em Adorno, mas de modo relacionado aos autores investigados (a questo de uma racionalidade prtica, em Kant, a da experincia metafsica, em Schopenhauer, e a da vida correta, em Nietzsche).

    O quarto captulo, enfim, articula um recorte esttico da filosofia moral de Adorno, centrado na idia de uma racionalidade expressiva. aqui que se posicionar a figura de

    1 Cf. a Concluso deste livro, intitulada: Moral como vertigem do filosfico.

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    um Adorno sistemtico. No, certo, de um Adorno construtor de um sistema moral, mas de um autor que mantm uma coerncia profunda de pensamento a respeito da constituio esttica da razo e das aes humanas. Pretendo mostrar, examinando a questo da mmesis na Dialtica do Esclarecimento, da expresso, na Teoria Esttica, e da experincia filosfica, na Dialtica Negativa, que h uma resposta muito particular de Adorno ao

    problema de uma filosofia da vida correta no interior de uma sociedade predominantemente organizada por uma racionalidade instrumental. Essa resposta no ignora a questo da

    justificao racional do princpio moral de respeitar o sofrimento do outro, nem a questo de um fundamento universal da racionalidade prtica. Penso que o desgnio adorniano de uma filosofia em fragmentos, atenta ao situacional e ao histrico, no impedida por um tal alcance sistemtico de seu pensamento moral. Proponho-me a mostr-lo no quarto captulo e na concluso desta Tese.

    Cabe antecipar apenas que a chave para a compreenso do estatuto da filosofia moral de Adorno dada pela considerao da constituio mimtica e expressiva da experincia, do pensamento e da razo. Uma indicao preliminar do significado dessa

    abordagem pode ser feita por meio de um breve comentrio de duas referncias de Adorno sua infncia. A primeira, feita em Minima Moralia:

    Bem cedo na minha infncia vi os primeiros varredores de neve, vestidos em roupas leves e miserveis. Em resposta a uma pergunta minha, foi-me dito que se tratava de homens sem trabalho, aos quais se dava tal ocupao para que pudessem ganhar o po. Bem feito que tenham de varrer a neve, exclamei enfurecido, para derramar-me em seguida num choro incontrolvel (MM, 167).

    A segunda referncia a de um breve fragmento biogrfico, de 1962, que se encontra publicado nas Gesammelte Schriften com o ttulo de Sobre a pergunta: por que o Sr. regressou?A passagem a seguinte: Eu simplesmente quis voltar para o lugar onde vivi minha infncia, enfim, com o sentimento de que o que se realiza na vida pouco mais do que a tentativa de recuperar a infncia transformada (der Versuch, die Kindheit

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    verwandelnd einzuholen)2. Minha proposta de interpretao para entender o que une estes dois textos a de que Adorno expressa a unidade fundamental de toda a sua experincia filosfica, que se d na busca de pensar a irredutibilidade do sofrimento ao conceito, bem como a necessidade de sua confrontao pela filosofia, na perspectiva de uma racionalidade ferida pelo sensvel e aberta ao sentido de uma diminuio possvel do sofrimento que pesa

    sobre os homens, nas formas da dominao da natureza no sujeito. A razo esttica da filosofia e da experincia moral, enfim, anuncia-se toda na formulao da Dialtica

    Negativa, segundo a qual a necessidade de deixar o sofrimento falar condio de toda verdade (ND, 29). Penso que isso justifica, por si s, uma investigao da filosofia moral de Adorno nos termos em que aqui ela proposta.

    2 In: Adorno, Theodor W. Auf die Frage: Warum sind Sie zurckgekehrt. In: Gesammelte Schriften. Volume

    XX, Tomo II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, pp. 394-395. (p. 395).

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    CAPTULO 1: O PROBLEMA DA LIBERDADE: ADORNO E KANT SOBRE A AUTONOMIA MORAL

    Balanando entre o real e o irreal, quero viver como de tua essncia e nos segredas, capaz de dedicar-me em corpo e alma sem apego servil ainda o mais brando

    Carlos Drummond de Andrade

    Quando Adorno, numa passagem crucial de sua Dialtica Negativa (ND, 358), faz uma aluso muito direta tica kantiana, colocando-a sob a exigncia de uma humanidade ps-Auschwitz, somos levados ao confronto com algo bem mais radical do que uma desavena localizvel no interior de um campo discursivo homogneo. Trata-se, antes, de

    pr em questo a prpria inteligibilidade atual de toda empresa filosfica sobre a moral. E no casual que Adorno tenha remetido precisamente a Kant. Ao invs, a filosofia de Kant

    representa, aos olhos de Adorno, o ponto central da reflexo da modernidade filosfica sobre as condies de inteligibilidade da autonomia moral do sujeito. Assim, se possvel ainda falar em moral, ser atravs de uma reflexo imanente a respeito das condies filosficas e extra-filosficas da tica kantiana. Ser apenas ao preo de um esforo de reconstituio conceitual e de reflexo histrico-filosfica que se poder pr a questo que o eixo deste captulo: em que medida a filosofia moral de Kant permite a Adorno, pela via da crtica imanente, elaborar um pensamento a respeito da experincia moral que , ao mesmo tempo, uma reflexo sobre os limites da razo na moral? Se esta questo alcanar

    um grau de elaborao suficiente, ser possvel articular conceitualmente um dos momentos irredutveis da determinao da experincia moral na filosofia de Adorno, a saber, o da

    autonomia. Questo crucial para qualquer filosofia moral, e que, no pensamento de Adorno, articula um problema muito delicado, que s pode ser compreendido por meio de sua remisso a Kant. Trata-se de saber se, de acordo com os termos de Adorno, Hitler imps aos homens em seu estado de no-liberdade um novo imperativo categrico: o de orientar

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    seu pensamento e sua ao de modo que no se repita Auschwitz, nem nada semelhante (ND, 358) , a que fora moral autnoma se enderearia essa obrigao? Isto : que autonomia possvel projetar num estado social de falta de liberdade? Trata-se, nas prximas sees, de investigar a articulao do discurso kantiano sobre a experincia moral, e de tentar indicar as condies de possibilidade muito delicadas no ps-Auschwitz da experincia moral, tal como Adorno as compreender, em seu exame da filosofia de Kant.

    As duas sees iniciais deste captulo desenvolvem uma abordagem da questo da experincia moral em Kant. Seu objetivo tornar explcitos os pressupostos da filosofia moral kantiana. O que ser articulado da seguinte forma: na primeira seo, sero considerados o conceito de experincia e a noo de sujeito que surgem da Crtica da Razo Pura. A seguir, na segunda seo, ser abordada a questo da experincia moral na filosofia de Kant, atravs da recuperao dos momentos conceituais da determinao da liberdade em sua filosofia prtica. A relao entre vontade, lei moral como fato da razo, e inclinaes da sensibilidade ser examinada, para indicar a via kantiana de soluo dos

    problemas que surgem do abismo entre os domnios da natureza e da liberdade. Ser abordado, desta maneira, o problema da personalidade na filosofia prtica de Kant, para

    tentar indicar o modo como a considerao do elemento material da vontade no isenta de nuances em Kant, especialmente na Metafsica dos Costumes. A duas ltimas sees deste captulo sero dedicadas reflexo, por parte de Adorno, dos problemas centrais da filosofia moral de Kant. Assim, a questo-chave de uma subjetividade pensada como elemento transcendental e partcipe de um reino dos fins capaz, assim, de sustentar a inteligibilidade da autonomia da vontade ser o alvo preferencial da reflexo de Adorno. Na terceira seo, ser indicado o modo como Adorno problematiza o conceito de experincia da Crtica da Razo Pura, indicando seu carter formal, pelo qual o sujeito aparece basicamente como instncia articuladora da identidade da conscincia. Em seguida, na quarta seo, ser indicado o modo como Adorno questiona

    a soluo kantiana para a antinomia de natureza e liberdade de modo a propor a necessidade de uma imanentizao do conceito de liberdade. Ser examinada a crtica de Adorno noo kantiana de um fato da razo, ligada noo de uma vontade pura, que

    legisla sem a considerao de seu substrato emprico-sensvel. Ser indicado, enfim, o

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    modo como Adorno apreende, em Kant, os indcios germinais de uma determinao dialtica da liberdade, na qual o elemento somtico, material e social, apresentar-se-ia na figura de uma dignidade teleolgica da humanidade em cada indivduo, para alm das formas coercitivas da troca mercantil, da represso poltica, da dominao religiosa e da injustia existente nas relaes atuais entre os homens.

    1.1. Experincia e Sujeito na filosofia transcendental: em torno "Formgebungsmanufaktur"

    A determinao das condies, das fontes e da inteligibilidade da experincia central para o escopo da empresa crtica de Kant. No que nos interessa aqui, trata-se de delimitar um mbito de compreenso da atividade constituinte do sujeito transcendental. Ser necessrio compreender o itinerrio kantiano da instaurao de uma filosofia que, por um lado, recusa a posio de uma subjetividade garantida no Ser, possuidora de um privilgio ontolgico diante de toda objetividade e que, por outro lado, recusa o encerramento do sujeito na contingncia de um mundo fragmentrio e desordenado. Esta tenso constitutiva da filosofia kantiana, entre crtica e metafsica. Assim, a reflexo sobre a atividade objetivante da razo que leva Kant a buscar uma fundao crtica para a possibilidade da metafsica que ser compreendida de maneira renovada, como a conexo sistemtica dos conhecimentos que a razo pode articular de modo inteiramente a priori.

    A questo kantiana da experincia fundamental para o desenvolvimento de sua filosofia prtica, e articula uma srie de coordenadas que sero decisivas para sua noo de uma autonomia moral do sujeito. Ser investigado nesta seo o modo como Kant pensa a experincia humana, a partir do horizonte crtico. Faz-se necessrio investigar trs ordens de problemas, iternamente ligados: como Kant constri sua noo de um sujeito que faz experincia de objetos? Como Kant pensa o momento de universalidade e de particularidade na constituio da experincia? Como Kant articula, na experincia assim entendida, uma determinada concepo de razo e de natureza?

    preciso abordar esse tipo de problemas para que se possa discernir o sentido fundamental da filosofia moral kantiana. Principalmente, para que se possa apreender o

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    sentido da possibilidade de uma vontade pura, que d condio moralidade. Ou seja, para discernir o sentido da experincia moral em Kant, preciso antes apreender o sentido crtico da experincia.

    Em primeiro lugar, se examinaro conjuntamente as noes de experincia, sujeito e objeto, que constituem os termos bsicos do tratamento crtico da experincia por Kant (Caygill, 2000, 158). Com efeito, sempre que Kant fala de experincia no mbito da Crtica da Razo Pura, ele se volta para as condies que possibilitam que uma subjetividade pensada universalmente conhea objetos de modo a priori. Esta a questo fundamental da primeira Crtica, posta muito explicitamente por Kant: "como so possveis juzos sintticos a priori?" (CRPu, B 19) Ora, a prpria posio da pergunta j enquadra a concepo de sujeito e de experincia que ser desenvolvida por Kant. Uma vez que juzos sintticos no registram meramente a identidade lgica entre sujeito e predicado na proposio, mas, antes, acrescentam predicados que no esto necessariamente contidos no conceito do sujeito da proposio (CRPu, B 11), podemos pensar, para estes juzos, em dois tipos de relao entre o sujeito epistmico e seus objetos: ou este alcana o conhecimento objetivo atravs de 1) juzos de experincia, em que os predicados dos juzos so acrescentados de modo a posteriori, a partir de algo dado ao sujeito epistmico, a experincia de objetos so os juzos sintticos a posteriori; ou de 2) juzos em que no se parte da experincia: em que os predicados dos juzos so acrescentados de modo a priori, sem partir de algo dado ao sujeito epistmico, mas, antes, de acordo com suas estruturas formais e suas atividades sintticas universais e necessrias, as quais constituem propriamente a experincia

    mediante juzos sintticos a priori. Kant denomina transcendentais aos conhecimentos adquiridos por este ltimo tipo

    de juzos: "Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa no tanto com objetos, mas como nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possvel a priori" (CRPu, B 25). Ser feita, portanto, uma investigao das atividades de um sujeito transcendental na constituio de uma experincia concebida em suas caractersticas transcendentais. Desse modo, preciso, em primeiro lugar, discernir a especificidade desse "nosso modo de conhecimento de objetos". Kant indica-o de modo bem direto: o modo do fenmeno. S podemos conhecer das coisas o que pode ser enquadrado nas condies transcendentais da experincia, as quais, por sua vez, so

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    constitudas pelas condies transcendentais da sensibilidade receptiva e do entendimento espontneo do sujeito. ao sujeito constituinte da experincia que ser preciso apelar para falar do conhecimento objetivo das coisas como fenmenos. o que Kant indica, em sua distino entre matria e forma da experincia dos fenmenos:

    Aquilo que no fenmeno corresponde sensao denomino sua matria, aquilo porm que faz que o mltiplo do fenmeno possa ser ordenado em certas relaes denomino a forma do fenmeno. J que aquilo unicamente no qual as sensaes podem se ordenar e ser postas em certa forma no pode, por usa vez, ser sensao, ento a matria de todo fenmeno nos dada somente a posteriori, tendo porm a sua forma que estar toda disposio a priori na mente e poder ser por isso considerada separadamente de toda sensao (CRPu, B 34 grifo meu, DGAJ).

    marcante, neste trecho, a noo kantiana de que: a) h uma precedncia epistmica da forma do fenmeno; b) de que esta forma do fenmeno posta pelo sujeito, e: c) de que esta forma uma estrutura necessria do sujeito. H, portanto, na noo de fenmeno, um pensamento da experincia como relao sujeito/objeto caracterizada por um recorte do objeto como aquilo que ordenvel segundo condies subjetivas pensadas como universais e necessrias. Que a noo de fenmeno seja uma noo relacional sublinhado pelo prprio Kant, bem como a preponderncia do plo organizador subjetivo para a caracterizao da objetividade:

    Os predicados do fenmeno podem ser atribudos ao nosso prprio objeto em relao ao nosso sentido, por exemplo rosa a cor vermelha ou o odor... o fenmeno aquilo que de modo algum pode encontrar-se no objeto em si mesmo, mas sempre na sua relao com o sujeito, sendo inseparvel da representao do primeiro (CRPu, B 70, nota grifo meu, DGAJ).

    Por conseguinte, poder-se-ia dizer: o contorno da experincia o contorno das condies formadoras e sintticas do sujeito. O limite do fenmeno o limite do sujeito. o que faz Verneaux retomar positivamente uma caracterizao da filosofia kantiana feita por Shlosser (em 1795, e prontamente recusada pelo prprio Kant), segundo a qual ela

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    remeteria subjetividade concebida como uma Formgebungsmanufaktur, uma usina de moldagem de formas: " o prprio sujeito que uma usina de formas. Seu trabalho no arbitrrio, mas necessrio. E ele no consiste em transformar os objetos, mas em constituir objetos dando-lhes uma forma" (Verneaux, 1973, 103). a prpria questo crtica fundamental que refora esse entendimento, uma vez que, como comenta Fabris:

    na Crtica da Razo Pura se retoma a tendncia a pensar em termos de atividade atividade formadora, atividade de produo da experincia a nossa relao com o mundo, mesmo se concebendo que o ponto de partida de todo conhecimento legitimvel a sensao, a qual uma recepo imediata de contedos que no dependem de ns (Fabris, 1988, 120s, grifo meu DGAJ).

    Uma vez que a experincia constituda pela atividade do sujeito, e, ao mesmo tempo, essa atividade se organiza em relao a uma matria indeterminada, pode-se pensar a experincia como um duplo processo de recepo/formao. Kant fornece um exemplo, nos Prolegmenos, de como esses dois momentos se unificam na produo da experincia:

    Quando o sol ilumina (bescheint) uma pedra, ela torna-se quente. Este juzo um simples juzo de percepo (Wahrnehmungsurteil) e no contm nenhuma necessidade, seja qual for o nmero de vezes que eu e outros tenhamos percebido este fenmeno; as percepes encontram-se assim associadas apenas por hbito. Mas, se eu disser: o sol aquece a pedra, o conceito intelectual de causa sobrepe-se percepo, ligando necessariamente o conceito de calor ao conceito de luz solar, e o juzo sinttico torna-se universalmente vlido de modo necessrio, por conseguinte objetivo, e de percepo transforma-se em experincia (P, 20, A 83 - nota, grifo meu DGAJ).3

    Pode-se depreender desta passagem que o sentido propriamente crtico da experincia o de produo de um contorno inteligvel para o material fornecido sensibilidade. Assim, a sensao ainda algo que, embora j tenha recebido uma certa ordenao (como se ver adiante), deve necessariamente submeter-se a um processamento

    3 Modifiquei a traduo de Artur Moro em apenas um ponto. Foi em "Wenn die Sonne den Stein

    bescheint...", que Moro traduz: "Quando o sol incide numa pedra".

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    conceitual, que funo espontnea (isto , independente e ativa) das categorias do entendimento.

    o momento de examinar mais de perto segunda questo posta no incio desta seo, sobre o modo como Kant pensa o momento de universalidade e de particularidade na constituio da experincia. Vimos que as caractersticas do fenmeno so sempre

    referidas a uma relao com os nossos sentidos (CRPu, B 70 - nota), mas apenas sob uma forma, que deve "estar toda disposio a priori na mente" (CRPu, B 34), forma que ser dada pela atividade de subsuno de percepes a conceitos (P, 20, A 83 - nota), de modo que a experincia ser constituda de maneira sistemtica, vale dizer, de modo necessrio e universal (idem). Kant enftico a esse respeito, e reafirmar a universalidade da experincia em vrios nveis, a partir da considerao de atividades de sntese que envolvem a produo de formas para a experincia. O que h de contingente na experincia, a matria da sensao, prontamente reconhecido como subordinado ao que h nela de necessrio e universal (as formas puras a priori da sensibilidade e do entendimento). Kant, desse modo, ressalta o sentido crtico, isto , formal e universal, da experincia:

    Nada mais posso... que recomendar ao leitor que, habituado h muito a tomar a experincia como um simples agregado emprico de percepes (eine blo empirische Zusammensetzung der Wahrnehmungen) e, por conseqncia, no pensa que a experincia vai muito mais longe do que elas, a saber, fornece uma validade universal a juzos empricos e que, para tal, precisa de uma unidade pura do entendimento, a qual a precede a priori; recomendo-lhe, pois, que atenda a esta distino entre a experincia e um simples agregado (Aggregat) de percepes e ajuze a demonstrao a partir deste ponto de vista (P, 26, A 97).

    Ora, se a experincia no algo posto num nvel meramente contingente, preciso discernir os nveis em que essa unidade necessria se realiza, unidade sem a qual "a

    experincia nem chegaria a ser conhecimento, mas uma rapsdia de percepes" (CRPu, B 195). Este princpio de unidade e de forma precede a experincia, condiciona a sua possibilidade e, ao mesmo tempo, manifesta-se sempre nela (CRPu, B 196). Numa

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    passagem especialmente densa, Kant distingue os nveis de universalidade formal e sinttica que presidem a possibilidade da experincia:

    Deste modo, juzos sintticos a priori so possveis se referirmos as condies formais da intuio a priori, a sntese da capacidade da imaginao e a unidade necessria de tal sntese numa apercepo transcendental a um possvel conhecimento em geral da experincia (CRPu, B 197).

    Nesta curta passagem, possvel discernir os trs nveis da atividade formadora de

    experincia do sujeito epistmico. O primeiro nvel, o das "condies formais da intuio a priori", refere-se ao enquadramento espao-temporal da experincia, em sua dimenso de receptividade ao material das sensaes. Nos termos de Kant, esta corresponde " forma da sensibilidade que, no meu sujeito, precede todas as impresses reais pelas quais sou afetado por objetos" (P, 9, A 52), e que, como tal, no um contedo emprico determinado, mas uma "forma, o espao e o tempo" (P, 11, A 54). O segundo nvel, por sua vez, corresponde "unidade necessria de tal sntese numa apercepo transcendental". Trata-se da referncia necessria do mltiplo da intuio a uma funo transcendental sinttica, o

    eu penso [que] tem que poder acompanhar todas as minhas representaes (CRPu, B 132). Esta condio a priori da conscincia uma atividade do sujeito transcendental, um ato de espontaneidade (idem), uma faculdade de ligar todas as representaes dadas numa intuio autoconscincia, de modo originrio, uma apercepo originria. Como unidade sinttica da apercepo, sujeito e objeto so imbricados neste ato, o que Kant afirma nos seguintes termos: somente pelo fato de que posso, numa conscincia, ligar um mltiplo de representaes dadas possvel que eu mesmo me represente nessas

    representaes, a identidade da conscincia, isto , a unidade analtica da apercepo s possvel se pressuponho uma unidade sinttica qualquer (CRPu, B 134). O terceiro nvel, a "sntese da capacidade da imaginao", corresponde ao trabalho do esquematismo da imaginao transcendental, de referir as intuies ao entendimento. Uma vez que, enquanto "determinao transcendental do tempo", o esquema homogneo tanto ao conceito como ao fenmeno (CRPu, B 178), ele constitui um princpio formal indispensvel constituio da experincia, uma "regra da determinao de nossa intuio, conforme um certo conceito

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    universal" (CRPu, B 180)4. A continuidade desses nveis de atividade sintetizadora, que configuram as propriedades formais da experincia realada por Kant:

    fica claro que o esquematismo do entendimento mediante a sntese transcendental da capacidade de imaginao no desgua seno na unidade de todo o mltiplo da intuio no sentido interno e assim, indiretamente, na unidade da apercepo como funo que corresponde ao sentido interno (de uma receptividade). Portanto, os esquemas dos conceitos puros do entendimento so as verdadeiras e nicas condies para proporcionar a estes uma referncia a objetos, por conseguinte uma significao (CRPu, B 185).

    Trata-se, portanto, na filosofia transcendental, de pensar os momentos universais na constituio da experincia, que sero unificados, de maneira necessria, numa interdependncia das condies formais que constituem a sensibilidade e o entendimento. Como observa Caygill: "a sntese que constitui a experincia no uma simples unificao conceitual de um mltiplo intudo, mas tem lugar na base de uma adaptao mtua de

    conceito e intuio" (2000, 138), de modo que "as intuies da sensibilidade e os conceitos do entendimento adaptam-se e so adaptados mutuamente, com os mltiplos coordenados

    de uma estruturando e sendo estruturados pelas unidades formais do outro" (idem, 285). Kant pensa essa interdependncia fundamental entre sensibilidade e entendimento por meio das condies transcendentais da recepo sensvel e da sntese conceitual:

    Ora, espao e tempo contm um mltiplo da intuio pura a priori e, no obstante, fazem parte das condies da receptividade da nossa mente, unicamente sob as quais esta pode acolher representaes de objetos que portanto tambm tm sempre que afetar o conceito de tais objetos. Todavia, a espontaneidade do nosso pensamento exige que tal mltiplo seja primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e ligado para que se faa disso um conhecimento. Denomino esta ao sntese (CRPu, B 102).

    4 Kant fornece um exemplo deste trabalho mediador do esquematismo, entre conceito e intuio: "O conceito

    de co significa uma regra segundo a qual minha capacidade de imaginao pode traar universalmente a figura de um animal quadrpede, sem ficar restringida a uma nica figura particular que a experincia me

    oferece ou tambm a qualquer imagem possvel que posso representar in concreto (CRPu, B 180). Ou seja, o esquema "desdobra" o conceito, fornecendo-lhe uma regra de produo de figuras possveis no espao.

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    atravs da remisso s funes postas em ao por essa sntese originria que se pode, neste momento, abordar aquela terceira pergunta posta no incio desta seo, a saber: como Kant articula, na experincia, entendida de modo transcendental, uma determinada concepo de razo e de natureza? Em primeiro lugar, examinemos a figura de racionalidade que emerge da caracterizao kantiana da sntese da apercepo. Com efeito, a sntese "originria" que marca o entendimento (e no a razo, verdade, mas plausvel considerar o entendimento kantiano como uma estrutura racional, na medida em que ele responsvel pela inteligibilidade da experincia objetiva) como: 1) instncia de determinao ativa dos objetos da experincia, enquanto objetos de um conhecimento necessrio e universal, e: 2) princpio de uma dessubstancializao do sujeito transcendental, o qual ser entendido como condio, e no como objeto da experincia. Vejamos, a seguir, como estas duas caractersticas do arcabouo transcendental so articuladas.

    a sntese originria da apercepo o que caracteriza com mais fora os traos de a prioridade, incondicionalidade, universalidade e necessidade das funes do entendimento puro. Segundo Caygill, "o que crucial que esse ato de sntese excessivo; no pode ser derivado do mltiplo, mas -lhe sempre adicionado" (2000, p. 294). Ora, encontramos no entendimento um "excesso" em relao a que? Nada mais que um excesso em relao matria informe fornecida pela sensibilidade. O carter ativo e determinante do entendimento, desse modo, realado na sntese da apercepo, como um princpio de unidade necessria da experincia :

    Portanto, todo o mltiplo da intuio possui uma referncia necessria ao eu penso, no mesmo sujeito em que este mltiplo encontrado. Esta representao, porm, um ato de espontaneidade, isto , no pode ser considerada pertencente sensibilidade. Chamo-a apercepo pura para distingui-la da emprica, ou ainda apercepo originria por ser aquela autoconscincia que ao produzir a representao eu penso que tem que poder acompanhar todas as demais una e idntica em toda conscincia, no pode jamais ser acompanhada por nenhuma outra. Denomino tambm sua unidade de unidade transcendental da autoconscincia, para designar a possibilidade do conhecimento a priori a partir dela (CRPu, B 132).

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    deste modo que assistimos a uma verdadeira dessubstancializao do sujeito epistmico: o conhecimento objetivo condicionado por uma forma de autoconscincia universal e necessria, o princpio transcendental da possibilidade do pensamento pensar-se como veculo geral de representaes unificveis a priori, anteriormente toda experincia. Dessubstancializao do sujeito e ordenamento racional da experincia caminham lado a lado, portanto. De modo que a conscincia que refere objetos a um eu nada mais do que um princpio puro de produo da experincia:

    Um mltiplo contido numa intuio que chamo minha representado, mediante a sntese do entendimento, como pertencente unidade necessria da autoconscincia, e isto ocorre mediante a categoria. Esta indica, portanto, que a conscincia emprica de um mltiplo dado de uma s intuio est sob uma autoconscincia pura a priori do mesmo modo como uma intuio emprica est sob uma intuio sensvel pura, que ocorre igualmente a priori (CRPu, B 144).

    O sujeito transcendental compreendido como um princpio meta-emprico, do qual, segundo Kant, no se pode legitimamente concluir o conceito de uma pretensa "absoluta unidade desse mesmo sujeito" (CRPu, B 398), isto , passar idia de uma substncia, de uma alma subsistente, que fosse a condio de toda experincia . Muito antes, o eu penso da apercepo transcendental no configura nenhuma ontologia, nenhuma substancializao do sujeito. Ao invs, ele o ponto de articulao de uma racionalidade concebida de maneira rigorosamente transcendental o que implica a circunscrio dos

    conhecimentos a priori ao campo da experincia, que retira sua matria da esfera do sensvel. O eu penso, assim, no nem uma percepo isolada, nem o resultado de uma

    abstrao conceitual, mas

    o veculo de todos os conceitos em geral e, por conseguinte, tambm dos transcendentais, sendo sempre compreendido entre os mesmos e por isso sendo igualmente transcendental (CRPu, B 399); ...[de modo que] mediante este eu, ou ele, ou aquilo (a coisa) que pensa, no representado mais do que um sujeito transcendental dos pensamentos = x, que conhecido somente pelos pensamentos que so seus predicados, e do qual, separadamente,

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    no podemos ter o mnimo conceito (CRPu, B 404) ...[Sendo assim,] a unidade da conscincia, todavia, somente a unidade no pensamento, pela qual no dado nenhum objeto e qual, portanto, no pode ser aplicada a categoria da substncia, que pressupe sempre uma intuio dada (CRPu, B, 422) [grifos meus DGAJ].

    A noo de que o supremo princpio subjetivo constituinte da experincia um "sujeito transcendental dos pensamentos = x" (CRPu, B 404), se fornece a suma da posio kantiana de uma atividade (configuradora, racional) do entendimento que d forma e inteligibilidade experincia, tambm d ocasio para discernir os traos da concepo

    transcendental de natureza. Com efeito, Kant a iguala experincia objetiva das coisas como fenmenos. Experincia que, como j vimos, possui um duplo aspecto, material e formal:

    A natureza a existncia das coisas enquanto esta determinada segundo leis universais (P, 14, A71)... [sendo que] a palavra natureza assume ainda outro significado, que determina o objeto, ao passo que na significao precedente ela indicava a conformidade a leis das determinaes das coisas em geral. Portanto, materialiter considerada, a natureza a totalidade de todos os objetos da experincia (P, 16, A74)... [de modo que] o elemento formal da natureza, neste sentido restrito, a conformidade a leis de todos os objetos da experincia e, enquanto ela conhecida a priori, a sua conformidade necessria (P17, A75).5

    Assim, de maneira simtrica noo de sujeito transcendental da experincia, temos uma natureza pensada como: 1) instncia de determinabilidade passiva dos objetos da experincia6, sob a figura da quantidade intensiva da sensao (trata-se do "princpio das antecipaes da percepo", Cf. P, 24, A91, 92; CRPu, B 208ss7) que, como vimos,

    5 Cf. tambm CRPu, B 163-164.

    6 Esta "determinabilidade" designa a prontido da matria da experincia (a sensao) para receber uma

    forma. (dos quadros organizadores da sensibilidade e do entendimento). Ora, uma vez que "os princpios de uma experincia possvel so ao mesmo tempo as leis gerais da natureza, que podem ser conhecidas a priori" (P, 23-A 90), a noo de matria do fenmeno , na verdade, correlata noo de matria da natureza. 7 Segundo Kant, na "analtica dos princpios": "o seu princpio : Em todos os fenmenos, o real, que um

    objeto da sensao, possui quantidade intensiva, isto , um grau" (CRPu, B 208).

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    fornece a matria8 ao fenmeno, e: 2) enquanto tal, torna possvel a constituio dos objetos necessrios e universais da experincia, isso sem implicar qualquer posio ontolgica de uma objetividade "em si", independente de uma relao com os princpios cognitivos estruturantes do sujeito mas unicamente como um princpio transcendental: a necessria e apriorstica conformidade da natureza a leis (P 17, A, 75; P, A, 126). E, note-se bem, leis que so postas pelo entendimento humano9. Portanto, a natureza somente pode ser, segundo Kant, "causa ocasional"10 da experincia, sem jamais poder ser sua causa formal ou final11. Assim, no se pode dizer que a natureza seja condio de inteligibilidade da experincia, mas unicamente que todo objeto de experincia deve ser um objeto da natureza submetida inteligibilidade conferida pela conformidade s leis do entendimento.

    Pode-se pensar, assim, que, a partir de uma tal articulao entre entendimento e natureza na produo da experincia emergiria a precedncia da figura da causalidade12 para pensar tanto o sujeito, que d forma experincia, como a objetividade, que sua causa "material" (em sentido transcendental). A causalidade, concebida como o princpio

    8 Cf CRPu, B 119: "Esta ltima [experincia] contm dois elementos muito heterogneos, a saber, uma

    matria para o conhecimento derivada dos sentidos e uma certa forma para orden-la derivada da fonte interna da intuio e do pensamento puros, os quais, por ocasio da matria, pela primeira vez so postos em exerccio e produzem conceitos" (grifo meu DGAJ). 9 Pois "somos ns prprios que introduzimos, portanto, a ordem e a regularidade nos fenmenos, que

    chamamos natureza, e que no se poderiam encontrar, se ns, ou a natureza de nosso esprito, no as

    introduzssemos originariamente"(P, A 126) 10

    No sentido de que a matria da experincia fornece "se no o princpio da possibilidade desses conceitos, pelo menos as causas ocasionais de sua produo. Em tal caso, as impresses dos sentidos fornecem o

    primeiro impulso para lhes abrir a inteira capacidade de conhecimento e constituir a experincia"(CRPu, B 118, grifos meu DGAJ). 11

    Com a ressalva de que Kant no argumenta no nvel aristotlico das causas concebidas como princpios

    ontolgicos, mas unicamente concebe a causa como princpio de estruturao da experincia, como conceito

    puro do entendimento em suma, como princpio transcendental. 12

    Nesse sentido, "o esquema da causa e da causalidade de uma coisa em geral o real ao qual, se posto a

    bel prazer, segue sempre algo diverso. Consiste, portanto, na sucesso do mltiplo na medida em que est sujeito a uma regra" (CRPu, B, 183). A causalidade como princpio das analogias da experincia, por sua vez, concebida como "ordenao do mltiplo do fenmeno conforme qual a apreenso de uma coisa (que acontece) sucede de outra (que a precede) segundo uma regra (CRPu, B 238).

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    da razo suficiente13, ainda que transposto lgica transcendental, seria o fundo das figuras do sujeito transcendental dos pensamentos, bem como do princpio da conformidade a leis, que subsume a natureza atividade sinttica e formalizante desse sujeito transcendental.

    Ser preciso conservar essa hiptese no passo seguinte deste captulo, no qual ser examinado o problema da experincia moral em Kant. Trata-se de questionar: quais so as

    incidncias do enquadramento crtico da experincia na articulao kantiana de um mbito humano propriamente moral?

    1.2. Liberdade e experincia moral na filosofia prtica de Kant

    Ainda que Kant no use a expresso "experincia moral", legtimo us-la para referir-se sua filosofia, desde que se faam algumas qualificaes. A presente seo consistir, em grande parte, num desdobramento de tais qualificaes, na medida em que o problema da autonomia moral em Kant apresenta-se como complexamente imbricado com o problema da relao entre razo e natureza, bem como o das relaes entre sujeito e experincia em seu aspecto moral.

    Acabamos de ver como Kant empreendeu um enorme trabalho para mostrar que a experincia humana muito mais do que mera associao de elementos perceptivos numa

    conscincia emprica qualquer. Ao invs, pudemos compreender que a noo propriamente crtica de experincia envolve complexos processos de estruturao de um conhecimento que apenas pode ser dito objetivo na medida em que pe em ato uma universalidade que constitui, simultaneamente, a subjetividade transcendental e a legalidade do mundo natural. Essa universalidade nada mais do que a lei que o entendimento empresta aos fenmenos,

    e que faz da natureza um mbito da conformidade lei. A questo que nos orientar a seguir : se Kant pensa a experincia, a partir da

    filosofia crtica, primordialmente como experincia em geral isto , como processo

    13 o prprio Kant que indica essa leitura: "A regra, porm, para determinar algo segundo a sucesso

    temporal esta: a condio sob a qual segue sempre (isto , necessariamente) o evento deve ser encontrado naquilo que precede. Portanto, o princpio de razo suficiente o fundamento da experincia possvel, a saber, do conhecimento objetivo dos fenmenos no tocante s suas relaes na srie sucessiva do tempo (CRPu, B 246, grifo meu DGAJ).

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    transcendental de organizao formal e de sntese de elementos materiais contingentes e exteriores ao aparato transcendental do sujeito como fica a noo de experincia moral em Kant? um problema que se impe do interior da filosofia kantiana, uma vez que boa parte das consideraes dialticas da Crtica da Razo Pura se volta precisamente para o problema da liberdade no interior do sistema. Com efeito, ou a liberdade seria algo capaz

    de implodir toda a Crtica, se a concebermos como um rompimento milagroso da srie causal da natureza, ou a liberdade ver-se-ia posta mais ou menos como um fantasma,

    um devaneio da razo pura, sem nenhuma relao com o mundo dos fenmenos. Ora, sabe-se que Kant recusa ambas as alternativas e prope um tratamento propriamente crtico do problema da liberdade, centrado na noo de uma autonomia absoluta da vontade, identificada potncia prtica, isto , legislante, da razo pura.

    Assim, a idia desta seo a de construir progressivamente o sentido da experincia moral em Kant. Primeiramente, a partir da sua noo de razo como liberdade; em seguida, com remisso idia de uma incondicionalidade da lei moral; e, por fim, por meio da referncia ao conceito de vontade pura, poder produtor de efeitos no mundo

    sensvel. A investigao visar, consecutivamente, as relaes entre razo e natureza, universalidade e particularidade, e sujeito e experincia todas consideradas a partir do mbito da filosofia moral kantiana.

    preciso comear com a questo sobre o que significaria, para Kant, falar da idia de liberdade como algo co-essencial razo. O que remete ainda a uma outra pergunta, sobre o estatuto da natureza nesta equao de razo e liberdade. Seria a liberdade algo to propriamente interior razo, de modo a excluir da natureza qualquer dignidade (ou mesmo significado) moral? O pensamento de Kant acerca destas questes consideravelmente rico e complexo, de modo que, para nossos propsitos, limitar-me-ei a indicar como Kant articula a idia de uma liberdade transcendental, na Crtica da Razo Pura, de modo a permitir a possibilidade do pensamento de um mbito diverso da causalidade natural, e distinto da atividade constituinte de objetos, de um conhecimento terico da natureza, prprio do entendimento.

    Em suma, para Kant, trata-se de pensar a idia de liberdade, em suas relaes com a natureza e a razo aqui, ainda, da razo especulativa. Pois, na Crtica da Razo Pura, trata-se de pensar a possibilidade lgica da liberdade, concebida como uma idia da razo.

  • 35

    Isto , como um conceito que: 1) no pode constituir um objeto dado experincia sensvel (CRPu, B 384); 2) possui as caractersticas de necessidade e incondicionalidade, de modo a conter o "fundamento da sntese do condicionado" (CRPu, B 379). Ora, que tipo de idia a liberdade? Qual a unidade absoluta incondicionada que ela contm? Certamente no a do sujeito pensante, nem a dos objetos do pensamento em geral, que se referem s idias de alma e de Deus, respectivamente (CRPu, B 391). Resta ento, que a idia de liberdade refere-se unidade absoluta do mundo, isto , de todos os fenmenos. por isso que a idia de liberdade configura uma liberdade cosmolgica. Pois trata-se de pensar apenas sem poder de forma alguma poder provar sua realidade no conceito de uma totalidade absoluta da sntese do condicionado dos fenmenos.

    o prprio Kant que configura a questo da liberdade como marcando um passo ousado da razo para alm da experincia, portanto, para alm da possibilidade de conhecimento objetivo. Assim, um realismo transcendental a respeito da idia da liberdade proibido, desde o incio. Querer pr, como um ente real, a liberdade como princpio da sntese dos fenmenos desconhecer os princpios que tornam possvel a constituio de

    conceitos objetivamente validveis14. No caso da idia da liberdade, Kant denomina as inferncias metafsicas de uma liberdade substancial como pertencentes ao campo das

    "antinomias da razo pura". no "Sistema das Idias Cosmolgicas" que Kant, pela primeira vez, refere-se

    liberdade como uma idia que estabelecida, de acordo com a tbua das categorias, mediante o conceito puro de causalidade, "que oferece uma srie de causas para um efeito dado e na qual se pode ascender do ltimo como condicionado quelas como condies e responder s questes da razo" (CRPu, B 442). A partir da categoria de causalidade, que tem seu uso terico vlido no mundo dos fenmenos, constituindo uma natureza, possvel, ento, pensar uma causalidade que fosse a condio da unidade da natureza.

    14 Kant descreve a inferncia sofstica da razo pura como um processo no qual a razo "torna as categorias

    idias transcendentais com o fim de dar uma completude absoluta sntese emprica atravs do seu progresso at o incondicionado... A razo exige essa completude com base no princpio: se o condicionado dado, ento tambm dada a soma total das condies e, por conseguinte, o absolutamente incondicionado,

    mediante o qual unicamente era possvel aquele condicionado" (CRPu, B 436).

  • 36

    Opera-se, portanto, uma mudana de registro: do condicionado condio, do que organizado segundo um princpio quilo que torna esse prprio princpio possvel:

    Ora, neste caso a condio do que acontece denomina-se causa e a causalidade incondicionada da causa do fenmeno denomina-se liberdade; a causa condicionada, ao contrrio, denomina-se num sentido mais restrito causa natural. O condicionado na existncia em geral chama-se contingente e o incondicionado chama-se necessrio. A necessidade incondicionada dos fenmenos pode ser denominada necessidade natural (CRPu, B 447 grifos meus DGAJ).

    Esta passagem notvel indica a chave de toda a argumentao kantiana acerca do sentido transcendental da liberdade. Com efeito, trata-se de marcar uma distino com o princpio de uma causalidade natural, que perfeitamente cognoscvel, uma vez que corresponde transcrio de uma categoria do entendimento experincia possvel, e que configura um mundo fenomnico marcado pela determinao melhor dizendo, por um

    determinismo oriundo da inevitabilidade do princpio causal. De modo fundamentalmente diverso, a razo, tomando esta categoria do entendimento, a causalidade, concebe a

    possibilidade lgica de um princpio incondicionado de causalidade, que contivesse e fosse condio de possibilidade daquela causalidade natural. Trata-se do principio da liberdade, que "causalidade incondicionada da causa do fenmeno" (CRPu, B 447).

    O que mais notvel, porm, na referida passagem, o registro, quase en passant, da liberdade como sendo algo da ordem da necessidade, em relao contingncia do mbito causal da natureza, que configura meramente o "condicionado na existncia em geral", enquanto o carter incondicionado da causalidade da liberdade faz com que ela assuma o estatuto de uma "necessidade natural" (CRPu, B 447). A questo se complica consideravelmente, pois no se trata apenas da possibilidade lgica da liberdade, mas da posio da liberdade como um fundamento causal do mundo fenomnico. No a irei

    abordar no momento, limitando-me a reter a noo de que a liberdade cosmolgica deve ser pensada como uma causalidade para alm da natureza, uma causalidade incondicionada, no restringida pelos fenmenos, mas que age sobre estes como uma necessidade.

    Pode-se admitir que, no processo da argumentao de Kant, a liberdade ainda apenas uma possibilidade meramente pensvel, a ser confrontada pela crtica, e segundo a

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    qual, conforme se l no enunciado da tese da terceira antinomia: "a causalidade segundo leis da natureza no a nica da qual possam ser derivados os fenmenos do mundo em conjunto. Para explic-los necessrio admitir ainda uma causalidade mediante liberdade" (CRPu, B 472 grifo meu DGAJ). Assim, se, conforme demonstrado pela "analtica transcendental", a causalidade que

    governa a natureza to somente a organizao que o entendimento, como uma faculdade transcendental, constitui no mundo dos fenmenos, a liberdade, no sentido transcendental,

    s poder ser um outro tipo de organizao, mais elevado, e constitudo por uma faculdade superior. Esta faculdade, evidentemente, a razo, e o mundo que ela constitui no ser aquele mundo contingente dos fenmenos, mas sim, um mundo necessrio de uma ordem causal incondicionada. Portanto, um mundo unicamente inteligvel, meta-fenomnico resultados conformes ao texto da Crtica da Razo Pura, em B 447, o que explicitado na soluo da idia cosmolgica da liberdade:

    Com respeito ao que acontece, s se pode conceber dois tipos de causalidade: ou segundo a natureza ou a partir da liberdade. O primeiro tipo consiste na conexo, no mundo sensvel, de um estado com um estado anterior do qual aquele decorre segundo uma regra... Em contrapartida, entendo por liberdade, no sentido cosmolgico, a faculdade de iniciar por si mesmo um estado, cuja, causalidade, pois, no est por sua vez, segundo a lei da natureza, sob uma outra causa que a determinou quanto ao tempo (CRPu, B 560-561).

    Portanto, se, como afirma Kant, "todo o campo da experincia, por mais que se estenda, transformado num conjunto de mera natureza" (CRPu, B 561), e a liberdade, como idia, no se encontra nem derivada da experincia, sua possibilidade deve ser entendida como um ato originrio da razo, o que Kant refere sua propriedade de ser uma

    espontaneidade, isto , uma faculdade absoluta de iniciar sries causais, de modo incondicionado: "a razo cria para si mesma a idia de uma espontaneidade que pode, por si

    mesma, iniciar uma ao sem que seja necessrio antepor-lhe uma outra causa que, por sua vez, a determine para a ao segundo a lei da conexo causal" (CRPu, B 561). A razo, portanto, a faculdade que fundamenta a possibilidade da liberdade, de um mbito inteligvel para alm da natureza, regido por uma causalidade prpria, que tem a propriedade de ser autnoma, isto , de encontrar sua lei em sua prpria atividade. A noo

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    da liberdade como intrinsecamente ligada a uma certa legalidade nos leva ao segundo ponto, mencionado no incio desta seo, a respeito da considerao da incondicionalidade da lei moral, por meio do qual ser possvel indicar o modo como Kant articula a relao entre os momentos de universalidade e particularidade na experincia moral.

    na prpria Crtica da Razo Pura que Kant fornece a chave de sua considerao da autonomia da vontade que se expressa na incondicionalidade do dever posta como princpio fundamental da moralidade, em suas obras morais posteriores. Uma vez que a

    liberdade uma necessidade, isto , ela configura uma legalidade superior da natureza, ela deve manifestar-se como independncia do natural, e, alm disso, como espontaneidade de uma faculdade inteligvel:

    A liberdade no sentido prtico a independncia do arbtrio da coero por impulsos da sensibilidade. Com efeito, um arbtrio sensvel na medida em que afetado patologicamente (por motivaes da sensibilidade); denomina-se animal (arbitrium brutum) quando ele pode ser patologicamente necessitado. O arbtrio humano na verdade um arbitrium sensitivum mas no brutum e sim liberum, pois ao homem inerente uma faculdade de determinar-se por si mesmo, independentemente da coero por impulsos sensveis (CRPu, B 562).

    o princpio da autonomia da vontade que introduzido aqui. Torna-se patente que sua universalidade assenta-se transcendentalmente: a vontade uma faculdade pela qual o sujeito, ao ser propriamente afetado pela sensibilidade, que lhe impe quereres, ao mesmo tempo, capaz de sobrepor-lhes a representao de um dever, que ele mesmo concebe atravs da razo. Trata-se, assim, de pensar a conformao objetiva do dever, uma vez que este se pe como o realizador da liberdade prtica. Ora, se a vontade deve ser pensada

    como pura, isto , como no determinada por qualquer receptividade, o dever que ela manifesta ser da ordem de uma universalidade que no se depreende da legalidade natural. Essa necessidade ser, assim, instituda transcendentalmente, de modo a representar, na forma de um princpio sinttico a priori, a obrigatoriedade de uma constelao moral, na qual o sensvel s poder ser constitudo como contingente, temporal, determinado.

    Essa determinao, evidentemente, ser diversa daquela determinao que o entendimento confere experincia atravs de suas leis. Pois no se trata, na moral, de uma

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    determinao de objetos para o conhecimento, mas de um princpio absolutamente autnomo (CRPr, A 29), de uma lei a priori para a vontade, que determina a forma como devem ser subsumidos os materiais contingentes da experincia sensvel. Ora, ser a razo, e no o entendimento, que determinar a necessidade de uma causalidade prpria da vontade, a qual, na figura da lei moral, instituir uma inteligibilidade propriamente moral

    das aes humanas. o que afirma Kant, ainda na Primeira Crtica:

    O dever expressa um tipo de necessidade e de conexo com fundamentos que no ocorre alhures com toda natureza... Ora, o dever exprime uma ao possvel cujo fundamento nada mais que um simples conceito... o dever expresso pela razo contrape a este querer uma medida e uma meta, mais ainda uma proibio e uma autoridade... com toda a espontaneidade ela se constri uma ordem prpria segundo idias, qual adapta as condies empricas e segundo a qual declara necessrias at as aes que ainda no ocorreram e que talvez nem venham a ocorrer (CRPu, B 575-576).

    Ser preciso acompanhar, na Fundamentao da Metafsica dos Costumes e na Crtica da Razo Prtica, a explicitao deste princpio constituinte da moral. O essencial a reter, quanto universalidade deste princpio, o seu carter formal e categrico, conforme explica Kant, na Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Uma vez que princpios prticos universais no se podem basear em fins subjetivos, ou seja, em materiais particulares da vontade, eles devem remeter simplesmente a uma forma que faa abstrao de todo fim particular, e que fornea uma lei vlida para todo ser racional. Essa lei ser um princpio necessrio de determinao da vontade (FMC, BA 64). E enquanto tal, ela no fornecer vontade imperativos meramente condicionados consecuo de fins particulares, isto , princpios hipotticos, mas, ao contrrio, impor vontade uma necessidade incondicional, que consistir justamente na obrigao de desvencilhar-se da mera determinao por fins subjetivos. O imperativo categrico, assim, ser o princpio que impe particularidade das mximas (princpios subjetivos de determinao da vontade) uma necessidade de universalizao. Verneaux comenta a relao entre a lei prtica e a mxima de modo a realar o modo como Kant considera uma reflexividade entre elas: "uma mxima subjetiva, isto entende-se. Mas, por inteiramente subjetiva que seja, ela

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    pode ser erigida em lei universal, ou, inversamente, cada um pode tomar uma lei como mxima de sua conduta" (Verneaux, 1973, 178).

    Ser lcito falar de experincia moral a respeito desta relao entre uma lei incondicional de determinao da vontade concebida como faculdade de auto-determinao, num plano inteligvel, dos seres racionais por um lado, e um mbito das

    mximas subjetivas do querer concebido como "faculdade de desejar inferior" (CRPr, A 41), por outro? o que faz Kant, mesmo sem usar o termo (experincia moral), na medida em que fala de uma moralidade que nada mais seria que "a nica conformidade das aes a leis que pode ser derivada, de um modo completamente a priori, de princpios" (CRPu, B 869). Ora, uma tal equao entre moralidade e necessidade inteligvel faz com que a noo de experincia aqui seja pensvel apenas em geral, como no caso da experincia do sujeito transcendental do conhecimento, examinado na seo precedente. Kant o admite abertamente, ao excluir toda considerao antropolgica da constituio dessa realidade moral que ele refere, muito antes, metafsica, isto , em termos crticos, filosofia transcendental: "a metafsica dos costumes propriamente a moral pura, a qual

    no se funda sobre qualquer Antropologia (quaisquer consideraes empricas)" (CRPu, B 869).

    Segundo Kant, a razo pura prtica conteria um princpio de possibilidade da experincia em seu sentido moral, como posto na Primeira Crtica:

    Portanto, a razo pura contm, no em seu uso especulativo, mas sim num certo uso prtico, a saber, o uso moral, princpios da possibilidade da experincia, ou seja, de tais aes que de acordo como os preceitos morais, poderiam ser encontradas na histria do ser humano. Com efeito, j que a razo ordena que tais aes devem ocorrer, elas tambm tm que poder ocorrer, e, por conseguinte, tem que ser possvel um tipo particular de unidade sistemtica, a saber, a moral (CRPu, B 835).

    a idia prtica de um mundo moral inteligvel que posta aqui. Mundo que possui uma objetividade em sentido moral apenas na medida em que se constitui como destacamento da particularidade e da contingncia do sensvel, um mundo "que fosse conforme a todas as leis morais", e "pensado unicamente inteligvel", o que implica que nele "se abstrai de todas as condies (fins) e mesmo de todos os obstculos da moralidade

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    (fraqueza ou impureza da natureza humana)" (CRPu, B 836). Ora, a idia de uma moralidade que se articula como necessidade, independentemente das condies particulares da natureza humana, consideradas como contingentes, leva a um problema: como o necessrio pode ser realizado no contingente? Kant no parece deixar-se vencer pela questo, uma vez que afirma, logo a seguir, que o mundo moral:

    uma simples idia, se bem que prtica, que realmente pode e deve exercer seu influxo sobre o mundo sensvel a fim de torn-lo, tanto quanto possvel, conforme a esta idia. Conseqentemente, a idia de um mundo moral possui uma realidade objetiva, no como se referindo a um objeto de uma intuio inteligvel (no podemos absolutamente pensar um tal objeto), mas sim como se referindo ao mundo sensvel enquanto um objeto da razo pura em seu uso prtico e um corpus mysticum dos entes racionais que nele se encontram (CRPu, B 836 grifo meu DGAJ).

    A idia de uma causalidade do mundo moral inteligvel capaz de produzir efeitos no mundo sensvel ser desenvolvida e explicitada na Crtica da Razo Prtica. Ora, vimos que a distino entre fenmeno/causalidade natural e coisa em si/causalidade inteligvel essencial para Kant pensar o conceito de liberdade cosmolgica, na primeira Crtica, na

    qual se afirma que: "com efeito, se os fenmenos so coisas em si mesmas, ento no possvel salvar a liberdade" (CRPu, B 565). Para "salvar a liberdade" preciso pensar duas ordens de causalidades que no envolvam contradio entre si, uma vez que seu mbito de aplicao ser diverso: para a causalidade natural, o mundo fenomnico; e para a causalidade mediante liberdade, o mundo inteligvel. Pe-se o problema de pensar a relao entre os dois mbitos causais. Trata-se de desenvolver e explicitar a idia segundo a qual a causalidade inteligvel manifesta-se, produz efeitos no mundo dos fenmenos, os quais, uma vez constitudos, passam a sofrer a determinao causal natural prpria do

    mbito fenomnico. importante notar que afirmada, atravs desta operao, uma incompletude da causalidade natural, pois afirmar a efetividade de uma causa inteligvel o

    mesmo que propor que no se pode pensar que "a natureza... [seja] causa completa e suficientemente determinante de todo evento" (CRPu, B 565). Conseqentemente, se a legalidade natural uma legalidade restrita, preciso que sua valncia seja remetida a uma instncia superior, que o condicionado no fenmeno possua "fundamentos que no so

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    fenmenos" (idem). Com o que se chega idia central de que a causalidade inteligvel funciona como uma causalidade determinante da causalidade natural. Antecipando a direo de meu exame, ns a encontramos, de incio, na primeira Crtica, na passagem em que Kant parte da noo de "objeto transcendental" para chegar noo de um "carter inteligvel" que seria causa do "carter emprico". Assim, como comenta Verneaux, "depois

    de ter situado a liberdade no objeto transcendental, Kant a transporta, sem mais, ao sujeito transcendental, e deste que a passa ao homem" (1973, 232).

    Retomemos a articulao dos conceitos na Primeira Crtica. Nesta, com efeito, crucial a determinao do inteligvel como uma causalidade suprassensvel determinante dos fenmenos. A passagem-chave a seguinte:

    Denomino inteligvel aquilo que num objeto dos sentidos no propriamente fenmeno. Conseqentemente, se aquilo que no mundo dos sentidos tem que ser encarado como fenmeno tambm possui, em si mesmo, um poder que no objeto da intuio sensvel, mas que mediante esta, no obstante, pode ser a causa de fenmenos, ento se pode considerar a causalidade deste ente sob dois aspectos: como inteligvel quanto sua ao, como a de uma coisa em si mesma, e como sensvel quanto aos seus efeitos, como os de um fenmeno no mundo dos sentidos (CRPu, B 566).

    De incio, ressalta uma certa estranheza na prpria formulao do inteligvel: como pode haver no sensvel algo que extrapole o seu carter de representao, de fenomenalidade? Isso parece contrariar o sentido geral da Crtica, introduzindo um misterioso e incognoscvel "alm do fenmeno" de maneira gratuita e improvvel. Como justificar a idia de um "poder que no objeto da intuio sensvel, mas que mediante esta, no obstante, pode ser a causa de fenmenos"? Kant ter de mostrar que h aqui uma noo que no filha dos "sonhos de um visionrio", mas que se encaixa perfeitamente no

    arcabouo transcendental. o que ele tenta fazer, atravs de sua noo de objeto transcendental, que seria precisamente esse poder mediante o qual uma causalidade inteligvel se manifesta nos fenmenos. Poder, de resto, incognoscvel, uma vez que no referencivel por nenhuma intuio:

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    Podemos denominar a causa unicamente inteligvel dos fenmenos em geral de objeto transcendental, e isto s a fim de que tenhamos algo correspondente sensibilidade enquanto uma receptividade. A este objeto transcendental podemos atribuir toda a extenso e interconexo de nossas percepes possveis e dizer que ele dado em si mesmo antes de toda a experincia (CRPu, B 522-523 grifos meus DGAJ).

    A noo de um mbito inteligvel, que recoberta pela de objeto transcendental, ser importante para que Kant considere a dupla natureza da causalidade prpria ao sujeito transcendental. Com efeito, Kant denomina de carter a lei de uma causalidade (CRPu, B 567), sendo o sujeito a sede de duas causalidades ou caracteres. Um carter emprico, "mediante o qual as suas aes, enquanto fenmenos, se interconectariam completamente com outros fenmenos segundo leis constantes da natureza" (idem). Carter emprico, desse modo, que impe que as aes do sujeito sejam inteiramente condicionadas pela causalidade natural, sem nenhuma possibilidade de liberdade. Ora, a liberdade uma condio causal admitida pela Crtica, de modo que, a este sujeito tambm inerente a propriedade de ser um carter inteligvel, "mediante o qual aquele sujeito a causa daquelas aes enquanto fenmenos, ele mesmo, no entanto, no se subordinando a

    quaisquer condies da sensibilidade e no sendo, pois, um fenmeno" (idem). Essa distino implica um resultado aparentemente paradoxal, pois, como carter

    inteligvel, e de acordo com a formulao do objeto transcendental, h no sujeito algo que " dado em si mesmo antes de toda a experincia (CRPu, B 522-523). O que ressaltado por Kant, que, depois de cham-lo de "carter da coisa em si mesma" (CRPu, B 567) explicita o seu estauto:

    Esse sujeito agente no estaria, segundo o seu carter inteligvel, sob condies temporais... Nele nem surgiria nem cessaria qualquer ao.... (CRPu, B 568); o mesmo sujeito teria que ser absolvido tanto de todo o influxo da sensibilidade quanto de toda a determinao por fenmenos; e j que, na medida em que noumenon, nele nada ocorre... ento este ente atuante seria independente e livre, em suas aes, de toda a necessidade natural... Dele dir-se-ia assaz acertadamente que inicia por si mesmo os seus efeitos no mundo dos sentidos, sem que a ao comece nele mesmo (CRPu, B 569).

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    Temos, assim, no carter inteligvel, o influxo de uma causalidade nos fenmenos, a qual no derivada dos fenmenos. O que, de resto, se harmoniza com a soluo da 3a antinomia, segundo a qual no contraditrio pensar simultaneamente a atividade de duas causalidades, a natural e a livre, nos fenmenos, de modo que possvel pensar a primeira como "um efeito de uma causalidade no-emprica, mas sim inteligvel, isto , de uma ao

    originria de uma causa com respeito aos fenmenos" (CRPu, B 572) Esta afirmao de uma primazia e mesmo de uma determinao da causa inteligvel em relao causa

    natural, transposta ao plano do sujeito transcendental, de modo a se conceber que "o carter inteligvel a causa transcendental do carter emprico" (CRPu, B 574). O passo final da passagem do inteligvel experincia humana exposto por um Kant seguro da ausncia de problemas da distino entre coisa em si e fenmeno. De maneira tranqila, Kant prope: "seja-nos permitido aplicar isto experincia". Ou seja, pensemos na idia de uma dupla determinao do homem: como fenmeno, possuidor de um carter emprico, e, ao mesmo tempo, como noumenon, possuidor de um carter inteligvel, pelo qual ele uma pura espontaneidade da razo, que "pondera os seus objetos somente segundo suas idias, determinando, a partir disto, o entendimento a ento fazer uso emprico de seus conceitos tambm puros" (CRPu, B 575).

    Trata-se de pensar, desse modo, para a filosofia prtica, as condies de aplicao de uma causalidade noumnica aos fenmenos, isto , de investigar como a lei moral, como pura forma, pode ser causa determinante do arbtrio. Em suma, trata-se de pensar a vontade como a causalidade de um carter inteligvel. Antes de tudo, preciso desvencilhar-se das pretenses de uma psicologia racional, que gostaria de pensar o sujeito mediante uma intuio inteligvel, uma existncia transcendente "em si"15. Ora, no captulo dos paralogismos da Primeira Crtica, Kant bem claro ao salvaguardar para a filosofia moral um significado muito especfico, que no pode ser confundido com a assuno terica de

    realidades suprassensveis. Assim, da mera conscincia emprica do eu como ente pensante no se pode seguir absolutamente a posio de um eu noumnico como uma proposio

    especulativa (CRPu, B 430). Diversamente, somos autorizados a pensar um eu inteligvel a

    15 Sobre esta preocupao, afirma Kant: "isso precisou ser dito somente para prevenir o mal-entendido a que

    est sempre facilmente exposta a doutrina da nossa auto-intuio como fenmenos"( CRPu, B 432).

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    partir da atividade legislante da razo, com relao ao significado moral da nossa experincia:

    Isto no faria avanar minimamente todas as tentativas da psicologia racional... Todavia, com respeito ao uso prtico, que est sempre orientado a objetos da experincia, eu estaria autorizado a usar esses conceitos em conformidade como a significao analgica que eles possuem no uso terico para a liberdade e para o seu sujeito (CRPu, B 431).

    Kant articula, desse modo, o entendimento da causalidade noumenal no como um influxo "sobrenatural" do sujeito em relao aos fenmenos, mas, bem diversamente, considera a causa noumenal como a posio de uma inteligibilidade outra que a causalidade natural, na ao desses mesmos fenmenos. Somente quando se pensa o sujeito da razo prtica como uma causalidade noumnica que torna-se possvel pensar a experincia moral como um mbito distinto do meramente emprico (do qual no se pode originar, segundo Kant, nenhuma obrigao incondicional para seres racionais e sensveis, para os homens). preciso, assim, que o sensvel no homem possa ser tomado (tambm) num mbito de significao inteiramente diverso da simples subsuno causalidade natural. a vontade pura, como faculdade de uma causalidade prtica, que impe um sentido moral experincia. A passagem chave, na Crtica da Razo Prtica, a seguinte:

    no conceito de uma vontade, porm, est j contido o conceito de causalidade, por conseguinte, no de uma vontade pura, o conceito de uma causalidade como liberdade, isto , que no determinvel por leis naturais... contudo, porm, na pura lei prtica a priori justifica perfeitamente sua realidade objetiva, no em vista (como fcil de ver) do uso terico, mas simplesmente do uso prtico da razo. Ora o conceito de um ser, que tem vontade livre, o conceito de uma causa noumenon (CRPr, A 96s).

    Cabe, assim, investigar o sentido da experincia moral como o da relao da vontade pura com o nimo, na medida em que ela se manifesta na conscincia como uma certa disposio em elevar as prprias mximas forma da lei moral. Essa disposio ser pensada como um efeito prtico da causalidade da vontade pura. Trata-se, assim, de compreender como uma vontade patologicamente afetada, mas no necessitada (arbitirium

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    sensitivum liberum), pode ser impelida a uma disposio moral na escolha das mximas mediante uma vontade pura livre, que um poder de autodeterminao na forma de uma lei inteligvel da moralidade (causa noumenom).

    Ou seja, trata-se da clssica questo dos "motivos da razo pura prtica", de saber como a vontade pode ser um mvel moral, de forma a constranger as inclinaes da

    sensibilidade sob a lei moral, fazendo desta ltima, e no daquelas, o fator determinante da ao. O que implica em desenvolver algo como uma "esttica" da razo pura prtica. Beck

    faz um conciso apanhado do problema, indicando o modo como essa questo recebe um encaminhamento estritamente prtico:

    O homem um ser racional, mas tambm um ser de necessidades, impulsos e sensibilidade. Ele , ou pode ser, um agente livre, mas tambm parte do mecanismo da natureza. O seu eu noumenal, mas ele tambm possui um carter emprico que o distingue de tod